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O mundo rural no Brasil do século 21

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  • O mundo rural noBrasil do sculo 21A formao de um novo padro agrrio e agrcola

    Antnio Mrcio BuainainEliseu Alves

    Jos Maria da SilveiraZander Navarro

    Editores Tcnicos

    Empresa Brasileira de Pesquisa AgropecuriaEmbrapa Estudos e Capacitao

    Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento

    Universidade Estadual de CampinasInstituto de Economia

    EmbrapaBraslia, DF

    2014

  • Exemplares desta publicao podem ser adquiridos na:

    Unidade responsvel pelo contedoEmbrapa Estudos e Capacitao

    Unidade responsvel pela edioEmbrapa Informao Tecnolgica

    Coordenao editorialSelma Lcia Lira BeltroLucilene Maria de AndradeNilda Maria da Cunha Sette

    Superviso editorialJuliana Meireles Fortaleza

    Reviso de textoCorina Barra SoaresAna Maranho Nogueira Letcia Ludwig Loder Maria Cristina Ramos Jub

    Normalizao bibliogrficaMrcia Maria Pereira de SouzaSabrina Dde de Castro Leite Degaut PontesIara Del Fiaco Rocha Celina Tomaz de Carvalho

    Projeto grfico e capaCarlos Eduardo Felice Barbeiro

    1 edio1 impresso (2014): 2.000 exemplares

    Todos os direitos reservados.A reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte,

    constitui violao dos direitos autorais (Lei n 9.610).Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Embrapa Informao Tecnolgica

    Embrapa 2014

    O mundo rural no Brasil do sculo 21 : a formao de um novo padro agrrio e agrcola / Antnio Mrcio Buainain, Eliseu Alves, Jos Maria da Silveira, Zander Navarro, editores tcnicos. Braslia, DF : Embrapa, 2014.1182 p. : il. color. ; 18,5 cm x 25,5 cm.

    ISBN 978-85-7035-336-8

    1. Agricultura. 2. Histria. 3. Economia agrcola. I. Buainain, Antnio Mrcio. II. Alves, Eliseu. III. Silveira, Jos Maria da. IV. Navarro, Zander. V. Embrapa Estudos e Capacitao. VI. Universidade Estadual de Campinas. VII. Instituto de Economia.

    CDD 630.981

    Embrapa Estudos e CapacitaoParque Estao Biolgica (PqEB)

    Av. W3 Norte (final)70770-901 Braslia, DFFone: (61) 3448-1599 Fax: (61) 3448-4890

    www.embrapa.brwww.embrapa.br/fale-conosco/sac

  • AutoresAdemar Ribeiro RomeiroEconomista, doutor em Economia, professor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campi-nas, SP

    Adriana BinEngenheira de alimentos, doutora em Poltica Cien-tfica e Tecnolgica, professora da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP

    Aldecy Jos Garcia de MoraesEconomista, mestre em Administrao, analista da Embrapa Amaznia Oriental, Belm, PA

    Aldenr Gomes da SilvaEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia Apli-cada, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN

    Alexandre Gori MaiaEstatstico, doutor em Economia Aplicada, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP

    Alfredo Kingo Oyama HommaEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia Rural, pesquisador da Embrapa Amaznia Oriental, Belm, PA

    Anderson GalvoEngenheiro-agrnomo, especialista em Adminis-trao de Empresas, fundador e diretor da Cleres, Uberlndia, MG

    Andra Leda Ramos de OliveiraEngenheira-agrnoma, doutora em Desenvolvimen-to Econmico, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP

    Andrei CechinEconomista, doutor em Administrao, ps-douto-rando na Universidade de Braslia (UnB), Braslia, DF

    Antonio Carlos GuedesEngenheiro-agrnomo, doutor em Fisiologia de Se-mentes, assessor tcnico do Centro de Gesto e Es-tudos Estratgicos (CGEE), Braslia, DF

    Antnio Jos Elias Amorim de MenezesEngenheiro-agrnomo, doutor em Sistemas de Pro-duo Agrcola Familiar, analista da Embrapa Ama-znia Oriental, Belm, PA

    Antnio Mrcio BuainainEconomista, doutor em Economia, professor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campi-nas, SP

    Arilson FavaretoSocilogo, doutor em Cincia Ambiental, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesqui-sador colaborador do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (Cebrap), So Paulo, SP

    Bastiaan Philip ReydonEconomista, doutor em Economia, professor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campi-nas, SP

    Camila Strobl SakamotoEconomista, doutoranda no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP

    Carlos A. M. SantanaEconomista, doutor em Economia Agrcola, pesqui-sador da Embrapa, Braslia, DF

    Danielle Alencar Parente TorresEconomista, doutora em Economia Agrcola e Re-cursos Naturais, pesquisadora da Embrapa Estudos e Capacitao, Braslia, DF

    Decio ZylbersztajnEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, pro-fessor da Universidade de So Paulo (USP), So Pau-lo, SP

    Eliana Teles BastosEconomista, mestranda na Universidade de Braslia (UnB), assistente tcnica do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (Mapa), Braslia, DF

    Eliana Valria Covolan FigueiredoEconomista, doutora em Economia Rural, pesquisa-dora da Embrapa, Braslia, DF

    Eliseu AlvesEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia Rural, pesquisador da Embrapa, Braslia, DF

    Elsio ContiniEconomista-agrcola, doutor em Economia Pblica, pesquisador da Embrapa Estudos e Capacitao, Braslia, DF

  • Felipe Prince SilvaEconomista, mestre em Desenvolvimento Econmi-co, scio da consultoria Agrosecurity e Agrometrika, Vinhedo, SP

    Fernando Bastos CostaEconomista, doutor em Cincias Sociais, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN

    Flavio BolligerEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, coor-denador de Agropecuria do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), Rio de Janeiro, RJ

