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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LETRAS CURSO DE LETRAS – PORTUGUÊS/INGLÊS NATHALIA FERRARINI VARGAS O MAR MÍTICO E SONANTE DE CAYMMI PATO BRANCO 2017

O MAR MÍTICO E SONANTE DE CAYMMIrepositorio.roca.utfpr.edu.br/.../1/PB_COLET_2017_1_10.pdf · 2018-05-07 · Segue o mais secreto bailar do meu sonho, ... sobretudo, elementos ligados

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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ

DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LETRAS

CURSO DE LETRAS – PORTUGUÊS/INGLÊS

NATHALIA FERRARINI VARGAS

O MAR MÍTICO E SONANTE DE CAYMMI

PATO BRANCO

2017

NATHALIA FERRARINI VARGAS

O MAR MÍTICO E SONANTE DE CAYMMI

Trabalho de Conclusão de Curso apresentadoà Universidade Tecnológica Federal do Paraná– UTFPR, Câmpus Pato Branco – PR, comorequisito parcial para a obtenção do título deGraduação em Licenciatura em Letras –Português/Inglês. Orientador: Prof. Dr. Marcos Hidemi de Lima.

PATO BRANCO

2017

AGRADECIMENTOS

Ao professor Marcos Hidemi de Lima, que, brilhantemente, orientou-me nesta

pesquisa, sempre com muita paciência e valiosas constribuições.

Ao professor Wellington Ricardo Fioruci, que por dois anos me orientou na

enriquecedora jornada que é a iniciação científica, permitindo-me dar meus

primeiros passos como pesquisadora.

A todos os mestres da graduação, que contribuiram em minha formação como

professora.

Ao meu professor do ensino básico, Valdir Cardoso, que despertou em mim o

gosto pela Literatura.

Ao meu tio Loio, por me ajudar, com tanta gentileza, no conteúdo musical

presente deste trabalho.

À minha família, pelo amor, incentivo, compreensão e apoio incondicional.

Por fim, agradeço aos meus colegas e amigos, que nunca me deixaram

esquecer que eu teria forças para cumprir cada uma das etapas desafiadoras que

nos são propostas. Principalmente às colegas de iniciação científica e também

minhas amigas Alana Destri e Thaís Alessandra Aureluk.

“Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim

A tua beleza aumenta quando estamos sós

E tão fundo intimamente a tua voz

Segue o mais secreto bailar do meu sonho,

Que momentos há em que eu suponho

Seres um milagre criado só para mim.”

Sophia de Mello Breyner Andresen

VARGAS, Nathalia Ferrarini. O mar mítico e sonante de Caymmi. 2017. 57 f.Monografia (Graduação em Letras Português e Inglês), Universidade TecnológicaFederal do Paraná, Pato Branco, 2017.

RESUMO

No que tange às discussões que envolvem literatura e canção, este trabalho temcomo objetivo analisar as canções "O mar" (1959) e “Sargaço Mar” (1985),produzidas no contexto das canções praieiras, ou canções do mar, uma dasprincipais vertentes do cantor e compositor baiano Dorival Caymmi. Para arealização desse trabalho, empregaram-se alguns recursos de análise literária e,sobretudo, elementos ligados à música, com o objetivo de respeitar o elo entre letrae melodia, atendendo às diferenças entre poesia e canção. Nesse sentido, emconsonância com a análise literária, é de grande importância verificar de que formaalguns elementos inerentes à área musical podem contribuir para acentuar aindamais os elementos líricos expressos nas letras da canção aqui estudadas. A principalbase teórica empregada está relacionada a alguns conceitos propostos por LuizTatit, dentro da Semiótica da Canção, como passionalização, figurativização etematização, e do método hermenêutico-semiológico proposto por Phillip Tagg, taiscomo aspecto de tempo e aspectos dinâmicos, que serão tomados em consideraçãopara que se leve em conta a canção como unidade. Na canção “O mar”, busca-seidentificar como Caymmi concebe e constrói a figura do mar, bem como de quemaneira ele retratou a gente praiana. Em “Sargaço Mar”, a investigação detém-se noestabelecimento da relação entre o mar e a divindade Iemanjá, sua importância nacultura da gente praiana, além da representação que Caymmi criou da figura dopescador. Em ambas as canções foi possível verificar um movimento cíclico, tantona fração linguística quanto na musical. Na primeira canção, o movimento circular foiassociado à figura do mar, enquanto que na segunda canção, na relação entre acultura dos pescadores e a figura de Iemanjá.

Palavras-chave: Dorival Caymmi; literatura; canção.

VARGAS, Nathalia Ferrarini. Caymmi's Mythical and Musical Sea . 2017. 54 p.Monograph (Graduação em Letras Português e Inglês), Universidade TecnológicaFederal do Paraná, Pato Branco, 2017.

ABSTRACT

Regarding to the discussions that surround literature and music, this work aims toanalyze the songs "O Mar" and "Sargaço Mar", produced in the context of the so-called canções praieiras, or songs of the sea, one of the main works of the singerand composer from Bahia, Dorival Caymmi. For the accomplishment of this work,some resources of literary analysis and, above all, elements related to the musicwere used, with the objective of respect the link between lyrics and melody, takinginto account the differences between poetry and music. Thus, in consonance with theliterary analysis, it is of great importance to verify how some elements inherent to themusical area can contribute to accentuate even more the lyrical elements expressedin the lyrics of the song studied in this work. The theoretical main base used isrelated to some concepts proposed by Luiz Tatit in the area of Semiótica da Canção,such as passionalization, figurativization and thematization, and the hermeneutic-semiological method proposed by Phillip Tagg, such as aspect of time and dynamicaspects will be taken into account to consider the song as a unit.In the song "O Mar",it will be identified how Caymmi conceives and constructs the figure of the sea, aswell as how he portrayed those who live by the sea. In "Sargaço Mar", theinvestigation focuses on establishing the relation between the sea and the GoddesIemanjá, her importance in the culture of the people who live by the sea, as well asthe representation that Caymmi created of the figure of the fisherman. In both songsit was possible to verify a cyclical movement, both in the linguistic and musical parts.In the first song, the circular movement was associated with the figure of the sea,while in the second song, it was associatedin to the relation between the culture ofthe fishermen and the figure of Iemanjá.

Key-words: Dorival Caymmi; literature; song.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................9

2 POESIA X CANÇÃO...............................................................................................11

3 O MAR.....................................................................................................................22

4 SARGAÇO MAR.....................................................................................................35

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................51

REFERÊNCIAS..........................................................................................................53

9

1 INTRODUÇÃO

Como um dos grandes nomes da música popular brasileira, o cantor e

compositor baiano Dorival Caymmi dispõe de uma modesta produção, no sentido

quantitativo, beirando em torno de uma centena de canções em aproximadamente

70 anos de carreira. Ainda assim, como assinalou Francisco Bosco (2006, p. 18) é

“(...) formada, em sua maior parte, por clássicos da canção popular brasileira”. À

vista disso, estudar uma parcela, mesmo que pequena, da obra de Caymmi é,

sobretudo, valorizar a cultura brasileira, especialmente o recorte da cultura baiana.

Vê-se que hoje, academicamente, pouco é discutido sobre suas canções, sejam

seus sambas, tão aclamados nacional e internacionalmente, além de amplamente

regravados, seja sua contribuição para a bossa nova ou suas canções praieiras,

estas se configurando como objeto de estudo deste trabalho.

As canções praieiras de Dorival Caymmi eram assim classificadas pelo

próprio cantor e compositor, devido à temática do mar e aos elementos relacionados

ao mar. Dessa forma, neste trabalho, buscar-se-á apontar nas canções “O mar”,

presente no álbum “Caymmi e seu Violão” (1959) e “Sargaço Mar”, lançada no LP

“Caymmi, Som, Imagem e Magia” (1985), como Caymmi concebeu e cantou a figura

do mar, de que forma o mar de Caymmi é representado musicalmente e como se dá,

em suas canções aqui propostas, a íntima ligação do mar e da figura do pescador,

tão presente nas letras e nas experiências do compositor baiano, bem como a

relação destes com a divindade Iemanjá.

No que diz respeito a esta divindade, é substancial apontar a importância da

figura de Iemanjá, considerada nesta pesquisa como entidade religiosa de extrema

relevância, uma vez que se faz necessário entender de onde vêm os mitos e

simbologias presentes nas canções praieiras de Dorival Caymmi. Para que se possa

compreender o contexto no qual está inserida a figura religiosa considerada a rainha

do mar, buscou-se na obra de Armando Vallado, Iemanjá: A grande mãe africana do

Brasil (2011) resgatar as origens de Iemanjá, além das transformações que esta

sofreu ao ser ressignificada dentro da cultura brasileira.

Com o intuito de melhor compreender o peso simbólico que Caymmi

depositou em suas composições, sobretudo as estudadas neste trabalho, uma

pesquisa de ordem bibliográfica deverá levar dois pontos em consideração: a análise

10

literária que será realizada, explorando minunciosamente como se dão as relações

supracitadas nas letras das canções, bem como, em um segundo plano, mas não

com menor importância, uma análise musical, tecendo reflexões sobre a importância

das escolhas musicais do compositor. Evoca-se, por conseguinte, certos

componentes característicos da música para que se possa estabelecer em Caymmi

o liame entre som e verbalidade, a correlação e complementação entre esses dois

signos, para que se apreendam, assim, significações distintas do que se fossem

pensadas apenas como signos isolados.

A análise musical dentro deste trabalho acaba por trazer uma discussão

fundamental no que tange às análises de canções: a importância de sublinhar as

diferenças entre poesia, objeto de estudo da literatura, e da canção, objeto de

estudo recente nos campos de Letras e Música. Para tanto, discussões propostas

por Lauro Meller em seu trabalho intitulado Poetas ou Cancionistas: Uma discussão

sobre música popular e poesia literária (2015) se fazem indispensáveis para que se

possa melhor entender as distinções entre essas duas formas de arte.

Ademais, visto a dificuldade de encontrar ferramentas para que se possa

analisar a canção, dado sua especificidade ao abranger dois signos – o linguístico e

o musical –, é de grande valia apontar caminhos, com o propósito de depreender

mais satisfatoriamente esse gênero. Desta maneira, será explorada a contribuição

melódica para a construção de sentido lírico da letra a partir de leitura basilares dos

estudos de canção, como os de Luiz Tatit e Ivã Carlos Lopes, autores da obra Elos

de Melodia e Letra: Análise semiótica de seis canções (2008).

O primeiro capítulo desse trabalho discutirá a problemática entre poesia e

canção, especialmente suas diferenças, e quais rumos são possíveis para uma

análise de canção. No que tange ao segundo capítulo, a canção “O mar” será

analisada, levando em considerações aspectos literários e musicais, buscando

entender de que forma Caymmi constrói a figura do mar dentro de uma canção

cíclica, na qual se utiliza de contrastes para fundamentar sua visão sobre a figura do

mar, bem como de que forma o compositor concebe certos aspectos da gente

praiana. Por fim, no terceiro e último capítulo, a canção “Sargaço Mar” analisará a

importância de Iemanjá dentro da cultura brasileira e no contexto baiano onde

Caymmi escreveu suas canções praieiras, levando em conta, sobretudo, de que

forma essa divindade é desenhada dentro das canções praieiras e qual é sua

ligação com o mar.

11

2 POESIA X CANÇÃO

Sabe-se que, de acordo com a discussão proposta por David Treece em seu

trabalho intitulado “Melodia, texto e O Cancionista, de Luiz Tatit: novos rumos nos

estudos da música popular brasileira”, a música popular brasileira é uma das

maiores formas de expressão cultural do Brasil há, pelo menos, um século (2004, p.

332). Apesar disso, infelizmente são parcos os estudos que de fato consideram tanto

“[...] um tratamento equilibrado à diversidade de tradições do país quanto de levar

seriamente em conta seus conteúdos musicais” (TREECE, 2004, p. 332).

Durante o percurso acadêmico no último século, alguns estudos abarcando a

música popular foram tecidos, tendo como um de seus pioneiros, o pluridisciplinar

Mário de Andrade, com obras como Ensaios sobre a música brasileira (1928) e “O

samba rural paulista” (1937) (TREECE, 2004, p. 332). Treece sublinha, ainda, que,

após Mário, poucos foram os estudos concretos e sólidos sobre a música popular

brasileira, seguindo um caminho oposto ao da poesia, haja vista que há a

possiblidade de traçar um roteiro satisfatório no que diz respeito a esta última, como

“a pletora de Histórias da Literatura Brasileira, desde as de José Veríssimo e Sílvio

Romero até Antonio Cândido e Alfredo Bosi.” (2004, p. 332).

