23
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista O masculino e o feminino na cultura Carajá segunda-feira, julho 04, 2011 http://nucleotavola.com.br/revista/o-masculino-e-o-feminino-na-cultura-caraja/ por David Azoubel Neto* O masculino e o feminino têm sido um tema por demais e sempre insuficientemente estudado. Poetas, literatos, filósofos, biólogos, psicólogos, antropólogos, sociólogos, etnólogos e psicanalistas têm se ocupado exaustivamente dele, tratando-o de acordo com os seus instrumentos e preferências pessoais. Encontra-se, neste momento, no epicentro das preocupações deste Congresso. Deixando de lado os avanços da Genética nos últimos anos, os quais têm permitido elucidar um grande número de dúvidas fundamentais a respeito da determinação do gênero nas espécies animais, incluindo a nossa, gostaria de tratar deste assunto sob o enfoque de uma definição cultural, a partir dos mitos, das lendas e dos costumes de um povo primitivo. As características biológicas, psicológicas e sociais do ser humano tornam esta questão extraordinariamente complexa. Parece que os conceitos foram se complicando a partir do ponto de vista da Biologia, transformando-se num verdadeiro campo de batalha, com implicações psicológicas cada vez mais profundas e perturbadoras. Acontece que o homem, ao nascer, seja ele do sexo masculino ou feminino, sofre a influência de um pai e de uma mãe que têm, na sua estrutura mental, concomitantemente, influências de fatores que, culturalmente, são convencionados como masculinos e femininos. Daí resulta uma notável concentração de conflitos que se expressam na conduta pessoal de cada um. A verdade é que foi ficando cada vez mais difícil saber o que é o masculino e o que é o feminino para um indivíduo adulto e que se diz civilizado. Estudar o que é masculino e o que é feminino num ser humano implica estudar o que é masculino e o que é feminino na cultura de onde ele procede, à qual pertence e está, por conseguinte, fatalmente comprometido. Em termos psicanalíticos, trata-se de saber o que é consciente e o que é inconsciente. Encontramo-nos, portanto, num estado de desconhecimento, como sói acontecer em todo o restante do processo analítico. Que sentido prático e teórico teria então nos preocuparmos com um assunto dessa natureza, tão extenso, difícil e controvertido? Suponho que problemas tais como o homossexualismo e a delimitação dos conceitos de maternidade e paternidade dependem dos esclarecimentos que possamos auferir deste estudo. Ao mesmo tempo, refletir sobre o que é masculino e o que é feminino nas pessoas com quem convivemos atualmente nos confronta com a própria história do homem, uma história cuja consideração teria que incluir um relato o mais detalhado possível sobre a evolução dos costumes ao longo do tempo, passando page 1 / 23

o Masculino e o Feminino Na Cultura Caraja

Embed Size (px)

Citation preview

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    O masculino e o feminino na cultura Caraj

    segunda-feira, julho 04, 2011

    http://nucleotavola.com.br/revista/o-masculino-e-o-feminino-na-cultura-caraja/

    por David Azoubel Neto*

    O masculino e o feminino tm sido um tema por demais e sempre insuficientemente estudado. Poetas,literatos, filsofos, bilogos, psiclogos, antroplogos, socilogos, etnlogos e psicanalistas tm seocupado exaustivamente dele, tratando-o de acordo com os seus instrumentos e preferncias pessoais.Encontra-se, neste momento, no epicentro das preocupaes deste Congresso. Deixando de lado osavanos da Gentica nos ltimos anos, os quais tm permitido elucidar um grande nmero de dvidasfundamentais a respeito da determinao do gnero nas espcies animais, incluindo a nossa, gostaria detratar deste assunto sob o enfoque de uma definio cultural, a partir dos mitos, das lendas e doscostumes de um povo primitivo.

    As caractersticas biolgicas, psicolgicas e sociais do ser humano tornam esta questoextraordinariamente complexa. Parece que os conceitos foram se complicando a partir do ponto de vistada Biologia, transformando-se num verdadeiro campo de batalha, com implicaes psicolgicas cada vezmais profundas e perturbadoras.

    Acontece que o homem, ao nascer, seja ele do sexo masculino ou feminino, sofre a influncia de um pai ede uma me que tm, na sua estrutura mental, concomitantemente, influncias de fatores que,culturalmente, so convencionados como masculinos e femininos. Da resulta uma notvel concentraode conflitos que se expressam na conduta pessoal de cada um.

    A verdade que foi ficando cada vez mais difcil saber o que o masculino e o que o feminino para umindivduo adulto e que se diz civilizado.

    Estudar o que masculino e o que feminino num ser humano implica estudar o que masculino e o que feminino na cultura de onde ele procede, qual pertence e est, por conseguinte, fatalmente comprometido.

    Em termos psicanalticos, trata-se de saber o que consciente e o que inconsciente. Encontramo-nos,portanto, num estado de desconhecimento, como si acontecer em todo o restante do processo analtico.

    Que sentido prtico e terico teria ento nos preocuparmos com um assunto dessa natureza, to extenso,difcil e controvertido? Suponho que problemas tais como o homossexualismo e a delimitao dosconceitos de maternidade e paternidade dependem dos esclarecimentos que possamos auferir deste estudo.

    Ao mesmo tempo, refletir sobre o que masculino e o que feminino nas pessoas com quem convivemosatualmente nos confronta com a prpria histria do homem, uma histria cuja considerao teria queincluir um relato o mais detalhado possvel sobre a evoluo dos costumes ao longo do tempo, passando

    page 1 / 23

    http://nucleotavola.com.br/revista/o-masculino-e-o-feminino-na-cultura-caraja/
  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    principalmente por aquelas civilizaes que exerceram maior influncia sobre a nossa maneira de sentir ede pensar... de ser.

    A descoberta do inconsciente pela psicanlise de Freud permitiu, por outro lado, ver a mente primitivacomo uma fonte mitopoitica que nos conta, atravvs das lendas, uma boa parte da histria do homem,ou seja, da sua pr-histria (Freud, 1915 e 1913).

    Para Freud, o masculino e o feminino estavam determinados pelas emoes e sentimentos causados pelasfantasias relacionadas com a presena ou ausncia do pnis, promovido categoria de falus. A mulherseria, portanto, dentro da ptica freudiana, um ser castrado, enquanto o homem seria um ser vivendo sob aameaa constante de castrao, no apenas no percurso do seu desenvolvimento libidinal precoce, masdurante toda a sua vida. O masculino e o feminino estariam, desse modo, na dependncia da resoluo docomplexo edpico. Esta viso freudiana da conceituao dos gneros na espcie humana geroucontrovrsias cujas discusses se estendem at os nossos dias (Freud, 1924).

    Todavia, essa possibilidade de estudar a histria da humanidade enquanto se pratica a psicanlise, abriutambm uma perspectiva nova e ainda no completamente explorada, situando o trabalho analtico numadimenso alm da clnica.

    Mas preciso que se entenda a noo de tempo em suas dimenses metapsicolgicas. que o tempo noinconsciente no corresponde, propriamente, a uma condio de atemporalidade e sim a uma condio desimetria, onde o presente e o passado se misturam, confundem-se, equivalem-se. Nos termos daconscincia, o futuro se expressa atravs da formulao do desejo, o qual no existe no inconscienteprimitivo, s no inconsciente do reprimido.

    Estas consideraes nos transportam a uma outra reflexo: no inconsciente primitivo, onde no existem asdiscriminaes necessrias aos processos nominativos, parece no existir tambm uma noo especficasobre o masculino e o feminino. A necessidade de discriminar conceitos constitui uma aquisio tardia epertence ao processo de formao da conscincia (processo secundrio) (Freud, 1900).

    A questo bsica (sobre o que o masculino e o que o feminino na mente do homem) converge, porconseguinte, para como foram se formando, no aparelho mental, lentamente, complicadamente,sofisticadamente, as concepes derivadas da conscincia da existncia e das inter-relaes macho efmea.

    Partindo dos seus comportamentos puramente instintivos, o ser humano evoluiu para uma forma mtica depensamento e depois foi aprimorando a sua capacidade de raciocnio.

    Deveramos ento considerar, para sermos mais exatos, que nos encontramos num estgio evolutivo emque os elementos fundamentais da nossa capacidade de pensar ainda estariam sendo formulados; da anossa dificuldade para fazer certas discriminaes, da o nosso esforo para atingir uma compreenso dens mesmos que, numa boa parte dos casos, resulta apenas parcial e insatisfatria. Mais humildespoderamos ser para reconhecermos a nossa incompletude diante de uma evoluo to somenterudimentar. Mas isto no nos impede de seguir percorrendo o longo caminho em direo humanidade.

    A verdade que, quando se fala de masculino e de feminino, aparentemente, todo o mundo sabe de que se

    page 2 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    est falando. No entretanto, quando se aprofunda um pouco mais a questo, verifica-se que no se trata,exatamente, de preceitos to claros. Eles contm noes que emanam da cultura, que sofremconstantemente mudanas atravs dos tempos, que esto subordinados s limitaes geogrficas.

    Creio que esta pequena introduo por si suficiente para nos dar uma idia da complexidade e daprofundidade do problema.

    Para nossa sorte, o Brasil grande; um pas privilegiado. Dispe de acervos culturais que nos foramlegados pelo europeu, representado pelo portugus e numa poca em que o pequeno Portugal era umcentro de navegao e de desenvolvimento na Europa; dispe ainda do aporte que nos foi trazido pelonegro, que aqui chegou como escravo, legando-nos uma contribuio cultural e gensica importantssimapara a formao de uma etnia brasileira; e dispe tambm de uma cultura indgena por muito tempodesprezada, at que os antroplogos e etnlogos estrangeiros comearam a descobri-la. Esse acervocultural indgena bem maior e mais rico do que se costuma imaginar.

    Convido-os, neste momento, a fazer uma viagem bem no centro do Brasil; convido-os a visitar a tribodos Carajs que pertencem ao grupo Macro-g, um dos quatro grupos aos quais esto filiados todos osindios brasileiros (os outros so: o Tupi-Guarani, o Aruak e o Caraba). Os seus primeiros contatos com obranco datam do ano de 1755 (Fonseca, 1775). sobre eles, mais especificamente, que pretendo focalizareste ensaio.