    Geraldo da Silva e SouzaMatemtico e economista, doutor em Estatstica, pesquisador da Embrapa, Braslia, DF

    Geraldo SantAna de Camargo BarrosEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, pro-fessor da Universidade de So Paulo (USP), Piracica-ba, SP

    Henrique Dantas NederEconomista, doutor em Economia, professor da Uni-versidade Federal de Uberlndia (UFU), Uberlndia, MG

    Hildo Meirelles de Souza FilhoEconomista, doutor em Economia Agrcola, profes-sor da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar), So Carlos, SP

    Jos Eustquio Ribeiro Vieira FilhoEconomista, doutor em Economia, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea), Braslia, DF

    Jos Garcia GasquesEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, coor-denador de Planejamento Estratgico do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento (Mapa), Braslia, DF

    Jos Maria da SilveiraEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, pro-fessor da Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp), Campinas, SP

    Jlio Csar dos ReisEconomista, mestre em Economia, pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril, Sinop, MT

    Junior Ruiz GarciaEconomista, doutor em Economia, professor da Uni-versidade Federal do Paran (UFPR), Curitiba, PR

    Luiz Carlos de Brito LourenoAdministrador, doutor em Cincias Sociais, professor da Universidade de Braslia (UnB), Braslia, DF

    Marcus PeixotoEngenheiro-agrnomo, doutor em Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, con-sultor legislativo do Senado Federal, Braslia, DF

    Maria Sylvia Macchione SaesEconomista, doutora em Economia, professora da Universidade de So Paulo (USP), So Paulo, SP

    Maria Thereza Macedo PedrosoEngenheira-agrnoma, mestre em Desenvolvimen-to Sustentvel, pesquisadora da Embrapa Hortalias, Braslia, DF

    Miguel Angelo PerondiEngenheiro-agrnomo, doutor em Desenvolvimen-to Rural, professor da Universidade Tecnolgica Fe-deral do Paran (UTFPR), Pato Branco, PR

    Moiss Villamil BalestroSocilogo, doutor em Cincias Sociais, professor da Universidade de Braslia (UnB), Braslia, DF

    Norma KiyotaEngenheira-agrnoma, doutora em Desenvolvimen-to Rural, pesquisadora do Instituto Agronmico do Paran (Iapar), Pato Branco, PR

    Pedro Abel Vieira JniorEngenheiro-agrnomo, doutor em Agronomia, pes-quisador da Embrapa Estudos e Capacitao, Bras-lia, DF

    Pedro LoyolaEconomista, mestrando na Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUC-PR), coordenador do De-partamento Tcnico e Econmico da Federao da Agricultura do Estado do Paran (Faep), Curitiba, PR

    Pedro RamosEconomista, doutor em Economia Aplicada Admi- nistrao, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP

    Rodrigo Lanna Franco da SilveiraEconomista, doutor em Economia Aplicada, pro-fessor da Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp), Campinas, SP

  • Sergio Salles-FilhoEngenheiro-agrnomo, doutor em Economia, pro-fessor da Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp), Campinas, SP

    Silvia Kanadani CamposMdica-veterinria, doutora em Economia Aplicada, pesquisadora da Embrapa Estudos e Capacitao, Braslia, DF

    Steven M. HelfandEconomista, doutor em Economia Agrcola, professor da Universidade da Califrnia, Riverside, Estados Unidos

    Vanessa da Fonseca PereiraAdministradora, doutora em Economia Aplicada, analista da Embrapa, Braslia, DF

    Wagner Lopes SoaresEconomista, doutor em Sade Pblica e Meio Am-biente, analista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), Rio de Janeiro, RJ

    Zander NavarroEngenheiro-agrnomo, doutor em Sociologia, pes-quisador da Embrapa Estudos e Capacitao, Bras-lia, DF

  • AgradecimentosComo organizadores desta iniciativa multi-institucional de colaborao cientfica,

    desejamos registrar nossos sinceros agradecimentos a uma srie de colegas e instituies, os quais foram decisivos para viabilizar um esforo que foi timidamente iniciado, mas, ao final, se tornou de complexa administrao geral, pois se expandiu de forma inusitada.

    Agradecemos profundamente aos colegas pesquisadores que se engajaram na ini-ciativa. Todos concordaram imediatamente em reservar parte de seu precioso tempo para elaborar captulos inditos que dialogassem com as sete teses. De extrema importncia como registro, nesses tempos de crescente mercantilizao da vida acadmica, foram par-ticipaes voluntrias, generosas e desprendidas, embora totalmente comprometidas e rigorosas (como facilmente se depreender da leitura dos captulos a seguir). A atitude dos colegas participantes no nos surpreendeu, como claro, pois so profissionais de slida reputao que conhecemos da vida acadmica. Entretanto, fato que precisa ser realado, pois vivemos tempos de corroso tica e eroso dos valores mais caros e fundamentais da vida universitria e do mundo da cincia. Em um perodo sob o qual nem mesmo os mais estabelecidos e tradicionais cnones conseguem impor-se nas prticas da pesquisa e da vida universitria, pois abafados por um hiper-relativismo associado a impressionante rebaixamento das exigncias cientficas, a experincia deste livro sugere que ainda existem sopros de esperana. A todos os colegas, registramos os nossos mais sinceros agradeci-mentos lidar com todos foi experincia de profunda gratificao acadmica e intelectual.

    Aos dirigentes das instituies que nos apoiaram irrestritamente desde o primeiro esboo do projeto a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa) e o Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) , registramos sensibili-zados os nossos agradecimentos. Mencionamos tambm o Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA), atravs de seu escritrio no Brasil, o qual igualmente aderiu, com entusiasmo, proposta apresentada, aportando recursos financeiros que con-triburam para viabilizar esta publicao.

