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DO AUCTOR
P u b l i cado s
Herança rnorbzda (esgotado)A propaganda (esgotado)D ozs cr l /nes (esgotado)Impressões de wag em (esgotado :P or a lq
'
fóra (esgot'
ado)N as nõ
ª
; gs calmas (esgotadosA 0 de leve esgotado)Long e da vzsta (2 .
ªedição)
D . Car los zn tuno (2.
ªedl ção)
Gente Rastzca (2 .ª ednção)
Os amores de LatinaA canzznho d Afr zca
Terra de lendasQuadr os a lentej anosP retos e brancosj ornadasCon tos lzg ez
'
ros
Gente var za
Con tos e sátzras
Scenas da vida
A p u b l i ca r
Fôg o disperso
_gR I To CAM A CHO
SCENAS
A v
1 .º M i LHA R
Liv raria Eõi tora
G U I M A R ! E S C.
ª
68, R ua õo Munõo , 70
LISBOA
Comp. e imp. na IMPRENSA LUCAS C)
59, Rua D iário de Notícias, 61 LISBOA
O Mo inho
la em dois anos que o moinho não trabalhava .Uma cheia , como d
'
ou tra igual não havia memoria ,íiz era desvi a r o lei to da ribeir a , convertendo o açuden'um paredão inu ti l , e a leváda n
'
um canei ro sem
pres timo .
Duran te uma semana , sem despegar, caíra chuva
a potes, e ao mesmo tempo uma ventan ia desabridaenrodi lhava as arvores mui to flexíveis e arrancava
pela ra iz ol ivei ras e azinheiras for temente presas àt erra , de braços e pernadas riias como o ferro.
0 moinho fi ca ra sem o telhado, da noi te para o
dia. não alu i n do a s paredes porque eram fei tas de
pedra bem argamassada , grossas como se fossem
muralhas . Nem tempo houvera para retirar do moinho , convert i do n
'
um pôço , o t rigo e a farinha que
ali havia , de freguez es varios um alque ire d'
es te,t res alque ires d'aquele, uma carrada do lavrador iul ano, ou tra do lavrador bel trano , ainda por ioe irar.Por fa tal idade, uma das comportas abri ra -se , e o
6 SCENAS D A VIDA
correspondente rodizio, como se o acionasse umaforça demoníaca, a gi ra r, n
'
uma vert igem , acabou por
se fazer em bocados .
N i nguem se lembrava d'
uma coisa assim , a r ibei ra
caudalosa como um rio afri cano , as terras ba ixas ala
gadas , as searas , em herva curta , mal verdeíando nas
chapada s , a pedirem uns diasinhos de sol para não
morrerem de todo .
Previa— se um ano de fome , um ano terr ivel como
o de 1856, ano de palha e de feno , mais de feno qu e
de palha, porque as sea ras, sobretudo os t ri gos, set i nham perdido á nascença . Mu i t a gen te, n
'esse anot errivel, sofreu a miseri a negra , sem pão e sem tra
balho. Chegou a vender-se um alqueire de t ri go pormil e qua trocen tos réis, t res vezes, pouco ma is oumenos o seu custo ordinario n
'
esses tempos recu ados .
O moinho era propriedade do sr. S i lverio Augus to ,que o mandara fazer , menos para d
'
ele t i ra r lu cros ,que para benefi cio de toda a família da Aldeia, obrigada a i r moer o seu trigc a uma dis tan cia grande ,mais d
'
uma legua em moinho de ven to , e aprox ima
damente a mesma distancia n'
um moinho d'
agua, a
iuz ante, moinho que tinha mau chegadoiro para carros, e não era a cess ivel , pelo lado da r ibeira , quandoesta levava um golpe d'agua a cobri r as passadeiras .
O a cesso ao moinho do sr . S i lverio era fa ci l e comodo, tan to do lado da ribei ra , como do lado opostofa ci l para ca rros e cavalei ros . O porto era bom,
mui to fi rme, e como a ribeira , a montante, alargava
SCENAS D A VIDA 7
n'
um pego , que parecia uma lagôa, a corrente che «
gava ali um pouco amortecida , raramente estorvando
a passagem por ma is de t res ou quatro horas, a nãose r nas che ias desmarcadas , em anos de grande in
vernia . Um pouco para ba ixo do por to , quas i n a j unção do barran co que rest i tu ía á r ibei ra a agua comque trabalhava o moinho, havia uma pinguela lan
cada por sobre um pégo fundo e estrei to , en t re doi schaisse iros, de grosso t ronco e abundante ramaria .
Uma corda fei ta de ramos, hervas e iuncos, servia decorrimão , f ra gil amparo que os ma is audaciosos não
u tilisavam, e que aos t ímidos dava an imo, permitin '
do. lhes dis tra i r a vista da iminencia do perigo .
Fôra um dia de grande festa, de brodio riio, o dainaugu ração do moinho . Jun tou-se a l i o povo todo ,homens, mulheres e creanças, os novos e os velhos ,só fi cando em casa quem não podia i r para a ru a .
Por fel iz a caso, n a vespera , uma vaca do lavradorGoinhas, escorregando- lhe ao mesmo tempo as duasmãos , cai ra de mangualde n
'
um cachafundão , d'
onde
a t i raram, a mui to custo, com uma perna part ida .
O sr. S i lverio comprou a vaca , fazendo consta r, n aA l deia , que no dia seguin te
!
ela tomaria parte na
festa ensopada com bata tas e borri fada com vi
nho .
Aqui n inguem se embebeda ordena ra o sr .S i lverio, quando a famil ia, distribuída em grupos
,
formando pequenos circulos, se dispunha a manducar, cada qua l tendo levado de casa , por expressa re .
8 SCENAS D A VIDA
comendação que ele fizera , o indispensavel ga rfo deferro para não comer á unha.
A prime i ra garfada de ensºpado, a inda no tacho ,foi a do sr. S i lverio , quando o mol ei ro, ergu idas ascomportas , disse para a famil ia , ali reunida
Se i a louvado e adorado Nosso Senhor JesusChri sto .
Todos os homens ti ra ram o chapeu, dizendo
se ia e logo o moinho se encheu , os grandes
e os p equenos a quere rem vêr o trabalho das mós ,coi sa que alguns ainda não t inham visto, e outroses«
tavam far tos de vêr . A chavam mui to compl i cado e .
mui to en genhoso todo aquele mecanismo , o t ri go acair, em pequen inas porções , da tolda para a mô debaixo , gra ças a um est remecimen to constan te re gu
lado por um sys tema adami t a de al avan cas, pesos e
corde is, e a mó de cima a gi ra r , sempre no mesmo
sen t ido e com a mesma velocidade , t ra nsmi t i da a
força da a gua ao rodizio e deste á mó, por um eixovert i cal .A
'
voz do sr. S i lveri o vamos a i s to, que se faz
arde as mulheres assen taram-se no chão, er *
guendo a sa ia de cima , r efazendo -se os grupos oucirculos á roda de cada p ra tada , os h omens em pé,um ou outro de ioelhos, en tre as mulheres, como na
Avé Mari a , alguns de cócoras, sen tados nos cal canhares, é moda afri cana .
A qu i n i nguem se embebeda repet iu o sr. S i lverio , ao mesmo tempo que dava ordem para que
dois moços da sua casa , a rmados de ga rrafa e copo ,
SCENAS D A VIDA 9
uma garrafa grande e um cºpo pequeno, fossemda
'
ndo vi nho á família.
Os ga ia tos não bebem .
O Carvalhosa , ru im trabalhador e grande beberrão, quando lhe iam a dar o cºpo, t i rou da algibeirada vest ia um cordel , un indo — lhe as pon tas.
I sso para que é , 6 tio FranciscoÉ para não engul ir o copo , se me escapul i r da
mão.
O sr . Si lverio ouviu , e mal disfa rçando o seu azedume , disse para o f i lho mais velho, um moço que
nem um sobreiroO
'
João, leva aquela besta ã levada , e não lhe
deixes sa i r a cabeça d'
agua emquanto não esti verch e io como um ôdre.
N i nguem se embebedou , mas todos fi caram ale
gro les, as mul heres a inda mais que os homens, por.
que não tendo o h ab i to de beber, qualquer p in ga
que lhes caia no es tomago sóbe- l hes logo á cabeça .
Reti rou a famil ia para a A l deia , em ra nchos, bá
lhando e cantando, como na vol ta das romarias, os
namorados aprovei tando aquela monção para renova
r em , sem palavras , os seus iuramentos e promessas,provocando con tactos que eram choques electricos.
O sr. S i lver io , com a mulher e os filhos, deixou o se
fi car no moinho at é quasi ao sol posto, sen tado n'
umapedra , a olhar a agua , l i gei ramen te barren ta, da le
vada , e a ouvi r o barulho que ela fazi a nos rodízios ,a espumar como nos burdos .
1 0 SCENAS D A VIDA
Recomendou ao moleiro que puz esse um si gnal no
prime iro saco de far inha que ali se f izesse , e que lh'
o
mandasse para casa , no dia segu in te , logo pela manhã .
É para o pão que se hade comer n a fes ta de
S . Romão, se Deus nos der vida e saude .
O grande t rabalho do padre, na festa de 5 . R0
mão , era o de benzer, porque al ém das pessoas e
dos animaes que se apresen tavam para esse efei to,t i nha de benzer metros e metros de fi ta , arrateis e
arrateis de pão . Era cren ça mu i to arrei gada que opão benzido l ivrava de mui tos peri gos e curava
mui tos achaques , com ido com devoção . Conserv ava o se por mui to tempo , mezes e anos , sem tomarbolor , ralado, quasi pulverulen to , e assim mesmo efi
caz , - afi rmavam as pessoas devotas , para debelar cer
tas doen ças . Sempre minha mãe t raz ia da fes ta deS . Romão , a que raramente fal tava , a lguns pães benz idos, dos quaes mandava peq u enas fa t ia s ás pessoasdas suas relações gravemen te doen tes ou a tacados
de mal cron ico , rebelde às drogas da boti ca .
O moinho era agora o en can to , o namoro do sr .S i lverio, que só nos dias asperos de ven to e chuvanão estendia a s pernas até lá , demorando- se a conversa r com o moleiro, e qua ndo o molei ro não es
t ava demorando — se a fuma r á beira da levada ou da
ribei ra , sen tado ou estendido , n a vaga dist ração d'um
homem que não tem habi tos de pensar,e se encon
tra desocupado , por assim dize r i nerte de corpo esiderado de espiri to.
SCENAS D A VIDA 1 1
O moinho estava bem afreguez ado, porque o mol ei ro era de bôas con tas, e as mós. sempre bem picadas, faziam excelen te fa rinha . N ão l he en trava na
tolda um punhado!
de t r i go que não fosse mui to bem
ioeirado , sem terra e sem pedras, e a sua maqu ia nãoera de en colher e alargar , como su cedia , geralmen te ,nos ou tros moinhos .
A primeira e mais i nstan te recomendação que osr. Si lverio fazia aos seus molei ros. era esta
Aqu i não se t ira uma pi tada de farinha a nin
guem . No dia em que me consta r que vocemecê nãodá bôas contas, vai para o olho da rua. E olhe que
eu não sou homem para dizer uma coisa e fazerout ra .
De começo os freguez es não se esqueciam de re !
comendar ao moleiro que t ivesse mui to cu idado não
fosse trocar o seu tri go. quasi escolhido bago a bago ,nem picado de cevada . nem sujo de terra um tri goque até podia servi r para host ias, mui to são e mu i topuro. A pouco e pou co todos foram percebendo quetal recomenda ção era i nu ti l , em primeiro logar po r
que o molei ro não fazia t rocas nem baldrocas , e emsegundo logar porque todo o tr igo que ele farinavaera passado ao ioeiro , tã o isento de impurezas comose fosse escolhido a dedo, no tabole iro.
O sr. Si lveri o não t inha propr iedade que lhe dessemaior rend imen to , po u co dispendiosa , as mós du
rando uma etern ida d e e a madeira dos rodíz ios parecendo ter a mesma duração .
Se a ribeira não secasse , no verão ; se t ivesse
12 SCENAS D A VIDA
a gua corren te ou represada que a limen tasse a levadaduran te o ano in te i ro, o moinho seria uma mina ,mui to melhor que uma herdadola, sem as despez as
e canceiras i nheren tes a um assen to de lavoura .
Os fi lhos queriam que ele a rrendasse o moinho, a
ver se lhe passava aquela bebedei ra ; mas ele dizia, e
e ra verdade, que não tinha coisa que mais o di s
tra ísse. e como essa dist ração , ao custrario das ou
t ras dis tra ç ões, lhe não custava d inheiro , antes lhedav a lu cros , havia de conserval-a até morrer. O moi
nho seri a a ul t im a coisa que al ienaria, para pagar as
suas dívidas, se as t ivesse. ou para ma ta r a fome , se
Deus p ermi t isse que chegasse a esse ext remo.
Quando eu fecha r os olhos , vocês farão o que
t iverem na von tade. Se quizerem a_rren dar ou vendero moinho , a mim
'
tanto se me dá , como se me deu .
Cal cula — se , pelo que exposto f i ca , qual seria o des
gosto do sr. S i lverio quando viu o seu moinho des .
t elhado pelo ven to , quasi cheio d'
a gua , t roncos e raizes boiando na levada , o a çude rôto, a esboroar -se
como se fosse de ta ipa ! Este especta cu lo atenaz ara
lhe o coração , que por um tri z não reben ta , dia s
passados , notando que a ribei ra t inha mudado delei to , f i cando assim condenado o moinho a não t era gua para trabalhar , mesmo que os i nvernos fossem
de chuvas diluvianas, dando logar a caudaes extremos.
Perdeu o ape t i te ; tornou — se triste e i rascível . Dea ten cioso que era. fez ' se grosseiro ; como que per
SCENAS D A VIDA 13
dera o uso da fala , sempre calado, respondendo por
acenos às pergun tas a que não podia dispensar-se deresponder.Não estava doen te ; pelo menos não dava mostra s
de sofrer, a cusando dôres aqui ou além , sempre frescaa pele , o que excluía a hypo these d
'
alguma camadade sesões que t ivesse no chôco, e viessem.mais agora
mais logo , a pôr - lhe as uvas em pisa . N em sequeracusava aquele mal estar, difuso , incaracteristico, qu eprecede mu itas vezes a exp losão d'uma doença cla
rameu te defin ida.
Lembraram -se os fi lhos de que aqu ilo lhe passar ia, concer tado o moinho , prolongada a levada de
modo a i r receber ma is longe, a lguns metros ma isa cima , a con tribu ição que a ribeira , fôra do velholei to. iá não poderia dar — lhe, mesmo quando enchessea inunda r os campos visinhos.
Não quero que mexam no moinho . Está mu i t obem assim . Quem não o puder v er como ele está ,faça o mesmo que eu faço — não olhe para ele.Um dia, na taverna da Ze fa Castanha , viuva ainda
em bom uso, estavam comendo e bebendo, em alegre pe tisqueira , os homens mais sisudos da A l deia ,onde veio a fala r-se da doença do lavrador S i lverio .
O Carvalhosa , que não era da sucia , mas ali ent rara ,havia pouco, meio borracho, para embicar a carrada ,sen tenciou por esta forma :
Aquilo, pelo que a gen te ouve dizer, é pasmo.
O unico remedio para esta doença , é uma sangria norabo . Se l h
'
a não fizerem , ou morre ou fi ca parvo .
1 4 SCENAS D A VIDA
A lguem foi con tar ao sr. S i lverio a gracinha doC arvalhosa, por quem ele t inha uma parti cular em
birração, f in gindo que o não via, quando passava por
e le , para o não sauda r. Enfureceu o se o lavrador , e
de si para s i iurou que o Carvalhosa não lh'
as f i ca ria
devendo .
Todas as tardes o Carvalhosa , recolhendo do trabalho , quando trabalhava , i a busca r uma quar ta d
'
á
gua ao Poço da Cêrca, passando ren te á porta do
qu in tal do sr. S i lver io , por ser esse o caminho maiscurto . A mulher, pouco menos de en trevada havia
Uns pou cos d'
anos, a mui to custo faz ia os arranios da
casa , dando alguns pon tinhos quando as dôres amai
navam um pouco . Apez ar da sua desgraça, o Carvalhosa, quando carregava os machinhos, tocava - lhesem dó a pavana , ameaçando — a de morte se desse um
pio mais al to . Nem por i sso a visinhança deixava dese aperceber dos maus tra tos que ele dava á pobre
de Chris to , tan to mais que algumas vezes os murroslhe fi cavam marcados na cara , em nodoas rôxas.
N a A l deia não havi a quem gostasse de semelhantef i gura , traba lhador ru im que nunca acabava o tempo
em casa dum pa trão , e que á j orna andava ho je aquiámanhã além , porque não merecia o que ganhava.
Bastava o que ele f izera á sogra para toda a gen tee nqu isilar com ele .
T i nha a pobre velha umas casinhas, un ica coisaq ue herdara de seus pais
,mortos iá e la estava viuva .
Foi aos t rabalhos do campo, emquanto ponde ; depois vivia do quasi nada que rendia o seu trabalho
16 SCENAS D A VIDA
O'
Carvalhosa , chega aqui .
0 Carvalhosa , pousando a quar ta,no chão, avan
çou despreocupadamente para ele , l evando a mão a o
chapeu,para cumprimen tar :
Bôa tarde , sr. Si lverio . Está melhorsinhoAs melhoras são pou cas, obrigado. Persuado-me
que isto , sem uma'
san gria no rabo , como tu rocei
taste,não pende para o lado da saude .
Palavras não eram d i tas , cae em cima do Carvalhosa uma sara ivada de murros, de que ele não pr ocurava l ivrar -se, mui ta encol hido, d
'
uma humzidadede cão , a procu ra r abri go en tre as pernasdo dono.
Deixe-me , sr. S i lverio. Eu não lhe fi z mal nenhum ! A i que me ma ta !A cudiu família dos quintaes proximos, n inguem in
tervindo na contenda, que o lavrador deu por termi
nada , expl i cando :
T inha umas con tas a a justa r com este mariol a ;estou pago e sa tisfei to .
0 pasmo é uma doen ça da velha medicina veterinaria, abundan temente descri ta no Thesouro dos Lavraa
'
ores.
Possuo des ta obra um exemplar que tem a da ta
de 1762 , fal tando- l he uma folha , iustamente aquela
em que o au ctor faz a sua apresen ta ção e expl i ca assuas medicinas.0 pasmo, acudindo- lhe nos primeiros o i to dias
con tados desde que a rez en trou a dar claros indi
cios de maluquei ra , não é doença fa tal , mas exige
SCENAS D A VIDA 17
um tra tamento energ i co , consist indo p r i n cipa lmen teem sangrias e vergas de fôgoCavaco , o ilustre Manuel Martins Cavaco, auctori
dade na alveitaria do gado vacum, não recomenda a
sangria no rabo , como fazem alguns auc tores ; masnão dispensa o fogo á roda dos cornos e das o relhas , fogo moderado por ba ixo das ore lhas por ser
partema is conj uncta do cerebro.
A'
s vezes o mal não cede promptamente a esta
medicina vul can ica , e en tão recomenda o grande Cavaco uma verga de fogo á roda dos miolos , aba ixodo pon to mais al to da testa uma mão travessa , e umaou t ra dos olhos para baixo , atravessandO o lhe o foci
nho .
Bem entendido. a therapeutica do pasmo não sereduz a esta carburação ; mas foi ela , sem duvida ,que acendeu as fu rias do lavrador S i lver io , a ver — se
considerado pelo Carvalhosa como uma vaca . o queser ia r idi culo, ou como um boi , o que se r i a calumn ioso , virtuosa como era a su a companheira .
No primeiro l ivro do Thesouro o au ctor. come
çando por um hymno á Agr i cu l tura , acaba por umadissertação erudi ta sobre a sangr i a , encarecendo omui to que deve saber o a r tífice sang rador para bemdesempenhar o seu miste r, i s to é, para que se jamu teis as san grias que fize r.N os recuados tempos emque eu estude i medicina
ainda se pra t i cava a sang ri a , mas ra ramente , tão ra
rameu te que eu não sangrei nem vi sangrar , du ranteos anos em que frequen tei as clínicas escolares no
2
18 SCENAS DA VIDA
Hospi ta l de S . ]osé . Depois de medico , clínico deacanhados recursos , fiz umas duas ou t res san grias,i n tervindo de u rgencia .
Abusou ' se mui to d'
este processo therapeutic'
o, nos
velhos tempos ; mas não estou bem certo de que a
fa l ta d'
uso, subsequen te ao abuso, se i a um procedi
mento louvavel na sua generalisação a todos os ca
sos morbidos.
Aos doentes em que a fal t a de sangue const i tue
um perigo de vida , faz- se - l hes a t ransfusão , i sto é ,mete - se — lhes nas veias sangue d
'
homem ou de ma
caco , sendo preferivel o sangue humano ; aos doen
tes cu ia vida está em risco, por excesso de sangue,não será rasoavel sangral c os?
No Brazi l iá funcionam hospitaes espiri tas. e eu
não ve io que as theorias espir i tas se jam menos dis
paratadas que a theori a dos humores, base da medi .
cina an tiga , e suprema rasão da therapeutica depletiva .
Não se poderá dizer a i nda hoje, apez ar de todosos progressos da sciencia medi ca , que o sangue é othesouro da V i da , e fi lho dilecto da Na tureza :Sang uís est vi tae thesaurus et fi li us di lectas na
turae
Pois bem ; bas ta admi t i r a ex istencia de mais trez
humores , como no Thesou ro , a fleuma, a colera e amelancol ia , para se compreender que a i nqu inaçãodo sangue por qualquer deles , em prºporções va
ri as , possa al tera r em diverso grau e por diversa
maneira a composição do sangue, que deve ser puroe l impo , para que o indivi duo tenha saude .
SCENAS DA VIDA 1 9
Se a sangria pode fazer sa i r do sangue os maus
p ri ncipios que o inqu inam , além de o diminu í rem em
quant idade, quando esta é excessiva, porque rasão
o s senhores facu l ta tivos hão de fugi r da lan ceta comoo diabo foge da cruzSangra r foi sempre fa ci l ; qualquer sangrava , o
pon to era ter uma lanceta a fiada e uma veia dispon ivel .
Mas que sabedor ia não precisava ter o artífice
sang rador para i n tervi r na melhor oportun idade, dispensando- se de i ntervi r, a não ser por motivos deforça maior, quando as circunstanci as não aconselha
vam a inte rvençãoPrecisava o sangrador não ignorar a exis tencia
dos plane tas Saturno , ]upi ter , M arte , Venus e Mercu rio ; conhece r os momentos da sua apa rição e con
iunção, não fôsse brandir a lanceta deba ixo duma
peri gosa in fluen cia plane taria .
Pre cisava tambem saber as horas em que os hu
mores reinam nos corpos , para com faci l idade pre
cisar o humor em que peca o paciente, sendo certoque das tres da manhã a te
'
ás nove começa a
rein ar o sangue, que e'
quente e humido, e dura
a te'
ás nove do dia e desde as nove a te'
ás tres
da tarde reina a colera , que e'
quen te e seca ; e
desde as tres da ta rde ate'
ás nove da noite reina
a melancol ia , que é fr ia e seca ; e desde as nove
da noite a te'
a'
s tres da manhã reina a fleuma ,
que he fr ia e humida , e entre estes qua tro humores se repartem estas vinte e quatro horas, e toca
2 0 SCENAS DA VIDA
a cada uma seis horas de reinar , e pelo di ta co
nhecimen to e precei tos dele se achará o provei to e
u ti lidade nas sang r ias.
M u tatis mutandis, a ana tomia e a fisiologia dosan imais superiores, na escala zoologica, são como a
anatomia e a fisiologi a do homem,e isso faz com
que a sua pathologia não defi ra substancialmen te, oque expli ca
,como pre tende o Thesouro, que a the
repen t ies ve terinaria , a mu i tos respei tos, possa subs
tituir e ser substi tu í da , pel a therapeutica humana .
Certo é qu e as sang r i as passaram de moda,e por
ter proposto que : fôsse sangrado n o rabo o lavrador
Si lverio, repu tando -o a ta cado de pasmo, o Carva
lhosa apanhou uma sova mes tra , que lhe t i rou a van
tade, daí para o fu turo. de exercer a nobre a rte do
Cavaco , e ou tros mest res ins i gnes . em alveitaria .
Um dia melhor, ou tro dia peor, o sr. S i lverio 1anão tinha parecenças do que fôra , amarelento , dacôr da palha , dôres no fígado, com i rradia ção parao hombro do mesmo lado , e um cresce r de barri ga
,
que em mu lher nova se tornaria suspei to.
A mui to custo , depois de lhe moêrem o bi cho do
ouvido , dias e dias seguidos az oinando-
o para tra ta r
da saude , o sr. Si lve r i o condescendeu em i r á V i l amostrar se ao dou tor, embora convencido de quee le nada lhe rece i tari a que lhe fizesse bem .
— Eu é que me sin to . Tenho a maqu i na estragada
SCENAS DA VIDA 2 1
cá por den tro ; só com um metro de terra em cimaé que is to se cu ra .
O doutor, tendo -o observado minuciosamente , nume xame demorado , i ndo a té auscu l ta - lo por cima da
iaqueto, declarou que aqui lo não era coisa de maior,e recei tou — lhe pí lu las , duas duz ias, para tomar trespor dia.
O sr. dr . não acha que o meu pai tem a barr iga um bocadinho inchada
O dou tor não t inha fe i to reparo , mas notava ago
ra , chamada para o caso a sua a tenção, que efectivamente o sr . S i lverio, em estado de excess iva ma
gresa, t inha a barriga em sal iencia arredondada , nem
sequer se dando ao trabalho de veri fi ca r se aqui loseri am ven tos , como afi rmava mui ta gen te, na aldeia ,se ser iam aguas, como pretendia a Zefa Castanha
,
cu io ma r i do . tendo enfermado com as mesmas s intomas do lavrado r, viera a morrer de hidropesía .
São ven tos .
E rece i tou - lhe uma purga.
A doença não fazia progressos rapidos , mas sópelo facto de durar , ía consumindo o doen te, quedir - se- ia
,um espê to senão fôra a barriga, crescendo
a olhos vistos, e a crescer tornando- l he mais vivas
as dores do fígado, em c rises de cada vez mais frequen tes, rebeldes a todos os remedios da medi cina
caseira , que nos da boti ca perdera ele a fé por com
pleto.
D izia — se na A ldeia , sem proposi tos irrespe itosos
2 2 SCENAS DA VIDA
— Parece um sapo , Nosso Senhor me perdõe.
Constou que havia em Ferreira um medico novo ,um cirurgião de grande fama , que até em Lisboa
era conhecido e admirado . A t ri bu iam -se o lhe curasque eram verdadei ros mila gres . Levaram - l he um dia
um homem, um carre iro , com a cabeça num bôlo, adei ta r os miolos por um grande bu ra co que t inh a
por cima da orelha esquerda . Levaram lho por des
ca rgo de consciencia , porque bem se v ia q ue ele est ava a dobra r as unhas
,j á com a mort e nas guelas,
Pois o dou tor entrou às vol tas com ele , l ava aqui.cose além , chegando a furar - l he a pele com uma
a gulha , para lhe meter os remedios no corpo , e o
caso foi que passan te um mez o pobre diabo estava
l ivre de peri go . e nem sequer dava mostras de ter
pancada na mola , apesar de ter perdido uma gar'
fada de m iolos .O sr. S i lverio não t inha o menor apêgo á vida ; l a
lhe fal tava a paciencia para t an to sofrer ; preferi a a
morte á cura, se ela viesse depressa , mas condescendeu em i r mostra rs e ao men ino vi rtuoso, de
Ferreira , sem cora gem para se mata r . O dou tor,com grande desembara ço e mui ta perícia, meteu- lh eum canudinho na ba rri ga , quasi á al tu ra do umbigo,do lado esquerdo , e poz - se a despej a 10 , como quemdespeia um ôdre .
E i sto não tornará a encher,sr . dou tor ?
Se torna r a encher, despeia se novamente.V . ex .
ª desculpe, que eu sou um homem rudo ,
2 4 SCENAS D A VIDA
Os seus dias estavam con tados, e vi s to a sua doen
ça ser incuravel, não tomaria mais remedios , não
consent iria mais benzedu ras , e quando viesse a tomar nova pançada dagua , não vol tari a a Ferrei rapara que o dou tor milag reiro l he despe j asse a levada , não levan tando as comportas, mas abr i ndo — l he
furos .Toda a gen te da A l deia foi a sua casa , não por
mera cu r iosi dade , mas para se informarem do seu
estado,sob re tudo para lhe sign ifi carem a mu i ta es
t ima em que o t i nham .
O Carvalhosa , quando soube que o doutor de Fer
rei ra lhe tinha despej ado a barr iga , d i sse , como tra
vor do odio a ressumar- lhe de i ron ia :
Provavelmen te aquela a gua era a que ele qu e
ria que eu bebesse na levada , quando foi da fes ta domoinho . Raios o partam !O Carvalhosa ainda sen ti a na cara as mãos de
ferro do lavrador, mais ele , ao tempo , iá não erao mesmo homem que t inha s ido valen te como as
armas, desembaraçado em casti gar o a trevido que
lhe fa l tasse ao ádecor. Mui to bom, não desfazendo
em nin guem ; mas quando a mosta rda lhe chegava
ao nariz , espirrava bofetadas e cachações, que era
um louvar a Deus .
D i z i a mui tas vezes o sr. Si lverio , quando se viamais a fl i to :
Perdoava a morte a quem me desse um tiro .
A'
força de lhe ouvi rem dizer isto,a mulher e os
SCENAS D A VIDA 2 5
f ilhos convenceram - se de que ele era capaz de sematar, e foram descarregando as duas espingardascaçadeiras que havia em casa . escondendo a bagagem — polvora e chumbo, onde ele não fosse da rcom ela .
A verdade é que o sr. Si lverio , a sofrer de cadavez mais , perdida a esperança em melhores dias, encarava a morte como um salvaterio, o unico a quepoderia a ter- se no inferno dos seus tormen tos i ndisiveis.
Morrer !Matar- se !Como todos os homens da sua condi ção, o sr. Sil
verio fôra educado nas dou trinas da San ta MadreI gre ia ca tol ica , apostol i ca e romana .
Ensina ram -l he, a inda pequen ino , que todas as coisas foram creadas por Deus, o que é vi sível e o queé i nv is ível , e que esse Deus Creador não está empa r te nenhuma , porque está em toda a parte . D i sseram - l he que existe o ceu para os iustos e o i nferno para os pecadores , sendo Deus o supremo iuizdas nossas a cções e pensamentos. Levavam -no a
missa todos os domingos , e á conf i ssão todos os
anos, i ncu t i ndo- l he assim habi tos rel igiosos que eleconsiderava como precei tos a que não poderia exi
mir- se sem pecado, salvo em caso de impedimen to
por força maior das circunstanclas. O bem e o mal ,a fel i cidade e a desg ra ça são favores ou cast i gos deDeus, que se torna prºpiciatorio por meio de ofrendas ou orações , servindo de i n termediarios os san
26 SCENAS D A VIDA
tos. D isseramo lhe mais , em pequen ino, formando a
sua consci enci a rel igiosa , que o sofrer com res igna
ção é uma das mais subl imes vir tudes do homem
cren te, a que mais o aprox ima do fi lho de Deus , quesofreu horrores para nos redimir e salvar. Fugi r ao
sofrimen to pela morte volun taria é renegar o a ctomais sublime da vida de ]esus Christo, cru cifi cadoen tre dois ladrões, sofrendo iniurias e tormentos,aguardando o seu ul timo instan te de vida , como ho
mem . não só res ignado , mas sa t isfei to por ascender
aos paramos celes tes .
Todos estes ensinamentos da menini ce se con
servaram na memori a do sr. S i lve r io , que agora osevocava , a sofrer como um danado , de cada vez
mais breve a a calmia das suas dores — mais breve
e menos repeti da . Preocupava-o a sa lva ção da suaalma ; mas se a Morte se esquecera dele , a sofrer ha
via uns poucos de mezes, de cada vez mais i n tenso
o seu sofrimen to. porque não havi a de ir ao encontro dela , aliiando um fa rdo que o esmagava , mais
pesado que a bemdita cruz do Redemptor
Pecado sem remissão , o suicídio
Mas a conscien ci a não o acusava de ter ofendi dogravemen te a Deus ou ter pre indi cado gravementeos homens, sempre correcto nas suas con tas, sempre
si n cero nas suas devo ções , dando aos pobres sem tira r aos ri cos , não fal tando coma esmola a quem d
'
ela
necessi tava e lh'
a pedia, nunca menti ndo ou calumníando , homem bom, va rão iusto , a pureza dos seus sentimentos reflect indo-se na digni dade dos seus a ctos .
SCENAS D A VIDA 27
E se não fossem verdadei ros , ri gorosamente ver o
dade iros, os ensinamentos , em materi a rel i giosa , quelhe tinham min is trado em creànça. a in da mal sabendo leva r o gar fo á boca , e j á fazendo correctamenteo signa l da c ruzA sua mor te não causari a dano a n inguem , antes
represen taria um benefício para os que não poderiam desamparal — o , a mu lher e os f ilhos , sem ofenderem a moral humana, ult ra jando ao mesmo tempo
a miz ericordia divina . Repeti das vezes a pedira já
a Deus, nas suas orações, en trecortadas de gemidos,que eram dôres, q uasi abafados pelas dôres, queeram tor tu ras .Era i ndigno de viver são e escorrei toPois en tão
'que cessasse o seu sofr imen to pelamorte, que a bemaventurança , comprada por tal pre
ço, é usu ra de fariseu , condenada pela I gre ja , e osofrimento e terno, começado neste mundo e con tinuado no ou tro, é coisa que se não compadece coma miz ericordia divina . De resto, o que se mata nassuas condições an tecipa a hora do seu j u l gamen tono tribunal d ivino ; comparece volun tariamen te peran te o Supremo ]uíz para que o absolva ou condene. segundo os dictames da sua in i ludíve l just i ça .
Vencidosos ul t imos escrupulos, assen tou o sr. Silverio em matar - se , e logo no dia seguin te , aparen
tando alivíos, mostrando -se quasi sa t isfei to á força
de resi gnado, disse à família que dese java confessa rse, mas que não se sen ti a com forças para i r á
V il la .
2 8 SCENAS D A VIDA
Pe rgun ta ram - lhe os f i lhosEn tão o pai sen te-se peor ?
Ob jectou — lhe a mu lherlas t u ho j e a té pareces melhorsinho ; estás
mais bem adoairado .
Não es tava melhor nem peor ; mas queria con ies
sar- se , não 0 tendo a inda fe i to por que rer evi ta r aocompadre pr ior
,que tambem já não era creança , o
in comodo de ir confessal-o á A ldeia .
E a crescen tou— A confissão não ma ta n in guem , e como a Mor
t e não diz quando chega , o mel hor é uma pessoa
esta r preparada pa ra se pôr a cam in ho quando ela
chega r. Ho je a inda me posso confessar : amanhã
t a lvez nem a estrema u n ção possa receber.
No dia seguin te, pelo ca i r da ta rde, devidamente
paramen tado, o prio r da freguesia , montado n'
um bu rro , segu ido do sacris tão , escarranchado nou t ro bu cefalo, ia a caminho da A l de ia , chamado para confessar o lavrador S i lverio , que só re colheu á cama
quando lhe disseram que já se ouvi a a campainha,
dando o signal de Senhor fôra , e convidando os
cren tes a a joelharem á sua passagem, resando um
pad re nosso .
A famil i a da A l de ia homens , mu lheres e creanças.
foram esperar o Senhor á Portela,tendo os j orna
le i ros fa l tado ao t rabalho , n'
esse dia ,para compare
cerem n'
aquele acto .
O prio r e o sacris tão apearam -
“
se á distancia de
SCENAS D A VIDA 2 9
poucos passos do ad j un to , re t in i ndo a campa inha edei tando o sace rdo te a benção á mu l t idão , a joe lhada
e de cabeça baixa , no recolhimen to d'uma dôr sín
cera e funda .
Organizou -se o cor te jo, o padre á fren te com osacri stão ao lado, as mu l heres a segui r, de mantilhaou cha le pela cabeça , os homens logo atraz , com ochapeu debaixo do braço , os já velhotes cruzandoas mãos - no pei to.
Froixamente o sol, a escorregar por detraz dumacor ti na transparen te de nuvens brancas, sem movi
men to apa rente , i luminava aquele pequenino quadrorel igioso , digno de ser fixado na fêla por um grande
mestre pi n tor . Refine a campainha , sacudida comforça , e logo um côro se faz ouvi r , quasi pe rfei to decadencia e harmon ia , cortando o silencio d
'
aquelahora vespertina , muda a Terra , deser to e profundo o
ceu , mu i to al to e mui to azul.
Bemõi to e louvaõo se jaO Santíssimo Sacramento oa Eucar ist ia . . ª
Acabado a con fissão , a fami l ia do lavrador chamouo padre de banda , e pe rguntou — lhe quando poder i aele dize r uma missa á Senhora das Dores , pa ra cu jafesta dar iam um moio de tr i go, doi s al quei res d
'
a
z eite e tres moedas em dinheiro se ela fosse servida
que o enforno se puz esse me lhorz inho.
E'
quando quizerem .
Poderá en tão ser depois de ámanhã
30 SCENAS D A VIDA
Sim, senhores. E a que horas querem a missa?Se isso n ão faz transtorno ao sr. prior, gos ta
r iamos que fosse às dez .D i ferença , nenhuma . Depois d
'
amanhã , às dez
horas, lá os espero .
Sen ti ndo- se ma is al iviado , depois da confissão, o
l avrador pediu a copa e vest iu - se . Queria esta r al
gum tempo fóra da cama , a ver se de noi te dormia ,Parece que a confissão lhe fez bem
Mal não lhe fize ra , e até parecia que o conforto
moral que dela t i ra ra , de certo modo diminu i ra o seusofrime n to fisi co .
