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O Maravilhoso Normal - Henri Michaux

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Page 1: O Maravilhoso Normal - Henri Michaux

O MARAVILHOSO NORMAL 1

A. DESORIENTAÇÕES

Eu queria desvelar o “normal”, o desconhecido, o insuspeitado, o inacreditável, o

imenso normal. O anormal me fez conhecê-lo. O que acontece, o prodigioso número de operações

realizadas pelo mais comum dos homens, na hora de maior descontração, sem disso suspeitar,

sem prestar nenhuma atenção a isso, trabalho de rotina do qual só o rendimento lhe interessa e

não seus maravilhosos mecanismos, muito mais maravilhosos do que suas ideias, que ele valoriza

tanto e são na maioria das vezes tão medíocres, comuns, indignas do aparelho fora de série que

as descobre e maneja. Queria desvelar os mecanismos complexos que fazem do homem, antes de

tudo, um operador.

Um dia enquanto assistia no escuro do cinema a um filme anglo-saxão, depois de ter

fumado haxixe, uma falta desconhecida, estranha, desagradável, intolerável cresceu imediatamente

em mim: faltava-me saber, apesar de todo o esforço feito por mim, em que cidade do mundo podia

eu estar. Enfim saí, tendo esta falta persistente excedido meu prazer e minha paciência. Fora era

apenas Paris, nada mais que Paris margem esquerda. Entraria novamente na sala? Hesitava.

Renunciava. Afrontar outra vez aquele escuro sem referências não me convinha. Eu reconhecera,

sem dúvida, a situação. Parte da situação. Por instantes, a situação; mas eu ia, inapreensivelmente,

irregularmente, perdendo-a novamente, de dez, de cem outras maneiras. O que acontecia? Estava

desorientado. O que dizer? Desorientado desordenadamente por desorientações múltiplas,

incessantes, diferentes, imprevisíveis; desconcertado incessantemente por interrupções de

orientação. Era necessário reconhecer isso: desde meu nascimento eu passara a maior parte do

tempo orientando-me.

Compulsoriamente vigilante, acossado sem tréguas pelas luzes, pelos choques, pelos apelos

que sinalizavam, advertiam, alertavam de todos os lados, eu era obrigado, como todo homem desde

sempre fora, a determinar o lugar onde me encontrava, determiná-lo, redeterminá-lo muitas vezes

por segundo, navio no meio do estranho, do estrangeiro, forçado a estas operações indispensáveis,

para me manter em estado de conhecimento da situação indefinidamente cambiante.

1 Este texto constitui a primeira parte do livro Les grandes épreuves de l’esprit, de Henri Michaux, Paris: Gallimard, 1966. Tradução Luiz Izidoro. 1986-2010.

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Eis de que se ocupa capital e prioritariamente a inteligência, não de leituras, estudos,

exames. Eu não me lembrava dessas coisas. O adormecido, o sonhador que sou, fora simultânea e

prodigiosamente alerta, rápido, sem saber disso. Lento, preguiçoso, eu não fora menos diligente e

minucioso, detalhista e explorador. Todo mundo é assim.2 Como isso é possível?

O espírito é feito de tal maneira que é impossível para ele apreender a si próprio,

compreender direta e continuamente seu mecanismo e sua ação, tendo outra coisa a apreender,

assim como é importante que o estômago não seja digerido por si mesmo.

Fora necessário o desordenamento enganador por uma droga, graças a que “isto” cessara,

para que, enfim, já em idade avançada, eu me apercebesse verdadeira e experimentalmente de uma

função importantíssima, quase onipresente, e de sua incessante ação, que acabava de ser

interrompida. Esse abismo de inconsciência cotidiano descoberto repentinamente, tão surpreendente

que eu jamais o poderia esquecer, advertia-me de procurar tal função em outro lugar, também

onipresente, de modo que se poderia dizer que o pensamento é inconsciente. Ele o é sem dúvida em

99%. Um centésimo de consciência deve bastar.

O pensamento é por excelência micro-fenômeno, suas múltiplas apreensões e

microoperações silenciosas de desarticulações, de alinhamentos, de paralelismos, de deslocamentos,

de substituições escapam e devem escapar (antes de atingir um macro-pensamento, um pensamento

panorâmico). Só excepcionalmente elas podem apresentar-se, ao microscópio de uma atenção

enlouquecida, quando o espírito monstruosamente superexcitado, por exemplo, sob o efeito da

mescalina em alta dose, seu campo modificado, vê seus pensamentos aparecendo e desaparecendo

como partículas em velocidades prodigiosas. Ele apreende então seu “apreender”, estado

inteiramente extraordinário, espetáculo único, chance para refletir de que o drogado, entretanto, tira

pouco proveito, absorvido que está por outras maravilhas e por gostos novos, por jogos do espírito

de que era incapaz anteriormente.