    Tambm desejamos registrar o apoio competente e profissional, mas tambm generoso e irrestrito, da equipe da Embrapa Informao Tecnolgica, dirigida por Selma Lcia Lira Beltro. Essa uma Unidade que, sem dvida, orgulha imensamente a Empresa. A equipe editorial, coordenada por Lucilene Maria de Andrade, e supervisionada por Nilda Maria da Cunha Sette, composta por Juliana Meireles Fortaleza (editora), Ana Maranho Nogueira, Carlos Eduardo Felice Barbeiro, Corina Barra Soares, Iara Del Fiaco Rocha, Letcia Ludwig Loder, Mrcia Maria Pereira de Souza, Maria Cristina Ramos Jub e Sabrina Dde de Castro Leite Degaut Pontes. Formam um grupo especial de colegas, cujo trabalho foi irrepreensvel em seu extremado zelo e rigor na produo do livro. Outros colegas daquela Unidade estiveram envolvidos, e somos gratos a todos por suas contribuies especficas para a materializao final do livro.

  • Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura50 anos de uma trajetria exemplar no Brasil

    Como organizadores deste livro, desejamos manifestar a nossa alegria de poder con-tar com o apoio do Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA), o que viabilizou a preparao e produo desta publicao e que nos honrou profundamente. Esse fato sobretudo motivo de satisfao por estabelecer uma parceria de trabalho exa-tamente no ano em que o instituto comemora meio sculo de inmeras realizaes a favor do Brasil e, em especial, a favor do desenvolvimento de suas regies rurais.

    O IICA chegou ao Brasil em meados dos anos 1960, pouco antes de um perodo histrico em que o Pas iniciou fortemente a integrao econmica do mundo rural. Havia ento uma ntida carncia de recursos humanos qualificados para atender s novas deman-das associadas deciso estratgica de desenvolver um setor da economia brasileira que, mais tarde, se tornaria um dos maiores players do mercado de commodities internacional e modelo de polticas pblicas inclusivas no campo. A partir da admisso do Brasil como pas-membro, o IICA colaborou substantivamente para a extenso agrcola, a pesquisa agropecuria, os planos de desenvolvimento regional e os diversos programas e atividades destinados formao de pessoal para a academia e para o campo.

    Na dcada seguinte, o processo de modernizao produtiva exigiu diversas ini-ciativas inovadoras do Estado brasileiro, entre as quais o estabelecimento, em 1973, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa). Foram, assim, lanadas as razes que posteriormente garantiram competitividade e eficincia produtiva em diversos seto-res da produo agropecuria. O ento representante do IICA no Brasil, Jos Irineu Cabral, manteve ativa atuao no grupo destacado pelo ministro da Agricultura da poca, Luiz Fernando Cirne Lima, para elaborar a proposta de organizao institucional da pesquisa agropecuria nacional. Entre as proposies do grupo, estava a criao de uma empre-sa pblica federal para realizar e promover a pesquisa agrcola, como parte do Sistema Nacional de Cincia e Tecnologia. Estabelecida a Embrapa, Jos Irineu Cabral foi cedido pelo diretor geral do IICA, Jos Emlio Arajo, ao governo brasileiro e se tornou o primeiro presidente da Embrapa.

    Ao longo de seus 50 anos de profcua presena no Brasil, o IICA tem contribudo em diversas iniciativas estratgicas e relevantes para o desenvolvimento rural brasileiro. Siste-mas de irrigao em diversas regies, por exemplo, contaram com a cooperao tcnica do instituto para sua implantao e consolidao. O instituto tambm tem historicamente desenvolvido projetos que ultrapassam as fronteiras agrcolas para, a partir delas, gerar bem-estar para toda a sociedade. Na dcada de 1980, por exemplo, o IICA cooperou dire-tamente com as secretarias de Educao do Amazonas, Cear, Esprito Santo, Pernambuco,

  • Piau, Rio de Janeiro e So Paulo, fomentando programas de expanso e qualificao da educao bsica populao rural.

    As transformaes sociais e econmicas no campo tm sido objeto de estudo para os especialistas do organismo internacional. Exemplos so os recentes projetos A Nova Cara da Pobreza Rural no Brasil: Transformaes, Perfil e Desafios para as Polticas Pblicas e Repensando o Conceito de Ruralidade no Brasil: Implicaes para as Polticas Pblicas, os quais constituem importantes insumos para aperfeioar o desenho e a execuo das polticas pblicas. O IICA tambm discute e promove as melhores prticas de convivncia com a seca, iniciativa que busca melhorar as condies de vida no Semirido com os pr-prios conhecimentos das populaes que vivem na regio. O fortalecimento da Secretaria de Defesa Agropecuria outra iniciativa que sublinha a parceria com o governo federal, visando assegurar e aprimorar o status sanitrio do Pas e prevenir o ingresso de pragas e doenas no territrio nacional.

    Esses so apenas alguns dos inmeros exemplos que integram o variado conjunto de projetos do instituto, atualmente com mais de 30 parceiros. Ao completar 5 dcadas de colaborao para o desenvolvimento brasileiro, o IICA assume novos desafios, em conso-nncia com as principais demandas da sociedade, procurando contribuir substantivamente para a promoo de uma agricultura competitiva, sustentvel e socialmente inclusiva.

  • ApresentaoA histria da agricultura mundial no ltimo meio sculo tem sido, sobretudo, a his-

    tria de transformaes produtivas, impulsionadas pela cincia e pela intensificao tec-nolgica, e a resultante expanso da capacidade produtiva, pari passu com o crescimento da demanda de alimentos. Nesse perodo, afirmou-se um arranjo tecnolgico que atendeu aos interesses dos produtores e dos demais atores envolvidos, e que a literatura, a seu tempo, intitulou de agricultura moderna, padro que gradualmente foi disseminado nas regies agrcolas do mundo, inicialmente na Europa e posteriormente em outras regies. Esse pioneiro impulso tecnolgico transformou radicalmente as agriculturas de diversos pases, inclusive as de muitas regies agrcolas do Brasil, fomentando a modernizao da atividade a partir do final dos anos 1960. A prpria Embrapa, que viria a ter um papel central nesse processo, foi criada como parte desse esforo, em 1973. Promoveu-se, desde ento, uma transformao tecnolgica e organizacional que lanou as sementes formadoras de impressionantes competncias entre os produtores e alicerou as capacidades produtivas que viabilizaram a expanso econmica e comercial da agricultura nas dcadas seguintes. Essa seria a marca da agricultura brasileira na virada do sculo 21, colocando-a como o motor mais dinmico da economia brasileira.

