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1 OM2ºATO S E G U N D O A T O

O MENELICK2ºATO # EDIÇÃO ZER014

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Décima quarta edição da revista brasileira de artes e cultrua afrobrasileira, diaspórica, africana, popular e urbana. SOBRE O PROJETO: A revista O MENELICK 2º ATO é um projeto editorial independente de valorização e reflexão acerca da produção artística da diáspora africana, bem como das manifestações culturais popular e urbana do ocidente negro, com especial destaque para o Brasil. O projeto foi criado em 2007, e inicialmente restringia-se a ocupar o sítio virtual: omenelicksegundoato.blogspot.com. Em maio de 2010, após quatro anos de estudo sobre uma estética editorial que pudesse aproximar o novo negro urbano do século XXI as raízes ancestrais responsáveis por moldar a sua identidade cultural, foi publicada a primeira edição impressa da revista. Com tiragem trimestral, a publicação é distribuída gratuitamente em eventos culturais, shows, espetáculos, galerias de arte, lojas, bibliotecas e zonas de conflito da cidade de São Paulo.

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S E G U N D O A T O

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APOIO

pág 3 NICK CAVE. Soundsuit, Botões, fios, canutilhos, ábaco, estofamento e manequim. 79,92 X 24,80 X 19,69 cm. 2012.

pág 5 TÁRCIOV. Remanso, Serigravura. 29,7 x 42 cm. 2014.

pág 7 JANAINA BARROS. Detalhe de uma das obras da série: Eu que sou exótica recortaria um pedaço do céu para fazer um vestido (ou ainda, O jogo daquilo que é aparente...).

Foto-performance. Fotografia digital, costura, transferência s/ algodão. 70 x 52 cm, 2014.

v v A v v

R E V I S T A m

O MENELICK 2º ATO É

UMA PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL DA

MANDELACREW COMUNICAÇÃO E FOTOGRAFIA.

RUA ROMA, 80 – SALA 144 – SÃO CAETANO DO SUL/SP

CEP: 09571-220 / TEL. (11) 9 9651 8199 I ISSN 2317-4706

DIRETOR NABOR JR. I MTB 41.678 I [email protected]

DIAGRAMAÇÃO RODRIGO KENAN I rodrigokenan.com

CONSELHO EDITORIAL ALEXANDRE ARAÚJO BISPO, CHRISTIANE

GOMES, LUCIANE RAMOS SILVA, NABOR JR. E RENATA FELINTO.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA EM CENTROS CULTURAIS, SARAUS,

GALERIAS DE ARTE, SHOWS, FEIRAS, FESTIVAIS, CASAS

DE ESPETÁCULOS, LOJAS, BIBLIOTECAS, TEATROS,

BOTECOS E ZONAS DE CONFLITO. CONTATO revista@

omenelick2ato.com / ANO IV – EDIÇÃO ZER0XIV

OUT/NOV/DEZ - 2014 / VISITE NOSSO SITE

omenelick2ato.com

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No sentido horário (da esq. para a dir.) FLAVIO CARRANÇA, OSWALDO FAUSTINO, LUCIANE RAMOS, CHRISTIANE GOMES, ALEXANDRE ARAÚJO BISPO, NABOR JR, MARCIO MACEDO E RENATA FELINTO.

UQ I L

O

M

B

O

Caricaturas Junião | juniao.com.br

Intervenção digital sobre foto de Keith Pearson

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S U M Á R I O

T E R R I T Ó R I O U R B A N O

A R T E S V I S U A I S

M E M Ó R I A

L I T E R A T U R A

ARTES PLÁSTICAS

MODA 56 A M Ã O N E G R A

A F U N D A M N O M A R68 NOSSOS ANTEPASSADOS T R A N S F O R M A D O S E M A R T E N O M A S P

32 O MULATO PERNÓSTICO

01/96 R O SA N A PAU L I N O 36 R O B E R T O C A M E L O ( K R U S T ) 07 J A N A Í N A BA R R O S 03 N I C K C A V E 18 C H A R L E S M A R T I N 24 E N N I O B R A U N S 46 A N A PAU L A L E Ô N C I O 62 M A N D E L A C R E W 72 R E N A T A F E L I N T O 05 T A R C I O V

NA MODA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

24 H A M I LTO N C A R D O S O

82 A F E TO S E T R A J E TO SN E G R O S E M S Ã O PAU L O

46 HISTÓRIAS QUE NÃO

14 MUSEU AFRO BRASIL

36 CAROLINA MARIA DE JESUS

E N S A I O

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Ser ou não ser? Para além do texto shakes-peariano que, há mais de 400 anos, deixa essa dúvida no ar, o Museu Afro Brasil, exibe ao longo de uma década milhares de razões para se cultivar o orgulho de ser afro-brasileiro.

Diz a lenda que, antes de serem embar-cados nos navios que os levariam para o lado oposto da Kalunga Grande – como era chamado o Oceano Atlântico, os ho-mens e mulheres que foram sequestra-dos no continente africano para serem escravizados nas Américas, eram obriga-dos a dar algumas dezenas de voltas em torno do tronco de um imenso baobá, enquanto se negavam. Debaixo de chi-cotadas, caminhavam acorrentados em volta daquela árvore afirmando não serem quem eram até aquele momento: não te-rem os nomes que tinham, não acredita-rem em seus deuses, não falarem suas línguas, não pertencerem a suas famílias e nações, não terem sua cultura original. Só então eram lançados no porão da em-barcação para a longa travessia, sem volta para a quase totalidade.

Muita gente pode dizer que “é apenas uma lenda”. E pode ser mesmo. Porém, foi por causa dela que o baobá, árvore sagrada e símbolo de algumas nações africanas, ganhou o epíteto de “árvore do esqueci-mento”, mas que também lhe deu o caráter e a missão de ser guardiã das memórias daqueles milhões de africanos e africanas que para cá foram trazidos desde o sécu-lo 16. Aqui, nas condições mais inóspitas, primeiro construíram uma colônia que pro-piciou grande riqueza para metrópole e de-pois ajudaram a construir uma Nação.

Quem olha para o Parque do Ibirapuera e avista próximo ao portão 10, aquela edifi-cação com quase 12 mil metros quadra-

texto OSWALDO FAUSTINO

dos, entre o auditório e o lago, também pode imaginar um imen-so baobá, guardião dessas memórias e que as reinventa dia após dia. Isto, desde 23 de outubro de 2004, quando o antigo Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, onde funcionou a sede da Prefeitura de São Paulo, passou a abrigar o Museu Afro Brasil, um sonho de longa data de alguns artistas e intelectuais negros brasileiros, realizado graças à iniciativa e inventividade do escultor, desenhis-ta, gravador, cenógrafo, pintor e museólogo Emanoel Alves de Araújo, seu diretor-curador desde então.

CONSTRUIR DESCONSTRUINDO

Desde sua inauguração, esse museu histórico, artístico e etno-lógico é apresentado não como algo definitivo, pronto, acabado, mas “em processo de construção”, cuja proposta básica é des-construir o imaginário social sobre a população negra, associado à escravidão, pobreza e limitada capacidade intelectual, além de reforçar a autoestima dessa mesma população que, ao longo da história nacional, sofre a exclusão dessa própria história. Com um cunho educacional – apesar de não ser uma escola – e tam-bém transformador, propõe-se a promover a igualdade através da dignificação da diversidade e, assim, gerar um sentimento de pertencimento e respeito à matriz africana na formação da cultura brasileira.

Boa parte do seu acervo de mais de seis mil obras é exibido permanentemente na Exposição de Longa Duração, que ocupa a parte superior do prédio e está dividida em seis núcleos: África: Diversidade e Permanência; Trabalho e Escravidão; As religiões afro-brasileiras; O sagrado e o profano; História e memória; Artes Plásticas: a mão afro-brasileira. Nesses ambientes a arte africana e a afro-brasileira – pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, do-cumentos e peças etnológicas como adereços e indumentárias de manifestações culturais – convivem com a produção artística erudita de negros e mestiços; com ferramentas e objetos que re-presentam o trabalho e a criatividade dessa população ao longo da história; com suas crenças - tanto de matriz africana quanto cristã -; sua música; sua produção literária; e seus expoentes nas mais diversas atividades humanas. Interessante observar a pro-posta curatorial e disposição museológica de uma das salas da mostra permanente, conhecida como Navio Negreiro, o espaço quase sem iluminação, de aspecto sombrio, abriga um “esquele-to” de uma embarcação e reúne painéis fotográficos, instalação audiovisual e objetos que remetem as travessias dos escravos entre a África e as Américas.

MUSEU AFRO BRASIL10 ANOS DE REINVENÇÕES DAS AFRICANIDADES

MÁRCIA MAGNO, Escultura de Zumbi dos Palmares. Bronze. 2,2 m. 2011. Acervo Museu Afro Brasil.

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O térreo e subsolo geralmente abrigam as exposições temporárias, exibindo ar-tistas nacionais, internacionais e também grandes instalações, como O Sertão: da Caatinga, dos Santos, dos Beatos e dos Cabras da Peste, uma das maiores do ano de 2011 ocorridas na cidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, o centenário de nas-cimento do argentino naturalizado brasilei-ro Carybé (Hector Julio Páride Bernabó), considerado “o mais baiano dos artistas”, ganhou duas exposições nesse museu: Grande Mural dos Orixás - Carybé e Deu-ses D’África - Visualidades Brasileiras. Entre outras exposições temporárias de grande repercussão que passaram pelo Museu, destaque também para Eu tenho um sonho: de King a Obama - a saga ne-gra do norte, de 2009.

A CIRCUNSTÂNCIA DE OURIVES

Emanuel Araújo nasceu em 15 de novem-bro de 1940, em Santo Amaro da Purifi-cação, na Bahia, numa família com três gerações de mestres na arte ourivesaria – bisavô, avô, pai e tios. “Só não me tor-nei ourives porque meu pai me proibiu. Ele me queria advogado”, revela, e conta que sonhava em seguir a carreira familiar e, diante da proibição, ainda pré-adolescente, foi aprendiz de marceneiro, trabalhou em linotipia e composição gráfica na Imprensa Oficial de Santo Amaro da Purificação.

“Se eu tivesse nascido em São Paulo, eu

seria produto de uma circunstância de São Paulo. Eu nasci em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Sou, portanto, produto de uma circunstância de Santo Amaro da Purificação e da Bahia. En-tão o meu universo, num dado momento, vem daí, do que eu vi, do que eu vivi, do que eu senti, do que eu pude transformar”, explica. Outra circunstância é sua origem étnica brasileiríssima: pai cafuzo – a união entre negros e indígenas – e mãe mestiça de negros com brancos.

Foi com esse histórico e circunstâncias que jovem Emanuel Araú-jo desembarcou em Salvador na década de 1960, mas não aten-deu ao anseio paterno. Ao invés do Direito, preferiu a Arquitetura que também trocou pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Em Salvador, se fascina com a arte e a agitação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), ligado ao Partido Comunista. “Eu não era do partido – enfatiza –, mas me encantava fazer teatro popular, teatro de rua, criar cenários, conviver com aquela juventude politizada”.

Enquanto isso, na UFBA, sua arte toma o rumo da gravura e forte influência da pop arte, do renascentismo de Leonardo da Vinci e da Escola de Fontainebleau, na França. Seu fazer artístico ganha um novo reforço: a paixão pelos museus, adquirida em viagens pela Europa e pelos Estados Unidos.

E, através do cubismo de Pablo Picasso e Georges Braque, que se apropriam da ideia da geometria construtiva presente espe-cialmente nas máscaras africanas e a “mesclam” com a arte europeia, Araújo começa a descobrir uma África empírica. “Eu não tinha ideia da África – confessa. Quando fui à Nigéria, em 1976, para o Festival de Arte Negra, vi certos artistas jovens africanos fazendo uma geometria que parecia com a minha. Então achei que, de certa forma, tinha um companheiro do ou-tro lado do Atlântico, com as mesmas ideias. Não da África tradicional, mas de uma África já pensada, já elaborada através daquela geometria.”

POVO EjAGHAN/EKOIMáscara

Sem Data. Nigéria Madeira e Couro 76 X 72 X 41 cm

Acervo Museu Afro Brasil.

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O MEDO DA ÁFRICA

Dá para imaginar o que essas des-cobertas provocaram no coração e na mente daquele jovem artis-ta, descobrindo-se como parte de uma escola artística construtivista com eco na terra de seus ances-trais. Foi isso que o motivou a unir à escultura que produzia com a questão religiosa da Bahia. Do culto afro-brasileiro aos orixás. Po-rém, a empolgação de Emanuel não teve longevidade: “Isso cau-sou certo impacto, mas não foi adiante porque, como colonizado por europeus, o Brasil tem medo da África. Os que compram e ven-dem arte não querem se aliar a nada que lembre esse continente, por conta da ideia erroneamente construída sobre a África”. Se o mercado estimula o artista a se afastar do continente africano, a vida e as novas circunstâncias o levam a mergulhar cada vez mais nas águas que amalgamam o sa-grado com o profano. Ele vive a africanidade muito antes mesmo da viagem ao festival, quando teve sua iniciação no culto aos ori-xás e se aproximou de expressi-vas personalidades dessa religião de matriz africana, como Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espíri-to Santo, iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador.

Outra inciativa do artista foi tornar--se um colecionador e ávido com-prador de objetos artísticos e sa-grados relacionados tanto a cultura negra, quanto a popular e a sacra, além de documentos históricos e arte indígena. “Este país é tão ca-lhorda que até hoje não existe um museu dedicado exclusivamente à arte indígena”, comenta. A forma-ção acadêmica e essas vivências fo-

ram fundamentais para exercer seu primeiro trabalho de museólogo, na direção do Museu de Arte da Bahia, entre os anos de 1981 e 1983.

Cinco anos depois, durante as co-memorações do centenário da abolição da escravatura, Emanuel Araújo monta na Fiesp, em São Paulo, a antológica exposição A mão afro-brasileira¹. Ali estava a se-mente do que se tornaria, 16 anos depois o Museu Afro Brasil: “Essa exposição trazia minha pesquisa sobre compositores clássicos e populares, inventores, pintores, es-cultores, através de documentos, trabalhos e fotos. Naquele momen-to tínhamos muito poucos exem-plos na arte moderna. Ainda não se falava em arte contemporânea. Tinham, por exemplo, Rubem Va-lentim, Manoel Bandeira, do Ceará, Agnaldo Manoel dos Santos, entre outros artistas”.

O QUE É A ARTEAFRO-BRASILEIRA?

Está aí uma pergunta que faz Ema-nuel Araújo parar para pensar. De-pois, ele sorri e afirma: “Há tem-pos, eu pensava nessa questão da afro-brasilidade nas artes. Hoje já não penso mais. Acho que, dentro de algumas características em que nasça uma obra, ela pode ser ou pode não ser. Alguns artistas tem vínculo profundo com a questão das africanidades, até por instinto, ou por competência, por reflexão ou raciocínio, como Rubem Va-lentim. Outros, por compromisso étnico estético, como mestre Didi, Agnaldo Manoel dos Santos, ou como Maurino Araújo, de Minas Gerais, fortemente influenciado por Aleijadinho, mas que acres-centou na sua obra expressionista

¹ A exposição resul-tou num livro funda-mental para a história e a memória negra em nosso país, intitu-lado: A mão afro-bra-sileira. Significado da contribuição artística e histórica.

Emanuel Araujo, então diretor da Pinacoteca, em registro feito em 1992, pelo fotógrafo estadunidense Charles Martin, para o livro Home & Way: Conversations on the African Diaspora (1997)

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muito de África. Então esses artistas são exemplos, mas não quer dizer que outros tenham que ser afro--brasileiros em sua arte. O que seria afro-brasilida-de, afinal?”

Para o diretor do Museu Afro Brasil, não é a maior pigmentação de pele, ou a descendência africana de quem produz arte que fará classificar sua produ-ção como afro-brasileira: “Aí é querer trazê-lo para circunstâncias folclóricas, no sentido das manifesta-ções populares, como a capoeira, a música popular, a poesia do folheto de cordel. Em especial se esse artista não é um primitivo, quer dizer, sem forma-ção acadêmica, e sua arte é uma coisa de instinto. João Alves, Júlio Martins da Silva e Madalena Santos Reinbolt, a despeito de serem intuitivos, são também afro-brasileiros não só pela cor da sua pele, mas por-que eles acrescentaram a suas obras aspectos ínti-mos e lúdicos de suas origens. Isso explica muitos artistas que estão aí”.

Ele afirma que não se pode dizer, por exemplo, que a arte dos irmãos João Timóteo da Costa e Artur Ti-móteo da Costa seja afro-brasileira, a despeito deles serem mulatos: “Eles são muitos mais voltados à sua formação eurocêntrica do que preocupados em pro-curar uma legitimidade africana. Mesmo porque para estes artistas e África sempre foi um passado muito remoto, no qual nem os próprios africanos puderam se expressar como uma cultura material, porque era proibido. E aqueles que tentaram tiveram sua obra destruída pelas batidas policiais”.