Contudo, tal revelação singular não faz parte daquelas que possam convencer de imediato

aqueles a quem as relatamos, apesar e talvez por causa de sua excessiva evidência aparente que pode

parecer suspeita. Às vezes, o próprio ex-visionário, uma vez de volta à norma, depois desta

consciência tão viva “disto”, de que retém apenas o absolutamente imperceptível, não sabe mais o

que pensar a tal respeito.

Felizmente, tal manifestação reveladora não é a única. De muitas outras maneiras, de

inúmeras maneiras, a droga trai, descobre, desmascara operações mentais, introduzindo consciência

2 Todo animal também, ainda que em um grau de integração menor.

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onde não havia nenhuma e, paralelamente, retirando-a de onde sempre houvera uma; estranho jogo

de gavetas em que parece ser necessário que umas se fechem para que outras se abram. Já que os

funcionamentos múltiplos, que se furtam no estado normal, são então detectáveis, eu parto aqui à

sua procura – careta. É preciso reencontrá-los, modificados sem dúvida, mas não completamente,

utilização de um mesmo instrumento que não pode ser de todo diferente.

Conscientes ou não, as microinvestigações, os micro-manejamentos, as microetapas, tecido

próprio do espírito, devem estar aí. Para mim é um dever reuni-los. Jamais, jamais direi

suficientemente o lado modesto, instrumental do espírito, seu trabalho de operário, tendo conhecido-

o prestes a cair em pânico, abandonando-me por zonas que eu vigiava nem bem nem mal por

intermédio de outras zonas ainda despertas, e abandonando-me ainda de uma outra maneira, quando

ativo ele disparava maravilhosamente, mas perigosamente.

Que podia eu fazer antes (quando estava normal), que já não podia fazer depois (no estado

anormal) e podia fazer de novo, voltando a ser normal, que assim pude fazer alternadamente,

dezenas e dezenas de vezes, deixei de poder fazer ou tive facilidade, em seguida extrema dificuldade

para fazer, eis o exame a que me proponho, imperfeito decerto, mas indispensável.

Fora de minha própria experiência me ajudarão, apoios e constantes pontos de comparação,

aqueles que conheceram o espírito em seu estado lamentável, aqueles que, de modo geral, tiveram

com ele graves dificuldades – dificuldades que devem ser compreendidas.

Como o corpo (seus órgãos e suas funções) foi conhecido e desvelado não pelas proezas

dos fortes, mas sobretudo pelas quedas dos fracos, dos doentes, dos enfermos, dos feridos (a saúde é

silenciosa e fonte da impressão, imensamente errônea, de que tudo é evidente); as perturbações, os

disfuncionamentos do espírito é que serão meus mestres. Não o excelentíssimo “saber-pensar” dos

metafísicos, mas sim as demências, os retardamentos, os delírios, os êxtases e as agonias, o “já não

saber-pensar” é que são chamados a “descobrir-nos” verdadeiramente.

B. VOLTAR A SI,

QUE É ISSO?

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Entre outras coisas, o que advém ao sujeito, quando passa e desaparece o efeito da

mescalina, do ácido lisérgico ou de alguma outra substância-choque do mesmo tipo que tenha

sido absorvida por ele.

Ele retorna ao pensamento. O pensamento “retorna” nele. Ainda há pouco, algumas vezes

prolongadamente, presente no nada, nada além de nada, tábula rasa (não a do filósofo, sempre

plena virtualmente e nada tendo de terrível, onde simplesmente se decidiu por conta própria – prazer

de rico – só colocar alguma coisa a pouco e pouco, segundo certa ordem e sem deixar nada subsistir

fora, não), verdadeira tábula rasa, ele estava onde nada se via retornar, nada, nada, nada, sequer o

menor signo que remetesse ao que quer que fosse algum dia.

Agora, ainda sem pensar em alguma coisa bem determinada, o momento do nada passou,

isso é evidente, isso é certo.

A consciência, e também a consciência da varinha mágica da reconsciência, é a impressão

confusa e confiante da proximidade do pensamento, da iminência do pensamento, do pensamento

imediatamente voluntário.

Ele não a tinha. Ele tem-na agora.