Há de se assinalar, para que não se negligencie, segundo Treece, algumas

publicações como “Brasil musical (1988), de Tarik de Souza et all. e The Billboard

Book of Brazilian Popular Music (1991), de McGowan e Pessanha, que são obras de

referência altamente úteis por conterem um valioso material descritivo.” (2004, p.

333). Todavia, para o autor, a maior parte do restante dos trabalhos envolvendo a

música popular brasileira pode ser dividida em três categorias: social e

antropológica, como é o caso de estudos de José Tinhorão, como em História social

da música popular brasileira (1990); jornalismo e biografia, como No tempo de Noel

Rosa (1977), de Almirante, e, por fim, histórico-cultural e de análise literária, com

estudos como os de Augusto de Campos em O Balanço da Bossa e Música popular

e moderna poesia brasileira (1986), de Affonso Romano de Sant'Anna.

Algumas das discussões de análise literárias que circundam a música popular

vêm sendo travadas dentro da academia, sendo a obra de Affonso Romano de

Sant'Anna uma das de maior destaque. Sobre o debate, Affonso Romano de

Sant'Anna (1986) se posiciona ao aliar poesia à música popular e ao apontar as

semelhanças na produção de cada uma dentro do período posterior ao Modernismo

12

até a década de 1980, estabelecendo “comparações entre períodos da história da

poesia do século XX e fases da música popular” (SANT'ANNA, 1986, p. 17).

Levando em conta sempre os aspectos linguísticos da música popular, a fim

de compará-los com os da poesia, Sant'Anna sublinha que apesar do interesse

inerente do Modernismo de 22 pelo folclore brasileiro, as atenções dos artistas da

época não se voltaram para a música popular (1986, p.179). Para o autor, “Isto se

deve, em parte, ao fato de que a própria música popular brasileira era ainda algo

mal-configurado, não tendo àquele tempo se convertido num produto econômico e

estético viável e visível.” (1986, p. 179).

Dessa maneira, Sant'Anna aponta que os estudos se direcionavam mais para

a produção erudita da música e, através de Mário de Andrade, o pouco que se foi

discutido cingia músicos como Ernesto Nazaré ou Chiquinha Gonzaga (1986, p.179).

Por consequência, a produção de Noel Rosa, de acordo com Sant'Anna, está

“desvinculada dos acontecimentos dentro da série literária” (1986, p. 179), mesmo

que, de certa maneira, características presentes nas canções de Noel, como o

humor e a paródia, possam ser colocadas ao lado de poemas-piada produzidos

principalmente de 1922 a 1930, fruto de um forte período de crítica à cultura

brasileira (1986, p. 179).

Ao pensar nas décadas de 1930 e 1940, atravessadas pelos “auspícios da

ditadura de Getúlio Vargas” (1986, p. 179), a paráfrase, presente no “ufanismo de Ari

Barroso” (1986, p. 179), pode ser equiparada ao ufanismo presente em poetas como

Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida. (1896, p.179). Ainda sobre esse período,

o autor assinala que:

Nessa linha de relações (crono)lógicas, pode-se observar uma<<coincidência>> entre a chamada Geração de 45, dentro da sérieliterária, e a voga de tangos, boleros, samba-canções e outrasformas melosas, líricas e sentimentais de pós-guerra (1986, p. 179)

Além disso, Sant'Anna aproxima, de igual forma, certa “redescoberta

ecológica da natureza urbana” (1986, p. 180) da Bossa Nova que a aproxima das

vanguardas, na série literária, iniciadas em 1956 (1986, p. 180). Sobre estas, há

também de se destacar a relação estabelecida com o Tropicalismo, que, além do

passeio pelas vanguardas, buscou “um elo com os modernistas de 22” (1986, p.

180).

Por conta de toda essa evolução, Sant'Anna afirma que houve uma notória

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transformação na música popular brasileira, que passa a ter suas letras levadas em

conta, além da musicalidade:

O que era apenas voz, tanto na música quanto na poesia, seconverte em grafia marcando o ponto máximo desses movimentos deequivalência e identidade. Por isso, críticos e professoresuniversitários começam a se interessar pela letra da canção popular,surgindo daí uma ensaística a ela dedicada que não é apenas o textojornalístico das crônicas de ontem ou das necessárias histórias damúsica popular (SANT'ANNA, 1986, p. 180).

Treece sublinha, no entanto, que as aproximações entre letra de canção e

poesia trata a canção popular “[...] como um sub-gênero da tradição liricopoética, ao

invés de considerá-la como uma prática artística de direito, que pede ferramentas

específicas e apropriadas para a sua análise” (2004, p. 335). Da mesma maneira, os

estudos de Lauro Meller (2015) convergem para esta discussão quando o autor

afirma que, apesar de louvável a presença da música popular dentro da academia,

“[...] muitas vezes os critérios de valor que permitem o trânsito desse corpus nos

estudos literários são equivocados” (p. 29). Reforçando esse ponto, nas palavras de

um dos maiores pesquisadores de música popular anglo-americana, Simon Frith,

tem-se que:

[…] na academia, estudar usos especiais ou elevados da linguagemcorresponde a estudar poesia, e desde os primórdios da história dorock o maior elogio que se poderia fazer – o modo como seriapossível levar letras de canção a sério – era tratá-las como poemas,como textos impressos (FRITH apud MELLER, 2015, p.29)

Para Meller (2015, p. 16), vê-se que dentro dos estudos literários, no

contexto acadêmico brasileiro, há certo interesse “[…] pelos compositores populares,

em especial dos anos 1970 para cá.”. Conquanto, ainda de acordo com o autor, é

possível observar que “A bipolaridade letra-e-música, que marca a canção, faz com

que ela não seja objeto específico nem das faculdades de Letras, nem das de

Música.” (2015, p. 16).

A partir dos estudos de Marta Ulhôa (apud MELLER, 2015), é possível

observar que um dos problemas para estudar a canção parte até mesmo da área

musical, em uma dificuldade em entender a diferença que existe entre o erudito e a

música popular. No que se refere a essa discussão, a autora destaca que:

Em geral, os parâmetros para avaliação estética, empregados emgrande parte da música popular de qualquer gênero, nem sempre,

14

correspondem aos mesmos parâmetros utilizados para a avaliaçãoda música de tradição erudita e europeia, objeto principal de estudode musicologia. Um complicador adicional no estado da músicapopular é que a canção, sua manifestação mais comum, é umgênero híbrido, empregando simultaneamente elementos delinguagens diferentes. Canção significa alturas ritmadas (melodia)uma fala articulada (letra), um timbre específico (voz), e texturaespeciais (acompanhamento). Na música erudita (refiro-me aqui àtradição clássico-romântica que foi matriz para a música popular) apeça musical é geralmente composta de uma estrutura melódico-harmônica que enfatiza o processo e o desenvolvimento deestruturas lineares e diretivas. A música popular (e a canção emparticular) favorece a redundância e a repetição de arquiestruturasformais, em grande parte de natureza circular. Temos aqui umproblema de pertinência de ferramentas analíticas. Se umdeterminado gênero privilegia timbre vocal, outro textura e volume, etodos enfatizam a letra de suas canções, não há como misturarcategorias. Do ponto de vista melódico-rítmico-harmônico da músicaerudita, a música popular sempre será 'simplificada', 'repetitiva','pouco elaborada' (ULHÔA apud MELLER, 2015, p. 28, grifos doautor).

Percebe-se, por conseguinte, as dificuldades de encontrar ferramentas

adequadas para analisar e criticar a música popular dentro do âmbito musical. No

que se refere ao domínio literário, é necessário sublinhar que embora compositores

como Gil e Caetano tenham sido analisados e criticados dentro dos estudos

literários, como mencionado anteriormente, por muitas vezes, discorreu-se apenas

sobre o conteúdo linguístico da canção, levando em consideração uma metodologia

de análise similar à de análise de poesia.

Embora em muitas canções haja, certamente, um teor poético, dois pontos

devem ser destacados: o primeiro diz respeito às esferas de circulação da canção e

da poesia literária. Meller observa que enquanto a canção “nasceu e se desenvolveu

como manifestação popular, a literatura é uma arte que pertence,

predominantemente, ao domínio do erudito.” (2015, p. 16). A partir disso, é possível

direcionar a discussão para o segundo ponto: uma vez que canção popular e poesia

literária são, necessariamente, distintas, devem ser “[...] julgadas a partir de critérios

diferenciados, e deve-se lançar mão de ferramentas de análise específica em sua

avaliação.” (MELLER, 2015, p. 28). O problema da de especificidade da canção se

dá, basicamente, porque:

A canção não se manifesta em toda sua plenitude senão com o seusuporte musical (ou só se sustenta com ele). As qualidades que sebusca numa obra literária – originalidade de tema e de tratamento,vários níveis de significação, palavras plurissignificativas etc. – não

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são, forçosamente, aquelas que a canção persegue (MELLER, 2015,p. 16).

Sendo assim, há um cuidado a ser tomado na hora de estudar o gênero

canção, visto que, nas palavras de Meller (2015), “A canção é um gênero híbrido,

letra e música, indissociáveis” (p. 17). Se considerado apenas seu conteúdo musical,

perde-se toda a riqueza linguística que, muitas vezes, foi composta juntamente com,

ou para, a parcela musical do gênero. Da mesma maneira, ao levar em

consideração apenas a letra, a unidade da canção será perdida, dado que os

elementos musicais são igualmente constituintes do gênero, contribuindo para a

forma com a qual o conteúdo linguístico será recebido e interpretado.

Meller afirma, ainda, que “não é raro encontrarmos canções excelentes cujas

letras não se sustentariam se lidas, justamente porque os elementos lítero-musicais

postos em contato trabalham cooperativamente.” (2015, p. 62). Ao pensar em

algumas canções da MPB, como “Só danço samba”, de um poeta renomado como

Vinícius de Moraes, lê-la apenas sem o acompanhamento musica, pode conduzir a

um juízo desfavorável da canção (2015, p. 62), como é possível observar a seguir:

Só danço sambaSó danço samba, vai, vai, vai, vai, vaiSó danço sambaSó danço samba, vaiSó danço sambaSó danço samba, vai, vai, vai, vai, vaiSó danço sambaSó danço samba, vai

Já dancei o twist até demaisMas não seiMe canseiDo calipso ao chá chá chá

Só danço sambaSó danço samba, vai, vai, vai, vai, vaiSó danço sambaSó danço samba, vai

Pensando pelo viés oposto, “uma letra excelentemente composta não

garantiria a eficácia da canção” (p.62), uma vez que os elementos musicais

poderiam causar uma tensão indesejada, tornando o que seria uma unidade, um par

que causa um efeito indesejado (p. 63). A exemplo, na canção “Chão de Estrelas

(1937) com a letra de Orestes Barbosa e música de Sílvio Caldas, composta por

decassílabos, fica evidente uma pretensa “alta” poesia em ritmo de música popular.

16

O rebuscamento de boa parte da letra de Orestes soa estranhamente, em alguns

casos, ao som da seresta de Sílvio. Ainda que seja um sucesso, dada a afirmação

de Manuel Bandeira, que elegeu “Tu pisava os astros, distraída” como o verso mais

bonito em língua portuguesa, não é a letra que dá a sustentação, mas sim a música

que a acompanha. Pode-se também levar em conta alguns elementos kitsch1 na

letras de Orestes, que dão a impressão de falsa concessão ao modo de expressão

das camadas populares. Ou seja, nas palavras de David Treece (2004), o que Tatit

aponta como sendo um dos pontos principais dentro da discussão, no que tange

tanto à letra quanto à musicalidade, diz respeito ao que caracteriza a arte do

compositor:

[...] em relação às canções individuais é a junção e a tensão entreseqüências melódicas e unidades lingüísticas no processoentoacional, o que faz da canção uma extensão da fala. A habilidadede um compositor consistiria, então, na manipulação dessas forçascontraditórias. (TREECE, 2004, p. 338).

