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l 3 o MERCADO DOS BENS SIMBOLICOS Em Dutro domfnio, five a honra, se nao 0 praze" de per- der dinheiro jazendo traduzir as dais volumes monumen- lois do Hemingway de Carlos Baker. Robert Laffout A hist6ria da qual tentei reconstituir as fases mais decisivas, por uma serie de cortes sincronicos, leva it instaura9iio desse mundo it parte que e ocampo artistico ou 0 campo literario tal como 0 conhecemos hoje. Esse universo relativamente autOnomo (0 que significa dizer tambem, e claro, relativamente dependente, em especial com rela9iio ao campo economico e ao campo politico) d:i lugar a uma economia as avessas, fundada, em sua logica especifica, na natureza mesma dos bens simbolicos, realidades de dupla face, mercadorias e significa90es, cujo valor propriamente simb6- valor mercantil permanecem relativamente independentes. Ao fim do processo de especializa9ao que levou ao aparecimento de uma produ- 9ao cultural especialmente destinada ao mercado e, em parte como rea9iio contra esta, de uma Produ9ao de obras "puras" e destinadas it apropria- 9iio simb6lica, os campos de Produ9iio cultural organizam-se, de maneira a a 162

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3 o MERCADO DOS BENS SIMBOLICOS

Em Dutro domfnio, five a honra, se nao 0 praze" de per-der dinheiro jazendo traduzir as dais volumes monumen-lois do Hemingway de Carlos Baker.

Robert Laffout

A hist6ria da qual tentei reconstituir as fases mais decisivas, por uma serie de cortes sincronicos, leva it instaura9iio desse mundo it parte que e ocampo artistico ou 0 campo literario tal como 0 conhecemos hoje. Esse universo relativamente autOnomo (0 que significa dizer tambem, e claro, relativamente dependente, em especial com rela9iio ao campo economico e ao campo politico) d:i lugar a uma economia as avessas, fundada, em sua logica especifica, na natureza mesma dos bens simbolicos, realidades de dupla face, mercadorias e significa90es, cujo valor propriamente simb6-lico e 0 valor mercantil permanecem relativamente independentes. Ao fim do processo de especializa9ao que levou ao aparecimento de uma produ-9ao cultural especialmente destinada ao mercado e, em parte como rea9iio contra esta, de uma Produ9ao de obras "puras" e destinadas it apropria-9iio simb6lica, os campos de Produ9iio cultural organizam-se, de maneira muito geral, no estado presente,l segundo urn principio de diferencia9ao que nao e mais que a distancia objetiva e subjetiva dos empreendimentos de produ9ao cultural com rela9iio ao mercado e a demanda expressa ou tacita, distribuindo-se as estrategias dos produtores entre dois limites que, de fato, jamais sao atingidos, a subordina9ao total e cinica a demanda e a independencia absoluta com respeito ao mercado e as suas exigencias.

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DUAS LOOICAS ECON6MICAS

Esses campos siio 0 lugar da coexistencia antagonica de dois modos de produ,iio e de circula,iio que obedecem a 16gicas inversas. Em um polo, a economia anti-"econ6mica" da arte pura que, baseada no reco-nhecimento indispensavel dos valores de desinteresse e na denega,iio da "economia" (do "comercial") e do lucro "economica" (a curto prazo), privilegia a produ,iio e suas exigencias especificas, oriundas de uma his-t6ria autonoma; essa produ,iio que niio pode reconhecer outra demanda que niio a que ela pr6pria pode produzir, mas apenas a longo prazo, esta orientada para a acumula,iio de capital simb6lico, como capital "econo-mico" denegado, reconhecido, portanto legitimo, verdadeiro credito, ca-paz de assegurar, sob certas condi,oes e a longo prazo, lucros "economi-COS".2 No outro polo, a 16gica "economica" das industrias litenirias e artisticas que, fazendo do comercio dos bens culturais um comercio como os outros, conferem prioridade a difusao, ao sucesso imediato e tempo-rario, medido, por exemplo, pela tiragem, e contentam-se em ajustar-se it demanda preexistente da clientela (contudo, a vincula,ao desses empreen-dimentos ao campo assinala-se pelo fato de que apenas podem acumular os lucros econ6micos de urn empreendimento economico ordinaria e as lucros simb6licos assegurados aos empreendimentos intelectuais recusan-do as formas mais grosseiras do mercantilismo e abstendo-se de dedarar completamente seus fins interessados).