Percebendo a dúvida no olhar dos interlocutores, Emanuel parece divertir-se a concluir: “Acho que um pouco é isso: a arte afro-brasileira existe e não existe. Ela existe através desses exemplos que são quase que históricos hoje em dia, mas não se pode negar que um Estevão Silva, que é um pintor acadêmico, clássico, filho de escravos, e muitos outros artistas, como Manoel da Cunha que ele próprio foi escravo,

deixassem transparecer na sua obra alguma coisa li-gada à África. Porque a África que nós conhecemos é inventada para a gente. Não é uma África real, que está do lado de lá do Atlântico. Estevão Silva tem uma cor quente e a gente pode atribuir a ele alguns aspectos, além da sua própria origem. Mas isso não quer dizer que a arte dele seja afro-brasileira. É uma arte quente de um artista negro, com características de sua própria vivência”. A artista plástica soteropo-litana Yedamaria, segundo ele, assim como muitos outros, pode ser enquadrada entre esses.

O RENASCIMENTO DA PINACOTECA

O edifício magnífico, projetado por Ramos de Azeve-do, em 1895, ao lado do Jardim da Luz, e que desde 1905 abriga a Pinacoteca de São Paulo, o primeiro museu de arte da cidade, encontrava-se praticamen-te abandonado até início da década de 1990. Parecia um castelo mal assombrado, que funcionava como

uma espécie de “depósito” de obras de arte, ocupa-do pela Escola de Belas Artes, sem qualquer preocu-pação de conservação. Em 1992, quando Emanuel Araújo assumiu sua direção, passavam por lá cerca de 100 visitantes por ano. Ele liderou uma gigantes-ca restruturação física e conceitual que colocou a Pi-nacoteca entre os mais importantes museus do Bra-sil, apto a abrigar importantes exposições nacionais e internacionais. Dez anos depois, ao deixar a direção da Pinacoteca, o número de visitantes anuais ultra-passava a casa de um milhão de pessoas.

Essa experiência seguiu-se da criação do Museu Afro Brasil, com uma doação inicial de Emanuel Araújo de 1.200 obras, às quais se juntaram posteriormente, fruto de uma nova doação de seu diretor, outras mais de duas mil. Tais inciativas e suas excelentes relações com dirigentes de alguns dos mais importantes mu-seus do mundo, como o Rodin e Maillol, de Paris, o MoMa, de Nova Iorque, entre tantos outros, e o

Detalhe da instalação Navio Negreiro.

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reconhecimento de artistas contemporâneos interna-cionais de grande expressão, como Niki de Saint Phal-le que doou à Pinacoteca uma obra valendo alguns milhões de euros, renderam-lhe, em 2005, convite para assumir a Secretaria Municipal de Cultura, car-go do qual demitiu-se, poucos meses depois, por não aceitar, segundo ele, “ingerências políticas”.

DEZ + DEZ, O QUE ESPERAR?

A risada tonitruante de Emanuel Araújo ecoa pelos vãos do museu ao ser indagado sobre sua expectati-va para os próximos dez anos da instituição, por onde já passaram mais de 1,5 milhão de visitantes em uma década: “Nem sei se estarei vivo até lá. Mas será tal-vez diferente. Este já é um museu diferente. É preciso entender que artistas, por alguma razão, já nascem com esse dom. Porém, a arte se aprimora muito len-tamente, com muito estudo e dedicação. As famílias pobres têm a urgência da sobrevivência, nem sempre têm esse tempo para esperar que seus filhos se apri-morem. Daí a dificuldade da renovação. Mas as ex-pectativas são as melhores. Hoje temos um grupo de jovens artistas negros e negras que romperam essa barreira, como o Sidney Amaral, a Rosana Paulino, o Thiago Gualberto e outros do Rio de Janeiro, da Bahia, de São Paulo, de Minas Gerais”.

Por sinal, em São Paulo, há um movimento liderado pelos artistas plásticos Moisés Patrício e Peter de Brito, chamado Presença Negra, que estimula estu-dantes, intelectuais e outros artistas afrodescenden-tes a frequentar galerias e museus para despertar ainda mais o amor pelas artes e criar uma certa “in-timidade” com as artes plásticas e o fazer artístico.

Ambos, e seus parceiros, também demostram gran-des expectativas com relação ao futuro do Museu Afro Brasil.

Mas o sucesso da instituição não a livra de alguns males seculares. E Emanuel os relembra: “O mer-cado é preconceituoso, desconhece os artistas ne-gros. A grande mídia também. Inauguramos grandes exposições aqui cuja repercussão midiática foi zero. As pessoas vêm ao museu muito mais pelo ‘boca a boca’, por incentivo de quem visitou e amou, do que por ter visto uma divulgação num veículo qualquer de comunicação. Cabe a este museu não só tenazmente fazer com que o Brasil conheça a África, mas fazer com que essa memória seja passada também para as pessoas menos informadas. Cada dia mais o mu-seu tem o compromisso de mostrar também nossos artistas contemporâneos para que eles tenham aqui um ponto de partida, já que o museu está na maior das cidades da América Latina, uma das grandes ci-dades do mundo e muito bem localizado. Queremos aproximar aqui a arte negra brasileira do que se faz em arte hoje na África ou fora dela, por artistas africa-nos de reconhecimento internacional, na França, na Inglaterra, no mundo afora. E que eles possam pas-sar uma referência contemporânea em arte africana”.

Para comemorar os primeiros dez anos do Museu Afro Brasil, Emanuel Araújo doou para seu acervo 242 obras: “Tenho sistematicamente o compromisso de fazer com que as lacunas desse museu sejam pre-enchidas. Seja do ponto de vista da arte africana, seja da arte popular, da erudita. Toda vez em que eu puder tirar do meu próprio sangue, como um pelicano, o que o museu precisa, eu faço e farei”.

PARA VISITARMUSEU AFRO BRASILAv. Pedro Álvares CabralParque do Ibirapuera, Portão 10Dias e horários de visitas de terça-feira a domingoDas 10h às 17hIngressos R$ 6 e R$ 3 (meia-entrada)+ Info museuafrobrasil.org.br | (11) 3320 8900

PARA ASSISTIREntrevista com Emanuel Araújo emomenelick2ato.com

OSWALDO FAUSTINO é jornalista, escritor, dramaturgo e rotei-

rista, bacharel em Comunicações Sociais pela FIAM/FMU e pes-

quisador de assuntos relacionados às questões étnico-raciais.

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Hamilton Cardoso foi um dos mais talentosos representantes da geração de ativistas do movimento negro brasileiro dos anos 1970 e 1980. Ele esteve no centro de uma série de atividades que deram impulso à luta antirracista no Brasil, como parte do movimento pela redemocratização do país, durante a ditadura imposta pelo golpe militar de 31 de março de 1964. Teve tam-bém expressiva participação, tanto na imprensa alternativa quan-to na grande imprensa paulista e manteve um constante diálogo com intelectuais negros e não negros dos movimentos sociais e do meio acadêmico. Hamilton viveu intensamente seu tempo, tendo participado da campanha pela anistia, da articulação do movimento Diretas Já, do processo da Constituinte, da reorga-nização do movimento sindical e da construção do Partido dos Trabalhadores, além de atuar na esfera internacional.

Nascido em 10 de julho de 1954, na cidade de Catanduva, noro-este do Estado de São Paulo, foi o segundo filho de uma família composta por mais três irmãos: Airton, o mais velho, Arlete, a terceira e Auriluce, a caçula. O pai, Onofre Cardoso, era músico e a mãe, Deolinda, dona de casa. Hamilton passou a maior parte de sua infância na capital. A família morou primeiro no bairro do Ipiranga, na zona sul, e depois na Casa Verde, na zona norte.

Hamilton e Airton fizeram o curso primário (correspondente às quatro primeiras séries do atual ensino fundamental) na Escola Estadual Professor Joaquim Leme do Prado, no bairro do Imirim e, concluído esse ciclo, em 1964, a família decidiu enviá-los para con-tinuar os estudos em um seminário, em Jaú, no interior do estado. Quando retornam à São Paulo, a situação financeira dos Cardoso ainda não era das melhores e Hamilton, durante algum tempo, tra-balha como pipoqueiro para ajudar no orçamento da casa. Nessa fase, já havia concluído o ginásio e começava a cursar o colegial no período noturno do Instituto de Educação Caetano de Campos, conceituada escola pública que na época funcionava na Praça da República, no mesmo prédio onde está instalada atualmente a Se-cretaria Estadual de Educação de São Paulo.

TURMA DO FUNDÃO, TEATRO E CONSCIÊNCIA NEGRA

O jornalista Gabriel Priolli Netto, antigo editor do Jornal Nacional (TV Globo) conheceu os irmãos Cardoso, em 1971, no Caetano de Campos. Hamilton e Airton logo se tornaram seus parceiros de “esticadas” noturnas. Saíam depois das aulas para conversar em bares ou curtir a programação cultural da cidade, frequen-tando espaços como o Teatro Vereda, na Rua Frederico Steidel, o Teatro de Arena e o bar Redondo, onde circulavam artistas, intelectuais e boêmios em geral. Junto com um grupo de ami-gos, assistiam a shows de música e viam filmes em cineclubes e cinemas de arte

A descoberta da luta antirracista aconteceu em 1970, quan-do Hamilton participou como ator da peça de teatro E ago-ra falamos nós, escrita e montada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926 – 2012) e pela atriz Tereza Santos (1930 – 2012), como parte das atividades do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), entidade criada por ambos em 1969. Os ensaios aconteciam na Casa de Cultura do Negro, instituição beneficente que funcionava no mesmo prédio onde hoje está instalado o Instituto do Negro Padre Batista, na região central de São Paulo.

“Uma pessoa foi trazendo outra e assim o Hamilton apareceu no grupo, exatamente porque alguém comentou com ele do traba-lho que estávamos fazendo”, afirmara Tereza, lembrando que no período da montagem do espetáculo, Hamilton não tinha infor-mações sobre o negro, sobre a questão racial, e que sua primei-ra aproximação com esse tema aconteceu ali. “Era uma visão minha e do Eduardo em relação à história do negro no Brasil, mas a gente fazia todo o grupo participar das discussões. Nós escrevíamos as cenas, mas discutíamos com eles, e foi assim exatamente que o Hamilton se descobriu negro.”

No início da década de 1970, o Clube Coimbra, localizado na Avenida São João, tornou-se o novo ponto de encontro de uma juventude negra intelectualizada e progressista; outro ponto era a Casa da Cultura e do Progresso (Cacupro), sediada no bairro do Ipiranga e dirigida pelo maestro Estevão Maya Maya e Agnaldo Avelar. Também foi muito importante para os jovens desse perío-do o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (Geteplun), criado na década de 1960, no bairro de Vila Prudente, pela doutora Iracema de Almeida, uma das primeiras médicas negras da cidade. Mas um dos principais palcos desse debate foi o novo Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). A enti-dade, que tinha sido desativada por Tereza Santos quando de sua ida para Angola, foi reativada em 1976, passando a funcionar na Rua Maria José 450, no Bexiga.

NA ESCOLA, NAS RUAS...

O contato da juventude negra universitária com as correntes de pensamento de esquerda marcou profundamente a fisionomia do movimento negro brasileiro. Como se sabe, o movimento estudan-til protagonizou o início da luta pelo fim da ditadura e pela democra-tização do país. Entre os grupos políticos que atuavam no movimen-to estudantil nessa época, a Liga Operária, uma corrente trotskista, é o que mais se abre para a reflexão sobre a questão racial.

Podemos considerar então duas gerações de militantes negros da Liga. A primeira, que tinha como figuras mais expressivas Mil-

FOTO PÁGINA ANTERIOR O jornalista Hamilton Cardoso durante manifestação do Dia Nacional da Consciência Negra na cidade de São Paulo, em 20 de novembro de 1979.

texto FLÁvIO cArrANçAfoto ENNIO BrAUNS

HAMILTON CARDOSO E SEU TEMPO

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ton Barbosa e Rafael Pinto, deixa a organização por volta de 1976, e junto com outros ativistas de posições variadas passa a inte-grar uma corrente conhecida como Grupo Decisão, de duração relativamente curta e que atuaria principalmente no interior do Cecan. A segunda geração que integrou o Núcleo Negro Socialis-ta da Liga Operária e foi a principal responsável pela elaboração da seção Afro-Latino-América do jornal Versus era formada por Hamilton junto com Wanderlei José Maria, José Adão Oliveira, Marcos Vinícius, Neuza Maria Pereira e outros.

O QUE FAZER NO 13 DE MAIO?

Em São Paulo, o debate político de maior importância entre os jovens militantes que se reuniam no Cecan ocorreu em maio de 1978, e teve como tema justamente as comemorações do 13 de maio. Uma das posições dos participantes era de que na data deveria ser feita uma espécie de anti-manifestação, ou seja, a população deveria ser estimulada a não sair às ruas, em protes-to contra a falsa liberdade concedida pela Lei Áurea. A proposta contrária, defendida pelo Núcleo Negro Socialista, de Hamilton, e pelo Grupo Decisão, era sair às ruas para denunciar o mito da princesa Isabel como redentora, uma das bases da ideologia da democracia racial.

Esse posicionamento levou a que se organizasse o primeiro ato do movimento negro, no Largo do Paissandu, no dia 13 de maio de 1978. Na concentração inicial, que reuniu cerca de 1.200 pes-soas aos pés da escultura da Mãe Preta, vários oradores falaram, denunciando a situação marginal da população negra e a farsa do 13 de maio.

O impulso para a mobilização de 13 de maio de 1978 veio, em grande parte, dos acontecimentos envolvendo Robson Silveira da Luz, torturado e assassinado no início daquele mês nas de-pendências da 14ª Delegacia de Polícia da Capital. Em seguida, a discriminação sofrida por quatro garotos negros, expulsos do time juvenil de basquete do Clube de Regatas Tietê desenca-deou novas e fortes reações do interior da comunidade negra. Os dois episódios causaram grande indignação. Em 18 de junho de 1978, grupos e entidades se reúnem na sede do Cecan para deliberar sobre as ações a serem implementadas. Nessa reu-nião foi fundado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que seria lançado no dia 7 de julho em um Ato Público Contra o Racismo.

No anoitecer de 7 de julho de 1978, cerca de duas mil pessoas, a grande maioria negros e negras, concentraram-se na Praça Ra-

mos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. A carta aberta, distribuída à população e lida em coro pelos ma-nifestantes, culminava com o apelo à criação de uma entidade nacional que unificasse as lutas contra a discriminação racial. O tema dominante agora seria o caráter da organização que estava sendo criada. Para Hamilton, a estruturação do movimento esta-va se dando até aquele momento nos marcos do que havia sido imaginado pelo Núcleo Negro Socialista. Mas justamente na pri-meira assembleia há uma mudança de rumos, que ele depois classificaria como início da crise do Movimento Negro Unificado.

Na leitura de Hamilton e do Núcleo Negro Socialista, o movi-mento deveria unificar forças sociais contra o racismo e não se restringir a um movimento de negros. Sua intenção era criar uma articulação que abrangesse todos os que estivessem dispostos a lutar contra o racismo. Mas essa ideia acabou sendo derrotada. Em 8 de julho é realizada reunião de avaliação do ato e, no dia 23 de julho, na sede da Associação Cristã de Beneficência, em São Paulo, é realizada a primeira Assembleia de Organização e Estru-turação Mínima do MUCDR, com a presença de representantes do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

É nesse momento que a palavra “negro” é incluída na sigla que passa de Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) para Movimento Negro Unificado Contra a Discrimi-nação Racial (MNUCDR). É Milton Barbosa quem explica: “Ele [Hamilton] queria fazer um movimento do tipo SOS Racismo da França, que junta todo mundo. Já eu e Rafael queríamos cons-truir o embrião de um movimento de libertação nacional. Não estava decidido na nossa cabeça o que seria, mas nós já tínha-mos essa noção. A gente estudava muito os movimentos de libertação na África, partidos políticos, e achávamos que se tinha de construir um movimento negro organizado. Quando Abdias (Nascimento) veio com a palavra negro, nós a abraçamos, por-que queríamos uma única coisa: organizar o povo negro”. Depois da fase de grande ativismo de 1978, a relação de Hamil-ton e do Núcleo Negro Socialista com a Liga Operária (agora, Convergência Socialista) foi gradativamente se desgastando. Seu afastamento parece ter sido um processo gradativo e com-binado com a busca de novos espaços de realização profissional e de atuação política. Era evidente a necessidade que ele tinha de ampliar seus horizontes. Em 1980, Hamilton passa nove me-ses na Inglaterra. De volta ao Brasil retoma o estudo de jornalis-mo e inicia sua carreira profissional. O próximo passo seria a luta para conseguir emprego como jornalista. Nesse mesmo período casa-se com a arquiteta Dulce Pereira, com que tem dois filhos.

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A GARRA DE UM REPÓRTER

O primeiro emprego fixo de Hamilton como jornalista parece ter sido na assessoria de imprensa do então vereador Paulo Ruy de Oliveira, que assumiu a lide-rança do MDB na Câmara Municipal de São Paulo, em 1979, e que, em 1981, depois de migrar para o PDS, tornou-se o primeiro negro a assumir a presi-dência daquela casa. Depois disso, Hamilton colabo-rou com diversas publicações da grande imprensa, mas o maior reconhecimento profissional ocorreria em meados da década de 1980, como repórter es-pecial de política do Diário Popular. Ali, reencontrou Simão Zigband, jornalista que trabalhava SBT e que o convidou para ser repórter de TV. Em 1987, ele se tor-na o ‘Repórter do Povo’, que discute os problemas da cidade apontados pela população por meio de cartas enviadas à emissora.