    Esse processo foi certamente desigual e heterogneo, como seria inevitvel em face da profundidade, do escopo e da abrangncia territorial das mudanas socioeconmicas desencadeadas no meio rural brasileiro. Tampouco foi linear, e no caminho foram (e tm sido) encontrados diversos obstculos, decorrentes da crescente integrao econmica entre a agropecuria, a indstria e os setores de servios associados s nascentes cadeias produtivas, dificuldades que nem sempre foram enfrentadas com base em uma viso es-tratgica clara da importncia e do papel da agricultura para o desenvolvimento brasileiro. A densidade financeira e a complexidade das estruturas chamadas de cadeias agroalimen-tares no se formariam sem tenses, inmeras contradies e at mesmo conflitos.

    Em perodo mais recente, que data provavelmente da segunda metade da dcada de 1990, a agropecuria brasileira passou a vivenciar outro momento de sua histria. A dimenso financeira tornou-se ainda mais significativa, tanto para os produtores diretos quanto para todos os atores sua volta, dos fornecedores de insumos aos processadores das mercadorias agrcolas, e tambm para o Estado, e suas polticas, e ainda para as novas instituies que foram nascendo. Animados pela extraordinria expanso produtiva e pelo papel destacado que o Brasil assumiu no plano internacional, os produtores, protagonis-tas dessas transformaes, intensificaram os investimentos e esto se preparando para transformar o Brasil no maior produtor mundial de alimentos e matrias-primas de origem agropecuria. Os obstculos no so pequenos e envolvem mltiplas frentes de ao como infraestrutura da logstica, tecnologia e marco institucional , para manter a susten-tao do padro tcnico que atualmente se consolida com robustas razes no Brasil, e que est na base do crescimento da agricultura brasileira. Nenhum fator to importante como

  • as exigncias de manter e ampliar a capacidade de gerar tecnologia e, ao mesmo tempo, de intensificar o processo de inovao e estend-lo para as regies e os produtores que ainda no se integraram a esse processo de transformao.

    Diante desse breve quadro histrico, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa), o Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA), com imenso orgulho e justa alegria, oferecem aos interessados este amplo e denso livro. Amplo por seu incomum nmero de captulos e pginas, e denso sobretudo em relao amplitude dos subtemas analisados e s competncias acumuladas para tratar o estado atual, os desafios e as pers-pectivas da agropecuria brasileira.

    Trata-se de uma iniciativa singular em nossa histria acadmica e cientfica. Reunindo 51 pesquisadores e um grande nmero de instituies que abrigam esses experimentados estudiosos da dinmica social e econmica das regies rurais, nossa expectativa que este volume possa ser um referencial na literatura dedicada interpretao dos principais pro-cessos que atualmente determinam os contextos setoriais, regionais e as especificidades de diversas partes das complexas cadeias agroalimentares que vo sendo estruturadas nas regies rurais. E assim, h de ser um divisor de guas em nossos estudos sobre a histria rural brasileira. Mesmo que a principal tese-guia que comanda o esforo analtico do grupo de pesquisadores possa ser recebida com alguma cautela, em seus ngulos conceituais e em suas evidncias prticas, parece ser mesmo inegvel que a atividade econmica agro-pecuria entrou em uma nova fase de sua histria, com profundas implicaes para todos os segmentos, direta ou indiretamente envolvidos, o que repercutir gradualmente at mesmo em instituies de forte consolidao e que adentram outras esferas da vida social, como, por exemplo, as instituies universitrias dedicadas educao superior, como os cursos de Agronomia. preciso, como faz o conjunto de pesquisadores que assinam os ca-ptulos, aprofundar os debates, promover mais pesquisas empricas detalhadas, intensificar as discusses entre todos os interessados, agentes pblicos e privados, pesquisadores e atores sociais e econmicos vinculados vida rural, sendo essa a nica forma de encontrar caminhos para enfrentar os bloqueios que se formam e para promover interpretaes consistentes sobre as realidades agrrias. Mas tambm para intensificar e estimular as dimenses positivas e virtuosas desse processo de transformao produtiva a favor, sem-pre, da sociedade brasileira e de seu bem-estar.

    Nossas instituies sentem-se profundamente recompensadas e gratas aos seus autores: no houve alocaes financeiras para a sua realizao todos os pesquisadores ofereceram o melhor de seus esforos intelectuais, de forma voluntria e sem nenhuma remunerao, em um genuno envolvimento acadmico, tpico das melhores tradies da atividade cientfica. Trata-se, em sua maioria, de um grupo de pesquisadores jovens, mas igualmente inclui alguns dos nomes mais representativos e consolidados das Cincias Sociais no Brasil; iniciativa que integra instituies as mais diversas, pblicas e privadas, federais e estaduais; agrega vrias unidades da Embrapa, situadas em regies com distintas

  • facetas produtivas; rene especialistas em temas muito particulares e que tratam a nova agricultura e seu padro produtivo por ngulos variados, assim como vrios economistas, socilogos, engenheiros, agrnomos, cientistas polticos e juristas. Ademais, a publicao, repercutindo uma atividade econmica que se tornou grandiosa em sua magnitude eco-nmica e financeira, oferece contribuies de profissionais ligados s empresas privadas, talvez sugerindo uma atitude nova, que seria saudvel para o Brasil o dilogo mais fre-quente e aberto entre setor pblico e agentes privados participantes das cadeias agroa-limentares, entre universidade e instituies de pesquisas e entre setor produtivo e em-presas. O livro , portanto, resultado de um esforo plural, no mais abrangente e generoso sentido que se pode atribuir a esse atributo, to essencial da democracia.