Como pontuado anteriormente, para estudar academicamente canção, é

fundamental, em um primeiro momento, saber distinguir esta da poesia escrita.

Ademais, como são artes distintas, faz-se necessário que as ferramentas para a

análise sejam diferentes. A respeito disso, Meller pontuou precisamente a

especificidade da parte musical da canção:

Embora faça parte de uma concepção musical, a melodia de cançãojamais deixa de ser também um modo de dizer e, nesse sentido,identifica-se com a prosódia que acompanha nossa fala cotidiana.Além de cantar, o intérprete sempre diz alguma coisa, revela seussentimentos, suas impressões, ou, no mínimo, envia um recado aosouvintes (2015, p. 16).

Foi pensando nisso que alguns teóricos se propuseram a elaborar modelos de

análise, aqui explorados a partir dos estudos de Philip Tagg, ou conceitos

específicos da canção, como é o caso de Luiz Tatit com a “Semiótica da Canção”.

Neste trabalho, os modelos e conceitos serão abordados de forma mais sucinta,

sobretudo ao que diz respeito à Semiótica da Canção, devido ao espaço cedido para

discussões. Sendo assim, para que possa haver uma discussão que englobe os

principais temas das canções praieiras, uma análise mais profunda e complexa do

teor musical das canções deverá, por uma questão de espaço, dar lugar a

1 De acordo com o Dicionário Aulete Digital, “Diz-se de estilo, manifestação artística, objeto etc. considerado de mau gosto e de apelo popular.”.

17

tratamentos mais reduzidos, porém não menos significativos, respeitando a unidade

canção, que é formada pelo elo entre letra e música.

Dessa forma, neste trabalho, serão abordados três importantes conceitos da

teoria intitulada Semiótica da Canção, do professor brasileiro Luiz Tatit. Para que se

possa compreender a canção, Tatit, em seu livro escrito juntamente com Ivã Carlos

Lopes, Elos de Melodia & Letra: análise semiótica de seis canções (2008), propôs

modelos de integração de melodia com a letra. São estes: a) figurativização, b)

passionalização e c) tematização. Sobre o primeiro, Tatit afirma que é “Uma espécie

de integração 'natural' entre o que está sendo dito e o modo de dizer, algo bem

próximo de nossa prática cotidiano de emitir frases entoadas.” (LOPES; TATIT, 2008,

p. 17).

José Miguel Wisnik, que se dedica aos estudos que tangem música e

literatura, considera João Gilberto um bom exemplo de intérprete da palavra

cantada, ou frase entoada, por conta de seu canto muito similar à fala, turvando a

distinção entre fala e canto (MELLER, 2015, p.48), que Tatit nomeia como

enunciação entoativa (LOPES; TATIT, 2008, p. 17). Ainda sobre o primeiro modelo,

os autores pontuam que “ao invés de se ater à métrica, a melodia expõe sua

flexibilidade entoativa no que diz respeito à condução da letra. Ou seja, adapta-se a

ela – a seus acentos e recortes silábicos – e, desse modo, reproduz nossa liberdade

de modulação no âmbito da conversa diária” (LOPES; TATIT, 2008, p. 18).

No que tange à passionalização, de acordo com Lopes e Tatit (2008), esta

faria com que, melodicamente, a canção explorasse mais e se alargasse mais no

campo de tessitura – espécie de diagrama idealizado por Tatit para espacializar a

canção –, uma forma de mostrar como a letra da canção se comporta quando

observada musicalmente, como se pode observar a seguir:

18

Na ilustração acima, é possível notar como a letra da canção explora

“amplamente o campo da tessitura” (LOPES; TATIT, 2008, p. 21), não se limitando a

ficar concentrada em notas próximas entre si, mas, sim, passeando por notas mais

graves e agudas, desacelerando o andamento ou valorizando durações vocálicas

(LOPES; TATIT, 2008, p. 21). Essa passionalização serve, justamente, para

expressar um caráter emotivo, uma vez que “os intervalos distantes entre as notas

exigem um esforço maior de emissão que realça o estado emotivo do cantor”

(LOPES; TATIT, 2008, p. 22).

Já no que tange à tematização, vê-se que esta seria considerada o oposto da

passionalização. De acordo com os autores, se trata de “um desenvolvimento

melódico, sob o signo de conjunção, como se a melodia progredisse 'involuindo', ou

seja, obedecendo a uma força de concentração.” (LOPES; TATIT, 2008, p. 20).

Sendo assim, e ainda segundo os estudos supracitados, é como se, ao contrário da

passionalização e sua exploração da verticalidade no campo da tessitura, a

tematização seguisse para uma horizontalidade (2008, p. 20). Para Lopes e Tatit

(2008), a atuação desse modelo “em trechos localizados da obra tem o mesmo

papel do refrão no contexto global de uma composição. Ambos apontam para um

núcleo e evitam expansão sonora.” (LOPES; TATIT, 2008, p. 20, grifo do autor). Para

se pensar em um exemplo, toma-se como referência, novamente, a canção “O mar”,

de Caymmi:

Ilustração 1 – Exemplo de passionalização.

Fonte: ”O Sublime Mar de Caymmi" (2012), de João de Carvalho.

19

Como se pode notar, em uma mesma canção foi possível observar mais de

um modelo. A esta interação, os autores deram o nome de atuação recíproca dos

modelos, sublinhando a evidência de que “não há caso específico que se enquadre

em apenas um desses modelos.” (MELLER, 2015, p. 23). Sendo assim, segundo

Meller (2015), a dominância da passionalização, por exemplo, “pode, e deve, se

articular com outro modelo, como a tematização, de forma recessiva, até mesmo

contando com a figurativização, com presença residual.” (p. 23).

Esses três modelos já apresentados representam apenas uma parte da vasta

discussão teórica proposta pelos autores, sobretudo por Luiz Tatit. É importante, no

entanto, saber que há mais estudiosos que pensaram e escreveram sobre essa

questão. Como Meller (2015) detecta, no que se refere aos estudos da canção, é

“recente sua aparição no escopo de interesse das academias, os métodos de

análise especificamente voltados para esse objeto são ainda esparsos, e estão em

processo formativo” (2008, p. 17). Dessa forma, nesse trabalho, buscou-se

apresentar mais um modelo para que fosse discutido e, posteriormente, na análise,

fosse utilizado.

Phillip Tagg, engajado acadêmico nos estudos da música popular, traz outro

modelo a ser levado em consideração no que diz respeito à analise da canção.

Assim como outros estudiosos, concorda que a música popular não pode ser

analisada com as mesmas ferramentas de teoria e análise musical vigente até o

Ilustração 2 – Exemplo de tematização na canção “O mar”.

Fonte: “O Sublime mar de Caymmi” (2012), de João Carvalho.

20

século XIX, que, de acordo com o autor, é estudado em conservatório até o presente

momento (MELLER, 2015, p. 100). De acordo com Tagg, a música popular é gerada

para grandes massas e grandes grupos de ouvintes, por vezes havendo grupos

heterogêneos socioculturalmente que a consomem. Além disso, a música popular é

distribuída de uma forma não escrita. (TAGG apud MELLER, 2015, p.101). Sob essa

perspectiva, essa produção nova, do século XX e XXI, não cabe nos mesmos

moldes de análise dos séculos anteriores, uma vez que essa nova produção tem um

caráter comercial e identidade coletiva, por exemplo (MELLER 2015, p. 101)

Na tentativa de superar essa inadequação, no que diz respeito à análise da

música popular, Tagg propõe uma abordagem multidisciplinar, tendo como sugestão

uma conciliação de “um certo conhecimento formal de música, para conferir às

análises um certo rigor científico” e, ao mesmo tempo, “abraçar uma postura aberta,

que receba contribuições da semiótica, sociologia, etc.” (MELLER, 2015, p. 103).

Para tanto, Tagg elaborou o método hermenêutico-semiológico, uma espécie

de checklist, que aborda parâmetros de expressão musical que devem ser levados

em consideração por quem analisa. Tagg (apud MELLER, 2015, p. 103) aponta,

ainda, que esta lista de aspectos não precisa ser levada em conta de forma rigorosa,

nem para que cada item fosse usado à risca:

1.Aspectos de tempo: duração do OA (Objeto de Análise) e sua relaçãocom outras formas de comunicação; duração das seções do OA;pulso, andamento, metro, periodicidade, textura rítmica e motivos;

2.Aspectos melódicos: registro; tessitura; motivos rítmicos; vocabuláriotonal; contorno; timbre;

3.Aspectos de orquestração: tipo e número de vozes; instrumentos;partes; aspectos técnicos de performance; timbre; fraseado;acentuação;

4.Aspectos de tonalidade e textura: central tonal e tipo de tonalidade (sehouver); idioma harmônico; ritmo harmônico; tipo de mudançaharmônica; alteração de acordes; relação entre vozes, partes,instrumentos, textura composicional e método;

5.Aspectos dinâmicos: níveis de força sonora; acentuação; audibilidadedas partes;

6.Aspectos acústicos: características do local de apresentação; grau dereverberação; distância entre a fonte de som e o ouvinte; sonsexteriores e simultâneos;

7.Aspectos eletromusicais e mecânicos: panning, filtragem, compressor,phasing, distorção, delay, mixagem, etc.; muting, pizzicato, tongueflutter etc (TAGG apud MELLER, 2015, p. 103-104).

Para a realização da análise das canções neste trabalho, foram levados em

consideração elementos do aspecto do tempo, como andamento e metro, aspectos

21

melódicos como o timbre do cantor, e aspectos de dinâmicos, como a intensidade na

reprodução da canção. A escolha desses aspectos se deu de forma a respeitar o

espaço cedido para discussão, bem como por serem elementos bastante

destacados nas canções escolhidas, como será ilustrado nos capítulos três e quatro.

Os aspectos de Tagg e os conceitos de Tatit serão colocados em prática nas

análises subsequentes das canções “O mar” e “Sargaço Mar”.

22

3 O MAR

Dentre as estimadas vinte e uma canções praieiras de Dorival Caymmi, “O

mar” foi uma das que mais ganhou destaque dentro da crítica. Gravada pela primeira

vez em seu primeiro Long Play “Canções praieiras”, no ano de 1954, “O mar”

ganhou diferente arranjo na versão presente no disco “Caymmi e seu violão”, de

1959, sendo esta gravação a utilizada como objeto de análise deste trabalho.

“Caymmi e seu violão” foi lançado pela gravadora Odeon, assim como a

maior parte da obra de Caymmi, tendo como diretor artístico Aloysio de Oliveira, que,

de acordo com Luiz Américo Lisboa Junior, idealizava um trabalho mais simples, que

se utilizasse apenas da voz de Caymmi e um acompanhamento de seu violão

(LISBOA JUNIOR, 2017, s/p). De acordo com Luiz Tatit, no período que abrange a

primeira metade do século XX, a partir da década de 1930, “era consenso entre

produtores, artistas e público que o foco da canção se concentrava no desempenho

do intérprete vocal” (2008, p. 16). Nas palavras de Lisboa Junior, “Este é um disco

inigualável, definitivo, um diamante fino plenamente lapidado.” (2017, s/p).

Com aproximadamente 39 minutos, o LP de 1959 conta com doze canções

praieiras compostas por Dorival Caymmi e já gravadas anteriormente, com exceção

de “O bem do mar”, de acordo com Luiz Américo Lisboa Junior (2017, s/p). “O mar”,

sexta faixa do LP, além de ser uma exaltação ao mar, conta a história do pescador

Pedro, que morre em uma triste tragédia, e a moradora do arraial, Rosinha, que

enlouquece por conta da desventura do pescador:

O marQuando quebra na praiaÉ bonito... é bonito

O marPescador quando saiNunca sabe se voltaNem sabe se fica...

Quanta gente perdeuSeus maridos... seus filhosNas ondas do mar

O marQuando quebra na praiaÉ bonito... é bonito

23

Pedro vivia da pescaSaía no barco seis horas da tardeSó vinha na horado sol raiar...

Todos gostavam de PedroE mais do que todasRosinha de ChicaA mais bonitinhaE mais bem feitinhaDe todas as mocinha lá do arraiá

Pedro saiu no seu barcoSeis horas da tardePassou toda a noiteNão veio na horaDo sol raiá

Deram com o corpo de PedroJogado na praiaroído de peixeSem barco, sem nadaNum canto bem longelá do arraiá

Pobre Rosinha de ChicaQue era bonitaAgora parece que endoideceuVive na beira da praiaOlhando pras ondasAndando... rondandodizendo baixinho:– morreu... morreu...– morreu, oh... (CAYMMI, 1978, 41).