Além da dedicação ao trabalho de jornalista, Hamil-ton manteve uma militância política de esquerda e antirracista que, depois da sua saída da Convergên-cia, passou a ser desenvolvida no Partido dos Traba-lhadores. Flávio Jorge Rodrigues da Silva, atualmen-te membro da direção da Coordenação Nacional de Entidade Negras (Conen), afirma que ele fazia uma associação direta da luta da classe trabalhadora no Brasil, na construção de um projeto maior: “Hamilton sempre foi muito coerente com isso a vida toda, ele nunca dissociou da luta contra o racismo, a luta por um projeto de transformação social, a luta pelo so-cialismo”, afirma. Junto com Milton Barbosa, em São

Paulo e Lélia Gonzalez, no Rio de Janeiro, Hamilton Cardoso foi um dos primeiros intelectuais e ativistas negros a participar das discussões que precederam a criação do PT.

UM LONGO ADEUS

No dia 1º de maio de 1988, aos 33 anos de idade, depois de uma festa na Escola de Samba Unidos do Peruche, Hamilton foi atropelado por um automóvel na Rua da Consolação, em frente ao cinema Belas Artes. O acidente o obrigou a ficar internado por mais de um ano na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Submetido a diversas cirurgias, teve a perna imobilizada com um aparelho ortopédico que forma-va uma espécie de gaiola de metal com hastes que penetravam na carne para sustentar os ossos fratura-dos. Recuperou-se parcialmente, mas só conseguia caminhar com alguma dificuldade, o que não o im-pediu de continuar atuando no PT e no movimento negro, mas o afastou da grande imprensa. Foi um divisor de águas na sua vida. O ator, o poeta, o aman-te, o militante aguerrido, o jornalista em ascensão, o intelectual que acreditava na construção de um futuro melhor cedeu lugar a um homem amargurado.

Esse quadro de depressão o levou a repetidas ten-tativas de suicídio: em 1994 atirou-se do Viaduto Pe-droso, no bairro do Bexiga, fraturou as pernas mas sobreviveu. Fez ainda uma segunda tentativa jogan-do-se nas águas do Rio Tietê, ato que repetiu em 5 de novembro de 1999, quando faleceu.

A atuação de Hamilton, ao longo de sua vida, per-mite classificá-lo como um intelectual orgânico da população negra brasileira, que exerceu significativa influência sobre os intelectuais tradicionais do país. Desde a juventude refletiu sobre os principais temas de interesse para a comunidade negra, procurando elaborar propostas voltadas para a superação dos problemas gerados pelo racismo, com a clareza de que para isso essa população precisa estar repre-sentada nas diversas instâncias de poder. Hamilton Cardoso dedicou grande parte de sua vida à tarefa de despertar a atenção para a importância da questão ra-cial como um dos problemas estruturais do país. Nes-se sentido, deu continuidade a uma tradição de pen-sadores negros, como Luiz Gama, Manuel Querino, Lima Barreto, Abdias Nascimento, Eduardo Oliveira e Oliveira, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, ao mesmo tempo em que pensou e atuou politicamente no sentido da construção de um país (creio que ele diria um planeta) mais justo para mulheres e homens de todas as cores.

SOBRE O TEXTO

Este artigo contém informações e trechos reti-rados do meu ensaio homônimo, parcialmente produzido em colaboração com Fábio Nogueira de Oliveira. É um texto que integra a coletânea Hamilton Cardoso: militante jornalista intelectual, livro finalizado, mas não publicado. O volume em questão também reúne entrevistas concedidas a acadêmicas que produziram dissertações sobre o movimento negro: Maria Ercília Nascimento, Ge-vanilda Santos e Miriam Nicolau Ferrara. Ainda fazem parte da coletânea artigos escritos por pes-soas que conheceram de perto esse grande mili-tante: Flávio jorge Rodrigues da Silva, Maria Er-cília do Nascimento, Vera Lúcia Benedito, Marcos Antônio Cardoso e Omar L. de Barros Filho. Fecha o volume uma bibliografia completa elaborada por Fábio Nogueira com a extensa produção te-órica, jornalística e literária de Hamilton Cardoso. A ideia inicial era publicar o livro pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o que acabou não acontecendo, entre outros motivos, por uma mu-dança de orientação interna daquele órgão. Além disso, apesar de uma promessa inicial, não obtive da família de Hamilton a autorização necessária para publicação do documento.

FLAVIO CARRANÇA é jornalista, sócio-diretor da Flama Jornalismo Ltda, editor-chefe da

revista Angola Yetu (do Consulado de Angola em São Paulo) e colaborador fixo do site do

Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).

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O mulato pernóstico, as-sim como toda a categoria dos mulato/

as em geral, também é uma espécie em extinção. Isso se dá pela atual ascensão de figuras mais sintonizadas

com a ideologia racial bipolar do movimento negro como os “negr@s metid@s.” O mulato pernóstico é o famoso “mulato bacharel” ou “mulato de

caneta”: sujeito pedante a falar em linguagem rebuscada e de pouco acesso aos não iniciados em termos comuns ao direito, sociologia, antropologia, filosofia, ciência

política e outras disciplinas em que se estuda muito e tem-se pouco rendimento.

A referência a caneta remete, inicialmente, a pena (ancestral da caneta) dos tempos da colônia e do império quando a habilidade de ler e escrever era vedada a pretos, mas aberta a mulatos que geralmente

eram tidos como um rebento bastardo do senhor com alguma negra bonita (as más línguas irão dizer que foi um estupro, desconsideremos esses comentários maldosos). Mais contemporaneamente a caneta, um sím-

bolo do saber, começa a ser exibida por mulatos em solenidades especiais nos quais o ápice era a assinatura de um contrato, tratado ou autografo de um livro. Não é de se estranhar que mulatos pernósticos mais aquinhoados

e/ou presentes na política colecionassem canetas de formatos, materiais e nacionalidades diversas. As mais co-biçadas eram, obviamente, de ouro e prata, além da moderna platina. No que diz respeito ao país de origem, havia uma subdivisão que obedecia a área de formação do pernóstico: os poucos engenheiros entre eles preferiam as norte-americanas e alemãs enquanto os mestres e doutores em humanidades almejavam as tinteiras de fabricação francesa. Com o passar do tempo, já em meados do século 20, as canetas passaram a ser exibidas mais livremente geralmente no bolso da camisa e se constituíam em acessórios chics assim como broches, abotoadoras, lenços e prendedores de gravata. Diz-se “acessórios” porque eram opcionais e diferentes de relógios de bolso ou pulso e óculos, itens obrigatórios na vestimenta de um pernóstico uma vez que esses indivíduos nunca se atrasavam para um compromisso e a maioria tinha a vista sempre prejudicada por algum problema como miopia, astig-matismo ou estrabismo devido a leitura de catataus pesados e complicados durante horas a fio.

Mulatos pernósticos também povoam o universo da literatura: Jubiabá, de Jorge Amado (1935), O Mulato, de Aluísio Azevedo (1881), Isaías Caminha, o jornalista frustrado de Lima Barreto em

Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) dentre outros. A distribuição de mulatos pernósticos se deu de forma equilibrada entre as principais capitais brasileiras com uma

atenção especial para aquelas que havia um vibrante cenário econômico, social e político. Destacam-se aí as cidades de São Sebastião do Rio de Janeiro, São

Paulo do Piratininga e São Salvador da Bahia de Todos os Santos, loca-lidades que produziram ou deram morada a destacados per-

nósticos como Guerreiro Ramos, Nina Rodrigues Edson Carneiro, Teodoro Sampaio,

O M U L A T O P E R N Ó S T I C O

Clodoaldo Faria. Espírito Santo do Pinhal/SP, 1954.Fotógrafo desconhecido. Acervo Família Braga dos Santos

texto mÁrcIO mAcEDO

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Mulatos pernósticos, que se gabavam de seus ternos bem corta-

dos e alinhados, começaram então a ser confundidos com seguranças de shopping centers.

O estilo criado com os movimentos Black Power e Black is Beautiful! nos anos 1960 também colocava no centro da cena negros retintos exibindo seus pixains levan-

tados como se fossem troféus. Não, não havia mais espaço para o cabelo discreto, curto e forçosamente repartido ao lado do mulato pernóstico. Mesmo assim ele se negava a render-se

a essa “coisa” chamada garfo e mantinha-se fiel ao seu tradicional pente Flamengo. Mas o padrão de beleza agora estava incorporado em crioulos como Richard Roundtree (Shaft) e naquele considerado

o negro mais bonito do Brasil, o modelo e ator Zózimo Bulbul. Até mesmo um cantorzinho de quinta cate-goria como Tony Tornado estava a passar a classe do pernósticos para trás. Valha-me Deus! Não dava mais, o

mulato pernóstico havia perdido o posto. Não era mais desejado, não era mais respeitado. Seu conhecimento em ciências e letras, a caneta de ouro ou prata, seu relógio suíço, os óculos de grau de formato e aro grosso,

o terno preto ou azul marinho bem cortado, a gravata com nó Windsor ou borboleta, o sapato preto engraxado e reluzente, o cabelo crespo curto repartido do lado com pente flamengo e o bigode ralo de nada mais valiam. Todos estavam a se engraçar com crioulos cabeludos que usavam camisas de cores berrantes, calças justas com boca de sino, sapatos plataforma e óculos de sol Ray-Ban até mesmo na escuridão da noite. Ninguém mais queria ouvir o conhecimento que emanava dos seus queridos gregos Platão, Aristóteles e Sócrates ou dos modernos franceses como Voltaire, Descarte e Proust. Estavam todos aí a querer saber dos escritos de crioulos norte-americanos como um tal de Eldridge Cleaver e outro martinicano agraciado Frantz Fanon: mas que raios esses pretos tinham a dizer ou nos ensinar? As coisas estavam realmente pretas. Mas o tiro de misericórdia foi quando mulatos pernósticos começaram a ver o mal adentrar seus próprios lares.

Mulatinhos pernósticos filhos ou juniores também estavam deixando o cabelo pixaim crescer, dançando soul em festas que ocorriam aos finais de semana, usando roupas espalhafatosas iguais ao dos crioulos revolucioná-rios que mais pareciam palhaços e cantando a canção de um crioulo chamado Jorge Ben intitulada “Negro

é Lindo!”. Mas o fim de tudo foi quando essas pequenas criaturinhas pardas ou de cor bege resolveram desposar mulheres pretas mais escuras que eles. Não havia maior desgosto para um pernóstico pai.

Bem resumiu um deles de forma desconcertada e magoada nas suas memórias: “Tanto esforço para nada! Meu primogênito, Sófocles, um dia olhou-me com o atrevimento que só os mais

jovens possuem e disse: ‘Larga mão, pai. Sou negro e eis de desposar uma mulher retinta como a noite!’ Perdi a cabeça, vire-lhe um tapa no rosto. Depois, caído

em prantos, pensei com meus botões: ‘Tanto esforço para nada. Filhos ingratos, malditos... Traidores da raça!’” Triste fim para a classe

dos mulatos pernósticos que só permanecem vivos na memória de nossos pais e avós.

Machado de As-sis, Manuel Quirino, Fernando

Góis, Lima Barreto e as figuras mais claras dos Irmãos Rebouças.

Nos EUA, onde mulatos pernósticos não eram separados dos negros, mas que no passado receberam a alcunha racial de colored, houve várias figuras de

relevo que no Brasil seriam imediatamente vistos como pernósticos dentre eles o grande intelectual W.E.B. Du Bois e o escritor James Weldon Johnson. Esse último deu

a sua autobiografia ficcional um título sugestivo: The Autobiography of an Ex-Colored Man (1912). No Brasil, é interessante notar o contraste entre mulatas e mulatos. Enquanto ela é en-

tendida como carregada de exuberante emoção, amor e luxúria, o mulato é racional ao extremo. Te-óricos contemporâneos irão dizer que esses são elementos sinalizadores da representação de gênero

vigente na sociedade, ou seja, o que se entende como atributos de homem e mulher. Mulatas e mulatos dificilmente estabelecem relações afetivas e matrimoniais entre si e com negr@s em geral, pois ambos tem

incutido no seu projeto de vida um processo de melhoramento da raça do qual eles já são fruto.

Interessante notar que o início do definhamento social e histórico do mulato pernóstico começa justamente quando a mulata exportação desponta como novidade entre os anos 1950 e 1960. Um momento de inflexão nesse processo foi quando a caneta deixou de ser um marcador de status na sociedade, algo que sinalizava uma tímida expansão do sistema educacional entre populações mais carentes. Em meados dos anos 1950, um nobre francês chamado Barão Marcel Bich fundou uma companhia cujo principal produto causaria uma revolução na escrita: as canetas de plástico Bic. A Bic Cristal, que podia e ainda pode ser adquirida por uma soma irrisória, passou a ser usada nas funções mais comuns possíveis substituindo o pouco nobre lápis. A partir daquele mo-mento, qualquer indivíduo leigo carregava suas Bics de diferentes cores no bolso da camisa. Atitude máxima de desrespeito para um mulato pernóstico tinham indivíduos que penduravam e carregavam canetas acima da orelha como comerciantes, caixeiros e vendedores dos mais diversos tipos, num comportamento que antes era reservado somente aos lápis usados para fazer contas rápidas e anotações simples em

papéis pardos de embrulho.

As canetas Bic Cristal significaram o fim de uma era onde a caneta elegante de materiais nobres, produzidas além mar e de preço elevado, como a norte-americana Parker, era demonstração

de saber e poder. Assim, mulatos pernósticos começaram a escassear, não eram mais visíveis na fauna social a menos que se prestasse atenção em outros sinais de

sua categoria como os óculos de aro grosso e a linguagem rebuscada. A situação se complicou mais ainda com as transformações no

mundo da moda a partir dos anos 1960 e 1970 quando o terno e gravata deixaram de ser modelos

de se bem vestir.

MÁRCIO MACEDO é doutorando em sociologia pela The New School for Research (EUA),

mestre em sociologia e bacharel em ciências sociais pela USP. Professor Assistente no

curso de Comunicação Social da FIAM-FAAM Centro Universitário.

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O negócio dela era o papel. Com ele obteve, por uma fase de sua vida, seu sustento e de seus filhos. Com ele também passava madrugadas escrevendo seus pensamentos, histórias, poemas, questionamentos, alegrias e tristezas. Dona de uma personalidade mar-cante, seu traço fundamental era a autonomia e a co-ragem em não se submeter ao lugar que a sociedade para ela havia reservado.

Falamos de Carolina Maria de Jesus. É ela quem celebramos. Em 2014, ano em que se completa o centenário de seu nascimento, ocorrido na pequena cidade de Sacramento, em Minas Gerais, festeja-se também a obra da inquieta e questionadora Carolina, que desde os tempos de Bitita (seu apelido de in-fância) exteriorizava perturbações complexas de sua condição de mulher, negra e pobre.

Mas, se você espera ler nas linhas que se seguem algo da superfície da história da mulher favelada, que apesar de viver na miséria escreveu um livro e fez su-cesso, por favor, pare por aqui. Melhor nem continu-ar. Trataremos, sim, de sua história, porém, sob outra perspectiva: a de uma grande escritora brasileira que teve sua existência marcada por condições adversas e difíceis, realidade que não impediu o florescimento de seu talento para a literatura.

Desde pequena, Carolina incomodava a todos por sua curiosidade e perspicácia. Quando aprendeu a ler, en-

tre os sete e nove anos (no início dos anos de 1920), lia tudo o que lhe aparecia na frente. O nível disso era tan-to que, de família espírita, chegaram a pensar que ela estava com algum problema de ordem sobrenatural. Não gostava de frequentar a escola, onde só esteve por dois anos, mas teve em seu avô, a quem chamava de Sócrates Africano, uma importante referência de sabedoria que lhe acompanharia por toda a vida.

Vida esta marcada por grandes dificuldades e pri-vações. Depois de ser presa em sua cidade natal, acusada de roubar o dinheiro de um padre, sofreu violência física e psicológica na cadeia, chegando in-clusive a pensar que iria morrer. Suspeita que não se confirmou. Em vida, a própria escritora contava que, na cela, recebera a visita do espírito de um médico que cuidou de suas feridas e lhe disse que ainda viveria por muitos anos. Por volta do final da década de 1930, quando acharam o verdadeiro culpado pelo roubo e a libertaram, conta a história que, ao sair da prisão, a jovem Carolina partiu da cidade com a roupa do corpo.

Após passar por algumas cidades do interior paulis-ta, em 1937,com suas pouco mais de 20 primaveras, finalmente chega a São Paulo, onde acreditava que teria uma vida melhor. Depois de trabalhar como em-pregada doméstica por alguns anos, finca sua mora-da na primeira favela que se tem notícia da cidade, a Favela do Canindé, na zona norte da capital, lugar

para a lém dos quartos de despejo e das casas de a lvenar ia

texto cHrISTIANE GOmESilustração rOBErTO cAmELO (KrUST)

ilustração Carolina Maria de Jesus. Técnica mista: spray, stencil e nanquim sobre papel canson. 29,7 x 42 cm. 2014.

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onde teve seus três filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice. Lá, ganhava seu sus-tento vendendo o papel que recolhia nas ruas da “cidade”, como ela chamava o centro da capital. Em parte destes papéis recolhidos, Carolina escrevia seu diário. Páginas e mais páginas que, juntas, diagramadas e intituladas, transformaram-se no livro Quarto de Despejo: O Diário de Uma Favelada, best seller literatura nacional, traduzido para mais de uma dezena de línguas e com milhares de exemplares vendidos dentro e fora do país, tornando sua autora conhecida internacionalmente. A viabilidade da publicação do diário, cuja primeira edição foi lançada em 1960, veio através do jornalista Audálio Dan-tas que, em 1958, a conheceu ao fazer uma reportagem sobre a vida na comunidade do Canindé, que ficava às margens do Rio Tietê, onde hoje fica o estádio da Associação Portuguesa de Desportos.