Contaram — l he , en tão , o que fi cara combinado comopadre , mu i to esperançados no m i lagre que havi a defazer a Senhora das Dores, madrinha do seu fi lhomais velho , sua comad re por consegu i n te.
E'
então depois d'
amanhã a missa ? Pois vãotodos , vão todos, e que nossa Senhora os oi ça , qu ea mim nem Deus nem os san tos me querem ouvi r .
A s nove ho ras estava o ca rro á porta do sr. Sil
verio, tendo o almocreve t ira do as esqui las e os casca
ve is das cabeçadas, visto o caso ser mais para dobrede finados que pa ra repiques a legres . O l avrador jáes tava a pé , tendo passado uma noi te sofrível , nunca
i ntei ramen te l ivre de dôres, mas dormindo os seusbocadinhos menos maus .
A gen te não se demora . Em saindo da missa
metemo-nos l ogo no carro e toca para casa .
32 SCENAS D A VIDA
seu carac ter , de bem temperado a ço . Livre das sor!
t es por ser filho uni co de viuva pobre , d'
ahi a poucocasava , não por i n teresse , mas por amor, dando - se a
fel iz ci rcunstan cia de ser orfã de pai e mãe, rela tiva
mente ri ca , a ele i ta do seu coração.
“
V i viama inda to
dos os fi lhos que Deus lhe dera , nada menos de quatro
,uma rapar iga e tres rapazes . N ão podia haver
esposa mais carinhosa que a sua , fi lhos mais obe
dien tes , mais respe i tosos que os seus , e , por extrema
fe l i c idade , todos eram sadios , for tes e cora josos . Consegui ra livral-os das corre ias , e eles pagavam - lhe esse
benefício conservando-se sol tei ros , a judando o pai n o
seu esfo rço incessan te pa ra os deixa r bem, a eles eá i rmã, quando mor resse .
Para ele , como para todos os l avradores , havia al
ternativas de anos bons e anos maus ; mas g raças aNosso Senhor nun ca lhe correra tão mal um ano que
não fizesse todos os gastos da sua casa sem recorre r
á bolsa alhe ia .
Todos o respei tavam , e se não t inha as simpat ia s
de todos, é porque um homem , faça o que f izer, porme lhores que sejam a s suas a ções , agrada a uns edesagrada a ou t ros . ]esne Ch r i sto , e mais era umDeus , a rran jou tan tos e tão encarn i çados in imi gos quefoi morrer n o Calva r i o . Sim,
nem toda a gen te o es
t imar ía ; mas chamadas a um tr i bunal para depôremcontra ele as pessoas que o não est imassem , ou não
compareciam , ou en tão , a ten tas á voz da consciencia,nada art i cul ariam em seu desabono .
No seu la r houvera sempre fartu ra e alegria ; a s
SCENAS D A VIDA 33
suas noi tes eram de sono calmo ; os seus dias eram
de trabalho honrado e fecundo . A sua modesta fortuna não era fei ta de sordidez na poupança , nem deespol iação nos ganhos . Lavrador á moda an ti ga , nãocomprava nem vendia por negocio , e jamais, comprando ou vendendo
,fizera a min ima traficancia , rea
lisando lu cros que não fossem escrupu losamente hones tos. Servi ça l como ele não havi a ou tro na A l deia ,a todos valendo nas suas afl i ções , a todos acudindonas suas necessidades. E assim era que todos se descobriam á su a passagem , grandes e pequenos , a s
mulheres baixando - l he a cabeça , que é o signal , ent re a gen te rust i ca , do maior aca tamen to. E ele a todos correspondia como de igual para i gual, a n inguem fazendo senti r que era um grande personagem ,
por ter mui ta fazenda .
O seu moinho fô ra a sua maior estravagancia , al i as
i nspi rada n'
um sen timen to de generosidade . Prestára,
assimh umbom servi ço á fam il ia da A l deia , e fize ra ,sem o pensar, um bom negocio, porque ele lhe davabom rendimen to .
O moinho !Evocava a festa da sua i nauguração , n
'
um dia soalheiro dos fins de Novembro, a levada tumida , sustida pelas compor tas , a ribeira cachoan te , lá acima ,a poucos metros do a çude, apertada en tre rochasbrutas, que pareciam as colunas d
'
Hercules. A um si
gnal dado, erguem-se as comportas, a agua da levâda
precipi ta-se nos cubos, e logo os rodíz ios en tram a
trabalhar , pondo as mós em ação.
34 SCENAS D A VIDA
A i n tima sati sfa ção de todos , comendo e bebendo
sem aquelas , ali reunidos como para uma fest a de
famil i a !
Formaram - se ran chos , n a vol ta á A ldeia , e ele vê —os
balhar, e ouve — os can ta r , gen te nova e amorosa , mo
ços de sangue na guelra , cachopas gravalhuças que
são como as nymphas dos bosques , que os fau nosperseguem , babando-se de luxuría .
I ntensifi cando a sua evocação , ouve o barulho quefaz o moinho a t rabalhar vê a a gua que sae , em rô
los de espuma , dos rodíz ios para a vale ta que a restitue ã r ibei ra , e ao mesmo tempo sen te na fa ce ,
quasi escondida en tre as maos espalmadas , a cari cia
d'
uma tarde suavemen te morn a , com o sol a me rgulhar nos mon tados da outra banda , matagosos porbaixo e tanganhosos por cima.De repen te , como n
'
uma bem preparada mudança
de scenario , a ribei ra torna- se em rio caudaloso , ala
gando os campos e afogando as a rvores ; a levada ,como se ribe ira fôsse, quebra a resistencia das com
portas e descon j un ta os rodízios ; uma ven tan ia desabrida , como um tufão no mar das I ndias, faz voa r
a s telhas do moinho, deixando ergu idas as paredes
por serem fei tas de pedregulhos bem argamassados ,espessas como muralhas .Sonho ou extasi , d
'
ele a cordou ou d'ele sa iu n'
um
estremecimen to convulsivo, os olhos desva irados , o
semblan te transtornado, a boca aberta , como se qu iz esse gri tar sem poder.Ergueu — se, a mu i to custo , chamou o rapazinho ,
SCENAS D A VI DA 35
que fôra sentan se , a s pernas caídas para o cubo, namó , par tida ao meio , da comporta de cima , e foi an
dand o em direção á ribei ra , de quando em quando
e spra iando a vi sta , na inqu ie tação de quem receia apresen ça de tes temunhas .Sentou o se jun to da pinguela , em cima d
'
um tu fode junco manso , deba ixo d
'
um chaisse iro que serviade encon tro fi rme aquela pon te a rro jada .
Tomou a al tura do sol, calculando o tempo decorrido desde que abalara da A ldeia , e a chou de si paras i que a famil i a devia esta r de vol ta , não gastando
mais de meia hora , t res quar tos d'
hora no caminho .
Ergueu -se, e assen tando o pé direi to na pinguela ,pergun tou ao rapazinho
Tu já sabes nadar , ChicoNãos e i ; mas com uma cort i ça na barri ga , não
vou ao fu ndo .
Pois deves aprender a nadar .
Meteu a mão na algibeira do cole te, e deu - lhe uma
l ibra .
E '
para a tua mãe te comprar um fa to .
Avançou , pegando com a mão di rei ta na corda
fei t a de hervas e ramos enastrados, que servia de
co rr imão , e quando chegou ao meio da pinguela
catrapuz l joga — se ao pego , e desaparece n'
umredemoinho
,fi cando - lhe o chapeu ao de cima d
'
agua ,como um! si gnal i ndicando uma sepul tura .
O rapaz inho desa tou aos gri tos, e como n inguem
lhe acudisse , meteu — se a caminho da A l deia , correndo quan to lh
'
o permi tiam as suas perni tas fracas, che
36 SCENAS D A VIDA
gando a casa sem poder tomar o fôlego se lhe pu
z essem uma mão na boca , rebentava .
O que tens tu , ChicoO que foi que te acon teceu , rapaz
Lôbo não teria aparecido ao mocinho , mas podia
lhe ter aparecido bruxa ou lobishomem, talvez o pro
prio Satanaz , a dei tar fôgo pelos olhos e pelas ventas .
Ao cabo d'
alguns minu tos , j á repousado masa inda ofegoso , o rapazinho disse o que era passa
do , pondo — se a família a caminho da r ibeira , unslevando cordas, ou tros levando fateixas, dispostos osbons nadadores a darem um mergu l ho, se tanto fossenecessario , para se encon trar o cadaver .
O'
Chi co , tu reparaste se o sr. S i lve ri o deu umpulo
Ná ; pulo não deu . Ca iu para o l ado, e foi logop'
ro fundo.
Para que lado é que el e ca iuPara es te e indicou o lado direi to .
Do meio da pinguela a tiraram duas fateixas, encalhando uma d
'
elas ao cabo de poucos minu tos .Pode ser uma pedraPode .ser uma raiz .
Logo outra fate ixa é a ti rada n a mesma direção , e
como tambem essa encalhasse, retesando a corda ,assen tou-se em que o cadaver estava fisgada, res tando fazel-o subi r ao lume d
'
agua e rebocal o para terra .
Devagar inho , não escapulam as fateixas.
O cadaver a chega r á A l de ia,n'uma padiola , e a
famil ia do l avrador a chegar da V i l la , esperançada
SCENAS D A VIDA 37
no milagre que havia de fazer a Senhora das D ôres,para cu ja festa , no ano proximo, t inham promet idoum moio de tri go , azei te e dinheiro.
Em cima do t ravesse iro , na sua cama de casal , osr. S i lverio deixara um papel , no qual escrevera is to ,a lapis , em letras que eram gatafunhos ' Não cul
pem n inguem da minha mor te . 151 não podia mais .
Peçam a Deus por a minha a lma .
Nos tempos bons em que decorre esta historiatr is te, os filhos nada pagavam ao Estado pelo queherdavam dos pais ; a j usti ça não in tervinha quandoa part ilha era entre maiores, a não ser que a ela re
corressem, desavindos por ambição ou por capri cho .
Maravi lhosamente se en tenderam os fi lhos e a viuvado sr . S i lverio para a repar ti ção da herança , no va
lor de alguns con tos de réis , mas de faci l par ti lha .
E o moinhoN in guem o quer ia , como se repudial o fôsse uma
justa homenagem ao sr. S i lverio. Assen tou— se, então,em vendel -o, não rega teando o preço . A'
parte o des
v io da ribeira , que não podia considerar- se defin i t ivo ,
todos os estragos que n'
ele fizera a i nvern ia eram defaci l remedio
,fa ci l e pouco dispendioso , menos a re
constru ção do açude, que sofrera grandes rombos .
A s mós lá estavam , dois pares de mós quas i novas,e todo o madeiramento , áparte um dos rodízios, con
servava-se i n tacto . Com seis milheiros de telha co
bria o moinho , o que importari a uma despez a de dez
ou doze mil réis .
38 SCENAS D A VIDA
Um moleiro de Algalé mandou dizer que o arren
daria,se os donos qu iz essempôl-o em condições de
trabalhar, ou que o compraria , se lhe fizessem um
preço razoavel .Tanta sorte teve o homem , de nome An ton io Ser
razina,que , efectuada a compra em Setembro , logo
em Novembro a r ibei ra tomou uma cheia , que lh erestabeleceu o lei to. Seguira - se a esta amostra dei nverno uma estiagem , pessima para os lavradores,mas opt ima para o moleiro , porque lhe permit iu refazer promptamente o a çude. em termos do moinho
não esta r uns poucos demezes parado .
O mest re Serrazina usava bagalhoça, e não era
pêco em gasta r. A primeira co isa de que tra tou foide mandar cobri r o moinho e a a rrecadação , i s to é.a casa que havi a de ser a sua morad ia , logo qu eprincipiasse a trabalha r devéras.
Como preci sava ausen ta r-se por qua tro ou cin cosemanas, decidiu fazer por emprei tada a reconstru
ção do açude e a l impeza da l evada . Assim não per
deria tempo , porque tudo isto'
se fa r i a na sua ausencia .
Por mu i to favor , pagando ele , dera — l he pousada o
C laudino A lves , com venda e estanco , dispensandolhe a sua cama de casal , montada sobre bancos , que
as barras de ferro, naquele tempo, não eram coisa qu e
se topasse nas A ldeias . Como era por t res ou quatrodias , quando mui to uma semana , o C laudino achoubemtomar aquele hospede , expl i cando - lhe logo
,no a juste,
que a mulher lhe fari a a comida. dando ele os avia
40 SCENAS D A VIDA
Resolvido a fixar residencia no moinho , i sto é , a
passar ali, não apenas a temporada, mas o ano i n
te iro, Serraz i n a mandou fazer mais duas casas , pe
gadas á arrecadação, o que i nduziu a gente da A ldeia na crença de que ele t inha famil ia , talvez mulber e filhos , ta lvez só mu l her, casado á fa ce , duma
candei a de gancho . Para mais disseram- l ho que se
vendia um ferragial que ia bater na levada , terra de
t res alquei res de semen te, e ele assen tou l ogo de si
para si compral -o , se não lhe pedissem um despreposito.
Abalou , deixando o moinho entregue ao compadreCabanas, com a recomendação de guardar em sua
casa , a té que ele viesse . a turgia que mandasse, num
carro ou dois.
Em conversa com a mulher , no discreto si l en cio dacama , o Cabanas f igu rava a possibi l idade de vi rem ainstalar— se no Moinho, se o Serrazi na era homem sóela para fazer a comida e t ratar da roupa do com
padre , ele para o servi ço de cargas e descargas e
t udo mais de que fosse capaz um a juda que poder ia vir a ser molei ro .
O Cabanas era o que se chama um paz d'alma , moº
engão, i n capaz de fazer mal a uma aranha , pela ndo
se por l evar bôa v ida . Por ele não viria mal ao mundo, nem desordeiro nem maldizen te, t ipo amorfo
movido ao sabor das ci rcunstancias como ao sabor
das ondas se movem os corpos que flu t uam .
A mulher , moça a len tada que nos trabalhos nuncae ra a ul t ima , sendo em alguns a primeira , con t ras
SCENAS D A VIDA 41
t ava cºm o maridº, duma act ividade incansavel, decidida sem ser volun tariosa , pºucº dada é cºnversadºs soalheiros, alheia aºs di tºs e mexeri cos das senhºras visinhas, e que consti tuem a u rdi du ra da vidacºlect iva nºs pequenºs cen tros pºpulaciºnais .D iz ia — se na A l deia aludindº aº Cabanas e á mulherFº i um errº da natureza ; ela é que devia ser º
hºmem .
Instaladº º molei ro, n㺠ta rdou que os seus compadres fºssem viver cºm ele , alo jando-se numa dascasas que mandara fazer , a pega r cºm a arrecadaç㺠:
As duas casas eram cºmuni can tes . e resºlvera o mºle irº que uma delas
,a do meiº , fºsse cºsinha e casa de
j anta r ; da ou tra fariam eles quar tº de cama .
O Serraz ina , du rante a temporada , dºrmiria nºmºinho ; fôra da tempºrada dºrmiria n a arrecadação .
0 Caban as n㺠t inha gei tº para nada ; a mulhert inha gei tº para tudº . O marido não mudava umpé sem pedir l icença aº ºu trº ; a sua Ófemia trabucava de manhã á noi te e a inda lhe chegava º tempo
para fazer meias ºu rendas , que vendia para ºs seusa l fine tes .
Valeria dºbradº, a Eufemia , se fºsse sºl tei ra ºuviuva . Cºm o cºntrapêsº dº marido a inda fazi a bºm
arran jº aº Serrazina . hºmem só e da saude precá r ia ,mal se aguen tandº nº balançº se n㺠t ivesse sempre ,ao almºçº e aº j a n ta r, um cºmersínho que se lhe che
gasse ao cºrpº , e nas suas trabusanadas carecendºduma pessºa amiga que l he desse amparº e cºnfºrtº .
42 SCENAS D A VIDA
Vendº que n㺠fazi a bºm do Cabanas, cºgi tºu na
manei ra de º arrumar , maiºra l d'
ºvelhas ºu guardador
de pºrcos , ºfi cio leve que se execu ta de cºrpo di rei to,um bºcadinho incºmºdo nºs ri gºres do i nvernº, pºrcausa das chuvas, mas º melhºr possível na Prima .
vera e nº verãº, sºbretudº nº ver㺠, a matar formi
gas cºm as cºstas.Falºu-lhe n
'
isso , uma nºi te, depºis da ceia , e lºgº
º Cabanas disse que estivera para fug i r de casa , eramoço pequeno , pºrque º pai queri a obrigal-º a guar
dar gadº .
Nem que me doi rassem eu seria maiºral .Foi correndº º tempº ; mui ta agua passºu da le
vada para ºs cubºs, i n dº acionar ºs rºdíz iºs, e mu itºs mº iºs de t r i go en traram nº mºinhº, sa indº d
'
a l ifarinadºs.
Tambem º Cabanas cogi tava sºbre o seu dest i nº,e , mais fel iz que º Serrazi na , t i nha a chadº uma sºluç㺠que lhe quadrava º pon to estava em º com.
padre cºncºrdar.E expl icou .
Os marchantes que veem ás fe iras trazem sempre homens por sua cºn ta , para levarem º gadº para
Lisbºa , mas é ra rº n㺠cºn tra tarem pessºal cá dºs
s i t iºs pa ra i rem tºcandº uma par tida a té A ldeia Galega . Se o cºmpadre lhe a chasse gei tº , eu i a á fe irad
'
Agºstº , e a li qualquer lavrador cºnhecidº pediri aa um marchan te para me cºn tra ta r. Em me apanhando em A l deia Galega estava mºntadº na lei
,pºrque al i
a rran java eu t rabalhº, e bem pagº, que nº Riba te jo
SCENAS D A VIDA 43
paga -se melhºr que por aqu i , aºs trabalhadºres . Gºs .
tava de dar uma sal tada a Lisbºa , para vêr a mimoirarea l , que dizem ser a cºisa ma is bºni ta que ha nº
mundo in tei rº . N a vºl ta , ah i pºr fins dº mez de S .
Jºãº, fazia caminhº por A l cacer. e empregava -me ali
na monda dº arrºz. Se º cºmpadre lhe achasse gei tºeu fari a cºmº acabº de expl i car, e muita seria a minh a
infel i cidade se n㺠vºl tasse a casa cºm um bomparde patacºs na algibeira ) .
O Serraz ina disse que sim , que achava bem pensadº. mas punha em duvida que ele fºsse capaz de ah
dar uns pºucos de mezes por fóra de casa , longe damulher , a l ida r com gente descºnhecida . A Ófemi a ,cºmo n inguem pedia a sua ºpini㺠, de ixºu v se fi ca rcalada , in t imamente satisfei t a pela resolução que to
mara º maridº .
Limi tou — se a dizer , pºrque issº era da sua con
Pºdias ter di tº issº ha mais tempº, para tra tarda roupa ; n㺠has-de i r para fôra de casa cºm umam㺠a traz e ou tra adiante .
Lºgº no dia seguin te cºmeçou a Eufemia a tra tar
do mºdestº enxºval do ma r idº, que devia estar emBeja nº dia nºve d
'
Agºsto, sendº mui tº prºvavel
mas n㺠sendº certº , que o contra ta riam para tºcar
uma part ida de gadº até A ldeia Galega .
0 cºmpadre deu- lhe algum dinheirº quem va i
para º mar avia-se em terra e ele abalou , t㺠con
ten te , tão sa t isfei tº , que dir-se -hia l igar áquela aven
tura a maior esperan ça de fel ici dade .
4 4 SCENAS D A VIDA
'A rran jou t rabalhº na vinha dº ]ºsé Maria dºs Santos, e cºmº a sua i tueta era a monda dº arrºz, pelº
S . j oão desandou para A l cacer . a aprºximarx se de casa ,mas sem pressa de lá chegar . Ca iu lhe em cima uma
camada de sesões, que o obrigaram a recºlhe r aº hos
pi ta l , ºnde recebeu uma carta da mulher , notada e
e scri ta pelº cºmpadre , dizendo — l he que n㺠se de
morasse mu i tº , porque esperava ter º seu bom su
cesso an tes dº fimd'Agºstº .
A nºt i ci a seria para pôr em pé ºs cabelºs d'
um
careca ; mas º Cabanas recebeu-a cºm pequena surp re za e grande sa tisfa ç㺠.
N i ng uem , fô ra da A ldeia, sabia da sua vida , e eleguardava - se de a rela ta r
,á uma pºrque dela n㺠ti
nha que dar con tas a n inguem , e depºis pºrque º
segr edº é a a lma dº negºciº, e o planº que ele cºn
cebera, e ia execu tandº, pºderia ser frustradº sev iesse a ser descºbertº .
N 㺠era , prºpriamente, um pºbre de eSpiritº , º
Cabanas ; mas º seu discern imen tº era excessivamen te l imi tado , tornando -o a inda mais reduz idº, naaparenci a , aº menºs , a sua imbeci l idade mºral .Escreveu aº cºmpadre ,
'
pedíndº— l he dinheiro para
º regressº , porque a dºença t inha — º enfraquecidº ata l pºn to que n㺠pºderia fazer a jºrnada a pé .
A respºs ta n㺠se fez esperar.0 cºmpadre mandou — l he º dinhei rº que ele pe
dia, acrescen tando uns pósinhºs, i s tº é , uns tºstões ,p ara qualquer extraºrdina ria .
Ficºu radian te .
SCENAS D A VIDA 45
Chegºu º sr. Cabanas, alegre e bul içoso cºmo umrºmeirº , e fºi receb idº cºmº º fi lhº prodigo , não sema tando º vi telo gºrdo, á maneira bibl i ca , pºrque o
unicº vi telo que havia na pecuar ia do mºinhº ,.
era ele.
Muita festa p'
raqu i, mui ta festa p'
ral i , e nem amais pequena alus㺠aº i n teressan tissimo estadº daÓfemia , que º maridº deixara , havia dez meses, enxuta e escºrre ita, e encºn trava agºra rº tunda , est icada a pele da barri ga, a adivinha r se tensa pºrbaixº das sa ias .
Eu n㺠l he dizia , cºmpadre ? Ha uns pºucºsdanºs a l idar cºm ele , tenhº ºbrigaç㺠de º cºnhe
cer pºr fóra e pºr dent rº.
Uma nºi te , aº can tar dos galºs, a senhºra Eufe
mia sent iu se i n comodada cºm fºrtes dºres nºs rins ,as quais, dentro em pºucº, se general izavam aº ven
tre.
O melhºr será º cºmpadre i r buscar a parte i
ra, que is tº, não tem que vêr, é cºisa para demºrar
pºucº.
T㺠pºucº demºrºu , que a inda n㺠era sol fô ra ,ja ºs berrºs d'um p erfei tº garºto quebravam º
'
si
leu cio dº mºinhº , dizendº a quem passava que ali
havia gen te nºva .
Comentava º Cabanas, a tentandº no pequerrucho ,ja lavadinho e enfa ixado , n㺠cºmº o ºutro , o quenascera á beira dº pêgº, n
'
um lençºl a inda pºr l a
var, mas em cueiros de bôa lã e optimo l inhº que a
4 6 SCENAS D A VIDA
mãe , cºm tºdº º vagar, sabendo que viri am a ser
lhe precisºs , fº i cºnfecciºnandº em bºcados de se
rãº, sen tada aº la dº dº cºmpadre Serraz i na , a seu
tir enlevºs de prºgen i tºrE
'
mesmº as ven tas dº pai, coi tadinhº !
F ixou-se º dia para o baptisadº, que não seria ,
por cºnselhº dº Serrazina , dia de fun çãº, para evita r murmurações á pºrta da I gre ja . l riam ºs dºis
c ºmpadres , e a parte i ra servi r ia de madrinha , se aEufemia est ivesse d
'
acºrdº . O un icº convi dado seri ao sr. j acin to Barqu inhº, a quem º Cabanas devia
mu i tas ºbri gações , e que lhe servi ra de empenhº
p ara se l ivra r das correias .Apez ar de tºdo o segredo , a I gre ja encheu - se de
gen te cu r iºsa, hºmens , mu l heres e creanças, mui tº
i n teressado e mui tº a trevidº º'
mulheriº , a que re r
ver cºm quem se parecia º men inº .
Deixe vêr, comadre , se tem as feições do pai .
A pia bap tismal ficava aº fu ndo da I gre ja , quasipºr baixº dº côro , pia de marmºre que uma tampa
g rossa fechava , tampa de madeira art iculada nº meiº ,l evantandº se a metade mºvel pºrmeiº d
'
uma argºlade ferrº. Só mui to de lºnge em longe º sacristão
renovava aquel a a gua , partindº dº prin cipio de que
sendo ela benta e puri fi cada , n㺠pºderia cºrrºmper-se ºu con taminar - se.
As pessºas cºm alguns meios de fºrtuna , e al gunsescrupulºs de h i giene , cºnseguiam a renºvaç㺠da
48 SCENAS D A VIDA
tiz desatºu aºs berrºs , a torcer-se cºmº um vime ,faz endo '
se rôxº de tantº chºrar .
Aº pé dº Cabanas , fi n gi ndº que º n㺠via , umave lha ramelºsa diz para ºu tra, cºm as ven tas a tafulhadas de rapé
Tão pequeninº, e faz uma serraz ina cºmo se
fºsse uma pessºa g rande .
O Cabanas não percebeu º t rºcadi lhº e teve aresde agradecer o cumprimen tº.
Quem é a madr i nha ?
E' aqui a comadre j anuar ia .
E º padri nhº ?
E'
aqui º s r. j acin to, se me quizer fazer essaesmºla .
A cabada a cerimonia lithurgica, di rig iu— se o sa cerdºte para a sacris t ia , e tendo - se al ivi adº dos para
mentºs , dispºz - se a l avra r º regis tº parºqu ial ,Quem é º pa i dº meninº ?
Resposta dº Cabana s :E
'
aqu i º meu cºmpadre.
O seu cºmpadre— Sim, senhºr, o meu cºmpadre An tºniº Serra
I ssº n㺠pode ser. crea tura de Deus. En tãovºcemecê não é º mari dº da mãe ?
O sr. priºr bem º sabe , pºrque fºi quem nos
arrecebeu .
En tão, 1a vê ; o maridº da mãe é º pae da
creança,
SCENAS D A VIDA 49
Lá i ssº é que nãº. O sr . p r i ºr é uma pessºamui tº verdadeira e que teve estudºs , mas ni stº , ha
de perdºar que lhe diga , está fóra da ras㺠. Orafaça favºr de reparar : Eu abale i d
'
aqu i nº mezd'
Agºstº , e vºl te i nºutrº dia , nº mez de S . j ºãº . Acreança nasceu ha oi tº dias. fal-os depºis de âmamhã. Sempre querº ver que vºl ta s º sr. cºmpadredá a este embréchadº para me fazer pa i dº me
nino .
Que vºltas dºu N㺠t enho que dar vºl tas nenhumas, porque a le i, a es te respe i tº , é clara comoa agua . Olhe, cºmpadre , ha um di tadº que rezaassimº P a ter est quem nuptiae demonstrant .Sabe º que istº que r dize r
Eu sei lá .
Pºis eu lhe expl icº . I stº quer dizer que º bez errº que nasce nº curra l p erten ce a º donº da vaca
Ora º dºnº da vaca quem é ?
O dºnº da vaca sºu eu , mas o pae do bezerrº ,cºmº Vºcemecê lhe chama , é aqu i o meu compadre
,e Deus n㺠salve a minha alma , se is to n㺠é
assim .
N㺠j ure , que é pecadº jurar o santº nome deDeus em v㺠.
Em vãº,s r. cºmpadre ? Pelo San tíssimº Sa
cramentº, que além está no a ttar, j u ro e tre jurº que
o men ino é fi lhº aqu i dº mes tre An tºn iº , e umahºra n㺠tenha eu de saude , se estºu a men ti r na
taica de Deus.Se ja lá cºmº qu izer ; mas eu é que não faç
q
o o
50 SCENAS D A VIDA
assen tº sem que º maridº da mãe figure cºmo pai
dº filhº .
Faça º sr . cºmpadre º que quizer, vistº nãº
ter subºrdinação de n inguem ; mas sempre lhe digº
que se fize r i ssº , escarrapacha nº l ivrº uma re fina
dissima ment i ra .
E jamais º Cabanas , em tºda a sua v ida , dissera
uma verdade t㺠irrefragavel.
A meio da I gre ja , cºmº se lhe ti vesse esquecidoa lguma cºisa na sacris t ia , vºl ta ali, sacudido e resolu tº , e diz aº padre , a enrºla r um cigarro
A in da lhe querº dizer mais esta , sr. priºr, e
cºm ela me vºu , na graça dº Senhºr : Se º pequeno chegar a ser hºmem e tiver º usº da rasão,
el e lhe agradecerá º roubº que lhe faz pºr causad 'um latinºrio de bôrra .
E aba lºu , enfu recidº cºmº um toiro bravº .
A Ri t inha
Mais al ta dº que baixa, typo de faussema ig re,º cabelº negrº , os ºlhºs cas tanhºs , sºbrancelhas far
tas labiºs carnudºs , a Ri t inha , cºmº lhe chamavam na
v izmhança, não passava desperceb ida na rua, prendendo á e leganci a dºs seus mºvimen tºs sem afecta
ç㺠a cubica de tºdºs ºs hºmens, nºvºs e velhºs .
Fôra creada com grande recatº ; mas aºs quinze
an ºs perdera a mãe , e aºs dezºi to º pai, ºficial decarpin te irº , meteu em casa uma salºia de má vida ,i ndº el a pedir agasalhº a uma tia, que t rabalhava
de costurei ra , amancebada cºm um môçº de café .
N 㺠l he fal tava gei tº para a cºstura ; mas fal ta
va — l he a vºn tade de aprender, e á tia , sem enca rgode filhºs , n㺠sobej ava a vºn tade de ensinar. De ,
pressa se cºnvenceu de que teria de prºcurar mºdo
de vida , fºsse ele qual fºsse , cºmtantº que n㺠v i
vesse ás tenças de n inguem , alºjada e al imen tadapºr favºr, su jei ta a vêr-se d
'
um instan te para ºu trº
a vadiar nas ruas , nas cºndições da ºutra :
52 SCENA-S D A VIDA
Cºmo sºu mu lhe r perõ iõaAnõo a ver se a lguemme encºntra .
Uma tarde , nº j ardim da Estrela , encºntrou umacondiscípula , moça da sua i dade , t alvez um pºucº
mais velhinha , n㺠sendº a diferença de palmº . Ha
v ia mui to que se não viam , nem sequer tendo not i
cias uma da ou tra por qualquer amiga cºmum .
Que tens fei to Cresceste sem l i cença d eDeus
,estás uma perfei ta mulher
Em breves pal avras , breves e comovidas, pôl-a a o
fac to da sua mel indrosa si tuação, a rriscada a ver-se
d'
uma hºra para ºu tra sem p㺠e sem agasalhº , j á
mal podendº supºr ta r as imperti nen cias da tia, cºnstantemente a esfregarc lhe a cara cºm a esmºla de a
ter em casa pelº quasi nada que ganhava .
j á me lembrei de i r para 0 Brazi l , pºrque me
dizem que lá, qualquer pessºa que se j a amiga de trabalhar, tendº quem a recºmende
,far ta se de ganhar
dinheiro. E tu. º que tens fei tº? Apostº que jáE ganhavas a apºsta . Empreguei-me no Hºs
pi tal de S . Jºsé , cºmº pra ti cante, e aº cabº de sei s
mezes casei cºm um ajudan te de enfermei rº,que me
tem em grande est imaçãº. Cons idero-me fel iz. pºr .
que nada fal ta n a minha casa , e ele adivi nha -me as
vºn tades, para m'
as sa ti sfazer , sem que lhe peçasej a º que fô r.
E'
s fel iz , e merecias sêl 'o, pºrque foste sempre uma excelen te rapari ga .
SCENAS D A VIDA 53
Sim, n㺠pºdia ser mais fel iz do que sou , eesperº em Deus que es ta fel i c idade me acºmpanhaa té aº fim da vida . I
'
I as de vir j an tar cºmnºsco , umdia, para te apresen ta r º meu maridº . Mas º que éprecisº, sem perda de tempº , é t ra ta r da tua si tua
ç㺠, n㺠vá a desalmada da tua tia rºmper n'
um excessº, pºndº to na rua. Pºrque n㺠has de fazer con
cursº para a judan te de enfermeira ?
Era uma saida, e n㺠l he seria difícil vencer º cºn .
cursº , pºrque fizera belamente o seu exame de ins
truç㺠primaria , ti nha ºpt ima cal i grafia , arranhava º
f rancez e tinha luzes de escripturação cºmercia l .Muitº amiga de ler , devorava folhetins e rºmances ,e essa lei tu ra i nstru ía-a, que mais n㺠fosse pºlin
do— lhe a l in guagem .
D iz ia a tia , quasi anal fabetaSe gºstasse das agulhas cºmo gosta dºs l ivrºs.
havia'
de ser uma grande cºsturei ra .
A rran jou ºs papeis , e sem empenhºs , pºrque nãot inha quem se empenhasse por ela , apresen tou -se aexame, ºbtendº a mais al ta classi fi caçãº.
Por acasº , mandaram-na fazer servi çº para uma
e nfermaria escºla r, e quiz a sua bôa sor te que a eufermeira engra çasse cºm ela
,t ra tando-a de ta l ma
neira , cºm tan tº carinhº e ta is a tenções, que as cº o
l egas se cºnvenceram de que fôra para al i, mui tº bemrecomendada , prº tegida de Senhora ºu Cavalhe irººcupandº elevada posição.
Tºdºs ºs estudan tes a requestavam , mas ela, cºn
54 SCENAS D A VIDA
versandº e rindº cºm todºs , n㺠animava as p re ten
goes de nenhum , cºntendº a audacia dºs mais a trevidºs nºs l im i tes d
'
um fºrçadº respei tº .
Tºdas as dºen tes gºs tavam da Ri tinha , porque a
tºdas ela dispensava sol í ci tos cu idadºs , para tºdas,sem nenhuma preferencia , t inha bôas palavras e bôasmanei ras , a cudindo prºmptamente às que a chama
vam , sempre deligente duran te º dia, sempre desper ta duran te a nºi te, jámais surpreendida pel a ron
da a cabecear de sonº.
Raramen te saía quandº estava de folga'
, alegando
que n㺠t inha paren tes ºu amigas que vi si tasse, e
n㺠a diver t ia sirandar pela cidade , menºs para ver
que para ser vista , que para i sso, e quasi só para is
sº, se empapºilam as rapari gas, as que teem ºu procuram namoro , as que , sendº casadº iras, nº que pensam é em casar , Nunca se escusava a subst i tu i r umacºlega , sacri fi cando- l he a sua fºl ga , e pºr i ssº t ºdas
a est imavam , tan to mais que ela lhes não faz i a cºn
correncia na caça aos derriçºs, t ra ta ndº cºm º mes
mo desdem, a mesma del icada i ndiferen ça ºs estu
dantes , ºs medicºs e ºs enfermei rºs.D iz i a a Enfermeira , enca recendo o precei tº , a com
postura da Ri t inha , que a tºdas apºntava cºmº exem
plºNem parece rapari ga d
'
este tempº.
Mui tº aº contrariº dº que pºderi a supor — se , aque
la vida de Hosp i tal , aquela prºfiss㺠de en fermeira ,n㺠quadrava aº seu fe i ti o , repugnava aº seu tem
peramentº, feria dºlºrºsamen te a sua sensibi l idade .
56 SCENAS D A VIDA
se lam en tavam de a ver part i r, as mais sensíveis, na .
turalmente as mais recºnhecidas, debu lhando- se emlagrimas .
N㺠se esqueça de nós, men ina Ri ta . Em pº
d end o , venha -nos vêr .
Soube — se depºis que estava vivendº cºm um me
di cº,director da Enfermari a em que fizera serv i
çº, nºs mezes de féria s , hºmem já de certa i dade ,bºm cl ín i cº e bôa pessoa , sendo vºz corrente que ti
nha o seu vin tem , ganhº a trata r doen tes e a joga rem papeis de credi tº .
E ra fel iz a Ri t inha , t an tº mais que º dºu tºr ja lhep rometera casar cºm ela , sabendo muito bem º que
l he devia e querendo prendel-a a si por fºr tes laçºsºs ri jos la çºs matrimºniaes.Morreu - l he º pai n
'
um desastre de caminhº de ferrº
,e a tia, arrastada pelº amante , embarcºu um dia
para a Guiné, ºnde mºrreu de febres .N 㺠pºdia dizer que era filha das aguas turvas ,
ne ta das aguas corren tes ; mas via — se i n te i ramente
só , sem um vagº paren te que aosºu trºs desse a ce rt eza de que naº Vi era ao mundo por geraç㺠espºntanea .
T i nha mu i ta cºn fiança nas prºmessas dº seu dºu .
t ºr ; mas assal tava a al gumas vezes º rece iº d'ele a
a bandºnar , não pºr amºr , mas pºr dinhei rº , e gelava — se - lhe o sangue nas veias só de pensar que êle
SCENAS D A VIDA 57
poderia mºrrer an tes de a tºrna r sua espºsa. j á não
se afa ria á vida do Hºspi tal, e t inha pºr segurº quevºl tandº a ser enfermei ra , depºis dº passº que dera ,haviam de respei ta - la menºs e n㺠a est imariam cº
mº d'
an tes a est imavam .
Um dia cae de cama º dºutºr, grassava a pneumon ica na cidade . O primei rº cº lega que o viu declarºu que º caso era grave, e n
'
uma cºnferen cia quelhe fizeram , aº quarto dia de dºen ça, sem divergen
cxa d'
um vºtº, assentºw se em que º mal era demºrte .
Assim que melhorar, casamºs .