Em “O mar”, no primeiro refrão, vê-se que a imagem construída a partir da

escolha das palavras na letra da canção aponta para o laço entre o fascinante e a

simplicidade: “O mar/ quando quebra na praia/ é bonito”. É bonito e mais nada. Não

há que ser mais nada, uma vez que parece se bastar em sua totalidade. E repete: “é

bonito”. Francisco Bosco (2006) ressalta que apenas em Caymmi “bonito”, que

poderia ser considerado o adjetivo mais banal da Língua Portuguesa, assume um

poder inigualável. Tal efeito se dá uma vez que:

Nesse “bonito” coube todo um mundo: o mundo da pesca, dasmorenas, do mar, dos peixinhos e conchinhas, dos naufrágios, dasjovens viúvas, dos velhos marinheiros, a vida inteira do mar. Naverdade, o adjetivo nada empresta ao mar – é o mar que investe todasua grandeza no adjetivo, dando ao mero ‘bonito’ a sua beleza real(BOSCO, 2006, p. 59).

24

Dessa maneira, o compositor aparenta estar, se não em um estado

contemplativo, no estado da certeza da completude daquilo que aprecia. Pode-se

observar, nesse sentido, que mesmo com apenas um adjetivo, a figura do mar

começa a ser construída nesta canção.

Há de se destacar, neste momento, como afirma José Miguel Wisnik

(INSTITUTO TOMIE OHTAKE, 2017, 03min25s) que apesar de as canções praieiras

de Caymmi terem como um princípio poético de poucos substantivos, “O mar”, assim

como as demais canções, mesmo com uma certa economia de metáforas ou figuras

de linguagens outras, é de uma vasta riqueza de significação, fruto da relação entre

letra e música. De acordo com Artur Nestrovski (INSTITUTO TOMIE OHTAKE, 2017,

08min20s), nas letras de Caymmi o que se pode detectar “são simplesmente

substantivos nomeados, tornados riquíssimos de sentido pela combinação com a

melodia, a harmonia, uma entoação e a voz.”

Assim sendo, não se poderia falar de Dorival Caymmi sem mencionar a

exuberância e potência de seu timbre vocal. Segundo apontamentos de Tatit (2008),

“além de cantar, o intérprete sempre diz alguma coisa, revela seus sentimentos,

suas impressões, ou, no mínimo, envia um recado aos seus ouvintes.” (p.16).

Diferentemente da sutileza de cantores que interpretaram suas canções, não com

menores qualidades, como Caetano Veloso ou Chico Buarque, Caymmi, ao entoar o

primeiro verso de “O mar”,:

[...] se embebe da essência da própria coisa para representá-la, avoz que entoa a palavra “mar” adquire e reproduz característicaspróprias do objeto representado, recriando-o virtualmente através docanto (CARVALHO, 2012, p. 4).

Nos primeiros momentos em que canta “O mar”, o cantor aproxima a

pronúncia estendida de /o/ com a de /u/. Tal assonância /o-u/, além fazer referência

ao marulho ou ao vento no mar, quando integrada ao restante do verso, ao se ligar

com o quadro nasal de /m/ simboliza a ideia de meditação. Essa meditação, espécie

de atenção plena, diz respeito ao momento: não há passado, tampouco parece

existir o futuro; o que se faz é contemplar o que está aqui e agora, exatamente o que

o cantor faz ao entoar “o mar”. Além disso, quando Caymmi prolonga e suspende

por alguns segundos a vogal /a/ de “mar”, juntamente com a força do timbre do

cantor de Itapuã, pode-se ver reconhecida a intensidade, mas, sobretudo, a

25

grandiosidade do mar.

Considerando os estudos de Luiz Tatit sobre as estratégias de

convencimento, verifica-se a presença da passionalização, no que diz respeito “ao

cunho emocional da canção, caracterizado por uma tessitura ampla e pelo

alongamento das vogais, simulacro dos estados afetivos exacerbados” (MELLER,

2015, p. 99). Observa-se, por conseguinte, que a extensão das vogais, sobre tudo

em MAR, mas também importantes em QUEbra, PRAIa, boNIto, e É boNIto,

reforçam a ideia de admiração. É possível notar que letra e música se

complementam na construção de um quadro de apreciação da vastidão do mar.

Nesse primeiro refrão, composto pelos versos que qualificam o mar, Caymmi

canta e toca seu violão de maneira particularmente vagarosa, numa cadência

imperturbável. Tendo em conta os aspectos de tempo propostos no método

hermenêutico-semiológico de Phillip Tagg (MELLER, 2015, p. 103), é de grande

importância destacar que o que prevalece na primeira parte da canção, que se

repetirá ao final desta, é um tempo, como observou João de Carvalho (2012, p. 06),

não-métrico. Portanto, é justamente a partir da cadência que o compositor baiano vai

estampar em sua canção, não só sua percepção da figura do mar, como também

sua forma:

Ainda na primeira parte da canção haverá uma alteração em relação ao seu

Ilustração 3 – Tempo não-métrico e prolongamento dasvogais.

Fonte: ”O Sublime Mar de Caymmi" (2012), de João de Carvalho.

26

tom. Na primeira vez que canta “o mar”, o cantor inicia na nota si; já nos versos que

introduzem a vida do pescador “o mar/pescador quando sai/ nunca sabe se volta/

nem sabe se fica”, Caymmi iniciará na nota dó. Quando, ao fechar essa primeira

parte, os quatro primeiros versos são enunciados mais uma vez, a canção volta para

si novamente. Esse movimento de aumento de meio tom e retorno ao tom inicial

além de ilustrar um movimento de ascendência e recuo, que já havia aparecido nos

versos que qualificam o mar, desenhando o formato da onda, ainda reforça o que

será a estrutura da canção: o movimento circular.

Essa construção do cíclico começa a se fazer mais clara na variação presente

na segunda estrofe. Se na primeira parte da canção havia um tempo não-métrico, ou

seja, sem um compasso instrumental específico, não definido, a segunda parte da

canção assumirá uma dinâmica distinta. Tal dinâmica vem corroborar o conteúdo

presente na letra do segundo momento: agora há uma narrativa contando a história

do protagonista de “O mar”, o pescador Pedro.

Ao contar a história de Pedro e sua vida no arraial, a divisão das tônicas nos

versos é fortemente marcada (empregou-se o negrito para tal destaque), como se

pode observar a seguir:

Pedro vivia da pescaSaia no barco seis horas da tardeSó vinha na horado sol raiar...

Todos gostavam de PedroE mais do que todosRosinha de ChicaA mais bonitinhaE mais bem feitinhaDe todas as mocinha lá do arraiá (CAYMMI, 1978, p. 41).

Vê-se, dessa forma, que a maneira com a qual o compositor marca as tônicas

auxilia no processo de construção de uma atmosfera cotidiana dos pescadores, uma

vez que o tempo agora é compassado, delineando uma atmosfera onde não há

interrupções. Na segunda parte da canção, o andamento será sempre idêntico, não

haverá mudança ou variações, possível representação da rotina da gente praiana e,

sobretudo, do dia a dia dos jangadeiros. Além disso, como se pôde observar na

ilustração 2 (presente no capítulo anterior, p.18), esse trecho da canção é marcado

pela tematização, que horizontaliza a canção, forçando-a a permanecer em um

27

mesmo núcleo, reforçando, assim, a ideia de cotidiano e rotina dos pescadores.

Ao pintar os costumes de Pedro, Caymmi apresenta, de certa forma, os

hábitos laborais de toda a comunidade de pescadores. Pedro representa aqueles

que vivem da pesca e têm a obrigação de deixar suas famílias durante horas e horas

para trazer o pescado. Na labuta diária, os jangadeiros vivem certo conflito que pode

ser sintetizado pelos grupos triádicos insegurança-barco-mar e segurança-arraial-

terra, tendo como crença a vontade de Iemanjá como força que decidirá os destinos

dos pescadores, se perecerão no mar ou se voltarão a terra.

A figura religiosa, assim como seu peso dentro da cultura dos jangadeiros e

das canções praieiras de Caymmi, será abordada e discutida no capítulo seguinte.

Porém, é de grande importância adiantar o fato de que o destino dos pescadores,

dentro das canções praieiras, é desenhado, por muitas vezes, a partir da vontade

de Iemanjá, o que deixa àqueles que ficam à espera, um sabor amargo de angústia

e incerteza em relação aos que se lançam ao mar.

Essa inquietação, elemento fundante dentro desta cultura e que cerca as

famílias dos jangadeiros, é representada em outras canções, como na quarta parte

de “História de Pescadores”, presente no LP “Caymmi e o mar” (1957), intitulada

“Cantiga de noiva”, na qual, em terceira pessoa (“a gente”), tem-se o suplício

daqueles que esperam a volta dos jangadeiros:

É tão triste ver partirAlguém que a gente querCom tanto amorE suportar a agoniaDe esperar voltarViver olhando o céu e o marA incerteza a torturar.A gente fica só.Tão só...É triste esperar... (CAYMMI, 1978, p. 29)

“Cantiga da noiva” acaba por expor, de forma mais aberta, o sentimento

daqueles que esperam, sentimento que poderá ser abrandado caso os jangadeiros

voltem para suas casas, como na situação exposta na primeira e na última estrofe

de “História de Pescadores”, intituladas “Canção de Partida” e “Na Manhã Seguinte”,

ambas compondo o refrão da canção:

Minha jangada vai sair pro marVou trabalhar, meu bem-querer.Se Deus quiser quando eu voltar do mar

28

Um peixe bom eu vou trazerMeus companheiros também vão voltarE a Deus do céu vamos agradecer (CAYMMI, 1978, p. 23)

Esse trecho aponta para os rituais dos pescadores assim que voltam para

suas casas: o agradecimento, a felicidade de ter seus companheiros em terra.

Igualmente, mostra a necessidade de trazer o pescado para o sustento da família e

da comunidade. De forma geral, o excerto acima apresenta sobretudo a felicidade

de estar em terra firme novamente. Contudo, o medo e a angústia poderão ser

confirmados e agravados se, por infelicidade do destino ou, porventura, vontade de

Iemanjá, os jangadeiros não retornarem com vida. No que tange à canção “O mar”, a

angústia é representada na personagem de Rosinha, que será desenvolvida mais

adiante.

Na história de Pedro, dentro da narrativa que conta a rotina dos pescadores, o

cantor informa que o protagonista, que costumeiramente “Saía no barco seis horas

da tarde/ só vinha na hora/ Do sol raiá” (CAYMMI, 1978, p. 41), no dia de seu

infortúnio, igual ao que transcorria sempre, “ (…) saiu no seu barco/ Seis horas da

tarde”, todavia a inserção da advérbio “não” diante do verbo “vir” instaura a desgraça

do pescador: “não veio na hora do sol raiá” (CAYMMI, 1978, p. 41).

Neste momento, vale ressaltar a forma como a morte de Pedro foi descrita:

uma grande tragédia, de maneira dolorida e lúgubre na qual não se retomam

memórias sobre Pedro; a única coisa que restou foi seu cadáver:

Deram com o corpo de PedroJogado na praiaroído de peixesem barco, sem nadanum canto bem longelá do arraiá (CAYMMI, 1978, p. 41).

A cena é pavorosa. O corpo do pescador aparece na praia sem nada do que

lhe acompanhava em vida. O barco, característica que faz parte da identidade de um

jangadeiro, desapareceu no mar. Já não é mais propriamente Pedro o corpo

encontrado na praia. É um cadáver desfigurado, semidevorado pelos peixes. É

importante sublinhar que este trecho está contido na parte da canção na qual o

tempo da canção é o métrico – de compasso bem marcado – e a narrativa que conta

a história de Pedro está contida em um ritmo imutável.