Carolina, conforme dito anteriormente, lia muito. Compulsivamente. Por isso também escrevia a todo o momento. “A imagem mais forte que tenho da minha mãe é ela com o papel e caneta tinteiro nas mãos. Ela escrevia onde era possível. Nunca jogou papel fora porque escrevia em todos eles. Vi isso a minha vida inteira. Vinham as ideias, ela sentava em qualquer lugar e começava a escrever”, relembra sua caçula, Vera Eunice Lima de Jesus.

Professora de literatura da rede municipal de ensino de São Paulo, Vera Eunice me rece-beu em sua casa com muita generosidade, em uma manhã de sábado, regada a muitas histórias e suco de manga. Nelas, relembrou a personalidade forte e intensa da mãe que, em uma entrevista concedida a época, se autodenominou uma “bomba atômica”. A escrita se fazia presente até mesmo nos momentos de raiva. Quando brigava com os filhos, escrevia cartazes enormes e os espalhava pela casa contando as razões do con-flito, quando não escrevia nas próprias paredes, cujos escritos ficavam lá por semanas.

Quando a primeira edição de Quarto de Despejo foi publicada o sucesso foi imediato. Carolina tornara-se uma celebridade (para usar um termo atual de visibilidade no mer-cado da indústria cultural). Todos queriam saber a história daquela mulher. Havia uma curiosidade mórbida em conhecer a vida na favela em condições miseráveis. Tanto que o subtítulo de sua estreia literária reforçava essa ideia: Diário de uma Favelada. Mas passado o “frisson” da burguesia brasileira em saber sua história, Carolina seria “devol-vida” ao seu lugar de invisibilidade.

Para a pesquisadora Fernanda de Miranda, que estudou a obra de Carolina em sua dissertação de mestrado, defendida em 2003 na Universidade de São Paulo, Quarto de Despejo, quebrou muitos paradigmas quando foi lançado, pois seu conteúdo, es-crito em primeira pessoa por alguém que vivia a realidade da favela, rompia com o imaginário romântico do morro “pertinho do céu”. Porém, Miranda é crítica à edição do livro que, segundo ela, suprimiu passagens filosóficas e questionadoras. “A voz de Carolina, para ser legítima mesmo, não poderia ser tão intelectualizada quanto vemos no livro. Era preciso ter mais violência e menos Sócrates. Mais fome e menos soli-dariedade; mais detalhes das brigas entre casais e menos reflexão sobre a vivência naquele espaço. E o editor se concentrou nestes pontos”, afirma.

Também pesquisador da obra da autora, o escritor Marciano Ventura, do Selo Ciclo Contínuo Editorial, aponta que, mesmo com as repetidas edições promovidas há traços de genialidade em Quarto de Despejo. “Imagine o que podemos encontrar

nos manuscritos originais da publicação?”, provoca. Polêmicas a parte no que se refere à figura de Audálio Dantas, é preciso reconhecer seu papel, não de descobridor, mas de fo-mentador da publicação do primeiro livro de Carolina. Bem ou mal, foi através dele que os escritos da mineira ganharam o mundo. “Não podemos deixar de reconhecer esse feito, embora tenhamos diversas críticas. No meu caso, lamento que ele não tenha procurado olhar com mais atenção para os textos literários de Carolina”, destaca Raffaella Fernandez, que pesquisa a obra carolineana em sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

CAROLINEANDO NAS LETRAS

O sucesso estrondoso de Quarto de Despejo despertou em Ca-rolina o desejo de se firmar como escritora. Era a oportunidade de se aperfeiçoar e melhorar sua escrita mostrando ao mundo suas outras produções literárias. Para ela, a ficção tinha um valor diferente dos seus diários. “Era pelo romance e pela poesia que Carolina gostaria de ser conhecida enquanto escritora, em detri-mento da fama e da popularidade angariadas com a publicação dos seus textos autobiográficos”, afirma Fernanda.

Em 1961, um ano após a publicação de seu mais famoso livro, outro Diário foi editado: Casa de Alvenaria, que relatava agora o cotidiano de Carolina depois de sair da Favela do Canindé. Do bar-raco para a casa de tijolos. Neste momento, ela vivia em um sítio em Parelheiros (extremo sul da cidade de São Paulo), comprado com os recursos obtidos com as vendas de Quarto de Despejo. A repetição do sucesso estrondoso não veio. Afinal, a curiosida-de burguesa em saber mais sobre a favela já havia sido sanada. E o público a via como sendo uma exceção, pois representava uma mulher que já tinha tido a sua oportunidade da vida e que, agora, deveria voltar para sua vida invisível. Com isso o interesse das editoras em publicar outros materiais da escritora foi mínimo. Para o grande público da época, Carolina já tinha usado seus 15 minutos de fama.

Porém, falamos de uma escritora cuja altivez, autonomia e inde-pendência eram marcas registradas. Assim, apesar da frustra-ção, Carolina não se contentou com o que a sociedade lhe havia dado. Queria mais. Em 1963, com recursos próprios, custeia a publicação do romance Pedaços da Fome e do livro de pensa-mentos Provérbios.

Pedaços da Fome conta a história de Maria Clara, filha de um poderoso coronel do interior paulista que se apaixona por Paulo, personagem dissimulado que a convence a fugir com ele para a cidade grande. Iludida pelo rapaz, que se diz rico e com posses,

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1. Edição japonesa do livro Quarto de Despejo.Karorina no nikki. Tóquio: Kawade, 1962.

2. Edição dinamarquesa do livro Quarto de Despejo.Lossepladse. Copenhague: Fremad, 1961.

3. Edição italiana do livro Quarto de Despejo.Milão: Valentino Bompiani, 1962.

4. Reprodução do manuscrito inédito O Escravo, escrito por Carolina Maria de Jesus entre o final dos anos 1960 e iní-cio da década de 1970, e que vem sendo pesquisado por Raffaella Andréa Fernandez em seu doutorado na Unicamp.

Apesar do sucesso mundial de Quarto de Despejo, Carolina desejava mesmo publicar seus romances, contos e poemas.

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abandona sua família em busca do amor. Mas a realidade é bem outra e o que Maria Clara encontra é a pobreza da vida em um cortiço do centro paulistano. Neste romance se encontra a cidade e a escas-sez, pontos centrais da obra carolineana e as tensões sociais que as acompanham, sempre com reflexões filosóficas sobre a existência. Já Provérbios reúne pensamentos e aforismos baseados na convi-vência com seu avô, a quem, como já citado aqui, chamava de Só-crates Africano.

Não se sabe ao certo o quanto estas duas publicações venderam, mas os números foram ínfimos. Não se encaixavam na “sagrada tríade” do estereótipo mulher, negra e pobre, onde as editoras gostariam que elas estivessem. “Minha mãe ficava triste com isso tudo. Na época, nin-guém a via como uma escritora. Foi uma grande frustração não conse-guir sair da coisa do diário”, relembra Vera Eunice.

Mesmo com tantas negativas e frustrações, Carolina seguia escreven-do compulsivamente e assim foi até o final de sua vida, em 13 de fe-vereiro de 1977. Em Diário de Bitita, obra póstuma publicada em 1982, e que de acordo com Vera Eunice originalmente se chamava Um Brasil para os Brasileiros, observamos uma Carolina já madura, onde a ge-nialidade da autora, como de habitual, se faz presente ao produzir um escrito que relembra passagens de sua infância e juventude, com os sonhos, expectativas e questionamentos da Carolina dos 6 aos 20 anos de idade. Novamente as crises existenciais profundas estão presentes: “Se Deus não gosta de nós, por que nos fez nascer?”; “O mundo é um teatro de agruras”, são algumas das passagens do livro.

A obra carolineana é caracterizada pela denúncia, com temas fortes e árduos, mas que fazem rir e chorar com seu estilo poético e questiona-dor. A poetisa e assistente social Débora Garcia, que recentemente lan-çou o livro Coroações, classifica a letra de Carolina como “um tapa de luva de pelica”, pela sua capacidade de equilibrar a dureza da crítica com a leveza da poética. “Não existe conto de fadas na obra dela, mas não é uma leitura dura e amarga. Dói, mas com poesia e sem dramalhão porque temos lirismo naquelas palavras. Apesar do tema, a literatura de Carolina é suave e é este talento que a gente precisa celebrar”. Raffaella Fernandez completa: “Carolina é múltipla, mas a que me pega e não solta nunca mais, sem dúvida nenhuma é a quixotesca, prosadora e poetisa. Ela que me fascina, embora a humorista, crítica e a sarcástica me proporcionem momentos de euforia, revolta e empatia”.

A multiplicidade da artista Carolina de Jesus é algo que, realmente, surpreendeu esta jornalista que vos escreve. A vontade de mostrar sua arte ao mundo, de gritar seu olhar e percepções se materializa, por exemplo, na gravação do disco Quarto de Despejo. A gravação, extre-mamente rara, faz parte do acervo do jornalista, crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, e esta sob a guarda do Instituto Moreira Sales (IMS). Em suas 12 faixas, estão a crônica social, a realidade, o

humor e a ironia embaladas em sambas, choros e marchas de carnaval como em Vedete da Favela e O rico e o pobre, compostas e cantadas pela própria Carolina.

A capacidade de se reinventar da escritora também pode ser observa-da nos tempos que antecederam a publicação de Quarto de Despejo, quando Carolina declamava suas poesias em um circo da capital pau-lista. Vera Eunice conta que nesta época – quando tinha por volta dos cinco anos de idade – sempre acompanhava a mãe, que não a deixava com ninguém. No circo, Carolina usava um figurino que ela mesma pro-duzia. “Era um vestido comprido, com um tecido todo furadinho, meio duro, onde ela costurava pequenas lâmpadas, daquelas de Natal. Se chamava Vestido de Luzes. Para mim é uma lembrança muito forte ela toda iluminada declamando poesias no circo”, conta Vera emocionada.

PARA OS PRÓXIMOS 100 ANOS

O centenário de nascimento de Carolina (1914 – 2014) tem sido marca-do por diversas celebrações, especialmente protagonizadas nos meios acadêmicos e pelos movimentos sociais e culturais. Atividades que se propõe a debater, discutir e apresentar Carolina a um público que não a conhece, ao mesmo tempo em que aborda outras facetas da escritora para além de Quarto de Despejo. A escritora Cristiane Sobral, autora de livros como Só por Hoje vou Deixar meu Cabelo em Paz (2014) e Não Vou Mais Lavar os Pratos (2010) destaca que este é um trabalho permanente e que é preciso atenção para que, passadas as comemorações do cente-nário, sua obra não volte para a invisibilidade. “Precisamos estar atentas para Carolina não sumir por mais 100 anos. Minha tristeza é que estou na Academia e quando falo da Carolina, parece que não estamos falando da mesma pessoa. A que eles conhecem é o estereótipo de uma mulher favelada e semi-analfabeta. Uma pessoa ignorante que foi iluminada por um momento e escreveu seu diário”, critica. Para ela, mais do que parti-cipar de seminários e discussões é preciso ter contato com a literatura carolineana. “Se você não sentar pra ler, não se compromete, fica algo frio, teórico. Eu como artista acredito no impacto da obra de arte no ser humano. Por isso precisamos cada vez mais ler Carolina. É este contato, que vai mudar a percepção das novas gerações e mesmo dos cânones da literatura. A gente acredita na qualidade da literatura de Carolina e é por isso que temos que lutar para defender sua obra”.

Se depender dos círculos culturais da literatura periférica de São Paulo, é isso que vai acontecer. Para Debora Garcia esta é uma responsabilidade destes movimentos. Mesmo porque, Carolina Maria de Jesus pode ser considerada precursora da literatura produzida a pleno vapor atualmente nas bordas das grandes cidades e que tem na capital paulista sua ener-gia mais pulsante. “Para mim, foi Carolina que abriu este espaço. Eu, por exemplo, já escrevia há muitos anos, mas não me via como escri-tora. Quando me deparei com ela, uma mulher autodidata que produzia

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literatura naquele contexto, vi que era possível. E ela foi a primeira que falou com propriedade da periferia se inserindo nesta narrativa. A Carolina inovou neste sentido e abriu os caminhos pra gente fazer a nossa crítica e contar as nossas histórias”, diz Débora.

Mesmo com comprovada excelência literária de Ca-rolina, observada, por exemplo, nas falas de impor-tantes estudiosas do gênero aqui apresentadas, e no sucesso editorial de Quarto de Despejo, encontrar as obras da escritora nas mais tradicionais livrarias do país ainda é uma tarefa árdua. Buscas e pesqui-sas em sebos acabam sendo a melhor, quando não a única opção. Mas, para alegria dos amantes da sua escrita e do seu legado, um novo livro, com dois con-tos inéditos de Carolina, acaba de ser lançado: Onde Estaes Felicidade? (organização de Dinha Maria Nilda e Raffaella Fernandez) publicado no último mês de novembro, pela Me Pario Revolução, e viabilizado através de uma parceria envolvendo a Fundação Cul-tural Palmares e o Selo Ciclo Contínuo Editorial, o li-vro mantém a agramaticalidade da língua portuguesa processada nos escritos originais da autora. “Sabia da importância de uma publicação mais genuína que devolvesse a integralidade da obra da autora ainda por vir. Sabíamos das dificuldades da publicação de uma obra literária desse porte via editoras de grande circulação e reconhecimento público, pois essas não reconhecem e/ou não apostam nas texturas da Caro-lina escritora”, conta Raffaella Fernandez.

Há ainda uma grande produção literária de Carolina Maria de Jesus sendo descoberta e estudada, espe-cialmente no universo acadêmico, e a Revista O Me-nelick 2ºAto tem a honra de publicar dois destes tex-tos inéditos. São eles o conto O Escravo e o poema Os Feijões. Desta maneira, acreditamos contribuir para a popularização dos escritos de Carolina Maria de Jesus. Somente assim sua obra permanecerá viva e andante não apenas por mais 100, 200 anos, mas para sempre, como toda a obra de um grande repre-sentante da literatura brasileira.

O Escravo

Quando inicióu o trafico de negrós para o Brasil os ri-casos do Rio de Janeiro, fôram os primeiros que com-prou negros para revender. E entre êles estava o meu bis-avô que foi revendido varias vêzes. E como quem compra é dono os pretos não tinham vontade propria.

Um preto apanhava muito ressolveu fugir. Embre-nhóu-se na mata. Andóu indeciso até encontrar uma taba de indios. Quando êles viu o preto, pensaram que era uma macaco

O preto quiz fugir. Foi atingido por uma flexa na perna e caiu gemendo. Os indiós aproximaram observando--o incredulo com a sua côr preta. Côr da nôite. Carre-garam o preto para a taba. Ritiraram a flexa, o sangue jorrou-se.

Eles provaram o sangue. Era doçê igual ao sangue dós brancós. E era vermêlho igual ao sangue das fé-ras, que êles habatiam. Falavam. E o preto não enten-dia. Mas o gemido do preto era igual ao das pessôas feridas. Pensaram será que êste homem de pele pre-ta da côr da nôite, é melhor do que ós brancos? Res-solveram curar a ferida que sangrava. Puzeram uma infusão, e a dôr cessóu-se. Deram ao negro carne de avês e pêixe para comêr, e frutas selvagens.

Mas conservaram o preto amarrado com cipó e em-bira. O preto chorava e pensava na sua mãe que de-via estar Amarrada no tronco. Recordava da Africa onde êle era feliz e podia cantar ao som da cuica e da canjarra. Um dia levaram o preto as margens do rio para lava-lo.

Começaram a esfregar o preto com uma pe-dra rustica, para clarea-lo. Dôis seguravam, e outro esfregavam.

Dêixaram o preto em carne viva. Ele chórava, e mórreu de dôr. Os indios pensaram que a sua cór preta, era sugeira

Pobre preto que anciava a liberdade e encontróu a mórte. Ou de um gêito, ou de outro, o preto sempre encontra obstaculos na vida.

Os Feijões

Será que entre os feijõesExîstem o preconceitoSerá que o feijão branco.Não gosta do feijão prêto?Será que o feijão preto é revoltado?Com seu predominadorPreçebe que é subjulgadoO feijão branco será um ditador. Será que existem rivalidades?Cada um no seu lugarO feijão branco é da alta sociedade.Na sua casa o feijão preto não pode entrarSerá que existem desigualdadesComentarNas grandes universidadesO feijão prêto não pode ingressarSerá que existem as seleçõesPrêto pra cá e braço e branco pra láE nas grandes reuniõesO feijão prêto é vedado entrar?Crêio que no nucleo dos feijõesNão existem as segregações.

*Transcrição e estabelecimento dos textos Raffaella Andréia Fernandez

CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestre em Comunicação e

Cultura pela USP. Atua como coordenadora do corpo de dança

do Bloco Afro Ilú Obá de Min, na cidade de São Paulo.

PARA LERQuarto de Despejo – Diário de uma favelada (1960)Casa de Alvenaria – Diário de uma ex-favelada (1961)Pedaços da Fome (1963)Provérbios (1965)Diário de Bitita (1982)*Meu Estranho Diário (1996)*Onde Estaes Felicidade? (2014)*

*Obras póstumas.

