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O momento mais trágico por aqui foi quando acompanhei o enterro de pai e filho. O suíço Joseph Fabel, de 46 anos, e o menino Casper, de cinco, que chegaram na barca Colon, morre- ram de fome. Foi uma tragédia. E a direção da colônia nem tomou conhe- cimento da situação. Que desespero daquela mãe, que dor, que tristeza, que olhares inseguros de todos. Não havia um só imigrante que não se imaginasse sendo o próximo sepultado em meio àquela mata virgem. Ha- via um único médico na colônia, um norueguês, doutor Möller, que nada podia fazer porque não tinha estrutura para atender a tantos doentes e nem experiência. Famílias inteiras desapareceram assim. E quem morria, naquele primeiro ano da colônia, era sepultado num cemitério improvisado no caminho do Jurapê, ao lado do ribeirão Mathias. Somente em dezembro de 1851, com a chegada do primeiro pastor, os enterros começaram a ser realizados na parte alta da cidade, na rua do Meio, no cemitério do Mittelweg. No final de 1851 corria o boato de que o príncipe de Joinville e a princesa Dona Francisca viriam morar nestas terras. Tudo mentira. Até agora, pelo menos, posso garantir que nunca colocaram seus pés na colônia. Mas neste fim de ano uma esperança acendeu com a chegada de Eduard Schroeder, o filho do senador Schroeder. Quando viu a situação trágica em que se encontrava a colônia, demitiu sumariamente o enge- nheiro Hermann Guenther e assumiu pessoalmente a direção da colônia. E como foi marcante para mim aquele Natal na colônia. Um Natal sem neve, sem sinos de igreja e sem pinheiro iluminado, longe de tantas coisas que ficaram do lado de lá. Mas um Natal cheio de esperança. Para os que chegaram com a barca Colon em março de 1851, aquele era o primeiro Natal na nova pátria e tinha um significado especial. Muitos deles, ficaram meses na casa de recepção em péssimas condições, tiveram como primeira refeição um pão velho e embolorado trazido do navio e precisaram beber água diretamente do rio, estivesse limpo ou sujo... situações que nenhum recém-chegado imaginava passar. No Natal, muitos já estavam em seus terrenos; ainda em condições miseráveis, é certo, mas com esperança de construir suas casas e de fato uma nova vida. Afinal, nessa terra nunca faltou trabalho nem madeira. A madeira, aliás, é muito importante nas construções porque define toda a estrutura e encaixes na casa. O tipo de construção daqui não utiliza pregos. As paredes surgem de pedaços de madeira que vão sendo amarra- dos como uma espécie de grade, e sobre estas grades joga-se, por dentro e por fora, barro amassado até o ponto certo. Depois, este barro é alisado e seco e pintado com cal. O telhado é feito com folhas de palmiteiros ou de uma vegetação chamada sapé amarradas em ripas. Por fim, colocam-se as esquadrias e janelas de madeira e o chão é bem batido. Casas um pouco melhores têm chão de madeira e telhado coberto com telhas goivas, mas a essência da construção é sempre a mesma. Em 1852, realizamos o primeiro batizado aqui na colônia e todas as notícias começaram a ser apresentadas num jornal escrito a mão, criado pelo escrivão Karl Konstantin Knüppel, o Der Beobachter am Mathias Stromm (O Observador às Margens do Rio Mathias). Neste ano também, a colônia passou se chamar Joinville, em homenagem ao príncipe, e a data de fundação ficou sendo oficialmente o dia 9 de março. Foi aí que criaram a primeira constituição da colônia, com 34 parágrafos, que regulamenta a vida dos cidadãos, social, política e juridicamente. Não vou entrar nas questões políticas aqui da colônia, porque são muitas e muito complexas. O que posso garantir a vocês é que existe muita gente mal-intencionada, que não deseja de jeito nenhum que as pessoas aqui de Joinville se organizem de forma livre e demo- crática para cobrar melhorias na estrutura da cidade. Casa de Theodor Rodowicz, desenhada por ele mesmo em 1852. Fica na atual rua Princesa Isabel, em frente à Igreja da Paz Gravura que retrata tempestade no mar em um dos navios (Auswanderer auf Alter Zeitungsgrafik, publicação da Editora Worpsweder Verlag)

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Page 1: O momento mais trágico por aqui · O momento mais trágico por aqui foi quando acompanhei o enterro de pai e filho. O suíço Joseph Fabel, de 46 anos, e o menino Casper, de cinco,