A maré mental onde se elabora todo pensamento retorna, retornou. Ele vai ter um

pensamento. Isso é inevitável... Eis aí um, um outro. Eles afluem, retomando seu jogo entre si. A

retomada do funcionamento é realizada.

Ainda agora, em outros momentos inquietantes, martirizantes, seu pensamento estava

dançante, como se fosse excêntrico a seu cérebro, retido por não se sabe o quê, com alguma coisa de

imanejável ou de estrangeiro, vindo de fora, confuso, nocivo, semelhante a uma imagem mal

focalizada, flutuante, oscilante.

Sua cabeça dava-lhe a impressão de ser ora um retransmissor no caminho de outras

cabeças, ora um alvo visado por outros, ou ainda um aparelho escapando-lhe parcialmente, que fora

telecomandado por estranhos – os verdadeiros proprietários – que o faziam funcionar e pensar à sua

maneira. Qualquer que fosse a explicação, por mais singular, abracadabrante que fosse, a verdade é

que ele já não era o mestre, quase nada ou muito pouco “informado”. Realmente, ele não sabia

“onde se situar na sua cabeça”.

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Terminado! As horas de ocupação passaram. Agora, ele está só em seu cérebro. Impressão

admirável. Alegria íntima, talvez a mais íntima de todas, bastante discreta para ser quase idêntica ao

“eu”, colada indissoluvelmente ao ser em vida, e cuja ausência é uma catástrofe essencial, indizível,

incessante. Unicidade reencontrada, que ocasião! Nele, em nenhum outro. Seu pensamento é

pensado atualmente por ele, apenas por ele, com a exclusão de qualquer outro. Sem estar

absolutamente à sua mercê, discute com ele, com ele antes de tudo, ele é o único manipulador.

Mesmo que sua origem remonte a outros, ele repensa-o, retoma-o à sua maneira, sem a presença de

nenhuma intervenção, do que quer que seja, que o perturbe. Muito menos imponha-se a ele.

As impotências do alienado (porque era realmente isso sob a ação da droga) são suas

potências atuais, suas potências retornadas.

Ele pode voltar atrás, lembrar-se, orientar-se em sua memória, em redor de si, em seu

futuro. Pode pensar. Parar de pensar. Recomeçar a pensar. Pode repatriar seus pensamentos

anteriores. Resistir à incontinência do pensamento, opor-se aos pensamentos contraditórios. Pode

segui-los à sua maneira, ajustá-los, reajustá-los, fazê-los depender, integrá-los.

Pode fazer apreciações justificadas, que resistirão a provas, a críticas. Pode evocar...

calcular, manejar cifras, símbolos.

Ele pode, pode, pode. Pode...

Ele tem os cem poderes. Reencontrou-os. Pois pensar é isto e muito mais; entre outras

operações, trata-se de dispor os elementos no campo pensante, saber orientar-se em direção à

aquisição de ontem, sobre a impressão de cinco minutos, de um ano atrás, poder determinar um

pensamento, fazer com que não escape, que não seja independente, insensível à sua intervenção.

Trata-se de mantê-lo liberado dos precedentes. Trata-se de poder impedir, nas propostas ou em um

discurso que se escuta, em uma leitura que se faz, a coalescência de dois artigos, de duas séries de

pensamentos, impedir não só sua injustificada confusão, mas também a impregnação da segunda

pela primeira. Trata-se de chegar a abandonar, uma vez registradas, as palavras, as frases, os

parágrafos, liberar-se de sua atração e de seus atrativos, a fim de poder passar à seguinte.

De maneira mais geral, longe de ser testemunha impotente é poder enfrentar. Resistir aqui,

aceitar ali. Abrir-se por alguns momentos. Recusar-se em outros.

Trata-se de fazer tentativas, refazê-las, corrigi-las, fazer melhores, segundo um plano, uma

diretiva.

ELE TEM AÇÃO SOBRE O PENSAMENTO, SUA AÇÃO.

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Tinha apenas o pensamento analógico (às vezes, e particularmente “escapado”), que se

fazia nele, correndo liberado, independente, em velocidade insensata, sem que ele nada tivesse a

fazer. No presente, ele está em um pensamento construtivo, coordenado, que pode examinar à

vontade seu objeto em todas as suas faces, um pensamento refletido, um pensamento por etapas.

Realizar tal pensamento é atletismo; exige uma forma excelente. Ou melhor, como o

marujo no timão pode guiar e fazer evoluir, com os dedos de uma única mão, um navio de trinta mil

toneladas... quando o servo-motor funciona, é dispor de uma reserva de potência que um mínimo de

atenção a cada instante baste para utilizar, para a manobra.