PARA OUVIRDisco: Quarto de Despejo Disponível em: radiobatuta.com.br

PARA VERO Papel e o Mar Disponível em: www.youtube.com

PARA CELEBRAREm 2015 o Bloco Afro Ilú Obá de Min, sediado na cidade de São Paulo, homenageará a escritora em seu carnaval. Os ensaios já começaram!+ INFO facebook.com/ilu-oba-de-min

CAROLINA MARIA DE JESUST E X T O S I N É D I T O S

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U m a a r q u e o l o g i a c o m E l H a d j i S yH i s t ó r i a s q u e n ã o a f u n d a m n o m a r

As imagens exibidas ao longo do texto são reproduções da obra Arqueologia Marinha, apresentada por El Hadji Sy na 31ª Bienal de São Paulo.

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Aquele corredor vazio da fotografia imaginária exis-te para ser ocupado, para o público interpretar suas estranhezas ou feições óbvias a partir do seu próprio corpo, da sua história. A participação pública no cerne da obra, longe de constituir mero atrativo, é parte do discurso e preocupação fundamental do artista sene-galês, que lá pros idos dos anos de 1970, em Dakar, capital do Senegal, integrou um importante coletivo artístico: o Laboratoire Agit’Art.

ARTE COMO AÇÃO No final dos anos de 1960 diversos países do continen-te africano viram suas estruturas político-sociais fragi-lizadas e seus projetos de reconstrução baseados em ideais pan-africanistas em decadência. Após o período de fervor político e cultural, impulsionado pelos movi-mentos de descolonização, essas nações assistiram à ascensão de regimes ditatoriais e outras chagas. No campo cultural, os nacionalismos calcados em ideias artificiais sobre tradição já não cabiam mais no pote. Nesse cenário de quebra de estruturas, posteriormen-te agravadas pela imposição da cartilha do BM (Banco Mundial) e do FMI (Fundo Monetário Internacional), o Senegal, regido pela batuta de Leopold Sedar Sen-ghor (1906-2011), célebre por suas políticas de incen-tivo à cultura e pela difusão da Négritude, poderosa e controversa proposta que intentava criar conexões e ressaltar os traços comuns de povos africanos e da diáspora negra, vê brotar um coletivo interdisciplinar composto por poetas, cineastas, pintores, escultores

Um painel suspenso com aplicações em cordas que trazem desenhos de corpos enfileirados em descon-forto. Um corredor vazio, semelhante a uma passa-rela... do outro lado um baobá cujos galhos gigantes-cos pareciam os tentáculos de um polvo. Penso nas raízes profundas dessa árvore que alcança séculos... Penso no mar - sinônimo de movimento... Aqui, minha fotografia imaginária da Arqueologia Marinha, obra do artista visual e curador El Hadji Sy (1954). Em sua estadia na paulicéia, esse senhor elegante e de olhar sereno, deixou algumas pega-das: Um pensamento concretizado em criação ar-tística, boas conversas que só os mestres sabem delinear no tempo da ampulheta e uma importante lembrança: a necessidade de termos memória de futuro – expressão que à princípio parece aludir a uma inversão de tempos, mas que aponta para a po-tência de recriarmos em corpo vivo as lembranças e nos lançarmos adiante.

As composições de El Sy são comumente entidades colaborativas. Buscando expandir as relações entre as diferentes linguagens, ele propõe conexões que fortaleçam a existência dos seus trabalhos. Compar-tilhei com o mestre uma ativação cênica, conduzindo um grupo de 21 bailarin@s que capturaram as paisa-gens da obra, os rastros internos individuais e trans-formaram tudo isso em dança. “Buscamos vestígios de outros de nós”, palavras de uma companheira do processo. Ao encontrarmos esses outros nos reco-nhecemos neles e nos habitamos com força.

texto LUcIANE rAmOS SILvAfotos ANA PAULA LEÔNcIO

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músicos que propunham um diálogo social crítico a partir de suas práticas artísticas baseadas no impro-viso, na experimentação e na percepção do público como participante fundamental de seus processos.

O grupo, que além de El Sy, agregava figuras como o pintor, escritor e filósofo Issa Samb (1945), o cine-asta Djibril Diop Mambety (1945-1998), o dramaturgo Youssoufa Dione, o artista visual Amadou Sow (1951) o fotógrafo Bouna Seye (1956), entre outros artistas, caminhava no contra fluxo das estruturas oficiais de fo-mento, formação e difusão da arte, valorizando a fuga-

cidade mais que a permanência e os processos, mais que os produtos, criticando o modus operandi formalis-ta da École des Beaux-Arts, criada por Senghor dentro do projeto de transformar Dakar numa capital das artes.

A concepção porosa do Agit´Art não impunha exigên-cias ou regras para filiação. Qualquer pessoa poderia se tornar membro. O grupo propunha espaços abertos para realização e exposição das obras, trazendo a vida cotidiana para o centro dos acontecimentos. Esses espaços podiam ser quintais que ficavam disponíveis para circulação e intervenção do publico. Elementos

como canos, plásticos, barras de metal e garrafas eram matéria prima vigorosa para as criações do grupo. Seria uma alusão direta à reciclagem? Ou uma prática coti-diana relacionada à arte tradicional africana que, muitas vezes, concebe a obra a partir da junção de diversos materiais agregados, referindo-se à ideia de totalidade e a conexão das forças da natureza com o cosmos?

Ao proporem o distanciamento em relação às artes decorativas e apolíticas, os artistas do coletivo mo-tivavam outros criadores a imprimirem perspectivas mais críticas às suas práticas.

OUTRAS PONTES

Na obra Foot painting (1977), El Sy apresenta um discurso incisivo ao compor a pintura usando os próprios pés, em ironia à ideia de mão exímia e à própria noção de assinatura, criticando também as imagens turísticas difundidas pelos órgãos de propaganda que serviam o governo. Essa compo-sição circulou por galerias de Nova York, Boston, Toronto e Washington DC, entre outras localida-des, quando a produção do artista começava a ga-nhar espaços internacionais.

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Ao cruzar fronteiras e ocupar instituições dos centros legitima-dores das artes, El Sy amplia a potência expressiva de seu pen-samento artístico quando o apresenta a outros públicos. A juta que o artista utilizou nos anos 80 e cuja textura e feição rustica era um contraponto à custosa tapeçaria produzida no Centro de Artes Decorativas de Thiès, outra obra estatal do então governo senegalês, é revisitada na concepção do baobá-polvo, integran-te da 31ª. Bienal de SP, ganhando outros significados quando cruzada com percursos brasileiros. O cenário da arte contemporânea para os criadores oriundos do continente africano mudou substancialmente nos últimos tempos na medida em que esses artistas tornam-se propulso-res de seus próprios discursos. É certo que há um caminho pedregoso para o reconhecimento desses pensamentos esté-ticos em suas pluralidades no panorama mais amplo das artes. Mas, de fato, outras portas começam a se abrir - distintas dos museus etnográficos e coloniais.

SOBRE COISAS QUE NÃO EXISTEM Entrelaçando arte e política, a edição deste ano da Bienal de Artes de São Paulo propõe extensa programação que, além das obras em exposição, busca extravasar os muros da instituição, historicamente pouco permeáveis às gentes comuns, através de rodas de conversas, saraus, simpósios, shows, exibições de filmes, plantões educativos e outras atividades que tecem cone-xões com contextos socioculturais diversos, como os fazeres e saberes de coletivos populares e das periferias. Será essa uma aproximação comprometida não apenas com o calor da hora e a engrenagem do grande mercado cultural, mas com uma real mudança de relações capaz de cutucar e propor situações de reflexão? Capaz de catalisar públicos diversos, que possam se reconhecer ou se incomodar, sobretudo aqueles que normal-mente tem pouco acesso e relação com a arte contemporânea, elitista por natureza?

Do continente africano fincaram terreno na Bienal a artista visual e performer nigeriana Otobong Nkanga (1974), os ar-tistas visuais Tiago Borges (1973) e Yonamine (1975), ambos nascidos em Angola e o senegalês, El Hadji Sy, mote destas páginas, que permaneceu um tempo em residência em São Paulo para compor sua Arqueologia Marinha.

A obra propõe ao público brasileiro um exercício de mergulho em memórias que tem como ponto de partida a experiência da travessia atlântica, mas não se encerra nela. É preciso interpretar suas cores, formas e texturas, com o corpo no presente, refletin-do sobre nossa brasilidade.

A referência ao “holocausto da escravidão negra” não resume a proposta da obra, que anuncia detalhes, camadas de sedimen-tos que foram recriadas na diáspora. O painel com cordas que reproduzem figuras humanas poderia ser interpretado como simples alusão ao navio negreiro, se não tivéssemos realidades ironicamente atualizadas nos cotidianos de corpos amontoados nos transportes coletivos, nos camburões da Polícia Militar. Sem coincidências, são corpos quase sempre negros.

O saco de juta com marcas de pés e carimbos do “Café do Bra-sil” aponta para fatores diversos que continuam a queimar nos-sas línguas. São narrativas dos tempos áureos dos barões que prosperaram em palacetes nas célebres avenidas paulistanas. São referências da substituição da mão-de-obra negra pelo braço de migrantes europeus - face do projeto civilizatório que mira-va o branqueamento da nação. É o café que produzimos, mas que não bebemos, porque é “tipo exportação”. São os novos ciclos de exploração negra, indígena e nordestina que mantém as gentes de melanina acentuada invisíveis, atrás de balcões, vassouras e demais subserviências. A Arqueologia Marinha nos chama atenção para a relação entre história, memória e esque-cimento. E não trata-se de reforçar a tragédia escravista como uma ladainha sem melodia. Perceber a escravidão africana sem refletir sobre suas mazelas contemporâneas é saco furado.

Visualmente a Arqueologia talvez não dê conta de anunciar isto tudo, mas sua plasticidade pode compensar esse desequilíbrio. Assim, para aprofundar a percepção dos significados é preciso mergulhamos nela. Quando os 21 bailarin@s de histórias corpo-rais diversas ocuparam seu espaço, a obra evocou sentidos em voz alta e tornou-se lente ampliadora da vida social.

‘Inácia Bororo. Morreu abraçada com a pequena Paloma, esmaga-da por um caminhão. Índia, cacique, mãe. Danço em sua home-nagem, sempre”

“Irani mandacaru – De onde venho a terra é seca e fértil”

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LUCIANE RAMOS SILVA é doutoranda em

Artes da Cena pela UNICAMP e mestre em

antropologia pela mesma instituição, é ba-

charel em Ciências Sociais pela USP. Atua na

área de estudos africanos, educação e artes

do corpo.

PARA VER

PARA LERAnthologie des arts plastiques contemporains au Sénégal. Autores: Friedrich Axt, El Hadji Sy. 1989.

In Senghor's Shadow: Art, Politics, and the Avant-Garde in Sene-gal, 1960–1995Autora: Elizabeth Harney, 2004

Eu sou atlântica (sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento)Autor: Alex Ratts. 2006.Disponível em: imprensaoficial.com.br

EM BREVEEL HADJI SY – Pintura, Performance e políticaWeltKulturen Museum , AlemanhaPrevisão de Abertura da exposição: Março/2015

A pesquisadora, curadora e crítica de arte Clémentine Deliss, fala sobre coletivos de arte de Dakar dos anos 90.Vídeo disponível em: afterall.org

“Meu nome é Dona Gorda, tenho cascatas de gordu-ra. Venho da poça d´agua que o mar faz com a rocha”.

“Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avan-çando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos bebe em goles grandes.”

(Narrativas criadas pelas bailarinas/os como parte do processo para a Ativação Cênica da Arqueologia Marítima. Autorias: Fredyson Cunha, Jaqueline Duni, Beatriz Aranha e Ana Maira Favacho )

A compreensão do legado civilizatório das popula-ções de matrizes africanas no Brasil é ainda um livro longo a ser escrito. Os temas presentes na Arqueo-logia Marinha são abordados em inúmeros trabalhos produzidos por uma intelectualidade liberta das estru-turas de dominação e comprometida com uma dis-

cussão que aborde as complexidades, contradições e urgências do assunto. Oxalá o educativo da Bienal tenha preparado seus educadores com essas letras profundas. Leda Maria Martins, Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes e tantos outros- boas leituras pra sair da mesmice.

E na estreia da exposição, quando nossa pele suava satisfeita com a sensação de missão cumprida, logo após a ativação cênica, El Sy afirmou, apontando para as figuras dos corpos do painel: Il son les morts, vous êtes les vivants. (Eles são os mortos, vocês são os vivos).

A Arqueologia nos provoca para confrontarmos as águas, lodos e espinhos da experiência diaspórica - mar profundo. Para decantar os mistérios, topar os desafios e escurecer as páginas deixadas em branco.

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DESCOLONIZARA ESTÉTICA

O que pode ser a moda além dos circuitos legitima-dos de poder? Quando as inventividades das culturas de matrizes negras serão empunhadas pelos seus protagonistas e deixarão de ser objeto em mãos oportunistas que, por ignorarem a engrenagem his-tórica e social, percebem-se bem intencionadas? O que significa criar com perspectivas afrocentradas quando o consumo e as referências são ditadas por um mercado que normatiza a estética? Conversamos com três estilistas e consultoras de moda de dife-rentes gerações para conhecermos suas escolhas, parâmetros e intenções.

texto LUcIANE rAmOS SILvA, NABOr Jr. E rENATA FELINTO fotos mANDELAcrEW

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Formada em Criação de Moda pela Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), a estilista, personal stylist e produtora de moda Bruna Battys fundou a grife que leva o seu nome em 2009, “com a pretensão de criar peças com formas, tecidos, modelagens, cores e estampas diferenciadas, trabalhando com as últimas tendências da moda e criando conceitos a cada coleção desenvolvida”, afirma. Atualmen-te, dedica-se a criar, desenvolver e confeccionar figurinos e uniformes para empresas e eventos coorpo-rativos, além de ser figurinista da cantora Negra Li.

O MENELICK 2º ATO - Você acre-dita que haja uma estética na moda, estilo e maquiagem que possa ser chamada de negra ou afro-brasileira e que não recai em estereótipos, ou seja, a ma-neira como esperam que nós ne-gros nos vistamos e que possa ser aplicada/ usada no cotidiano para o trabalho, uma festa sim-ples, etc?BRUNA BATTYS: Eu acredito que não existe nomenclatura, toda a forma na qual nos vestimos, nos maquiamos, o estilo que usamos para o nosso cabelo, é cultural, natural. A forma no qual nos ves-timos para a sociedade, festa, tra-balho etc. São frutos de nossas raízes. Um look que transparece a moda afro-brasileira está nos pe-

Estilista, empresária, empreende-dora, Mariana Nascimento traba-lha com moda há 21 anos “apesar de não incluir nesta conta minhas mais antigas lembranças que se relacionam ao vestuário e a moda, ainda guardo desenhos de croquis que fiz com nove anos”, recorda. Há cinco anos decidiu abrir o pró-prio espaço, a refinada Casa Pau Brasil. “Ao investir num espaço próprio, quis finalmente criar um lugar que evidenciasse nossas ri-quezas sem fazer uso de nenhum clichê, utilizando a moda como aliada e não como ditadora, quis usar as ferramentas que ela pro-picia numa busca permeada por rigor estético mas absolutamente vinculada à valores atemporais”.

O MENELICK 2 ATO - É possível realizar uma anti-moda? Formas de vestir e se expressar que não estejam amarradas por tendên-cias ditadas pelo mercado? Com tamanhos, modelagens, cores libertas assim como um conteú-do que expresse de fato a identi-dade de quem veste?MARINA NASCIMENTO: Minhas criações são sempre atemporais. Eu acho que temos que fazer uso das tendências, das contempora-neidades, e fazer uso das novas descobertas das modelagens, recursos tecnológicos. Eu gosto muito de propor conversa com

quenos detalhes, como tecidos, estampas, cores e formas.

OM2ºATO - Quais são os maiores desafios enquanto mulher, negra e criadora/ empreendedora?BB: O desafio maior é viver em um país racista, pois dependendo do público que você quer atingir, muitos não entendem, não acei-tam suas criações e produtos. Infelizmente não temos no Bra-sil um espaço adequado para a moda afro-brasileira, enquanto a moda dita brasileira vem crescen-do gradativamente.

OM2ºATO - Quais são as referên-cias criativas que você se inspira ao montar um visual, uma ves-timenta? Quais estilistas, artis-tas, paisagens, lugares, livros e pensamentos te influenciam no momento criativo?BB: Ao iniciar um trabalho, seja desenvolver novas coleções ou produzir meus clientes, busco me inspirar com a história do tema es-tabelecido, a partir deste principio vou atrás de referências, lugares como o Museu Afro Brasil, desfi-les, vou ver a produção de estilis-tas como Goya Lopes, Mônica An-jos, Oswald Boateng e Stella Jean, ler livros sobre a história da moda, das tecelagens, das composições, revistas sobre tendências e, princi-palmente, a música, que me inspi-ra diariamente.

seda pura, por exemplo. Mas eu acho que sempre é possível ter uma moda atemporal. Peças que falam de mim hoje e que vão fa-lar de mim daqui 10 anos. Eu acho muito possível isso. Eu acho in-clusive o ideal. Eu tenho um ideal de luxo que é um pouco diferente do que as pessoas em geral tem. Para mim luxo se refere ao que é único, especial, por conter, ou con-tar um legado, uma história, con-ter todo essa herança que a África e o Brasil tem. Berços riquíssimos, que conversam entre si e por isso extremamente luxuosos, únicos e absolutamente atemporais.