    Eis o livro, disposio de todos os interessados. Que a sua publicao cumpra a promessa potencial estimular fortemente o debate, multifacetado e rigoroso, sobre o momento atualmente vivido pela produo agropecuria e seus atores, sobretudo as famlias rurais que perseveram na atividade. O Brasil precisa de uma agropecuria que seja economicamente slida, mas tambm requer regies rurais prsperas e mais justas no tocante distribuio da riqueza gerada. Que este livro possa tambm contribuir para que o Brasil trilhe esse caminho virtuoso.

    Maurcio Antnio Lopes Fernando Sarti Manuel OteroPresidente da Embrapa Diretor do Instituto de

    Economia da UnicampRepresentante do

    Escritrio do IICA no Brasil

  • Prolegmenos

    O passado no presente: a viso do economista

    A agropecuria brasileira um sucesso

    A produo agropecuria brasileira vem crescendo de forma extraordinria. Em 1975, a colheita de gros foi de 45 milhes de toneladas, expandiu-se para 58 milhes em 1990 e, finalmente, atingiu 187 milhes em 2013.

    Mais importante do que isso, os preos relativos de alimentos reduziram-se drastica-mente: utilizando os dados do ndice de custo de vida da Fundao Instituto de Pesquisas Econmicas (Fipe), o custo de alimentao em So Paulo caiu mais que 5% ao ano, entre 1975 e 2007, ficando relativamente estvel de l para c. A populao beneficia-se, assim, de um melhor padro alimentar, o que eleva seu bem-estar. Os programas de transferncia de renda no teriam tido o sucesso que tiveram, nem o mesmo impacto sobre o consumo de bens industriais, se os preos de alimentos no tivessem mostrado esse comportamento.

    Simultaneamente, a agropecuria brasileira sempre trabalhou num contexto de abertura ao resto do mundo, operando de forma concorrencial. Nesse contexto, o Pas transformou-se num grande player global, cada vez mais relevante. Em 1990, o saldo da balana agrcola, medido em dlares, foi de US$ 7 bilhes (dados da World Trade Organiza-tion WTO), nmero que, at 2011, cresceu dez vezes, atingindo US$ 73 bilhes, expanso muito maior do que a de qualquer outra nao. Isso tambm tem efeito macroeconmico destacado, uma vez que a balana comercial agrcola em 2013 foi de 83 bilhes de dlares, enquanto o saldo total foi de apenas 3 bilhes. O Pas um dos quatro maiores exportado-res de acar, soja, milho, suco de laranja, caf, algodo, sunos, aves e bovinos.

    Do jogo global dos produtos agropecurios participam quatro grandes naes: Chi-na e ndia, representando os maiores acrscimos no consumo (e, no caso da China, na im-portao), e Brasil e Estados Unidos, que disputam, palmo a palmo, a condio de grandes supridores globais. Acreditamos que essa tendncia s se reforar at 2020, considerando as grandes dificuldades pelas quais passa o setor do agronegcio, na Argentina, na Austr-lia, na Rssia e na Ucrnia, seja por razes de instabilidade poltica, seja por efeito do clima.

    Como bastante conhecido, esse crescimento s foi possvel pela persistente ampliao da produtividade, resultado de fatores que discutiremos adiante.

    Aqui, chamamos a ateno para o fato fundamental de que o agronegcio o nico segmento relevante da economia brasileira, e que tem, no progresso tcnico, o centro de seu modelo de negcios. E sua importncia tanto maior quanto mais comparada com a baixa produtividade da economia brasileira, em geral, que vem crescendo timidamente nos ltimos anos.

  • Esse crescimento, da produo e da produtividade, resultou em um grande alon-gamento da cadeia produtiva agrcola, com a expanso de vnculos com as indstrias de fornecimento e de processamento, e com a crescente ligao com servios sofisticados, de pesquisa, experimentao e difuso, e de consultorias em reas da tecnologia da in-formao, gentica animal, agricultura de preciso, e de todos os demais tipos de servios relacionados propriedade e s indstrias da cadeia de produo. Infelizmente, ainda est por ser reconhecida toda a importncia e os efeitos positivos da expanso da agropecuria no bojo da economia brasileira.

    As razes desse sucesso so vrias. Naturalmente, vem em primeiro lugar a farta (mas no ilimitada) disponibilidade de terra, de sol e de gua. No caso da terra, a disponibilidade de reas tal que a agricultura poder crescer muito, sem depender da tradicional derruba-da de floresta nativa. Apenas as reas degradadas de pasto permitem essa expanso. Esses excedentes so estimados em 90 milhes de hectares e comparam-se com uma rea total utilizada para lavouras de 60 milhes de hectares.

    A chave do sucesso, como j amplamente reconhecido, veio do desenvolvimento de um importante sistema de pesquisa, composto pela Embrapa, por instituies estaduais, pelas universidades e, mais recentemente, por instituies privadas. Chamamos a ateno para a forte interao entre as instituies pblicas e o setor produtivo, um caso quase nico no panorama acadmico brasileiro. Naturalmente, essa interao afina as questes postas para a pesquisa e facilita a obteno de resultados positivos, coisa pouco relevante no caso da indstria, que, em geral, busca na importao a soluo de suas questes tec-nolgicas. O esforo de pesquisa assentado sobre as caractersticas especficas do territrio brasileiro acabou por produzir pacotes tecnolgicos adaptados e responsveis pela grande tropicalizao da agricultura brasileira, que em pouco tempo saiu das reas temperadas do Sul do Brasil e chegou ao sul do Piau e do Maranho.