Um empreendimento esta tanto mais pr6ximo do p610 "comercial" quanto os produtos que oferece no mercado correspondem mais direta ou mais completamente a uma demanda preexistente, e emformas prees-tabelecidas. Por conseguinte, a dura,iio do cicio de produ,iio constitui sem duvida uma das melhores medidas da posi,iio de um empreendimen-to de produ,iio cultural no campo. Tem-se assim, de um lado, empreen-dimentos com cicio de produr;iio curto, visando minimizar os riscos por um ajustamento antecipado a demanda detectavel, e dotados de circuitos de comercializa,iio e de procedimentos de valoriza,iio (publici dade, rela-,oes publicas etc.) destinados a assegurar 0 recebimento acelerado dos lu-cros por uma circula,iio nipida de produtos reservados a uma obsoles-cencia rapida; e, de outro lado, empreendimentos com cicio de produr;iio longo, baseado na aceita,iio do risco inerente aos investimentos culturais e sobretudo na submissiio as leis especfficas do comercio de arte: niio ten-do mercado no presente, essa produ,iio inteiramente voltada para 0 futu-ro tende a constituir estoques de produtos sempre amea,ados de recair no estado de objetos materiais (avaliados como tais, ou seja, por exem-plo, pelo peso do papel).3

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• • • A .. lea e imensa, com efeito, e as possibilidades de recuperar os gas-

tos quando se edita um jovem escritor sao pequenas. Um romance que nao faz sucesso tem uma dura,ao de vida (a curto prazo) que pode ser inferior a tres sernanas. Em caso de sucesso a curto prazo, urna vez sub-traidos os gastos de fabrica,ao, os direitos autorais e as despesas de difu-sao, restam cerca de 20'70 do pre,o de venda ao editor, que deve amorti-zar os nao vendidos, financiar seu estoque, pagar seus gastos gerais e seus impostos. Mas quando um livro prolonga sua carreira alt!m do primeiro ano e entra no "acervo", constitui uma "reserva" financeira que forne-ce as bases de uma previsao e de uma "politica" de investimentos a longo prazo: tendo a primeira edi,ao amortizado os gastos fixos, 0 livro pode ser reimpresso com pre,os de custo consideravelmente reduzidos e assegu-

CRESCIMENTO COMPARADO DAS VENDAS DE TRES OBRAS PUBLICADAS PELAS EDITIONS DE MINu/T

Cifra acumulada dos excmplares vendidos

100000

70000 60000 50000 40000 30000

20000 15 000

10000

2000 c B

Fonte: Editions de Minuit

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ra, assim, recebimentos regulares (recebimentos diretos e tambem direi-tos anexos, tradu,aes, edi,aes de bolso, vendas para a televisao ou para o cinema) que permite financiar investimentos mais ou menos arriscados, de forma a garantir por sua vez, a prazo, 0 aumento do "acervo".