A loja conta com um mix, com peças feitas em tecido africano, mas também, por exemplo, te-mos uma parceira, uma estilista, que fez uma marca em parceria com uma aldeia indígena do Acre (Yawanawá), onde eles mesclam seda pura, missangas desta tribo. Então eu acho que é isso, a pos-sibilidade de ter em um lugar – o que eu acho óbvio, mas não é por-que não vejo por aí – porque eu acho que é claro que tem que ter a contribuição indígena, africana no mesmo lugar, e junto com a con-tribuição europeia que ela existe e permeia todo o modo de vestir meu, seu, nosso.

Gosto da possiblidade de ter um lugar que foge das característi-

ENTREVISTA BRUNA BATTYS ENTREVISTA MARINA NASCIMENTO

GRIFE BRUNA BATTYS facebook.com/grife.battys | brunabattys.wordpress.com | [email protected] | (11) 98232 4639 CASA PAU BRASIL Rua Fidalga, 403 – Vila Madalena | casapaubrasil.com.br | facebook.com/pau-brasil.modadecoarte | (11) 2619 8557

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estilo e maquiagem que possa ser chamada de negra ou afro--brasileira e que não recai em estereótipos, ou seja, a manei-ra como esperam que nós ne-gros nos vistamos e que possa ser aplicada/ usada no cotidia-no para o trabalho, uma festa simples, etc? Um exemplo de composição/ roupas e acessó-rios possíveis.MM: Acho que existe, mas falta a gente se apropriar dela. Gosto muito da moda da Goya Lopes, por exemplo. Para mim, no meu conceito, ela faz uma moda afro--brasileira legítima, principalmente por produzir ela mesma as estam-pas das roupas. Ela não traz o teci-do africano ou compra esse tecido em uma loja, ela mesma desenha e faz as estamparias. E eu valorizo muito isso.

O MENELICK 2º ATO - Quais são os maiores desafios enquanto mulher, negra e criadora/ em-preendedora?MARISA MOURA: Acho que os maiores desafios são dois: oportu-nidade e investimento. A criação, o trabalho, isso nós temos, o que nós falta mesmo é o investimento financeiro e oportunidade para dar-mos visibilidade a nossa produção. E se nós olharmos para trás e ob-servarmos as histórias dos negros e dos brancos no nosso país vere-mos que uns tem mais oportuni-dades e investimentos que outros.

Natural da cidade de Araraqua-ra, no interior paulista, a estilista Marisa Moura cursou o Magis-tério antes de dedicar-se exclu-sivamente à moda, lecionando durante um longo período nas redes públicas de ensino munici-pal e estadual de São Paulo. Sua singular produção, que ela própria define como "inspiração negra", baseia-se em releituras de hábi-tos, costumes e inventividades no modo de se vestir dos negros nas antigas senzalas. “Meu primeiro trabalho dentro deste contexto negro, foi um desfile de moda afro do qual participei em 1997. O trabalho artesanal está no DNA da minha família”, conta.

O MENELICK 2º ATO - Em seu processo criativo você utiliza diretamente algum elemento oriundo da cultura diaspórica ou indígena? (Exemplos: palha da costa, wax, missanga). Você propõe alguma reinvenção, atualização?MARISA MOURA: Eu uso muito palha da costa, búzio, muita se-mente, eu gosto muito. Acho que o meu trabalho é uma releitura daquilo que os negros faziam na senzala. Eu tive uma prima que sempre me contava histórias dos negros e do que eles faziam na senzala, e ela juntava retalhos, fa-zendo os trabalhos manuais e eu admirava tudo que ela fazia. Então essa herança ficou. Eu não consi-

go fazer nada hoje sem antes fazer um pensamento, uma oração para os meus antepassados. Eu acho que nós temos que ter história. Quem não valoriza o passado não tem futuro. Não podemos esque-cer a nossa história. Nós não caí-mos de paraquedas aqui. Por tudo que eles passaram eu acho que é uma homenagem. O DNA do ne-gro é a arte.

Historicamente os negros usa-vam algodão cru, que era um te-cido que ninguém usava, que era entre aspas lixo, estopa e com isso eles modelavam e faziam as roupas deles, e barbante. Esse material é a base e eu me apro-prio dele. Daquilo que o negro deixou na senzala, quatro ele-mentos norteam meu trabalho: a arte em retalho, esse trabalho de pegar um pedaço ali outro aqui e construir uma peça; a amarração que é o princípio de tudo, anti-gamente não tinha modelagem e eles próprios faziam a modela-gem. Aliás, que a França pegou e transformou em mulange, que é caríssimo, mas nada mais é do que herança nossa, eles pega-vam tecido e amarravam no cor-po e desses tecidos faziam vá-rios modelos; a bata e a pintura. Além dos acessórios onde utilizo muito metal.

OM2ºATO - Você acredita que haja uma estética na moda,

ENTREVISTA MARISA MOURA

cas de exotismo, da roupa folcló-rica, e traz uma roupa mais con-temporânea e atemporal para um lugar onde estas conversas sejam possíveis.

OM2ATO - Na indústria global de consumo, com todas as suas ex-clusividades e acessos restritos para produzir e consumir, qual o lugar das estéticas negras? En-tendendo o conceito de estética não só como visualidade, mas como forma de estar no mundo.MN: Acho que este lugar é justa-mente o não-lugar. Esta estética negra pode permear tudo e pode ser muito porosa. Ela pode con-versar, propor diálogo com outras estéticas, ou seja, também é um lugar de troca, de diálogo e que ainda está se definindo, é um ca-minho. Importante salientar que é um lugar de resistência, afirma-ção, identidade.

OM2ATO - Em seu processo cria-tivo você utiliza diretamente al-gum elemento oriundo da cultu-ra afro-diaspórica ou indígena? Por exemplo, palha da costa, wax, missanga. Você propõe al-guma reinvenção, atualização?MN: Atualmente estou utilizando o wax, que pra mim além de um tecido é um bem material com um valor enorme. Tenho pensa-do muito em conversas, diálogos mesmo. E tenho usado este teci-do que tem uma cultura imagética

muito grande, eu penso que deve-mos dar um tratamento à altura. Então temos que nos preocupar com a modelagem, com preciosis-mos no acabamento e trazer uma modelagem que seja atemporal, que não fique ligada a nenhuma tendência, porque o tecido não é ligado a nenhuma tendência.

Agora o diálogo que tenho pen-sado é com a renda renascença, especificamente, renda do sertão. Uma renda feita artesanalmente e gosto muito desta conversa. Este também é um material carrega-do de valor. Penso também no Movimento Armorial, que tratava das culturas e da arte popular do nordeste e tentava dar um cará-ter erudito a elas. Um movimento que criou uma arte a partir da arte popular, e eu acho que é preciso este olhar, com esta significância com relação ao wax, que tem um potencial que ainda não foi plena-mente utilizado.

MARISA MOURA – INSPIRAÇÃO NEGRA [email protected] | (11) 9 9919 6622 / 3981 1672PARA LER E ASSISTIR Confira entrevista na íntegra com as três estilistas em omenelick2ato.com

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DIVA veste Mini-jaqueta jeans com forro ace-tinado estampado. Saia mullet cintura alta com estampa forrada acetinada e estampada. Acessórios dourados com strass e brincos pe-rolados. Sapatos acervo pessoal.

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GRACE ELLEN RUFINO veste top de seda pura Daniele Mifano, saia de tecido africano

Casa Pau Brasil, braceletes Márcia Beatriz. Sapato acervo pessoal.

Make modelos Casa Pau Brasil: Ariane Molina (facebook.com/arianemolinamaquiagem)

ANA CAROLINA RUFINO veste Vestido com tecido africano Casa Pau Brasil, brin-

cos e anel Helena Di para Casa Pau Brasil e bracelete de latão entalhado com

madrepérola por Sandra Marão para Casa Pau Brasil. Sandálias acervo pessoal.

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DIRCE THOMAZ veste Vestido de algodão cru, retalha-

do e bordado com linha de algodão. Colar com pedra-

rias e ágata de fogo. Sapato e xale acervo pessoal.

ADRIANA BARBOSA veste Vestido-saia de malha trabalhada feita em

retalhos. Colar de retalhos de seda. Brinco em madeira pintada a mão e

mini turbante em malha. Bota acervo pessoal.

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O Museu de Arte de São Paulo, o MASP, um dos mais importantes da América Latina, recebeu neste agosto último uma doação de obras de arte de origem iorubana, ou do povo ioruba, situados, prin-cipalmente, nos atuais territórios do Benim e da Nigéria, na África Ocidental. Fato inédito e de gran-de importância para se pensar so-bre a instituição e suas exibições. A Revista Menelick 2º Ato, que há tempos traz informações sobre cultura e arte - africana e afrodes-cendente - dedicou uma tarde à visitação dessa pequena mostra. Observamos e refletimos acerca da expografia, que é a maneira como as obras estão dispostas no espaço da exposição; sobre que tipos de obras exibidas dentro da infinidade possível de objetos estéticos de origem africana; como os mesmos estão apresen-tados ao público visitante a partir do texto curatorial; enfim, tenta-mos trazer para nossos leitores e leitoras uma apreciação acerca da exposição Do Coração da África: Arte Iorubá, da Coleção Robilotta do MASP, concomitantemente à uma retomada histórica despre-tensiosa de como a arte chamada “negra” por muitos críticos de arte brasileiros ainda hoje, foi e vem sendo recebida e apresen-tada. É imprescindível lançarmos

esse olhar mais amoroso e cui-dadoso, afinal de contas, nossos antepassados não retratavam a si, aos seus costumes, deuses, anseios e desejos por meio de pinturas à óleo, mas sim, tendo como ferramenta de materiali-zação a escultura em madeira, ferro e latão, e em alguns casos isolados, como no caso dos panos apliques do Benim, em tecido, quase que como num pachtwork. Dessa forma, essa imaginária es-cultórica nos representa enquanto iorubano-descendentes, reveren-ciando nossos antepassados.

Bem, para tratar com maior aten-ção desse acontecimento que traz a público pela primeira vez a arte dos nossos antepassados num museu que apresenta majoritaria-mente arte ocidental desde a sua fundação e são essas mesmas que estão em seu prestigiado acervo, temos que retornar um pouco no tempo para tratar da história da constituição dessa instituição.

O MASP foi idealizado e fundado em 1947, pelo então jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1892 - 1968) e pelo jornalista e crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi (1900 - 1999), ambos homens visionários e de extrema importância para a sedimentação

O MASP, prédio finalizado em 1968, projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi

e fotografia de Hans Gunter Flieg, que trabalhou com Lina Bo Bardi .

NOSSOSANTEPASSADOSTRANSFORMADOS EM ARTE NO MASP

texto rENATA FELINTO

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de instituições culturais de arte em São Paulo. Primeiramente a insti-tuição fixou-se em alguns andares do edifico onde Pietro Maria Bardi tocava seus muitos negócios, à saber, 34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 estações de televisão, editora e a revista O Cruzeiro.

O acervo do MASP, com destaque para suas valiosas obras de arte européia, com foco nas italianas e francesas, foi adquirido pessoal-mente por Pietro Maria Bardi em viagens à Europa num período de reconstrução do continente e do restabelecimento da ordem: o pós Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945). Tenhamos em men-te que milhares de famílias judias que tinham posses e, mesmo famílias não judias, foram absolu-tamente desestruturadas durante a guerra e muitas se viram ou foram obrigadas a se desfazerem de seus patrimônios. Entre os bens que essas famílias perderam estavam as obras de arte. Esse fato é controverso, obviamente

que uma instituição do calibre do MASP, nunca admitiria que parte considerável das raridades da arte européia de seu acervo foram adquiridas tendo como vantagem os malefícios causados pelo pós--guerra a muitas famílias. O fato é que parte dessas obras estavam disponíveis devido a esse contex-to de destruição.

Os recursos para arrecadação de verba para aquisição deste acervo fora levantado junto ao empresa-riado pelo influente Chatô, como era conhecido o famoso mecenas Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892 – 1968). São Paulo, escolhida para sediar a instituição que fora projetada pela esposa de Bardi, tornar-se--ia, dessa forma, além de capital financeira devido à produção e co-mércio cafeeiro, também capital cultural. A nova sede projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi (1914 - 1992), italiana naturalizada brasi-leira, como uma caixa suspensa de vidro sobre quatro pilares de

concreto, revolucionou os concei-tos de arquitetura até então, não somente pelo moderno desenho, mas também pela vista que dá para a Avenida 9 de julho, que foi preservada com a concepção do chamado “vão livre”, lugar que atualmente é ponto de encontro das mais diversas manifestações populares da cidade. Tornou-se emblemático, bem como gostaria a visionária e democrática Lina se a mesma estivesse viva. Entre-tanto, essa também foi uma das condições impostas à arquiteta pelo doador do terreno:

“Foram 12 anos entre projeto e execução. Lina trabalhou sob uma condição imposta pelo doador do terreno à prefeitura de São Paulo: a vista para o Centro da cidade e para a Serra da Cantareira teria de ser preservada, através do vale da avenida 9 de Julho”.

O Museu foi inaugurado em 1968, contando com a ilustre presença de personalidades como a Rainha

Elizabeth II da Inglaterra, além das maiores autoridades brasileiras da época e uma grande participação popular em frente ao edifício. Em seu acervo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 1969, que conta com 8 mil pe-ças, estão obras de artistas como o renascentista Rafael Sanzio (1483 - 1520), o impressionista Claude Monet (1840 - 1926)), o cubista e um dos artistas mais vigorosos do século 20, Pablo Picasso ( 1881 - 1973), e de brasi-leiros como o acadêmico Almeida Júnior (1850 - 1899) e Cândido Portinari (1903 - 1962). Após esse panorama sobre o MASP você pode concluir com mais dados o porte da instituição.

Durante muito tempo a arte feita pelos povos tradicionais africa-nos, que entre os especialistas dos dias de hoje não é mais nomeada de “arte negra” e sim de arte tradicional africana, foi

estudada e apresentada na his-toriografia ocidental, que é a que estudamos nas escolas e univer-sidades, mesmos nas graduações de Artes Visuais, como a arte que influenciou os artistas europeus de fins do século 19 para início do século 20. Ela era introduzida como sendo referencial estético para o desenvolvimento da maior revolução pictórica ocorrida até então: o cubismo elaborado por Picasso juntamente com Georges Braque (1882 - 1963), em 1907. De certa forma, a incompreensão desses artistas acerca do que significam as estatuetas e más-caras aos quais estavam tendo acesso devido ao grande número desses objetos que chegavam ao continente europeu, tanto via saque quanto via escambos reali-zados junto aos povos africanos, despertou um imenso fascínio por essas formas originais cujos criadores se pautavam em outros cânones que não os clássicos e acadêmicos para desenvolverem as suas obras.

Era mais do que comum que intelectuais e artistas europeus, no início do século 20, tivessem as suas coleções particulares de arte tradicional africana, são os casos do já citado Picasso e do pintor Henri Matisse (1869 - 1954). Ao observarmos com mais cuidado a produção “picassiana” desse período, encontraremos mais do que semelhanças entre as linhas e cores de suas pintu-ras e as estruturas de estatuetas e máscaras, alguns são quase, digamos, releituras. Afinal de contas, para muitos dos artis-tas europeus era consenso que essas obras não tinham uma autoria, uma vez que haviam sido feitas por “selvagens” e “primiti-vos”, povos sem cultura.

Era nesse contexto que esses objetos chegavam à Europa e eram cooptados enquanto referencial criativo para muitos artistas. Essas “exóticas” peças de arte absolutamente despropor-cionais eram por demais inovado-

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ras. Cabeça, tronco e membros seguiam a mesma proporção, os artistas estavam livres dos câno-nes gregos. Devemos pensar no que vem a ser a proporção, ou seja, quando as partes de um ob-jeto, de um corpo, se encaixam ou se adéquam de forma consi-derada harmoniosa. Para a arte ocidental, pautada na arte grega que, por sua vez, foi pautada na egípcia (vejam a África na origem de tudo, de certa forma), na representação do corpo humano, um corpo perfeito é constituído de sete vezes as medidas de uma cabeça. Ou seja, após se esculpir ou desenhar uma cabe-ça, o pescoço, tronco, quadris, pernas e pés, os demais mem-bros, deveriam ocupar mais seis vezes a medida daquela cabeça. Essa é a idéia que nos é impos-ta, ainda crianças quando co-meçamos a desenhar, de figura humana proporcional, do saber ou não desenhar, ilustrar ou es-culpir. O saber desenhar estava condicionado aos paradigmas do que os gregos estabelece-

ram como belo, e esta beleza grega veiculava a proporcionali-dade e a simetria.

Após a tomada do Reino do Benim pelos ingleses (1897), foram encontradas pelo pes-quisador alemão Leo Frobenius (1873 – 1938 ), na cidade de Ifé, 14 cabeças em terracota, um tipo de argila queimada em baixa temperatura. As cabeças em estilo realista e de grande delicadeza e riqueza de detalhes foram, rapidamente, identificadas como “produto de uma colônia da Grécia antiga em plena flores-ta africana (...)”, pois, segundo o antropólogo Peter Junge, “as cabeças em barro mostram-se maravilhosamente acabadas. São de um realismo que pressupõe o retrato. Mas não é só isso o que as isola na arte subsaariana. Nesta há também uma vertente realista, que vem de bem longe e chega aos nossos dias (...) O que faz das esculturas de Ifé ímpar na África negra são os cânones a que obedece esse realismo”.