Pelo,sim, pelº não , foi - l he en tregandº tedºs ºs va
lores que pºssu ia , ti tu lºs aº pºr tador , e a mu i tº cus tofez uma declaração , devidamente authenticada, de quetudº quan tº havia na casa , t i rando a sua pequena li
vraria e ºs objectºs dº seu usº pessºal, tudº eradela . A casa
,um bºm predio cºm rez .dº , ch㺠e
primeiro andar , estava em nºme d'
ela havia mu i totempo.
j á cºm a mºrte na garganta , r igºrºsamen te in ex
tremis, mºstrºu desejºs de a receber ; mas º ofi cia ldº registº civi l , chamadº a tºda a pressa , dec larºuque º n㺠casaria sem que dºis medi cºs a testassem ,
sºb sua respºnsabi lidade. esta r ele nas cºndições da le i .
Quandº os medicºs chegaram , n㺠se tendo fei to
esperar,já ele ia metidº a
'
via gem de que se não
torna .
8 SCENAS D A V I D A
Era uma viuvez bu rl esca , a da pºbre Ri t inha , mala consola ndo o factº de herdar a pequena fºrtuna dº
mar ido, que ela n㺠sab ia est imar nº seu j ustº va
lºr .
Papeis !
D'uma hora para ºu tra pºdiam valer º dôbrº ou
nao valer co isa nenhuma , e cºmtudº eles eram , além
da casa , tu do o que ela t inha para vive r, a garan tia
dº seu fu turº, sem trabalhº e sem privações.Pºr indicação d
'
uma pessoa amiga , diri g iu - se a um
cºrrectºr , a inqu iri r do valor dos seus t í tulºs n'
aquela
casa de tavºlagem que se chama a Bºlsa . Sºubeque eles estavam cº tadºs mui tº pºr baixo
'
sendº-l he
aconselhadº vendel -os, porque a tendenc i a era paracºn tinuarem a descer, pºdendº dar-se º casº de che
garem aº l imi te dos valores posi ti vºs , ao zerº.
Um hºrrºr !
0 que agºra t inha n㺠l he chegari a para um vive r
modes tº , se n㺠mºrresse cêdº. e aqu i se v ia a pº
bre Ri t inha nºvamen te em fren te dº prºblema da v iº
da , ºb r igada a resolvel — º an tes que a miseria lhe batesse á pºr ta .
Fºi en t㺠que travºu relações, n'
uma casa amiga,
uma nºi te , cºm º sr. Thºmé dºs An jºs , que enri '
quecera nº Brazi l , sol tei rão i ncorri g ível , sem herdeiros forçadºs , segundo a le i, sem paren tes mais ºu
menos prºximºs a quem legasse º que amealhara emquaren ta anºs de trabalho honradº
,cºmº se diz em
gíria de comerciº.
SCENAS D A VIDA 59
O sr. Thºmé condoeu-se mui tº da pºbre viuva ,in fºrmadº da sua triste his tºr ia , e respei tosamente lhe
pediu l icença para a visi ta r, certº de que pºderia arranjar cºloca ç㺠van ta jºsa e segura pa ra o mºdestºcapi ta l que realisara vendendº ºs t í tu lºs de cºtaçãºavariada que lhe en tregara o mar ido.
O casº fº i qu e passadas algumas semanas o sr.Thºmé dºs An jºs era a visi t a mais a ssidua da Ri t inha , e cºmº se esquecesse , algumas vezes , a conver
sar cºm ela , de cºnsul ta r º relºgiº, para n㺠se aventurar, de nºi te , fôra d
'
hºras, pelas ruas deser tas dacidade , lá fi cava a té aº ºutrº dia, em geral n㺠saiu
dº sen㺠depºis dº almoçº .
Um dia, a compor - lhe o nó da grava ta , estendeu
dº ºs beiços n'
uma mºmice cariciosa, a fazer- se pe
quenina para que ele a erguesse nºs braçºs , aº mesmº tempº acanhada e resºluta , a Rit inha disse ao
Thºmé
Pºrque não casas cºmigo Bem sabes que só
n㺠estºu viuva pela maiºr das fa tal idades .
O sr. Thºmé cºncºrdava , mas com a rude franqueza de que sempre usava em tºdos ºs actºs da sua
vida , falava o lhe por forma a n㺠lhe al imen tar esperanças vãs , dispºstº cºmº estava , a n㺠pôr nº ca
chaco a canga dº matrimºniº .
Nãº, minha filha . Não casei quandº devi a ca
6 0 SCENAS D A VIDA
sar ; a gora é ta rde para fazer um negºciº de tanta
mºnta . Se istº te cºn traria , és l i vre , e eu não queroque pºr minha causa deixes de prºcura r a fel i c i dade
onde te parece que pºdes encontral-a. Gºstava de tê r
um fi lhº para ter um herdei rº ; mas n㺠i re i bus «
cal º aº registo c ivi l , pºr mui tº que me custe n㺠º
ter .
Se eu tivesse um fi lho eras capaz de dizer que
n㺠era teu .
Se - ele se pare cesse cºmigº , º que se cºstuma
dizer é o re tratº do pa i , talvez º cºnsiderasse
meu , e nesse casº para ele seria a minha fºrtuna ,
T alvez º cºnsiderasse meu Bem sabes quenem semp re os f i lhos se parecem cºm ºs pa is .
Bem sei ; mas º meu havia de parecer — se cº
mi gº, e ainda assim havia de ter m i nhas duvidas . Eubem se i º que me disseram os med icºs, no Riº .
Aqui prin cipia a Ri t in ha a prºcu ra r um
para º f i lhº dº sr . Thºmé dºs An jºs .Cºrrera a cidade in tei ra , dias seguidºs , a prºcu
ra r um hºmem que se parecesse º mais pºssíve lcºm o sr . Thºmé , e já desesperava de o en cºntra r ,q uandº topºu na rua , pºr a casº, um senhºr mui to
bem postº , que estava a calhar para º seu in ten toe ra um Sosi a dº braz ile iro.
Fºi-º segu i ndº , discretamen te , a dista ncia , e viu-oen tra r n
'
uma escada ºnde havia , no primei rº anda r ,um cºnsu l tºr iº medico.
l riã“
ali para cºnsul ta r ? I r ia para dar consul ta ?
SCENAS D A VIDA 61
Informou-se cºmº guarda pºrt㺠. e veiº a sabe rque aquele Senhºr , Sosia dº braz ile iro. era º doutor Alvarês Sºromenhº , e que a cºnsul ta era dasduas às seis .No dia segu in te lá estava a Ri tinha , 1a mui tº ali
v iada dº luc to, apet i tosa cºmº um fructo madurº , oslabiºs carnudºs a pedi rem bei jºs.A cºnsul ta foi demºrada , e como o tra tamen to
exigia perícia medica , a dºente vºl tºu lá vezes semconta , n㺠se tºrnandº dispendiºsa a dºença , porque º medi cº lhe fazia º tra tamen to de graça e nãº
recei tava para a bot i ca .
Aº cabº de dºis mezes a Ri t inha in terrompia ºt ratamen tº
,sem dar cavacº aº medicº , mui tº admi
rado de ver que ela n㺠apare cia . Nunca el a lhedissera a mºrada , e del i cadamen te ele se abst ivera
de lh'o pergun tar, respei tandº um melindre que lhe
n㺠pareci a bem just ifi cadº , mas que pºderia dan se
por ºfendidº cºm uma pergun ta de mera curiosi
dade.
Deixºu de i r á cºnsul ta , a Ri tinha , e tºdavia
agºra é que ela começava a sen ti r — se dºen te, semprecºm enjôºs, sempre cºmdôres de cabeça , pregu i çosa cºmº nunca fô ra , apetecendo- lhe cºmer cºisas de
que n'ou tro tempº n㺠gºstava , ao mesmº tempo
que lhe repugnava a sua habi tual cºmida .
Sabes,Thºmé ? Parece —me que es tºu embara .
E'
pºssível , mas só depois de vêr é que acredi tº .
6 2 SCENAS D A VIDA
Pedi a Deus que me desse um filhº , e achº
que ele ºuviu e a tendeu as minhas supli cações .Talvez
, mas se º teu fi lho se naº parecer cº
mi gº , se n㺠fôr o meu retratº, negare i que sej a
tambem meu filhº .
I ssº ser ia uma maldade sem nºme e sem des
cu lpa , porque tu bem sabes que º meu filhº nãº
pºde ser sen㺠teu .
Temºs cºnversadº , minha filha . Os mais afa
madºs medi cºs dº R iº disseram-me que eu só pº rmi la gre pºderia ter um fi lhº ; que se casasse , e a minha mulher me presen teasse cºm um cachôpº, a
menºs que el e fôsse o meu retra tº , º t ivesse cºmº
a du l te ri no . Imagina º que eles pensariam de mim, se
l hes mandasse dizer, d'
aqu i pºr alguns mezes , em .
bora sem me ter casa dº cá tenhº um fi lhº que separece tan tº comigº comº um ºvº cºm um es
pêto '
Fructo de rapaziadas , º Thºmé con tra í ra dºençasa que n
'
aquele tempº se chamava vergºnhºsas , e
cºmº era vergºnha tel - as, a maiºr parte dºs i ndividuos que as cºntraiam n㺠se t ra tavam conven ien te
mente , i gnºran tes das suas terrivei s cºnsequenciasn
'
um fu tu rº prºximº ºu remºtº .
Assentºu um dia , o Thomé , em que lhe cºnvinha
casa r, e estava cºnvencidº de que não l he daria ºcabaçº a i rmã d
'
um amigº , tambem estabelecidº nº
R iº , a quem vinha fazendº , desde a lguns mezes, umn amºrº discre tº .
64 SCENAS D A VIDA
medi cºs dº R iº , cºmº tal º t ra tari a, prºvendº á sua
e ducaç㺠e ga ran ti n dº º seu fu turº . A cºnfiança que
ele t i nha n'
ela, desde que fizeram relaçõ es , n㺠sº
frera o m in imo abalº , e a babºseira da pa tern idade
authenticada por cºntigentes parecenças, havi a de
sai r — l he da cabeça , que mais n㺠fosse a marte
ladas de bºm sensº .
N a maior parte dºs casºs ºs fi lhos n㺠se parecemcºm ºs pai s ; mui tos nem sequer teem º que se cha
ma ar de fami lia .
Cer tº é que ele prestara credi tº a essa inve nciº
n i ce estupida , que dir - se ' hia paga pºr bºm dinhei rº
se a lguem hºuvesse , no Braz il ºu em Pºrtugal , in
teressadº em que º Thºmé mºrresse sem herdeirº s
fºr çados .Por a casº ele , Thºmé dºs An jºs, não se parecia
nada , ab solu tamen te nada c ºmº auctor dºs seu s d ia s
segundo o testemunhº insuspei to de ret ra tºs que tinha no seu album , e nem pºr isso o maridº de su a
mae , pessºa de grande austeri dade , se j ulgºu a t ra i
çoadº , nem ele, pºr esse mºtivº , e ºu trº não teria ,suspei tºu jámais de ser geradº nº adul teri o .
I ssº é ºutra coisa . Nem tu és cºmº fºi minhamãe , a ma is san ta crea tura que Deus aº mundº de itºu, nem eu sou cºmº meu pai , que só teve a doen
ça de que mºrreu , ia a en tra r na casa dºs ºi ten ta .
E se º fi lhº , na real i dade,fºsse d'ele
,embºra
nem tivesse a menºr cara cter íst i ca das suas fei ções
SCENAS D A VIDA 65
Surpreendia se, a lgumas vezes, a fazer esta judic iosa cºnsideraçãº, e fi cava-se , pºr mu i to tempº , ascismar , pºr um ladº sentindo-se criminºsº se nãºrecºnhecesse um filhº que lhe perten cia , pºr ºu trº
ladº sen t indo-se ridiculº se t ivesse o apresen tassecºmo seu um fi lhº d
'
outrem — fi lho dº cr ime ºu daburla .
Acabava pºr se a ter aº que lhe haviam di tº ºsmedicºs dº R iº , a famadas nºtabilidades clínicas emtoda a vasta redondeza dº Brazi l . Seri a º pa i dºf i lho da Ri t inha , se º petiz fºsse º seu re tra tº, pºruma pena , t㺠parecidº cºm ele que tºda a gen te
,
in clu indº as pessºas menºs geitºsas para t i ra r fe i
ções, pessºas que o cºnhecessem , está bem deve r ,dissessem n
'
um repen te , vendº º cachºpitº— ê o
ret rato dº pa iQuan to á Ri tinhaA ambiç㺠espevi tara a sua rel igiºsidade , que
n'
ou tro tempº n㺠chegava para uma missa todºs osdºmingºs e uma confiss㺠em cada anº . Agºra fre
quentava cºm a maiºr assidu i dade as Igre jas , reve !
renciava tºdºs os san tºs, a uns acendendo vélas, aºutros dandº peças de vestua r i º. A
'
pºrta da I g re jadava esmºla a tºdos ºs pºbres, e n a cai xa das a l
mas, dentrº de cada I gre ja, metia sempre uma quantia avul tada .
E, afinal , º que pretendia ela dºs san tºs ?Que a a judassem no empenhº em que andava ,
fazendº cºm que º seu fi lhº se parecesse o mais pºssivel cºm º braz ileirº ,
,que fosse, cºmo ele diz ia , o5
66 SCENAS!
D A VIDA
seu re tratº pºr uma pena . D a sua pia f raude nãº
resul tari a mal ºu preju ízº para n inguem , vis tº º Tho
mé n㺠ter par en tes nem adherentes, um vagº primº
no mais afastadº grau , que pudesse herdar- lhe af ºr tuna . Era um mi la gre simples e vulgar , tan tº ma is
q ue o verdadei rº pa i do seu fi lhº se parecia imensº“cºm º Thºmé ambºs bochechudos, a barba rala ,d'
um castanhº escurº , ºlhºs az ues, cºmº as vacasa lgarvias, º na riz um bºcadinho a rrebi tado , a most rar as ventas largas e cabeludas .Era tão faci l º m ilagre !
Aº Senhºr dºs Passºs da Gra ça prºmeteu umavela de cêra que pez asse t ri n ta ! i lºs, e aº Senhº r
]esus dºs Aflictºs prºmeteu duas andainas de fa tº ,uma de ver㺠e ºu tra de i nvernº, ambas em sêda
azul cel este, cºm bordaduras d'
oiro.
Ocorreu- lhe cºnsu l tar uma bruxa , uma dessas mulheres que dei tam ca rtas , e tra tºu de inqu i ri r qua l
era , das mui tas que na cidade exploram essa indus
t r i a rendosa , a que gosava de melhºr repu ta çãº.
Con fiava mui tº nos san tos ; mas cºnfiava tambem
no pºder das bruxa s , n㺠para fazerem milagres,mas para lerem nº fu turº . Os san t inhºs nada lhe di
z iam : mesmº que est ivessem dispºstºs a fazer 0 mil agre impetradº , man tel-a -hiam na mais cruel incerteza a té ao momen tº decis ivº.
A bruxa , não.
Pºder i a não lhe dizer cºisa que se aprºvei tasse,
ºu então dizer-lhe alguma cºisa que tºrnasse mais
tor turan te a sua duvida . Em tºdº º caso di r- l he-hia
SCENAS D A VIDA 67
alguma cºisa, e ela precisava que lhe falassem , pºrque
º silenciº, no seu casº, era º mysteriº. e o mvsterioe ra a tºr tura .
A bruxa disse— lhe, em resumº, º seguin te : A senhºra nasceu para se r fel iz . Tudº lhe correrá bem ,
mas parecendo que lhe cºrre mal . Terá cºntrarie
dades, talvez desgostos, mas acabará pºr ver sa tis
fe i tas as suas ambições. O seu passadº retra ta º seufu turº .
E mºrrere i viuvaN i nguem mºrre viuvº, se não tiver casadº, e a
senhºra ainda se conserva sºl tei ra .
Descu lpou- se , mu i tº cºmprometida, e chei a agºrade cºnfiança na bruxa , pergun tou- lhe abertamente ;
O pai dº meu fi lho casará comigº
A bruxa tºrnou a dei ta r a s cartas, e disse , cºnsul .
tandº - asO pai dº seu fi lhº . Sim, ha aqui uma grande
cºnfus㺠, que eu n㺠pºssº desfazer hoje . O melhºré a senhºra vol ta r para a semana .
Chegºu º mºmentº decis ivº , aguardadº pela Ri t i
nha, n'
uma anciedade tortu ran te, cºmº deve seraguardada a sen tença nº j ulgamentº d
'
um crime aque cºrrespºnda pena de mºrte .
Tudº cºrreu bem , melhºr dº que seria de esperar .
Era a primeira vez que a Ri tinha se via n'aqueles
assadºs , e geralmen te nas primiparasa representação de semelhan te drama , embºra n㺠ha ja mudanças de scenario , costuma ser demºrada . Pºis entre a
68 SCENAS D A VIDA
primeira dôr, anunciando º cºmeçº dº espectaculº e
a ultima , marcandº º seu final , mediaram tres escas
sas hºras.
E'
meninº ºu men in a
E'
um men inº , e mui tº perfei to , benza -º Deus .
Enfa ixado º pimpôlhº, fe i ta a toi lette da mãe, quizesta vêr º fru cto dº seu ven tre , º penhºr da sua fºrtu
n a se ºs san tinhºs , a que fizera prºmessas, implºran
dº º seu val imen to, t ivessem acºlhidº ºs seus rogos.
Cºm quem se parece . comadre ?
Ora essa ! E '
º r e tra tº dº pa i .
O Thomé t inha sa idº, assegurando - l he a parte i ra
que se vºl tasse aº cabº d'
uma hºra já encºn t ra ri agen te nºva .
N㺠será precisº chamar º medi cº
I ssº sim!As dôres s㺠tão grandes , cºi tadaA i nda bem , pºrque assim a creança nasce ma i s
depressa . E'
v ir uma dô r ma is fºrte,e sa l ta lºgº o
p in tº da casca . Pºde ir descansadº , que tudº cºrrerá
bem , gra ças a Nossº Senhºr .N㺠sou homem para es tas cºisas , n㺠sºu .
Pºis en t㺠vá dar uma vºl tinha , sr . Th ºmé, e
n㺠se demºre, que i sto fi ca despa chado em menºsd'
um phºsphºrº.
Quando º Thomé vol tºu , estava a creança aº la dº
SCENAS D A VIDA 69
da mãe. sem tugi r nem mugir , ºs ºlhitos. mui tº vivºs ,a ba il a rem- lhe na cara , movendo-se em tºdas as direções, cºmº se já tivesse curiºsidades de ºbservadºr.
Cºm quem se parece , ThºméA s creanças, quandº nascem , a bem dizer nãº
t êem feições ,Mas º meu fi lhº tem . A partei ra, ass im que ele
nasceu , disse logº é º re tra tº dº pa i .D i sse issº pa ra te ser agradavel , a ver se a
pag a é mais avul tada.Fºrte birra a tua ! . Sempre querº vêr se ar
ran jas alguma descu lpa para fal tares aº que prome
t es te , renegandº um filhº que bem sabes que é teu ,e fazendº cºm que as pessºas que me cºnhecem , eque até agºra me est imavam , passem a ter pºr mim,
i nf i el aº hºmem cºm quem vivia cºmº se fºssemºscasados, º maiºr desprêz º.
Pa ssadºs al guns dias o Thºmé ass ist ia ao banhºdo meninº , a del i cia r— se na agua tépida, batendºcom as perninhas e os braci tos cºmº se quiz esse ensa ia r ºs seus ta len tºs de nadadºr.
E'
t㺠engra çadinhº , º pequenº l .
O Thºmé concºrdºu em que º pequenº era en
graçadinhº : mas nºtºu que ele t inha ºu pareci a terum defei tº nº pesinho esquerdº. Retiradº dº banhº ,
e enxu tº n'
uma tºalha fôfa, veri fi cºu º braz ileirº queuma membrana delgada e incºmpleta uni a º dedºgrande dº pé esquerdº aº dedº imedia to , a ciden te
70 SCENAS D A VIDA
que a partei ra j a notara , dispensando - se de o dizer a'
mãe , pºr ser cºisa de nenhuma impºrtan cia .
Muitas creanças nascem cºm istº, que é mais
um signa l que um defei tº . Cºm a idade desaparece.
Quando a partei ra sa iu a té lºgº, senhºra coma
dre . º Thºmé qu iz vêr nºvamen te º pé dº me
ninº. e tendº apalpado a membrana , cºmº que a ce r
tificar -se da su a cºnsis tencia , visivelmen te preocupa
do,cºn t inuandº em voz al ta uma serie de reflexões
que de si pa ra si faz iaE' mui tº curiºsº ! Mui tº curiºsº
Mui tº curiºsº º que tem º men inº ? Aquilº é
um si gnal, cºmº a par te i ra disse , e mesmº que fºsse
um defei tº , nem seque r é um defei tº que se ve j a , a
n㺠se r que º meninº ande descalçº , por º pa i não
fazer casº dele .
Bºm , ah i vºl tamºs nós á cega- rega dº cºstu
me . 0 que eu a chº curiºsº é º men ino ter exa
tamen te º defei to que t inha um irm㺠de meu pai , º
tiº Franciscº, mais velho que meu pai dºis anºs .Ora vê lá tu l N㺠só o meninº se parece cºm
º pa i , mas a inda pºr cima t em º defei tº d'
um tiº !
Pºis sim; mas º pai do meu tio n㺠t i nha se
melhante defei to , e dºs filhºs desse meu tiº , nada
menºs de qua trº, t ambem nenhum 0 tem . Capri chosda N atu reza , que nada teem que ver com a sangu inídade de cada um .
Filhº de pa i i n cogn i to , pºr i nvencível ºbsti na çãº
dº sr . Thºmé, aº fi lhº da Ri tinha fºi pºstº º nºme
72 SCENAS D A V IDA
Mas porq ue n㺠casas
Hei de pensa r n'
i sso du ran te a viagem , se nãºenjºar .
Hºmem pra t i cº , habi tuado a ter as suas cºisas
sempre em ordem n㺠qu iz part i r sem deixar a sse
gurado º fu tu rº d uma creança , que talvez fºsse seufi l hº
,e da mãe d
'
essa creança , que du ran te lºngºsmez
'
es lhe fôra dedicada cºmpanhei ra , proporcionan
do - lhe cºmºdºs e r egalos . D ººu aº A l va ri nhº umarasºavel fºr tun a . q ue a mãe admin is trar ia , cºmº usu
fructua'
ria, a té el e ch egar á maiºridade. Cºm º que
t inha cºm as economias que fiz esse e mai s t rezentºs
mil re i s por mez que o fi lhº seria ºbri gado a dar — l he , ad
perpetuam, a R i t inha pºdia cºnsideran se ri ca , perfe i
t amen te assegurada a sua independencia e fa rtº viver
con tra tºdas as con tingencias pºss iveis e imaginaveis.
Pºucº lhe impºrtava , já agºra , que º braz ileirocasasse ou n㺠casasse cºm ela ; mas n㺠se resi
gnava a vêr o seu fi lhº sem pai , e pºr i ssº se dispu
nha a renºvar as suas prºmessas aºs san ti nhºs , para
que completassem º mila gre.
Quiz Deus que º Thºmé dºs An jºs chegasse aoR IO a inda a tempo de encºn t ra r vivº º seu sºciº,dºen te havia t res mezes vistº e ºbservadº pelºs
mais nº tave is medicºs car i ºcas, ºpinandº uns q ue a
dºença era dº f ígadº, opinandº ºu tros que a dºenç aera dºs r i ns , mas d
'
acordº tºdºs em que º casº er a
grave , d'uma estrema gravidade.
SCENAS D A VIDA 73
A faz er o se fºrte para n㺠chºrar,Thºmé en trou nº
quartº, em que es tava º dºen te, o seu velhº e que
rido amigº, sºciº de mui tºs anºs, e teve a impress㺠de que ele já era cadaver .
A i nda bem que vieste, Thomé, Custava—memui to n㺠ter ao pé de mim , na hºra derradeira , o
melhºr dºs meus am igºs, sºciº de mais de trin taanºs , fi lhote da minha terra , mºçº da minha creaçãº.
A inda bem que vieste.
N㺠pude despachanme mais cêdº ; mas agºrave jº que pºderia vi r mais tarde , pºrque a tua dºençan㺠é grave, cºmº eu julgava . A inda ha pºuco medisse º dr. Flºrº que lá para ºs fins de maiº querepôr- te a caminhº do velhº mundº , em viagem demo
rada pela Eurºpa .
O dr. exprimiu - se mal ºu tu não en tendeste bem .
A minha prºxima viagem , mui tº an tes de maiº, serápara o ºutrº mundº, que tambem é velhº, e será tãºdemºrada que pºr lá ficare i até aº j u ízº final . I stºestá acabadº , Thºmé . Milagre seria se vivesse a indauma semana E' uma quest㺠de pºucºs dias, tal
vez questão de pºu cas hºras. Pºr i ssº mesmº desej ºcºnversa r cºmtigº, sem perda de tempº, sºbre cºisas
que aºs dºis in teressam , a inda que pºr diferen tes
rasões.
Pºis conversemos , ja que assim º queres ; mas
n㺠levarás a mal que eu in terrºmpa a cºnversa ,quando vi r que precisas descançar.
Sabes que a minha fortuna é grande, algumascentenas de cºn tºs
,mas tambem sabes que a minha
74 SCENAS D A VIDA
Casa se n㺠fô r bem administ rada , está su jei ta a
pre juízºs que pºdem cºmprºmetel a gravemente . Emeu fal tandº, fal ta º pa tr㺠da lancha , e nada maisfa ci l que ela desa rvora r, sem governº, i ndº esmiga
lhar-se n a rocha . A mulher, cºi tada , percebe tan tº
de negociºs cºmº eu de bºrdadºs. Se n㺠t ivesse unspºu cºs de netºs , a cºnselhava a a l iqu idar , assim qu e
eu mºrra , que ºs rendimen tºs davam - lh e bem para
vive r ºnde qu iz esse , e cºmº quiz esse . Mas tenh º
cincº netºs, e a minha fºrtuna , divi di da pºr eles , é
nada pa ra cada um . Ha só um hºmem , Thºmé , capaz de a guen ta r a minh a casa nº pé em que es tá ,augmentando-a d
'
ano para anº , realisandº º meu sº
nhº de sempre , um belº sºnhº que eu realisaria, se
Deus me desse vida e saude .
E esse hºmem ?Esse hºmem .
EuSim, Thomé , és t u . Se me prometesses casa r
cºm a I zabel , eu mºrreri a t ranqui lº , pºrque se i qu ehavias de estimal -a comº ela merece e havias de ger ir = ºs negºcios da Casa cºmº se ela fºsse tua, exclusivamente tua , fe i ta á custa da tua i n tel i gencia , datua honradez e dº teu trabalhº . N㺠me digas qu enãº, Thomé , pºrque
'
acabarias de ma tar-me.
O que eu digo é que precisas descançar , pºrque tens faladº de mais , e º descan çº faz tan tº bem
ºu melhºr que ºs remediºs da bºtica.
D escançare i depºis de me responderes , e pºdes ter a cer teza de que a tua respos ta
!
, se fô r afi r
SCENAS D A VIDA 75
mativa, se rá a m inha ext rema unç㺠, terá para a minha alma º cºn fºrtº d
'
um Sa cramen tº .
A senhºra D . I zabe l tem menºs uns dezanºs dº que eu ; é relat ivamen te nºva . Fal tando -lhetu , f ica cºm uma bºn i ta fºrtuna . Se pensar em ca
samentº . escºlherá mar idº a seu gºstº, e n inguemlh
'
º pºderá levar a mal. O fu turº dos vivºs , a su a fe .
licidade , n㺠pºde ser sa cri fi cada a um dese jº manifestadº aº pé da cºva . N㺠t inhas pensadº n
'
isto
Tinha , e fºi só depºis de saber º que a Izabelpensava a este respei tº , que eu me decidi a fala r comt igº sºbre º casº.
E a senhºra D . I sabel disseD isse que nada a cºnsºlaria da minha mºrte ,
mas que a ter de casa r nºvamente, só cºmtigº casaria, se tu estivesses dispºsto a vºl ta r para º R iº e
casa r cºm ela .
Bem dizem ºs francez es
On rev ien t tou jºursA
'
ses premie rs amours.
O Thomé catrapiscara a D . I zabel , emsºl tei ra , ecertamente teria casado cºm ela , se pºr mºtivº de
negºciºs n㺠t ivesse sa idº do Riº para San ta Ca tharina precisamente na ºcasi㺠em que º sºciº , recem
chegadº ao Brazil, fazi a cºnhecimen tº cºm a D . I zabel n'uma reuni㺠famil ia r . Cºnhecimentº fº i ele, qued'
ahi a pºuco estava pegadº º namo rº , e cºmº sedesse o casº dº pai da men ina simpatizar com º ra
76 SCENAS D A VIDA
paz , não tardºu que ºs namºrados passassem a nº i .
vºs, que a I z abelinha, excessivamen te az ºugada, eracapaz de descarri la r, pºr excessº de velºcidade , ficando lhe mui tº lºnge a Esta ç㺠do Matrimºniº .
O Thomé, regressadº de San ta Ca thari na, encont rºu a pra ça tºmada. mas n㺠se deu pºr achadº . AI z abelinha man tivera cºm ele um fl i rt de pºucas semanas ; nun ca trocara cºm ele duas palavra s que a
prendessem cºm um juramen tº solemne ºu cºm uma
s imples p rºmessa , a que n㺠fºsse cºrrectº fal ta r semmotivºs pºnderºsºs. Tudº se passara em s ilenciº ,sem palavra s, n
'
uma trºca de ºlhares enternecidos,e loquen tes na sua mudez, _mais expressivºs que ºs
di scursºs melhºr arqui te ta dos.N㺠t inha que recr imina r a I z abelinha, pºrque usa
r a plenamente da sua l iberdade , seguindº ºs impulsºs dº seu cºraç㺠; aº sºcio e amigo tambem nãº
t inha que fazer recriminações , porque ele i gnºrava o
seu i di l io amorºsº , excessi vamen te di scre tº, a tal
pºn to discre to que a inda n inguem dera pºr ele , a nãºser alguem que surpreendesse uma trºca de olha resn
'
um instan te de faci l despreºcupaçãº.
Fôra o ami gº , sem querer, que lhe frus tra ra pro
j ectºs de casamentº cºm a D. Izabel , mal esbºçadºsprºjec tºs , vistº º namºrº cºm ela nunca ter passadºde ternºs e i nsis ten tes ºlhares.Pºis era º amigº que, a final , sen ti ndo - se mºrrer,
l he pedia que casasse cºm ela , afi rmandº que a cer
t eza d'
esse casamentº lhe dari a resi gnaç㺠para ai rontar a mºrte .
SCENAS D A VIDA 77
D e certº mºdº esta cºmpensaç㺠era - lhe devida ,pºrque fôra depºis do seu regressº de San ta Catharina, perdidº º amºr de D . Izabel, que ele en traraa fazer uma vida de rapaz que se diverte, cºmpremetendº a saude em leviandades amºrºsas, mal prevendºque as graves cºnsequencias de tais leviandades haviam condi cionar tris temente º seu futu rº .
A inda estava a receber pêsames pela mºrte dºmaridº , e já a sr.
ªD . Isabel Fragºdes se consorciara
cºm º sr. Thºmé dºs Anjºs, casamentº auspiciosoque á imprensa cariºca mereceu as mais a gradavei se lisºnge iras referencias .Tra tou imediatamen te º Thomé de cºmuni car o
caso para Lisbºa , em carta laconi ca , dizendº á R it inha que precisandº d
'
algum a cºisa , para el a ºupara o filhº , se lhe d iri gisse cºm franqueza , porqueº encºn traria sempre bem dispºstº a servi— la ,
Nem uma palavra que envºlvesse º mais li geiroafectº de amante
,que tra ísse a mais frºixa, a mais
debil i ncl inaç㺠de pa i, uma vaga , quasi i nexpressivareferenci a a um idílio que ela perfumara de bei jºsquen tes
,impregnadºs d
'
uma sensual idade a que sepºderia chamar casta , se n㺠brigassem estas pala
vras,
Se fôra l ida em pºetas braz ileirºs, acabandº deler a carta , e amarrotando-
a nasmãºs convulsas , a Ritinha teria d i tº, cºmº
'
na pºes ia de Guilherme de
Abreu
Meu D eus , que ge lº,!
que friez a aque la !
78 s CENAS D A VIDA
Can tºu o poe ta ºs tragicºs amºres de D i dº , quea Rit inha , t a lvez, pºr fal ta de erudi çãº, mais segura
men te por fal ta de gei t º , não quiz repet ir
D iõo infe l iz , a um e ºutrº mal un iõa ;Mºrrede um, fºges ; fºge -te º ºu trº , morres.
A'
Ri tinha mºrreu um , e ela fugiu . para ºu trº ;fugiu . ! he º ºu trº , e el a p rºcurºu um terceiro . O qua lterce irº era j ustamen te aquele D ºutôr que ela t iveraa bºa sºr te de en cºn tra r nº seu caminho, andando
á procu ra dum hºmem que fôsse º pai dºs fi lhºs
de Zebedeu , i s tº é , º pai dum filhº dº Thºmé dºs
A n jºs , que pºr i nst in to cºnsegu iu sa fa r— se da rêdeque a Ri t inha lhe estendera , assegurando- se da
cumpl i cidade dºs san tºs, que talvez lhe achassem
g raça , a mofarem dº braz ileiro .
O dr. ainda me cºnhece
Se cºnheçº ! Procu re i — a pºr tºda a par te , emLisbºa, e cºmº a n㺠en cºn trasse , nem sequer ºtv esse quaesquer nºtí cias a seu respei tº , calcule i quet i nha idº para a Prºvínci a ºu para 0 Brazi l . Sej amu i to bem aparecida l . O que tem fei tº ?
Tan ta cºisa
Apºstº que casºu ? .
Quasi .Essa agºra é O estadº de quasi
casada não me lembro de º encºn tra r defin ido emqualquer dispºsiç㺠dº codigº civi l .
80 SCENAS D A VIDA
pequeno, para tu veres , e para me dizeres se aqu i lé coisa que pºssa vir a incºmºdal- º .
Um signal nº pé esquerdo . E'
curiosº .
E'
curiºsº º quê
E'
cu riºsº, pºrque eu tambem tenhº nº pé es
querdº, n㺠um si gnal , mas uma defºrmidad e , deque nun ca f iz casº pºrque nunca me incºmºdºu .
Deixa vêrDescalçou a bºta , t i rºu a meia e ºs ºlhos pasma
dºs da Ri tinha ca iram sºbre uma del gada membrana
que lhe l i gava o dedº grande aº imedia tº exac ta
men te como t inha º seu fil hº !
Passadas al gumas semanas os j ornaes davam a noticia de que ti nham casadº º dr . F. e a D . Rita Pe
rei ra , ºcul tandº del i cadamen te que na mesma ºca
sião dº registº dº casamen tº t inham regis t adº um
filhº.
Quem ch ibºs vende .
Era um mºdestº empregadº de escri tºriº,que
para mais lhe n㺠chegavam as habi li ta ções . O pa idava- lhe cama e mesa , dispensando-º de cºn tr ibu i rpara as despesas da casa, e a inda pºr cima , em d iasde festa , o presen teava cºm al guns cen tavºs
,umas
vezes mais , ºutras vezes menos, cºnforme ºs negociºs lhe cºrriam .
N 㺠fazia a menºr idei a do que fºsse susten taruma fami lia , e cºmo º pa tr㺠, em maré de generosidade, prometesse aumentar- lhe o ºrdenadº, resol
veu casar, f iado nessa prºmessa . Cºm º que ele ganhava e com º que a mulher trºuxesse , t i nha pº rsegurº que viveria sem privações, a judadº pelo paique n㺠deixaria de ser generºsº para cºm ele,agora que mais bem cabida seri a a sua generºsidade. Casaria, mesmº que tivesse de cºn ta r só cºmºsseus recursºs, ºs mºdestºs recursºs dum empregadºde escri tºriº sem habi l i ta ções para uma si tuaç㺠demaiºr categºria e mais far tº rendimen to .
82 SCENAS D A VIDA
Tentºu º pa i dissuadi - l o dessa asneira , fazendo
lhe ver que ºs seus ganhºs , mesmº que fºsse aumentado , mal dariam para a renda da casa , e que º
dºte da mulher, segundº infºrmações que colhera ,era um cºn tº da Carºch inha , represen tadº pºr ti tulºs sem cºta ç㺠na Bºlsa .
Deus é grande e º mundº é largº ; quandº nãº
uder viver aqui, vºu para a A fr i ca ºu para o Brasil.
Para º Brasi l pagava - te eu a vi agem ; para a
A fri ca receiº mui tº que t'a pague º Gºvernº .
Casºu , e cºmº º pai, embºra desgostoso e abºr
recido , lhe poz a casa , encont rava -se rasºavelmente
i nsta ladº , sem luxº , mas cºm º dese javel cºnfºrtº ,nada lhe fal tandº dº que era necessá riº , cºm al
guns desses pequenos nadas que alegram a vis ta ,dandº uma impress㺠de A rte bara ta , mas del i cada ,agradavel , embºra fu ti l .A mulher, ºrfã de pa i e mãe, fôra creadah desde
pequena , em casa da madrinha, que a n㺠habilitára
para dºna de casa pºbre nem para creada de casa
ri ca . Era uma cria turi nha banal , cºm ambições de
luxº , sabendº alguma cºisa de bºrdados,alguma
cºisa de musica , mas i ncapaz de fazer a mais sim
ples das peças da sua toi lette, remendar umas cerºulas, passar a ferrº uma camisa . De cºsinha .
sabia fazer ºvºs quen tes, para gemadas , e t inha umavaga i deia de ºuvi r dizer que n㺠se devem assa r
SCENAS D A VIDA 83
sardinhas sem lhes t irar as t ripas. Era uma adºravelbºneca , um bibelot em que apetece tºcar, um fru to
sasºnadº que apetece meter na boca , um vinhº deliciºsº que apetece beber aos sºrvinhºs.