Tudo isso retorna-lhe quase fácil demais, tudo simultaneamente. Essa ocasião única de ver

claro, graças ao efeito contrastado de seus poderes retornados e de suas impotências de apenas meia

hora atrás, aliás, estas vinham frequentemente em profusão, essa ocasião extraordinária que ele

deveria aproveitar dura pouco, mas é raro, raríssimo, que se aproveite dela, ocupado que estará com

recordações, com as surpreendentes experiências sofridas anteriormente, em cuja direção permanece

voltado nostalgicamente, fascinado.

Esgotado, nesse estado de apaziguamento feliz, de “mar acalmado”3 em que gostaria de

abandonar-se, é necessário, no entanto, que se obrigue a observar o detalhe do que lhe acontece.

Porque tão instrutivo quanto a droga é o pós-droga, em particular o imediatamente após.

Reintegrado entre os potentes desse mundo, entre os Senhores da saúde mental, todo

absorvido em sua nova ocupação, renegado repentinamente, ele vai esquecer de imediato (trata-se

então de uma lei bem geral) os pobres em poderes de espírito (em poder pragmático), o pobre que

foi por alguns momentos, o estado de pobreza. Ele não vai permanecer por muito tempo tocado

pelo que é necessário de força para “executar” a menor reflexão, o mais simples pensamento.

Aliás, tal possante é cego. Em mais de um ponto voltar a si é recair na inconsciência.

Com a saúde mental recuperada, muda-se de consciência e também de subconsciência.

Trata-se de uma perda. Jamais se poderá, portanto, apreender juntos subconsciente e consciente...

As verdades, as evidências de ainda agora, apoiadas então sobre o vivido, mas tendo atualmente

perdido tal apoio, estão quase no mesmo nível de teses imprudentes que ele afirmaria, tanto há

nelas de buracos, de faltas, de perdas de atmosfera.

Pois, ainda há pouco, havia apenas imobilização e tábula rasa. Alternando com as paradas,

havia os períodos de super-atividade, de alta estimulação e de aceleração do pensamento, destacado

3 Como já dizia muito bem, há um século e meio, Humphry Davy a propósito do efeito terminal do protóxido de azoto que ele acabara de descobrir.

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de toda utilização e de alguma maneira em roda livre (ineficaz4, portanto, a partir do momento em

que o encarregamos de operações mentais de cálculo, de estratégia, de combinação, de raciocínio e

de memorização).

Espetáculo extraordinário, contudo; rico funcionamento falhado e sobre-humano que

merece retorno frequente, precisamente por ser impossível fazer verdadeiramente nele a parte do

essencial e a do anormal.

O que é mesmo que ainda agora lhe aparecia, de uma maneira especial, tão claro e

evidente?

A natureza única do pensamento, sua vida à parte, seu nascimento repentino, seu disparo,

sua independência que o mantém a cem braças acima da linguagem, a que ele só se associa pouco,

momentaneamente, provisoriamente, dificilmente. Melhor, precedendo-a, reunindo-se um instante a

ela para partir outra vez na frente, fazendo vinte ou cem vezes o caminho, à frente, de lado (e ao

lado)5, retornando para partir de novo mais longe, livre, jamais misturado por muito tempo a nada

de verbal, de gestual ou de emocional, jamais enfiado verdadeiramente dentro ou confundindo-se

com a linguagem. Jamais apático também, tão incapaz de ser apático quanto a eletricidade.

O pensamento ( novo “gegenstand”6, ele via então isso com a evidência que se tem diante

de um objeto) não tem fluidez. Nenhuma fluidez. A língua é que a tem, ela é que faz este

escoamento regular, cômodo, que se conhece e se lê sob o nome de pensamento e assim

conhecemos... muito inexatamente7.

Tudo no pensamento parece molecular. Pequenas massas. Aparição, desaparição de

pequenas massas. Massas em associações, dissociações, neoassociações perpétuas, aliás, rápidas,

quase instantâneas. Pois o pensamento é brusco. Diabo que sai de sua caixa diante da cena.

Um esquema aparece, desaparece, reaparece com uma pequena mudança, mas sempre

nítida, desaparece de novo, reaparece com uma nova mudança, pequena ou grande, mas sempre

nítida.

Nada impreciso. Tão impreciso quanto os corpos que obedecem exclusivamente às

valências precisas de seus átomos, nas ações eletrônicas ou nas operações químicas.