    A adaptao ao Cerrado, como se sabe, abriu amplas reas ao cultivo. Ademais, o sistema de plantio direto, muito ajustado ao solo brasileiro, permitiu duas e at mesmo trs safras em uma mesma rea, otimizando a produo e o uso de insumos, e elevando a pro-dutividade por rea. Alm disso, o recente desenvolvimento do programa de integrao lavoura-pecuria-floresta permite tambm a recuperao de reas degradadas e de baixa produtividade. Essas tecnologias so vlidas para qualquer tamanho de propriedade, mas so particularmente efetivas para grandes escalas de produo, especialmente quando ajustadas a reas novas.

    O conjunto dessas atividades produziu efeitos ambientalmente positivos. Fixao biolgica do nitrognio, controle biolgico e integrado de pragas, utilizao de biodiges-tores para tratamento de resduos animais e plantio direto so exemplos de tecnologias amigveis ao meio ambiente. A utilizao de defensivos foi largamente racionalizada, reduzindo o excesso na sua utilizao e o nmero de acidentes do trabalho decorrentes da atividade. O Pas tem o mais amplo sistema do mundo de reciclagem de embalagens

  • de defensivos. E largamente conhecida a contribuio positiva, ao meio ambiente, da produo de biocombustveis produzidos com base na cana-de-acar, atestados interna-cionalmente. Prticas reconhecidamente nocivas, como o despejo de vinhoto nos rios, so coisas do passado.

    O setor agropecurio chega a 2014 como um segmento muito grande. A cadeia pro-dutiva bem longa e deve representar, hoje, aproximadamente 25% do PIB. O ano de 2013 foi exemplar: enquanto a indstria cresceu 1,3%, e o setor de servios, 2%, a agropecuria expandiu-se 7%. Mais ainda, os segmentos industriais que se ligam ao agro foram os que melhor desempenho mostraram: caminhes, tratores, implementos, fertilizantes, defensi-vos e produtos veterinrios.

    Contrapor agricultura a indstria um conceito superado. Boa parte deste ltimo setor trabalha em conjunto com a produo agrcola e demonstra forte dinamismo tecno-lgico, compondo o que se chama de agronegcio.

    A ttulo de ilustrao, dois casos, emblemticos, merecem ser lembrados. O primeiro vem da empresa Enalta, que produz sistemas de gesto de logstica, de controle de equipa-mentos e agricultura de preciso, entre outros. Ela foi eleita, em 2013, uma das 50 empre-sas mais inovadoras do mundo (ao lado da Google Incorporation e outros gigantes), pela revista Fast Company. Em 2012, a Bug Agentes Biolgicos (da rea de controle biolgico de pragas) j havia recebido a mesma distino. Outro exemplo so os caminhes aqui produzidos, to modernos quanto os europeus. E isso no acontece por acaso tem tudo a ver com a competio e o dinamismo do agronegcio.

    A interao agricultura-indstria seria ainda maior se no houvesse o controle ar-tificial do preo da gasolina e de equvocos na poltica de energia eltrica, uma vez que poderamos ter uma grande expanso adicional nas reas de biocombustveis avanados, bioeletricidade e alcoolqumica.

    Novos desafios e o passado no presente

    O processo de desenvolvimento econmico caracteriza-se por uma constante mu-dana e uma sucesso de desafios, que surgem a cada sucesso. Ao mesmo tempo, fatores externos sempre estaro criando novas agendas, como o caso da discusso sobre o aque-cimento global e seus impactos no setor, algo inexistente h 15 anos. Da porque, apesar do enorme avano e da mudana no crescimento agrcola, a lista atual de desafios continua a ser grande. o que tentamos mostrar em seguida.

    A infraestrutura brasileira ficou pequena para acomodar o extraordinrio crescimen-to da produo e dos mercados. Individualmente, esse, sem dvida, o maior problema do setor, uma vez que os gastos com o complexo armazm-transporte-porto esto se tornando proibitivos e j limitam a expanso da rea plantada. Essa uma questo conhe-cida e que patina h bastante tempo. Novos corredores de exportao, particularmente a

  • construo de uma sada pelo Norte do Pas, so indispensveis, e continuaro a pressionar o sistema produtivo, mesmo agora, quando comeam a amadurecer alguns projetos mais viveis para a soluo da questo. Certamente, a infraestrutura s melhorar quando a con-fiana e a regulao forem de tal ordem que possam atrair grupos considerveis de capital privado. Na verdade, a melhor forma de aumentar a produtividade da economia brasileira nos dias de hoje a construo de uma boa soluo logstica. Isso vale tanto para o campo quanto para a cidade. Ganhos nessa rea implicaro mais renda e mais produo, maiores exportaes e menores preos para os consumidores.

    O prprio sucesso do pacote tecnolgico desenvolvido nas ltimas dcadas introduz permanentes desafios agronmicos, tanto para a pesquisa quanto para a produo. Neste ltimo caso, a intensificao dos cultivos num ambiente tropical mantm a porta aberta para novas pragas, como foi o caso recente da rpida expanso da ameaadora lagarta extica Helicoverpa armigera, que ainda desafia o agricultor e acrescenta mais custos produo. De fato, preciso registrar que a verdadeira soluo teria de passar por uma ampliao de atividades preventivas (rotao de culturas, manejo integrado de pragas, vazio sanitrio e reas de refgio), que so atendidas apenas de forma parcial. Por sua vez, os desafios agronmicos foram apontados no excelente artigo Sete teses sobre o mundo rural brasileiro, publicado como anexo neste volume.