Hºuve necessidade de tºmarem uma criada com
algumas artes de cºsinhe ira, sºbrecarregando º seuexíguº ºrçamen tº cºm uma verba pesada , que mui tocºn tribuía para º seu desequi l ibri º.
Lºgº nº segundº mez recºnheceu que º pai t inha
ras㺠quandº º acºnselhava a n㺠casar; mas a asneira estava fei ta , e º que era precisº , agora , dadaa impºssibi l i dade de aumentar as suas recei tas, eraum francº en tendimen tº cºm a mulher para se dimi
un i rem as despesas , en trandº se num regime de se
vera ecºnºmia .
An t es que cases vê º que fazes, diz º dictado ,e tu devias ter vistº que ºs teus ganhºs n㺠chegavam para ter casa , hºj e só casa e mulher, mais tarde , na turalmen te , casa, mulher e filhºs.
D iziam que a tua madrinha te dºtaria, e cºmo
e la é ri ca , sempre calcu le i que te dotasse cºm algumacºisa que se visse.
D iziam , mas eu nunca t'
o disse, e se m'
o ti
vesses pergun tadº, cºmo era natural , ter - te — ia d i toque não cºntasses cºm isso . Olha quem, uma unhasde fºme ,
Eu,sei a quem ela disse , pºr mais duma vez.
que te daria um bºm dºte, se tu casasses a seugºstº.
84 SCENAS D A VI DA
E'
pºss ível ; mas se º disse fºi para que cºnstasse , a ver se eu lhe desamparava a lºj a sem ter
que me pôr na rua.
Se ja cºmº fô r, a verdade é que não pºssº cºmas despesas da casa , e a inda n㺠comprámos um
trapº,para t i ou para mim . O meu ºrdenadº , e só
cºm ele pºssº cºn ta r , some — se tºdº na cºsinha. j á
n㺠esperº que meu pai nos a jude , e m ilagre fºi qu enos puz esse a casa , con tra ri adº cºmº f i cºu cºm º
nossº casamen tº .
Pºis s im ; al gum remed io se ha-de dar a es ta
si tuaç㺠difi c il .
j á nº m ês seguin te o Orçamen tº teve um supe
ravlt , que ela expl icºu pelº fa ctº de i r às cºmpras
e nada cºmprar fiado na mercearia . O passadio fôra
cºmo nos meses ante riºres , se é que n㺠fôra melhºr, áparte º vinhº, que ela abol i ra , pºrque a cria
da , sô á sua par te , bebia um li trº.
I s tº de cri adas s㺠tºdas a mesma cºi sa
umas ladras. Só cºm º que rºubam nas cºmpra s,fazem tantº cºmº º ºrdenado. A lgumas n㺠se impºrtam ganhar pºuco, cºn tan tº que v㺠á Praça .
Carregam sempre no preço das cºisas,e para ºs pa
trões, º que n㺠presta cus ta º mesmº que ºs generos de primeira qual idade .
O piºr é o incºmºdº que tu tens, e issº tambem vale
'
dinheirº
O i n cºmºdo n㺠é grande , e será pºr pºucºtempo . As criadas , em vendº que os pa trões v㺠de
SCENAS D A VIDA 85
quandº em quandº á Praça e andam aº factº dº
preçº de tudº, n㺠rºubam cºm tan tº descaramen to .
Cºm respei tº á mercearia é que ha — de ser di
ficil pagar tudº de prontº , emquantº n㺠puz ermºsa vida a direi to
Estás enganado . O que é preci sº é n㺠cºm
prar sen㺠aqu ilº que se pºde cºmprar cºm dinhe irº á vista . E
'
preferivel pedir dinheiro a jurºs, pºndº alguma cºisa nº pregº , a fazer cºnta nas mer
cearias. Quem fica a dever , a lém de cºmprar tudº
mais carº , impingem - lhe sempre º que ºs ºutrºsn㺠querem. Calcu l am que mui tºs dºs que fazem
cºn ta nunca vi r㺠a paga r , e en t㺠carregam- lhenºs preçºs, a ver se um d㺠para ºs ºu trºs.
Ha mui tºs hºmens que v㺠á Praça e fazem
as cºmpras tão bem ºu melhºr que mui tas dºnas de
casa. Eu n㺠tenhº gei tº para escºlher ºu paraa justar . Se ºs vendedºres fºssem pessºas sérias , incapazes de impingir ga tº por lebre , e se ºs preçºsesti vessem marcadºs em tudo, comº em certas lºjas ,eu pºdi a i r á Praça , n㺠digº tºdºs ºs dias, mas
umas Vezes pºr ou tras, para te pºupar essa massada .
D escança, que is tº não me massa . Antes pelºcºn tráriº
,até me di s tra i. Encºntro lá mui ta gen te
que vai só para ver o espectaculº , que, na verdade ,n㺠deixa de ser in teressan te. Se Deus qu izer , paraº mez que vem já n㺠precisarei i r á Praça . A mºçaque ah i temºs agºra é ge itºsa, e quer tme parecerque n㺠é mulher para meter a unha até fazer sangue. I sto vai mudar mui tº, tu verás.
86 SCENAS D A VIDA
Começou ele a andar sa tisfei tº e a mulhe r radian
te, os dºis fel izes pºrque h avi a abundancia nº seu
la r era cºmº se tivesse aumentadº mui tº º seu
ºrdenadº. ºu t ivesse bara teado mui tissimº a vida .
Está bem ; mas eu preciso dum fatº,tu preci
sas um chapeu , e para is tº n㺠chegam as nºssa s
ecºnºmias .
D i as passados, mui tº poucºs , apresenta- lhe el a ,em notas de cem escudºs , mais dº que º bas tan tepara as despesas imedia tas que se lhes impunham .
E expl i cºuFu i hºj e vis i ta r a m inha madrinha . A cºrda
quebra sempre pelº mais fraco , e vistº el a não vi r á
nºssa casa , fu i eu á sua . Gºstºu muitº de me vêr, e
preguntºu—me se era fel iz . D isse ' lhe que sim , qu e
sºu mui tº fel iz. Percebi que ela t i nha qualquer pre
venç㺠a teu respei tº, e puz-me a fazer- t e um elºgi º
t㺠rasgadº, que a páginas tan tas vi que estava
ca indº em exagerº . Quiz saber cºmº nºs arran j a
mos cºm as despesas da casa , e na despedida , bei
jando — me mui to, en tregou —me isto .
Vamos lá ; n㺠era de espera r tan tº duma pessoa t㺠sovina.
Pºis é verdade. E disse-me que em me vendºem apurºs , me lembrasse dela , pºrque sempre al gum
bem nºs far ia .
Fºram amiudando as visi tas á madrinha , e cada
88 SCENAS D A VIDA
sºbretudº dºs f i lmes que chegavam a Lisbºa prece
didos de grande fama .
Apeteceu à mulher um casacº de peles ; mas parata ntº n㺠chegavam as generosidades da madrinha .
Esse luxo n㺠lhe custari a menºs de três cºn tºs, pºucº menºs de me tade dº que ele ganhava em tºdº º
anº, a n㺠ser que se conten tasse cºm umas peles
ordinarias , cºssadas an tes dº fim da Es taçãº.
Porque n㺠fa las n issº á tua madrinha
Deus me l ivre ! E la já acha que eu tenhº luxºdemasiadº para as nºssas pºsses, acºnselhandº -me
sempre a que economise , pºrque n inguem sabe º
t empo que lhe hade vi r.N㺠sei que vºl tas l he hei de dar, f i lha , pºrque
três cºn tºs é mui tº dinheirº. e º que se pºssa redu
z i r nºs meus gastºs n㺠dará cºisa parecida cºm issº .
E se jºgassemºs na lºteria D iz 'se que a sorte
grande é uma coisa que sai aºs ºu trºs mas a ver
dade é que el a a alguem hade sai r. ValeuUm bilhete para o sor te grande cus ta mui tº di
nhe irº ; º melhºr será cºmprar umas cautelitas, e se
elas fºrem premiadas , j ºgamºs ent㺠mais fºrte . E'
cºmº º ºu trº que diz com º mesmº sangue se
fazem ºs chºuri çºs .
Pºis sim ; cºmpra lá º que te parecer.Cºmpra tu , que eu , em tºdºs ºs jºgºs, sºu um
tumba .
Andºu a rºda , e quandº ele en trºu em casa , para
SCENAS D A VIDA 89
j an ta r, desenvol ta cºmº um cºlegial em férias, abra
çandº —º e bei j ando-o em transpºrtes de a legria , mostra- lhe um masso de nºtas quatrº cºn tºs e qu inhentºs e decl inºu º numerº que cºmprara , e emque lhe saíra toda aquela dinhei rama .
Três cºn tºs s㺠para as minhas pel es .
Um cºnta já chega para cºmprar as cºisas quenºs s㺠mais precisas .
Os qu inhen tºs que sºbram , s㺠para nos habi l ifarmos em tºdºs ºs jºgºs , a vêr se alguma vez apanhamºs a taluda .
I ssº é que hade ser mais difi ci l .O' f i lhº ! E
'
t㺠difi ci l apanhar a sºrte grandecºmº apanhar o mesmo d inheirº . O t rabalhº é ºmesmº , e a habil idade , num casº e nºu trº, é nenhu
ma . A quest㺠é a gente habil i ta r- se , e cºm estes qu i
nhentºs escudºs, se t ivermºs um bºcadinhº de sºrte,quando chega r º Na tal, já temºs arran jadº a massaprecisa para nºs habil i tarmos a ser ri cºs, mu i tº ri cos .A part i r de ent㺠, nunca mais ela deixºu de jºga r
na lºteria da San ta Casa , favºrecida de ta l mºdº
pela sºrte , que era rarº o jºgo em que n㺠lhe saissem
'
algumas cen tenas de escudºs.Era sempre ela que ia receber aº cambista , cºmo
era sempre ela que cºmprava as cau telas, vigesimos
ºu bilhe tes , se gundº ºs seus palpi tes.O que êle n㺠dispensava era a parti cipaç㺠dire
cta nºs lucrºs,uma percen tagem que ia algumas ve
zes até aºs ci ncoenta pºr cen tº, quandº º premio
n㺠era chºrudº.
96 SCENAS D A VIDA
j á t inham na Ca ixa Ecºnºm ica al gun s cºntítºs, e
tan tº ela se afizera á i deia de ganha r sempre, em
todºs ºs jºgºs , que já cºnsiderava a l ºteria cºmºuma prºpriedade que trazi a arrendada , pagando- lhe
a renda em fracções, tºdos ºs mezes .M udaram de casa . melhºrandº cºnsideravelmente ;
meteram mais uma cr ia da , e cºmº a sua dama sabi aa lguma coisa de musica , 0 t r ivial, cºmpraram um
pianº . E l e preferia um gramºfºne ; mas ela disseque issº era pires, e as ci rcuns tan cias em que se em
con travam, fe l izm en te , permi t iam º luxº dum bºmp ianº , que se poderia t i ra r, fazendº o pa gamen tº íntegral, nº a cto da compra , por se is ºu ºi tº cºn tºs .
Desaparecera de scen a a madrinha , de cu jas fantasiºsas generosidades já n㺠t inha necessidade , por
que a lº teri a justifi cava plenamen te a prºveniencíadºs seus recursºs monetarios, umas pºucas de vezes
superiºres aº ºrdenadº dº maridº .
O que dirá a tua madrinha quandº sºuber que
vivemºs numa casa melhº r que a dela , mºbilada cºmo nunca fºi a sua
A mim n㺠me dirá nada, pºrque nunca maisa visi tº .
Zangaram se ?N㺠nºs zangámos , pºrque ºuvia tudº quan
tº ela queri a dizer -me, e faz ia-me desen tendida. Ul
timamente estava insupºrtavel, a querer saber, º quetemºs e º que n㺠temºs ; se º teu pa i nºs a juda ,se fazemºs cºn ta n a mercear ia , se pedimºs di
SCENAS D A VIDA 9 :
emprestadº . A u l tima vez que lá est ive , teve º descôco de me dizer que ºs nºssºs rendimen tºs nãopºdem chega r para as nºssas despez as, e que a cºntinuarmºs assim , acabamºs pºr fazer dívidas que
nunca pºderemºs pagar.E tu não a mandaste
Eu n㺠a mandei a parte nenhuma . Lembrei
me dº que e la nes tem fei tº , e deixei-a rabu jar ávºn tade.
Fôsse cºmigº que eu lhe can taria ! Na tu ralmen te todo esse sermão fºi manha para nunca ma iste dar um cen tavº ,
C reiº que sim ; mas issº pºucº me impºr tava ,se ela n㺠se t ivesse permi t idº insinuar que a nºssarela tiva prºsperidade não pºde ter uma ºrigem hº .
nesta .
O quê ? E la teve esse a trevimen toQuandº me despedi , ºs ºlhºs cheios de l a gr i
mas, quasi sem poder fala r , bei jando -me cºmº de
costume, dissesme que tivesse mui ta cau tela, pºrqu eas aparencias me cºmprºmetem e que n㺠esque
cesse nunca que ha um di tadº que resa assimquem chibºs vende, e cabras não tem , dalgures lhevem .
Que grande desavergºnhada t
Tºdºs se admiravam que um mºdestº empregadº
de escri tºr iº pºdesse v iver cºmo ele vivia, pºdessegastar cºmº êle gas tava , a mulher vest indº cºmº aprimei ra , e êle frequen tandº assiduamente os clubs,
9 2 SCENAS D A VIDA
º nde geralmen te ceava em bºa cºmpanhia , bebendº
v inhºs e fumandº charu tºs carºs. Só lhe fal tava ºluxº duma mulher pºr cºn ta , uma aman te ti tre
'
e,
para fica r cºnsagradº cºmº um clubman dinhe irºsº ,
a que di fi ci lmen te resi st ir iam as madamas que se
a lu gam ºu se vendem .
Tambem n㺠j ºgava .
Cºmº diabº é que º F., só cºm o ºrdenadº
pºde viver á grande, cºmº vive , gastandº sem cºn ta
n em medida ?
Só cºm º ºrdenadº , n㺠; cºm º ºrdenadº e ºs
div idendºs .Os dividendºs? .
Sim; as acções da mulher d㺠lhe um bºm rendimentº, pºrque est㺠mui tº cº tadae naa l heia .
O pa i , depºis de ter cºm êle uma expli ca ç㺠vio
l en ta , qu e pºr bem pºuco n㺠chega a vias de fa .
c tº, n a duvida sºbre se êle era mais parvº dº que
c ín i cº , ºu mais c ín i cº dº que parvº , disse- lhe que pre
feria chora r a sua mºr te a presencear a sua degrada
ç㺠, e que preven isse a porca da mulher de que a
pºri a nº õlhº da rua , a pºn tapés, se el a t ivesse ºdes caramen to de lhe cruzar ºs pºr ta is da casa .
Fica dispensado de me cumprimen ta r ºnde q uer
que nºs en cºn tremºs . Sºmºs duas pessoas que senão cºnhecem , e uma d elas não quere rela ções cºma ºu tra .
SCENAS D A VIDA 93
Empregadº habil , na eSphera, muitº restricta dasua cºmpetencia, um amigº que precisava i r ao Bra
sil l iquida r uma causa comercial , cºnvidºu '
º a a com
panhal o , garant indo- lhe bºns honora rios .Acei tºu .
Havia mui to que pensava em deixar º escri tºriº , eessa viagem dava . lhe º pretextº, que ainda n㺠en
cºntrára para o fazer, sem erguer reparºs, sobre tudº
sem dar ensejº a que º pa tr㺠lhe pedisse expl i ca '
ções, em conversa amigavel , que seriam embaraçosas, e teriamsempre º ar dº que se chama descu l
pas de mau pag ador .
A i nda pensºu em escrever aº sr. Bastºs , comun i
cando- lhe a sua resºluç㺠; mas lºgº viu que prºcedendo assim era demasiadamente i ncºrrectº para
cºm uma pessºa , que º tra tara sempre cºm as maio
res deferencias, e que além d'
i sso nunca se esqueci ade º grat ifi ca r quandº ele t i nha um pºucº mais
de trabalho , embºra n㺠fizesse hºras extraºrdina
rias .Encheu- se de cºragem , e um dia, quandº ja tºdºs
ºs empregadºs tinham saidº, disse aº sr . Bastºs que
t ratasse de º substi tu i r , porquan tº ia aº Brasi l faze ruma l iqu idaç㺠cºmercia l , e tenciºnava , nº regresso ,estabelecer-se pºr sua cºn ta , mºn tandº uma agenci ade cºnsignações.
Quandº parte
Nº f im dº mez .
9 4 SCENAS D A VIDA
Oxalá sej a fel iz , e nunca tenha ºcasraº de se ar
r epender.
Agradeceu , prº testandº º seu recºnhecimen tº , e
saiu dº escriptºriº al iviado d'
um grande pêsº
a quele enºrme pêso que esmagava º Rapºs㺠quan
do copiava ºfi ciºs , cºm º inevitavel Deus Guarde.
j á eram publ i cas e no torias as leviandades da espºsa , n in guem acredi tandº n as generosidades da ma
drinha, n㺠acredi tan dº nin guem na chance das lº te.
r ias e tºdºs a credi tandº . que ele n㺠acredi tava
em semelhan tes invenciºníces.
]ai ele i a pelºs mares fôra , cºm pºu cºs dias de
v i agem , quando º acasº , uma tarde, a poz em fren tedº hºmem que, havi a mu i tº , a perseguia pºr tºda apar te , tendo — l he escrip tº já umas pºucas de ca rtas
,
que l he mandava en tregar pºr um galego, quandº sab ia que o marido n㺠estava .
Teve lºgar º encºn tro nº j ardim Zoologico .
Lºgº ela viu que tinha a t ra tar com um Lovela cemui to ri cº, i n capaz de seduzi r pelº en can tº da sua
cºnversa , pela delicadeza do seu tra tº. pela elegan
c ia das suas manei ras . Esse hºmem desejava-a cºmfuria , e não hesi tari a , para a pºssu i r , em alarga r ºs
cºrdões á bºlsa, pagando º seu amºr , is tº é , a suaposse, a pêsº de d inhei rº .
En trin chei rada nºs seus deveres de mulher casada ,s em for tuna prºp r ia , fez - lhe perceber que n㺠arris
cari a levianamente a sua pºsiç㺠nem cºmprºme teriaº seu fu turº para lhe prºpºrciºna r um gôsº ephe
96 SCENAS D A VIDA
disse expl i cações a esse respei tº ; mas estava ce
de que n㺠lh'
as pediri a , j á habi tuadº aºs premios
lº teria , nun ca tendº pºstº a vis ta n'
um bilhe te , cau
tel a ou vigessimº an tes de andar a rºda nem an
tes nem depºis , pºrque esse pequenº deta lhe emnada º i n teressava .
A cada passo cºmprava jºias, as mais l indas e ascaras
,que v ia expºs tas nas mºntras . Um finan cei rº
das suas i n t imas relações acºnselhára-a a desfazer-seda papelada que ti nha nºs Bancºs, e ela , tomandº
o cºnselhº, t ra tºu de cºmpra r j ºias , mui tas jºias ,ºbj ectºs de pra ta para º usº dºmesti cº e uma bôapºrç㺠de l ibras que mandºu pô r em Lºndres , a suaordem .
Nº dia em que fez anºs , º aman te ofereceu - lhe a
escriptura d'
um terrenº que ti nha cºmpradº , em nºme
d'
ela , na l inha de Cascaes, e juntamen te cºm a es
criptura um cheque de cem cºn tos , a cºmpanhadº de
mu itºs abraçºs e bei j ºs, com a prºmessa d'
um amºr
eternº ! Es tava ri ca , e porque só uma parte mínimada sua fºr tuna era represen tada pºr escudºs , enca
rava º fu turº sem mêdº, n㺠se impºr tandº nadacºm a desvalºrizaç㺠da mºeda .
Um dia º amante apareceu - I he em casa sem ser
esperadº , a inda e la estava na cama , a crea r disposi
ç㺠para um somno cºmplementa r.
Precisº de i r a Par is , e gºstava que fºsses cº
Tu n㺠estás bom da cabeça ! O escandalº se
SCENAS D A VIDA 97
ria t㺠grande, que daria b rado em tºda a cidade , e
Deus sabe se n㺠chegar i a ao B razi l , ºbri gandº ºmeu maridº a apressa r º seu regresso . Nem pensarn'
issº é bom, meu carº.
Vamºs deva gar . Vamos devagar . N º fimdº mez par te uma peregr i nação para Lou rdes , queseguirá dali para Rºma
, sendº ' lhe fa cu l tada umalarga excu rs㺠pela I ta l ia . Tu vaes na peregr inaçãºa té Lºurdes , e d
'ahi , em vez de segu i res para Rºma ,segues para Paris, ºnde nºs encºn tramºs . Os jºrnaes
d㺠sempre a l i s ta dos peregrinºs , e n'
essa l ista fi
gurará o teu nºme .
E pºr quan tº tempº cºn tas demºran te em Paris— O tempº que tu qu izeres, além de quinze dias .
Pois sim , vamºs .Teve necessidade de fazer toale tes de viagem qu e
el e pagºu , e cºmº fºsse arr iscado levar as suas jºia sri cas , cºmprou jºias falsas , de grande valºr ar t ís ti cº ,e que ele tambem pagºu .
Impress ionou — a mediocremente Lºurdes, áparte o
pictºrescº da região, i n tel igen temen te aprovei tadºpara es tabelecer ali uma agencia de milagres , espantºsamente rendosa . A piscina fez-l he repugnancia , etendº assistido a meter n
'
ela alei jados e - chagºsos,
nunca viu que al gum saisse cu radº , que mais nãºfºsse um bºcadinho mais s㺠e escorrei to . Parecia
lhe aqui lº uma especie de lºj a dº Grandela, só for
necida de ºb jectºs bentos, carºs cºmº se fossem a utentícas relíquias.
98 SCENAS D A VIDA
Mui tºs dºs peregrinºs que pºr al i andavam, aºs
milhares, gen te de varias Nações , eram cºm certeza
pessºas cren tes e devotas, a credi tandº nas curas mi
lagrºsas que cer ta imprensa apregôa e que cer tºs
medi cºs au ten t i cam . Mas a grande maiºri a era de
tour istes cºmº ela , i n di feren tes em materia rel i giºsa ,gen te que n㺠acharia um pre tex tº rasºavel para sa irde casa , passandº a frºn tei ra , se Lourdes n㺠exis
t isse .
Sim, a famºsa p rºcissão das velas era um espe
ctaculº imponen te milhares de luzes ba tendº a es
curid㺠mais ºu menºs carregada da nºi te , milhares
de vºzes, em orpheon mal ensaiadº , en toando preces
e orações , no tºm plangen te das lamurias mºnasticas
n'
um cºnven to sºmbriº. A prºciss㺠era um especta
culº na verdade impºnente , naº podendº ver- se cºmi n teresse mais d
'
uma vez , pºrque a repet içãº, j á satisfeita a curiºs idade , faz com que a sensibi l idade nãºimpeça a analyse e a cri t i ca .
Aº te rcei rº dis estava fa rta de Lºu rdes .A chºu gra ça vêr ali judeu s fazendo º seu comer
cio, e p recisamente na lº j a dº que achºu cºm aresde ser º mais di rectamente descendente dºs malvadºsque cuspiram na face dº Redemptor, cºmprºu algumas
lembran ças, en tre elas um dedal. que perten cera a
Santa Brígida, e um cachimbº , que pertencera a Zebedeu, i rmão de Thiagº , ambºs pescadºres .Nº dia em que os ºu t rºs peregr i nos, ºs que cºm
ela t inham idº de Lisboa , marcharam para Roma ,marchºu ela pa ra Pa r is .
I oo SCENAS D A VIDA
vesarias da rua dº Ourº n㺠val iam uma só da Rue
de La Pa lx ; tºdas as lºj as da Baixa n㺠val iam º
Lºuvre ou a Galeri a Lafaye te .
Considerava -se ri ca em Lisbºa , mas senti a-se pºbre em Paris, e re cºnhecia que ser pobre n
'
uma terra
tão p rodi giosamen te ri ca , t㺠chei a de ten ta ções , de
v irtudes t㺠di fí ceis e de ví ci ºs t㺠caros , é qualquercº isa de tortu ran te cºmº º supl í ciº de Tan talo, o i n
cºmpºrtavel martvríº de sempre deseja r e nunca
pº ssu i r, a tra gi ca sºr te dº que mºrrer á sêde
quasi a mºlhar ºs labiºs n'
uma cºrrente d'
água fresca
e pura .
Gostavas de vive r em Pa r i sN㺠. Gºstava de vi r aqu i t ºdºs os anºs, retí
ra ndº para Lisbºa sem grande demºra . a aguça r
º ape ti te de vºl ta r!
.
As nºtíc i as que lhe chegavam de Lisbºa eram poucº tranqu ilisadºras, n㺠pºrque a in teressasse a pº
l i t i ca, mas pºrque ºs bºa tºs eram insis ten tes sºb re
prºjectadºs assal tºs a estabelec imen tºs e casas pa r
ticulares. O seu dinheirº estava tºdº nºs Ban cºs. e
ºs ºb jectºs d'
ouro e p ra ta , ºs de ma iºr val ia , t ivera
º cu idadº de os depºsi ta r no Mºnte Pio Geral, n'um
cºfre que alugara . Mas nem pºr issº deixava de en
cara r , a t remer , a hypothese de lhe assal tarem a casa ,menºs pelo que represen tasse º rºubº de que fºsse
v ictima, que pela vandalisaç㺠a que se en tregassemºs miz eraveis assal tan tes , gen te que se compraz em
SCENAS D A VIDA 1 0 1
fazer mal , a inda que d'
ah i lhe n㺠resul te º menºr beneficio .
Cºmmunicºu as suas apreensões ao aman te, e lºgºnº dia seguin te se puz erama a rran jar as malas , indoele assegurar-se da passagem para o dcmingº imedia tº.
Fizeram o regressº pºr Madrid , ºnde se demºra
ram apenas quaren ta e oi tº hºras , tempº bastan te
para ela ver , que n㺠val ia a pena ter ali idº .
Ta lvez achasse istº bºn i tº se tivessemos passadº pºr aqu i , a caminhº de Paris .
Sevi lha é mais bon i ta . Havemºs de lá i r pºr
ºcasi㺠da Semana Santa , se º teu maridº estive rpelºs a justes.
Du rara um lºngº mez a via gem , duran te a qua l
ela ., pudera estudar bêm º seu aman te , homem capaz
de gasta r mui tº dinheirº cºm uma mulher, gastandºsem cºn tar, pren dendo-a ºu prºcurandº prendel — a asi pºr uma cºrren te d
'
ouro , mas i n capaz de a prender pºr uma cºrren te de simpa t ia .
Dev ia - lhe muitº , quas i toda a sua fºr tuna , masn㺠l he era grata , pºrque ele cºmprara a sua pºsse,nem lhe era a fecta, porque en tre º seu fe i tiº e º
dele , entre a delicadeza que ela punha em tºdos ºs
seus actºs e a bru tal idade que ele mal disfarçava namaiºr pa r te das suas acções , seria exagerº dizer qu ehavia um abismº, mas havia espaçº bas tan te largo
que ºs ter ia sempre separados mesmº que estives
sem jun tºs.
1 0 2 SCENAS D A VIDA
Era- l he de cada vez menºs agradavel a sua presen ça , e sen t i a p rºximº º mºmen tº em que n㺠pode
ria supor ta r a sua bru tal i dade , as suas car i cias, queeram explºsões da sua best i al sensib il idade, ºs seus bei
jºs, em que n㺠havia o perfume duma volupia requ in
tadamente del i cada . De res tº cºmeçava a t a rdar — lhe a
fala , cºmº dizem ºs Lºj is tas, dºs freguez es que pa
gam ta rde e a más horas .Fºi nes tas al turas que recebeu car ta dº maridº
anunciando- l he que an tes de mez e meiº , dois me
zes, não pºdia regressa r, pºrque a l iqu idaç㺠era umnegºciº mu i tº cºmpl i cadº, e a burºcraci a , nº Bra
z il, n㺠sabe trabalhar depressa . Quasi aº mesmº tem
pº comun icava- lhe º aman te que den trº dum mez i riapara a A fri ca , cºm demºra de dºis ºu tres anºs .
NegºciºsN㺠; vºu admin is tra r uma rºça em S . Tho
mé ! j oguei fºr te n a Bolsa , cºmprandº fundºs que
tºda a gen te me diz ia que t eriam uma grande subida
,e que a fi nal desceram até n㺠valerem nada . O
que a inda me res ta , chegaria para qualquer ou trº vi
ver i ndependen te , querendo viver mºdestamente, a den
trº dum ºrçamen tº equ il ibradº . Mas essa vida eu nãº
a pºsso fazer, n㺠a querº fazer, e só em A fri ca pºdere i ca lafeta r º meu barcº , que faz agua pºr tºdºs
ºs ladºs .Oxalá sej as fel iz .
Só pºssº ser fel iz regressandº d'
Africa r i cº , ºu
deixandº lá º canas tro .
E'
s for te , e a inda és nºvº . Se ti veres ju i zo fa .
1 04. SCENAS D A V I DA
f izera , e da si tua ç㺠que creara . A rriscou-se , j ºgandºna Bºlsa , mas jºgºu sempre com tan ta sºr te, que nemuma só vez perdeu . Bem entendidº, n㺠j ogava á tôa
ºu por palp i te ; jºgava por i ndi ca ç㺠de pessºas de
negºciºs , banquei ros e correctºres que adivinham as
a l tas e as ba ixas cºmº º bºrda d'
agua adivinh a as
chuvas e o bºm tempº . Far ta ra- se de ganhar dinhe irº , que foi depºsi tandº á ºrdem , cºm pequenº j u rº ,quasi sem jurº , pºr dizerem que a prasº era arriscado, no casº de haver uma corrida aºs Bancºs .
Tinha a casa cheia cºmº um ºvº , n㺠de bugigangas
sem prest imo, mas de ºbjectºs que sempre teem va
lºr, uns porqu e s㺠u teis, cºmo ºbj ec tºs d'
uso cº
mum , ºu trºs pºr merecimen tº art isti cº.
Cºmprára um terreno n a l inha de Cascaes .
I ssº é que me parece que fºi asnei ra .
Ser ia ; mas a cºmpra fºi mu i tº bôa, na ºpin iãºde tºda a gen te que conhecia o terrenº , e nós ama
nhã, se o qu iz ermosvender, nãºfprecisamºs sen㺠abri ra bºca para re cebermºs tres ºu qua t rº vezes º queele nºs custºu . A i nda n㺠estava a escri tura fei ta ,j á um lavradºr dº Alemte jº me mandava ºferecer º
dôbro dº,
qu e eu dera pºr ele. E aquilº e ra negociºfei tº, dinhei rº n a maº . O hºmem estava a banhºs na
Parêde , e desej ava cºmprar º terrenº a n tes de a ca
bar a t empºrada , para cºmeçar as ºbras duma casa
ºu cha let an tes de ret i ra r para a Prºvín cia . Estºu queº hºmem , a não ser que já este ja gºvernadº, se lhemandá ssemos dizer que nºs resºlvemºs a vender º
terrenº,mesmº pedindº mais alguma cºisa , vinha lºgº
SCENAS D A VIDA 1 65
ahi a cºrrer . Considera bem o casº , pºrque negociºs des tes não se devem fazer no a r .
Eu n㺠digº que º negociº fº i ru im ; achº a téque fº i um bºm negºciº. O terrenº, ali , para aqueles sitiºs, ha -de valer cada vez mais . O que eu digoé que prefer i a uma casa em Lisbºa a um chalet na linha de Cascaes .
D i nheirº ti nham que chegava e sobejava para cha
let e casa . V i veriam na sua casa de Lisbºa duran te
o invernº e a primavera , e i r i am viver no cha let º restºdº anº , se o n㺠quiz essem alugar.Ponderaram se deviam mandar fazer casa ºu cºm
pral — a fe i ta , e determ inaram -se pel a cºmpra . Era mais
promptº, e talvez fºsse ma is bara tº. Compraram a
casa,e tra ta ram de a apetrechar para reuniões apara :
tosas .O demºn iº é
.
que n㺠t i nham relações na a l ta sº
ciedade , e n㺠seria fa ci l adquiriLas, vistº ele n㺠ser
pessºa em destaque na pºlí t i ca ºu nº cºmerciº, naindust r ia
,na finan ça , nas le tras ºu na A rte .
Outrºs , cºm menºs unhas , têem trêpado.
Relacionou - se cºm alguns reporters, e lºgo os jornaes cºmeça ram a falar dele e de sua ex? ! espºsa
,
umas vezes nºt ici andº esmºla s que dera aºs pºbres
da sua freguezia , ºutras vezes encarecendo o valº rartist icº de variadíssimºs ºb jectºs que tinham em suacasa , uns adqu i r i dºs aqu i, ºutrºs mandadºs vir dº
estrangeiro .
1 06 SCENAS D A VIDA
Um pin tº r de g rande nºmeada fez º retra tº dela
em tamanhº n atural , e pºrque esse retra tº fºsse ummomen t º fel iz n a sua vida de borra — telas, a madama
não só lºgrºu tornar-se cºnhecida de tºda a gen te,mi
lhares de pessºas, que visi taram a Expºsi ç㺠em queº retra tº fº i expºs tº , mas cºnseguiu que dela se ºcuc
passem , duran te semanas , n㺠só os crí t i cºs de A r te ,mas tºdºs os literatelhºs, mais ºu menºs au tºres de
rºman ces e novelas , que nºs cafés, e ºut rºs cen trºs
de Sºciedade remediada , prºcuram demºl i r i dºlos ºuerguer a l tares .Fez - se sºciº de Sºciedade de G eºgraphia, en t rou
para o cºnselhº fisca l dum Banoo e pºr um tris nãºcºnsegu i u qu e º Papa º f izesse cºnde, t endo ofere.
cido para º mealhei ro de S. Pedrº , ao cambiº dº dia ,uns milhares de l iras , º equ ivalen te de dºze cºn tºs.A p re te x tº de fazer ºbras na casa , i nstalou - se nº
Aven ida Pa la ce , ocupando uma sui te, que era a meI hOr dº Hºtel .
Os creados para nenhum ºutrº hºspede ti nham
a tenções e deferencias cºmº para cºm ele, sempre a
dar — lhes gºrgetas, umas vezes pºrque º a judavam aves ti r o sºbretudº, outras vezes pºrque lhe levavama cºrrespºndencia ºu o jºrnal .
Re laciºnºus e cºm os pol i t i cºs , gen te de tºdºs ºspar t idºs , e tendo- se a firmadº , publi camen te , monar
qu ico dºs qua trº costados, um amigº cºnseguiu a r
ranjar — l he a cºmenda da Cºncei çãº, nada lhe pedi ndo sen㺠que t rabalhasse pºr ele nas prºx imas ele i
ções .
1 08 SCENAS D A VIDA
tir º presiden te dº min is teriº , º chefe do gºvernº,pºr se en cºn tra r cºm um a taque de almºrre imas, que
o ºb r i gava a semicupiºs de alfavaca de cºbra de
quartº em quarto d'
hora .
Nº ºu tro dia ºs jºrnais de ma iºr c ircu la ç㺠davam º rela to da fes ta cºmº se fosse um acºnteci'
mentº naciºnal, encarecendo a cap tivan te gentilesa
dºs i lust res dºnos da casa , fidalgºs de ra iz .
qua
d reda , e elevandº aº cubº a magni fi cen cia dº serviçº .
Fôra, n a real idade , uma fes ta de estrºndº, umad'
aquelas festas que marcam nas ephemerides da maiseleva da aristºcra cia .
E ci tavam -se di lOS pi can tes , mal i ciºsºs comentariºs sºbre º rapi dº afidalgamentº, a elevaç㺠quasver t iginºsa d
'
aquele mºdestissimº empregadº de es
criptºrio, só abºrdºadº ás prenda s quasi hanaes damulher, sem ºs talen tos e a beleza que escravisaramPericles á famºsa Aspasia ; sem a in te l i gen cia ambiciosa , e o gºs tº refinadamente ar t ís t i cº da Pompadou r ,amante volage de Lu iz ! V, sem º charme perturban te e a superiºridade in telectual , dºminadºra , de
L'
Espinasse, amante dº ilustre d'
Alembert, aº tempºem que ele , geºme tra derreado, já nem era capaz de
baixa r uma perpendicula r ao meiº d'
uma hºrisºntal,ele que se impuz era á A cademia de Berl im pel a
transcendencia dºs seus t rabalhºs nºs dºmín iºs das
sciencias mathematicas !
Quandº se pa rt iu de mui tº baixº, pºr mui tº a l tº
que se trepe, subsis te sempre qualquer coisa que denuncia as primºrdiais qual idades dº adventiciº .
SCENAS D A V IDA 1 09
Os lisºnge irºs encare ciam a rara dist inç㺠de s.ex.
ª
, de manei ras t㺠dist in tas, d'uma del i cadeza tão
natura l, t㺠sem arti fi c iº, que dir-se o hia te r nascidº em n inhº ari stocra t i co , creando - se e educandose na melhºr sociedade .
A . respei to d'
ele , ºs farçºlas que º disfructavam,
diziam em vºz al ta , para que cºns tasse e'
umclub
man , cºrr igindº ºs invejºsos que lhe cºnheciam abiºgrafi a um clubman é favor , um cornman , cºmºdi ri a º Beyron, se cºnhecesse melhºr a nºssa língua.
Certº é que a festa dº Lopes , 5 . ex.
a º sr. I gnaciºV i ctorino da Encarnaç㺠Lopes, fôra um deslumbramento, sendº a ºpini㺠geral que ela marcaria o in i
ciº d'
uma bri lhante carrei ra política, dandº cºnsis
tencia a esta ºpin i㺠º factº do ministrº dº re inº terentret idº cºm º Lºpes, du ran te a nºi te , largºs tre
chos de cºnversa , uma ºu ºu tra palavra mais al ta
deixandº perceber que era de assun tºs a t ra ta r nº
Parlamen tº que s . ex .ªs se en tre t inham .