    A nao Caraj comeou a ser contactada pelo homem branco nos idos de 1755, quando se organizouuma expedio sob o comando do coronel Antonio Pires de Campos, com o propsito de capturar o ndioe traz-lo como escravo. Os resultados dessa expedio foram desastrosos: uma aldeia inteira foimassacrada, matando-se mulheres e crianas. Os homens foram aprisionados e levados para o cativeiro,porm, felizmente, a grande maioria deles conseguiu fugir e voltar para os seus domnios - tanto durante aviagem como depois de instalados nas fazendas e locais de trabalho. Foram pouqussimos aqueles quesobreviveram em cativeiro.Vinte anos depois (1775), ornganizou-se uma segunda expedio, dessa vezcom fins facficos, a qual teve, como seria de esperar, muitas dificuldades para entrar novamente emcontato com os indgenas. Estes, bastante temerosos e desconfiados, trataram de manter os brancos bem adistncia das suas aldeias e foi somente graas a habilidade do seu comandante (alferes Jos Pinto daFonseca) que se tornou possvel o contato. Havia nessa expedio uma escrava Caraj que tinha sidoaprisionada na primeira e que aprendeu o portugus, servindo de intrprete, o que em muito facilitou acomunicao entre os selvagens e os brancos (Revista Trimestral de Histria e Geografia, 1867). A partirdessa data as relaes passaram a ser espordicas, porm se estabeleceram os primeiros conhecimentossobre a tribo e uma incerta conscincia da sua existncia bem no coentro do pas. Somente no comeodeste sculo, mormente depois dos anos trinta, com a expanso da pecuria e a abertura de fazendas nasregies de Gois e Mato Grosso, que a marcha para o oeste foi se firmando e as relaes com as triboslocais foram se tornando mais freqentes. Mas os Carajs conseguiram manter, durante muito tempo(mesmo nos dias atuais) a sua etnia cultural, preservando a lngua e mantendo-se fiis aos seus costumes. graas a esse fenmeno de sobrevivncia cultural e ao esforo de etnlogos e antroplogos corajosos,que hoje podemos dispor de um considervel acervo mtico como um valioso recurso para o estudo dassuas lendas e formas primitivas de pensamento.

    O Masculino e o Feminino entre os ndios Carajs (Inan-son-uer)

    page 3 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    Este trabalho faz parte de um estudo que est sendo desenvolvido com base nas seguintes fontes: registrodos relatos de investigadores que j se preocuparam com esses ndios; observaes diretas realizadas peloautor durante visitas a tribo; exame da cermica figurativa produzida pelas ndias Carajs; e tentativa deinterpretao dos mitos contidos nas lendas coletadas em todas estas fontes. O meu interesse pelo estudoda cultura Caraj nasceu de uma inquietao curiosa para tentar decifrar os significados da cermicafigurativa dessa tribo. Estimulado pela escassez de bibliografia a respeito deste assunto, decidiempreender algumas viagens anuais ilha do Bananal, demorando-me em geral de oito a dez dias nessasviagens. Vencidas as primeiras dificuldades, passei a ter um convvio muito rico com aqueles informantesque poderiam ajudar-me, em especial com um deles, o Arutana, a quem sou muito grato e no poderiadeixar de manifestar, nesta oportunidade, o meu profundo reconhecimento. O que aqui apresento umresumo muito condensado do atual estgio das minhas pesquisas sobre os costumes, lendas e mitosCarajs, em relao com uma preocupao de aproximao s teorias psicanalticas.

    Examinando a vida e os costumes da tribo, deparei-me com uma srie de rituais e prticas que foram, aospoucos, chamando a minha ateno para o modo como esses indivduos conceituam, na sua cultura, omasculino e o feminino. Como se trata de um assunto inserido na temtica deste Congresso, espero quepossa conter alguma contribuio para as reflexes no decurso dos nossos debates.

    Estou ciente de que uma investigao mais aprofundada sobre a matria teria que levar em consideraoum levantamento histrico e evolutivo da cultura de um povo, mesmo em se tratando de um povoprimitivo. Isto me obrigaria a conhecimentos dos quais no disponho, ou a um desdobramento que, nocaso dos nossos ndios, parece-me, praticamente, impossvel, a no ser mesmo atravs dos seus mitos elendas.

    O Masculino e o Femino em Relao com os Costumes

    Sobre a Diviso do Trabalho na Tribo

    A diviso do trabalho na aldeia encontra-se vinculada tradio. Na cultura Caraj, a mulher tem umadefinio de trabalho que no permite a menor sombra de dvida: dedica-se, fundamentalmente, aosafazeres domsticos, cuida das crianas pequenas e especializa-se na fabricao da cermica, tantoutilitria como figurativa; o cozinhamento e preparo dos alimentos , tambm, uma funo sua; dedica-seainda tecelagem, tanto em algodo, que fiado numa roca primitiva, como em palha, produzindoobjetos como esteiras, bolsas, colares e enfeites. Vale ressaltar que a sua atividade como ceramista damaior importncia - tanto para a confeco de objetos de uso dirio (utilitrios), como para a fabricaode bonecas de barro cozido (litxc). Antigamente o fabrico de cermica se limitava manufatura depotes, alguidares, panelas e tigelas de barro; posteriormente, por estmulo dos turistas que visitavam atribo e que comearam a se interessar pela bonecas (litxc) que as mes faziam para as crianasbrincarem, a produo desse artigo se transformou numa atividade financeiramente rendosa para a tribo;de tal modo, que as peas passaram a ilustrar os diferentes personagens da imaginao e da mitologiaindgena, sobretudo os seus costumes, sendo pintadas com os mesmos corantes que so, habitualmente,usados para pintar o corpo nas festas e rituais tribais (tintura de genipapo enegrecida com carvo vegetal,tintura de urucum e aafro). Com o fluir dos anos foi se caracterizando num artezanato interessante,muito rico e expressivo, a ponto de permitir, atualmente, uma fonte preciosa e muito rica para o estudodos costumes, lendas e mitos, um verdadeiro registro iconoplstico.

    page 4 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    Ao homem cabe o papel de prover o abastecimento de alimentos por meio do fornecimento da caa e dapesca, da prtica de uma agricultura rudimentar, baseada principalmente no cultivo do milho e damandioca; a pecuria tambm faz parte do trabalho masculino, tendo sido introduzida mais recentementee sendo administrada pela FUNAI (Fundao de Amparo ao ndio). O trabalho artesanal do homem consideravelmente mais limitado que o da mulher e restringe-se confeco de objetos de madeira que, semelhana da cermica figurativa, tem uma forma bastante caracterstica; so bonecas entalhadas emmadeira ( kau-kau), um tipo especial de madeira que existe nas margens do rio Araguaia. Essas peasso pintadas com tintura de genipapo e de urucum, sendo os seus desenhos constitudos por riscos feitosem pirogravura. Os homens se dedicam ainda fabricao dos remos, das canoas (ub), das lanas, arcose flechas, bordumas, banquetas e toda a espcie de objetos de madeira destinados ao uso comum e ritualna aldeia. Mas so eles que constroem as casas por ocasio do casamento, no momento em que este assumido na representao da necessidade do casal de ter uma casa prpria (em geral aps um ano deconsumado o casamento; no primeiro ano o casal mora na casa dos pais da esposa); trata-se de umaconstruo que obedece a uma arquitetura peculiar. Convm salientar que a pesca constitui uma atividadeessencialmente masculina. Muito embora na infncia e adolescncia os dois gneros a pratiquem, maispropriamente com fins ldicos, aos adultos que cabe a responsabilidade do abastecimento comunitriocom os grandes peixes que so apanhados nos lagos da ilha do Bananal onde so deveras abundantes. ocaso, por exemplo, da pesca do pirarucu (Arapainas giggas), conhecido em toda a bacia Amaznica comoo gigante das guas doces dos rios do Brasil(Schultz, 1953). Esse autor descreve em A pesca dopirarucu, trabalho publicado na Revista do Museu Paulista, como os ndios Carajs apreendiam essepeixe enorme antigamente, com o auxlio de uma rede primitiva, tecida com casca de vegetal.

    Quando se visita ou se convive com esses ndios na aldeia, tem-se a impresso de que as mulheres sobastante laboriosas. Esto sempre trabalhando, desde o acordar at o adormecer. Mesmo noite, quandoesto se divertindo e assistindo aos treinos de dana, conversando entre si, encontram-se, quase sempre,fazendo, simultaneamente, algum trabalho de tecelagem. J a idia que se nos oferece quanto aos homens um pouco diferente: eles so, aparentemente, mais displicentes, juntam-se em grupos e permanecemociosamente conversando, ou ento renem o artesanato fabricado pelas esposas e vo vend-lo na cidademais prxima, atravessando o rio em suas ub. No entanto, quando esto na lavoura, trabalhamintensamente, o mesmo ocorrendo por ocasio do preparo de uma grande festa, em geral ajudando odono da festa. Existe um notvel esprito de colaborao entre eles.

    A Educao dos Meninos e das Meninas

    Meninos e meninas crescem juntos e se desenvolvem sob a tutela da me at adolescncia, recebendo,portanto, a influncia direta e macia do elemento feminino. O pai no , todavia, um fator absolutamenteausente. Ele se relaciona preferentemente com os filhos homens nesse perodo e a influncia masculina sefaz notar ainda atravs da presena da figura do av ou de um velho da tribo que tem habilidade paracontar estrias. Tive oportunidade de ver, em torno de um desses personagens, muitas crianas ouvindoatentamente os relatos das lendas do seu povo. Algumas dessas crianas, as mais novas, no colo e sob oscuidados de uma irm apenas um pouco mais velha, adormeciam nos seus braos ao embalo desses seresnos quais as mesmas narrativas eram contadas e recontadas dezenas e centenas de vezes. de se suporque tais relatos exeram uma poderosa funo modeladora na formao mental dos pequenos ndios, jque a transmisso dos costumes se faz tradicionalmente pela via oral. Mas h que se considerar o settingno qual se faz essa transmisso: sob um cu estrelado, num clima fsico ameno, num ambiente afetivoaconchegante, repleto de amor e de carinho.

    page 5 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    As meninas vo recebendo, por sua vez, desde muito cedo, assim que comeam a andar sozinhas, tarefase incumbncias que tambm contribuem para moldar as suas tendncias e uma noo prpria defeminilidade. Como o intervalo entre o nascimento dos filhos , freqentemente, de um ano ou menos,elas so encarregadas de cuidar dos irmos menores, carregando-os pela aldeia e fazendo-os participardos seus brinquedos, quer como acompanhantes, quer mesmo como integrantes.