    Do ponto de vista institucional, e este o terceiro desafio, cabe registrar que o Minis-trio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento est muito enfraquecido. A contnua troca de titulares, numa estrutura na qual operam quase 40 ministrios, torna a coordenao entre unidades quase impossvel. Entretanto, a maior parte da agenda que afeta o setor multidisciplinar e, assim, extrapola a atuao do Ministrio da Agricultura, o que torna extraordinariamente difcil o encaminhamento satisfatrio das questes regulatrias. Isso particularmente verdadeiro no que tange aprovao de novas variedades geneticamente modificadas e a de novos defensivos e produtos veterinrios de qualquer natureza. Por trs dessa situao, existe mais do que confuso burocrtica: existe uma questo ideolgica no resolvida e mal acomodada no nosso presidencialismo de coaliso. A resistncia, hoje, est fortemente concentrada na Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa), que sistematicamente tenta impedir a aprovao de produtos ecologicamente equilibrados, j em uso em regies que tm grande cuidado com o meio ambiente, como a Europa. Essa postura complica, tambm, um enfrentamento de emergncias, a exemplo do caso da He-licoverpa. Quanto aos organismos geneticamente modificados, cada vez mais se acumulam evidncias de que, com os devidos cuidados, sua utilizao benfica para a produo, sem colocar em risco a sade da populao ou o meio ambiente. A informao aqui massiva.

    Alm das questes regulatrias, importante registrar que o oramento do Minis-trio da Agricultura vem sendo reduzido drasticamente, afetando programas referentes a questes de riscos sanitrios, rastreabilidade, inteligncia comercial externa, entre outros. Muitas dessas atividades produzem bens pblicos e jamais podero ser adequadamente resolvidas pelo setor privado. Nesse meio tempo, corremos riscos maiores que os necess-

  • rios, que podero, eventualmente, custar bastante no futuro. Basta pensar nas dificuldades inerentes erradicao da febre aftosa.

    Nos ltimos dois anos, a seca no Nordeste no foi dramtica: no houve registros de fome generalizada entre a populao ou a necessidade de recorrer a frentes emergenciais de trabalho. Entretanto, a fragilidade do sistema produtivo mostrou-se praticamente igual do passado, implicando um custo gigante. Por exemplo, estima-se que 40% dos plantis tenham morrido ou tenham sido sacrificados apressadamente. Os mecanismos de trans-ferncia de gros no funcionaram a contento, e a perda de capital dos agricultores foi enorme.

    O adequado manejo de gua no Pas ainda limitado. O caso do rio So Francisco revelador: o rio est definhando, os prometidos programas de revitalizao no ocorreram, e o projeto de transposio est inconcluso. Alm disso, possvel que as outorgas de gua para irrigao tenham ido alm do razovel, o que estaria impedindo a recomposio dos reservatrios na regio e reduzindo a produo de energia eltrica. O Pas simplesmente no tem ainda um bom programa de manejo integrado de gua, algo que est se tornando um problema global.

    Uma questo antiga as relaes de trabalho na agricultura ainda permanece tumultuada, a despeito do fato de o documento legal que estatui normas para o trabalho no campo ser datado de 1973. Questes ligadas jornada de trabalho, ao transporte e alimentao de trabalhadores no residentes na propriedade vm sendo objeto de disputa judicial, com alguma regularidade. Esse tambm o caso dos trabalhadores migrantes, aqueles provenientes de outras regies, que so contratados temporariamente para pero-dos de colheita (os chamados safristas). At hoje no existe uma regulamentao adequa-da para o trabalho temporrio, atividade rural obrigatria no mundo inteiro, em pocas de colheita. Ademais, aqui e ali emergem denncias de trabalho escravo nessas regies, onde os trabalhadores so invariavelmente submetidos a situaes degradantes de alimentao, habitao, sade, higiene e segurana.

    Finalmente, uma questo tipicamente urbana inseriu-se no contexto rural: a disputa sobre terceirizao de atividades. J antiga a acusao feita por sindicatos, e aceita pelo Ministrio Pblico e pela Justia do Trabalho, de que a terceirizao de atividades, da forma como tratada, sinnimo de precarizao de servios, o que leva as autoridades a no aceitar a terceirizao de servios se a julgarem como atividade-fim da empresa. Como, porm, no h uma definio que discrimine, com clareza, a atividade-meio da atividade--fim, prevalece a interpretao do juiz, o que vira objeto de inmeras contestaes por parte dos empresrios. Esses, por sua vez, argumentam, com alguma razo, que no mundo moderno muitas atividades so exercidas em grupos de empresas. O exemplo mais co-mum so as atividades de informtica: para a maior parte das empresas, a contratao de terceiros decisiva, pois no tm nem porte nem capacidade financeira para manter uma equipe prpria. No caso da agricultura, existe uma ao antiga que busca evitar a atividade

  • de terceirizao de plantio, cultivo e colheita de laranjas, operada pelas grandes indstrias de suco.

    Outra questo antiga, e ainda insolvel, a inadequao de muitas normas tribu-trias ao setor agrcola. Por exemplo, a guerra fiscal entre estados, no que diz respeito ao ICMS, produz distores difceis de equilibrar. O dispositivo legal que isenta de impostos as exportaes foi regulado pela Lei Kandir. Entretanto, a maior parte dos estados e seus agricultores reclamam que a compensao federal que aquela lei devia garantir tem sido grosseiramente subestimada, prejudicando estados tipicamente exportadores, como o caso de Mato Grosso. Na mesma direo, os produtores de produtos processados queixam- se, e com razo, de que acumulam crditos fiscais de PIS-Cofins e ICMS que no conseguem utilizar, mas que so recolhidos aos cofres estaduais e federais. Os crditos no utilizados j esto na casa dos bilhes. Por fim, outra deformao que decorre da regulamentao tributria o fato de que muitas empresas rurais com grande faturamento ainda so ope-radas por pessoa fsica, j que, nessa condio, o imposto de renda muito mais favorvel (a conhecida Cdula G). Ora, medida que o volume de operaes de crdito e passivos dessas empresas cresce, sua operao comercial vai se complicando, principalmente para os financiadores, em virtude de esses agricultores no elaborarem balanos auditveis.