O piºr da passagem fº i que em cinco de outubro
se prºclamºu a Republ ica , emigrando tºda a famíliareal , só em Lisbºa havendº lucta en tre ºs revºluciºnariºs e as trºpas fieis aº thrºnº , meia duzia de abencerregens que n㺠l evaram mui tº tempº a convencerse de que n㺠val i a a pena sacrifi ca r a vida pºr uma
causa perdida .
A Província a cei ta ria de bºmgradº , pelº menºscºm t ranqu i la resigna ç㺠, º que fizera a capi ta lSe assim fosse , d spos to a fazer carrei ra política
1 1 0 SCENAS DA V IDA
aprovei tari a º primeirº ensejº para ader i r á Repu
blica. Considerava- se sem respºnsabilidades nºs cri
mes, errºs e fal tas impu tadas á Monarqu ia , ele i tº de
putadº, pela primeira vez , pºu cas semanas a n tes de
prºcl amada a Republ i ca , e até áquelle mºmentº nãºtendº a fi rmadº º seu monarqu i smo sen㺠pºr signaesde respei tº pel a família real , em fes tas de caridade .
Paiva Cºuceirº re t i ra ra para a Galliz a, amea çando
a Republ i ca e era vºz cºrren te que ele se prepara
va para vi r a f rent e de trºpas,n
'
uma in curs㺠auda
ciosa , i n timar º Gºvernº republ i canº a en tregar — lhe
ºs poderes que usu rpara , pºu cº ma is tendº duradºa Republ i ca que as celebradas rºsas dº pºeta .
O melhor seria espera r º desfecho d'
essa aventu
ra , n㺠fºsse dar — se º casº de coincidi r a sua adhe
são á Republ i ca cºm a res taura ç㺠da Mºnarqu i a .
A i n cursão cºuce irista fez — se, e fºi um desastre
completo.
O Lºpes não hesi tºu mais aprovei ta ri a º pri
mei rº ensej º para se declara r republ icanº.
Não teve que esperar muito.
Em Abri l fº i publ icada a Le i de Separa ç㺠dasI gre jas e dº Es tado, e lºgº ele veiº á imprensa declarar que dava a sua adhes㺠, fervºrosa e desinte '
ressada, aº nºvº reg ime , vis tº ºx
Paiz ser republ i canº ,e não pºdendº , cºn tra a sua vºn tade soberana , pre
valecer ºs i n teresses d'
uma dynastia, que nunca se
in tegrara na N ação .
Ao mesmo tempo que dava a sua en thusiastica adhes㺠á Republ i ca , Lºpes alvitrava que se ºferecesse
1 12 SCENAS D A VIDA
e cº rre ligiºná r iºs se mºstravam tão solí ci tos em serv il-º , que lhe arran j assem uma si tua ção lá fôra
, no
est ran gei rº , fºsse o que fºsse , pºrque estava na disposi ção de passa r fóra de Pºrtu gal uns anos, º tem
po que fºsse necessar i o para se consola r e esquecer .Não queri a uma Leg a ção , cºmo Min ist rº ºu cºmº
Secre tariº ; mas a cei ta r i a de bºa von tade um Cºnsuladº ou uma encarregatura de negºciºs, fºsse onde
fºsse, preferi ndº o Orien te . Esperaria , sem impa
cien cia , até que o seu pa r t i do subisse aº Pºder , ese en t㺠, pºr qualquer mºti vo , n㺠fºsse despachado cºmº desej ava , abandonandº a pºl í t i ca , empreen
der ia uma lºnga via gem , nº t ermº dº qu al seria , pºliticamente , º q ue Deus fosse servidº .
Ao cabº de pºu cos mezes,estava a gºvernar º
seu parndº.
Cºmº ele mºstrava grande dese jº de i r para ºOri en te, fºi o casº versadº em cºnselhº de Min is
t rºs, assen tando-se em mandal -o para S i㺠.
D izi a um bohemio de café , cºmentando º ca sº
N㺠pºdia ser mais a cer tada a escºlha . Para
qualque r parte º Lºpes i ri a bem ; mas em pa r t e nenhuma ele es tar i a tan tº nº seu logar cºmº na Côrtedº Lºng — Corn — que ta l era a graça de S . M .
As G aldé r ias
En trºu , bêbedo como de cºstume, e mal en trºu ,pºrque n㺠t i nha o j an ta r na meza , pregou- lhe uma
bofefada.
Atirºu vse para cima da cama , t rove jando infamias,e só pºr mila gre n㺠esborrachou a creancita que alidºrmia , en rolada n
'
um chale, en tregue aºs cu idadosda Chica , emquantº a mãe , visinha e comadre, i a darumas vºl tas.
Era a casa miz eravel d'uma prºst i tu ta bara ta , sem
ºu tra mºbil i a que não fosse uma cama , duas cadeiras , a arca em que guardava as rºupas e uma mezi ta de pinhº mal t rabalhadº em que faziam as suasrefei ções . Um biombo de chi ta dividia º casinho to , e
algumas imagens de san tºs, cºm retra tºs de tºureiros á mistu ra , recºrtadºs dºs jºrnais , decºravam asparedes , brancas de cal .
A um canto estava instalada a casinha — dois ti
jºlºs en tre ºs qua is faz i a lume quando n㺠prefe r ia8
1 14 SCENAS D A VIDA
mandar vir a cºmida da taverna, em fren te, se para
tan tº lhe chegavam ºs ganhºs . N㺠que lhe fal tasse
a freguezia ; mas º amante n㺠a deixava coalhar
um vin tem , e não satisfe i tº de a rºuba r, ainda pºr
c ima a espancava .
Mui tas vezes pergun tava a si mesma que fºrça i rresist ível a prendia áquele hºmem , um bru tamontes
que nunca t inha para ela um sºrriso, uma cari cia ,um gestº meigº, sequer aº menºs uma bôa palavra .
Se ele me deixasse , matava -me ! .
Quandº º conheceu trabalhava ele de pedreirº e
ganhava belamen te a sua vida, mais deligente dº
que habi l , mas sabendo dº seu ºfí cio º bastan te para
lhe confia rem ºbras de somenos val ia , que exe
cutava sem escusadas demºras. Ganhava mui tº bem,
e cºmº era ecºnºmi cº , a sua casa era fa rta , sem ln
xºs, está bem de vêr, mas nada lhe fal tandº dº queé essen cia l ao confºrtº d
'
uma famil i a pºbre.
Mu i tº arran jada , a sua Margari da , que receberapºr legi t ima espºsa á fa ce da San ta Madre I greja ,tornava- lhe º viver case irº tranqui lº e agradavel , cºm
mui tº gei to para fazer º cºmersinhº, e na cºs
tu ra t rabalhando cºmº se issº fºsse a sua prºfiss㺠.
De mºdº qua º melhºr dº seu tempo , quando nãº
t inha trabalhº, passava -º em casa e n㺠se aborre
cia a cºnversar com a mu lher, lamentandº 1 se a miu
do de n㺠saber umas le tr inhas , cºmpletamen te anal
phabeto.
Olha q ue é uma tris te cºisa uma pessºa n㺠ser
1 16 SCENAS D A VIDA
— A té regala as cachºlinhas, cá pºr den trº .
Seri a fel iz , i n te iramen te fel iz , se ti vesse um filhºmas i a em tres anºs que era casadº, e baldada
mente esperava a tºda a hºra que a mulher apare
cesse no seu estadº in teressante . Seria mais umabºca ; mas i sso apenas º ºbrigari a a ganha r mais e agasta r menºs , dispensando-se do víciº de fumar, se
t an tº fºsse necessariº .
- O hºmem que se deixa dºminar pºr um ví ciº,é mais fracº que uma mulher.E ra cu riosº !Os pais d
'
ela , pºbres a té á miz eria, t inham en
chido a casa de f i lhºs , nada menºs de cincº ; ºs pais
dele , t㺠miz eraveis cºmº ºs d'
ela , chegaram a sentar á meza tres rapari gas e t res rapazes .
]á t i nh a cºnsul tadº medi cºs, e todºs I he dizi am
que n㺠desesperasse, pºrque um belº dia, na hºra
menºs esperada , ter ia º que tan tº desej ava . E le erafºr te, e nunca t ivera doenças , a n㺠ser em pequenº,umas bexigas dº i das e uma brºnqu i te impert inente,no decursº da den ti ção; e ela era tão fºr te cºmº ele,pei tº amplº , bacia la rga , e só cºn tava nº seu registº medi co umas sesões que a encarengaram, t i nha
dezºi tº ano s , apanhadºs na monda dº arrºz . E cit avam— l he ca sos , absºlu tamen te authenticºs, de casaesque estive ram seis
.ºi tº . dez anºs sem terem filhºs,
a cabando pºr l hes chega r de França , n'
uma condessinha , um l indº meninº , o primeirº d
'
uma serie de
t res ºu qua trº .
SCENAS D A VIDA 1 17
Resignava se a esperar , ºuvindo taes i nfºrmes ,mas é cer tº que quem espera , desespera , e ele sen
tia-se resvala r a uma fase de desesperº, que pºr ia
sombras de tristez a na r isºnha t ranquil idade dº seular.A mºcidade
_é um capi ta l que tºdºs ºs dias se
desvalºr isa, e ºs filhº s s㺠º rend'
mentº d'
esse cápi tal, que cºnvem tº rnar productivo antes que pr incipie a sua desvalorisaç㺠.
Ora sucedeu que a Margarida , um dia , en tre sa
tisfe ita e apreensiva , disse— lhe que sen ti a umas cºisasesqu is i tas , cºnstan temen te en jºada , nada lhe sabendoaº que era, e de quandº em quandº aci ca tando-a umdesej º fºrte de cºisas que nunca lhe t inham apete
eido, l imões azedos, pºr exemplo, cabeças de sard i
nha e carne em sangue, t endº já uma vez sa idº decasa , sem ter que fazer na rua , só para n㺠sucum
bir á ten ta ção de comer uma pucarinha de barrº .
E sen tes mexerN㺠mas parece que estºu um bºcadinho mais
grºssa .Levou-a a uma par tei ra examinada , que mºrava
ali pertº, na mesma rua , e dava cºnsul tas de graça ,havendo quem dissesse que prºvºcava desmanchºspºr dinheirº , valendo- lhe nas ºcasiões dif i ceis um me
dico de pºuca clínica, a quem ela mandava pagar generºsamente .
Então, senhºra D . Maria
1 18 SCENAS D A VIDA
Vá preparando º e nxºval , e que Deus lhe dêuma hºra fel iz, que bem º merece .
Entrou- l he uma alma nºva, e a par ti r d'
aquele dia ,na furia de econºmísar, deixºu de cºmprar tabacº ,e aºs dºmingºs deixava — se fi ca r em casa, ou sa ia cºma mulher , n㺠fºsse ter necess idade de en trar na ta
verna , cºm amigºs , fazendo qualquer despez a.
Quei ra Deus que sej a um rapaz !E se fôr uma rapari gaSe fô r uma rapari ga , cºmtanto que sa ia á mãe ,
hei — de querer- lhe cºmº ás meninas dºs meus ºlhos.
O pequeninº ser em fºrmaç㺠, vaga hypothese
d'
um traquinas que den t rº d'
a lguns mezes enchesse
a casa de ru idºsa aleg ri a , mesmº quandº chorasse
sem mºtivº aparen te , era já a preocupaç㺠cºnsta nte
da Margarida e dº mari dº, ela a esprei tar º cresc i
men tº do ven tre , cºmº º ºu tro esprei tava º crescimen tº das hervas, ele a querer apressar a matu ra çãºd'
aquele fru cto , cºmº ºs gulºsºs amaduram ºs fi gºsverdes , a inda na arvºre apalpando o ºs.
N㺠sen tiste agºra , j ºãº ?Gºstaria de saber cºmº a creança estava , de que
ladº t inha a cabeça , se quandº estava qu ie ta era pºra vencer o somno
,e quandº dava pulºs era pºr lhe
dºer alguma cºisa .
Os an j inhºs, a inda antes de vi rem a este mundo, já sºfrem .
1 2 0 SCENAS D A VIDA
Se calhar, queria vêr se º meninº gemia .
Hum ! . Prºvavelmen te º que ele queria era
saber para ºnde º menino tem a cabeça virada , ou
v indº- lhe a respiração da bºca.Vendº que n㺠chegavam a acºrdº, resºlveram i r
consul ta r a par tei ra , que lhe pºri a tudº em pra tºsl impºs.
N㺠é nada d I SSO, sr . Franciscº . O que a gen
te ºuve , auscu l ta ndo º ven tre das mães, é o tic- tac
dº cºraç㺠dºs filhos . Quandº º cºraç㺠bate cºm
fºrça , é porque a creança es tá bem ; quandº ele cº
meça a en fraquecer , é p re cisº mui tº cu idadº, pºrquese pára , é de vez .
Tenha pacien cia , senhºra D . Maria ; gostava
que me escu tasse , porque ás vezes parece — me , que º
meu men inº n㺠se mexe, pºr lhe fal tarem as for
ças .Tendo fei tº uma auscul tação demºrada , a senhºra
D . Mari a declarºu que º menino estava mui to bem ,
cºm a cabecinha para o l adº esquerdº , sendo n'
essa
pºsi ção favºravel que ele rºmperia a marcha , quandºchegasse a hºra de nascer .
Ouve — se bem º coraçãºsinhº, senhºra D . Ma
Ouve — se l in damente ; parece um relºgi º de pa
E ºnde é que a senhora D . Maria põe o ouvi
do para escu tar melhºrAqu i ; mas i s tº va r i a mu i tº .
0 Franciscº marcou cºm ºs ºlhºs º pºntº indi ca
SCENAS D A VIDA 1 2 1
dº pela parte ira , e fºi cºmº se ahi t ivesse pºstº umabalisa .
A' nºi te , assim que se meteu na cama , º pedrei rº
poz —se a auscul tar a Margarida , percºrrendº cºm a cabeça tºda a redondeza dº seu ventre , semnada ºuvi r.
Queres vêr que istº n㺠passa d'
uma refinadissima in tru j i ceCºnten tava º se, á fal ta de melhºr , em lhe sen ti r ºs
pulºs, ºs pºn tapés, dizia a Margarida , cºnvencida de
que º pequenº, para sa cudir ºs pési tos cºm fºrça, seencolhia primeirº , fi cando imºvel da cin tura para
cima , dºbra da a cabeça para a fren te, e ºs bra çºscruzadºs nº pei tº.
A gen te devia ser cºmº os ou trºs an imaes ; assim que nascem , t ra tam lºgº da vida .
Olha os pin tos, qu e engra çadinhos ! Mal saemda cas ca , pingando cºmº se tivessem caido n
'
agua,
metem-se lºgº a traz da mãe , e d'
ah i a pºu co cºmem
pelº seu bicº , sem ninguem ºs a judar.E ºs bacºrinhºs, 6 Margar i da ! Era uma cºisa
que me en tre tinha mu i tº , quandº estava na A ldeia ,ir á malhada das pºrcas , á hºra d
'
elas darem de ma
mar aºs seus le itõesinhºs. O t ino cºm que cada umprºcura a sua têta , mesmo ás escuras , e cºmº elascºnhecem ºs seus fi lhºs , amarelºs ºu pre tºs cºmº
os das ºu tras pºrcas , tºdºs do mesmº tamanhº , tãºparecidºs uns cºm os ou t rºs cºmo ºs bagºs da mesma espi ga
Assim é que a gen te devia ser .Pºis devia. A maiºr parte dºs creanças, an tes
1 2 2
“
SCENAS DA VIDA
dºs dezoi tº mezes , n㺠se mexem sen㺠de rastºs , ea té aos quatrº anos precisam ser guardadas, pºrquen㺠sabem livrar - se dºs perigºs nem prºcu ra r aquilºde que necessi tam . Se n㺠me fal tar º le i te, heideamamentar º nºssº filh inhº a té ao anº e meiº , porque tenhº ºuvido dizer que a al imen ta ç㺠an tes de
tempº dá cabº das creanças.
Se fô r um rapaz, em tendº se te anºs está lºgºn a escºla , que eu n㺠querº que ele fi que para ah i
um alarve cºmº o pai, nem sequer sabendo fazer ºseu nºme . E se tiver cabeça para ºs es tudºs, a té
ºnde chegarem as minhas pºsses , hade i r pr'
o lyceu ,q ue mais não se ja para se empregar nº cºmerciº ,que é uma prºfissão pºu cº trabalhºsa e que dá grande rendimen tº .
Se fô r rapari ga . Gºstava de a fazer modista
de Chapeus, pºrque a cºstura puxa mui tº dº pei tº.
Lá creada de servi r é que eu n㺠querº que el a sej a .
An tes a tenha em casa sem ganhar nada , que para ºseu vestuariº e sus ten tº sempre a gen te hade arran
j a r , se Deus nºs der saude .
Uma rapari ga ! Em menos de nada es tá mulher,e ahi cºmeça a gen te a guardal o a como se guarda
uma arvº re carregada de bôa fructa, pla n tada á bei ra
dº caminhº. Bem en ten dido , não a querº pa ra fre i ra ,e em lhe chegando a ºcasi㺠, se fô r coisa de gei tº ,que Deus lhe pºnha a vir tude . Mas lá cabrices nãº
as consinto . Penetra que me ronde a pºrta para fa
zer pºucº da rapari ga , tem uma carga de pau emcima , que n㺠se a juda a ela .
12 4 SCENAS D A VIDA
Nos primeirºs dias º Gºes , sºbrecarregadº agºra
cºm despez as de medi cº e de bºtica, ia de manhã
para º t rabalhº, vinha a casa na fºlga dº meio-dia,e as nºi tes passava -as á cabecei ra da enferma , sºlici to e ca r inhºsº , recal cando a sua dôr e disfarçando
ºs seus negrºs presentimentos a querer in cu t i r
l he uma esperan ça que n'
ele diminuía d'
hora para
hora .
Tendo- se a gravado º mal , resºlveu não vol ta r aºt rabalho
,sa indº de casa só pa ra ir á bot i ca ºu á mer
cea r ia , pºupando a Fragºsa a essas andanças incº
modas . Fazia dó vel -º mace rado, a tornar- se esqueleticº, dia s e dias quasi sem comer, nºi tes e nºi tesquas i sem
'
dºrmir, naº se a fastandº de aº pé d'
ela
sen㺠para chora r á vºn tade .
E sempre aquelas palavras horr iveis dº medicº ,queimando— lhe º cºra ção cºmo um ferrº em braza
ta lvez a mºrte dº fi lho cºn tr ibua para que a mãe se
salve .
San t íss imº nºme de Deus !
Pºde lá ser fel iz a creança que nasce matando a
mãe, cºmº se n㺠hºuvesse lºgar para os dºis nº
mesmº la r, cºmo se n㺠coubessem ambºs nº mes
mº cºração , al imen tando — se dº mesmo afectº , dupla
imagem do mesmo objecto querido º men inº ]e
sus cheio de gra ça , sorr i ndº nºs braçºs da sua MãeSan tissimaMas el e bem via que a ca tástrºfe seria cºmple ta ;
SCENAS D AãV I DA 1 2 5
que º fi lhº mºrreria sem que se salvasse a mãe , pa
ra ºs dºis abrindo - se uma só cºva , de que uma estranha cºvardia º afastava , um sagradº hºrrºr á mºr o
te cºmº se um miseravel farrapo de existenci a val esse º repºuso absºlu tº, a imperturbá vel tranquili
dade do nada !Acudiam— lhe á bºca ºrações e blasphémias, todas
as preces que lhe ensinara a mãe , em pequen ino,e
tºdas as imprecações que fôra aprendendº na escºla
da vida , mal resi gnada víct ima da j ust iça humana , e
a justi ça divina , que nunca para ele fôra carinhºsa eprometedora , assal tava º agºra , tôrva e inclemente ,brandindo um punhal assassinº . envenenado para mais
seguramen te produz i r ºs seus efei tºs.
Depº is d'
uma observaç㺠cuidadºsa e demºrada ,uma nºi te , chamadº cºm urgen cia
, º medicº declarºu que a creança já ti nha fracºs s ignais de vida ; a
mãe poderia sobreviver- I he a lgumas hºras, mas seriainuti l quan tº se ten tasse para a salvar .
E se a levassemºs pa ra o hºspi tal , sr . dºutºr ?Provavelmen te mºrria nº caminhº.
Não ta rdºu que a Margarida , sol tandº um gri tº dilacerante , se estorcesse em cºnvulsões repe tidas , cºmin tervalºs d
'
uma acalmia le thargica , a mal se lhe ouvi r a respi raçãº. º queixº n
'
uma tremura quasi impercept ível , ºs ºlhºs baços, parados, a humedecer- lhe
ºs labiºs numa li gei ra espuma en tre branca e amarel ada .
1 26 SCENAS DA VIDA
Sobrevem uma cºnvuls㺠mais thea tral que tºdasas ºu tras ; ouve -se um gri tº mais lancinan te e maisprºlºngado que ºs an teriores a pobre enferma , cºmº se a percorresse uma cºrren te electri ca , fi rme nacabeça e nºs calcanhares, ergue º cºrpº n
'
uma gui
nada , e geme, em cºntºrsões dºlºrºsas, a part i r ºcºraçãº.
Sentenceia a D . MariaPrºvavelmen te é a creança que vai nascer .
E fº i dispºndº tudº, n'uma p ressa
,a judada pela
Fragosa , para cº nven ien temen te a cudi r aº an j inhº ,na hypothese , nada prºvavel , d
'
ele nascer com vi da .
Pelas con ta s que dava º Gºes, e pelº que dissera a
Margarida , j á de cama, aqu ilo era ven tre de sete me
zes , e com esta in cºmpleta gestaç㺠mu i tas creançasvivem , mesmo sem o auxi l iº da chocadeira , cºmº asenhºra D . Maria , avêssa a modern ismos , c hamava
á couveuse, mercê da qua l se teem salvº mu i tas exis
tencias condenadas.
N a verdade a creança nasceu mas n㺠dava sig
naes de vida º cºrpinhº rôxº, a fa ce cºngest iºnada
um men ino perfei tº, disse a Fragosa , a querer
men ti r aº Gºes, quasi emparvecidº pela“
dô r, perdi
das tºdas as esperanças desde que º medico lhe dissera que º seu fi l hº já pºucºs si gnees dava de vida
,
e que a mãe de pºucas horas lhe sºbreviveria, se
não mºrresse aº mesmº tempº .
Desembaraçada dº filhº, sem cºnscien cia dº que
se passava , a Margarida pareceu cai r n'
um somno
prºfundº, sem dôres, ºs ºlhºs fechadºs , a respi raçãº
1 28 SCENAS D A VIDA
ver, para ali estava o Gºes, enrºladº a um can tº, semfazer um gestº, sem dizer uma palavra
,mal tºcandº
na cºmida que a Fragosa lhe prepa rava e ºferecia
como se quiz esse mºrrer de fºme , i ncapaz de se matar por um a ctº viºlen tº .
Vamºs lá, senhºr Franciscº, tºme este caldinhºque está mui tº gºstosº. Fºi uma grande desgraça º
que lhe su cedeu mas nem Deus Nºssº Senhºr lhepode já dar remedio , e vºcemecê, a morti f i ca r- sedesta manei ra , e a n㺠querer tºmar a l imen tºs , ar
risca-se a ca i r de cama , podendº fi ca r dºen te para ºrestº dºs seus dias . Vºcemecê é um homem nºvº ;pºde ser que a inda encon tre na vida a fel i cidade que
a gºra perdeu , que a gen te n㺠sabe para o'
que está
n'
es te mundº .
A Fragcsa i a dºrmir a casa todas as nºi tes ; maspela manhã , á hora de abri rem ºs estabelecimen tºs,v i nha para j un tº dº incºnsolavel viuvº , fechandº apºr ta á sua freguesia , sem fazer con ta aº que deixa
va de ganhar , nem sequer pensandº em que vir i a a
se r pa ga de qualque r fºrm a a sua incºmpa rável sol icitude e carinhºsa dedi cação .
Nunca supuz era que um hºmem pudesse amar
tan tº uma mulher ; nem a sonhar lhe passara pela
cabeça que tão viºlen ta , tão desabrida tempestade pº
deria reben ta r den trº dº cora ção humanº sem º ia
zer em bºcados.O Gºes apare cia , assim , aºs ºlhos da Chica Fra
gºsa, aman te de todos ºs hºmens que lhe pagavam ,
SCENAS D A VIDA 1 2 9
mºça da vida cºm regis tº pºl icial , semelhan te a umheroe que fôsse aº mesmº tempº um san tº espe
cie de Hercules para sºfrer e de ]esus para amar.Pºrque n㺠ter ia ela encºn trado nº seu caminhº,
aº cºmeçar a vida , ainda rescendendº á virgindadedº berçº, um hºmem fºrte e amºravel, que a sust ivesse quandº ia a ca ir , que a t irasse dº charcºquandº º avil tamen to dº cºrpº a inda lhe n㺠gan
grenara, sem remediº , a alma
Fº i-se desen torpecendo a pºucº e poucº º malaven turadº Gºes , an imal que a cºrda dum lºngº
somno hybernante , tolhido de mºvimentºs.
A primei ra vez que sa iu de casa foi para i r aocemiterio , abºrdºadº á Fragosa, que n㺠quiz dei
xál-º i r sósinhº, nº justi fi cadº receiº , f racº cºmºestava , de se deixar cºlher pºr um carrº, na possi
vel hipºtese dum desmaiº, sem pessºa ami ga quelhe a cudisse de prºn tº.
O pºucº que restava das suas ecºnºmias, pagº º
medicº,paga a bo t i ca, pagº o enterrº , foi-o cousu
mindo sem trabalhar, e pºrque a Fragosa quasi o
empurrava para fôra de casa . martelando - l he ºs ou
vidos cºm a necessidade de se dis t rai r , de espaire
cer, habituou - se a frequen tar a taverna , menºs parabeber que para cºnversar , mas n㺠deixandº de be
ber os seus copi tos , em sucia , n㺠fºssem tºmal— º
por freguez dº cuspº , a tribuindº á sua abstinencia
proposi tos que º rebaixariam aºs ºlhºs d'
aquela sº
ciedade ,
130 SCENAS D A VIDA
A ssim foi adqu iri ndº º habi to de beber ; o habi tºcreon-l he º gôstº, e de , .t ro em pºucº bebia sem
cºn ta nem medida , sem p re met idº na taverna , nãº
preciz andº j á de cºmpanhei rºs para despe jar copº
sºbre cºpº , n㺠se di spensandº pºr fim , aº recºlher
a casa , de emborcar um decil i t ro d'
aguardente, para
temperar a vi nhaça .
Para º Gºes n㺠havi a a fase a legre da bebe
de ira , aquele per iºdº de fala r in con t inen te e ges tºs
sem medida que resul tam da exci taç㺠dº alcººl sºbre ºs cen trºs mºtºres e da idiaçãº, na quasi tota l i
dade das pessºas que se embebedam . Os primeirºs
cºpºs davam — l he u ma vivacidade ma iºr aºs ºlhºs, masn㺠l h e desenteramelavama língua, e a e sse períºdº
fugaz de exci ta çãº, de que mal se apercebiam ºs
cºmpanheirºs , su cedia uma fase depress iva, nada
ma is fazendº dº que bebe r, mudº e quedo cºmº um
an imal empan turrado.
En trava na taverna dando ºs bºns dias, abalava
sem dar as bºas nº i tes, e nº i n tervalº , de mu i tas
hºras , mal respºndia aº que lhe pergun tavam , i ndi
feren te a tudº . ºuvi ndo as vºzes, mas n㺠reparan
do nas palavra s , de quandº em quandº fechandº ºs
ºlhºs , para ser mais comple tº º seu alheiamento.
Para evi ta r alusões ºu referen cias dire ctas á sua
desgraça , l ogº qu e cºmeçºu a frequen tar a taverna
desembaraçºu'
se dº lu tº, de tºdº º lu tº , nem sequer
cºnservandº no chape u º fumº cºm que º cingira a
Fragosa lºgº nº dia segu in te ao dº enterrº .
Talvez n㺠t ivesse ca idº na bebedeira se hºuvesse
132 SCENAS D A VIDA
dr㺠, cºmº fºsse mais dº seu gºstº ºu es tivesse
mais de cºnfºrm idade cºm as suas aptidões.A pºucº e pºucº fºi empenhandº tudo º que
pºssu ia de va lºr , e cºmº n㺠resgatava as cau telas
i ndo até esquecer - se de pagar ºs j urºs, uns modestos j u ros de dºze pºr centº aº mez , ºbjectº empe
nhado,'
era ºbjectº vendi dº, de tais vendas n㺠re
sultando para ele o menºr benefi ciº .
Numa ºcasi㺠em que se pôs a desarmar a cama,para a reduzi r a cobres, a Fragosa pergun tºu lhe,sem ares de recriminação
Se te desfazes da cama , ºnde queres depºisdºrmir
Aprºvei tºu a sºta para lhe fazer uma prºpºsta
que t raz ia en ga ti lhada havi a muitº e nunca se a tre
vera a fºrmul ar cºm a sufi cien te claresaAssim cºmº assim . O melhº r é deixares o
caci fo e trazeres para aqu i a trºuxa .
I ssº é que eu n㺠fari a pºr cºisa n enhuma
d'
este mundº . Graças a Deus n㺠devº cin cº ré ispart idºs aº meiº , e para º al uguer da minha casa
sempre hei-de a rran jar , o pºntº é n㺠me fa l tar a sau
de. Nãº; escusas de pensar n issº , que é tempo perdidº .
Recomeçou º t rabalhº em que es tava , e que pºr
i ns tan tes i n terrompera, vis ivelmen te con tra riadº cºmas palavras da Fragosa , n㺠se a trevendo , cºn tudº,a discu ti r com el a a sua inabalavel resºluç㺠. ]á t inha ma rchado tudº quan tº tinha cºtaç㺠nº pregº ;a cama era a uni ca cºisa que res tava , pºdendº valer
º custº de meia duzi a de bebedeiras .
SCENAS D A VIDA 133
Deixa a cama em socego , que desta vez aindate arremedeias.
Fºi a casa , n'
um pulº , e vºltºu trazendº nam㺠um fiº d
'
ouro, que pertencera á Margar ida ,e que ele lhe dera , afºgadº em lagrimas, nº dia
em que fô ra aº cemiterio, pelº seu bra çº, havia
tres semanas que lhe tinham levadº para lá a alma
e º cºraç㺠. Teve um mºvimen tº de repu lsa , 0 miscravel, peran te aquela recorda ç㺠da mulher que
tan tº amara , en ternecida espºsa que lhe f izera sentir as alegrias sem par dºs la res bem cºnsti tu ídºs , a
inefavel ven tura da soc iedade matrimºn ia l quandº
tem pºr base º amºr sem calculº , a fel i cidade d'
uma
pºbresa hºnrada , que tem tudo quantº deseja , por
que só dese ja º que pºde ter . Fºi um actº da me .
dula,rapidº e sacudido , em que n㺠tºmºu part e º
cerebrº, escurentadº pelo vinhº.
Quandº j á n㺠tinha l i teralmen te nada que empe
nhar, ºbrigadº a despejar a casa pºr n㺠trazer ºaluguer em dia, a cei tºu º ºferecimen tº da Fragºsa,para viverem jun tºs, cºnt inuandº ela , para susten tº
dºs dºis , º seu desgraçadº mºdº de vida .
Vês Se me tenhº desfei tº da minha casa ,estavamºs agºra bem servidºs.
Miseravel, despresivel, nunca mais teve nºç㺠dºdecôrº. nem vislumbres de vergºnha, degradadº
aba ixº da cºndi ção humana . Incapaz d'
um sent imen tº
nºbre , sem energi a física para qualquer actº prest i
134 SCENAS D A VIDA
moso , sem energia mºral para qualquer actº dignº ,º vi uvº da pobre M argarida era º vício na sua expressão mais abjecta, era º crime na vi rtu al i dade
das suas fºrmas infin i tas .I ncendia rio Ladr㺠A ssa ssi nºO que as ci rcu nstan cias de terminarem, sem ini ci a
t iva para qualquer fºrma de actividade u ti l , sem re
sistencia para as sºli ci t ações que a Mºral condena ea Just iça pune.
Fºi n'
estas a l tu ras da vida que º Gºes, uma ta rde,en trando em casa , bebedo cºmº de costume , se a tirºu para cima da cama , t rovej ando infamias, só pºrmilagre n㺠esmagandº a cri ança que ali dºrm ia , enrol ada n
'
um chale, emquantº a mãe, visinha e coma
dre, ia dar umas vºl tas, nº grangeio da vida .
Furiosº porque não encºnt ra ra º j an ta r na meza ,n㺠tendo , aliaz , hºras cer tas de j an tar, esbofeteo u a
pºb re Fragosa , que mais se l i gara a ele desde aquela
vez em que um ru fi a dºs mais temíveis e mais t e
midºs nº Bairro A l tº , chamando- lhe vadi a ecºnºmica , a separara viºlen tamente dº Gºes, apalpandolhe º rabº cºm fºrça . Caiu- l he em cima , º Gºes , aºspºn tapés e aºs murros, pregando — lhe uma sºva tal
que t iveram de º levar d'
al i em braçºs, gemendºcºmº na salve- ra i nha .
Nem chegou a passa r pelº somno , che io de vinhº
a té aº nó da guela , e ainda ass im parecendº lhe que
t inha º estºmagº vasiº, sem cºmer desde a vespers.
136 SCENAS D A VIDA
a derradei ra vibra ç㺠d'
uma cºnscienci a que se extin
gue .
Mas ela , a esvai r — se em sangue , ºuviu que lhe
chamavam assassinº ; v iu que o prendiam , nºtºu qu ese dispunham a lynchal-º , e n
'
um esforçº em que
cºnsumiu º pºu co que lhe restava de fºrças, º quas i
n ada que l he restava de vida , deixandº ca ir sºbre
ele º seu ºlha r amortecido, cheiº d'
amºr e p iedadeN㺠º culpem , que ele n㺠me fez D isse
que i a deixa r-me . que tem ºu tra ! e eu , en tãºn㺠pºdendº viver sem ele , preferindº a
'
morfe aºabandºno . peguei na fa ca .
N㺠acabºu ; estava mºrta .
Bo is mansºs
Quandº sººu na A l deia que a Amelia Rºdriguesia casa r cºm º mestre An tºniº, º cºmentariº de todºs fº i es te mal empregada !
A Amelia era uma rapariga perfeitaça e desembaraçada , mais simpa ti ca que bºni ta , um vagº typode ci gana , sem as essenciaes caracterist i cas dessa
gente bohemia . De esta tura mais dº que meã, umbºcadinhº cheia sem adiposidades de mulher gôrda,uma levissima penugem sombreando— lhe o labio superior , a Amel ia era a mais requestada cachopa da A ldeia ,reques tada a té pºr mºços que já tinham alguma cºisa
de seu ºu eram herdeirºs presun tivos d'uma fºrtuna
srta rasºavel .Cºm todºs bri ncava , parecendº que a tºdºs dava
tréla, mas cºnservandº sempre l ivre º cºraç㺠, apostada em gosar a mºcidade sºl ta cºmº a rôla na
eira .
Constou , um dia , que ela prºmetera casamentº aum mºçº de Messejana , cºm quem balhara tºda a
138 SCENAS D A VIDA
nºi te , pelº S . Pedrº , e que nunca mais deixara
de lhe arrasta r a asa, aparecendº amiudº na A ldeia ,e de cada vez que apa recia tendº artes de se en
con tre r cºm ela, na rua ºu cami nhº dº pºçº , para
uma cºnversa l igei ra . Era pena que viesse um lºbºde fóra rºubar a melhºr ovelha dº rebanho ; masn㺠havia impedimen tºs a pôr-lhe, se tal era a vºn
t ade da Amelia, já em bôa i dade de se casar , em
bºra pºr ali, nºs sí ti ºs, a regra fºsse casarem as
rapari gas , nº avisinhar da t ri n tena , andandº ºs mºçºs
pela mesma idade.Era men ti ra , e cºmº º pretendidº nºivº , seare iro
quasi l avradºr, seria um bom partidº, um ºptimº
parti do , para qualquer mºça pºbre , as senhºras vi si
nhas n㺠poupavam cri t i cas á Amel ia , e maliciºsa
men te preguntavam se ela estaria á espera d'
algum
pri nc ipe encan tadº ºu dº rei da A lexandria , se é queS . M . era sºl te i rº .
Que mai s quer ela Um rapaz que n㺠tem
nada que se lhe diga , e já senhor d'
um arranjº que
vale um bºm par de vintens.
O rapaz herdara do pa i um pequenº ºl ival , uma
cºure líta de que pagava fôrº, e umas casas de moradia , que habi tava cºm a mãe . Semeava terras aºquartº , e cºmº tivera sorte cºm as searas, era vºz
cºrren te que tinha aº can tº da arca uma manche iade dinheirº .
Qualidades tºdºs lhe recºnheciam ; defei tºs n i n
guem lh'
os apºn tava , a n㺠ser uma acen tuada prº'
1 46 SCENAS D A VIDA
A Amel ia , se t ivesse pºsses , nem a Rainha luxava cºmo ela .
Gºs tava de vesti r bem , º melhºr que pºdia , e
c omº issº era º un ico defei to que lhe apºn tavam ,
bem se pºdia dizer que a Amelia, além de ser umaperfe i ta mºça , era uma mºça perfei ta .