    At a adolescncia a educao das crianas do sexo masculino de natureza essencialmente ldica.Passam o dia inteiro brincando, pescando, tomando banho no rio. Ao entrarem na adolescncia, soselecionadas por amigos do pai e, constatado-se um desenvolvimento fsico que comprove de fato oadvento da puberdade, so retiradas bruscamente do convvio da me e colocadas na Casa dos Homens (tambm chamada Casa de Aruan ou Casa das Mscaras, porque o local onde se guardam as mscarase as vestimentas para as festas rituais da tribo), passando a aprender, sob a tutela de um orientador maisvelho, as danas, os cantos, os ritos e os segredos de sua gente, os quais, em hiptese alguma, podero serrevelados s mulheres, sob pena de ameaas catastrficas sobre o indivduo e sobre toda a aldeia(Vasconcelos, 1979). Veremos, mais adiante, por ocasio do relato das lendas, como esta ameaa seconfigura na mente do ndio (Peret, 1979). A Casa dos Homens constitui uma espcie de local sagrado,vedado s mulheres, as quais s podem penetrar no seu recinto em condies de exceo.

    As meninas tambm so confinadas num ret (casa de palha) por ocasio da adolescncia. Quando ocorrea primeira menstruao, elas vo, pessoalmente, de casa em casa, comunicam discretamente a todas asmulheres da aldeia o acontecimento memorvel e, em seguida, so recolhidas a uma casa e ficamcompletamente isoladas do restante da tribo, em companhia da me e da av, por cerca de duas semanas.Durante esse perodo elas so instrudas sobre tudo quanto ser mulher. um momento em que a me e aav da nova adolescente choram em voz alta, declamando as suas queixas da mesma forma que acontecequando morre um parente muito prximo. O seu lamento se refere morte da menina, fato essencial paraque nasa uma mulher. Ao final desse perodo de recluso, a jovem sai, toda enfeitada de penas, vestidacomo uma diadom (donzela) e se faz uma grande festa na aldeia para comemorar o advento de mais umamulher (observao pessoal)

    O Masculino e o Feminino nas Danas Rituais

    Nas danas rituais da tribo, o homem se veste com as mscaras de palha (diass), as quais evocam osanimais totmicos da nao Caraj. Todo o restante do corpo fica igualmente coberto por uma vestimentatambm de palha. Formam pares, de braos dados, tendo na outra mo um marac que serve para marcaro ritmo das cantigas que entoam. Durante os cantos disfaram a voz para no serem reconhecidos, poisesse reconhecimento tambm implicaria uma desgraa para a tribo.

    As mulheres, por sua vez, devem ter um procedimento bem diferente. Elas danam quase completamentenuas, apenas com a vulva protegida por uma espcie da casca de rvore que se presta para este fim,partindo da cintura, vinda de trs para a frente.

    A pista de dana fica num ptio comprido que mede cerca de cinqenta metros de comprimento. Doishomens vestidos de palha ficam numa das extremidades e duas moas, tambm de braos dados, ficam naoutra. Os homens avanam caminhando ao ritmo dos maracs e dos seus prprios cantos, em passonormal. As moas fazem o mesmo e as duplas se encontram exatamente no meio da pista. Os rapazesseguem avanando e as moas recuam, caminhando agora de costas, sem olhar para trs. Os homens vo,

    page 6 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    aos poucos, aumentando a velocidade dos passos e as diadom fazem o mesmo. No podem ser tocadaspelos rapazes. Na tradio tribal, antigamente, quando isto acontecia, a moa era desvalorizadasocialmente, tratada como se fosse o que para ns equivaleria a uma prostituta. Levavam-na para a Casados Homens, onde ela era possuda por todos, talvez mesmo numa espcie de ritual de iniciao sexual.

    O Masculino e o Feminino nas Relaes de Casamento:

    Os ndios Carajs so habitualmente mongamos. Casos de poligamia so bastante raros e, segundo puderecolher de um informante abalisado, em geral no so bem vistos na cultura tribal. Conheci, numa dasvisitas que fiz aldeia de Sta. Izabel do Morro, o filho de um chefe famoso que havia morado, durantealgum tempo, na reserva indgena do Xingu, tendo a se casado com uma ndia Kamaiur. Ao voltar paraa sua tribo, trouxera a esposa, juntamente com a me desta, com quem se dizia, que estava tambmcasado. Nunca tive conhecimento de casos de poligamia por parte das mulheres.

    Segundo o meu informante, existem entre esses ndios dois tipos de casamento: com briga e sem briga.No primeiro caso a noiva escolhida pelos pais da rapaz e quando este ainda um adolescente, crianamesmo. Consumados os rituais da adolescncia, o casamento feito, em geral com uma grande festa naaldeia, para a qual so convidados, inclusive, as pessoas das outras aldeias.

    De acordo com o costume Caraj os homens devem se mostrar tmidos e envergonhados por ocasio dacelebrao das bodas; fogem para o mato e de l so trazidos nos ombros de um padrinho complacenteque faz o papel de algum que procura convencer o noivo de que deve se casar mesmo. Hans Dietschy,num artigo intitulado Lhome honteux et la femme crampon, confirma esta informao. Refere que porocasio dos rituais do casamento o noivo deve se mostrar acanhado, em geral mais tmido do que a noiva; freqente que ele se esconda logo depois da cerimnia na Casa dos Homens, s retornando desse lugardepois de alguns dias. Isto no quer dizer, segundo esse autor, que entre esses ndios a vergonha do noivoseja apenas institucional; a hesitao em se casar reafirmada por outros autores (Baldus, citado porDietsch, por exemplo), acrescentando que o celibato favorecido pelo amor das vivas simpticas.Segundo Krause (tambm citado por Dietsch) os homens caraj tm medo, no de sua me, que afetuosa, mas da esposa do seu pai, no desejando conhecer a mesma sorte deste ltimo (Dietschy,1974).

    Em seguida ao casamento o homem passa a morar na casa dos pais da moa, onde permanece por um anoou mais, at construir, com a ajuda dos amigos, o seu prprio ret (casa de palha).

    No segundo caso (casamento com briga), o homem escolhe, ele mesmo, a mulher por quem, em geral,apaixona-se. Foge com ela e passa alguns meses no floresta, morando fora da aldeia. Um dia, os doisresolvem voltar e so recebidos com hostilidade pelos parentes da jovem; o marido surrado por estes e,depois de resolvidos os desafetos, ento providencia-se a festa, que ocorre como de costume. A tradioda tribo matrilinear.

    Sobre um Conceito de Beleza entre os ndios Carajs

    Pude constatar que os conceitos de esttica desses ndios no so exatamente iguais aos nossos. No queeles no valorizem a beleza fsica. Um ndio forte, alto e bonito chama a ateno, inclusive entre elesmesmos. Uma jovem (diadom) de seios bonitos, cabelos bem cuidados e vestida a carter ilumina a

    page 7 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    fisionomia de todos com um sorriso de orgulho e de prazer. Mas para o ndio Caraj, contou-me certa vezo meu informante, a beleza da mulher se mede, predominantemente, pela sua habilidade como ceramista.Uma mulher que sabe fazer um bom trabalho artesanal, que tem familiaridade com o manejo do barro, sobretudo respeitada, admirada e desejada como esposa para ser casada com um filho.

    O Masculino e o Feminino em Relao ao Fenmeno da Couvade:

    O fenmeno da couvade entre esses ndios nos permite algumas observaes interessantes sobre asrelaes entre o masculino e o feminino. Em trabalho anterior j dediquei uma extensa considerao aesse fenmeno (Azoubel, 1992). Vou resumir alguns dos seus aspectos.

    Por ocasio do nascimento de uma criana, ocorre um esforo da parte do homem para tentar definir o seupapel como pai. A mulher tem a seu favor, nesse momento, todo o apoio da natureza, e as evidnciasprovocadas pelas modificaes corporais da gravidez no deixam a menor sombra de dvida de que ela ,realmente, a me. O mesmo no se passa, contudo, em relao ao pai. Ele , no dizer de Meltzer(Meltzer, 1990), um sujeito putativo. A couvade tem caractersticas peculiares em cada cultura. Entre osndios Caraj o homem se submete a dietas rigorosas depois do nascimento de uma criana; praticaescarificaes no corpo (nas costas e nas pernas), sangra bastante (procurando eliminar o sangue ruim),deita-se na esteira, nela permancendo, ao lado da mulher. Quando se trata do primeiro filho, esseresguardo bastante prolongado e muito mais rigoroso. No decurso do mesmo, lana mo deexpedientes que parecem ter a finalidade de aproxim-lo do sofrimento da mulher durante o parto: vai aorio e ingere muita gua, at que a barriga fique to grande, como se estivesse realmente grvido; estimulaento o reflexo do vmito e, com grande esforo e estardalhao, pe para fora todo o lquido ingerido;repete esta operao por diversas vezes, at que os vmitos apresentem resqucios de sangue. Depois dealgum tempo da primeira escarificao, torna a fazer uma segunda, deixando novamente o sangueescorrer em abundncia e esfrega pimenta sobre os cortes recm-abertos na pele. Tudo deve ser feito commuita coragem e desprendimento, suportando estica e valorosamente as dores porque a crena vigente a de que essa prova de fora e masculinidade transmite ao filho o vigor de que ele necessita para crescerdentro dos padres idealizadamente desejados pela tribo. Durante os primeiros dias de dieta, marido emulher devem alimentar-se somente do calugi, uma mistura de mandioca, milho e mel de abelhas.

    Tanto o pai como a me exercem um papel protetor em relao criana, porm o primeiro se diferenciacomo o provedor do alimento, enquanto a me o alimento em si. Mas, quando a criana tem dificuldadepara ser amamentada e no existe uma outra parturiente que possa suprir a deficincia da me, o calugitambm usado para aliment-la.

    Curiosamente, nos primeiros anos de vida, em se tratando de um filho homem, o pai perde o nomeprprio e passa a ser chamado pai de fulano. Este dado de observao pessoal, mas encontrei em Aytai(1979) uma confirmao da minha observao.