Até aquele momento, tudo o que havia sido encontrado sobre as produções dos povos africanos eram objetos que não seguiam esses cânones, não se asse-melhavam a nada disso. Muitos dos objetos encontrados por Frobenius fazem parte da coleção que leva seu nome no acervo do Museu Etnológico de Berlim.

Inclusive, a maior parte de obras de arte tradicional africana encon-tra-se em museus externos ao continente. Segundo Peter Junge, que realizou a curadoria da grande mostra desenhada a partir do acervo desse museu, Arte da África, exibida no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2003/ 2004:

“(...) nas culturas tradicionais da África , as obras de arte não foram criadas com vistas a elas mesmas, mas somente seriam compreensíveis a partir de seu fundo religioso ou social. (...) de acordo com essa tese, objetos ar-tísticos africanos são, em primeiro lugar, relato da história da cultura

“Les Demoiselles D’Avignon”, 1907, óleo sobre tela de Pablo Picasso. Ao lado, máscara etnia Fang, Gabão, século XIX, madeira

policromada. Observando a tela que rompeu com os paradigmas de representação da figura humana, das relações entre figura e

fundo, torna-se evidente a referência africana no processo criativa de Picasso. As duas figuras da direita, têm os rostos constituí-

dos por releituras de máscaras africanas. Repare nas distâncias entre olhos e boca. Fotografia: Não identificado.

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– inclusive da História da arte – de uma determinada civilização”.

Isso ocorre também em relação a outro tesouro da arte tradicio-nal africana, as placas em relevo do Reino do Benim, feitas em latão e que estão entre as mais extraordinárias obras de arte tradicional da África. Produzidas a partir da técnica africana de fundição chamada de cera perdi-da, largamente utilizada no conti-nente africano antes do contato com os europeus. As placas em relevos eram modeladas em cera; em seguida, estes moldes eram revestidos de argila para a fundição do metal. Após a fundi-ção, os moldes eram quebrados. As placas trazem representa-ções de seres isolados, animais, pessoas. A maioria das que apresentam figuras humanas representam o oba, os chefes e seus séquitos, em visão frontal e postura rígida. Assim como as Cabeças de Ifé, que pesquisa-dores identificaram como sendo retratos de reis, rainhas, prínci-pes e princesas.

É difícil mensurar em que medida as placas possuem caráter narrati-vo. Entretanto, em algumas cenas são narradas guerras vitoriosas com os povos vizinhos ao Reino do Benim: Igala e Igbo. A forma artís-tica é bastante variada: há relevos planos, mas também alguns em que as figuras sobressaem quase que inteiramente em relação ao fundo. Assim como na conceitu-ação da arte egípcia, as figuras maiores são as mais importantes na representação da cena, um oba ou chefe guerreiro aparece maior do que seus acompanhantes.

O latão era um material impor-tado junto aos portugueses e que atingiu grande valorização. A fabricação das placas cessou no início do século 18.

Aqui temos uma breve introdução acerca de obras de arte prove-nientes da mesma região das obras, ou muito próximas das que se encontram no MASP. Entretan-to, enquanto os objetos de arte que estão no Museu Etnológico de Berlim e no Museu Britânico

são raríssimos - não há mais nada similar e provavelmente nem será encontrado, os objetos exibidos no MASP, assemelham-se a outros que podem ser aprecia-dos em museus como a Casa do Benim (BA), Museu de Arqueo-logia e Etnologia da USP (MAE/USP - SP) e Museu Afro Brasil (SP). Apesar de não fazerem parte desse seleto grupo escultórico raríssimo, contudo, ainda são importantes oportunidades que temos de nos aproximarmos da arte produzida em parte da África Ocidental. Servem-nos como possibilidade de conhecer estilos e simbologias que compõem o dicionário de leitura e apreciação dessa arte única.

As 49 esculturas expostas na exposição Do coração da África: arte ioruba, são parte da coleção doada pelo casal Cecil e Manoel Robilotta e representam parte da arte produzida nessa região onde encontra-se a Nigéria e nos é tão cara devido, especialmente, a marcante presença iorubana na cultura afro-brasileira. Não há uma

Cabeça de Ifé, séculos XII a

XV, terracota, altura média de

19 cm, Coleção Leo Frobenius

no acervo do Museu Etnológi-

co de Berlim. Os estriados na

face podem ser interpretados

como escarificações, marcas

faciais feitas a partir de cortes

que servem para identificar as

pessoas na hierarquia de um

grupo social. Os olhos amen-

doados atestam que essa pes-

soa é uma antepassada da re-

gião de Benim e Nigéria, pois,

assemelha-se ao fenótipo local.

Fotografia: Não identificado.

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datação correta acerca de quando essas obras foram produzidas, entretanto, sabe-se que são ante-riores a década de 1960.

Segundo o curador da exposi-ção, Teixeira Coelho, numa clara referência ao impacto que a arte tradicional africana teve sobre a produção de arte européia chamada de “vanguarda”, do inicio do século 20, “outra vez, o velho formava o novo”. Todavia, cada vez mais devemos destacar a impor-tância, beleza e riqueza dessas obras de arte enquanto fontes de informação que nos desvendam as nossas culturas ancestrais, evitando, preferencialmente, atestar a sua validade por meio das influências que causaram no modo de pintar e representar dos artistas europeus. Fato sabido e incontestável. Mas, já é chegado o momento no qual elas podem ser apreciadas e lidas enquanto formas autônomas, especialmen-te porque descoladas de seus contextos originais, passam a servir ao modus operandis da arte ocidental: arte pela arte. Isto é, ainda que com toda a carga de informações que possuam, nos

museus, lá estão pelas formas que apresentam. Possuem um valor artístico em si.

A expografia de Do coração da África: arte iorubá, diferente de todo restante do MASP, é mais escura e o foco de luz de cada vitrine se dirige diretamente para as esculturas, acentuando seus relevos, curvas, reentrâncias e, conseqüentemente, causando im-pacto visual à chegada ao peque-no espaço onde está a exposição. Mostrando que a curadoria estava atenta às especificidades espiritu-ais do povo Iorubá, quem abre a mostra é um conjunto de repre-sentações de Exu, o orixá mensa-geiro que realiza a comunicação entre os dois mundos, o aiê, o mundo onde estamos, matérico e visível, e o orun, mundo espiritual onde habitam os orixás, ancestrais e demais espíritos. As represen-tações de Exu provenientes de África, geralmente, possuem a cabeça do orixá com um penteado que remete a um falo, uma vez que outra atribuição desse orixá é a fertilidade. Curiosamente, o Exu que abre a exposição tem um

penteado que termina num rosto, interpretado pela curadoria como uma serpente. Também há a re-presentação de um Exu feminino, segurando um bebê em sua capu-lana e com uma sandália em sola plataforma, tal qual o par de Ibejis que está no acervo do Museu Afro Brasil. Nesse conjunto de figuras de Exu, estão também dois raros e curiosos casais de Exus.

Há várias vitrines dedicadas a exi-bir os Ibejis que, talvez, mais do que qualquer outra representação demonstra um aspecto singular da cultura iorubá: o alto índice de nascimento de gêmeos e de trigêmeos. Segundo a Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS), a Nigéria é o país no mundo no qual mais nascem gêmeos. Portanto, está explicada a razão pela qual os irmãos são considerados sagra-dos e são cultuados enquanto divindades. Após o contato com os portugueses, no século 15, os mesmos, percebendo a forte devoção dedicada aos Ibejis pelos iorubanos, introduziram as figuras dos santos médicos e irmãos, São Cosme e São Damião como forma de dissuadir e substituir o

Placa Comemorativa, séculos 16 ao 18, Latão, acervo do Museu Britânico. Aqui é bem interessante observar a proporção dos corpos das três figuras humanas da peça à esquerda, em destaque. Cabeças e pernas possuem as mesmas dimensões, enquanto que os troncos são mais alongados. Ao fundo, observamos duas figuras de europeus, os identificamos devido aos cabelos compridos e tipo de chapéu. Fotografia: Renata Felinto.

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Exu, Nigéria, madeira e outros materiais, 56 x 16,5 x 29, 5 cm. Fotografia: Renata Felinto.Vasilha de adivinhação, Nigéria, madeira, 28,5 x 19 x 19,5 cm. Esculturas barbadas pressupõem sabedoria. Fotografia: Renata Felinto.

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objeto de culto. As figuras dos santos que eram re-presentadas por homens adultos, aos poucos foram diminuindo de tamanho, tornando-se crianças, numa clara simbiose entre as origens africana e portugue-sa dos mesmos. Se no reino Iorubá as mães alimen-tavam suas estatuetas de Ibejis quando um de seus filhos tinha vindo a óbito, tal qual estivessem alimen-tando a criança falecida, no Brasil são oferecidos doces aos santos, alimentando as crianças interiores de cada um de nós, nossos erês.

Dentre a profusão de pares e trios de Ibejis que estão na exposição, os trios sendo mais escassos, há exemplares maravilhosos, cujos corpos estão revestidos com vestimentas confeccionadas de pequenas miçangas coloridas com motivos geomé-tricos ou de cauris, os búzios. Apesar da aparência de adultos, os Ibejis sempre representam crianças e na coleção Robilotta, segundo a curadoria, pos-suem uma parte central devido à sua variedade e quantidade. Segundo o curador: “Os Ibejis conden-sam uma visão de mundo peculiar, extremamente significativa na sociedade iorubá, em cujo idioma significa gêmeos, a partir de ibi, nascer (ou nasci-do), e eji, dois, do que resulta o sentido de nascido em dois, nascido em duas partes”.

E, ainda sobre essa prática e tradição de se esculpir estatuetas para o casal de gêmeos, ele completa: “O nascimento dos gêmeos obrigava os pais, ainda, a solicitarem a confecção dos ibejis, esculturas vistas como personificação de pessoas reais e, indiretamente, de uma divindade doméstica, sendo por este motivo objetos de culto a serem cuidados e expostos em casa por décadas. As esculturas deveriam proteger as famílias dos males possíveis e evitar a morte do sobrevivente, em caso de faleci-mento de um dos membros, bem como a esterilida-de futura da mãe. O nascimento de uma criança só, sem um par gêmeo, após a geração de um ‘duplo filho’, era tomado como indício de que o mundo e a vida retornaram à normalidade”.

Ainda na mostra são passíveis de apreciação as esta-tuetas usadas como machados cerimoniais e feitas a partir de interessantes representações femininas de Xangô e Ogum, orixás que são masculinos. O macha-do de Xangô encimado por uma cabeça de mulher, e

um machado em ferro de Ogum, também sobre a ca-beça feminina, ainda que esta não seja a insígnia pela qual esse orixá é mais comumente representado.

Também encontram-se na exposição vasilhas de adivinhação para se guardar os búzios ou a noz de cola, fruto da palmeira, empregados nos jogos divi-natórios de consulta ao Ifá. Geralmente, os babalo-rixás e as ialorixás usam pratos confeccionados em madeira. Segundo a curadoria da exposição, essas vasilhas de adivinhação, chamadas de ajere Ifa, são “usadas por babalaôs mais afluentes”. É sabido que os processos de adivinhação são empregados para diversos fins, para se tomar importantes decisões de cunho social, afetivo, familiar, saúde etc. E que o jogo é guiado pelo orixá Orunmila que se comunica com os humanos por meio do ifá.

Dois simples exemplares das famosas máscaras da sociedade Geledés são exibidos. Confeccionados em madeira e sem muita ornamentação. Importan-te pontuar que somente os homens dançam com qualquer tipo de máscara em África, mesmo nos casos no qual a cerimônia anual é voltada ao grupo de mulheres mais velhas, que já passaram pela menopausa. Segundo a curadoria, após esse etapa da vida “(...) as mulheres teriam acesso a conhe-cimentos secretos, de natureza sobrenatural. Isso lhes dava poder, axé, que poderia ser usado para o bem da comunidade e para a bruxaria. Por isso eram reverenciadas e temidas”.

A irritabilidade que toma conta do humor das mulheres em geral nesta fase está associada a essa crença de que as mesmas precisavam, ser apaziguadas, a fim de que a vida em comunidade transcorresse tranquilamente.

Por fim, a mostra apresenta um casal de Edan produzido na já mencionada técnica da cera perdida. Num primeiro momento eles se assemelham aos Ibejis por serem um duplo, entretanto, a partir da ob-servação de suas formas e do material, que é latão ou bronze, notam-se as diferenças. As estatuetas duplas são conectadas por uma pequena corrente, e elas representam um homem e uma mulher cultua-dos pela sociedade secreta Ogboni, compreendendo aqui homem e mulher enquanto princípios da vida e

CONFERÊNCIA DE BERLIM

A Conferência de Berlim foi realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, e teve como ob-jetivo organizar, na forma de regras, a ocupação de África pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou, nem a história, nem as relações étnicas e mesmo familia-res dos povos desse continente em causa. O congresso foi proposto por Portugal e organizado pelo Chanceler Otto von Bismarck, da Alemanha. Par-ticiparam ainda a Grã-Bretanha, Fran-ça, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, Áustria-Hungria e o Império Otomano (atual Turquia).

Terra, também cultuada via essas peças como um espírito. As estatuetas possuem uma pátina esver-deada e ficavam na posse de um sacerdote. Numa instituição tradicional e eurocêntrica como o MASP é uma feliz surpresa que a curadoria, o que concluímos a partir da observação da exposição e da leitura dos textos do catálogo, tenha lança-do um olhar reverenciador e aprofundado acerca dessa pequena e pertinente coleção. Afora algumas informações ou resumos breves que estiveram em circulação em alguns meios de divulgação, podemos afirmar que a exposição, a partir de suas poucas peças, contempla parte significativa do universo iorubá. O catálogo é acessível, custa 20 reais e a exposição, devido ao fato das peças comporem o acervo do MASP, não tem data para finalizar. Por-tanto, recomendamos que dedique algum tempo ao prestigio dessa mais que necessária iniciativa deste museu referencial no Brasil, que se curva à nossa ancestralidade materializada em Arte, essa com “A” maiúsculo.

Boa visita!

RENATA FELINTO é doutoranda em Artes Visuais pelo Institu-

to de Artes/ UNESP, mestre e bacharel pela mesma instituição.

Atua como pesquisadora, artista plástica e educadora.

PARA ASSISTIR / CURIOSIDADES E RELAÇÕES ENTRE EUROPEUS E AFRICANOSViagem à LuaGeorges MeliésFrança, 1902

Vênus NegraAbdellatif KechicheFrança, 2010

As estátuas também morremAlain Resnais e Chris MarkerFrança, 1953

PARA LERDo Coração da África (catálogo de exposição)São Paulo: MASPCommunique Editorial, 2014.

African ArtStefan EISENHOFER.ColôniaTaschen, 2010.

Benin está vivo ainda lá (catálogo de exposição).André JOLIE. São PauloMuseu Afro Brasil, 2008.

Arte da África (catálogo de exposição).Peter JUNGE. São Paulo:Centro Cultural Banco do Brasil, 2004.

SERVIÇO SP - Museu de Arte de São PauloAvenida Paulista, 1578 - São Paulo - SPTelefone (55 - 11) 3251-5644Fax (55 - 11) 3284-0574De terça a domingo: das 10h às 18h (bilheteria aberta até 17h30)Quinta-feira: das 10h às 20h (bilheteria até 19h30). Entrada R$ 15,00 inteira e R$ 7,50 meia

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"Uma história de vida não é feita para ser ar-quivada ou guardada numa gaveta como coi-sa, mas existe para transformar a cidade onde

ela floresceu". Ecléa Bosi (2003: 199)

A palavra arquivo e a expressão arquivo pessoal estão ampla-mente difundidas, e muitos de nós sabemos bem o significado destes termos quando perdemos dados armazenados em celu-lares e outras mídias digitais. Mesmo quando o que guardamos foge a nossa visão, e talvez jamais reapareçam, ainda que a ne-cessidade nos desafie a localizar algo perdido, nós arquivamos. Imagine aquela nota fiscal, que comprovaria o pagamento da compra de um bem eletrônico que mesmo estando na garantia não pode ser utilizado porque falta uma comprovação? Parte do que arquivamos tem essa função: comprovar para se garantir um direito. Mas guardamos muito mais coisas: bilhetes amorosos, cartas, fotos de quem fomos e de quem gostamos.

Na minha pesquisa de doutorado em Antropologia, na Universi-dade de São Paulo (USP), intitulada Acabou o papel: práticas de memória, cultura visual e transformações urbanas - São Paulo (1948-1988), analiso a documentação do arquivo pessoal pro-duzido por Nery Rezende (1930-2012), mulher negra, um tanto incomum, que guardou grande quantidade de memórias acerca de sua experiência social na forma papel. Meu interesse ao tra-balhar com sua documentação é estudar as relações sociais que se constituem em torno da família, dos afetos, da sociabilidade, do trabalho e da expressão artística no passado.

Composto por aproximadamente 13 mil itens, fundamentalmen-te papéis, entre os quais fotografias e textos datilografados, ma-nuscritos entre outros, nota-se que Nery construiu um arquivo de si, o que lhe permitiu em certa medida “arquivar a própria vida”, como sugere o historiador Philippe Artiéres (1998). Até o presente momento a documentação manipulada aponta para te-mas como: práticas de memória, cultura visual fotográfica, trans-formações urbanas e atuação artística.