De restº , tºdas as mºças da A ldeia eram cºmº aAmel ia , só cºm a diferen ça de n㺠terem as mãºs de
pra ta que ela t inha , e uma fºrça de vºntade peran te
a qu al n㺠havia ºbstaculºs inven cíveis. A febre dºlu xº a i nda n㺠alastra ra pelºs campºs, i n tensa e do
m inador a cºmº hºje ; º vestuar iº, nas cidades, vi lase a ldeias , balisava as d iversas camadas sºciaes sem
embargº de fºrmulas de demºcraci a pra t i ca , que
n'
estes ul timºs tempºs se pe rderam , cºnfundidas n'
umi gual i tarismo que , além de inºsthetico, é ridículo.
A grande guerra veiº n ivela r as classes peran te ºsapa tei rº, º a lfa ia te e a cºs tu rei ra , n㺠escapandº a
es te rasºiramentº a gen te rust i ca , só pºr mil a gren㺠se tosqu iando a inda as mºças da aldeia , cºmº
as senhºras da cidade , desde º mais hºrrivel calha
maçº á mais esbel ta dºnz elinha . Mas j á as con ta
giou a mºda das sa ias cur tas, mal tocandº a curvadº j ºelhº , e pernas que n'ou tro tempº nem sº
nhariam cºm meias d'
algºd㺠, já se afizeram á sêda,uma céda aº alcance da gen te pºbre, sêda t㺠pºuo
cº resisten te, que nº prºpriº dia da estreia, muitº
esti cadas , abrem buracºs.Estimada de todos, de tºdºs merecendº respei tº
e a ten ções, quandº se espalhºu que a Amelia i a ca
SCENAS D A V IDA 1 41
sar cºm º mestre A n tºn iº , n㺠hºuve na A l de iauma só pessoa que a n㺠desse pºr mal empregada— uma rapari ga t㺠prendada , t㺠agradavel , a inda
uma creança e já cºm o mºral d'
uma pessºa grande.
O mestre An tºn iº . fi lhºte dº A l ga rve , era sapafeiro d
'
obra grºssa , pºucº amigº de trabalhar e mui toamigº da súcia.
Apareceu ali, na A l deia , uma bela manha , vinharºmpendº º sºl, t razendº a alcôfa das ferramentasna m㺠esquerda e um taleigº de rºupa na mão di
rei ta , rasºavelmente t ra jadº ,'
calçando alpergatas á
mºda heSpanhºla, cºm sºla de cºrda . N㺠era cigano nem mal tez ; podia mui tº bem ser um desertº r
cºm pºucº tempº de praça , preferindº trabalha r emliberdade, mesmº cºrrendº º ri scº de º mandarem
para a s pedras negras, a t rabalhar nº casão , fa
ze ndo bºtas para tºdºs ºs pés .D inheiro trazia algum , pºrque nº dia segu in te
pa gou adian tadº º a lu guer d'
uma casi ta em que seinstalºu , mobilando-a sumariamen te — uma tarimba
que lh e servia de cama , duas cadei ras com assen tºde hunho , uma grande e ºutra pequena . D eu-se º
fal iz acasº de pºr al i fazer caminhº, n'
aquele dia ,
um loi cei ro de Berinjel, que lhe vendeu uma quar tapara agua , dua s panelas e um p ra tº vidradº ; uma
t i jela grande , para sôpa , uma ti jelinha que servi r i ade cºpº , para n㺠beber pela quarta , e um al gu idarpara lavar as mãºs e a cara , pºdendº tambem servir de caçº ila, quandº fºsse precisº .
142 SCENAS D A V IDA
N in guem lhe pergun tºu d'
ºnde vi nha, e a tºdºs
pa receu desnecessario pergun tar- l he para ºnde ia, nãº
só pºrque a luga ra casa , pagando aº mez, segundº º
a juste que fizera , mas pºrque se mºstrava dispºstoa mºbilal 'a cºnven ien temente, em termºs de n
'
el a
vive r sem lhe fa l ta r n ada dº que cºmpete á permanen te moradia d
'
um hºmem só.
A viuva dº mest re Galºpe , tambem sapa tei rº, cedeu — lhe a tripeça dº ºfí ciº a t i tu lº de emprest imº, a
tripeça e a pedra de bater sºla , cºm a ºbrigaçãº
d'
ele ensina r º seu rapaz mais nºvº lºgº que º gaia
tº t ivesse prestimo para alguma cºisa . Gºstava que
º fi lhº t ivesse º mesmº ºfi ciº dº pa i , excessivamen
te debi l para ºs t rabalhºs dº campº, e dºtadº de
cer tº fe i tiº para a rt is ta , mais aperaltado'
que ºs ºu :
t rºs mºçºs , um pequenº labrºste acepilhadº cºmal
gum esmero para f igu rar n'
uma sºci edade mais pº
l i da . Caracterisandº ºs seus gestos adamados e sa
lientandº as suas redºndezas feminís, ºs ºu trºs mo
çºs chamavam- lh e D . Ana , pondo- se lºgº a bºm
reca tº, pºrque ele t inha a m㺠leve, e nº j ºgº da
pedra cºmº se fºsse maiºral , era tem ível . Só paran㺠v i ver separada d
'
ele é que a mãe º n㺠meteu
a ca ixe i rº. n'
uma lºja da Villa, para º l ivra r d'
aquele
in fernº,a cada instan te ºuvindº gri ta r O
'
D . Anas i lvando as pedras cºm que o fi lhº respºndia a
t㺠in j usta e deprecia t iva al cunha .
Ao cabº de pºu cºs dias cºmeçºu º mestre Antº
niº a trabalhar , e ºs pr imeirºs freguez es que lhe
144 SCENAS D A VIDA
sapatei rº, e depºis, tambem , pºrque correra fama
d'
ele trabalhar bem e n㺠ser careiro , º que lhe va
leu bôa f reguezia dºs Mon tes , perdidº cºmº já ia o
velhº usº e cºstume de irem ºs sapa tei ros trabalhará jºrna a casa dºs l avradores .
Por aquele tempº a inda as charnecas alemtejanas
eram uma triste real idade , vastíssimas charnecas ºn
de abundavam ºs cºelhºs e as zorras , n㺠fal tandºº l ºbo cerval , denºminação específica na lin guagem
regi ºnal is ta que serv ia para designar um bi chº de
grande corpul en cia , de requ in tados inst in tºs ferºzes,e capaz de se bater cºm os rafeirºs mais valen tes .
Frequen temen te, os rebanhºs, de nºi te, rebanhºs de
ºvelhas e ram assal tadºs pºr um lºbº ºu pºr uma
a l ca teia,f i can do es tripadas , na rêde, umas pºu cas de
cabeças . O lºbº n㺠mata só para cºmer mata para
sa t isfazer ºs seus insti n tºs sangu in arios , an imal depresa que n as en tranhas palpi tan tes da ví ctima encon
tra º supremº gôsº da sua vida de carn i ceiro.
Uma ºvelha chega e sobeja para um lºbº se ban
que tear; mas para cºmer uma , ele ma ta umas pºucas ,o casº é puder , e a matar sa tisfaz uma gulodice ,cºmº a cºmer sa tisfa z uma necessidade .
Rafei rº que n㺠andasse a rmado, di fi ci lmen te se
batia cºm um lºbº dºs grandes , em duelº singular .
Cºnsis ti a a armadura dºs rafe irºs n'
uma larga cº
lei ra de co iro, que lhe protegia º pescºçº, munida
de fivelas,geralmen te duas, semelhan tes ás que nºs
bºtíns usavam os maio ra is . Pregºs aguçados como
SCENAS D A VIDA 145
chºupas cravej avam a cºle i ra , mu i tºs pregºs , sendº
impºssível que O lºbº abºcasse o rafei rº pelº pescoço sem fica r cºm as guslas rasgadas.Faziam se ba tidas pºr cºncertº entre ºs lavrado
res , e as Camaras davam um premio de qua trº mi l
réis a quem apresentasse a pele, a inda fresca , d'
a l '
gum d'esses fa cínoras dº matº. Eram dias de festa ,ºs das bat idas , cºm fartura de badana e vinhº á dis
crição . Ca çadºres dº sí t iº n㺠fal tava um , mu i tºsd'eles pedindº a Deus que nenhum bichº lhes passasse a gei tº de t i rº, porque n㺠teriam a cºragem ne
cessaria e º sangue frio sufi cien te para fazerem umapºntari a ce r tei ra . A verdade é que ºptimºs caçadores de cºelhºs , lebres, perdizes, hºmens que se di
zia que ºnde punham º ºlho lá punham uma bala ,ati randº aºs lºbºs eram desastrados marte le irºs, atremer — lhes a espingarda na m㺠cºmº se estivessem
cºm º friº d'
uma quartã . Confessavam eles que an
tes de verem 0 bichº se lhes punham ºs cabelºs em
pé, e quandº ºs alve javam , metendo-os bem na bºcada espingarda , era c ºmº se lhe ºuvissem dizer, a rreganhando a den tu ça ameaçadºra a t i ra , mas ºlha
que se n㺠matas, morres . Era crença geral n a fa
mil ia dº campº que em O lºbº vendº um hºmem ,
de noi te ºu de dia, mesmº que º homem o não veja ,a este se põem ºs cabelºs em pé salvº º casº deser careca. Os maiora is parti lhavam d'esta crença ,alguns afi rmandº ter lhes acºn tecidº issº mui tas vezes, resul tandº prºvidencia l º caso, pºrque lhes per
mit ia darem va ia aos cães chamando -os em seu sºcºrrº .
I O
1 46 SCENAS DA V A
Pºi s n'aquele tempº a inda eram uma t ris te realidade as charnecas alemtejanas. nº ba ixº Alemtejº , euma d
'
essas charneca s vinha bater nºs quin tais da Alº
deia , del i ciando -se ºs mºradºres, em cer tas nºi tes,a
ºuvirem º can tar das zorras , mu itº mais esper tas e
manhosas que in tel igen tes.
Pºrque fi cava al i á m㺠a charneca , abundan te de
caça , tºdºs ºs hºmens val i dºs da A l deia eram caçadores, e caçadºr se fez º mestre An tºn iº, que nun cat inha met idº uma espin garda á ca ra . Exerci tou - se a t i.
rando aºs passarºs , nas mºntureiras, e na primei raºcasi㺠que teve , meteu - se na jºlda, tendº pagº a paten te uma rºda de vinhº á famil ia na abalada
da A l deia . A estreia fºi auspiciosa , pºrquan tº matºut res cºelhºs , em ti rºs de chºfre , e uma perd iz que i a
a grande a l tura , cºmº que a desaf ia r a l inha , segura
de que n㺠l he tºcaria um bagº de chumbº .
Bem fei ta , mestre An tºn iº Bem fei ta l .A
'
nºi te, na taverna , fºi devidamen te celebrada a
façanha dº novel caçadºr, sendo ºpin i㺠gera l queele viri a a se r, dandº- lhe usº, a melhºr espin garda
da freguezia.Aºs olhºs das mºças casadºiras, mes tre An tºn iº
cresceu um palmº, e d'
i sso se apercebeu ele, notandº em mui tas um acºlh imen tº mais car i cioso , mais
amavel, e nºs respectivºs derriçºs uma express㺠deciume, que era, afinal de cºntas, um si gnal de despei tº .
A ta l pºn tº se apa ixºnºu pela ca ça , que era ouvi r
um t i rº abalava lºgo , de espingarda aº hombro, na
48 SCENAS DA VIDA
En trºu mestre An tºn iº a scismar nºs dizeres davelha , acabando pºr se cºnvencer de que ela t inha
razaº .
Fi gurava a hypothese de adºecer, e vi a -se para al i
aº desamparº , nº abandºnº dºs sem-famil ia que nãº
pºdem pagar servi çºs e dedica ções . Tinha uma i n s
tintiva repugnancia pelº hºspi tal , sõ condescendendo
em ir para lá quando v isse que n inguem lhe chegava
aº pé, e ainda seria precisº que lhe fal tasse a cºragem ou º vigºr pa ra se ma tar cºm um t irº.
Bem fei tas as cºn tas, o que ganhava , º que pºdia
ganhar , chegava perfei tamen te para fazer vida d'
ho
mem casado, e viveri a com º maiºr desa fogo, se amulher º a j udasse , i n dº uma vez por ºutra aºs tra .
balhºs dº campº , quandº a j ºrn a fºsse de apetece r.Fºi a ssim que ele se poz a cºnsidera r as mºças
da A l dei a , nº tandº as qual i dades e ºs defei tºs de
cada uma , n㺠se pre cipi tando na escºlha para evi
t ar a lguma arriºsca de graves cºnsequen cias .Pºr mero acasº encon trou-se cºm a Amel ia Rº
drigues, uma tarde, quasi aº pôr do sºl, vinha ele da
ca ça e t i nha el a idº busca r aº matº um feixe de le .
nha .
Venha cºm Deus , salve-a Deus , e aqu i v㺠ºs doisa caminhº da A ldeia , el a a jou j ada aº pêso da lenha ,ê l e tºdº p impão cºm tres cºelhºs á cin ta, e uma
perdiz, que nem uma gal inha , pendurada dº chum
bei ro .
D e quando em quandº a Amel ia parava , l evandºas mãºs aº feixe, que lhe curvava a cabeça, e en tãº
SCENAS D A VIDA 1 49
º mestre Antºn iº sentia a fascinaç㺠dºs seus ºlhºs
negrºs, fundºs e mvsteriosºs, a graça , o encantº, abeleza d'aquela penugem macia que lhe sombreava ºlabio superiºr , e era cºmº que um traçº de crayºn
tºrnadº quasi imperceptível pelº esfuminhº .
Separaram — se aº chegarem á A ldeia , i ndº cadaum para sua casa , ele a pensar que seria fel iz casando cºm a Amelia , ela a pensar que n㺠faria º menºr sacri fi ciº ca sandº cºm º mestre An tºniº.Renovaram -se ºs encºn trºs , sempre pºr a casº ,
umas vezes nº caminhº dº pºçº, ºu tras vezes no caminho dº barrancº , t㺠discretºs, ele e ela , que afami l i a da A ldeia se n㺠apercebia de tal namºrº ,nem mesmº aquelas senhºras visinhas que andam
sempre de nar iz nº a r, bebendº tºdos ºs ven tºs, nãová escapar- l hes a lguma nºvidade.
N㺠t ardaram as declara ções francas, as prºmessas rei teradas, ºs juramen tºs d
'
amºr eternº . Tra ta
riam dº casamen tº lºgo que ele recebesse da terraºs papeis que ia pedi r , e que eram apenas uma certid㺠de idade e a testadº de que era hábil para casar, viuvo ºu sºl tei rº .
Faz de cºnta que n㺠temºs nada um com º
ºutrº . Quandº nºs encºn tra rmºs, a n㺠ser n'
algum
sitio ºnde n inguem nºs oiça , sºmºs duas pessºas que
mal se cºnhecem salve a Deus senhºra Amel ia,
salve-º Deus mestre An tºniº , e pºr aqu i me sirvº.
A gen te vê caras e não vê cºrações ; as bºas falas dº mestre An tºnio pºdiam encºbri r ru ins propo
sitos, e nada garanti a que ele n㺠fºsse casadº lá n a!
156 SCENAS D A VIDA
terra , capaz de levar º embuste até aº ultimº ex
t remº .
Depºis de cá estarem ºs papeis, º casº é ou
O cºmprºmissº de casar, tºmadº vºlun tari amen te ,em pºucº al terºu a cºnducta dº mest re An tºn iº ,mais dadº á espingarda que á sºvela, mais amigº dasu cia que dº t rabalhº, vºl ta e meia pregadº na t a
verna , cºpº vai, cºpº vem , ch egandº pºr ult imº aembebedar-se i gnobi lmen te, apez ar de ser, na A l dei a ,O hºmem que pºdi a cºm mais beb ida .Mu i to senhºra “ dº seu papel , a Amel ia n㺠fazi a
um gestº, não d iz ia uma palavra que a denunciassecºmo derriça dº mestre An tºn iº, su a espºsa prometida , nem sequer á mãe dandº parte dºs seus proposi tos .
Tem mui tº tempº de saber, quandº eu fôr pe
d ida .
A mãe n㺠gºstava do mestre An tºn iº, um figurãºque n inguem sabia de que terra era, ta lvez algarviº ,cºmº ele dizia , embºra º n㺠parecesse pelº fal a r, tal
vez de casa dº diabº, que f i ca tres leguas para ládºs quin tºs in fernºs . Tantº embirrava cºm êle , que,precisandº d'uns sapatºs, fº i cºmpral ºs a Ervidel, já
fei tºs, só para n㺠l he cruza r as pºrtas .
O cºraç㺠das mães tem singula res predi cadºs di
vinatºriºs, e º da mãe da Amel ia Rºdrigu es dizia- l heque aquele hºmem havia de causar a sua desgra ç a .
152 SCENAS D A VIDA
Os caçadºres. se ele se metia na jºlda, n㺠º man
davam embora ; mas l imi tavam- se a respºnder a al
guma cºisa que ele pergun tava , deixandº ver cla ramen te que ºs n㺠i n teressava a cºmpanhia .
N a taverna já º seu dinhei rº não andava na casa
dian teira, e notavam ºs seus velhos cºmpanhei rºs de
sucia que ele, em se podendº escamugir, faz ia de
cºn ta que n㺠era da pandega , quandº lhe chega
va a vez de dizer aº taverneiro hô te lá , sr. Manºel .
Trabalhº sempre lhe aparecia al g um , mais prºcuradº para cºncertºs que para cal çado nºvo
, apez ar de
recºnhecerem todos que a ºbra que lhe sa ía das mãos
era bem acabada, e a sua paga não era excessiva.
Sempre gºstava de saber que mal fi z eu a est agen te, para me tra ta rem de tira — virão
,al guns a rro
deando caminhº só para n㺠cruzarem cºmigº
En tre tantº receb ia º mestre An tºn iº ºs papeis quepedira , dºcumen tºs necessariºs para casa r, e lºgº a
nºva se espalhºu de que ele casa ria cºm a Amelia ,devendº realisar-se º casamentº em breves audien
ci as .
Não houve na fam i l i a da A ldei a uma un ica pessºaque não fizesse este cºmen tariº, si n ceramen te ma
gºado mal empregada
A mãe da Amel ia ºpºz -se term i nan temente a que
ele fºsse pedíl'
a , ju randº que º pºria na rua se ele
t ivesse º a trevimen to de lhe cruzar os pºr ta is da pºrta .
D iz i a a quem quer ia ºuvil v a
N㺠pºssº prºhibil—a de casar, pºrque já fez
SCENAS D A VIDA 153
vin te e dºis anºs , e a lei está a seu favºr ; mas cºmo trongo dº marido nunca me en tra rá em casa , nem
que eu sin ta a mºrte nºs gorgomi los .
Tra tou º mestre Antºn iº de preparar a sua casa
de sol te i ro para o seu viver de casado, prºblema fa
ci l mas um bºcadinhº d ispendiºsº , embºra a Amelia,rapariga pºbre , a esse respei tº n㺠t ivesse exigencias acima da sua cºndiçãº.
A casa tinha tres divisões, e um qu in ta l cºmpoçº .
Uma das divisões , a da entrada , seria a ºfi cina ;ºu tra seria cumula t ivamente cºsinha, d ispensa e casa dejantar ; a tercei ra , cºm uma janel inha para º qu in tal ,quasi uma fresta , seria º quartº de cama .
Casa havia ; fa l tava a mobil ia , e esta fal ta era embaraçºsa, pºrque º mestre An tºn iº estava á div ina .
A sºgra n㺠daria nada á filha , nem sequer uma ca '
deira , uma vassºura ºu um capaxo, condescendendo
em de ixal-a sa i r de casa levandº a rºupa de seu
usº.
Depºis de matu ta r no caso, mestre An toniº tºmºuuma resºluç㺠heroi ca pedir dinheirº ao sr. Fi
l ipe Gºmes , que era º hºmem ri cº da aldeia . Pºuca
l idação tinha cºm ele ; mas tºda a gen te º considerava um hºmem fran cº , n㺠prºpriamente um mãºs
rôtas, mas pessºa amiga de servi r, quando lhe pe
diam emprestado , e amigº de bemfaz er , quandº lhepediam esmºla .
Pedi r - lhe— hia cincoen ta mil re i s, cºm a prºmessade lhe pagar a pºucº e pºucº , e mais depressa lhe
154 SCENAS D A VID A
pagar i a se ele quiz esse dar lhe t rabalhº, º que — até
então a inda n㺠fizera .
O sr . Fil ipe Gºmes era um sol tei rão in corrig íve l ,ja cºm ºs quarenta em cima dos hombros , mas ri jº
e desempenado cºmº aº dºbra r ºs t rin ta . Professava
a maxima zool ogi ca cºm apl i ca ç㺠aº generº humanº um bºi sºl tº lambe-se tºdº . A i nda mui tº nºvº ,acabava de se l ivra r das sºr tes, deixou -se embei ça rpºr uma lavradora dº cºn ce lhº de Odemira , que cºnhecera em M il Fºntes , n
'
uma tempºrada de banhºs ,só n㺠casando cºm ela pºrque a bôa da serrenha
l he pediu uma espera de qua tro mezes , e antes'
de
fi nda r esse p razº se expl icºu com um cachôpº que
parecia um nºvilhº . ]urºu aºs seus deuses n㺠pen
sar mais em casar, e comº perdera de tºdº a cºn
fi an ça nas mulheres, j urºu tambem n㺠ter .aman te
teuda e manteada, cºns ide randº que a mancebia ,sem ter nenhuma das presumidas van tagens dº casa
mento. tem tºdºs ºs seus in cºnvenien tes conhecidºs .
T i nha em casa uma creada que se lembrava mui tº
bem d'
ele te r nascidº, e da fes ta ri j a que hºuvera
pºr ºcasião dº seu baptisadº , j us tamen te nº dia emque ela faz ia dezoi tº anºs. Para a pequena l ida da
casa , chegava mui tº bem uma só creada ; mas º sr.
Gºmes tºmara encargº d'uma afilhadita sem pai nemmãe
,mºr tºs ambºs cºm i n terva lº de pºucºs mezes.
n㺠l he sºfrendº º an imº ver a mºça pequena , ain
da i n capaz de qualquer trabalhº u t il, que lhe t endes
156 SCENAS D A VIDA
gava medicº e botica , e mandava - l hes a casa , a cada
um cºnfºrme a su a doença , ºs adequadºs meiºs pa
ra se al imen tarem .
Todºs na A l deia O estimavam , pºrque tºdºs lhe
deviam favºres , e além de º est imarem , respei tavam
n'
o pºrque ele n㺠era mºle de queixos. Um anº,
na fei ra de Castro, n'
uma ba rraca de bacalhau fr i to,
pegºu1 se de razões cºm um valen t㺠de Almºdovar.
e cºmº das pal avras passassem aºs actos, zurziu º
homem e mais u ns quatrº fulanos que o acºmpanhavam , pondo-os em tal estadº que n enhum pºude
sa i r d'
al i pelº seu pé .
Era mui to desembara çado, e cºm um bom cacete
nas u nhas era homem para varrer uma fe ira . Fe
lizmen te que ºs hºmens cºmº º sr . Gºmes , va lentes nº mais r igºrºsº signi fi cadº da palavra , nunca
são desordei ros nem prºvºcadºres ; a cei tam as si
tuações que lhes criam ; n㺠vºl tam a cara aº pe
rigo que ºs ameaça , e quandº precisam afi rmar ºs
seus briºs e pundonor fazem - n'
o a den t rº da justa
medida , cºmº que prºcurandº que a legí t ima defeza
n㺠tºque as raias da agress㺠desnecessaria .
D iz ia-se á bºca pequena que º sr . Gºmes tinhaamizade com a mulher d
'
um algarviº , que t rabalhava
na sua herdade , arvorado em fei tor , um paz d'
alma
que andava n'
este mundº por ver andar ºs ºutrºs,animal dºcil que n㺠sacudiria a canga dº matrimºnio, a inda que ºs respectivºs canz is se lhe espetas
sem na cabeça . A verdade é que esses amºres adulterºs, se era cer tº exis t irem , n㺠eram ºbjectº de
SCENAS D A VIDA 157
escanda lº, havendº mui ta gen te que ia j ura r que º
sr . Gºmes, talvez pºr defei tº de nascença , n㺠precisava de ser san to , pºrque lhe seria impºssível nãº
se r casto.
Sem dize r nada á Amelia , mestre An ton iº fºi bater á pºrta dº sr . Fil ipe Gºmes, que mal º cºnhecia , enem sequer era seu freguez , talvez de prºpºsi tº de
li berado , ta lvez pºr n㺠ter necessi tadº, até áquelemºmentº, de utilisar ºs seus servi çºs . E era º demºntº , uma recusa , pºrque n a A ldeia n㺠havia
mais n inguem que pudesse servil 'º , e fô ra da A l deian㺠t i nha ele credi to para levan ta r um pin tº . Aseconºmias da Amel i a chegariam escassamente para
as despez as dº seu enxºval , reduzidº aº mín imº .
V is tº a mãe n㺠cºnsen ti r que º fu turº genrº lhe
puz esse ºs pés em casa , achava a mºça que º me
lhºr era n㺠haver fun çãº, passando-se tudº cºmºse de casamentº se n㺠t ra tasse , saindº ela de casapara a V i lla , acompanhada da madrinha , e da Villaregressandº ela e ele à A l deia , ins tal ando - se em suacasa sem a classi ca jantarada e º balhº cºrrelativº .
Fôra e cºn t inuava a ser mui tº amiga da mãe , e
segura estava de que a ºpºsiç㺠que ela fazia aºseu casamentº , a pºn tº de a deixar sa ir de casa cºmo uma creada despedida , derivava t㺠sómen te dºmuitº amºr que lhe tinha , pºdendº ser tambem um
pºucº de ciume , n㺠querendº part i lhas n'
um afectº
a que se jul gava cºm direi tºs exclusivºs . Mais tarde ,quandº a visse fel iz, quandº recºnhecesse que º seu
158 SCENAS D A VIDA
An tºn iº lhe dava a es timaç㺠devida , vºl ta ria a serpara ela º que sempre ti nha s ido mãe amºravel
capaz de tºda s a s dedicações e sa cr i fí ciºs, e paraele , º genrº, uma sºgra afectuosa , a desmenti r alenda .
Far-se º hia º casamen tº sem funç㺠mas nem pºri ssº ele deixaria de fazer despez as que n㺠cabiam
nº seu ºrçamen tº , e cºmº n㺠podia lan çar impºstos. recº rria aº empres timº, cºmº ºs Gºvernºs fazem .
Bateu deva gari nhº , a mêdº , á pºrta dº sr. Fi lipeGºmes, e foi a mºça pequena que veiº abri r , per
guntandº — l he º que queria .
O sr . Fi l ipe está em casa
Está .
D i ga lhe que está aqu i o mestre An tºniº quedesej a dar — l he uma palavri nha.Fºi a pequen a cºm º reca dº, e vol tºu sem demo
ra , dizendº aº mestre An tºn iº :Faça favºr entre cá para dentrº, que º meu
padrinhº já vem .
N㺠se fez esperar º sr. Fil ipe ,mal pensandº noq ue lhe queri a º mestre An tºn iº, cºm quem mal troca ra meia duzia de palavras, uma tarde, encºntran
do —º casualmente nº caminhº da V i l la .
Fei tºs ºs cumprimen tºs , mestre An tºn iº exp licºuaº que vinha
O sr . Fil ipe hade desculpa r º meu a trevimen tº,mas a gente , quandº precisa, a quem º pºde se rv i r
160 SCENAS D A VIDA
levar ja º dinhe irº , ele es tá aqui ºuvindº a con
versa .
Pºis se º sr. Fil ipe me faz º favºr .
Meteu a m㺠n a a lgibeira da j aque ta , a al gibeirade dentrº , t i rºu déla uma bºlsa de riscado , da bolsa
t i rºu ºnze libras que passºu ás mãºs dº mestre A nton io, acrescidas de cincº tostões em pra ta , que ti rºuda al gibei ra dº cºle te.
Cºnte
Não é preciso ; vºcemecê já cºn tºu .
Pºssº ter-me enganado .
Cºn tºu ; estava certº .
Abalºu , desfazendo -se em agradecimentºs, e pro
metendo pagar logº que as ci rcuns tan cias lh'
º per
mitissem. Ser ia agora mais ass íduº nº t raba lhº , me
nºs frequentadºr da taverna , e a ca ça que ma tasse,em vez de a cºnsumir na pangalhada, cºmº a té en
tão , reverteria toda em seu exclusivº prºvei to , vendendo o que restasse dºs gas tºs de sua casa .
Se a jºrnada a casa dº sr. Gºmes seria a est radade Damascº em que se operasse a convers㺠d
'
a
quele Paulo de sºla e vira
Fi cºu á pºrta , º sr . Gºmes, até º mestre An toniºdesaparecer, dºbrandº a esqu ina mais prºxima , re
colhendo - se ent㺠, a murmurar pºr en tre den tes
Tem má pin ta , o raiº dº hºmem .
Andava num brincº a casa da Amel ia , pºucº guar
SCENAS D A VIDA 161
necida de mºbí lia , mas cada cºisa nº seu lºgar, asparedes mu itº brancas de cal, e º sº alhº , de terraba ti da , sempre tão varri dº , t㺠l impinhº, que até sepºdia lamber º mel que n
'ele caísse.
N º quin tal , cºm abundancia d'
agua , um quasi nada
salôbra, semeara salsa, cºuvinho, hºrtelã e coen trºs .
Cºm º alho entra em quasi tºdºs ºs man jares dºpºbre , n
'um grande taboleiro de terra fôfa, caldeadacºm cinza , plantºu ela alhos, cºm cebºlinho á mistu ra . Esta abundancia hor t ícola permi t ia- lhe ser geh erosa para cºm as visinhas, que pareci a es t imaremn'
a , tan tº quan tº detestavam º marido.
A s artes que teve este fi gurãº, para casar cºma melhºr mºça da A ldeia ! Nem a gente sabe ºndeela tinha a cabeça quandº lhe prºmeteu casar cºmele. Em casa n㺠lhe fal tava nada ; a mãe tudº eraadivinhar-lhe as vºn tades, n㺠a cºn trari andº emcoisíssima nenhuma . Para casar assim , an tes f i ca rsºl teira tºda a vida.
De quandº em quandº a Amelia i a v isi tar a mãe ,e nunca perdi a ºcasi㺠de lhe diz er que º maridº
era mu i tº bºm para ela , já frequen tava menºs a tavern a, i a raramente á caça e en tregava lhe tºdº º
dinheirº que ganhava .
Estimo i ssº mui tº. mas que ele n㺠se a treva a
pôr —me ºs pés em casa, porque º enxoto lºgº para
a ru a .
A verdade é que º mestre An tºniº, nºs pr imeirºstempos de casado, pareceu entra r n
'
ou tra regra de
vida ; mas issº fºi sºl de pouca dura . A pºucº eI I
162 SCENAS D A VIDA
pºu cº ele fºi re tºmandº velhºs habi tºs, a maiºr part e dº tempº passando-º n a taverna ºu nº matº , es
quecidº dºs cºmprºmissºs que tinha para cºm ºsfregueses, ºs pºucºs que a inda cºnservava, pºr cºmºdidade , n㺠valendº a pena i r á V i l la , distan teuma legua bem medida, só para dei ta r meias sºlas
n'
umas bºtas ºu remendar cºmuma tºmba um sa
pato que se rºmpêra.
Quandº a mãe da Amel ia sabi a que º genrº aba
l ara da A l deia , cºm a espingarda , cal culandº que ele
só vºl tar i a á nºi te , mandava chamar a fal ha , e cºme la repart i a a sua cºmida , almºçº ºu j an ta r , nunca
se esquecen dº de lhe dize r que para ela a meza es
tava sempre pºsta , n㺠querendº que passasse ne
cessidades, havendº na su a casa cºm que lhe pudes
se valer.Tenho esperanças que aquele maldi tº desapa
reca cºmº apareceu , i mportando-se tantº cºnti gº
cºmº eu me impºrtº cºm º tempº que há -de fazer
d aqu i a um anº . Se assim fôr, e queira Deus queassim seja
, 0 mais depressa pºssível , n㺠tens senãº
que fechar a por ta , e vi r p'
ra minha cºmpanhia , por
que º que cá deixºu , cá encºn tra .
Credº ! Para a minha mãe n㺠ha em tºdo º
mundº hºmem peor que º meu .
E não ha,que duvida l he põe ? E mais a gen
te n㺠sabe o que ele fez an tes de vi r aqui parar,
pºucº me custando a acredi tar que entrasse n'
algum
roubº ºu mºrte d'
homem .
j esus, que é san tº 0 nºme de ]esus ! A mãe
1 64 SCENAS D A VIDA
O'
Chica , l eva istº á minha mãe, e diz — lhe quemandº eu , que é para º seu j an tar.A pequen a fº i n
'
um pé e vº l tou nº ºu t rº , traz endo o cºelhº, pºrque a mãe da Amel ia n㺠o quiza cena r.
— Leve lá º cºelhº á senhºra Amel ia , e diga— l he
que eu es tºu prºibida pelº medi cº de cºmer carnede qualquer especie .
Nºs velhºs tempºs em que decorreu es ta h istºri a ,e nºs sí tiºs em que ela decºrreu , vendia — se um coe
lhº pºr tres ºu qua trº vin tens; uma lebre , quandº se
vendia cara , vendia - se'
pºr dºis tºstões, º que só
su cedia por fes tas dº calendariº , baptisadºs ºu casa
mentos . A carne da lebre é seca , mui tº mai s seca quea do cºelhº. Guisada cºm batatas é excelen te ; mascosida cºm arrºz e gr㺠de bi cº era um dºs melhºres jan ta res que se cºmiam em minha casa , de bôa
mas pºuco variada cºsinha.
Tudº era bara tº, n'
aquele tempº , e mais bara tº
dº que tudº era o t rabalhº humanº . Ganhava um
hºmem, nº campº, a trabal har de sºl a sºl , menºs
dº que hºje ganha numa hora , e as mulheres, en tão,coi tadas , só pelº factº de serem mu lheres, nun capassavam dº salar io -miz eria, o sala ri o — fºme , mal ga
nhando para º cºncer tº dºs sapa tºs as que traba lhavam longe de casa
,na mºnda, n a apanha da azai
tºna ou n a cei fa .
A s peugas e as meias , t rabalhº casei ro , eram o
l uxo de pºu cºs hºmens e de mui tº pºu cas mulheres,sendo frequen te n
'
um ranchº de tri n ta mºndadeiras.
SCENAS D A V I DA 165
por exemplº , n㺠haver mais que um ºu dºis paresde meias para tºdas . As l igas eram uma t i ra d e panº,sem ºu trº pres timo. quandº n㺠eram uma especiede tºrcida , apertada abaixº do j ºelhº .
D i z ia O mestre An tºnio,desdenhoso dº que a mu
iber ganhava , procurada pa ra tºdºs ºs servi çºs, por
que em tudº era perfei ta e desembara çada cºmº pou
cas
Ganhºs de mu lherNem sequer reflecti a que sem esses ganhºs min i
mos já ele teria en tradº na regra dº je j um fºrçadº.mas je jum sem consoada , nem sequer enchendº a barr i ga na refeiç㺠do meio —dia.
Uma tarde, t i randº º aven tal , n'
um repen te, pegºunº chapeu e na espingarda e abalºu , porta — fôra , nap ressa de quem va i t i ra r º pai da fºrca .
O'
hºmem , que mºsca te mºrdeuVºu buscar um cºelhº para a ceia.
N'
esse dia, comº em mu i tºs ºu trºs, º jan ta r fôraum naco de p㺠e uma isca de toi cinho crú , escu
sando— se a Amel ia a cºmer dº toici nho pa ra que elet i vesse ma is abundan te cºndu tº .
Quasi n a ºrla dº ma to , de gu a rda a uns bacºritºsencontrºu o tiº Franciscº Garcia , pºbre velhº quefôra um esfºrçadº trabalhadºr , e se via agora reduz i do a fin gi r que ganhava o cºmersinhº que lhe davam, pedindo a Deus que du rassem emquantº ele vivesse ºs fa rrapºs que º cºbriam .
Bºas tardes, t i º Francis cº .
166 SCENAS D A VIDA
Venha cºm Deus, mestre An tºn iº .
Apeteceu o lhe fi ca r ali, um bºcadº , a cºnversar cºmº velhºte, que ás vezes lhe aparecia em casa , mui tºam igº da Amel ia , da mesma idade dº seu primei rone tº , cºm º qual fôra creada , a mãe d
'ela dandº de
mamar aº pequenº , que mais tarde , sendº já homem
sinho , abalºu de casa , uma nºi te, n㺠havendº maisnºt i cias d
'
ele .
An tes tenh a mºrridº, do que ande pºr esse
mundº , desgra çadº.
Cºm a manga da jaqueta l impºu º tiº Francisco
ºs ºlhºs , a fºgadºs em lagrimas, e repr imindº um sº
luçº, que t inha en tal adº na gargan ta, disse aº mes
t re An ton iº , dandº nºvo rum o á cºnversa :Es t a terra , para a su a A r te, n㺠deve ser má .
Depºis , comº n㺠ha ou tro
O mes tre An tºn i o disse que sim , que a A ldeia nãºe ra má para um A r t is ta da sua cl asse, mas que eleviera para ali em má hºra , pºis nunca fôra grande a
freguezia, apez ar de n㺠haver ºu trº mestre dº mes
mº oficiº , preferi ndº mui ta gente i r aºs sapateiros
da V i l a a dar- lhe a ele que fazer.E'
bem cer tº que ºs san tºs de casa não fazemmilagres , e eu nem sequer da casa sºu .
O tiº Fran ciscº, prºcurandº an imal — º , disse- lh e
que a freguezia, al i cºmº em tºda a parte, n㺠vemde repen te que é precisº dar tempº ao tempº . Aprin c ip iº havi a a descºnf iança dele n㺠se demºrar,passarº de arribação um belº dia vae - se, da mes
ma fºrma que veiº . Agºra nãº. Casadº cºm uma
168 SCENAS D A VIDA
n㺠se fazem de graça, nem as mondas nem a cei fa .