    Segundo Aytai (1979), quando um casal se separa, em casos de infidelidade da mulher, os filhos ficamsob a custdia do pai.

    A Gravidez, o Parto e o Puerprio

    page 8 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    O diagnstico de gravidez se faz com a cessao da menstruao, a qual atribuda influncia da luanova e o enjo tambm considerado como um sintoma de gravidez. Mas a vida da mulher continua semmudanas muito significativas.

    As relaes sexuais no so evitadas durante a maior parte da gestao; somente no final, quando aprpria situao fsica da mulher as tornam incmodas.

    Existem alguns tabus alimentares: durante a gravidez, nem a mulher nem o marido podem comer bananadupla porque isto determinaria o nascimento de gmeos. Mas esse tabu no se restringe gravidez; desdea infncia, tanto a menina como o menino evitam comer esse tipo de banana para no incorrerem,futuramente, numa gravidez gemelar.

    H um outro tabu que se refere ao fumo: durante o perodo de gestao a mulher deve deixar de fumarcachimbo porque, se o fizer, a criana ir nascer babando muito.

    Os desejos da mulher Caraj enquanto grvida no so muito diferentes daqueles das suas irms do nossomundo. Elas anseiam por alimentos raros e os maridos, iguais aos nossos, esforam-se ao mximo parasatisfaz-las, temerosos de que algo possa acontecer ao beb, caso no o consigam. Numa das lendassobre um mito de origem desses ndios, a mulher do chefe desejou um alimento difcil de encontrar e foi na procura desse alimento que o chefe descobriu o buraco que dava acesso superfcie das guas (a lendaconta que os Caraj antigamente moravam no fundo do rio Araguaia, numa espcie de paraso ondeningum adoecia, ningum morria).

    So muitas as recomendaes realcionadas com as proibies tabus: recomenda-se que, durante agravidez, a mulher deva amarrar o cabelo com um fio de algodo nativo, juntando-o num feixe nicoporque, se fizer vrios ns nesse fio, estes amarraro o feto, dificultando o nascimento na hora do parto.

    A previso do sexo da criana que vai nascer constitui matria de interesse e especulao na aldeia.Quando a me deseja que nasa uma menina, passa a usar, durante toda a gestao, um certo tipo deconcha bivalva como colher; quando ela deseja que nasa um menino, usa um outro tipo de concha quetem uma salincia no meio.

    O parto se processa em casa mesmo, com a ajuda de uma parteira (sadekadu) e na presena da me oude uma tia, que para dar coragem parturiente. Esta toma uma espcie de ch feito de uma plantasilvestre chamada, na lngua Caraj - do e que em portugus conhecida na regio com o nome demutumba (trata-se de uma esterculeacea). Os ndios usam, no seu preparo, o maxilar esquerdo de umapiranha, queimado-o e reduzido-o a um p negro.

    A parturiente ajoelha-se sobre uma esteira e tem s suas costas, na mesma posio, a parteira (sadekadu) ena frente sua me (nadi) ou uma tia. A parteira abraa-a por trs, exercendo forte presso sobre o seuventre quando os movimentos expulsivos se iniciam. Em geral, o parto se processa facilmente e, empouco tempo, nasce uma criana. Todavia, quando o trabalho de parto se complica, chamam o feiticeiro(oroti-bedu) que entoa cantos mgicos para auxiliar o parto e, ao mesmo tempo, desfaz os ns do fio dealgodo que prende o cabelo da jovem, os quais, segundo a crena da tribo, teriam sido feitos por umoutro feiticeiro. Quando este procedimento no suficiente, o oroti-bedu intervm, procurando reverter aposio do feto dentro do tero para permitir o seu trnsito pelo canal do parto.

    page 9 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    O corte do cordo umbilical constitui um momento crtico importante porque a que podem surgirrivalidades entre a tia e a me da criana, ou mesmo com a av, disputando o privilgio de executar aoperao. Mas a tia materna, geralmente, quem recebe a incumbncia de enterrar a placenta longe dacabana (ret). E ela tambm quem d o primeiro banho na criana, usando para isto uma panela de barro(xatxiwi).

    Terminado o trabalho de parto, a me se levanta e se lava com gua quente trazida numa cabaa,repetindo esse banho ritual nos dias subseqentes. Em seguida permanece deitada na esteira por trs dias,sem se alimentar absolutamente de nada. Antigamente esse tempo era de cinco dias. Foi, aos poucos,havendo um afroxamento da tradio.

    Sobre a Lactao e a Amamentao

    A amamentao se inicia depois de dois ou trs dias do nascimento. A partir do terceiro dia, a me sealimenta de calugi, um alimento que preparado especialmente para situaes de convalescena e dedieta ritual. No come nem carne, nem peixe e esta restrio igualmente vlida para o marido. Quando amulher no tem leite, a criana , de hbito, amamentada por uma outra me que estiver amamentando;quando no ocorrer essa possibilidade, o que bastante raro, ento o recm-nascido passa a seralimentado tambm com o calugi.

    Quando a me no tem leite suficiente, usa um preparado feito de uma planta da regio que os ndiosCarajs chamam de marti (Emphorbia brasiliensis L.); as folhas so amassadas e esfregadasdelicadamente na pele dos seios; a operao repetida durante alguns dias. Segundo Aytai (1979), aquem devo a grande maioria destas informaes, foi constatado por observadores que viveram entre osCarajs que essa planta tem, realmente, uma ao lactante efetiva e no somente quando aplicada sobre apele dos seios das mulheres que acabaram de dar luz; mocinhas que nunca pariram e mesmo velhas quea usaram com o fim de produzir lactao, comprovaram a sua eficcia. A amamentao costuma durar dequatro a cinco anos.

    Sobre Alguns Mtodos Anticoncepcionais

    Os procedimentos anticoncepcionais dos Carajs dependem, em sua maior parte, de sua medicinaprimitiva. Costumam preparar um remdio extrado da casca de uma rvore que funciona como abortivonos primeiros meses de gravidez e, normalmente, como anticoncepcional. Essa rvore se chama, em sualngua, raradokone (rarad = rvore) (Fortune, 1973). Retiram dela uma casca grossa que amassadainsistentemente no pilo, adicionando-se gua, na temperatura ambiente; acrescenta-se infuso omaxilar esquerdo da piranha (juhyt - Ju, em Caraj significa dente). O osso queimado e pulverizadoigualmente no pilo, at formar um p preto. As ndias velhas so mais dedicadas ao preparo dessasmedicinas e mais hbeis para faz-las.

    Em tom jocoso, comenta-se na aldeia que o sofrimento do homem durante a couvade tambm funcionacomo mtodo anticoncepcional.

    Sobre a Escolha do Sexo da Criana

    page 10 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    Os Carajs acreditam que certas prticas mgicas so eficazes no sentido de determinar a escolha do sexode um filho que vai nascer. Recomendam, para isso, certos procedimentos. Um deles consiste em a mecolher aderina, uma fruta silvestre, caso deseje um menino. Curiosoamente, como assinala Aytai em suaObstetrcia Caraj (Aytai, 1979), na lngua desses ndios, a palavra aderana significa prostituta. Aforma aparente da fruta pode ser associada a um smbolo flico. Segundo a crena dominante, o ato deesfregar o produto dessa colheita no ventre da gestante, fazendo movimentos circulares de uns vintecentmetros de dimetro, tem o poder de virar o sexo da criana.

    Um outro produto vegetal, a semente do urucum, a mesma que os ndios usam para retirar dela a tinturacom que pintam o corpo para as festas e danas rituais, teria igual poder, porm em sentido contrrio - ode transformar um menino numa menina dentro do ventre da me. Deixam a semente de molho durantedois dias, at que perca completamente a tintura avermelhada; ento procedem da mesma forma,esfregando-a sobre o abdmem da gestante.

    Resultado idntico pode ser obtido com a semente do algodo (Gossypium sp.), com a qual fazem umapasta, adotando-se o mesmo procedimento.

    O Masculino e o Feminino em Relao Morte

    Homem e mulher tm atitudes diferentes diante da morte. Os homens so mais discretos, curtem a sua dordiante da perda de um parente prximo com lamentos mais silenciosos e com uma tristeza implcita. Asmulheres so barulhentas. Choram a morte de um ser querido com profundas e explcitas lamentaes,num choro cantado, em que ora exaltam as qualidades do morto num panegrico histrinico, ora acusamum feiticeiro distante (s vezes de uma outra aldeia), responsabilizando-o pelo mal ocorrido. Esse chorocantado se estende por muitas luas e, mesmo depois de anos, quando algo evoca a lembrana do morto,voltam a chorar da mesma forma. Tive oportunidade de presenciar, numa das minhas visitas aldeia deSta. Izabel do Morro, uma mulher velha e que havia perdido um filho recentemente, chorar e lamentar-seem voz alta, acusando a nora de ter sido responsvel, atravs de um feitio, pela morte do filho; a jovemestava ao seu lado, procurando consol-la, oferecendo-lhe comida. Perguntei ao informante se ela (aesposa) no se ofendia com aquelas acusaes e ele me disse simplesmente que no, pois sabia que aquiloiria passar.

    Antigamente os homens praticavam cortes e escarificaes no corpo em sinal de luto. Este costume podeser ainda observado, porm muito mais raramente naqueles que mantm ainda a tradio; todavia, acontaminao pelos costumes dos brancos (tori) tem feito, aos poucos, que a cultura se modifique, e osvelhos hbitos vo lentamente se diluindo, sendo postos em dvida, desaparecendo.

    O Masculino e o Feminino na Linguagem Oral

    Trata-se de um tema muito interessante e extenso, um campo aberto para os estudos de lingstica.Preciso limitar-me no entanto a um pequeno resumo, por questes de ordem prtica.

    Fortune e Fortune (1975)`, o estudaram mais profundamente, assinalando, com muita propriedade, que,apesar do contato com outra civilizao, os Carajs continuavam observando as regras bsicas dedistino entre as pessoas do sexo masculino e as do sexo feminino em relao linguagem falada.

    page 11 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    At os trs anos de idade as mes no insistem em que os mininos diferenciem a sua linguagem; a partirdessa idade, elas se tornam mais atentas e rigorosas quanto a esse aprendizado.