Retomando o conceito de tematização, Tatit e Lopes apontam para o fato de

29

que “o campo de tessitura que normalmente proporciona à melodia suas opções de

expansão, mostrar-se restrito e apropriado para evoluções 'horizontais', sem muita

exploração de novas trajetórias.” (2008, p. 20). Essa marcação de ritmo constante,

fixa, com não variação na expansão vertical, contrária à passionalização, pode

representar o cotidiano e a rotina da gente praiana, evocando, possivelmente, a

ideia de que a tragédia, contida na narrativa que conta a história de Pedro, também

é um dos elementos que compõe o dia a dia dos pescadores.

É dentro da tragédia que se encontra a angústia daqueles que vivem com os

pescadores. A figura de Rosinha merece grande destaque dentro da narrativa

compassada, dado que, como mencionado anteriormente, aquela que gostava de

Pedro, mais do que todos, simboliza todo o sofrimento nesta narrativa:

Pobre Rosinha de ChicaQue era bonitaAgora parece que endoideceuOlhando pras ondasandando.. rondandodizendo baixinho:– morreu... morreu...– morreu, oh... (CAYMMI, 1978, p. 41, grifo meu).

Já de início, é possível observar um forte contraste entre a representação de

Rosinha antes e após a morte de Pedro. Primeiramente foi descrita, dentro da

narrativa, sempre rodeada de atributos no diminutivo: “bonitinha”, “bem feitinha”,

“mocinha”; nem mesmo seu nome, Rosinha, desviou-se da doçura e fragilidade

depositados nos diminutivos que enfeitavam a personagem.

Após encontrarem Pedro na beira da praia, a imagem de Rosinha, “que era

bonita”, foi desfigurada pelo espanto e tristeza ao viver a tragédia da perda de seu

pretendente, afinal, “parece que endoideceu”. O que sobrou da mocinha bem

feitinha, tão vívida, jovem, foi um ser malancólico e apático que lamenta a morte de

Pedro.

Não é possível perceber em Rosinha um estado de espírito dinâmico, mas

sim de alguém que caminha a esmo, tendo como único destino a beira da praia onde

apenas fica a rondar. As rimas de agora em diante já não constroem uma

personagem vivaz, mas sim uma figura que parece transitar entre a melancolia e a

apatia. Rosinha, que perdeu a razão, passa a ter suas ações representadas pelo

gerúndio. Esta forma nominal do verbo, na esfera da canção, ironicamente, parece

indicar ações em progresso, no entanto aponta, na realidade, para o progressivo

30

enlouquecimento de Rosinha.

Além disso, a partir de “ondas” até o último verbo no gerúndio, “dizendo”, há a

ocorrência do som nasal de /n/, juntamente com o som fechado de /o/, indicando

para uma grande introspecção de Rosinha, que, agora considerada doida, parece

estar presa dentro de sua cabeça. A moça repete para si, possivelmente tentando

aceitar a tragédia ao mesmo tempo que lamenta a morte de Pedro: “morreu...

morreu...”, soltando um último suspiro em sua lamúria: “oh”.

Esse estado no qual Rosinha se encontra é ainda mais intensificado quando

se analisa a parte musical em conjunto. Vê-se, na ilustração de número 4, o volume

na entoação da letra diminuído nos momentos de execução dos verbos no gerúndio,

por conta da sinalização em diminuendo, novamente sinalizando uma introspecção.

Ademais, o tempo da narrativa, que antes tinha mais dinamicidade, agora vai

perdendo seu compasso marcado, tornando-se extremamente arrastado, lento,

reforçando a ideia de lamento em relação à personagem, como é possível observar

na ilustração construída por João de Carvalho (2012):

Ilustração 4 – Diminuendo.

Fonte: ”O Sublime Mar de Caymmi" (2012), de João de Carvalho.

31

Constata-se, na ilustração 5, que o início de uma quebra no tempo métrico se

dá com o uso da fermata, símbolo logo acima da palavra “onda”, que indica que a

nota que está sendo tocada deve ser sustentada por alguns instantes. A partir disso,

conforme ilustrado na quarta ilustração, o tempo, antes métrico, volta a ser não

métrico. Pode-se entender essa variação musical, pelo menos, de duas formas: a

primeira diz respeito, como havia sido salientado anteriormente, a um reforço para o

estado melancólico no qual se encontra Rosinha. A desaceleração do tempo,

entendida na ilustração 4 como rallentando, faz o ouvinte sentir o peso da dor da

personagem se arrastando, juntamente com ela. Além disso, de acordo com os

estudos de João de Carvalho, é de grande valia salientar que:

É justamente na palavra “ondas”, e as ondas são a materialização dopróprio movimento força do mar, que os parâmetros musicaisrelacionados ao tempo retornam ao estabelecido na primeira seçãoda obra (2012, p. 17).

É curioso perceber, igualmente, como é interessante a escolha da

desaceleração do tempo ser justamente na palavra “onda”. De acordo com Chevalier

e Gheerbrant (2009):

[...] como nas chamas ou nas nuvens, o mergulho nas ondas indicauma ruptura com a vida habitual: mudança radical nas ideias, nasatitudes, no comportamento, na existência. Simbolismo que cumpreaproximar do simbolismo do batismo, com suas duas fases: imersãoe ressurgência (p. 658, grifo dos autores).

Foi o mar que tirou Pedro de Rosinha e mudou completamente sua postura

em relação ao mundo, imergindo-a em um estado de espírito lúgubre, oposto ao que

irradiava anteriormente na narrativa. Outrossim, é justamente após cantar “onda”

Ilustração 5 – Fermata.

Fonte: ”O Sublime Mar de Caymmi" (2012), de João deCarvalho.

32

que se dão os passos iniciais para o retorno a uma “ressurgência” de um tempo

desacelerado, que será, durante meio segundo descontinuado, logo após o último

suspiro de Rosinha. Findada a segunda parte e a rápida suspensão da música, a

canção retorna à primeira parte fechando seu ciclo.

Em “O mar” são nítidos os pares opostos durante toda a canção: tem-se um

certo antagonismo presente entre a terra e o mar, a harmonia e a tragédia, a alegria

e a tristeza em Rosinha, a vida e a morte e o tempo métrico e o tempo não métrico.

Para os estudiosos Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 592) o mar representa um:

Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retornar a ele;lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos.Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre aspossibilidades ainda informes as realidades configuradas, umasituação de ambivalência, que é a de incerteza, da dúvida, daindecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar éao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte.

Dentro desta perspectiva, é visível a ambivalência presente na simbologia do

mar e de contrastes recorrentes nesta canção de Caymmi. Porém, para o

compositor baiano há algo de diferente; há a ideia de cíclico e não só de opostos. A

canção se fez em um movimento circular, transitando entre pares contrastantes,

terminando, porém, exatamente onde começou.

Essa dinâmica cíclica presente na canção pode ser interpretada como uma

referência à herança cultural africana na Bahia, tendo em mente a influência do

candomblé e/ou da umbanda, trazendo figuras religiosas que são representadas nas

canções praieiras de Caymmi, como ficará mais claro no capítulo seguinte. Essa

cultura compreende a passagem do tempo diferentemente da cultura ocidental

cristã, como explicita Reginaldo Prandi (2001, s/p):

Para os ocidentais, o tempo é uma variável contínua, uma dimensãoque tem realidade própria, independente dos fatos, de tal modo quesão os fatos que se justapõem à escala do tempo. É o tempo daprecisão, que objetiva o cálculo, que viabiliza a projeção efundamenta a racionalidade – tempo da ciência histórica e damodernidade.

Já o tempo concebido dentro do candomblé é compreendido como cíclico. De

acordo com Prandi (2001, s.p.), “o passado, imediato, está intimamente ligado ao

presente, do qual é parte, enquanto o futuro nada mais é que a continuação daquilo

que já começou a acontecer no presente ”. O autor ainda assinala que o futuro não

33

existe, uma vez que é apenas um retorno do passado para o presente. O futuro,

entendido dentro do ponto de vista do candomblé, não está dissociado da realidade

imediata, é apenas a repetição do que já aconteceu, como estações do ano, o

envelhecer das coisas ou fatos da natureza (PRANDI, 2001, s/p).

Ainda sobre as crenças africanas, há de se destacar sua relação para com o

mar. Em algumas culturas africanas, como a da Angola, Tiago Aires (s/a) aponta que

o mar “ […] está associado, quase exclusivamente, a elementos disfóricos como a

colonização e a escravatura, ou seja, a elementos que se apresentam alheios”

(p. 01). É possível visualizar essa associação na construção do poema “Soneto ao

Mar Africano”, do escritor e poeta angolano, Geraldo Bessa Victor:

Ó grande Mar, que banhas estas plagasafricanas, em ti ouço recadosdum mundo a outro mundo, nos teus bradosde prantos, risos, orações e pragas!

Na dramática voz das tuas vagas,escuto os que, nos séculos passados,choraram nesse canto dos teus fados,cantaram nesse choro em que te alagas…

Na tua voz eu ouço o Branco bravo,que semeou Portugal nestes recantosafricanos, e ainda o Negro escravo

- ao mesmo tempo indómito e servil –que regou com seu sangue e com seus prantosa semente fecunda do Brasil! (apud AIRES, s/a p. 02)

Neste soneto, observa-se a dor dos africanos que ainda são considerados

“Negro escravo” desde a chegada do “Branco bravo”, vindos de um mar não lírico,

nem mítico, mas sim de dramáticas vagas que entoam prantos e pragas. Dessa

forma, e ainda de acordo com Aires, é visto que o mar, para a cultura angolana, era

“[...] uma representação do meio que permitiu a criação do sistema colonial, da

presença do outro que veio de longe e subjugou os autóctones à sua religião,

cultura, língua e vontades” (s/a, p. 01).

Vê-se que em Caymmi essa visão de mar como sinônimo de escravatura,

sofrimento, correntes, não foi herdada. Dentro de “O mar”, é possível perceber o

movimento circular costurando a canção, direcionando a atenção e admiração do

ouvinte ao esplendor do mar, apesar das inúmeras infelicidades e tragédias que

desenharam a narrativa de Pedro e Rosinha. Prevalece no término da narrativa

34

presente na canção de Caymmi a grandeza do mar perante o cotidiano dos

pescadores, a magnitude da natureza, por vezes incompreensível, como foi para

Rosinha, triunfando sobre as desventuras dos jangadeiros. Tal perspectiva está

presente nas palavras do próprio cantor e compositor baiano:

Em ‘O Mar’, tentei dar a sensação de como se renova diariamente atragédia dos homens e mulheres dos cais da Bahia. A história dePedro e Rosinha, o pescador e sua noiva, está contida no motivomaior da beleza do mar (CAYMMI, 1978, p. 10)

O Mar de Caymmi não carrega a tristeza e a tirania colonial, como para uma

cultura dentro do contexto africano; também não tem peso moral, como assinalou

Francisco Bosco. Está distante de construções como as de o mar de Mobby Dick

(1851), “(…) uma metáfora para obsessão” (BOSCO, 2006, p. 58), ou o mar de

Baudelaire em “Le Voyage” – em As Flores do Mal (1857) – que traz um peso

metafórico, relacionado ao desejo e ao infinito e (2006, p. 58), igualmente distante

do mar de Jorge Amado em Mar Morto (1986), “palco de um conflito social” (2006,

p.58). Não edifica em si uma percepção espessa, nas palavras de Bosco (2006),

mas sim a imagem de um mar “onde moram os peixes, onde o sol bate e brilha,

onde as ondas quebram, onde se ganha e perde a vida. O mar é o mar é o mar.”

(2006, p. 58).

As personagens estão contidas em “O mar”, os pescadores, a vida no mar, a

gente praiana, a tragédia e a felicidade, tudo isso pertence ao movimento circular da

canção. José Miguel Wisnik aponta para o fato de que, nesse contexto, “o drama se

dissolve em uma espécie de sabedoria” (INSTITUTO TOMIE OHTAKE, 2017,

34min10s), no motivo maior, o da beleza do mar, que sublinhou Caymmi.

35

4 SARGAÇO MAR

Para que se possa melhor compreender “Sargaço Mar”, lançada no LP

“Caymmi, Som, Imagem, Magia” (1985), é necessário que se entenda os contextos

de crenças religiosas e culturais nos quais a canção está inserida. Desta forma,

antes de apontar e analisar elementos linguísticos e musicais que compõem a

canção, faz-se de grande relevância entender como se dá a representação de

Iemanjá no Brasil e como ela se originou, em território africano, haja vista a

importância do papel desta divindade dentro das canções praieiras, sobretudo em

“Sargaço Mar”.