4 O ácido lisérgico, atualmente em experiência no exército americano com vistas a uma eventual guerra de gases, foi escolhido por causa do poder que tem – em dose alta – de inibir toda faculdade de calcular, combinar, decidir. Lançada no lugar desejado, a pólvora “maravilhosa” desorientaria, reduziria à impotência todo um Estado-maior.

5 Para uma digressão (ou um parêntese) da palavra, dez incidentes e “ao lado” do pensamento.6 Em alemão no original – objeto. (N.T.)7 A palavra “retém” e a escrita permanece... mas o pensamento partiu, faz muito tempo, do “relato depositado”.

Cada um aterrizando periodicamente na linguagem vem encontrar-se ou ser encontrado com os outros... e em seguida, parte só no mundo de seu espírito.

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Eis ao que ele assistia naquele momento. Isso era real? Isso é sempre real? Não era uma

representação, vinda em super-impressão, que duplicava o fenômeno real de ideação e não era

exatamente a apreensão deste, mas apenas a consolidação, a tradução apoiada de um de seus

epifenômenos, não percebida habitualmente e tornada visível neste momento.

Isto é possível, porque há nestas horas excepcionais uma tendência visualizante e

representativa muito forte.

Pensar, se é verdadeiramente como ele via então, compreendia em todo caso localização e

deslocamento precisos. O “objeto mental” ou esquema, ou pensamento acompanhando-se de um

esquema (alguma coisa como os esquemas da estéreo-química), mas em estado de reorganização

constante (uma reflexão é uma reorganização), dava lugar a um terceiro conjunto preciso, ainda

diferente, que dava lugar a um quarto, a um quinto, a um sexto, a um sétimo, a um décimo, a um

centésimo, em uma abundância semelhante à prodigalidade que a natureza pratica em se tratando da

reprodução de plantas, peixes ou insetos. De modo que, aturdido, fatigado pelo não definitivo destas

múltiplas retomadas e pela impossibilidade de deter-se em alguma delas, poderíamos, podemos

acreditar no confuso, ainda que este não tenha existido um só instante e não tenha sido encontrado

em nenhum momento, o confuso é impossível. A impressão de incômodo que acompanha o trabalho

difícil das combinações, das montagens é a única coisa vaga. Esplêndido espetáculo de montagens.

Refletir é estar em plena montagem. Vemos então a necessidade de ter força (ou vontade) para

chegar a agir, localizar, deslocar, lembrar, manter. Admirável mecanismo que permite, graças a uma

rápida operação exploradora, fazer retornar sobre a tela da consciência, fazer retornar com bastante

frequência para produzir, a cada nova reflexão, uma montagem melhorada, até que talvez se obtenha

provisoriamente, após duzentas ou mil tentativas, um estado satisfatório – ou definitivo, ou

encantador. Ao sair de dezenas ou centenas de combinações, tentativas de integração, pouco ou

inteiramente imperceptíveis até então, é que um pensamento aparece, isto é, um resultado

suficientemente grosseiro e satisfatório para ser recebido (e também percebido), resultado que o

longo eclipse de estados ativos intermediários, subpensamentos e subformações mentais, tornou

possível. Pois uma ideia, por mais iluminante que seja, entra em uma montagem, faz-se, organiza-

se por montagem, uma montagem nos tateamentos e incertezas ou certezas inexplicáveis, parciais

ou globais, por atração de seus semelhantes ou de seus contrários, montagem que há pouco, tendo

perdido por alguns momentos a autoridade, ele não executava de maneira nenhuma, montagem,

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prodigiosa e visível, que se fazia inteiramente só, sem ele, ou que cessava progressivamente, em

um desfalecimento mental, um “fading” particular, ou ainda, montagem que por vezes se continuava

para nada, por jogo, por impossibilidade de ser interrompida, como um pianista famoso faz e refaz

suas escalas. E a realidade, inclusive a exterior, parecia ter-se tornado irreal, factícia, falsa,

irreconhecível. (O real é o resultado da autoridade. O mais preguiçoso, o mais lento a possui, sem

saber disso).

Ele via o mais singular ainda.

Assistia a um desses fenômenos que se quer em seguida anular de sua memória e fingir que

não se assistiu, já que eles, à primeira vista, parecem desconcertantes, não entrando em nenhuma

síntese, não podendo encontrar nenhuma explicação válida.

No entanto, não é necessário apressar-se em declarar tais fenômenos aberrantes e à parte.

Assim o espetáculo do pensamento de oposição.

Assim o do pensamento repetitivo.