    Depois, por ocasio da adolescncia, quando o menino vai morar na Casa dos Homens, ele expressamente proibido de usar a linguagem oral feminina.

    Existem, no entretanto, algumas excees: no relato das lendas, por exemplo, quando um homem o seunarrador, ao se referir fala de uma mulher, ele deve expressar-se na linguagem feminina, o mesmoacontecendo em relao linguagem masculina quando uma mulher quem relata a lenda.

    Enquanto um homem est vestido de mscara, durante uma dana, a mulher que o reconhece no deve, dequalquer modo, pronunciar o seu nome.

    As palavras que foram assimiladas do portugus esto, igualmente, subordinadas s regras do sexo para alinguagem. Vou cit-las como ilustrao:

    Mulher Homem Portugus

    Kawaru Awaru Cavalo

    Karikbranike Aribranike Eu quero comprar

    Nobiku Nobiu Domingo

    As letras N e K , no incio ou no meio da palavra, determinam as principais alteraes e diferens entre alinguagem feminina e a masculina entre os ndios Carajs.

    O Masculino e o Feminino em Relao aos Mitos e as Lendas

    A mitologia dos ndios Carajs muito rica. Ela possui um acervo de lendas que nos permite umaaproximao privilegiada a um modo de pensar primitivo, bastante caracterstico do nosso selvagem, quese expressa nos costumes, no trabalho artesanal, enfim, na atitude do sujeito diante dos fenmenos davida e da morte.

    Para este estudo em particular, selecionei trs lendas, nas quais a adolescncia, tanto masculina comofeminina aparecem como tema central ou a partir dele. Do seu relato poderemos deduzir aspectosinteressantes e ilustrativos.

    Primeira Lenda: Como os djur viraram macacos

    page 12 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    Esta lenda foi contada pelo ndio Weheri e registrada em gravao pelo etnlogo Desidrio Aytai. O seuregistro consta dos arquivos do Museu Municipal de Paulnia (Aytai, 1979). Refere-se a uma proibiototmica: os Carajs no comem carne de macaco. Trata-se de uma explicao mtica que encontra o seuesclarecimento na lenda, a qual relata um aspecto relacionado com a passagem da adolescncia para afase adulta.

    conhecido que por ocasio do advento da puberdade os sujeitos do sexo masculino so recolhidos Casa de Aruan, tambm chamada de Casa dos Homens, Casa Grande ou, na sua lngua, de Het-kan.Esse momento de passagem acontece por ocasio da baixada das guas, quando termina a estaochuvosa (maro, abril) e coincide na aldeia com uma grande festa: a festa de Aruan, um antigo totem datribo. , rigorosamente falando, uma festa iniciatria.

    Weheri contou ao etnlogo Desidrio Aytai que os djur (adolescentes) haviam sido deixados vontade,brincando entre si e, num dado momento, quando os adultos encarregados de sua iniciao estavamdistrados, foram surpreendidos com a viso dos adolescentes se transformando em macacos. Tentaramimpedi-lo, porm muitos deles j tinham se transmutado nos smios e estavam pulando nos galhos dasrvores.

    Acontece que os djur costumam pintar-se durante a cerimnia do Het-kan com uma tintura degenipapo, enegrecida com carvo vegetal, adquirindo uma tonalidade preta na parte superior do tronco ena cabea. Essa maquilagem lhes d uma aparncia estranha, mas a representao mtica desse tipo depintura corporal se refere ariranha, nome do qual, na lngua Caraj, deriva a designao djur.

    Essa relao com os animais responsvel, na cermica figurativa, pela produo de um grande nmerode imagens combinadas (zoo-antropomrficas). Reflete, ao mesmo tempo, uma forma mtica depensamento, na qual se baseia a crena de que os animais e os homens mantm entre si possibilidades detransmutao, tanto num sentido, como no outro. Algumas dessas transformaes so admitidas apenasocasionalmente, enquanto outras so de possibilidades mais freqentes.

    Na lenda aqui evocada para explicar o tabu da proibio de comer carne de macaco, a adolescncia vistacomo uma fase de transformao em que o ser humano est mais vulnervel e sujeito a taispossibilidades.

    O que a lenda assinala, originalmente, que os djur estavam amarrados por uma corda e, quando foramsoltos, quer dizer, deixados a merc de sua prpria vontade, comearam a se transformar nos macacos. Acorda que os prendia ainda serviu para acrescentar-lhes o rabo, no relato de Weheri (Aytai, 1979).

    Segunda Lenda: As Filhas do Sol (Tchu)

    Segundo Peret (1979), Indianakatu, um aprendiz de feiticeiro (Oroti-bedu), um heri mtico, na tradioCaraj, resolveu um dia casar-se com as filhas do Sol (Tchu). Este era um poderoso feiticeiro e exigia,dos proponentes ao casamento, provas terrveis, das quais ningum escapava com vida. As jovens eramlindas e sedutoras, por demais cobiadas, mas todos as consideravam inacessveis. Indianakatu sugeriuum dia ao seu irmo, Alobederi, que ambos tentassem a tarefa considerada praticamente comoimpossvel. Alobederi, menos inteligente e ousado, demonstrou claramente os seus receios. Bem que elegostaria, mas... e as tarefas?... Indianakatu ouviu o irmo, tratou de tranquiliz-lo, expressando uma

    page 13 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    confiana que o outro no tinha. Sugeriu que comeassem a preparar os presentes.

    Apresentaram-se ao Sol e anunciaram-lhe o seu desejo, ofertando-lhe os adereos que haviam preparado.Tchu gostou dos presentes e advertiu a ambos que teriam que passar pelas temveis provas. Caso dessemconta de realiz-las, ento o casamento poderia ser feito. Do contrrio, teriam o destino dos demais.

    Primeira tarefa: os dois irmos deveriam trazer piranhas vivas, pois o pai gostaria de preparar um remdiopara as moas no dia do casamento.

    Indianakatu e Alobederi saram pensativos. Todos sabiam que as piranhas eram de extrema ferocidade ejamais tinham se deixado apanhar vivas. No sabiam como aquilo poderia ser feito. Alobederi pensou emdesistir logo de incio. Indianakatu, que era o mais persistente, persuadiu-o a esperar mais um pouco.Usando dos seus poderes mgicos, consultou os aruan e depois de muito refletir teve uma idia: colher leite de mangabeira e banhar-se com o mesmo, deixando que coagulasse em contato com a pele. Dessemodo, formou-se uma camada protetora de borracha em torno do corpo dos dois irmos. Feito isto,entraram no rio, num remanso onde sabiam que estava cheio de piranhas e foram logo atacados por elas.As piranhas, na medida em que os mordiam, ficavam presas pelas mandbulas. Ao sarem da gua, tinhamo que desejavam. Exultando de alegria foram presena de Tchu que os recebeu com uma pontinha decontrariedade. Aceitou os peixes e guardou-os para us-los quando fosse necessrio.

    Segunda Tarefa: Deveriam colher o mel de tatara. As tataras eram uma espcie de abelha, to ferozes noar como as piranhas o eram na gua, talvez um pouco mais. Como realizar esta tarefa? NovamenteIndianakatu ps-se a pensar. Passou um dia inteirinho observando uma colmia de tataras que ficava nocume de uma rvore muito alta, a almiscareira. Essa rvore deixava cair no solo um lquido dotado de umpoder custico to violento que nada nascia em redor do local por onde esse lquido se espalhava. tardinha Indianakatu observou um bando de andorinhas que mergulhavam alegremente, fazendo um vorasante para beber gua no rio. Resolveu pedir-lhes ajuda e, mais uma vez, usando do seu poder defeiticeiro, pediu a esses pssaros que comessem as abelhas, esvaziando completamente a colmia. Elasatenderam ao seu pedido e, em seguida, ele sugeriu que derramassem a gua colhida no rio em torno darvore, diluindo a resina que tudo queimava, impedindo mesmo qualquer aproximao ao local. Dessemodo foi possvel subir na rvore e colher o mel em cestas feitas com folhas de bananeira.

    Os dois irmos compareceram novamente diante do Sol e presentearam-lhe com o produto documprimento da tarefa. Tchu recebeu a oferta com sinais manifestos de preocupao e mal humor.Aqueles dois estavam se tornando um perigo para as suas intenes, que eram as de no ceder as filhaspara ningum. Consolou-se com a perspectiva de eles se sarem mal no prximo trabalho.

    Terceira tarefa: Tchu determinou que deveriam trazer coti (fumo) para, no caso de haver o casamento,preparar os rituais necessrios cerimnia. Havia, no entanto, uma condio: o fumo deveria ser colhidona horta do velho feiticeiro. Indianakatu e Alobederi saram, dessa vez, deprimidos. Todo o mundo sabiaque a roa de Tchu era protegida por plantas carnvoras gigantes e no se tinha notcia de algum que,tendo entrado nela, houvesse sado com vida. Por um momento acharam aquela prova impossvel.Passado algum tempo, Indianakatu, o mais otimista, comeou a estudar a possibilidade de tudo dar certo;precisariam ter muita calma e andar juntos; assim um protegeria o outro, caso algum fosse envolvidopelos tentculos de uma daquelas temveis plantas. E assim o fizeram. Conseguiram penetrar por entre osarbustos, cuidando para que no tocassem nas plantas carnvoras. As coisas iam bem, mas, quando

    page 14 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    chegou num certo ponto, ouviram gemidos que pareciam de gente sendo devorada lentamente. Ambos seassustaram e Indianakatu recomendou ao irmo que se mantivesse tranqilo, porm, quando olhou paratrs, Alobederi estava sendo envolvido nas folhagens de uma dessas horrveis plantas. Tentou salv-lo,num esforo enorme, mas foi tambm envolvido. Por sorte as filhas do Sol, que comeavam a sentirsimpatia pelos dois jovens, sabendo dos perigos que correriam e das dificuldades que enfrentariam paracumprir a exigncia do pai, vinham atrs deles sorrateiramente, acompanhando-os e salvaram-nos dasituao aflitiva em que se encontravam. Sabiam que seu pai no iria aprovar a sua conduta, masresolveram, de qualquer modo, ajud-los. Foi assim que os irmos conseguiram colher o fumo que lhesfoi pedido.