A incerteza e a alea que caracterizam a produ,ao dos bens culturais leem-se nas curvas de vendas de tres obras publicadas pelas Editions de Minuit: urn "premio literario" (curva A) que, depois de uma venda ini-cial forte (em 6143 exemplares distribuidos em 1959, 4298 sao vendidos em 1960, feita a dedu,ao dos encalhados), tern a partir dessa data ven-das anuais fracas (da ordem de setenta por ana em media); La jalousie [0 ciume] (curva B), romance de Alain Robbe-Grillet, publicado em 1957, que, vendendo no primeiro ana 746 exemplares, nao alcan,a ao fim de quatro anos (em 1960) 0 nivel de venda inicial do romance premiado mas, grac;as a uma taxa de crescimento constante das vendas anuais a partir de 1960 (20"70 por ana em media entre 1960 e 1964, 19"70 entre 1964 e 1968), atinge em 1968 a cifra acumulada de 29 462; En attendant Godot [Esperando Godot] (curva C), de Samuel Beckett, que, publicado em 1952, atinge 10 mil exemplares apenas ao fim de cinco anos: gra,as a uma taxa de crescimento que, a partir de 1959, mantem-se mais ou menos constante (com exce,ao do ano de 1963) em lorna de 20"70 (ad-quirindo a curva aqui tambem uma velocidade exponencial a partir des-sa data), esse titulo alcan,a em 1968 (em que 14 298 exemplares sao ven-didos) uma cifra de venda acumulada de 64 897 exemplares. (Seria pre-ciso acrescentar 0 caso do fracasso puro e simples, isto e, de urn Gadot cuja carreira houvesse terminado no fim de 1952, deixando urn balan,o altamente deficitario.)

Assim, podem-se caracterizar as diferentes editoras segundo a par-ticipacao que dao aos investimentos arriscados de longo prazo e aos in-vestimentos seguros de curto prazo e, ao mesmo tempo, segundo a pro-por,ao, entre seus autores, dos escritores para 0 tempo longo e dos es-critores para 0 tempo curto, jornalistas que prolongam sua atividade ordinaria por escritos de "atualidade", "personalidades" que dao seu "testemunho" em ensaios ou em relatos autobiograficos ou escritores profissionais que se curvam aos canones de uma estetica comprovada (literatura de "premio", romances de sucesso etc.).

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Assim, em 1975, via-se a oposi,ao das pequenas editoras de vanguar-da, como Minuit (au, hoje, POL), e das "grandes editoras", Laffont, Groupe de la Cite, Hachette, sendo as posi,oes intermediarias ocupadas por editoras como Flammarion, Albin Michel, Calmann-Levy, velhas ca-sas de "tradicao", conservadas por herdeiros, que encontram em seu pa-trimonio uma for,a e urn freio, e sobretudo Grasset, antiga "grande edi-tora" hoje englobada no imperio Hachette, e Gallimard, antiga editora de vanguarda, ha muito tempo levada ao topo da consagra,ao, que reune urn empreendimento voltado para a gestao do acervo (reedi,oes, publica-,oes em livro de bolso etc.) e empreendimentos de longo prazo ("Le che-min", "Bibliotheque des sciences humaines"), cujos autares, como se vera, estao igualmente representados na !ista dos best-sellers e na !ista dos best-sellers intelectuais. Quanto ao subcampo das editoras voltadas de prefe-r<lncia para a produ,ao de longo prazo, portanto, para 0 publico "inte-lectual", polariza-se em torno da oposi,ao entre Minuit (que representa a vanguarda em via de consagra,ao), de urn lado, e, do outro, Gallimard, situada em posi,ao dominante, representando Le Seuil 0 lugar central.

Caracteristicas dos dois polos opostos do campo da edi,ao, as edi-,oes Robert Laffont e as Editions de Minuit permitem apreender na mul-tiplicidade de seus aspectos as oposi,oes que separam os dois setores do campo. De urn lado, uma vasta empresa (setecentos empregados) que pu-blica a cada ana urn numero consideravel de tftulos novos (cerca de du-zentos) e abertamente orientada para a busca do sucesso (para 0 ana de 1976, anuncia sete tiragens superiores a 10 mil, catorze de 50 mil e cin-qiienta de 20 mil), 0 que supoe importantes servi,os de promo,ao, despe-sas consideniveis de publicidade e de rela,oes publicas (em particular na dire,ao dos livreiros) e tambem toda uma politica de escolhas guiada pe-10 senso do investimento segura (ate 1975, quase a metade das obras pu-blicadas consiste em tradu,oes de livros que fizeram suas provas no es-trangeiro) e pela busca do best-seller:· no "quadro de honra" que 0 edi-tor opoe aqueles que "se obstinam ainda em nao considerar sua editora como litenhia", destacam-se os nomes de Bernard Clavel, Max Gallo, Fran,oise Dorin, Georges-Emmanuel Clancier, Pierre Rey.