Ambos sendo, em tais momentos, ingovernáveis e não significantes, inúteis – e

prodigiosos.

Assim como as imagens apareciam naquele momento frequentemente emparelhadas,

segundo uma simetria rigorosa, elementar, exagerada, irrefletida, quase mecânica e repetida de

maneira enlouquecida8, os pensamentos vinham aos pares, um suscitando o outro, um simétrico ao

outro (quer semelhante ou análogo, quer antagonista). Estranhos casais, cada pensamento com seu

contrário, o sim com o não, o a favor com o contra, a afirmação com a negação e, se não fosse

muito longo, a tese com a antítese, o gosto com seu contrapeso ou seu desgosto, efeitos vindos, sem

dúvida, de uma função normal que mantém o pensamento sob tensão, mas que nessa hora,

incrivelmente exagerada e multiplicada, enervante, inquietante e sem uso, deixava incessantemente

indeciso, fenômeno da contradição insuperável que retorna incessantemente à carga,

indefinidamente traumatizante... permitindo compreender as devastações que pode produzir em um

esquizofrênico, realizando nele uma ambivalência incoercível, expressão do inferno, do

8 Correspondente a certos desenhos mediúnicos A repetição é também (como assinala o Dr. Koupernik) um fator construtivo e de aprendizagem na criança. Hábito de que permanece alguma coisa.

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antagonismo irredutível em que ele vive sem nunca poder sair, seja por um progresso, seja por uma

afirmação definitiva.

A oposição do pensamento antitético, que é a primeira a submeter o pensamento, é vista

assim em alternâncias precipitadas, que parecem ligadas antes à eletricidade ou ao fenômeno

espasmódico que ao raciocínio. Elas não devem, no entanto, fazer esquecer que são uma tópica de

desenvolvimento (por contraste) e constituem um tratamento natural da ideia. Logo, tais

alternâncias loucas podiam ser tentativas de composição, rudimentares, desesperadas, fracassadas e

retomadas inutilmente com o pouco que sobra no sujeito de força diretriz. O mesmo acontece com a

repetição (outra tópica primordial) sempre presente e aqui, como era de se esperar, exagerada,

mecânica também, fazendo do pensamento que parte em enumerações inúteis um quantum

explosivo de descargas, a que só se pode assistir passivamente até seu esgotamento. O pensamento,

sem chegar a recuar, descarrega-se em repetições inúteis.

De qualquer maneira, vemos então de forma espetacular que um pensamento, mesmo de

desencorajamento, é energia, aparição de uma certa quantidade de energia que toma lugar, lugares

sucessivos, que faz precipitadamente suas formações rápidas, rápidas, até que, após múltiplos saltos,

ele se queda esgotado, chapado, sua vida realizada.

Em todos esses procedimentos, o pensamento mostra uma descontinuidade chocante e

quase elétrica (em lugar da continuidade e da ligação, que é o fato e a tendência da frase), e não é

em vão, pelo menos nesses momentos9, que ele está ligado a neurônios que se descarregam

periodicamente.

Agora que está quase terminado, que as crises de repetição, que as enumerações loucas e

teses-antíteses cessaram, que o ingovernável pode ser governado, que tudo se modera, que, além do

mais, ele ainda pode reforçar voluntariamente tal moderação, agora que lhe é possível de novo

raciocinar10 claramente, julgar, decidir, realizar e que, em lugar de explosões, de oposições bruscas e

de iluminações momentâneas, pensar é proceder a sábias disposições, ele entra outra vez no casal

mais confortável pensamento-palavra. Todavia, como alguém que visitou o estrangeiro, ele já não

terá sua ingenuidade nacional, já não é inteiramente solidário, considerou suas distâncias.

9 Simultaneamente entretanto, plataforma inesperada, indiferença extraordinária, vem então uma consciência do além, de um absolutamente além, abandono de todo superficial ou acidental. Operou-se uma conversão à ESSÊNCIA, ao ABSOLUTO.

10 Sustentar um raciocínio, chegar a manter sucessiva ou conjuntamente seus elementos, levá-los em consideração, variá-los, mudá-los, retomá-los, ter domínio suficiente para terminar os raciocínios, para julgar, para decidir, que maravilha! Antes ele não tinha ideia disso. De tudo o que isso supõe.

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Ele vê realizar-se de novo sob seus olhos a antiga junção do pensamento e da palavra. A

palavra obriga o pensamento a segui-la calmamente. O pensamento deve seguir a procissão das

palavras, deve entrar na vestimenta das palavras, fixar-se, pensar-se, moderar-se na inscrição das

palavras. Queda11 na verbalização. Uma vez dentro, isso tem sua atração.