    Tchu, o Sol, no gostou nada da interferncia das moas; como no havia estipulado as condies,manteve a palavra. Disse-lhes que haviam cumprido as tarefas e que agora podiam marcar o casamento,naturalmente com bastante tempo para que se preparasse uma grande festa na aldeia.

    No dia da festa os noivos, pintados no corpo com tintura de genipapo e de urucum, enfeitados de penas,ficaram ainda mais deslumbrados com a beleza das jovens, duas lindas diadom. As danas vararam anoite e pela manh os nossos heris quiseram levar as noivas para o mato, pois estavam ansiosos paraterem relaes com elas. Alobederi no cabia em si de impacincia; Indianakatu, qual um Prometheuindgena, quis ser prudente e ordenou ao irmo que esperasse um pouco mais. Convidou ento osmacacos para que as desvirginassem. Estes, felizes da vida, com grande alarido, correram e atenderam aoseu pedido. Mal as tinham penetrado, comearam a emitir gritos de dor e saram correndo pela floresta,saltando nas rvores; tinham a glande sangrando, vermelha, em carne viva. Indianakatu percebeu entoque o velho feiticeiro queria vingar-se deles e havia introduzido piranhas na vagina das moas.Aconselhou-se com o Jaburu, uma ave da famlia das Ciconceas, que lhe ensinou como deviamproceder. Colheu varas de timb, uma planta da regio que contm um alcalide ictiotanatizante, macerouum pouco as pontas das varas, chamou as moas para tomarem banho no rio e, durante o banho,introduziu as varas na vagina delas. As piranhas, entorpecidas, comearam a sair e os dois puderam terrelaes com as suas jovens esposas. Diz, no entanto, a lenda que ficaram, no obstante, algumaspiranhas, muito pequenas, dentro da vagina e so elas que, de tempos em tempos, quando se enfurecem,mordem a mucosa nas entranhas das mulheres, provocando um sangramento peridico - a menstruao.

    Terceira Lenda: O Segredo das Mscaras

    Segundo uma verso recolhida por Joo Amrico Peret (Peret, 1979), Amdciuala, um garoto Caraj,deveria, naquele tempo, juntamente com outros garotos j bem desenvolvidos, ser transferido da casa dospais para a Casa dos Homens, onde ficam guardadas as mscaras usadas nas danas e rituais da tribo. Suame, entretanto, era demasiado apegada a ele e relutava em aceitar essa separao. Revoltada,questionava o tempo todo se aquilo era mesmo necessrio, no escondendo de ningum o seuinconformismo. Justamente agora, quando o menino estava mais apegado a ela, queriam retir-lo do seuconvvio. Punha em dvida, numa atitude desrespeitosa, uma tradio que sustentava um costume muitoantigo, desde quando ningum sabia. Dizia para as outras mulheres que aquilo era uma inveno doshomens que tinham cimes do amor que os filhos tinham para com as mes e assim arranjavam um jeitode afast-los do seu convvio.

    Uma noite, quando toda a aldeia estava dormindo, levantou-se de sua esteira e foi, caminhandofurtivamente, at Casa de Aruan. Queria rever o filho, conversar com ele, t-lo novamente nos seus

    page 15 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    braos. L chegando, sussurrou seu nome. Andciuala, adormecido, despertou ao ouvir, mesmo baixinho,o seu nome, pronunciado nas caladas da noite por uma voz to conhecida. Esgueirou-se por entre oscompanheiros, foi para fora do ret e, louco de saudades, jogou-se nos braos da me. Os dois seafastaram um pouco e comearam a conversar. Ela queria que ele lhe contasse tudo o que estavaaprendendo, nos mnimos detalhes. O garoto relutou enquanto pde mas, no resistindo ao pedidomaterno, revelou-lhe o segredo das mscaras, dando-lhe assim elementos para que o reconhecesse sob avestimenta de palha que representava um animal totmico e que jamais poderia ter sido revelado a umamulher.

    Nesse momento, ouvindo um barulho, o guardio das mscaras despertou e no tardou em se dar contado que estava acontecendo. Enfurecido, brandindo o seu basto, comeou a gritar aterrorizado, acordandotoda a tribo. Acusava as mulheres de terem profanado um costume to antigo e do qual, segundo a crena,dependia a segurana de todos. Os homens comearam a bater nas mulheres, maltratando-as,prostituindo-as, matando-as. Ao mesmo tempo, o cu ficou completamente escuro e cau uma tempestadesem precedentes, com raios e troves, destruindo completamente a aldeia e exterminando a todos.

    Discusso e Algumas Consideraes Psicanalticas

    No interjogo das relaes objetais, macho e fmea se misturam e se fundem, confundem-se ecomplementam-se fsica e mentalmente. Do caldeamento dessas relaes resultam reaes e conflitos,tentativas de adaptaes e definies. Atribuem-se mutuamente, o tempo todo, os prprios desejos eobjetos, introjetando-os, projetando-os e reintrojetando-os incessantemente. Buscam discriminaes,conseguindo-as apenas parciais e incompletas.

    Quando Zeus decidiu castigar os humanos, mandou que fizessem Pandora - aquela que tinha um pouco detodos os deuses. Prometeu, o prudente, recusou-se receb-la como esposa. Pandora trazia consigo umvaso que, ao ser aberto, espalhou pelo mundo todas as mazelas. Mas Pandora tambm trazia a diferena,confrontando o homem, ou seja, o seu pensamento (quando este apenas estava comeando), com umatarefa das mais difceis (Lafer, 1991). Imerso no narcisismo de uma infncia mental, o ser humano nemsabia ainda distinguir: via mas no enxergava, sentia sem saber o que sentia. Prometeu, segundo o mitogrego, tornou-se o fundador da espcie humana por ter ensinado aos homens os conhecimentos bsicos eessenciais para lhes dar algum poder de discernimento. A questo, todavia, persiste ainda nos nossosdias: em que estgio se encontra a nossa capacidade de discriminao? Temos motivos para supor que elaainda no fez grandes progressos. Isto se reflete e se comprova nas relaes entre o homem e a mulher,em todas as relaes em que a intimidade deseja, procura e quer aprofundar-se. Os des-entendimentospresidem essas relaes.

    A definio da identidade de gnero no ser humano foi se complicando na medida em que o processocivilizatrio tambm foi avanando. No se trata atualmente de saber apenas quem um homem e quem uma mulher. Trata-se, muito mais, de tentar saber o que o masculino e o que o feminino - tanto numhomem, como numa mulher.

    Foi com este objetivo que recorri ao estudo de uma cultura primitiva, escolha de um povo selvagemque, apesar de j parcialmente aculturado, guarda em si, com notvel poder de tradio e fidelidade, ostraos essenciais de suas origens.

    page 16 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    A questo da identidade de gnero, em qualquer povo, todos ns sabemos, no , estritamente falando,uma questo puramente biolgica. A cultura exerce um poder modelador que no se restringe superfcieda estrutura mental dos seus componentes e que se expressa atravs de comportamentos e manifestaesinconscientes os mais variados.

    A descoberta do inconsciente (Freud, 1915) pela psicanlise abriu uma porta para a investigao dosprocessos mentais mais profundos, permitindo novos questionamentos sobre as motivaes instintivas nosseres humanos, ao mesmo tempo que nos obrigou a pensar numa enorme quantidade dedesconhecimentos. Isto se tornou bem evidente em Totem e tabu (Freud, 1913), quando os conceitospsicanalticos foram, pela primeira vez, aplicados ao estudo de povos primitivos.

    Quando um paciente est em anlise, no nos basta saber se ele homem ou mulher. Na grande maioriados casos a simples viso macroscpica do sujeito nos d alguma indicao sobre o seu gnero,biologicamente falando. Todavia, quando mergulhamos na trama de suas relaes inconscientes,descobrimos confuses significativas implicadas nesse processo de identidade de gnero, confuses emgeral desconhecidas pela prpria pessoa e, muito mais, adentramos-nos nas interferncias que taisindefinies acarretam sobre o seu relacionamento - consigo e com os demais. Este delineamentoinstrumentaliza a nossa possibilidade de compreenso das suas relaes conjugais, das suas escolhasobjetais. Condies particulares, como o homossexualismo, por exemplo, requerem uma apreciaomais pormenorizada a respeito do que o masculino e do que o feminino num determinado sujeito. Maso estudo das perverses por certo tambm se beneficiaria de um aprofundamento desta questo.

    Acontece que a libido, nos seus primeiros estgios de desenvolvimento, no parece conduzir a umadiferenciao genrica. Restaria, contudo, sabermos se o desenvolvimento da oralidade exatamenteigual para o homem e para a mulher. Menino e menina sofrem as mesmas vicissitudes nas etapaspr-genitais do seu processo libidinal? verdade que as diferenas sexuais so percebidasconscientemente muito cedo (em torno dos trs, quatro anos de idade, talvez mesmo antes); ser que essadescoberta essencial interfere na formao de uma identidade psquica de gnero? Existe ainda umaquesto levantada pelo fenmeno da cena primria: como ser que se processam na mente da criana asfixaes que iro influir na definio de uma sexualidade prpria do macho ou da fmea? Trata-se de umcampo de investigao interessante e desafiador, sobre o qual no poderia me estender muito nestemomento. De qualquer modo, de se supor que a moldagem cultural seja bastante precoce, incidindosobre a criana desde o nascimento, o que levanta tambm uma questo inversa: a da influncia da culturainterferindo na evoluo da libido desde os momentos iniciais: o azul e o rosa pintam o quarto do bebque ainda vai nascer; emprestam s suas roupas, o colorido de uma sinalizao que j aponta, muitoprecocemente, para as expectativas sociais relacionadas com o que ser macho e o que ser fmea. Masno apenas as paredes do quarto e as roupas que so coloridas pelo simbolismo das cores; as atitudes dosadultos ao seu redor tambm o so.