No oposto, as Editions de Minuit, pequena empresa artesanal que, empregando uma dezena de pessoas, publica menos de vinte titulos por ano (ou seja, para os romances ou 0 teatro, uns quarenta autores em 25 anos); consagrando uma parte infima de seu or,amento a publicidade (ti-ra mesmo urn partido estrategico da recusa das formas mais grosseiras de marketing), tern com freqiiencia, como em seliS vendas infe-riores a quinhentos exemplares ("0 primeiro livro de P. que vendeu mais

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de quinhentos exemplares era 0 seu nono") e tiragens inferiores a 3 mil (segundo urn balan90 realizado em 1975, em dezessete novas obras publi-cadas desde 1971, ou seja, em tres anos, catorze nao haviam alcan,ado a cifra de 3 mil, nao tendo as outras tres ultrapassado os 5 mil). Deficita-ria (em 1975) se se consideram apenas as novas publical'oes, a editora vi-ve de seu acervo, isto e, dos lucros assegurados regularmente por aquelas de suas publica90es que se tornaram celebres (por exemplo, Godo/).

Uma editora que entra na fase de exploral'ao do capital simb6lico acumulado faz coexistir duas economias diferentes, uma voltada para a produ9ao e a pesquisa (e, na Gallimard, a cole9ao fundada por Georges Lambrichs), a outra orientada para a explora9ao do acervo e para a difu-sao dos produtos consagrados (com cole,oes como "La pleiade" e sobre-tudo "Folio" ou "Idees"). Concebem-se facilmente as contradil'oes que resultam das incompatibilidades entre as duas economias:' a organizal'ao que convem para produzir, difundir e promover uma categoria de produ-tos e inadaptada para a outra; alem disso, 0 peso que as exigencias da difusao e da gestao fazem pesar sobre a institui9ao e sobre os modos de pensamento dos responsaveis tende a excluir os investimentos arriscados, quando os autores que os poderiam ocasionar nao se voltaram por ante-cipal'ao para outros editores. Nao e preciso dizer que, se pode acelera-Io, o desaparecimento do fundador nao basta para explicar tal processo, que esta inscrito na 16gica do desenvolvimento das empresas de produ9ao cul-tural.

Sem entrar em uma analise sistematica do campo das galerias que, em razao da homologia com 0 campo da edi9ao, cairia nas repetkoes inu-teis, pode-se observar apenas que, aqui ainda, as diferen9as segundo a antigiiidade (e a notoriedade), portanto, segundo 0 grau de consagra9ao e 0 valor mercantil das obras possuldas, recortam muito exatamente as diferenc;as na re1ac;ao com a "economia". Desprovidas de "plantel" pr6-prio, as "galerias de venda" (Beauborg, por exemplo) expoem uma se-le9ao (em 1977) relativamente ecletica de pintores de epocas, escolas e idades muito diferentes (tanto abstratos quanto p6s-surrealistas, alguns hiper-realistas europeus, novos realistas), ou seja, obras que, sendo mais acessiveis (em razao de sua canoniza9ao mais avan9ada ou de suas dispo-nibilidades "decorativas"), podem encontrar compradores fora dos co-lecionadores profissionais e semiprofissionais (que se recrutam entre os "escal5es dourados" e os "industriais da mada", como diz urn informan-te); estao, assim, em condi9ao de localizar e de atrair uma fra,ao dos pin-tores de vanguarda ja notados oferecendo-lhes uma forma de consagra-9ao urn pouco comprometedora, ou seja, urn mercado em que os pre90s