Também é uma reconquista, e muito flexível.

Ele sente-se bem nas palavras, nas frases. Nos seus passos.

Ainda agora, ele não sabia com frequência onde procurá-las, perdidas, desconhecidas,

incontradiças, irrecuperáveis, fora do campo do espírito, elas caíam-lhe em cima em turbilhões, ou

melhor, passavam na sua frente em cortejos precipitados, tão rápidas que nenhuma podia ser

apanhada. Se ele as alcançava, considerava-as curiosamente estreitas, inadequadas, inúteis, sempre

impróprias. Simplórias sobretudo. Ele tropeçava nelas infrutiferamente. Ele queria outras e algumas

vezes alcançava-as, aliás, elas é que chegavam espontaneamente inventadas, complexos evocadores,

porém, mal vindos, aglutinados desordenadamente e não construídos. A linguagem parecia uma

grande máquina pretensiosa, pesada, apenas falseando tudo; aliás, ela ia afastando-se em um

distanciamento crescente na indiferença.

Em tal situação, ele sentia-se tentado a fechar-se em um mutismo absoluto12.

Neste estado, com efeito, abandonar as palavras é dar provas de inteligência e agarrar-se a

elas de tolice (perdendo assim a ocasião da ultrapassagem).

Agora as palavras vêm, convêm, ele reencontra-as, considera-as satisfatórias. Encontra

apoio nelas. Tem prazer em empregá-las, segui-las, em empregar conjugações, afinidades, relações,

articulações.

A linguagem presta-lhe serviço, agora que ele mudou de velocidade mental – para retornar

a uma velocidade de pedestre, de detido, uma velocidade para a aquisição, para ler, calcular,

examinar, reter, estudar.

Ele reúne novamente a palavra à ideia. Considera natural que estejam e permaneçam

unidas.

Tem um pensamento social que pode ser comunicado (sem perder muito). Não o tinha. Era

gazeteiro, um gazeteiro fatal, obrigatório.

11 E sentida como tal.12 Muito conhecido de alguns que tomaram mescalina e de esquizofrênicos que nada tomaram. Falar, recusam-se a

fazer isso nesse estado singular, falar é sentido como uma profanação.

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Com uma lentidão frutuosa, uma lentidão que permite uma vasta sincronização, ele avança

sobre e pelas palavras, aceitando sua ajuda em vista do percurso. Segue a frase, não só a segue e a

acompanha, mas também, partindo na dianteira dela, vai ao encontro do sentido.

Agora, retorna o pragmático, o útil, o adaptado, o harmonioso, retorna o ego, seus limites,

sua autoridade, seu anexionismo, seu gosto das propriedades, das ocupações, seu prazer de impor-

se, de fazer permanecer unido, de forçar custe o que custar. E isso parece natural!

Perigo, no entanto! E não só um!

Perigo da excessiva preferência dada ao pensamento que pode ser comunicado, assinalado,

destacado, útil e valor-de-troca em detrimento do pensamento profundo que continua em

profundidade. Perigo de sua exagerada, constante socialização.

Perigo, sobretudo, do excesso de supremacia, da utilização excessiva do poder diretor do

pensamento, que constitui a tolice particular dos “grandes cérebros estudiosos”, que conhecem

apenas o pensamento dirigido (voluntário, objetivo, calculador) e o saber, esquecendo de deixar a

inteligência em liberdade para permanecer em contato com o inconsciente, o desconhecido, o

mistério.

E essa lentidão do presente, o que é isso? Sobre o que repousa ela? Será possível que exista

verdadeiramente lentidão?

Ele não pode acreditar nisso.Viu o suficiente para suspeitar de velocidade na maior lentidão

e de intervenções e manipulações inumeráveis nas piores passividades.

Até mesmo divagar já não é vago para ele. Isso deve ser alguma coisa completamente

diferente, e tremendamente ativa.

Se sonhar é, para o verdadeiro sonhador, reconquistar sua liberdade – continuando,

absorvido, suas montagens – para a maioria é dirigir em todos os sentidos o foco de sua atenção (à

frente pelos projetos – atrás pela memorização). Seja atrás. Tudo repassa em uma velocidade muito,

muito grande (desmesuradamente grande para que eles tomem consciência disto) e apenas no

momento de uma surpresa, quando alguma coisa que ressoa, que reclama uma desaprovação ou

vergonha repentina, ou saudade, ou correção13, apresenta-se na série que se fazia desfilar, existe

sobressalto e consciência na recapitulação.