    Para Freud, como j foi assinalado na introduo deste trabalho (Freud, 1924), o masculino e o femininoestariam essencialmente em relao com a resoluo do complexo de castrao e suas conseqncias,tanto para o homem, como para a mulher. O que vai se tornando mais claro que a identidade psquica dognero no depende apenas da presena ou da ausncia do pnis real, do pnis como um rgo fsico esim das expectativas mentais em relao com o pnis e com a vagina em ambos os sexos. A presenafsica do pnis pode passar a um plano secundrio, dependendo da atitude emocional do sujeito emrelao a esse rgo, num sentido flico.

    page 17 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    O que se pode dizer que, no processo evolutivo (filogentico), enquanto as funes macho e fmeaestiveram predominantemente a servio da procriao, a identidade sexual poderia ento ser definida emtermos da presena de rgos genitais diferentes; a partir do momento em que as relaes de objeto foramse complicando, foi o sentimento de ausncia do pene-trante ou o perigo de sua perda que passou categoria de um fator mobilizador. A estruturao dos conceitos tornou-se, desse modo, umaconseqncia desse fator; mas no uma conseqncia apenas consciente. escolha da Biologiaacrescentou-se uma escolha emocional, fortemente determinada pelos desejos inconscientes, o que trouxeuma complicao considervel.

    Para mim, particularmente, muito difcil manter a psicanlise aprisionada dentro do setting clnico. Asreflexes que o trabalho clnico me provocam so por demais instigantes. Sinto a necessidade de lev-lascomigo, de estend-las a observaes sobre a vida de povos primitivos. Foi este anseio o que meaproximou dos ndios Carajs. Comecei me interessando pela sua cermica figurativa e, para descobrir osseus significados, terminei enveredando por suas lendas e mitos.

    A diviso do trabalho entre os ndios Carajs pretende definir, de uma forma bem delimitada, o masculinoe o feminino. Em se tratando de um povo primitivo, essa delimitao parece se fazer sem conflito. Existeum caminho traado pela tradio, a qual exerce um poder de imposio que no deixa margem paradvidas e questionamentos. Isso no ocorre numa sociedade civilizada como a nossa. As mulheresocupam cada vez mais, em relao s suas escolhas profissionais, lugares que, at alguns anos, eramocupados exclusivamente pelos homens. Contudo, parece haver sinais de insatisfao. Lembro de umapaciente que num dado momento de uma sesso me disse que eu no podia saber do que ela estavafalando porque um homem no poderia ter, segundo ela pensava, a dimenso do que era ter asresponsabilidades domsticas de uma mulher. Suponho que estava se referindo s suas angstias por sermulher. Tinha que trabalhar, atender pacientes, dar conta de um grande nmero de tarefas e ainda cuidardos filhos, da comida, das empregadas, da casa. Evidenciava na sua queixa, ao mesmo tempo, um esforopara manter aquelas caractersticas que so, em nossa cultura, consideradas como femininas e, por outrolado, ter que exercer um trabalho que ela sentia como masculino. Sabia que se tratava de uma escolha sua,mas isto no a impedia de se sentir revoltada contra as exigncias de ter que exercer uma funo dupla.Penso que no se trata apenas de uma questo cultural; o que ocorre uma certa indefinio pessoal deidentidade de gnero. A minha paciente, s vezes, comparece sesso vestida de tal modo que os seusatributos fsicos femininos quase desaparecem completamente - e ela uma mulher bonita, com umcorpo bem modelado, atraente; outras vezes, no entanto, quando a hostilidade em relao feminilidadeque exala do seu ser est mais apaziguada, ela vem com uma saia e uma blusa mais justas, um poucodecotada, deixando mostra, bem mais tranqilamente, um corpo de mulher.

    Para o ndio do sexo masculino, na tribo Caraj, a noo de trabalho parece ter, em seu conceito, umadimenso predominante imediatista. verdade que no se pode afirmar isto, rigorosamente falando, emrelao lavoura, que praticada de forma rudimentar, mas o que se verifica que esses silvcolas solaboriosos e cooperativos, desde que tenham em vista um objetivo relativamente prximo - uma festa, porexemplo. Normalmente, pescam e caam o necessrio ao seu sustento, exercem uma atuao at certoponto predatria na apreenso indiscriminada de ovos de tartaruga que so abundantes nas margens do rioAraguaia. Todavia, quando no tm um motivo mais premente, passam o dia ociosamente, cuidando docorpo que, para eles uma preocupao dominante - em geral so dotados de uma boa dose denarcisismo. Os adolescentes se exercitam o tempo todo nos jogos de luta livre e treinos de danas.

    page 18 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    No que se refere educao das crianas o que costuma ocorrer um processo de identificao protegidoe reforado pelos ideais da tribo. Os relatos das estrias contadas pelos mais velhos contribuem, por certo,decisivamente para formar no pequeno ndio uma mentalidade Caraj.

    Notam-se, no entanto, sinais de conflitos culturais j bem evidentes, pela introduo de instrumentos(relgios de pulso, rdios de pilha, facas e instrumentos agrcolas), porm, sobretudo pelosconhecimentos sobre a vida e os costumes dos civilizados; desde alguns anos, a televiso j comea ainvadir as aldeias. Essa influncia exerce uma ao por vezes devastadora sobre a cultura indgena.Dificilmente pode ser detida, pois muito fcil e prtico substituir uma panela de barro por utenslios dealumnio e os tecidos fornecidos pela FUNAI (Fundao de Amparo ao ndio) exercem sobre osselvagens um fascnio irresistvel, tornando pouco atraentes e obsoletos aqueles manufaturados com oauxlio da roca primitiva que eles usam. Esta questo bem mais ampla quando se trata da preocupaocom a sobrevivncia de uma cultura intensamente ameaada pela proximidade e convvio com uma outra,mais avanada. Lamentavelmente, sob este aspecto (alm de outros), todas as nossas tribos indgenasesto ameaadas por uma espcie de genocdio cultural.

    Com respeito ao casamento, o que se verifica uma inverso de valores quando tomamos os nossoscostumes como referncia: o homem e no a mulher quem se mostra tmido e envergonhado, foge parao mato e permanece escondido at que o padrinho o traga de volta, nos ombros. O que significa essatimidez do homem? Parece relacionar-se com um certo medo mulher, vista nas lendas, s vezes comopossuindo uma vagina denteada, cheia de piranhas. Mas esse medo mulher tambm encontrado emnossa cultura e os pacientes neurticos o expressam atravs de quadros psicossomticos ou de suasneuroses. A impotncia sexual que precede ao casamento ou sucede a este constitui uma manifestao deordem fbica que pode ser, em alguns casos, atribuda ao medo de ser castrado durante uma relaosexual. Isso tambm pode ser observado em adolescentes, por ocasio da primeira relao sexual. Lembrode um paciente que se mostrava muito inseguro e temeroso sempre que tinha que iniciar uma nova relaocom uma moa. Para tranqilizar-se, deveria praticar um ritual masturbatrio que se repetia nas relaesseguintes, segurando o seu pnis com a mo e acariciando-o masturbatoriamente; somente depois desseritual que se sentia seguro o suficiente para penetrar a sua namorada.

    Os nossos padres de beleza vigentes na cultura ocidental, foram herdados dos ideais de esttica dosgregos. Aprendemos com eles as preocupaes e as medidas do belo. Suas obras de arte, deixadas comomodelos pelos seus grandes escultores, ainda hoje nos servem como padres olmpicos. Mas no devecausar estranheza que povos diferentes tenham padres diferentes. A cultura modela a esttica de acordocom as suas convenincias, oferecendo-nos exemplos de situaes que, em circunstncias diferentes, paraoutros povos, poderiam inclusive ser considerados como perverses.

    Durante a vigncia da couvade o que fica em relevo o esforo do homem para provar a sua paternidade.Esse esforo se faz, entre os Carajs, principalmente pela via da identificao com a mulher. A invejamasculina fica amplamente comprovada nessas condies. O homem busca, atravs dessa identificao,repetir, magicamente, no seu corpo, o fenmeno da gravidez pela vertente dos seus aspectos femininos.Termina por caricaturizar em si o trabalho de parto, numa tentativa desesperada de reafirmao de umafuno que tambm reinvindica para si. Procura reproduzir no seu corpo uma moldagem absolutamentefeminina; submete-se a sofrimentos atrozes nessa busca. No so, todavia, somente os ndios Carajs quesofrem desse tipo de ansiedade. J observei em pacientes do sexo masculino, em anlise, algo muitoparecido: um dos meus pacientes engordou dez quilos durante a gravidez de sua mulher, exatamente o

    page 19 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    mesmo peso que esta tambm ganhou; num outro material clnico, o marido de uma paciente minhaconseguiu engordar vinte quilos nesse perodo, acompanhando igualmente a esposa. Ambos os casos sereferiam gestao do primeiro filho; no segundo caso o peso do marido diminuu depois do parto, mas,no primeiro, manteve-se por vrios meses.

    Os rituais e tabus alimentares durante a gravidez, o parto e o puerprio e as prticas anticoncepcionais, emsua maioria, so regidos pelo pensamento mgico que predominante nos selvagens. Toda a suamedicina est baseada na crena da magia e da onipotncia do pensamento. Mas isto no quer dizer que,na sua medicina rudimentar e selvagem, os ndios Carajs no tenham o conhecimento de ervas e plantasmedicinais que possuem uma ao eficaz e comprovada para determinados fins curativos.

    O mesmo parece ocorrer no que diz respeito ao controle da natalidade e quanto ao uso deanticoncepcionais de origem nativa. Os feiticeiros (oroti-bedu) so profundos conhecedores das plantas medicinais da regio e esse um conhecimento secular, transmitido s vezes secretamente aos iniciados.A presena desses feiticeiros requisitada quando o parto se complica e, s vezes, eles atuam comoobstetras hbeis, fazendo a manobra para inverter a posio da criana ainda dentro do tero. O que mais notvel, contudo, a sua atuao psicoterpica ao entoarem os seus cantos com o auxlio do marac,tranqilizando a parturiente e as pessoas por perto e favorecendo, de fato, em alguns casos, o nascimentoda criana durante um parto complicado. Eles j conhecem, ao seu estilo, o poder do uso da palavra, sabem que os seus poderes mgicos tambm dependem da forma como a usam.