Iemanjá, conhecida como a Rainha ou Deusa do mar na cultura brasileira, é,

de acordo com Armando Vallado (2011, p. 25), originalmente na África, a “divindade

das águas doces, ninfa do rio Ogum.”. Seu nome, Yemoja (Yeye Omo Eja), Mãe-dos-

Filhos-Peixes nomeia aquela que rege a pesca (VALLADO, 2011, p. 25). Sabe-se

que seu culto foi, inicialmente, dentro da comunidade do povo ebá (ègba), que se

encontrava assentado entre as cidades de Ifé e Ibadan (VALLADO, 2011, p.15),

ambas localizadas na Nigéria. Ainda segundo Vallado:

Até o século XIX, com a expansão dos ebás e disseminação de suacultura em consequência de guerras entre as várias etnias iorubás, oculto de Iemanjá foi levado para Abeocutá e demais povoações aolongo do rio Ogum, sendo Iemanjá então a ele associada. Com otempo, passou a ser cultuada em quase todo o território iorubáno(2011, p. 25).

De acordo com a mitologia, Iemanjá foi criada por Olodumaré – dentro da

cultura iorubá, deus supremo – e surgiu, justamente, do mar. Ajudou Olodumaré na

criação dos demais orixás e, posteriormente, a Terra (VALLADO, 2011, p. 27).

Dentro da mitologia, ainda, Olodumaré, “que habitava em meio as brumas e

movimentos gasosos” (VALLADO, 2011, p. 27), por se sentir solitário, resolve criar

não só Iemanjá, representando a Água, mas também Aganju, a Terra, com o auxílio

de Iemanjá (VALLADO, 2011, p. 27).

Diz-se que em um momento que Olodumaré se distancia de suas criações,

Iemanjá e seu irmão Aganju têm uma relação incestuosa, e o fruto desta é Orugã,

deus dos ares (VALLADO, 2011, p. 27). Orugã se apaixona por sua mãe, e, quando

Aganju não está, tenta violentá-la. Na tentativa de evitar o abuso de seu filho,

Iemanjá foge, e, durante sua fuga, cai ao chão (VALLADO, 2011, p. 27). Daí que

36

Iemanjá tornou-se símbolo definitivo das águas: em sua queda: “(…) o corpo de

Iemanjá começou a crescer, tomando proporções descomunais. Dos seus enormes

seios surgiram os rios e o mar” (VALLADO, 2011, p. 27).

O corpo de Iemanjá também rendeu outros frutos. Se de seus seios surgiram

as águas, de seu ventre vieram os demais orixás, divindades da cultura iorubana:

Ogum, divindade do ferro e da guerra, associados aos minerais, porextensão, atualmente, aos progressos tecnológicos; Xangô,divindade do trovão e do fogo, patrono das causas em que se clamapor justiça; Oiá, divindade do rio Niger, associada aos ventos etempestades, senhora dos mortos (egúngún); Obá, divindade do rioObá, ligada ao patrono familiar e à fidelidade conjugal; Oxóssi,divindade da caça (…); Oxum, divindade do rio do mesmo nome,senhora da beleza e dos encantos mágicos (VALLADO, 2011, p. 27-28, grifo do autor).

Além dos orixás supracitados, Iemanjá teve ainda outros filhos, cada um

representando algum elemento da natureza, como Oque (orixá dos montes), Orum

(do Sol) e Oxu (da Lua), Orixá Ocô, como divindade da agricultura e Exu, seu último

filho, representando o movimento e comunicação (VALLADO, 2011, p. 28).

Por conta desses acontecimentos e da história presente na mitologia é que

Iemanjá está associada “aos rios e suas desembocaduras, à fertilidade das

mulheres, à maternidade e principalmente ao processo de criação do mundo e da

continuidade da vida” (VALLADO, 2011, p.25).

É, no entanto, imprescindível apontar para o fato de que, apesar de haver,

sim, a herança africana ao expandir o mito para as terras brasileiras, por conta dos

escravos trazidos para o Brasil, muito se modificou na representação de Iemanjá. É

inegável o sincretismo presente, fruto da interação das culturas africanas,

portuguesas e indígenas. Como pontuou Vallado (2011):

Os orixás que na África estavam associados a um acidentegeográfico, especialmente os rios, perderam no Brasil tal associaçãoe tiveram o culto generalizado. Iemanjá perdeu o rio Ogum e ganhouo mar. Oxum perdeu o rio Oxum e ganhou as águas doces (…). Anova geografia reorganizou o panteão; a nova cultura rearranjou ospatronatos (p. 33).

No que diz respeito à inserção das crenças iorubanas no Brasil, deve-se

atentar para a mudança das funções de Iemanjá: na África, a divindade em questão

governava “a fertilidade e a maternidade” (VALLADO, 2011, p. 33). Já no Brasil,

assume a posição de “grande mãe, perdendo suas características de mulher

37

guerreira e de amante ardorosa, provavelmente em função de sua associação com

Nossa Senhora, a mãe virgem e casta” (VALLADO, 2011, p. 33).

Por conta disso, é possível observar uma mudança sofrida nos traços físicos

das imagens de Iemanjá no Brasil. Vê-se que estátuas localizadas em Praia Grande

(SP), Vitória (ES), São Luís (MA) ou Brasília (DF) representam a divindade a partir

de traços europeus. Como seria possível que uma divindade africana possuísse a

pele branca e o cabelo liso? A associação com Nossa Senhora acabou por fazer

com que a representação física de Iemanjá também passasse pelo processo de

embranquecimento, passando a ter, dessa forma, traços europeus.

Consequentemente, apesar da grande perda de identidade, no que se refere,

sobretudo, à representação iconográfica, as lendas africanas da grande mãe ainda

passeiam pelas rodas de conversa das tradições de umbanda. Cabe aqui uma breve

diferenciação entre o candomblé e umbanda, religiões nas quais Iemanjá é cultuada.

No que diz respeito à umbanda, de acordo com Reginaldo Prandi (2004, s/p), é

entendida como uma religião afro-brasileira, fruto da síntese que juntou “[...] o

catolicismo branco, a tradição dos orixás da vertente negra, e símbolos, espíritos e

rituais de referência indígena”, sendo a tradição dos orixás entedinda aqui como o

candomblé, que, ainda nas palavras de Prandi (2004, s/p), configura-se como uma

“religião brasileira dos orixás e outras divindades africanas que se constituiu na

Bahia no século XIX”.

De acordo com o angolano de 94 anos, professor Agenor Miranda Rocha,

considerado a mais antiga autoridade viva do candomblé (VALLADO, 2011, p. 218),

uma das lendas iorubanas que se fortaleceram em terras brasileiras é em relação às

mortes dos pescadores: diz-se que quando o pescador morre no mar, significa que

este era filho da divindade, e a Rainha do Mar o queria como oferenda (VALLADO,

2011, p. 222).

Ainda de acordo com a mesma lenda, Iemanjá “carrega os homens para o

fundo do mar, para habitarem com ela seu palácio esplendoroso. Algumas vezes ela

devolve seus corpos, outras vezes fica com ele em seu palácio.” (VALLADO, 2011,

p. 222). Vê-se que, apesar das mudanças por conta do sincretismo envolvendo a

divindade originalmente africana, nem tudo se perdeu; uma considerável parte se

manteve e também se transformou.

Entendida a origem e a importância da figura de Iemanjá, tanto dentro do

contexo das culturas africanas, como em sua parcial ressignificação no Brasil, onde

38

foram produzidas as canções praieiras, passar-se-á à contextualização e à analise

da canção “Sargaço Mar”.

De acordo com Paulo da Costa e Silva (2013, 07min15s), em 1976, com 62

anos, em uma temporada de show ao lado de Gal Costa, Dorival apresenta

“Sargaço Mar” pela primeira vez ao público, vinte anos depois do início das

composições de suas canções praieiras. Para Costa e Silva (2013, 07min35s) “[...] o

baiano não tinha pressa. Produzia com parcimônia e esmero, deixava que o tempo

agisse lentamente, decantando, polindo, lapidando suas canções, até que se

tornassem verdadeiras pérolas.”.

A canção demorou, de fato, para surgir na pauta musical do compositor

baiano, entretanto, no momento em que foi revelada ao público, causou enorme

impacto. Caetano Veloso, que assistiu desde sua primeira execução, ficou

desmantelado com a beleza e o misticismo da canção (COSTA E SILVA, 2013,

07min22s). Em função disso, passou a frequentar todas as apresentações da

temporada, por admirar o talento de Caymmi, certamente, mas, sobretudo, para

poder ouvir mais uma vez, a canção enigmática, “Sargaço Mar”:

Quando se forEsse fim de som,Doida canção,Que não fui eu que fiz;Verde luz, verde corDe arrebentação,Sargaço mar, sargaço arDeusa do amor, deusa do mar,Vou me atirar, beber o mar,Alucinado, desesperar,Querer morrer, para vivercom Yemanjá;

Yemanjá, odoiáYemanjá, odoiáYemanjá, odoiá (CAYMMI, 1978, p. 61)

Há um movimento na sonoridade das palavras de “Sargaço mar” que segue,

durante a canção, de fechado para aberto nas vogais, que contribui de forma

significativa para a construção de sentido. Essa estrutura será tratada, neste

trabalho, por partes, pensando que, num primeiro momento, a canção contém uma

maior incidência de vogais fechadas, ao passo que em seu segundo momento, há a

transição desta sonoridade, e o terceiro e último momento, a canção, em seu

comportamento vocálico, apresenta-se de forma mais aberta. Nesse sentido, a

39

análise fonética da canção não se construirá sozinha, visto que é necessário

considerar aspectos verbais e musicais, igualmente.

No que se refere à construção da atmosfera inicial, esta aponta para um

recolhimento do protagonista, dado que nos primeiros quatro versos há uma maior

incidência de vogais com sonoridade fechada: “Quando se for/ Esse fim de som/

Doida canção/ Que não fui eu que fiz” (CAYMMI, 1978, p.61). Vê-se uma constante

repetição do som de /o/ em quase todos os versos supracitados. Tal fonema por si

só já sugere a ideia de algo fechado, por conta do formato do conduto bucal que

possibilita a reprodução de sons cheios e/ou graves. Porém, este fonema vogal está

quase sempre acompanhado de um som nasal, como em “quando” /kwãdo/, “som”

/sõ/, “canção” /kãsɐɐ:ʊ/ e “não” /nɐɐ:ʊ/.

Esse som, proveniente da vogal arredondada, somado à ressonância nasal,

pode sugerir um aspecto introspectivo e carregado já nos primeiros dois versos da

canção. A atmosfera inicial, já densa, de certa forma, ganha um toque ainda mais

dramático no que tange à musicalidade da canção e como as palavras são cantadas

por Caymmi. Ao cantar “fim” e “som”, Dorival as entoa de forma mais estridente,

sobretudo em “fim”, produzindo intensificação da ressonância nasal.

O primeiro momento, no que se refere à fração linguística, que desenha na

canção um caráter de recolhimento, meditação, pode estar representando o estado

do protagonista na canção: o pescador, em seu barco, posto para pescar em um

“sargaço mar”, ouve a doida canção durante à noite – haja vista que, dentro da

tradição dos jangadeiros da Bahia, como visto na canção “o Mar”, os pescadores

saíam no final da tarde e só voltavam pela manhã – e se encontra em um estado

que não é nem do sono, nem da total atenção de quando se está acordado.

Todavia, é necessário, de igual forma, atentar para a parcela musical da

canção. Esta, que auxilia a construir a atmosfera parcialmente onírica, diz respeito à

intensidade com a qual Caymmi reproduz os versos iniciais, se comparado com a

segunda parte, a partir do vocábulo “arrebentação”. O movimento dos versos dentro

do campo de tessitura e também com o tempo da canção diferem de um parte para

outra, como será exposto no decorrer do trabalho.