Se eu t ivesse pºsses para tudo is tº , tiº Franciscº , nãºprecisaria de semear uns baguinhºs, pºrque mesmº
sem i ssº teri a º necessariº para º gºvernº da m inha
vida .
D esculpe,mestre An tºnio , mas vºcemecê , n'
este
part i cu la r, n㺠discorre — bem . Qualquer lhe empresta
tri gº para a semen te, e uma ºu duas geiras de bestas, paga — as vºcemecê a dei ta r meias sºlas . A Amelia fa z - lh e a mºnda e a cei fa, sem a a juda de n i n
guem , e cºm um bu rrº e umas cangalhas, se º ca
minhº fô r curtº, em meio dia põe vºcemecê º pãºna eira . ]á vê que 0 casº é mais simples dº que selhe a fi gu ra , e se vºcemecê tºmar º meu cºnselhº,verá que n㺠se hade arrepender.
E a terra , t iº Fran ciscºOra a terra Se vºcemecê pedir ao lavradºr
Fil ipe um bºcadº de relva , ele n㺠l he diz que nãº.
E até , se o apanhar de bôa ca tadura , empresta - l he
a semente e dá- Ihe as geiras qu e fºrem precisas .Tome º meu cºnselhº , mest re An tºniº, e verá , seDeus º a judar ; que nunca mais anda á espiga fa
l ida .
Ha uns pºucos de mezes que vivº aqu i, na A ldeia , e l idação comº lavradºr Fi l ipe , n㺠tenhº ne
nhuma . E le n em sequer é meu freguez . Que mais nãº
fºsse , em tºdº este tempº já pºdia ter mandadº a
minha casa um par de sapatºs ºu u rn as bº tas para
qualquer pequenº cºncertº . j á -me lembre i que tal
vez º homem n㺠gºs te de mim, sem ras㺠nem mo
SCENAS D A VIDA 169
t ivº. e pºr i sso faz de cºn ta que na terra n㺠ha umsapatei rº, mandandº á V i la para º mais insign ificante remendo . De mºdº que se eu lhe fºsse ba ter ápºrta .
Se lhe fºsse bater á pºrta , estºu que vinha delá servido. E le gºsta de obsequiar , e mesmº pessºasque mal º cºnhecem , gen te que n㺠é da A l deia ,pedem - lhe favºres que ele pºdia mui tº bem recusar.e ele serve-as de bºa vºn tade , ás vezes cºm a certeza de que n㺠lhes pºrá mais a vista em cima . E'
uma bela pessºa , mui to obsequiador, mui to amigº deservi r .
E ra ja ta rde para i r ca ça r no matº, e era ahora aproposi tada para fazer uma espera aºs coel hºs.O tiº Francis co despediw se , enrºlandº ºs bacºri
tºs e pondo-os a caminho da A l deia, e º mestre Anton io , para mais bem dispºstº cºm a cºnversa , fºipôr-se a traz d
'
uma grande junquei ra, nº barrancº
que passa al i pertº, cºrrendº cºmºs ºlhos a ºrla dº
matº , a ver se al gum mi tra, a sapelguear, se lhe vi
nha ºferecer pa ra a ceia .
j á do sol n㺠havia nºt icias , sen㺠pelº tºm ver
melhº ºu a cobreado que t inham algumas nuvens al
tas, e na A ldeia cºmeçavam ºs telhadºs a fumegar,sem chaminé a quasi tº tal idade das casas , a tornarse mais densa , a cada instante , a sºmbra que ia en
chendo ºs vales , mal se ºuvindº nº silencio da nºi te
prºxima, uma vibraç㺠de vida.
170 SCENAS D A VIDA
Levºu tºda a nºi te º mestre An tºn iº a ruminar aconversa que tivera cºm º tiº Franciscº, ás vºl tas erevi ravºl tas , como se al i est ivesse Morphen e andas
se a j ºgar cºm ele, em cima da cama , º j ºgº da ca
bra cega .
Qual dºrm i r nem meiº dºrmir !
O velhºte, n'
um encºn trº d'
acaso, sumariamente
i nfºrmado ácerca das afl i ct ivas ci rcuns tan cias da su a
vi da , dera - l he um cºnselhº que ele dese j ava tºmar,e apresen tara — lhe um caminho que ele t inha medº de
segu i r .Cºm que ca ra havia de i r ºu t ra vez a
'
casa do l a
vradºr Fil ipe , a pedir-I he fºsse º que fºsse, se a indalhe nãº
'
pagara ºs ci n coen ta mi l réis que ele lhe em
prest ara , sem'
nenhuma garan ti a e quasi sem º cº
nhecer ?
Mas se fechasse essa pºrta , se n㺠ten tasse esse
recurso , a miz er ia i nsta la r-se-hia defi n i t ivamen te em
sua casa , certº j á a gºra de que n㺠recupe i aria ºs
freguez es que perdera e tendo pºr i gualmen te cer tº
que nºvºs freguez es naº viriam .
A mulher n㺠pºdia a juda ! — º mais dº que a judava ,sõ f i cando em casa quandº n㺠havi a trabalhºs dº
campº, e em casa fazendº rºupa que lhe encºmen
davam , e quando n㺠t inha encºmendas , fazendº
meias de l inhº ºu al gºd㺠para ven der .Pegou nº somno já aº cla rea r da manhã, e tendº
dºrmidº pºucº mais d'
uma hºra , sal tºu da cama cºm
1 72 SCENAS D A VIDA
Tenhº cá pensadº , Amel ia , que a gen te nãº
pºde , pºr mais que fa ça , passa r tºda a vida assim .
Umas vezes n㺠temºs para º almºço , ºu tras vezes
n㺠t emos para º j an tar. e quando Deus quer nãºt emºs para º j a n ta r nem para º almºçº , dandº - nos
pºr fel i zes se temºs um bºcadinhº de p㺠sêcº para
a ceia . Cºnfessº que , pºr m inha culpa , perdi umabôa parte da freguezi a que t inha, mas el a n㺠vºl
t ará por ma is que eu faça , e sem ela º ºfí ciº nãº
rende para cºmer.Calºu '
se, por i ns tan tes , cºmº que a reflec ti r , ecºnnnuºu
Se tivessemºs uma searasinha, sempre era umaa juda. Os t rabalhadºres da aldeia, que vivem só da
j ºrna , sem mais nada , passam a vida negra que nós
passamºs , mesmº os que teem filhºs que já trabai ham, ca çandº tºdos para a mesma mochila . Os
que semeiam , governam — se bem , pºrque a cearan em sempre
'
é ruim , e ºs que n㺠semeiam , mas ganham t r i gº em salariº , esses escapam sofrivelmen te,
0 pºn tº é haver saude . Tenhº matraqueado mui tº
n'
i sto, e parece —me que descºbri a maneira de sa irmos de tamanhº aper tº , se t ivermºs a sºrte de encºntrar uma alma Cºmpadecida.
Hºje em dia ha pºu cº quem se compadeça ,
N㺠é tan tº assim . Bem sabes que ainda esta riamos nºivºs, se n㺠t ivesse encºn tradº um hºmem cºm
padecido que me empres tou o dinhei rº para as despesas do casamento .
Pºis sim , mas lavradºres Fi l ipes ha um só , na
SCENAS D A VIDA 1 73
A l deia , e talvez em tºda a freguezia se n㺠encon
tre ºu tro cºmº ele.
N㺠vºu fóra d'i sso, e tan tº ass im que nº lavrador F i l ipe é que eu pensº para nºs a cudir maisuma vez .
Essa agºra é melhºr ! A i nda lhe n㺠deste
cin cº réis do dinhe irº que ele te emprestºu e jáqueres ir pedir
º lhe mais ? Olha que é prec i so terbôjº para uma cºisa d essas.
Será º que tu qu izeres ; mas quandº a gent en㺠tem sen㺠uma vereda para i r aº seu destinº , épºr ela que tºma , sem olhar aº que pºssa acºnte
cer. Ora ouve bem º que eu te vºu dizer, e n㺠tearru fes an tes de tempº.
Fez uma pequena pausa , e prºssegu iuA minha ideia é es ta : Tu ámanhã vaes a
casa dº lavradºr Fi lipe , e dizes — l he que eu já t inhaqu inze mil réis para lhe da r, mas precise i ir a Beja ,
por causa dº tal rapaz , e quiz i r preven idº cºm al
gum dinheirº, para º que desse e viesse. O hºmemhade meter cºnversa , e tu en tão falas — lhe da seara ,para acudi r ás nossas precisões , e se ele n㺠se descose r cºm º ºferecimen to , pedes - I he tu um bºcadºde terra e uma mancheia de tri gº, prºmetendo quetudº será pagº na cºlhei ta .
A mentira está mu i tº bem arran j ada ; mas eué que n㺠tenhº cara para me apresen ta r na casadº hºmem , e dizer- lhe essas pan tominas tºdas quet u tens estadº para ahi a alcatear. A minha crea
ç㺠fºi ºu t ra .
1 74 SCENAS D A VIDA
A tua creaç㺠foi ºu tra ; mas a gºra tens quefaze r º que te digº , ºu n㺠tºrn as a pôr-me a vis ta
em cima , que eu n㺠es tºu para viver n'
es te i nfernº,
sempre cºm fa l ta de tudº, ás vezes querendº um
bºcadº de p㺠, e n㺠0 tendº nº tabolei ro, metendº
a m㺠nas alg ibeiras , á prºcura d'
um vin tem, e só
e ncºn trandº cotão.
Aº que eu havi a de chegar San ta Mãe de j esus !Bem creada , mal fadada , e sabe Deus se a inda te
rei de sºfrer mais enxºvalhºs e passar pºr maiºres
Deixa- te de can t igas, mulher, que cºm issº
n ada remedeias . A s colsas s㺠º que s㺠, e tudº º
ma is é his tºria . Bem en tendidº, tu n㺠dizes á tua
mãe uma palavra d'
esta cºnversa ; ela tra tava logº de
te despersuadir, mas n㺠se l embrari a de nºs man
dar cºm que encher a cºva d'
um den te .
“ Abalºu º mestre An tºn iº , da A l deia , dizendo quei a para Beja, palmi lhando º caminhº de noi te , por
c ausa dº calºr , sem receiº de maus encºn trºs , a r
madº d'
um fan gueiro de zambu jo.
Mal se levan tºu , nº dia seguin te, pela manhã , a
Amelia foi ter cºm a mãe, e cºntºu- lhe , t im - t im
pºr tim-tim, a cºnversa que na vespera t ivera com º
maridº.
Tu n㺠fazes semelhan te cºisa , Amelia ! Era só
o que fal tava .
A mãe diz mui tº bem ; mas se est ivesse nºmeu lu gar .
1 76 SCENAS DA VIDA
Só as crian ças se enganam cºm prºmessas,e
só ºs medrºsºs se acovardam cºm ame aças . N㺠seperde sen㺠quem se quere perder, e eu tenhº
mui ta cºnfian ça em mim , para andar pºr tºdºs ºs
caminhºs , a tºdas as hºras do dia e da nº i te , semmedº de ca i r em armadi lhas.
A'
mãe ouviu — a em si len ciº , pal ida e fr ia , mudacºmº a esphinge , con t rafei ta cºmº a dôr, i nquie t a
cºmº º desesperº . Tambem ela, a pºbre mãe, cºmo
tres dias antes º mestre An ton io, havi a tºmadº um aresºlu çãº. I ri a pa ra casa d
'
uma i rmã viuva. que t i .
nha nos Gasparões, certa de que a filha se perderia ,explºrada pelº marido , e n㺠querendº que a su a
presen ça n a A l deia d'
algum mºdº auctºriz asx
se a
suspe i ta da sua i ndiferença ºu da sua cumpl ici dadena pra tica de tamanha infamia .
Prºcurandº tºrna r f i rme a vºz um bºcadinhº t re
mula,mal en carandº a fi lha
,que a inda n㺠era cul
pada , mas t ambem já n㺠era, pelºs vagºs pensa
mentos deshonestos que se adivinhavam nas suas
palavras , aque la crian ça i nºcen te , tºda candura e
me igu ice, que lhe sa ira de casa para se un i r áquelemºnst ro, a sogra dº sapateirº disse á Amelia
Comº o teu maridº só vºl ta lá para º fim dasemana , n㺠precisas i r j á ámanhã a casa dº l avra
dºr. Prometes me que só i rás na quin ta- fe i raPrºmetº , mas cºm uma cºndi ç㺠a mãe não
dirá nada sej a a quem fôr da cºnversa que agºra ti
vemºs , e dº passº que eu vºu dar.
SCENAS D A VIDA 1 77
Prºmetº.
Nº dia seguin te, á nºi te dºrmia tudº na A l deiaa mãe de Amel ia metia se n um carrº que a espe
rava na estrada de Mºntes Velhos , e a l evaria paraºs Gasparões, fugida cºmº da peste.
Bateram devagari nhº á porta dº lavradº Fil ipe, e
lºgº a mºça pequena , sua afilhada, foi vêr quemera .
Vºcemecê quer alguma coisaO sr . Fil ipe está em casaEnt rºu agºra mesmº pela pºr ta dº qu in tal .Olhe, menina , diga 1 lhe lá que está aqui a mu
lber dº mestre Antºn iº, que lhe dese ja fala r.Fºi a pequena levar º recadº in v cºntinenti, man
dandº en tra r a senhora Amelia, para º escr iptorio
dº sr . Filipe , uma casa ladri lhada em que ele t inha
uma pequena mêz a cºm gave ta, quatrº cadei rasd'
Evºra, uma grande arca de castanhº, cºm“fecha
duras,e um bahú preto , cºm pregaria amarela , que
desempenhava as funções de cºfre fºrte ,
Assen te- se , fa ça favºr , que º padrinhº j a vem .
E fect ivamen te o sr. Fil ipe n㺠se demorºu , e encontrando a senhora Amel ia de pé , fel-a sentar v se
na cadeira mais prºxima da sua , dº mesmº ladº dasecretária
,em cima da qual havia papeis, uma re
gua , um tin tei rº de chumbº, uma caneta, uma bºrra
cha e um grande ou riçº dº mar.En t㺠diga lá º
'
que desej a .
1 78 SCENAS D A VID A
Levan tou - se a Amel ia , em signal de respei tº, e ar
regaçando um bºcadinhº º aven tal cºmas duas mãºs ,mui tº cºmprºmetida , medrosa e acanhada , dispºz
*se
a dar º seu re cadº .
O sr . F i l ipe hade desculparPois sim , eu desculpº tudº, mas vºcemecê hade
sen tar- se , que eu assim não ºiçº bem .
Es ta genti leza dº l avradºr , que para tºda a gen te
era a tenciºso e del i cadº, poz lºgº a mulher dº mes
t re An ton io á vºn tade , j á sem lhe tremerem as per
nas e sem embaraçºs na fa l a .
O meu An tºn iº é que estava para vir fal ar cºmvºcemecê , mas an te hºntem fº i á V i l la , e lá sºubeque um primº , de quem é amigº , cºmº se fºssemi rmãºs, está nº hºspi ta l de Bej a , mui to dºente, e pediu já umas pºu cas de vezes para º chamarem , por
que n㺠quere mºrrer sem tºrnar a vêl —º . Del iberoulºgº abalar, e cºmº em Beja n㺠cºnhece n inguem,
º dinheirº que t inha , e que eram qu inze mi l ré is, já
apar tadº para lh'
º vir t razer pºr cºn ta, levou — º, queistº, comº o ºu t rº que diz , quem vai para º maravia -se em terra . De mºdº que me disse para euvi r fala r cºm º s r. Fil ipe , con ta r-l he º sucedidº , e
pedi r- l he desculpa d'
este trans tºrnº qu e nºs ºbriga
a fal tarmos á nºssa palavra . O primeirº dinhe i rº que
acarearmºs será para vºcemecê , que hade fazer a
esmºla de nºs espera r ..
O seu maridº n㺠me prºmeteu pagar hºj e ºu
amanhã, nem eu , g raças a deus , estºu preci sado dadinheirº, a pon tºs de me fazerem fal ta meia duz ie
1 80 SCENAS D A V A
nheirº ; a debulha ninguem a faz pelº amor de D eus.Costuma — se dizer que quem n㺠semeia n㺠cºlhe :
mas º que hade semear quem n㺠tem nada de
seu
Pois olhe, senhora Amelia , se º seu marido est iver disposto a semear uns baguinhºs, eu empresto
lhe a semen te , dºu lhe a terra de graça e as ge irasque fºrem precisas . Em recºlhendº a seara, paga-meº que puder pa gar, que ás vezes a mexa n㺠dá
para º cêbº .
I ssº é uma grande esmºla que vºcemecê nºsfaz , sr . Fil ipe. O meu An tºn iº, em eu lhe dizendº ,f i ca dºidº de cºn ten te . Tambem , só assim , nós po
deremos desenvencilhar a nºssa vida .
E rgueu se a senhºra Amel ia com sua l i cen çan㺠querendº prºlºn gar mais a cºnversa , cºm
mêdo de abºrrecer, e renºvandº os seus agradecimen tºs , disse ao sr. Fil ipe que tan tº el a cºmo º mar ido estavam aº seu dispôr, se pudessem servir - lhe
para a lguma cºisa .
Quem dá º que tem mºstra º que deseja , e quemnada tem , cºmo nós, que mais pode fazer senão
mostra r º seu recºnhecimen tº fa zendº tudº º que assuas fra ca s pºsses lhes permi tam
Era º mºmen tº decisivº da despedida.Passe bem , sr . Fi l ipe.
Vá se cºm Deus , senhºra Amelia .
I a ela a pôr um pé fóra dº escr iptor io quandº º
l avra dor a deteve, para lhe pergun ta r
Vºcemecê n 㺠me disse que º seu mar i dº le
SCENAS D A VIDA 181
vºu para Beja tºdo º d inheirº que t inha em casaPºis disse
, sim, senhºr .
Mas, en t㺠, cºmo é que vºcemecê se gºvernaaté ele vol ta rA Amelia baixºu ºs olhºs, córandº. e a sua mudez
envergºnhada fº i a respºsta que deu .
M eteu o lhe na m㺠t res mil ré is em mºedas de
cincº tºstões , e disse - lhe que não t ivesse acanhamento de o prºcu ra r quandº se visse em apertºs,pºrque da melhºr vºn tade a servi ria .
O lavrado r Fi l ipe esta va fartº de cºnhecer a Amelia, mas pareceu - l he que a via agora pela primeir avez.
Pºr acasº , ta lvez mais prºvavelmen te por coque
tismº , ela deixara ca ir para ºs hombros º len çº quetrazia na cabeça , um lençº amarelº cºm mui tºs de
senhºs, salp i cado d'
ºlhºs brancºs , presº em nó frºixºpºr baixº dº queixº . Tinha º cabelº negrº de azev iche , naturalmen te ºnduladº, e calcu lava º sr. Fi º
l ipe que afºgandº — se naquelas ºndas ter i a uma vidalºnga de cºmple ta fel i ci dade.Que bem lhe fi cava a penugem , macia de veludº ,
que lhe sombreava º labio superiºr , e que frescu rahavia na sua boca de labiºs vermelhºs
,t alvez escal
dan tes de mal cºn tidºs desejºs ! N unca vira mulherda sua raça que mais se parecesse cºm uma ci gana
,
mas tambem nunca vira uma cigana que realisasset㺠perfei tamen te esse typo de beleza .
182 SCENAS D A VIDA
Segura s lhe cºm ºs ºlhºs º arfar dºs seiºs tumidºs,que ele adivinhava , a travez da ba ta , serem mºrenºs
e ri jos, cºmº ºs pei tos da Sulami ta , º mamilº aspero e vermelhº como ºs medrºnhºs pequeninºs !
Repêz º agºra , t arde e a más hºras , de n㺠te r ca
sado , a aproximaç㺠da Amel ia , embºra de curta duração, fez desper ta r nº l avradºr Fil ipe represados
inst i n tºs de sexual idade, e um sen t imen tº de vi da fa
milial sob qualquer fºrma , que é a base de tºdas as
ºrgan isações sºciaes, desde as mais elementa res ásmais cºmplexas .Que estupidº fôra em dar aº casº excepciºna l da
serrenha de Odemira ºs fórºs d'
uma regra invariavel , sendº certº que as mulheres, na sua grande
ma ioria , s㺠hºnestas , e a prºva está na fa ci l idade
cºm que se apºn tam as que fal tam aºs seus deveres,casadas ºu sºl tei ras !
Aº menºs pºdia ter arran jadº uma aman te , uma
rapari ga pºbre que se lhe dedicasse, sen㺠pºr amºr,aº menºs por gra tidãº, e em qualquer dºs casºs en
chendo º vasiº da sua ex is ten cia de sºl teirº , privadºdas cari cias feminis que perfumam a vida, mesmº
quandº, por fal ta de prºle , a deixam incºmpleta .
Cºmo que acºrdara , º l avradºr Fi l ipe, d'
um lºngº
somno hvbernante , somno duran te º qual não per
dera fºrças , parecendº an tes que acumulara energias,dada a necessida de que estava sent in dº de as tºrnar
pa ten tes , exerci tando-as cºnfºrme a Na tureza manda,a N a tureza que sempre rea ge quandº a cºn trariam ,
184 SCENAS D A VIDA
tu ra e sem - experien cia ,“ t imidº e assustadiço comº
um animal braviº , e abria - os agºra , nº esp lendord'uma au rºra bºreal, na ala cridade d
'
um sºl dºs trºp i cºs, luminºsº cºmo um fºcº ele tr i co e quen te cºmº uma fornalh a acesa , pondº nas cºisas a nimadas
ou i ner tes vibrações e anceiºs d'
uma alma a trasbºr '
dar d'amºres e desej ºs .
A A l ga rvi a
Esse mos tren go de n ariz grelado, desengonçada e
magra , fecu nda cºmº as coelhas. fr i a cºmº as gea
das , a A l garvi a nem sequer lhe fizera vislumbrar º
gôsº que só pºdia dar - l he a fel i cidade que resul ta
d'uma posse dese jada , a pºsse d
'
um bem que se de
sej a .
Para fugir de si mesmº, arrancando-se ás suas he,z itações, negras de pez ares e flºridas de esperanças,º sr . Fil ipe abalºu de casa , á prºcura de cºnversa ,i ndº lan çar fe rro na Adega do sr . Rºm㺠Salvadºr,que ali se en cºn trava , pºr acasº , cºm uns amigºs,provando um vinhote que n㺠t i nha queridº ven
der, reservando -º para º gastº da sua casa vinhº
preparadº cºm especiaes cu idadºs .
A Amelia , chegando a casa , fechºu a por ta e ºposti go ; a ti rou -se para cima da cama , an iqui lada , ta
pando ºs ºlhºs cºm a m㺠, pºrque a luz a incomºdava . Queri a esta r só e ás escu ras ; sºndar as profundez as da sua cºnscien cia , para tºma r uma reso
SCENAS D A VIDA 185
lu ç㺠que decidisse dºs seus in cer tºs dest inºs . Se riacomº se a joelhasse no al ta r, pe ran te o San t íssimºSacramentº, revelando — l he ºs seus ma is í nt imºs pen
samentºs, ºs seus mais vagºs , menºs bem defin idºs
proposi tos , supl i cando - l he a graça d'
uma inspiraçãºque a fizesse tºma r pelº melhºr caminhº , Era já amulher vir tua lmente adu l te ra
,a pedi r a cumpli cidade
ºu º perd㺠de Deus para º seu adu l terio realisadº.
A fi nal , a mãe t inha rasão.
O maridº, cada vez menºs amigº de trabalhar e
de cada vez mais amigº da suci a , nº que pensavaera em negºcia r cºm ela , entregal- a aº hºmem que
º pudesse susten ta r á bºa vida, cºmendº dº bºm edº melhºr , folgando na taverna nºs i ntervalos da
ca ça . Sen tia que ele a a t i rava para ºs b ra çºs do l a '
vradºr F i l ipe , pºr sordido calcu lº de vadiº , a quemrepugna tºdº º trabalho hºnes tº . A hºnra da mul ber, bem en tendidas as cºisas , era verdadei ramente
a terra em que ele se prºpunha semear , t endº sempre bôas cºlhei tas, quer chovesse quer fizesse sºl .Não t i nha a menor duvida a es te respe i tº , cºmº du
vidas não t inha sºbre º que ele faria se resolu ta.
men te con tra r iasse os seus planºs , desobedecendo ásua vºn tade anoi teceria e não amanhece r i a , e nuncamais ela lhe pºria a vis ta em cima , cºnfºrme a ameaça
que lhe fizera nº prºpriº dia em que abalara para
Beja.
Se algu em lhe t ivesse di tº, uns m ezes a tra z , que
1 86 SCENAS D A VIDA
havia de escravisar se áquele hºmem , sacri f i candolhe a prºpri a hºnra , pºr mór d
'
elle perdendº º res
pe i tº de tºdºs , o que era mui tº, e perdendº mui tº
mais de que issº, a amizade , capaz de tºdºs ºs sa
crificiºs, da mãe para quem ela fôra sempre um aí ]esus ºnde te pºrei , se alguem lhe tivesse di tº istº ,mezes a traz , ela n㺠a credi tar i a em semelhan te vaticiniº e tºmal -o ' hia por grave ofensa .E , comtudº, º Bandarra nunca prºfetisºu cºm
mais a cer to .
A mãe fugira d'
ela , cºmº d'
um ramº de peste,deixandº a sem amparº e sem cºnselhº ; º maridº ,procurandº uma fºrmula hábil para disfarçar os seus
proposi tos deshonestos , mandara -a a casa dº l avra
dºr , á amºstra, esperan çado em que á vista dº p i
teu se lhe abri ri a º ape ti t e .
A despei tº de tudo, reconhecia- se a gºra mais l i gadaao seu An tºn iº do que pºderi a supôr, t㺠fºrtemen tel i gada que a sua abjecção , en tregando - se pºr dinhe i
rº , n㺠a en chia de fur ia repulsiva .
O que a captivava n'
ess e hºmem
O seu aspectº va ronil, º seu desembaraçº de hº'
mem fºrte,as suas manei ras del i cadas, a sua vºz
al ta e bem modelada , sºbresàindº nºs balhºs ; a sua
perícia de caçadºr, a sua superiºridade, em toda a
especi e de jôgº, sºbre tºdºs ºs mºços da A ldeia .
Captava -a a inda o segredº , º misteriº da sua
vida , sapa tei rº al garviº que um dia, pºu cº ma is ta r
de que o dealba r da madrugada , apa recera ali sem
dize r quem era nem d'
on de vinha , vagabundº
188 SCENAS D A VIDA
cºmº viera aº mundº . A sua hºnra de mºça dº
puz era— a nas mãos d
'
aquele hºmem , cºmo se
um fru cto madurº , que se dá, n㺠para guardar, maspara cºmer lºgº. Tudo is tº puz era á dispºsi ç㺠dºmestre An toniº, quandº º seu sacrifi
t㺠a sua lºucura , só pºderia dar satisfa
e sem cºmpromissºs, aºs seus ape t i tes de machº eran te , hoje aqu i , amanhã além .
E que fizera º mest re An tºn iºN㺠abusára da sua fraqueza ; n㺠t ivera cºm
ºu tras l iberdades que n㺠fºssem as que º cºddº amºr permi te , e que sendº mui tas vezes desres
peitºsas da i nocencia , atentºrias dº pudºr , deixaminviol ada a cast idade.Reconheci a que t inha para cºm º maridº uma di “
vida de grat idãº, e essa divida , que cºntraira em sºl
te i ra , queri a ele que lh'
a pagasse agºra , depºis de
casada .
Em que mºeda
O lavradºr Fil ipe era um hºmem mui tº seriº ; nun
ca desinqu ietara uma mºça, e n a A l deia n㺠haviaquem fosse mais respei tadºr das mulheres casadas .
Falava v se dºs seus amºres cºm a a lgarvia ; mas, a
ser issº verdade , com ta is cau telas prºcedia º l a vra
dor que mui ta gen te punha em duvida o fac to . Depºis
,ra cioci nava a Amel ia , uma mulher casada a quem
principalmen te tem que dar cºn tas dº seu prºcedi
mentº ,é aº maridº , a quem deve fidel idade e ºbedien
cia , como dissera o padre, nº a ctº de ºs arreceber.
SCENAS DA VIDA 189
Mas ºs actos que uma mulher pra ti ca , se j am eles
quais fºrem , pºr cºnselhº , sugest㺠ºu ºrdem dºmarido, s㺠a ctºs de ºbediencia , n㺠afrouxam antes
apertam mais ºs la çºs matrimºnia is .O demºniº .
Queria - lhe parecer que fizera bôa impress㺠nº
lavradºr.
A i nsis tencia dºs seus ºlhares ; um cer tº embaraçºnas suas falas; o acanhamen to ºu timidez com que
lhe tºcava no jºelhº , quandº lhe dizia al guma cºisa
de mais circunstan cia ; º factº de se cºnservar á pºrta , cºm fingimen tos de distraçãº, a vel -a marcharpela rua fôra , só n㺠ºlhandº :para trás pºr vergonha , tudo istº dava á Amelia o convencimentº deque º lavradºr f i cara a gradado d
'
ela , n㺠propria
mente preso pelo beiçº, mas bem dispºs to para fa
zerem rela ções in t imas, aquelas rela ções que seriama base d
'uma pºli t i ca ag raria , que ao sapa tei ro t inhasuge r i dº º velhº gua rdadºr de porcos .Se assim n㺠fºsse , ele não lhe teria fei to ºs la r
gos oferecimen tos que lhe fizera , oferecimentos es
pontaneºs, d'
uma absºlu ta e capt ivan te espºntane i
dade .
N㺠lhe teria fei tº ta is e tantºs oferecimen tos,
cºmº n㺠lhe teria dadº dinheirº, que ela n㺠lhe
pedira , para se ir man tendº, sem necessidades de
maiºr , sem privações molestas,até aº regressº dº
maridº.
Sºbretudº n㺠lhe teria di tº , n a despedida , que
n㺠tivesse a canhamento de º prºcu ra r, quandº se
196 SCENAS D A VIDA
visse em precis㺠, pºrque da melhºr vºntade a servir ia .
Todºs nós precisamos uns dºs ºutrºs; º que
hºje tem mais, ámanhã pºde ter menºs . N㺠faça
cerimºnias cºmigº. Em vendº que lhe pºssº ser u ti l
n'
al guma cºisa , não tem mais dº que dizer-m'
o, e
será lºgº servida .“
Pºr sua vez a Amel ia t ivera a melhºr impressãºdº l avradºr.Nunca tinha fei tº grande a tenç㺠ºu repa rº n
'
ele ,mas via agºra que era um pedaçº d
'
um hºmem ,
poucº mais ºu menºs da al tu ra dº seu Antºn iº , direitº cºmº a pritiga d
'
um carro , la rgº dos hombros ,as mãºs cabeludas cºmo as d
'
um animal de prêsa .
]á passan te dºs quaren ta , e n inguem lhe faz ia a ida
de que tinha .
N es ta al tura das suas cºg i tações batem- lhe á por
ta, chamando-a cºm insisten cia
O'
Amelia t. O'
Amelia l o
E ra uma visinha que i a pedir- lhe uma pi ta da de
sal e um den te d'
alhº para temperar uma açºrda .
D º sapate i rº n㺠havia nºvas nem mandadºs,sendº crença geral que º hºmem abalára de vez,n㺠se despedindº para n㺠deixar saudades. Só amulher cºnheci a º verdadeirº motivº da sua ausen o
cia, mas a esse respei tº n㺠diz ia uma palavra cala
vá— se mui tº bem calada , e a té dava mºstras , pºr disfar
ce. de part il ha r a cren ça de tºda a família da A ldeia .
192 SCENA S ÉD A VIDA
Quem havia de dizer !
Menos implacaveis que as senhºras visinhas, ºssenhºres visinhºs desculpavam a moça
,sendº opi
n i㺠de mui tºs qu e se ela t i nha de dar aquel e passº,
an tes 0 desse com o sr. Fil ipe que cºm qualquer
charepe sem ter ºnde cai r mºr tº .
Quem a bôa a rvºre se chega, bôa sºmbra ºcºbre.
Pºstº ao fac tº da maneira cºmº a mulher cum
prira a m iss㺠de que a encarregára , º sapa tei rº
mostrou- se radian te de sa tisfaç㺠cºmo quem veri .
f i ca que assertou em cal culºs cºmpl i cados ºu cºmº
quem ganha uma apºsta arriscada .
Tudº ia cºrrendº á medida dºs seus desejºs e
pºis que descobri ra º fi l㺠d'
uma mina , o que era
precisº era cºmeçar imedia tamen te a sua explºraçãº,que º d iabº ás vezes tece -as e segurº é º que agen te tem na m㺠.
Foi O mestre An tºn iº pedindº tr i gº aº lavradºr,pºr cºn ta da sea ra , e cºmº nem só de p㺠vive º
hºmem , fº i' lhe pedindº tambem,pºr i n termedio da
mulher , aqu ilº cºm que se compram ºs melões, e
tºdºs ºs seus pedidºs eram prºmpta e generosamen te sa ti sfe i tºs .Agºra mais dº que nunca , º sapatei rº en tregava
se á mandria, dias e dias sem pegar na sºve la, lºgº
pela manhã,engu l ido º bºcadº , . abal andº para a
ca ça , e as nºi tes, ºs serões , passandº-os na taverna ,j ogando a bisca ºu a pedida , confºrme t inha par
SCENAS D A V IDA 193
ce irºs para um ºu ºutrº d estes jºgºs. D inheirº tinha cºm fartura , e cºmº era l iberal em gastal-º ,
mesmº ºs que nº í n timº t inham pºr ele desprezº ,j un tavam
-se — lhe n a pangalhada, e achavam certa gra
ça á desenvºl tu ra cºm que ele are java as massas dºl avrador.Tudº ia de casa do sr . Fi lipe para casa dº mes
tre An tºn iº a farinha, º azei te, a carne e ºs legumes , e i a cºm abundancia , pºrque ás vezes ele,de sucia na venda, mandava dizer á mulher que lhemandasse um pet iscº , e ela mandava- lhe um nacº de
carne de febra , se a tinha , ºu ent㺠uma pºsta de
toi cinho al tº , um pra tº de aze i tºnas e um ºu dºis
queij inhºs, n㺠esquecendº º p㺠alvº , cºmº mais
n inguem cºmia na A l deia , a n㺠ser º lavradar.
Os encºntrºs dº sr. Fi l ipe coma Amel ia deixaramde ter lºgar nº campº, i ndº ele pºr um ladº , i ndºela pºr ºu trº , de modº que quem º visse a ele, a nãºvisse a ela , e quem a visse a ela, n㺠desse pºr ele.N㺠era cºmºdº este bucol ismo errá ticº, que ás
vezes ºbr igava º lavradºr a fa t i gan tes rºdeiºs, pos
tado um maiºral em qualquer cabeça , a ºlhar pelº
seu rebanhº , e d'al i , sem se mºver, pºdendº aperceber- se de tudº n'uma área de grande raio.
A pºucº e pºucº fºram rareando ºs idi l ios cam
pestres, i ndº a Amel ia a casa dº lavradºr ºu indº
ele a casa da Amelia , que º sapatei rº , hºmem dis
creto , em ele en trandº pela pºrta da rua , sa ia lºgºpela pºrta dº quin tal .
194 SCENAS DA VIDA
Cºm a imprudencia de certºs maridºs a tra içoados,
mestre An tºniº regressava algumas vezes a casa,
inºpºrtunamente, tendº declaradº, á saída, que i a
dar uma vºl ta larga , demorando-se pºr fôra a té á
nºi te . Encºn trandº fechada a pºrta e º posti go nãºse dava aº t rabalhº de bater, pºrque já sabia que
ou a mulher t inha saidº ºu º lavradºr t inha en tradº.
Quasi nem já trabalhava pelº ºfíci º, e á medida
que ºs seus ganhºs dim inu iam , as suas prosperidadesaumentavam . De nada havia fal ta em sua casa ; cºmia dº bºm e dº melhºr, tra java cºmº um mºrgadº,e quandº met ia a m㺠na alg ibe ira , á prºcura de dinheirº , sempre º en cºn trava .
A Ameli a passara das chi tas bara tas para as fa
zendas caras ; já usava lençºs de seda , aºs dºmin gºs,e abundavam as rendinhas e as fran j as nºs seus ca
sabeques e aventa is.Apu rada nº vestuario sempre ela fôra , e nenhuma
ºu tra , pºbre cºmº ela , sabi a t ira r da sua míngua derecursºs efei tºs t㺠a gradaveis aos ºlhºs .D iz i a º mulherio da A l deia , quandº ela se enfei
tava, a inda sºl tei ra , para uma festa na V i laO diabº da moça nada põe em cima que lhe
n㺠fi que bem .
Era bem talhada de cºrpº , e rusti ca cºmº a pró
pr ia urze dº mºnte, sabi a combinar fºrmas e côres
cºm º mais requin tadº bºm gºsto . N㺠t ivera mes
tra de cºstu ra ; mas na V i l a n㺠havia quem talhasse
e cozesse cºmo ela .
Se um dia l he der para bºrdar a bastidº
1 96 SCENAS D A VIDA
n㺠havia uma unica pessºa de respei to que n㺠lhet ivesse gana .
Durava esta sesão, que fel izmen te se n㺠repeti acºm frequencia , a té que ela o prºcurava ºu ele i a
prºcural-a , robus tecendo- se lºgº a sua cºnfiança nº
mestre An tºn iº, uma cºnfiança que já vinha de lºnge e assen tava em prºvas ir recusáveis, tornando-sede dia para dia mais — fi rme, mais sol i da.D'
est a cºnfian ça par ti cipava a Amel ia, e de certºmºdº parti cipava tºda a família da A ldeia , j urandºhºmens e mulheres, nºvºs e velhºs, que nunca t i
nham vistº uma cºisa assim, pºu cº fal tandº para º
l avradºr Fil ipe , a Amel ia e º mestre An tºn iº dºrmirem todos tres na mesma cama .