13 Nas experiências da psicologia da “Gestalt”, foi mostrado que nos lembramos melhor das ações inacabadas do que das acabadas. Pode ser que as gafes, os erros cometidos, os objetos perdidos, as distrações prejudiciais retornem à memória de maneira resumida como ações inacabadas, isto é, falta-lhes uma retificação, uma nova operação, para que sejam completas, tranquilizantes e esquecíveis.

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Senão os retropercursos são inconscientes. Aliás, se eles não fossem fantasticamente

rápidos e quase imperceptíveis, toda a vida se passaria nas lembranças.

Velocidade! Pode-se dispensar uma velocidade extrema? O cérebro pode? Para aqueles que

viveram o inesquecível tempo acelerado da mescalina, a velocidade permanece para sempre o

problema, chave sem dúvida de muitos outros, de onde são extraídos, nestes momentos únicos,

alguns elementos preciosos, quanto mais admiração isso provocou nos experimentadores, menos

eles conseguem convencer disso seus auditores.

Que dizem realmente eles? Que viveram um século em um quarto de hora. Ah! Se

falassem não de um século, mas sim de dez horas ou de um dia, mas não são estas as suas palavras.

Dizem “um século”.

Alguns dizem inclusive que tal velocidade não tem medida comum com a velocidade

mental normal, ou ainda que se trata de um tempo fora do tempo.

Questionados sobre o número de impressões por segundo (ou de imagens, ou de

pensamentos) que tinham então, as pessoas que retornam da velocidade mescaliniana falam de cem

ou duzentas, ou mesmo de quinhentas vezes mais do que em tempo normal14.

Qual é, no entanto, a velocidade normal? Quantas informações e integrações podem passar

normalmente no cérebro de um segundo ao outro?

Alguns pássaros apreendem, distinguem, até setecentos sons por segundo, sem deixar por

isso de registrar, nem por um instante, cores, calores, luzes, formas, movimentos dos objetos e do

ar, sem interromper a apreciação dos dados que servem ao seu equilíbrio, à sua subsistência e ao

conhecimento do que os cerca. Seriam as sinalizações mentais no homem mais pobres? Não é fácil

decidir-se a respeito disso com segurança.

Muitos “choques” dirigem-se ao subterrâneo sem produzir uma impressão.

Não é um homem normal tanto um ser que esquece, que esquece cem ou mil percepções

por segundo, um repertório de que não tem necessidade especial e imediatamente, quanto uma

pessoa que adquire?

A droga, lembrem-se disso, é antes reveladora que criadora.

14 E se fossem vinte vezes? Ou mesmo apenas seis? Não seriam suficientes para impressões completamente modificadas, ser inundado, ter (erroneamente) o sentimento de uma velocidade fantástica. A mim aconteceu ver desfilar, em alguns segundos, um filme inteiro. Aparentemente inteiro. Mas era realmente inteiro? Com todos os seus detalhes? Sem dúvida, apenas com os detalhes que me importavam, que contavam para mim, reduzido, portanto, ao essencial, a pouca coisa talvez e, consequentemente, podia ir rápido...

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Tanto a intensidade quanto a velocidade aumentaram, uma intensidade que revela e põe em

evidência uma velocidade que já existia, muito mais considerável do que se acreditava, uma

intensidade que torna distintas as imagens (e os microélans) mais imperceptíveis, vagas e em plano

de fundo. A droga torna consciente inúmeras passagens, desejos também, que devenem impulsões

repentinas, violentas, fulminantes.

Todos não estão provavelmente muito distante desta velocidade15. Se pudessem apenas

tomar consciência dela. As frases vão tranquilamente por cima dos abismos de velocidade. Não ser

enganado a respeito disso.

O homem é um ser lento, que só é possível graças a velocidades fantásticas. Sua

inteligência já teria descoberto isso há muito tempo, se ela mesma não fosse precisamente isso.

15 14 Em certas emoções, sob um choque, em uma queda, durante um afogamento, parte de uma vida pode ser vista passando a toda velocidade. Alguns calculadores podem, em quatro ou cinco segundos, realizar cálculos que bons matemáticos levam quatro ou cinco horas e representam milhares de operações. Graças a que desconexão, dissociação, estes aritméticos-prodígios, aliás, nem notáveis, nem gênios, homens como todo mundo, sem nada de patológico também, chegam a aproveitar-se da velocidade mental real, colocando-se em relação direta com ela?

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