No que tange à intensidade, observa-se que nos versos iniciais, com exceção

de “fim de som” (ilustração 6), Caymmi canta com um pouco menos de

expressividade, mais baixo, quase que só para si. No que diz respeito ao movimento

dos versos, é possível notar que passeiam entre notas mais graves e agudas, num

40

movimento de vaivém, fazendo uma provável referência à movimentação das ondas,

em um deslocamento de ascensão e retorno para onde se estava:

Vale destacar a ascensão das notas nos dois primeiros versos e queda nos

terceiro e quartos verso. Essa movimentação das palavras passeando no campo de

tessitura entre notas mais altas e mais baixas, indicam a figura que seria a

compositora da canção que o protagonista menciona. Sabe-se que não é dele, visto

que ele mesmo afirma “não fui eu que fiz”. Apesar de não mencionar em nenhum

verso quem entoa o canto que o pescador ouve, na reprodução de “/que não fui eu

que fiz/” as sílabas vão se distanciando; o início do verso será reproduzido em sol

(G) e se direcionará, aos poucos, para notas mais graves, como pode ser

visualizado na figura acima. Seguindo o mesmo padrão, os versos que cantam

Iemanjá sucedem da mesma forma, sendo cantados em Mi bemol (Eb), Ré (D) e Si

(B), principalmente, como nos versos sobre a canção:

Ilustração 6 – Ascenção e retorno.

Fonte: a própria autora.

41

Tal semelhança já poderia indicar, timidamente, que a doida canção que o

protagonista da canção ouve foi criada e interpretada por Iemanjá. Porém, como

aponta Armando Valllado (2011) a figura de Iemanjá está ligada “[...] à figura de

Rainha do Mar.” (p. 36), desempenhando um papel notável na vida dos pescadores.

Essa característica da Rainha do Mar, de acordo com Vallado (2011), “[...]

desenvolve-se associando Iemanjá à figura de sereia (…) também associada a

diferentes mães d'água da mitologia indígena, sendo, por isso mesmo, chamada de

Iara, a Mãe D'Água.” (p. 36-37). Dessa forma, apesar do caráter maternal, não é

difícil associar Iemanjá à figura de uma sereia que, muitas vezes, canta para

encantar e seduzir. Como sublinhou Vallado (2011):

Iemanjá desempenha duplo papel. De um lado ela é a mãe quepropicia a pesca abundante – que controla o movimento das águas,ondas e marés – da qual depende a vida do pescador. De outro ladoela é a sereia sedutora, sexy, que atrai o pescador, o ama, o mata ouo deixa morrer nas profundezas do mar para onde o leva e onde oprende para amá-lo. (p. 36-37)

Nos próprios versos de Caymmi, na canção praieira “Rainha do Mar”, o

compositor menciona o canto de Iemanjá: “Minha sereia, rainha do mar/ O canto

dela faz admirar” (CAYMMI, 1978, p. 39), pontuando, ainda, uma face sereia e

sedutora da deusa do mar.

Ilustração 7 – Exemplo de semelhançaentre notas.

Fonte: a própria autora.

42

Dessa forma, sendo a Rainha do Mar essa figura grandiosa, não poderia ser

representada, na canção de Caymmi, de forma outra se não a de um ser imponente.

Se nos momentos iniciais de “Sargaço mar” os versos foram predominantemente

marcados por vogais fechadas, /o/ e /u/, e uma ressonância nasal bastante evidente,

os versos seguintes farão uma transição bastante simbólica que, posteriormente,

seguirá para um canto mais aberto para representar Iemanjá.

A passagem, identificada anteriormente como momento de transição, que

guiará a canção para o terceiro e último momento, traz em si um símbolo, que na

canção permanece tímido, não dito, presente apenas em imagem e fortemente

ligado à figura da Rainha do Mar. Pode-se ver uma possível alusão à lua em dois

planos: no primeiro, dentro da construção poética e linguística da canção, quando

Caymmi canta os versos “verde luz, verde cor/ de arrebentação” (CAYMMI, 1978,

p.61). E em um segundo momento, ao observar como se comportam os versos no

campo de tessitura, desta vez pensando no plano musical da canção.

No que diz respeito ao plano poético/linguístico, ao mesclar a luz, proveniente

da lua, refletida nas águas do mar, tem-se “verde luz, verde cor”. Sabe-se que a cor

verde está associada, na obra de Caymmi, não só ao mar, como nos versos de “É

doce morrer no mar”, quando o protagonista afirma que “É doce morrer no mar/ Nas

ondas verdes do mar” (CAYMMI, 1978, p. 19). A cor verde está também relacionada

à própria deusa do mar: em um de seus comentários em Cancioneiro da Bahia

(1978), o compositor pontua que Iemanjá é “ (…) linda como nenhuma outra deusa

ou mulher, de longos cabelos verdes” (CAYMMI, 1978, p. 38). Observa-se, dessa

forma, que é com essa associação da cor verde com a luz, que possivelmente está

refletida nas ondas verdes do mar, que se esconde a figura da lua e um provável

vínculo com a figura de Iemanjá.

Conforme os estudos de Vallado (2011), de acordo com a mitologia Iemanjá,

“[...] surgiu do mar pela ação de Olodumaré, o deus supremo (…). Nos mitos da

criação do universo vamos sempre encontrar a presença feminina e a masculina,

Iemanjá representando o feminino.” (p. 27). Não é sem motivos que se associa a

figura da lua à da Rainha do Mar, visto que aquela simboliza “a dependência e o

princípio feminino (salvo exceção), assim como periodicidade e renovação”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 561).

Dentro da cultura na qual a Iemanjá está inserida, cabe a esta controlar as

forças do mar. No que se refere à física, o satélite natural da Terra exerce grande

43

influência na dinâmica das marés, como se pode observar nos comentários abaixo:

A gravidade da lua não é suficientemente forte para levantar aságuas na vertical. Em vez disso, o que acontece é que, à medida quea lua circunda a Terra, alguma da sua força gravitacional atrai aságuas dos oceanos, fazendo com que se movam para a frente e seacumulem debaixo da Lua. A força não é muito forte, mas é suficientepara que a água se desloque (INSTITUTO CAMÕES, 2006, p. 02-03)

Ademais, além da conceituação científica, é importante destacar, neste

trabalho, como a lua está profundamente ligada à água – ambiente de onde veio

Iemanjá e o lugar onde essa deusa habita – em um vasto campo simbólico, como

se observa no Dicionário de Símbolos (2009), apontando, dessa maneira, como as

figuras da Lua e de Iemanjá estão intimamente ligadas dentro dessa canção:

Astro que cresce, descresce, e desaparece, cuja vida depende da leiuniversal, do vir-a-ser, do nascimento, e da morte (…). Este eternoretorno às suas formas iniciais, esta periodicidade sem fim fazemcom que a lua seja por excelência o astro dos ritmos da vida... Elacontrola todos os planos cósmicos regidos pelo vir-a-ser cíclico:águas, chuvas, vegetação, fertilidade...” (p.561)

No que se refere ao plano musical dos versos “verde cor, verde luz/de

arrebentação”, o movimento que se dá no campo de tessitura aponta para um salto

intervalar bastante grande: no início do verso o cantor estava em Dó (C) a ao cantar

“arrebentação”, terminando em Ré (D), o cantor subiu abruptamente mais de uma

oitava – intervalo de 7 notas:

Além disso, adotando o aspecto dinâmico de Phiip Tagg (MELLER, 2015), o

qual dá conta da acentuação, ou intensidade, é de grande importância destacar o

Ilustração 8 – sforzando.

Fonte: a própria autora.

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elemento sforzando, que dentro da dinâmica musical é responsável por indicar a

intensidade sonora, apontando um aumento repentino na intensidade de uma nota

apenas. Isso ocorre quando Caymmi entoa a última sílaba de “arrebentação”, na

nota Ré (D). É importante ressaltar que a escolha da palavra é de grande relevância

para a construção de sentido: arrebentação é justamente a mudança no

comportamento das ondas do mar, quando deixa de ser uma mar calmo para se

tornar uma mair mais agitado, bravo. É após “arrebentação” que o comportamento

vocálico da canção se abre e o pescador se lança ao mar.

Nesse campo de tessitura no qual se espacializa os versos de transição,

pode-se, no mínimo, pensar em duas possíveis interpretações, que acabam por

estabelecer um diálogo entre si. Em um primeiro momento, a verticalização dos

versos no campo da tessitura pode reforçar a ideia de que é mesmo da própria lua

que se fala, visto que a “verde luz de arrebentação” está ascendendo, subindo para

a nota, portanto, ponto mais alta da canção inteira, se representada espacialmente.

Dessa forma, figura-se, justamente, a posição da lua tanto no mar – verde luz –

quanto no céu, por conta de sua posição no campo da tessitura. Em um segundo

momento, é possível considerar que a ascensão brusca presente nos versos

supracitados, de acordo com Luiz Tatit (2008), “infunde à trajetória melódica certo

apressamento condizente com a ansiedade passional de um sujeito.” (p. 30). Como

mencionado anteriormente, é em “arrebentação” que a canção atinge a nota mais

aguda, que jogará a segunda parte desta para um registro mais aberto (COSTA E

SILVA, 2013, 11min21s), momento no qual o pescador se lança para os braços de

Iemanjá.

A forma com a qual se estabelece o diálogo entre essas duas leituras se dá,

basicamente, por meio da simbologia que circunda a figura da lua e sua relação com

o pescador, nesta canção. No Dicionário de Símbolos (2009), consta, dentre tantos

significados que cingem a imagem da lua, que esta “(…) é também o símbolo do

sonho e do inconsciente, bem como dos valores noturnos” (p. 565). Dessa forma,

quando se relaciona a figura da lua, já associada anteriormente a de Iemanjá, com o

símbolo do sonho e do inconsciente, é possível conceber a ideia de que, ao se

lançar ao mar, o pescador não teme morrer, mas, ao contrário, vê em si um desejo

de vivenciar essa passagem da vida terrena (ou terrestre) para a vida no mar, com

Iemanjá, configurando, desta maneira, a ansiedade passional da qual Tatit sublinhou.

Além disso, sobre o grande salto intervalar de “cor” até a última sílaba de

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“arrebentação”, Tatit afirma que “os intervalos distantes entre as notas exigem um

esforço maior de emissão que realça o estado emotivo do cantor” (2008, p. 22),

revelando, dessa maneira, como os versos analisados estão intimamente ligados

com a emoção e o desejo do pescador.

Como visto no capítulo anterior, a canção “O Mar” é capaz de representar o

sofrimento daqueles que esperam os jangadeiros e a tristeza e melancolia ao

receber a notícia de uma fatalidade. Visto isso, sabe-se da expectativa e da fé dos

familiares e amigos que esperam os pescadores retornarem com a pesca, mas,

sobretudo, com vida, às suas casas. No entanto, para os jangadeiros, há um anseio

de também estar com a Rainha do Mar. Esse desejo, mencionado no parágrafo

anterior, faz com que os pescadores não temam morrer. Isso, de igual forma, já está

visível na canção praieira de Caymmi “É doce morrer no mar”, lançada

primeiramente no LP “Caymmi e o Mar” (1957):

Saveiro partiu de noite, foiMadrugada, não voltouO marinheiro bonitoSereia do Mar levou...É doce morrer no mar,Nas ondas verdes do mar,Nas ondas verdes do mar, meu bemEle foi se afogar,Fez sua cama de noivoNo colo de Yemanjá (CAYMMI, 1978, p. 19).

Observa-se, nesta canção, que o objetivo – a união entre Iemanjá e o

pescador – é uma via de mão dupla: da mesma forma que é a sereia quem leva o

marinheiro, sendo aquela a agente, é também o marinheiro quem busca se afogar e

que prepara sua cama de noivo com Iemanjá. Durante o dia, enquanto estão em

terra, os pescadores amam suas mulheres, contudo também buscam Iemanjá, como

na canção “Bem do Mar”, gravada em 1954 no LP “Canções Praieiras”, na qual

Caymmi escreveu “O pescador tem dois amor/ um bem na terra/ um bem no mar”

(CAYMMI, 1978, p. 35). É exatamente esse desejo, talvez mórbido, essa procura

pela deusa do mar, que se encontra na canção “Sargaço Mar”. É o pescador o

agente da ação, uma vez que o pescador afirma “Vou me atirar, beber o mar/

Alucinado, desesperar/ querer morrer para viver/ com Yemanjá;” (CAYMMI, 1978, p.

31).