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texto AlexAndre ArAújo Bispo

A F E TO S E T R A J E TO S N E G R O S E M S Ã O PA U L O 1 9 4 0 - 1 9 5 0

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Os documentos nos contam que: com exceção de Nery, as três re-sidiram até sua chegada em um porão na Rua São Domingos, 120. Esta via cruza a rua Major Diogo, novo endereço para onde foram morar de aluguel desde que Nery chegou. Em 11/10/1950 é admitida como operária na I.R.F.M (Indús-trias Reunidas Francisco Matara-zzo), setor de Tecelagem de Seda – permanecendo até 19/09/1952, ano em que goza de férias remu-neradas. No ano seguinte é inter-nada em Campos do Jordão para tratamento de tuberculose.

Em carta, a mãe de Nery lamen-ta a mudança da Bela Vista para a Água Rasa, atentando para os efeitos sentidos nas vidas dela e de Alice: “Eu estou no paraíso, saio de manhã e so volto a noite, tomo trez ônibus, faço um sacri-fício medonho para ganhar mil cruzeiro, Alice continua daquele mesmo jeito”¹, isto é desanima-da, solitária, deslocada no novo bairro . Mais adiante ela informa que depois da mudança Alice “não tem com quem sair, já perdeu de fazer um grande filme”² . No en-tanto, em 18 de agosto de 1953 Alice escreve: “Nery estou feliz,

fiz grande sucesso domingo na T.V. grande peça grande papel, sai-me otimamente, o Cassiano Gabus Mendes, veio cumprimentar-me (...) o meu diretor foi Valter Jorge Dester”³. Esta segunda carta, en-tretanto, não deixa claro qual papel desempenhou, se ganhou algum dinheiro ou como se arranjou para ir a TV. Mas é possível supor que Alice tenha atuado nos limites do estereótipo para personagens ne-gras: empregada, mulata sensual, figura caricata e brejeira.

Antes de ficar doente, Nery in-troduziu retratos fotográficos no circuito familiar, ampliando o re-pertório das imagens já existentes em sua rede de afetos. A fotogra-fia tornou-se uma prática de longa duração em sua vida e vai muito além do período que me propus estudar, 1948-1988, de modo que suas imagens continuam a circular como no calendário que Greissy produziu para homenageá-la em 2013, no qual fotos de diferentes momentos de Nery são exibidas. Desde que pôde por conta própria ter fotografias – a partir de sua entrada na I.R.F.M e depois como balconista na Casa Capri, loja de roupas nos anos 50 e no SESI –

Maria Antonia da Conceição com Mário, um dos netos de seus 12 filhos. Retrato com margens farpadas. 1949. Ampliação das dimensões originais 12,5 x 8 cm.

Nery Rezende, nome artístico de Maria Luiza Rezende da Silva, nasceu em domicílio na fazenda Forquilha, em São José do Rio Preto – no Estado de São Paulo, em 1930 – e nos legou um exten-so conjunto de documentos rela-tivos à sua vida familiar, pessoal e profissional, acumulados entre os anos 1948 e 2012. Aliás, foi em 1948 que desembarcara em São Paulo vindo da fazenda, refa-zendo um movimento que, antes dela, fizeram muitos negros mo-tivados pela abolição e a chegada da República.

Segundo Greissy Rezende da Sil-va, sua filha, Nery vivera até os 18 anos como agregada de uma família branca em condições de criá-la. Sua mãe, Maria Rezende da Silva (1912-1990), não tinha como fazê-lo. Em 1948 vem para a capital vivendo daí em diante com a mãe, a avó Maria Antonia da Conceição (1880-1969), e sua irmã a atriz e vedete Alice Rezen-de da Silva (1933-1961).

¹ A título de comparação uma Revista do Rádio em 1956 custava 4,0 cruzeiros.

² Cf. carta de Maria E. R. S. de 3-5-1953. Alice participara de “Veneno” (1952) com o ator e diretor Anselmo Duarte (1920-2009) e grande elenco.

³ Na realidade Walter George Durst (1922-1997) um dos mais célebres roteiristas bra-sileiros. Adaptou várias obras literárias para a TV, entre as quais Gabriela de Jorge Ama-do em 1975 entre outras.

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Serviço Social da Indústria – na dé-cada de 60 – ela não apenas con-sumiu retratos como adquiriu uma câmera Bieka, aparelho que fazia apenas 8 fotos tamanho 6x9, to-talmente nacional, criada nos anos 1950, em São Paulo. Desde o sé-culo 19, que a fotografia, especial-mente o retrato transformou-se em um bem culturalmente valori-zado por evocar através da imita-ção a pessoa ausente, narrando e retendo a aparência dos indivíduos e dos laços familiares de afeto.

Muitos destes retratos foram ad-quiridos nas imediações da Bela Vista, entre o velho e o novo cen-tro: Praça da Sé, Largo do Pais-sandu, Rua São Bento, Barão de Itapetininga, Avenida São João. Consumidos como forma de en-riquecer visualmente a vida e os sentimentos de pertença familiar, os retratos trazem impresso os nomes e endereços de estúdios e garantem espaço para dedicató-rias sentimentalistas. Em dois re-tratos dedicados a Maria Rezende por suas filhas, no dia 14 de julho de 1951, revelam-se os sentimen-tos filiais de Nery na dedicatória: “Para os teus olhos mamãe o meu retrato e para teu coração o meu amor. De uma filha que a adora”. E de Alice que dedica as palavras “A você mamãe para que não me esqueças dou-te esta pequena re-cordação”. Creio que Alice e Nery se esforçavam para possuir fotos buscando consumir algo da varie-dade de produtos oferecidos pelo mercado visual: álbuns, amplia-ções, cores, texturas, formatos. Tal importância é verificada pela quantidade de imagens de Alice produzidas entre a década de 40 até o fim dos anos 50. São pelo menos 32 retratos seus em pouco

mais de 10 anos, de diferentes fa-ses de sua vida. Por meio da forma material das fotografias é possível acessar o dinâmico mercado da imagem visual adensado no cen-tro da cidade e, mesmo distante dele devido a expansão deste mer-cado já etnicamente segmentado pelo que indica os estabelecimen-tos comerciais de nome oriental: Foto Kodama, UEDA, ODA, Koji-ma, Marimatsu, Alfredo Shimada, Foto Linda – SUEAKI KOIKE – que acentuam a diversidade étnica presente na cidade. O retrato de Nery feito no Foto Kodama, rece-beria diferentes montagens como esta exibida no texto em cartão, margem farpada e papel vegetal. Vestida como ao estilo oriental ela não nos encara. O cabelo alisado, segundo recomendação da época, pode ter sido feito com Sedalise.

Nery Rezende em retrato feito no estúdio Foto Kodama na Praça da Sé, 242. Redução das dimensões originais 14,5 x 20 cm.

Recorte de jornal divulga simultaneamente a peça

do REN e o alisante Sedalise. Caderno de

recortes de Alice. S/D.

Não apenas Alice e Nery, mas homens, mulheres e crianças negros consumiram retratos do Foto Koda-ma. Também produzidos em estúdio, outro formato bastante recorrente no arquivo, são os retratos 3x4 que somam quase 250 itens. Esses retratos figuram em documentos como a carteira profissional, RG, car-teira de motorista, enfim em documentos oficiais e obrigatórios para a vida na cidade moderna. Para além desta função, este tipo de retrato tem circulação afe-tiva podendo ser transportado em carteiras, bolsas e, não raro, acompanhados de dedicatória como a que Nery fez a sua mãe, limitando-se a pequena dimen-são: “Para mãezinha beijos da Nery 28-10-54”.

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Retrato de Ruth de Souza com dedica-tória para Alice. S/D. Ampliação das di-mensões originais 8,5 x 13,5 cm Labora-tório Fotoptica.

EXPERIMENTAÇÕES ARTÍSTICAS

Se alguns desses retratos circularam em ambientes de afeto familiar, cópias deles serviriam também para divulgar o trabalho artístico amador desempenhado pelas ir-mãs, nos momentos em que não estavam trabalhando na indústria, no comércio ou em escritórios. Durante os anos 50, as Re-zende tomaram parte em grupos como o TEN (Teatro Experimental do Negro) de São Paulo, fundado por Geraldo Campos de Oli-veira, em 1948; o Radiatro Experimental do Negro, idealizado por Augusto Barone, dire-tor branco, na Rádio São Paulo, em 1954; o Conjunto de Mestre Durva e suas Pastoras e a Companhia Negra de Revistas e Comé-dias Benjamin de Oliveira, provavelmente criada em 1956, cujo empresário era o Sr. Orlando V. Martins, conforme Jornal A Ga-zeta Esportiva de 31 de agosto de 1956. Tra-taremos apenas do TEN e do Radiatro neste momento.

Todavia saiba ainda muito pouco sobre es-sas quatro experiências promovidas pelo segmento social negro, é possível, partindo dos próprios materiais acumulados aliados a pesquisa bibliográfica sobre atuação do TEN paulista, saber quem eram os partici-pantes, seus protagonistas, o que faziam e como atuavam. Abdias do Nascimento fundara o TEN, em 1944, no Rio de Janeiro, com o apoio, entre outros, de Ruth de Sou-za (1921), de quem Alice receberá mais tar-de uma fotografia (foto 3) autografada, mas sem data: “Para Alice, uma lembrança da Ruth de Souza”. É possível que a aquisição desta imagem inspirasse inlfuenciando po-sitivamente as Rezende, então no começo de suas trajetórias artísticas.

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As irmãs Rezende na capa do Jornal Ultima Hora, em 1952. Caderno “com meus recor-tes” de Alice Rezende.

Cartaz fotográfico do Radiatro Negro, S/D. Redução das dimensões originais 24x18cm.

Embora a carreira de Ruth de Souza esti-vesse decolando, e isso devia servir de es-tímulo para Nery e Alice, ser artista não era algo tranquilo na sociedade paulistana, que ostentando símbolos modernos como a ver-ticalização e o incremento do setor terciá-rio, criava obstáculos para a ascensão social de homens e mulheres negros por meio de racismo explícito. Na capa do jornal, a foto das irmãs Rezende mostra tanto a ação cul-tural do TEN cuja base era a arte e a cultura, quanto a denúncia da discriminação vigente.

Corriqueiro, o racismo a brasileira atingiu a bailarina e coreógrafa negra americana Ka-therine Dunham (1909-2006) impedida de se hospedar no Hotel Esplanada, no centro de São Paulo, ao lado do Theatro Municipal. Ao denunciar que havia sido vítima de pre-conceito racial, Dunham questionou a su-posta democracia racial brasileira repercu-tindo o episódio dentro e fora do país. Sob pressão dos militantes negros é que surgiu o projeto de lei do então deputado Afonso Arinos (1905-1990) que buscava criminalizar a restrição do acesso de alguém a serviços, educação e empregos públicos por causa da cor da pele (Albuquerque e Filho, 2006, p.274). A lei, porém, não pegou: no Brasil fomentava-se a ideia de que vivíamos em ambiente de total “tolerância racial”.

O termo experimental introduzido pelo TEN, reaparece em outro grupo: o Radiatro Experimental do Negro (REN), cuja criação foi noticiada em 9 de novembro de 1954. A matéria exaltou a “inovação” da Rádio São Paulo ao valorizar o “esforço e dedicação de Augusto Barone”, seu diretor, apostando em “Três peças escritas por elementos do pró-prio R.E. N”. Alice e José Francisco, ator que se consagrou pelo papel de Tio Barnabé, no Sítio do Pica Pau Amarelo, eram do primeiro time do grupo. O autor da matéria se pergun-ta a certa altura da reportagem: “Quantos e quais são os artistas negros de Rádio-Teatro em São Paulo? Eis uma pergunta difícil de ser respondida. O negro, na maioria das ve-zes, só encontra oportunidade como cantor e instrumentista e certas emissoras há que proíbem sua entrada mesmo como simples assistente nos programas de auditório”.

Com um feitio comercial o cartaz revela um orga-nograma do REN nas quais os únicos identificados segundo sua ocupação são os diretores. Alice está entre eles, mas sem sua função marcada, todavia a posição de seu retrato seja centralizada indicando sua importância no grupo.

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Folheto da Marcha Si essa nêga fosse minha... S/D. Redução das dimensões originais.

O caderno “com meus recortes”, espécie de currículo ilustrado organizado por Alice, apresenta SEDALISE anunciante apoiador da iniciativa do REN, segundo o próprio fabricante o produto era um “alisador per-manente” próprio ao “cabelo indomável” de mulheres como as sete rádio-atrizes do grupo que obtém com seu uso um resulta-do “formidável”.

Elemento intrínseco ao corpo negro, o cabe-lo crespo é assunto explorado na música do cantor negro Francisco Egydio (1927-2007), que gravou pela Odeon Discos a marcha Si essa nêga fosse minha..., de Elso Augusto e Gentil Castro. A letra não deixa dúvidas quan-to a recepção negativa do cabelo crespo no mercado erótico de então. Vejamos a letra:

Si essa nêga/Si essa nega fosse minha: Eu mandava. Eu mandava reformar/Espichava seu cabelo de uma vez/Atraz dela, não fal-tava português!

A letra indica a atração que a mulher negra despertava nos homens, mesmo sem a “re-forma”. Mas alisada/espichada, de uma vez por todas, ela atrairia para si as atenções do homem branco. Em ilustração do panfleto da música de Egydio, a negra desce da li-mousine com chofeur branco e é recebida por outro empregado branco, funcionário da BOITE que estupefato segura-lhe a mão. A nêga usa vestido decotado semelhante ao de Alice no cartaz do RTN e o apresentado por ela no quintal de sua casa na Vila For-mosa. Tal fato aponta para a circulação de convenções visuais e musicais de represen-tação do corpo negro produzidas e reprodu-zidas de diferentes modos.

Nabor Júnior, notou, ao apresentar a história do embaixador do Brasil na África Raymun-do Sousa Dantas (1923-2002), que é co-mum acreditarmos que os negros brasileiro não tem consciência de sua própria história. Felizmente é graças a consciência racial que muitos afirmam não existir que arquivos como o de Nery Rezende precisam ser des-

cobertos e estudados ajudando a modificar o cenário da memória negra no país. Como o acesso ao material papel foi “democra-tizado” no decorrer do século 20, é pos-sível que haja acervos de família repletos dele. Tenho a impressão que com a morte de pessoas contemporâneas as irmãs Re-zende, suas memórias entrarão no mundo público, pois os documentos privados em algum momento sofrerão este tipo de des-locamento indo parar no lixo, no mercado de antiguidades ou em instituições de guarda e preservação. Em cada um destes destinos, ele assumirá novos usos e funções, como o que ocorre com este arquivo que ora apre-sento. Para mim, o contato com o arquivo pessoal de Nery, permite descortinar um mundo amplamente desconhecido, a saber: como indivíduos e famílias negras construí-ram suas memórias, e por meio delas suas relações de afeto em um período no qual os suportes para memorizar estavam mais acessíveis em áreas urbanas?

Para finalizar quero chamar a atenção para o problema do destino dos arquivos pes-soais. É preciso haver novos centros de documentação e pesquisa para que ma-teriais como os acumulados por Raymun-do Souza Dantas e Nery Rezende sejam devidamente catalogados, conservados e disponibilizados para consulta pública. Para isso é necessário entender a importância da memória com o objetivo de conhecer o passado em função dos problemas que nos colocamos no presente, para quem sabe, termos um futuro mais igualitário, no qual histórias e memórias negras sejam inseridas nos processos sociais mais am-plos contribuindo para o entendimento do passado e do presente. Ao contrário dos arquivos digitais que precisam de um meio eletrônico para serem lidos e rapidamente envelhecem, os papéis enquanto suportes de memória privilegiados ao longo do sécu-lo XX, dão acesso direto ao passado. Essa é uma das razões porque ele continua ten-do importância e não pode simplesmente ser descartado.

Retrato de Alice – 31/01/1951 – Foto Léo – R. S. Bento, 276. Redução das dimensões originais 6,5 x 9,5.

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CONTRACAPAReprodução de um dos traba-lhos da série Assentamento (s), da artista visual Rosana Paulino. Visão da imagem de costas. Impressão, costura, bordado e desenho sobre tecido. 2013.

CAPAReprodução de um dos traba-lhos da série Assentamento (s), da artista visual Rosana Paulino. Visão da imagem frontal. Im-pressão, costura e linóleo so-bre tecido. 2013.

SAIBA + SOBRE A ARTISTArosanapaulino.com.br

ALEXANDRE ARAújO BISPO, é Mestre e Doutorando em An-

tropologia Social pela USP; Diretor da Divisão de Ação Cultural e

Educativa do Centro Cultural São Paulo.

PARA LERUma história do Negro no BrasilWlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga FilhoCentro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da UFBA e Fundação Palmares/ MinC2006

Arquivar a própria vidaPhilippe ArtiéresRevista Estudos Históricos vol. 11, nº 21Rio de Janeiro, 1998

Memória da cidade: lembranças paulistanas. Ecléa BosiEstudos Avançados vol. 17, nº 472003

Negro na Televisão de São Paulo. Um Estudo de Relações Raciais.Solange M. Couceiro de LimaFFLCH – USPSão Paulo, 1983

Teatro Experimental do Negro: trajetórias e reflexões. Abdias do NascimentoEstudos Avançados vol. 18, nº502004

Cor, Profissão e Mobilidade. O Negro e o Rádio de São PauloJoão Batista Borges PereiraEDUSPSão Paulo, 1967

Em nome do paiNabor Jr.Revista O Menelick 2º Ato, Ano IV – Ed. ZER0XIIISão Paulo, 2014

Minha avó era palhaçoChristiane Gomes e Mariana GabrielRevista O Menelick 2º Ato, Ano IV – Ed. ZER0XIIISão Paulo, 2014

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