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sao muito mais elevados que nas galerias de vanguarda.6 Ao contnirio, as galerias que, como Sonnabend, Denise Rene ou Durand-Ruel, marcam epocas da hist6ria da pintura porque, cada uma em seu tempo, souberam reunir uma "escola" caracterizam-se por urn partido sistematico. 7 E as-sim que se pode reconhecer, na sucessao dos pintores apresentados pela galeria Sonnabend, a 16gica de urn desenvolvimento artistico que leva da "nova pintura americana" e da pop art, com pintores como Rauschen-berg, Jaspers Johns, Jim Dine, aos Oldenburg, Lichtenstein, Wesselman, Rosenquist, Warhol, por vezes classificados sob a etiqueta de minimal art, e its pesquisas mals recentes da arte pobre, da arte conceitual ou da arte por correspondencia. Da mesma maneira, e evidente 0 la,o entre a abs-tra,ao geometrica que fez 0 renome da galeria Denise Rene (fundada em 1945 e inaugurada com uma exposi,ao de Vasarely) e a arte cinetica, com artistas como Max Bill e Vasarely fazendo de alguma maneira a liga,ao entre as pesquisas visuais do periodo entre as duas guerras (sobretudo as da Bauhaus) e as pesquisas 6ticas e tecnol6gicas da nova gera,ao.

DOIS MODOS DE ENVELHECIMENTO

Assim, a oposi,ao entre os dois p610s, e entre as duas visoes da "eco-nomia" que ai se afirmam, toma a forma da oposiCao entre dois ciclos de vida do empreendimento de prodw;iio cultural, dois modos de enve-lhecimento dos empreendimentos, dos produtores e dos produtos que se excluem totalmente. 0 peso das despesas gerais e a preocupa,ao correla-tiva com 0 rendimento do capital, que obrigam as grandes sociedades por a,oes (como Laffont) a fazer girar muito rapidamente seu capital, coman-dam tambem muito diretamente sua politica cultural e, em particular, a sele,ao dos manuscritos.8 A16m disso, essas empresas de produ,ao de ci-cio curto, it maneira da alta-costura, sao estreitamente tributarias de to-do urn conjunto de agentes e de institui,oes de "promo,ao" que devem ser constantemente mantidos e periodicamente mobilizados! Ao contra-rio, 0 pequeno editor pode conhecer pessoalmente, com 0 concurso de conselheiras que sao ao mesmo tempo autores da casa, 0 conjunto dos autores e dos livros publicados. As estrategias que emprega em suas rela-,oes com a imprensa sao perfeitamente adaptadas as exigencias da regiao mais auWnoma do campo, que impoe a recusa dos comprometimentos temporais e que tende a opor 0 sucesso e 0 valor propriamente artistico. o exito simb6lico e economico da pradu,ao de cicio longo depende (pelo menos em seus come,os) da a,ao de alguns "descobridores", isto e, dos

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autores e dos critieos que fazem a editora dando-Ihe crMito (pelo fato de ali publicar, de fornecer-Ihe manuscritos, de falar favoravelmente de seus autores etc.), e tambem do sistema de ensino, unico capaz de of ere-cer, a prazo, urn publico convertido.