Um dia, pela me i a tarde, º mestre An tºn iº abalºupara a ca ça , sósinhº, avisandº de que só vºl ta ri a ánºi te
,á hºra da ceia , ta lvez um bºcadinhº mais tar «
de , pºrque ten ciºnava i r aº Mºnte Ca iadº, a ver selhe pagavam o amanho d
'
uns sapatºs, na impºrtancia de nºve tºstões.
Fazia -me bôa cºnta receber agºra este dinhei '
rinhº .
O lavrador, passandº pela rua da Amel ia , petiscounº ferrôlhº , vindº ela abri r, fragalhºte ira, anuncian
do cºm alegria desenvol ta que º maridº n㺠estava ,e só vºl ta ri a á nºi te.
Cºmº tivessem de tra ta r cºisas sérias , de grande pºnderaçãº, assim que º lavradºr en trºu a Amelia fechºua pºrta e º posti go pºrta sem t ranca e postigo só
cºm uma pequena lingueta de insign i fi can te resistencia .
SCENAS D A VIDA 19 7
Estávam ºs dºis nº melhor da cºnversa quandº
batem á porta duas pancadas fºrtes .
O cºraç㺠n㺠fala , mas adivinha , e o cºra ç㺠dº
lavradºr, dandº um baque, avisºu do perigº que corr ia, se não fugisse sem demºra .
Renovando as pancadas na pºrta, sem que de den o
trº lhe respºndessem , º sapa teiro meteu º post igoden trº, e fazendº dar vºl ta á chave , escancarou a
pºrta , en trando de espingarda na mãº, na a ti tude dequem se prepara para desfechar .
Pel a pºrta que dei tava para º quin tal , en tre-aberta , lºbrigou º lavrador, que fugia , parecendº que t i
nha asas nºs sapa tºs. Desfechou precisamente nº momen to em que ele sal tava a parede dº quin ta l , á dis
fancia de mais de cem passºs , pregando - Ihe nº rabºtres ºu qua trº grãºs de chumbº , que mal fu raram a
péle .
Cºrreu para a pºrta da rua , dandº vol ta á chave ,e armadº cºm a navalha dº ºfí ciº , de pºn ta aguda efºlha l arga , a ti rou — se á Amelia , j á quasi desfa lecida ,cravando- l h
'
a nº ven tre umas pºucas de vezes, cºmrequ in tes de crueldade.
A cudiram ºs visinhos, hºmens e mulheres, acudiugen te de tºdºs ºs pºn tºs da A ldeia , e lºgº a pºrtafºi me tida a dentrº, a n inguem ºcºrrendº, em semelhante confus㺠, dar vºl ta á chave , º que dispensaria º arrºmbamen to .
A Amelia , sumariamente vest ida uma sa ia pºr cimada camisa , descalça , agºnisava n uma pºça de sangue, caida aºs pés da cama .
1 98 SCENAS D A VIDA
O regedor, acºmpanhadº de dºis cabºs, deu aº
sapateirº vºz de p r i s㺠, nã º esboçando º miz eravel
o mais leve signal de prºtestº , a mais inst i ntiva amos
tra de resis tencia .
O mulherio n㺠se con ten tava cºm a pris㺠, e em
al tºs berros reclamava que se lhe f izesse º mesmº
que ele fizera á mulher, º mesmº que pretendera fa
zer ao lavradºr, que mi lagrºsamen te sai ra cºm vida
d'
aquela tragica scena de furi a assassi na .
Ma ta - se Mata-se este malvadº
Grandissimo ladr㺠l E le é que meteu a mulber á cara dº l avradºr, para cºmer e beber á tripa
fôrra , com dinhei rº á farta para as suas pandegas, e
sai - se a gºra cºm uma a ç㺠destas , cºmº se de re
pen te lhe chegasse a vergºnha, ºfendidº na sua hºnra d
'
homem casadº !
O tio Franciscº Garcia , cegº e tolhido, sentadº
n'
um banco de pedra á pºr ta da venda , sºube al i de
tudº que se passava e cºmº se passara . Cºmentºu ºvelhº te :
N in guem se fie nºs bois mansºs ; quandº marram , é pela certa .
2 0 0 SCENAS DA VIDA
Fôra uma surpresa para toda a gen te, aquele ca
samentº , el a ri ca , ele pobre , ela esbel ta , ele desageitadº, ela sadi a , ele dºen te , i rremediavelmen te dºen te,n a ºpin i㺠dºs medi cºs epilepticº , cºm mani fes ta
dep ressão mental , absºlu tamen te i ndiferente aºs ne
gºciºs da sua casa , de que se ºcupava a mulher,com i n tei ra l iberdade , sem a esse respei tº trºcar cºm
ele uma palavra . A's segundas' feiras dava- lhe dinhei
rº para tºda a semana , dinheirº para º tabacº , e
para º café , uma chavenasinha de café na brasser ie,tºdas as tardes , depºis de jan ta r.Fazem-se en tre as pessoas , cºmº en tre as i de ias ,
assºciações pºr cºn traste , segundo um mecan ismo
que a psycºlºgia expl i ca , naturalmen te sem º ri gºr cºm
que se faz'em as demºnstra ções em geºmetria, mas
pºr manei ra satisfatºria . A verdads é que n inguem
comp reendera aquele casamen tº, e cºmº sucede , invariavelmen te , peran te um factº que n㺠se compre
ende, cada qual º expl i cava a seu modº .
Aºs vin te anºs a Rºsi ta , edu cada n'
um cºlegio de
Londres, fô ra pedida em casamen tº pºr um rapaz
de bôa fami l ia , i ns tru ídº cºmº ela , bastan te mais r i cº
dº que ela , mºço galan teadºr que tºdas as mu l heresdesejavam , que tºdºs ºs maridos temiam , embºra ele
n㺠fôsse posi t ivamen te l ibert ino , comº o famºso ! a
sanova , um cavalhei rº de Faublas, sem escrupulºs que
o detivessem na realisação das suas cºnquistas amorosas . O fl irt é uma i ns t i tu i ç㺠naciºnal da G ranBretanha , um capi tulº da mºra l i n glesa equivalen te
SCENA S D A VIDA 2 0 1
a um versí culº da Bíblia, que se pra tica cºm devo
ç㺠em tºdas as idades e em tºdas as l at i tudes dageºgrafia sºcial , e pºrque a Rosi ta fôra educadan
'
um colegiº de Lºnd res , á mºda bri tanica. º factºdº seu nºivº cu l t iva r abundan temente º fl i rt, lºngede a escandalisar, parecia a té que lhe era agradavel ,pºrque lhe arreigava a cºnvi cção de que ele era , detodos os mºçºs da cidade, º mais dignº de ser ama
do. Cer tºsma r idºs, geralmente ºs predestinados , gºst am que lhes co r te jem a mulher, pºrque issº l ison
geia º seu orgulhº de prºprie tariºs, a sua vaidade depreferidºs por
'
uma beleza requestada virtuºsacºmº a Lucrecia rºmana .
Ora su cedeu que a Rºsi ta, para fechar agradavel
mente a sua vida de sºl teira , levando com igº umavelha amiga
,que era uma amiga já velha, fº i passar
uns dias em Sevilha , por ocasião da Semana San ta ,segu i n dº nº mesmº cºmbºiº em que segu i a º seunºivº , cºnfºrme º a j uste es tabelecidº .
O factº tornou- se imedia tamente cºnhecidº na c i
dade, e fº i ele, du rante dias , º assumptº ºbrigadº de
tºdas as cºnversas , uns comen tando-º cºm singel a
malícia , ºu t rºs comentando-º nºs termºs mais baixamente in jur iosos .Pºis se estava justº º casamentº , pºrque n㺠ha .
viam de fazer cºmº toda a gen te de sua classe , ca
sar primeiro e via jar depºis
! á era vºn tade de fazer escandalº, ºfender a mora l cºrren te , a mºral estabelecida, ºs sent imen tos de
tºdºs quantºs cºns ideram a mºral cºmº a obriga
2 02 SCENAS D A V I D A
ç㺠que teem . ºs ºu trºs de se por ta rem bem , a
den trº de certºs prece i tºs e regras fºrmandº um cº
digº , sempre inédi to , dºs usºs e costumes.Para Sevi lha , j un tºs. um rapaz e uma rapari ga , ele
esbel tº , ela fºrmºsa , ele capaz de fazer perder d'
amºro coraç㺠da mais a tºrmen tada mºnja, ela capaz de
t ranstornar a cabeça dº mais inspiritualisadº ermi ta
Onde quer que apa reciam , nas ruas cºmº nas pra
ças, nos cafés cºmº nºs theatrºs, despertavam um
grande mºvimen tº de curiºsidade, que se traduzi a em
ges tºs de admi ra ç㺠e murmuriºs de simpatia .Que guapº l
Que hermosa !
Ser nºtada em Sevi lha pel a beleza e eleganci aver que todºs ºs ºlhares, na capi tal andaluz a , se pren
diam á graça dºs seus meneios , admiravel escu l tu raque faria a repu taç㺠do mais a famadº arti sta de tº.
dºs ºs tempºs , anti gos e mºdernºs , era para a Rº
s i ta mºtivº d'
uma sat isfa ç㺠íntima e t rasbordan te,pºrque lhe dava a plena cºnsciencia de ser digna dº
seu nºivº , um admiravel Antinuºs que todºs ºs mari
dºs temiam e tºdas as mulheres desejavam .
Naquele anº havia en tre a Semana San ta e a Feira um in tervalº d
'
uma semana , e como a a ia da Rºsi ta ,ao apear -se d
'
um tmn -
via, na Praça de S . Fernan
do, fizesse uma pequena en tºrse , que a ºbrigaria ,
pºr alguns dias, a n㺠sa ir de casa, resºlveram ºs
nºivºs dar um sal tº de Sevi lha a Cºrdova, deven'
2 6 4 SCENAS D A VIDA
E a crescen tºuDez mil lampadas que nun ca se apagavam , re
forçadas por candelabros espan tºsamente grandes,i lumi navam a Mesqu i ta . Eram t㺠gra ndes ºs cande
labros que cºnsumiam , cada um deles , nº anº, apro
ximadamente quinze tºneladas de azei te .
Mais por cºquetismº que por devºçãº, a Rºsi taqu iz a jºelhar peran te º al ta r —mor, a pensar, vagamen te , que bem podiam ºs christãºs ter deixadº fi º
car o Mirhab dºs infieis, que era º san tuario ºnde
eles guardavam as suas especies consagradas, sºb a
fºrma de A l cºrãº.
A Rºsi ta n㺠era i n cl inada aº misti cismº, e a edu
cação rel ig iosa que recebera nº colegiº , sºmada , nºs
seus efei tos , á que recebera na famil i a , deixara- l he o
espíri tº l ivre, quasi i ndiferen te ás pra ti ca s rel i giºsas ,e absºlu tamente alhe iº a cºngeminencias theºlºgicas,cºm resaibºs de filosºfi a . N㺠era uma Helºisa nº
saber, nem uma Thereza de ! esus nº sent i r ; mas era ,cºmº a A l cºfºradº , de Beja , uma adºravel ten taçãºcarnal, um sºberbo fru tº , que um vagº perfume de
rel i g iºsidade tºrnava a inda mai s apet ec ido.
Pºrque assim era , em materia rel igiºsa , del i ciosa
mente i gnoran te, cºnhecendº t㺠pºucº a Bibli a cº
mº º A l cºr㺠, a Rºsi ta n㺠al teou 0 seu espí ri tº até
Deus, e n㺠saberia respºnder , n'
aquelle mºmen to,se fô ra a Mesqui ta que se conver tera em templº cris
tão , se fôra uma i grej a cr is tã , cºmº a da sua fregne '
z ia , umas pºucas de vezes menºr, que se cºnvertera
emMesqui ta, para maiºr glºria dº Prºfe ta .
SCENAS D A VIDA 2 05
Pºr detraz d'
uma cºluna escapandº á vigilancia
dºs guardas , e aprºvei tandº º discretº isºlamen tºda Mesqu i ta , sem ºutrºs visi tan tes , Rosi ta e º nºivº
bei jaram-se cºm frenesi , cºmº se ela fºsse uma dasl i ndas huris que enchem º Paraizo musulmano, e eleº mais fervºrºsº cren te dº i slamismo, dignº de to
das as bemaventuranças prºmetidas aºs que sempredefenderam a sua causa , e fºramºbedien tes aºs seusmandamentºs.
M i nha l inda moi ra !Meu an j º adºradº !
O est rangeirº que visi ta Cºrdºva , na general idadedºs casºs, só ali vai para admi rar a Mesqu i ta , hº jetemplº cristãº, e a Mesqui ta n㺠dá para mais d
'
u'
mas horas, t res ºu qua trº , de adm iraç㺠con templa
t iva . Os sabiºs, ºs erudi tºs, osexcepciºnalmente cultºs, pºdem , sem duvida , den trº da presen te Mesqu i ta , evºcar a velha histºria dº musulmanismº n aPenínsula , sobretudº a h istºria dº Kalífatº cºrdºve z ,t㺠che iº de lan ces tragicºs e de aven tu ras poé t i cas .Tal n㺠era º casº dºs gen tis nºivºs lusi tanos
,es
cassamente i ns tru ídºs na h istºr ia geral da Península,e n㺠ºs mºvendº grandemente a curiºs idade de
aprofundarem , a este respei tº, ºs seus cºnhecimentos. V is ta a Mesqui ta , estava vista a cidade, umagra de e pºpulºsa cidade n
'
ºutrºs tempos, t㺠pº
pulºsa que alguns auctores d izem ter el a encerradº
nºs seus murºs al tºs, guarnecidºs de tºrres e bas
2 06 SCENAS D A ; VIDA
tiºes, aprºximadamen te um milh㺠de habi tan tes. En
tão , sim , devi a Cºrdºva , i ndependentemen te da Mesqu i ta, ser uma cidade bem digna de visi tar.- se , repºu 1
sandº pºr i nstan tes ºu pºr horas á sºmbra das suaspalmeiras , dºs seus grandes cedros frondosos, das
suas larangeira s em flô r , ºuvindº º murmuriº dassuas fºn tes , d
'
aguas frescas e cris tal i nas .
A'
nºi te , depºis dº theatrº, a tºmarem chá naA ven ida G ran Capi tan, ocºrreu aºs dois º mesmºpensamentº ºu desejº , que a Rºsi ta , n
'
um enthusias
mo infan til , quasi ba tendº as palmas, cºmº as crean
ças, expºz na fºrma de cºnsul ta , que era uma ºrdemimpera tiva
E se nós fºsssmºs até GranadaE
'
verdade, se nós fºssemºs a Granada
A l i , em Cºrdºva . n㺠val ia a pena demorarem - se,e regressar a Sevi lha , an tes da fei ra , tambem n㺠va
l i a a pena , tan tº ma is que a aia ºu dama de compa
nh ia de Rºsi ta a inda precisava dº repºusº d'
a l
guns dias para cºmpletamen te fi ca r curada da en
torse .
Deviam basta r dois d ias para verem a l inda capi
ta l dº rei nº granadino, mais in teressan te, cºmº ci
dade mºderna, que a velha Cºrdºva , mais pequena ,mui to mais pequena que Sevi lha .
Nº dia seguin te, pela manhã , meteram-se a cami
nhº , emcºmbºiº rapidº , e per tº dº anoi tecer, amui tº bôas hºras do j a n ta r , chegaram a G ranada ,encantadº º nºivº de Rºsi ta cºm os montões de re
2 08 SCENAS DA VIDA
nº dia seguin te, pelº pr ime i rº cºmbºiº , regressandoa Sevilha , sem demºra em Cºrdºva .
E a crescen tºuO Flºrencio da Administ ra ç㺠dº Cºncelhº diz
mui tas! vezes, falando dº part idº dº Zé D ias , chama
do consti tu inte, e que se desfez em_pºucº tempº,pºr desertarem d
'
ele , hºj e uns , amanhã ou trºs , ºs
seus hºmens de valºr : Eu sou o u ltimo abencer
ragem. A primeira vez que es tiver cºm ele , j á lhedigº que . vi a sala ºnde ºs abencerragens fºram mortºs , cºmº sucedeu aºs liberaes dº Castelo de Extremoz . E
' capaz o homem de ser abencerragem sem
fazer ideia dº que issº fº i !
Nº dia seguin te deixaram Granada , e em menºs
de vin te e qua tro hºras en traram em Sevi lha , tendºfei tº
,cºmº dizia a Rºsi ta , uma antecipada viagem
de nupcias, que ºs dispensaria , quandº casassem , de
i rem pa ssa r qu inze d ias ºu ummez pºr fôra de casa
A en tºrse a inda n㺠permi t ia á amiga de Rºsi ta
acompanhal —a nºs seus passeiºs , já commenºs dôres
mas apoiando -se sem firmeza no pé .
E se nºs fºssemºs embora ? j á fa çº ideia dº
que é a fei ra , e cºmo n㺠tenciºnº mºrrer cêdº, para
o anº, ºu quandº nºs apetecer, vºl tamºs cá.
N㺠t inhamºs pensadº em vêr º ba irrº dºs ci
ganosTinhamºs
,mas a chº que n㺠vale a pena. Essa
gen te é a mesma em tºda a parte, e farta de ver ci ga
nºs estºu eu , pºrque os tenhº aº pé da pºrta.
SCENAS D A VIDA 2 6 9
Sempre era mais uma coisa que viamºs, epara a vermºs n㺠precisavamºs adia r mui to a via
gem .
Estºu por tudo que tu quizeres : mas francamente , demorar -se a gente aqu i só para vêr ciganºs,comº se nunca ºs t ivessemºs visto , achº que é retardar sem necessidade , e sem nenhuma van tagem , oprazer de nºs encon tra rmos em nºssa casa , e a fel ic idade de nºs vermºs casadºs , unidos para sempre ,meu querido amºr !
Nº segundº dia de fei ra , á nºi te , tºmaram o comboio de Bada jºz, cºm bilhete para Lisbºa , anciºsºspºr se apanharem em casa .
Marcou — se º dia para º casamento, dispensadºs ºs
banhºs, tendº a Rºsi ta , an tes da abalada para Hespanha , deixadº tudº arran jadº e d ispºstº para casa rnº prºpriº dia dº seu regresso , se ta l fºsse a sua
vºn tade.
O peor da passagem , fºi que º pagem , is tº é , onºivº
, a dºeceu quasi repen tinamen te, cºm um ataque
de gripe pneumoni ca , que en t㺠grassava na cidade
com uma in tensidade apavoran te .
Passára o dia tºdo nº campº, e á nºi te metera-se
na cama , fa t igado mas bem dispºstº , calcu landº quefaria
,cºmº de cºstume, um sonº reparadºr, de que
acºrdaria aº luzi r dº buracº .
Passºu a nºi te inqu ie tº , sem bem saber º que ti
nha. ás vol tas e reviravºl tas, veri fi cando, pela manhã ,que ti nha febre a l ta e cºnst atando que uma pon tada
fºrte, dº l adº esquerdº 0 nao deixava respira r á
14
2 1 0 SCENAS D A VIDA
vºn tade , fazendº uma. respiração mui tº superfi cial ,p ºr defeza .
Veiº lºgº o medi cº da casa, e á tarde vieram ou
t rºs medi cºs , ºs qu ai s, reun idºs em cºnferencia , de º
clararam que º casº era grave, d'
uma extrema gra
vidade , reservandº º prognost ico. Em nova cºnferencia. que teve lºgar nº dia segu in te , sem discrepancia
d'um vºtºr declara ram ºs i lust res galenos que ali
n㺠havia nada que fazer ; só pºr milagre º dºen te
pºderia sal va r se .
A fron tando auda ciosamente as chamadas conveniencias sºciaes, que sãº, em grande par te , regras e pre
ceitºs d'
uma moral hypºcríta, a Rºsi ta instalou- se em
casa dº seu nºivº, dispost a a ser a sua enfermeira ,não lhe parecendº que a fal ta d
'
um sacramen tº sej a
mºtivº para que uma pessoa aman te se não dedique
pºr cºmple tº , impondo-se ºs maiores sa crifi ciºs, á
pessºa amada .
Um mila gre
Talvez o f izesse º seu imensº amºr, a sua dedi ca
ç㺠sem l imi tes , º seu carinhº sem igual .
Ha sempre n'
estes actºs de renuncia extrema ,d'
um al tru ísmº que é a expressão mais al ta e maisbela da a fect ivi dade humana , ha sempre n
'
estes actºs
uma parcel a de egºismº, sem º qual en tra riam na
esphera da bºndade divina , que a crea tura n㺠pºde
a tin gi r sem perder º merecimen tº de quem realisa º
bem tendº a l iberdade de real isa r º mal .N㺠pºdia ser maiºr a carinhºsa sºl ici tude da Rº
s i t a,comendo e dºrmindº aº pé dº seu queridº
2 1 2 SCENAS D A VIDA
vida alheia, que a Rºsi ta prºcurava fazer um casa
men to in extremis, n㺠pela va idºsa pretens㺠des e apresen tar cºmº viuva , mas pela necessidade degaran t i r aº seu filhº uma l egi t ima pa tern idade .
Amºr, renuncia , dedicaçãº, sacr ifi ciºCºisas mui tº bºn i tas nºs rºmances e nºs dramas ,
mas t㺠fôra da pºsi t ividade da vida , que as n㺠emcºn tra ria nº mundº das rea l idades e dºs fa ctºs,quem as prºcurasse pºr tºda a par te, a rmadº da fa
mºsa lan terna de D i ºgenes cºmº º philºsºphº
cynícº n㺠encºn t ra ra º hºmem que prºcurava .
Es tava a Ros i ta sendº º ºb j ectº de tºdas as cºn
versações,'
n a su a quas i tº tal i dade maledicentes, a l
gumas com ares de generºsa complacencia , considerand0 = a cºmº ví ct im a mais dº que propriamente au
ctºra das suas graves fal tas .
E'
nº que d㺠, a final de cºn tas, as taes edu
cações á moda inglez a ! Quandº é que se viu uma
rapari ga de bôas famil i as , uma criança , abala r de
casa para Hespanha , na companhia dº homem cºmquem hade casar se casar e que não é seu pa
ren te nem adheren te , t㺠nºvº cºmº ela Een tão esta de se i r meter em casa dº hºmem , cºmo
se ele não t ivesse pessºas de famil ia que o tra
tassem!
Cºmº sempre sucede, em casºs t a is, quem maismurmurava era quem mais ras㺠t i nha para esta r
ca ladº, que mais n㺠fºsse em aten ç㺠aº precei tºque recºmenda n㺠fala r de cºrda em casa de en
fºrcadº .
SCENAS D A VIDA 2 13
Era publi cº e no torio que a D. Felismina Graça,
já nºiva do hºmem cºm quem casºu , passara ºi tº
dias n'
um hºtel , em Lisbºa , fazendo-l he cºmpanhiaum prºfessºr dº lyceu, cºm quem tivera um lºngº
tli r t pra ticº, chegandº a dizer— se que uma dºençagrave que a puz era ás pºrtas da mºrte, nº maisa cesº d
'
este namºrº , fôra ºri ginada em manºbras criminºsas, a t inen tes a fazerem desaparecer a prºva
real , em carne e ossº , da sua l ibert inagem amºrºsa .
Pºi s!
a D . Fe l i smina , já a desandar para ºs cincºenta, era uma especie de cartaz , cºlado em tºdasas esquinas , a gri tar aºs quat rº ven tºs º grande ehºrrivel crime de Rºsi ta , enfermeira dº hºmem , que,sem a intercºrrencia
,d'
aquela dºença fa tal , seria seulegi t imº espºsº , recebi dos á face de Deus.N㺠fi cava a traz da D . Fel ismina a Abrunhºsa ,
mãe de qua tro fi lhºs , nenhum dºs quais t inha parecenças cºm º maridº, parecendo -se, cada um deles , cºmº pa i que lhe era atribuído pela ºpin i㺠publ i ca , queé a vºz de Deus, sempre justa e verdadei ra .
Duran te um anº Rºsi ta n㺠poz os pés na rua ,n inguem a viu á j anela e
!
raras pessºas recebi a em
sua casa . Carregara-se de lutº, cºmº uma viuva , e
passava hºras esquecidas , tºdºs os dias, a ºlhar oretratº dº seu noivº , que lhe parecia agºra mais
belº , n a refrangencia das suas lagrimas .Pºrque n㺠ter i a a lºngadº mais º seu passeiº pºr
Hespanha , fi candº pºr lá um mez, que mais nãº
fºsse, sendº prºvavel que a epidemia , nº seu ref
2 14 SCENAS D A VIDA
gressº , j a tivesse desaparecidº pºr completº Quasi
t inha remºrsºs de n㺠º haver fei tº , tan tº ma is que
fôra ela , na pressa de se casa r, que prºpuz era re
t i ra rem de Sevilha an tes de a cabada a fei ra , e nãº
qui z era demorar- se em Bada jºz, para ass is t i r a umatºu rada que metia ºs espadas de maiºr nºme.
Pareci a aos que viviam perto d'
e la, ,umpoucº n asu a in t im idade , que nada pºderi a consolal—a, da perdadº seu nºivº, N i obe desºlada que fi ca ria tºda a vidachºrandº a mºrte dº prºme tidº espºsº.
Bem se diz que º coraç㺠tem suas rasões que aras㺠n㺠cºmpreende , frase r i gºrºsamen te verda
de ira , com a res de paradºxº .
Quandº cº nstºu , um dia, que Rºsi ta ia casar , vºl
vidº cin co anos, pºr sºbre o seu passeiº a Sevilha ,a surprez a fºi gera l , tºrnandº- se em pasmº aº sa
ba se que o nºivº era aquele pºbre Mathias , feiº e
desengonçado, que desde pequenº sºfr i a de a taques
epilepticºs, i ncapaz de reger a sua pessºa e bens,
segundº a fºrmula juri di ca , sendº tr is temen te certo
que ê le na da tinha de regesse , pºbre cºmo um fran .
ciscano. Fizera mal e porcamen te º exame de instruç㺠primari a , chegandº a matri cula r-se nº lvceu ,
tendo levadº a frequencia dº primeirº ano até ás fe
rias da Paschoa . Pº r cºmple tº falhº de atenç㺠, in
capaz d'
um raciocin iº elemen ta r, esta ria duas ºu trêshºras á mêz a de estudº, a º lhar para um l ivrº
aber tº , levan tando-se fa t i gado, mal fazendº i dei a dºque lera , e lºgº esquecendº º nada que ap rendera ,t㺠pºbre de memº r i a cºmo de in tel i gen cia . Nem
2 16 SCENAS D A VIDA
ela , na real idade , f izera uma viagem de nupcias aHespanha , t endo-se esquecidº de casar primeirº .
Casaram , a Rºsi t a e º Math ias , fazendo -se º ca
samento n'
uma capela par ti cu la r , sem anunciº,quasi
sem cºnvi tes, para evi ta r º especta culº, á pºrta daI grej a e den trº dº templº, d
'
uma mul ti dão irrespe itºsa , a repet i r em
*
voz al ta ºs comentariºs da boti cadº Pascoal .
Comº se Deus abençoasse aquela un iaº , con =
fºrme a l i n guagem bibl i ca , ainda n㺠t i nha qua trº
anºs de casada e já a Rºsi ta amamen tava º seu se
gundo fi lhº , ºrgulhºsa dº seu casal inho de bebés ,ambºs fºr tes, a mbos sadiºs , ambºs l i ndºs comº ºs
amºres ambºs parecidºs cºmº pai.
En tre tan tº a decadencia física dº pobre Mathia s
faz ia progressºs nºtá veis , menºres , tºdavia , que ºs
da sua decadencia mºral . A i nda tinha vigºr bas
t an te para n㺠para r em casa , tºdº º dia por fôra ,gandaiando pela cidade
,ºuvindº aqui , escu tandº além ,
mas n㺠se i n trometendo nas cºnversas , n㺠corres
pºndendº aºs cumprimen tºs que lhe faz iam , nu nca
respºndendº aº que lhe pergun tavam . Era um espi
r i tº dºen te n'
um cºrpº alei j adº , a cari ca tura d'
um hº
mem envºlucrandº farrapos d'
uma alma .
Fumava de cada vez mais , quasi a cendendº ºs ci
garros uns nºs ºutrºs, e nunca sa ia de casa, pela
manhã,sem pedi r a sua diaria para tabaco para º
tabacº e para º cafesinhº , ás vezes, mui tº raramente,
SCENAS D A VIDA 2 17
dei tando nº café um pequeninº cal ice de aguardentede cana .
Tinha agºra a taques cºm mais f requencia , e pºrmais d
'
uma vez , seguidamente aºs a taques, manifestára proposi tos de agressão, monologando em vºz rude in ju rias e ameaças . D º que ele n unca se esquecia, fosse ºnde fºsse que tivesse º a taque , em casad'
alguma pessºa amiga, na bot i ca , nº café ou mesmo
em sua prºpria casa , era de veri fi car , tºrnandº a si ,fa t igado de estrebuchar, se lhe n㺠fal tava a bºlsaºu º relºgiº. O facto n㺠escandalisava n inguem, por
que era d'
um autºmat ismº incºnscien te, puramente ins
tintivº , t㺠pºuco del iberadº cºmº as suas cºnvulsões .
Um dia º medicº da casa , tendº vis tº º Mathias,aº in iciar um a taque , esboçar gestºs de agress㺠,disse á Rºsi ta que precisava ter cautela , pºr si e pe
lºs f i lhos , pºrque ºs epilepticos resval am facilment e
aº crime , e cºm frequencia as pessºas mais íntimas
da família s㺠as victimas da sua escºlha . A part i rde então ela , tºdas as noi tes , an tes de se meter na
cama , fechava a pºrta que punha em cºmunicaçãº
ºs quartºs em que dºrmiam , fi candº assim t㺠l onge
um do ou trº cºmº o Gungunhana nº castelº d'
An
gra e a sua favºri ta nº ! raal de Man jacaze.
Felizmen te º pºbre Mathias nunca e sboçºu cºn tra
ela um gestº de ameaça , nunca lhe diri giu uma palavra i n juriosa , e se não era carinhºsº e meigº para
cºm ºs fi lhºs , tambem ºs não tra tava cºm aspereza ,dispensando- se, até , de ºs cast i ga r quandº eles fa
ziam malda des .
2 18 SCENAS D A VIDA
Nem as criadas tra tava mal , dispensando- se de as
cumprimen tar, e aº que in dispensavelmen te lhe pe r
guntavam respºndia pºr monosí labos ºu pºr ges tºs.N㺠era , prºpriamente, uma pessºa incºmºda ;
mas tambem n㺠era , an tes de se avisinhar a sua est rema decadencia , um animal estimavel.
Casada e sem maridº, aquela viuvez grºtesca era
uma tºr tu ra que a envergonhava .
N a desºlução dº seu lei to , pareciam- l he interminaveis as nºi tes , a evºcar ºs tempºs da sua mºcidade flºrida , che ia de sºnhºs, a evºcar , sºbretu dº, as
del i c ias dº seu primei ro noivado, e a pôr tudºistº em cºn frºn tº com a su a vida presen te , vasia e
desºlada . N in guem a cont ivera no resvalar áquele
abismº, e n inguem pºdia agºra descer á profundeza
dº seu mar t ir io para lhe dar um pºucº de alen tº ,para lhe insuflar um poucº de cºragem .
Tinha ancias d'
amºr, que lhe quebravam º cºra .
ção. e t i nha aº mesmº tempº revºl tas de orgulhº
que tornavam ainda maiºr o seu tºrmen to . Vislum
brava a fel i ci dade fóra dº dever cºnvenciºnal , e su r
preendia-se a es tender- l he a m㺠cau telosamente,cºmo quem procura cºlher uma rºsa , que está al ta ,e tem á rºda , a defende- la , milhares de p i cºs ace
rados.Mal a consolavam ºs fi lhos da inu ti l idade dº ma :
r i do , mºça demais para n㺠recºnhecer ºs direi tºsda Na tureza , que ás vezes fºrmula as suas reinvidicações em termºs d
'
uma imperiosidade bru tal .
2 2 0 SCENAS D A VIDA
Fechºu ºs ºlhºs , cºmº para se reclu i r mai s a den
t rº de si mesma , e sent indº que ia tomal -a uma cri
se de chôrº, fechºu a j anela, p ri n cip iando a fazer ,cºmmui tº vagar, a sua toi lette da manhã .
Hºras passadas , j á mui tº pelº dia adian te , cºmºn㺠ouvi sse rumºr no quartº dº mar idº , abriu cautelºsamente a pºr ta , e fº i andandº nºs bi cos dºs pés,a espre i tar se dºrmia .
Es tava mºrto.
Retirou -se cautelºsamente, cºmo t inha en tradºn ºs bi cºs dºs pés , ºu pºrque receasse acordal-ºdo sºnº de que não se a cºrda , ºu pºr n㺠a credi ta r
n a morte que veri fi cara pelºs seus prºpriºs ºlhos !
pondo- lhe quasi º ºuvidº sºbre a bôca l i gei ramenteaber ta , a ver se resp irava . — Quandº se perdeu º
habi tº de ser fel iz , n㺠se a credi ta mais na fel ici dade .
Chamºu a creada e ordenºu que lhe servissem oa lmºçº .
Sen tada á meza , cºmo lhe observassem que º
Senhºr a in da n㺠almo çaraPassºu um pºuco incºmodadº est a nºi te , só al
mºçará mais ta rde.
Havia mu i tº tempo que n㺠cºmia assim , cºm tan tº
apet i te , a chandº tudo excelen te e servi ndo se de tudoá l a r ga . Olhou — se aº espelhº que t inha em fren te, el eve a impress㺠de que a sua face era uma pla ca
de j a rdim cºm mólhºs de cravºs marginando -l he a .
SCENAS D A VIDA 2 2 1
bôca e ramºs de viºle tas, emºldurandº ' lhe ºs ºlhºs .Teve o desvanecimen to de ai nda ser bºni ta , e certi fi cou
se de que a inda não era velha . Mal l he cab i a º cora
ç㺠nº pei tº, i nquie to cºmº uma avesinha engaiol ada .
Terminadº º almºçº, deixandº ºs fi lhºs á meza ,fºi el a prºpri a acordar º marido , a inda na cama ,áquela hºra , t㺠tarde .
E se fºsse um casº de mºrte aparen teTinha mui tas vezes ºuvidº dizer ao medi cº da ca
sa, clínico de larga experiencia , cºm per tº de cin
cºenta anos de exerci ciº da prºfiss㺠, que ºs epi le
ptícºs, terminadº º periºdº convulsivante dº a taque ,pºdem estar hºras sem resp
I rar, inertes cºmº se fossem de pedra ºu de madeira , n
'
uma suspens㺠devida que dá uma i lus㺠perfei ta , sºbretudo aos lei
gºs na medicina , de mºrte real .Se ir i a afogar- se á vista do pºr tº , malaventuradº
nau fragº que — ao dei ta r as mãºs á tabua salvadºra,
vê que uma ºnda a põe fôra dº seu a lcance , cºnde !
nandº-o á mºrte sem remediº !
Abriu cau telosamente a pºrta , cºmº da primei ra
vez, e fºi andando'
nºs bi cºs dºs pés, a tremer, nºalvºrºço mudº de quem ta teasse nas trevas um ca '
minhº peri gºsº .
Estava pºsi t ivamen te na pºsiç㺠em que º deixaraa cabeça quas i i nte i ramente fôra dº t ravessei rº , º
braçº di rei tº pendendº fóra da cama , a bôca l igei ramente aber ta , ºs ºlhos sºl idamente fechadºs. Poz - lhe
2 2 2 SCENAS D A VIDA
a m㺠nº pei tº estava friº de neve . Abriu lhe umpºucº ºs ºlhºs, arregaçando - lhe a s palpebras es
tavam envidra çados. Quasi lhe colºu º ºuvidº ábôca
fºi cºmº se o colasse a uma pedra tumular.Era lá pºssivel a sºmbra d
'
uma duvida ?
Fi cºu suspensa , pºr i nstan tes , n'
uma especi e de si
deraç㺠dº cérebrº, n㺠sen tindº e n㺠pensando , os
º l hºs presºs aº cadaver, sem º vêr, queda e fri a cº
mo a mulher da Bibl i a cºnvertida em esta tua de sal .
Subi tamen te ouvi u -se um gri t º dºlºrºsº a i que
desgra ça ! ai que grande desgraça e lºgo tºdº o
pessoa l da casa a corre n'
uma afl i ç㺠, precipi tando
se em trºpel'
nº quarto mor tuario. Gente que i a pas
sando , n a rua, en trºu a vêr º que era, e º mesmº fiz eram ºs v isinhos, a l guns dºs quaes supuz eram quehavia fºgº , embºra não vissem fumº ºu labaredas
sa i n do pel as janelas ou i rrompendo dº tel hadº ,mos,trando º
se perfei tamen te tranqu ilºs , alguns vis ivelmen te
s a tisfe i tºs quandº sºuberam que tºdº aquele alvº
rôtº, em que havia gri tos e lamentações chorosas , erat 㺠sómen t e pºrque Ma th ias , º inu til, t inha passadºd'
esta para melhºr . N in guem lhe queria mal, pºrque
e le era i nºfensivº , a n㺠ser para as pessºas de casa ,ferozmen te egºísta , querendº que lhe adivinhassem ºs
dese jºs e a s vºn tades, e que essas vºn tades e desej ºs ºs tºmassem cºmº ºrdens, cumprindo — os fielmente
o cºm prºmptidãº.
D ia s e dias n㺠dava uma palavra á mulher , a
n㺠ser para lhe pedir alguma cºisa di nheirº se ela
I N D I C E
O M o inh oA R i t in ha
Qu em Ch l bOS v e nde
A s Ga ldé r iasBoismansos .
A l ibe r ta çã o
E R RAA T A
Na pagina 77, ultima l i nha, onde se lê Gu ilherme, leia — se