Esse caráter onírico, que aflora o inconsciente, quando o pescador

46

possivelmente ao fitar a imagem da lua no mar acaba por nele se atirar, assemelha-

se ao poema de Alphonsus de Guimaraens “Ismália” (1923), cujo eu lírico sente o

mesmo impulso do protagonista de “Sargaço Mar” de se lançar ao mar. Da mesma

forma, tanto o protagonista de “Sargaço mar” quanto o do poema estão a fitar o

reflexo da lua na água, e os dois acabam por dar fim em suas vidas, como é

possível observar em um recorte de “Ismália”:

Quando Ismália enlouqueceu,Pôs-se na torre a sonhar...Viu uma lua no céu,Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,Banhou-se toda em luar...Queria subir ao céu,Queria descer ao mar...

(…) E como um anjo pendeuAs asas para voar…Queria a lua do céu,Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deuRuflaram de par em par…Sua alma subiu ao céu,Seu corpo desceu ao mar… (O'HARA, 2014, p. 01-02)

É de grande importância sublinhar que “Ismália” se insere em um contexto de

produção simbolista. No que tange a Alphonsus de Guimaraens, fica evidente que

por tratar, entre tantas questões, da morte e do tédio, apresenta em seus poemas,

de acordo com Larissa O'Hara “um tom desconsolador, sombrio, melancólico e

lúgubre” (O'HARA, 2014, p.03). A aproximação feita neste trabalho entre “Ismália” e

“Sargaço Mar” se dá por conta da figura da lua e os significados que a circundam, e

também, em menor parcela, da simbologia presente na noite e na água.

No que diz respeito à lua, em “Ismália”, pode-se afirmar que “a própria luz da

lua simboliza não apenas o seu próprio reflexo, mas o lado claro e o lado obscuro

dos seres humanos” (O'HARA', 2014, p. 08), remetendo ao acesso ao inconsciente,

aos desejos profundos que o ser humano sente. Ainda sobre o inconsciente, há de

se apontar para a contribuição da água na construção de sentido. De acordo com

O'Hara, “A água, outrossim, é costumeiramente vista como símbolo do inconsciente

– já que remete à profundidade dos rios e mares, por exemplo, onde nem tudo é

conhecido” (O'HARA', 2014, p. 08). O ambiente que permite toda essa simbologia

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relacionada aos desejos, tanto de Ismália quanto do pescador de Caymmi, diz

respeito à noite. O onírico também está presente no poema simbolista “pelo sentido

denotativo de sonho (acontecimento noturno ou imaginação do que se deseja).”

(O'HARA, 2014, p. 11). O jangadeiro saiu, como manda a tradição, durante à noite

para pescar e foi durante à noite, assim como no poema de Alphonsus de

Guimaraens, ao fitar o reflexo da lua no mar, ouvindo a doida canção que não foi ele

que fez, que tomou sua decisão.

Terminado o verso de transição (Verde cor, verde luz/ De arrebentação),

entra-se no movimento final da canção. Direciona-se, como citado no início deste

capítulo, para o momento em que a canção se mostra mais aberta, a partir de

“sargaço mar, sargaço ar”, diferentemente do primeiro momento, no qual estava

mais voltada para o interior do pescador.

No início desse novo registro, Caymmi adjetiva, a plenos pulmões, o mar e o

ar, como sargaços. Esse adjetivo, de acordo com sua definição, pode trazer

informações pontuais:

SARGAÇO, s.m. (bot) alga marinha da família das fucáceas (…), queanda travada sobre as águas formando grandes matas em algunsmares ou costas. (…) || (Beira) Erva de montes, de flor branca e porvezes amarela: inóspitas serras em que apenas conseguiam medraro tojo e o sargaço. || (Bot.) || Mar de sargaço, parte do oceanoAtlântico entre o arquipélago de Cabo Verde, as Canárias e a terrafirme da África (AULETE, 1970, p.415).

A partir da elucidação oferecida, percebe-se que “sargaço” encerra em si um

peso de empecilho, por ser uma alga que “anda travada”. Além disso, devido à sua

forma, vê-se que suas folhas, de cor marrom, reforçam a imagem de algo

possivelmente de aspecto pantanoso.

Quando Caymmi entoa “sargaço mar, sargaço ar/ vou me atirar/ beber o mar/

alucinado desesperar”, a planta que qualifica o mar que o pescador navega como

sargaço parece, de fato, lembrar um mar pantanoso, uma vez que pode prender,

sufocar, podendo conotar um sentido de perigo, dado que o pescador vai, alucinado,

desesperar. O sargaço nesta canção pode ser visto como a representação do

momento da morte do corpo físico do pescador. Ao saltar do barco, afoga-se no mar

de sargaços, alucina, desespera, morre. A passagem do pescador nessas águas de

sargaço que o envolvem é turbulenta, agitada, assim como é o mar. Todavia,

curiosa é a forma com a qual o cantor guia os versos musicalmente. De acordo com

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Costa e Silva (2013, 14min03s):

(…) a melodia, serena e resoluta, tira dos versos o excesso de peso,e os transforma na expressão melancólica do desejo de retorno aolugar de origem. Morrer é voltar a viver nos braços de Iemanjá,Odoiá.

Isto posto, a morte para o protagonista de “Sargaço Mar” não é um fim e não

é algo para se evitar, em se tratando de um encontro com Iemanjá. É, pelo contrário,

uma passagem que se almeja, que se deseja, como já previsto nos versos que

tratavam sobre a lua. Pode-se entender, ainda, que as vogais mais abertas se dão,

justamente, por conta dessa visão que o pescador tem da morte: não como um fim,

mas como um ciclo. Como o oposto da primeira parte da canção, em que esta se

dava de forma mais fechada. É possível apreender essa mudança como uma

abertura do sujeito em relação ao seu exterior, a entrega do pescador para o mar,

para Iemanjá.

Pensando, ainda, na parte musical, há de se destacar que a passionalização,

já mencionada anteriormente, que confere à canção um aspecto mais emotivo

devido ao alongamento das vogais, está presente no final das vogais abertas, como

em SARgaço, AR, MAR, atirAR, desesperAR, atribuindo, dessa maneira, um caráter

passional à canção. Essa passionalização, no entanto, não se faz dominante.

Quando o cantor repete a canção, pela segunda vez, ao cantar os versos que

confessa que se atirará, faz de um modo mais calmo, aproximando-se muito da fala.

Retomando um conceito proposto por Tatit e Lopes (2008), essa enunciação

enotoativa, largamente usada por João Gilberto, é entendida como figurativização,

“uma espécie de integração 'natural' entre o que está sendo dito e o modo de dizer,

algo bem próximo da nossa prática cotidiana de emitir frases entoadas” (p. 17). A

combinação de passionalização com figurativização, ou seja, a fala emotiva do

cantor, além de uma melodia serena, remete a uma confissão, aos momentos finais

do pescador, à felicidade de, finalmente, encontrar-se com Iemanjá.

Faz-se de grande valia um olhar mais atento à forma dos versos dentro do

campo da tessitura da parte final da canção (ilustração 9). Por conta de seus

movimentos de ascensão e retorno, em mais uma canção de Caymmi, assim como

em “O mar”, há a sugestão de formas de ondas. É nas ondas que o pescador se

afoga, delira, alucina:

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Da mesma forma que, musicalmente, também é representado o momento em

que o pescador se lança ao mar, também será representado (ilustração 10) o

momento no qual ele imergirá para finalmente mergulhar em direção à Iemanjá:

Vê-se que à medida que o pescador afunda em direção à deusa do mar,

musicalmente os versos também afundam, como se pode conferir no campo de

tessitura acima. No ponto de vista do pescador, conquanto, afundar em direção à

sua morte é algo paradoxal, dado que, de acordo com a canção, ele morrerá para

Ilustração 9 – Ascenção e retorno.

Fonte: a própria autora.

Ilustração 10 – Movimento do versos.

Fonte: a própria autora.

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viver, viver com Iemanjá.

Nas palavras de Vallado (2011), “as águas representam as origens e a

humanidade termina onde se originou, na água. Esse retorno às origens mostra

novamente o movimento cíclico do mito, da memória e da poesia e do candomblé.”

(p.30). Observa-se, sendo assim, que, mais uma vez, o tempo cíclico, típico do

candomblé, cultura na qual está inserida Iemanjá nessa discussão, aparece em

Caymmi. No capítulo anterior, a canção “O mar” revelou a tragédia e beleza contidas

na grandeza do mar, o motivo maior da vida dos pescadores, de acordo com

Caymmi. A canção iniciava reverenciando a beleza do mar, narrava a história de

Pedro e sua tragédia, para fechar seu ciclo novamente no mar. Em “Sargaço Mar”, a

cultura dos pescadores nasceu do mar, para viver deste e retornar a ele.

Ademais, o mar em “Sargaço Mar” é representado musicalmente de forma a

corroborar com o sentido construido linguisticamente: a canção se inicia com uma

intensidade mais discreta do que a terceira parte, retratando a atmosfera na qual o

pescador se encontra, de introspeção. Revela, em partes, símbolos, como a lua, por

meio de sua posição no campo da tessitura, e desejos escondidos, a partir da

utilização da passionalização, para desembocar, enfim, na entrega do pescador,

quando a canção afunda junto deste.

Por fim, vê-se na canção “Sargaço Mar”, que seu sentido é edificado a partir

da imagem mítica de Iemanjá: a força que a Deusa do Mar exerce sobre os

pescadores, o desejo destes de viver sob as águas com a Rainha do mar, a

simbologia que circunda a divindade e a lua, suas relações com o mar, tanto por ser

o meio onde habita a divindade quanto por representar o espaço de introspecção do

protagonista, que ouve a doida canção e se entrega para Iemanjá.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se pôde observar durante o desenvolvimento desta pesquisa, as

discussões que perpassam a poesia e a canção levam a caminho distintos:

enquanto a análise da primeira se preocupa apenas em abarcar uma análise literária

e linguística, a canção necessita de um tratamento que considere o liame entre a

letra e a música, respeitando a unidade da canção. Para tanto, são necessários

ferramentas e procedimentos específicos para analisar e compreender tanto seu

texto linguístico quanto o texto musical. Nesta pesquisa, houve a preocupação em

específico quanto à unidade canção, haja vista que “[...] como é habitual na obra de

Caymmi, letra e música respondem-se com perfeição.” (COSTA E SILVA, 2013,

01min34s).

Na canção “O mar”, foi possível verificar uma configuração cíclica da canção,

iniciando com uma reverência ao mar, passando para uma narrativa que, a partir do

protagonista, descreve a tragédia do pescador e as angústias da gente praiana,

desembocando, por fim, novamente no mar, encerrando em si toda a sua

grandiosidade. Contatou-se, de igual forma, que a representação desse mar,

musicalmente, deu-se em um movimento circular, talhando letra e música em uma

mesma forma, mostrando que essa canção funciona como uma exaltação ao mar,

ao motivo maior contido neste, ao triunfo de sua grandiosidade sobre as desventuras

dos pescadores, o sublime sobre a infelicidade, a imponência sobre a melancolia.

No que se refere à canção “Sargaço Mar”, Iemanjá, divindade profundamente

relacionada às águas desde sua origem, no continente africano, está intimamente

ligada com a cultura praiana dos pescadores, orientando-a, de certa forma de

acordo com as crenças construídas em torno de sua imagem, como sua guarda

sobre o destino dos pescadores. Esta proteção vem de seu nome, mãe dos filhos

peixes, mas, igualmente, de seu desejo que, por muitas vezes, sendo recíproco

entre os pescadores, atrai-os e os guarda no mar. Vê-se que além do elemento

mítico presente a partir da image de Rainha do Mar, a canção, novamente, trata

musicalmente, não da mesma forma que “O mar”, do movimento cíclico, no qual a

cultura dos pescadores das canções praieiras nasce do mar, vive em função deste, e

muitos de seus pescadores, morrem para viver eternamente no mar.

O mar de Caymmi, portanto, é místico, majestoso e sonante: é possível ver a

canção afundar junto com os pescadores, movimentar-se junto das ondas, acalmar-

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se nos silêncios. É espaço e condição para a existência e manifestação de Iemanjá.

O mar, em resumo, é o espaço onde não há início, meio e fim, mas sim um

movimento circular, sem princípio e nem remate; o mar sempre existiu e as formas

de suas manifestações são “emanações diretas da natureza, como se existissem

desde sempre no mundo” (COSTA E SILVA, 2013, 05min10s).

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REFERÊNCIAS

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