Enquanto a recep,ao dos produtos ditos "comerciais" e mais ou me-nos independente do nivel de instru,ao dos receptores, as obras de arte "puras" sao acessiveis apenas aos consumidores dotados da disposi,ao e da competencia que sao a condkao necessaria de sua aprecia,ao. Por conseguinte, os produtores-para-produtores dependem muito diretamen-te da institui,ao escolar, contra a qual, de resto, insurgem-se constante-mente. A escola ocupa urn lugar homologo ao da Igreja, que, segundo Max Weber, deve "fundar e delimitar sistematicamente a nova doutrina vitoriosa e defender a antiga contra os ataques profeticos, estabelecer 0 que tern e 0 que nao tern valor de sagrado, e faze-Io penetrar na fe dos leigos": atraves da delimita,ao entre 0 que merece ser transmitido e reco-nhecido e 0 que nao 0 merece, reproduz continuamente a distin,ao entre as obras consagradas e as ilegitimas e, ao mesmo tempo, entre a maneira legitima e a ilegitima de abordar as obras legitimas. Nessa fun,ao, distingue-se das outras inst1incias pelo tempo, extremamente lento, de sua a,ao: empenhados em cumprir sua fun,ao de descobridores, os criticos de vanguarda devem participar das trocas de atestado de carisma que com freqiiencia fazem deles os porta-vozes, por vezes os empresarios, dos ar-tistas e de sua arte; instancias como as academias ou 0 corpo dos conser-vadores de museu devem combinar a tradi,ao e a inova,ao moderada na medida em que sua jurisprudencia cultural exerce-se sobre contemporii-neos. A institui,ao escolar, que reivindiea 0 monopolio da consagra,ao das obras do passado e tanto da produ,ao como da consagra,ao (pelo titulo escolar) dos consumidores apropriados, concede apenas post mor-tem, e depois de urn longo processo, esse sinal infaHvel de consagra,ao que constitui a canoniza,ao das obras como classicas pela inscri,ao nos programas.

Assim, e total a oposi,ao entre os best-sellers sem futuro e os classi-cos, best-sellers na longa dura,ao que devem ao sistema de ensino sua consagra,ao, portanto, seu mercado extenso e duradouro.lO Inscrita nos espiritos enquanto principio de divisao fundamental, ela funda duas re-presenta,oes opostas da atividade do escritor e mesmo do editor, simples comerciante ou descobridor audacioso, que so pode ser bem-sucedido se

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I reconhece plenamente as leis e as apostas especificas da produ,ao "pu-ra" . No p610 mals heter6nomo do campo, isto e, para os editores e escri-tores voltados para a venda, e para 0 seu publico, 0 sucesso e, por si, uma garantia de valor. E 0 que faz com que, nesse mercado, 0 sucesso leve ao sucesso: contribui-se para fazer os best-sellers publican do suas ti-ragens; os criticos nao podem fazer nada de melhor por um livro ou uma pe,a do que Ihe "predizer 0 sucesso" ("Isso deveria chegar direto ao su-cesso";" "Aposto no sucesso do Tournant de olhos fechados"l2j. 0 fra-casso e, evidentemente, uma condena,ao inapeJavel: quem nao tem pu-blico nao tem talento (0 mesmo Robert Kanters fala de "autores sem ta-lento e sem publico it maneira de Arrabal").

No p610 oposto, 0 sucesso imediato tem algo de suspeito: como se reduzisse a oferenda simb6lica de uma obra sem pre,o ao simples "toma hi da ca" de uma troca comercia!. Essa visao que faz da aseese neste mundo a condi,ao da salva,ao no outro encontra seu principio na 16gica especi-fica da alquimia simb6lica, que pretende que os investimentos nao sej am recompensados a menos que sejam (ou pare,am) operados a fundo per-dido, it maneira de um dom, que nao pode garantir para si 0 contradom mais precioso, 0 "reconhecimento", a flaO ser que seja vivido como sem retorno; e, como no dom que ele converte em pura generosidade ao ocul-tar 0 contradom por vir, e 0 intervalo de tempo interposto que serve de anteparo e que dissimula 0 lucro prometido aos investimentos mais de-sinteressados.l3

o capita! "economico" s6 pode assegurar os lucros especifieos ofe-recidos pelo campo - e ao mesmo tempo os lucros "economicos" que eles trarao muitas vezes a prazo - se se reconverter em capital simb6lieo. A umca acumula,ao legitima, para 0 autor como para 0 critico, para 0 comerciante de quadros como para 0 editor ou 0 diretor de teatro, con-siste em fazer um nome, um nome conhecido e reconhecido, capital de consagra,ao que implica um poder de consagrar objetos (e 0 efeito de griffe ou de assinatura) ou pessoas (pela publica,ao, a exposi,ao etc.), portanto, de conferir valor, e de tirar os lucros dessa opera,ao.