    Na relao com a morte ficam evidenciadas todas as qualidades afetivas desses ndios. Reagem s suasperdas mais prximas com manifestaes de profundo pesar. No se deve pensar que o choro ritual dasmulheres, que se prolonga por tanto tempo (s vezes por dois ou trs anos) e que parece um simlacro,seja a representao de alguma espcie de fingimento, uma manifestao puramente automtica;corresponde a uma peculiaridade de um povo, estabeleceu-se e foi se estruturando atravs dosmecanismos pelos quais os costumes se fixam. Faz parte de um processo de elaborao do luto (Freud,1913). At alguns anos atrs era de uso entre ns o costume de usar uma faixa preta no brao ou na lapela,ou mesmo vertir-se de preto por ocasio da morte de um familiar. Algumas mulheres, aquelas maisreligiosas, usam essa cor pelo resto da vida depois da morte do marido, de um pai ou de uma me,principalmente. So os nossos costumes que, como os dos ndios, destinam-se, em parte, a umacomunicao aos outros de que estamos de luto, partindo porm de uma tentativa de conceituar, oumelhor, de realizar, internamente, os nossos sentimentos. O preto do luto deve expressar a renncia vaidade, o compromisso auto-firmado de abrir mo dos prazeres da vida, em sntese, uma aproximao,eu diria mesmo uma identificao solidria com a morte e com o morto; o lamento da ndia Caraj tem omesmo significado. J li sobre relatos de que uma lembrana do defunto, depois de vinte anos de ocorridaa morte, foi suficiente para determinar nas mulheres da tribo, em coro, a reativao desses lamentosfnebres.

    Ehrenreich (1948), num estudo sobre a etnologia brasileira, focalizando o nosso ndio, descreveu ocostume de praticar cortes no corpo em sinal de dor pelo falecimento de um parente. Examinando essefenmeno, num outro trabalho (Azoubel, 1992), admiti duas possibilidades que me pareceram, todavia,convergentes:

    1) possvel que o sentir esteja ainda sob a regncia de uma hegemonia fsica, portanto, sensorial - preciso, portanto, produzir uma leso corporal;

    page 20 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    2) A dor mental pode ser to grande para um Ego psquico ainda em desenvolvimento rudimentar, queeste, no suportando a sobrecarga, necessita, regressivamente (?) do apoio de um Ego corporal.

    Mas este fenmeno, que pode ser atribudo aos aspectos primitivos da mente, no deve ser imputadoapenas aos selvagens pois temos na nossa observao psicanaltica diria algumas manifestaesequivalentes. Expresses populares como sentir na prpria pele, lgrimas de sangue, partir ocorao pem-nos em contato, diretamente, com algo, pelo menos, muito parecido. Isto sem nosdetermos em leses corporais que so produzidas por estados emocionais intensos, com especialreferncia para as leses de pele.

    Resta-me fazer alguns comentrios sobre as lendas aqui relatadas, atravs dos rituais iniciatrios que elasfundamentam. A proibio de comer carne de macaco expressa muito bem o conceito de um temorantropofgico. Estaria reprimindo, desse modo, provavelmente, um desejo sexual (homossexual) emrelao aos adolescentes (djur). Os mecanismos mentais estariam assim referidos oralidade etransformados drasticamente numa espcie da tabu. Essa relao zoo-antropomrfica aparece em vriaslendas e est muito bem ilustrada na cermica figurativa desses ndios. As figuras (litxc) com corpohumano e cabea de animais so muito freqentes no artesanato Caraj. Nessa etapa da educao dosadolescentes o contato fsico e emocional bastante prximo e no seria de estranhar, em absoluto, odespertar e o estmulo dos impulsos e desejos homossexuais dirigidos a eles. Por um lado, a recluso dosmeninos nessa idade na Casa de Aruan se destina a proteg-los contra o incesto; por outro, expe-nos aum convvio homossexual constante, do qual eles s podem se defender com o auxlio da introjeo dosvalores tribais (culturais).

    Na lenda sobre as filhas do Sol (Tchu), aparece, muito claramente, o temor vagina denteada. Os perigosdo casamento (da relao com as mulheres) so perfeitamente exemplificados e ilustrados por meio dastarefas e dos riscos de vida que elas contm. A figura de um pai incestuoso preside a narrativa da lenda.Tchu, o Sol, quer as moas s para ele, no pretende ced-las e mostra-se disposto a anular a potncia dosseus pretendentes, procurando, insistentemente, castr-los - com as piranhas, com as abelhas e com asplantas carnvoras, excelentes representantes dessa vagina denteada. Certos costumes falam com muitaeloqncia das intenes inconscientes.

    A imagem da me incestuosa tambm aparece nas lendas Carajs, a exemplo do que ficou ilustrado nanarrativa de Peret (1979), quando Andciuala, um jovem adolescente, foi arrancado do convvio familiar elevado para a Casa das Mscaras. A revolta de sua me parece ser uma expresso autntica dossentimentos das mulheres que passam pela mesma experincia por um lado, enquanto que por outro, alenda trata de deixar bem claro a necessidade de conter os sentimentos e impulsos desse amor proibido,capaz de dificultar a adaptao do filho aos padres tribais, desorganizando, desestruturando, destruindomesmo a aldeia. A dramatizao da lenda enfatiza uma advertncia muito sria; qualquer um que cometaum pecado capital poder levar toda a tribo runa. Esse fenmeno de identificao do sujeito com acoletividade parece ser um trao muito importante para a mente primitiva. O indivduo , ao mesmotempo, todos os seus antepassados e os seus contemporneos. No selvagem, esse trao da identidadeindividual, contendo em si o coletivo, vivido intensa e, por vezes, concretamente. Florestan Fernandes,estudando a funo social da guerra entre os Tupinamb, chamou a ateno para este fato, relatando oscostumes antropofgicos desses ndios. Descreve um ritual iniciatrio no qual um prisioneiro morto edevorado pela tribo inteira (menos pelo guerreiro que o aprisionou), fazendo parte do ritual a justificativadeclarada de que os avs e demais antepassados (do prisioneiro) haviam feito o mesmo com aqueles da

    page 21 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    tribo que o matavam. Destaca que no se trata apenas de uma vingana pura e simples, mas de uma formade relacionamento bem mais complexa em que o passado e o presente se encontram na preservao doscostumes, na renominao de um jovem que, naquele instante e pela realizao do ritual, tornava-se umadulto completo, um guerreiro na plenitude do gozo dos seus direitos, conquistando assim um statusinvejvel e admitrado entre os seus pares (Fernandes, 1948).

    Os vocbulos macho e fmea tm um significado bem definido e circunscrevem conceitos fceis deidentificar porque, em geral, o seu uso est relacionado Biologia, por conseguinte anatomia dosgneros. Os vocbulos masculino e feminino, por outro lado, tm um significado mais amplo, maisabrangente. A sua delimitao foi se tornando, com a complexidade do ser humano, cada vez maisabstrata, pois as camadas dos seus significantes foram se estratificando com a aquisio e transformaodos costumes. Estudar esses significados e significantes atualmente corresponde a um trabalhosemelhante quele que feito quando se trata de descobrir uma cidade soterrada pelas areias e pela poeirado tempo. preciso escavar com um pincel, procurando-se deixar mostra, cuidadosamente, suas formas,contornos e meandros. Mas isto vai ser sempre um trabalho arqueolgico.

    Referncias Bibliogrficas

    Aytai, D. - Obstetrcia Caraj. Publicaes do Museu Municipal de Paulnia. No. 10. Paulnia, S. Paulo.1979.

    Azoubel Neto, D. - Mito e Psicanlise: um estudo psicanltico sobre formas primitivas de pensamento.Ed. Papirus Ltda. Campinas, S. Paulo, 1992.

    Dietschy, H. - LHomme honteux et la femme cranpon. En marge des Mythologiques de ClaudeLevy-Strauss. Bulletin (Societ Suisse des Americanistes. 1974.

    Ehrenreich, P. - Constribuies para a etnologia brasileira. Separata da Revista do Museu Paulista. NovaSrie. Vol. II. S. Paulo. 1948.

    Fernandes, F. - A organizao social dos tupinamb. Edit. Hucitec e Ed. da Universidade de Braslia. S.Paulo. 1989 [1948].

    Fonseca, J. P. da - Carta ao Exmo. Gal. De Goyazes, dando-lhe conta do descobrimento de duas naesde ndios do stio onde aportou. Revista Trimestral de Histria e Geografia ou Jornal do InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro. Tipografia de Joo Igncio da Silva. Rio de Janeiro. 1867 [1775].

    Fortune, D. L. - Gramtica Caraj: um estudo preliminar em forma transformacional. Publicaes doSummer Institute of Linguistics. Braslia, 1973.

    Fortune, D. & Fortune, G. - Karaj mens-Womens speech differences with social correlates. Arquivosde Anatomia e Antropologia, Vol. I, 1975, Ano I (Instituto de Antropologia Professor Souza Marques),Rio de Janeiro.

    page 22 / 23

  • Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista

    Freud, S. - A Interpretao dos Sonhos. Obras Completas de S. Greud. Ed. Standard Brasileira. Rio deJaneiro. Edit. Imago Ltda. 1979 [1900].

    Freud, S. - Totem e tabu. Obras Completas de S. Freud. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro. Ed.Imago Ltda. 1979 [1913].

    Freud, S. - O Inconsciente. Obras Completas de S. Freud. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro. Ed.Imago Ltda. 1979 [1915].

    Freud, S. - A dissoluo do complexo de dipo. Obras Completas de S. Freud. Ed. Standard Brasileira.Rio de Janeiro. Ed. Imago Ltda. 1979 [1924].

    Lafer, M de C. N. - Os trabalhos e os dias (Hesodo). Traduo, introduo e comentrios de Mary de C.N. Lafer. Projectos e Produes Editoriais Ltda. S. Paulo. 1991.

    Meltzer, D. & Williams, M. H. - La aprehensn de la beleza (El papel del conflicto esttico en eldesarrollo de la violencia y el arte). Trad. do ingls de Maria Cristina Sardoy. Spatia Ed. Buenos Aires,1990.

    Peret, J. A - Mitos e lendas karaj. In Son Wra. Rio de Janeiro. 1979.

    Schultz, H. - A pesca tradicional do pirarucu entre os ndios karaj. Revista do Museu Paulista. NovaSrie. Vol. VII. S. Paulo. 1953

    Vasconcelos, J. M. de - Kuryala: Capito e caraj. Edit. Melhoramentos. S. Paulo. 1979.

    ........

    *David Azoubel Neto E-mail: [email protected]

    Ribeiro Preto - So Paulo.

    _______________________________________________

    PDF gerado por Kalin's PDF Creation Station

    Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

    page 23 / 23

    http://www.tcpdf.org