O momento mais trágico por aqui foi quando acompanhei o enterro de pai e filho. O suíço Joseph Fabel, de 46 anos, e o menino Casper, de cinco, que chegaram na barca Colon, morre-ram de fome. Foi uma tragédia. E a direção da colônia nem tomou conhe-cimento da situação. Que desespero daquela mãe, que dor, que tristeza, que olhares inseguros de todos. Não havia um só imigrante que não se imaginasse sendo o próximo sepultado em meio àquela mata virgem. Ha-via um único médico na colônia, um norueguês, doutor Möller, que nada podia fazer porque não tinha estrutura para atender a tantos doentes e nem experiência. Famílias inteiras desapareceram assim.

E quem morria, naquele primeiro ano da colônia, era sepultado num cemitério improvisado no caminho do Jurapê, ao lado do ribeirão Mathias. Somente em dezembro de 1851, com a chegada do primeiro pastor, os enterros começaram a ser realizados na parte alta da cidade, na rua do Meio, no cemitério do Mittelweg. No final de 1851 corria o boato de que o príncipe de Joinville e a princesa Dona Francisca viriam morar nestas terras. Tudo mentira. Até agora, pelo menos, posso garantir que nunca colocaram seus pés na colônia. Mas neste fim de ano uma esperança acendeu com a chegada de Eduard Schroeder, o filho do senador Schroeder. Quando viu a situação trágica em que se encontrava a colônia, demitiu sumariamente o enge-nheiro Hermann Guenther e assumiu pessoalmente a direção da colônia.

E como foi marcante para mim aquele Natal na colônia. Um Natal sem neve, sem sinos de igreja e sem pinheiro iluminado, longe de tantas coisas que ficaram do lado de lá. Mas um Natal cheio de esperança. Para os que chegaram com a barca Colon em março de 1851, aquele era o primeiro Natal na nova pátria e tinha um significado especial. Muitos deles, ficaram meses na casa de recepção em péssimas condições, tiveram como primeira refeição um pão velho e embolorado trazido do navio e precisaram beber água diretamente do rio, estivesse limpo ou sujo... situações que nenhum recém-chegado imaginava passar. No Natal, muitos já estavam em seus terrenos; ainda em condições miseráveis, é certo, mas com esperança de construir suas casas e de fato uma nova vida. Afinal, nessa terra nunca faltou trabalho nem madeira.

A madeira, aliás, é muito importante nas construções porque define toda a estrutura e encaixes na casa. O tipo de construção daqui não utiliza pregos. As paredes surgem de pedaços de madeira que vão sendo amarra-dos como uma espécie de grade, e sobre estas grades joga-se, por dentro e por fora, barro amassado até o ponto certo. Depois, este barro é alisado e seco e pintado com cal. O telhado é feito com folhas de palmiteiros ou de uma vegetação chamada sapé amarradas em ripas. Por fim, colocam-se as esquadrias e janelas de madeira e o chão é bem batido. Casas um pouco melhores têm chão de madeira e telhado coberto com telhas goivas, mas a essência da construção é sempre a mesma.

Em 1852, realizamos o primeiro batizado aqui na colônia e todas as notícias começaram a ser apresentadas num jornal escrito a mão, criado pelo escrivão Karl Konstantin Knüppel, o Der Beobachter am Mathias Stromm (O Observador às Margens do Rio Mathias). Neste ano também, a colônia passou se chamar Joinville, em homenagem ao príncipe, e a data de fundação ficou sendo oficialmente o dia 9 de março. Foi

aí que criaram a primeira constituição da colônia, com 34 parágrafos, que regulamenta a vida dos cidadãos, social, política e juridicamente. Não vou entrar nas questões políticas aqui da

colônia, porque são muitas e muito complexas. O que posso garantir a vocês é que existe muita gente mal-intencionada, que não deseja de jeito nenhum que

as pessoas aqui de Joinville se organizem de forma livre e demo-crática para cobrar melhorias na estrutura da cidade.

Casa de Theodor Rodowicz, desenhada por ele mesmo em 1852. Fica na atual rua Princesa

Isabel, em frente à Igreja da Paz

Gravura que retrata tempestade no mar em um dos navios (Auswanderer auf Alter Zeitungsgrafik,

publicação da Editora Worpsweder Verlag)