Comercio das coisas das quais nao ha comercio, ° comercio de arte "pura" pertence it classe das praticas em que sobrevive a 16gica da eco-nomia pre-capitalista (como, em outra ordem, a economia das trocas en-tre as gera,oes e, mais geralmente, da famHia e de todas as rela,oes de philia):l4 denega,(jes praticas, essas condutas intrinsecamente dubias, am-bfguas, prestam-se a duas leituras opostas, mas igualmente falsas, que lhes desfazem a dualidade e a duplicidade essenciais reduzindo-as seja it dene-ga,ao, seja ao que e denegado, seja ao desinteresse, seja ao interesse. 0 desafio que lan,am a todas as especies de economismo reside precisamente

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no fato de que s6 podem realizar-se na pratica - e nao apenas nas repre-sentacoes - it custa de um recalque constante e coletivo do interesse pro-priamente "econ6mico" e da verdade da pratica que a analise "econ6mi-ca" desvenda.

o empreendimento "econ6mico" denegado do comerciante de qua-dros ou do editor, em quem a arte e os neg6cios se conjugam, nao pode ser bem-sucedido, mesmo "economicamente" , se naD for orientado pelo dominio pratico das leis de funcionamento e das exigencias especificas do campo. 0 empresario em materia de produCao cultural deve reunir uma combinacao inteiramente improvavel, em todo caso bastante rara, do rea-lismo, que implica concessoes minimas as necessidades "economicas" de-negadas (e nao negadas), e da conviccao "desinteressada", que as exclui. Compreende-se perfeitamente que a obstinacao com que Beethoven, ob-jeto por excelencia da exaltacao hagiografica do artista "puro", defen-deu seus interesses econ6micos - especialmente os direitos autorais so-bre a venda de suas partituras - se se sabe ver uma forma especifica do espirito de empreendimento nas condutas mais apropriadas a chocar 0

angelismo econ6mico da representacao romantica do artista: sob pena de permanecer no estado de veleidade, a intencao revolucionaria deve asse-gurar para si os meios "econ5micos" de uma irredutivel a "eco-nomia" (por exemplo, para Beethoven, dispor de orquestras de porte muito grande). Da mesma maneira, se tudo op5e 0 editor ou 0 comerciante de quadros que pretende agir como "descobridor" ao puro comerciante, ele nao se opoe menos aqueles que empregam as mesmas disposicoes inspira-das na dimensao comercial e na dimensiio cultural de seu empreendimen-to (a maneira de Arnoux): "Um erro sobre os precos de custo e sobre as tiragens pode desencadear catastrofes, mesmo que as vendas sejam ex-celentes. Quando Jean-Jacques Pauvert iniciou a reimpressao do Littre, o neg6cio anunciava-se vantajoso em razao do mlmero inesperado de as-sinantes. Mas, na publicaciio, ficou claro que um erro de avaliaciio do preco de custo fazia perder uns quinze francos por obra. 0 editor preci-sou ceder a operacao a um colega" . 15 A ambiguidade profunda do uni-verso da arte e 0 que faz com que, de um lado, recem-chegados desprovi-dos de capital possam impor-se no mercado valendo-se dos valores em nome dos quais os dominantes acumularam seu capital simb6lico (mais au menos reconvertido depois em capital "economico"); e com que, de outro lado, apenas aqueles que sabem contar e compor com as sujeicoes "economicas" inscritas nessa economia denegada possa calher plenamente os lucros simb6licos e mesmo Heconomicos" de sellS investimentos sim-Mlicos.

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