    O meio ambiente outra rea na qual o passado projeta-se no presente, e isso se refletiu nos longos debates em torno do Cdigo Florestal. A regulamentao completa ainda no ocorreu. Nesse meio tempo, permanecem conflitos entre o Ministrio Pblico, alguns ministrios e agricultores. De qualquer forma, o ponto positivo que se avanou na necessidade de recomposio de reas de florestas e de mata ciliar. Parece razovel dizer que o processo de regulamentao est chegando ao final. Remanesce ainda a questo das queimadas na Amaznia, hoje menores do que no passado. Muitas aes pblicas e privadas esto concorrendo para esse resultado, mas a ao de madeireiros ilegais continua, com a abertura desordenada de reas, resultante da destruio da floresta, at mesmo em reas de assentamentos. O setor agropecurio no precisa, porm, destruir florestas para se expandir.

    Felizmente, ocorreram muitos avanos no que diz respeito sustentabilidade, com o auxlio decisivo da pesquisa. Em geral, o sistema agrcola brasileiro sustentvel, o que no significa ser imvel. Novos desafios continuaro a existir (como o impacto das mudanas climticas, no futuro, sobre as condies de produo) e tero de ser enfrentados, mas no h nada que, seriamente, se oponha continuidade da trajetria de avano. A ideia de certos movimentos sociais, de voltar aos tempos coloniais, simplesmente bizarra.

    Tudo leva a considerar que, ao lado do sucesso global, existem distintas situaes re-gionais que merecem ateno e, eventualmente, alguma correo decorrente de polticas pblicas.

    A ltima observao relevante a ser feita tem a ver com pequenas e mdias pro-priedades. Embora vrias tecnologias modernas sejam igualmente aplicveis a diversos tamanhos de propriedade, claro que existem ganhos de escala e reduo de custos

  • medida que a rea cultivada eleva-se. Por exemplo, estima-se que o custo de uma saca de caf produzida em uma situao de mecanizao 20% menor do que o custo da mes-ma saca utilizando-se tratos e colheitas manuais e tradicionais. Isso tende a colocar em desvantagem as propriedades menores, particularmente aquelas que esto em reas no mecanizveis.

    Refora esse movimento a tendncia crescente de elevao do custo de trabalho, tanto no que se refere ao salrio direto, quanto no que diz respeito aos custos indiretos. Como resultado, a concentrao da produo na rea de gros, por exemplo, crescente. Essa concentrao no inexorvel, considerando que estruturas organizacionais, como cooperativas, podem reduzir, e muito, a desvantagem de propriedades menores, desde que bem administradas. Esse especialmente o caso dos trs estados do Sul do Pas, re-gies de larga tradio cooperativista. Em segmentos especficos, como frutas e flores, a diferenciao por tamanho menor, dadas as dificuldades de mecanizao da colheita. Nesse caso, o fator de competitividade est mesmo na produo por rea. Ainda assim, bastante claro que, para produtos como cana-de-acar e laranja, a vantagem da grande produo inequvoca.

    O aumento recorrente dos salrios vai continuar, pois que a reduo das taxas de crescimento da oferta da mo de obra e a situao de quase pleno emprego em vrios locais no Pas fizeram crescer a taxa de salrios nas cidades, principalmente dos salrios puxados pelo setor de servios, o que provoca impacto direto sobre o custo da mo de obra rural. Com isso, os estmulos migrao e mecanizao no param de se elevar. Alm das pequenas propriedades, tambm as mdias tm sido continuamente afetadas.

    O desempenho da agropecuria nos ltimos anos foi um sucesso. A energia que empurra esse processo para diante continua muito forte. A despeito dos novos desafios a serem enfrentados, acreditamos que a integrao do setor com a indstria e com os ser-vios continuar, tanto quanto o avano da produtividade. No ocioso relembrar que o Pas j um dos dois mais destacados ofertantes de produtos agropecurios no mercado mundial.

    Est cada vez mais claro que o bloco de atividades, inovaes e investimentos coman-dados pelo setor continuar a ser uma alavanca para o crescimento brasileiro. Entretanto, do ponto de vista regional, existem situaes bastante diversas, que devem ser entendidas adequadamente. Alm disso, as propriedades menores tm sofrido bastante, em razo da sua fragilidade ante os desafios dos custos e da comercializao, e diante das dificuldades de mecanizao. Formular polticas pblicas que possam lidar com a situao exige, antes de tudo, um esforo de pesquisa e reflexo. o que este volume busca.

    Jos Roberto Mendona de BarrosEconomista, doutor em Economia, analista snior da MB Associados

  • A modernidade do passado no meio rural

    O quanto de passado existe, enquanto propriamente passado, nas prticas agrco-las e na organizao social dos grupos humanos que agricultura se dedicam? Quanto modernizao agrcola, enquanto um atual, supostamente aberto para o futuro, pro-priamente um fato sociolgico demonstrvel? Os suspeitos esforos da sociologia rural para dobrar o pensamento social aos imperativos de uma temporalidade subjugada pelo tempo do grande capital e da reproduo ampliada do capital tm produzido reiterados danos compreenso sociolgica da realidade social do campo. Essa a matriz viesada de nosso entendimento do que moderno e atual e at mesmo do que o futuro. O Brasil , justamente, um pas propcio observao sociolgica crtica da deformao do que j foi chamado por Jacques Lambert de dois Brasis.

    Est, dessa concepo, ausente a competncia humana para criar, inovar e trans-formar, superar. Antes, o que a se considera a coisa que manipula os humanos, o af da riqueza que domina tanto nosso modo de ser quanto nosso modo de conhecer o que somos e o que fazemos. O que se deve adulterao do mltiplo e desencontrado tempo da sociedade, seja das populaes que vivem no campo e da agricultura e da pecuria, seja das populaes que vivem na cidade e de suas atividades econmicas de ponta, do-minantes e mais lucrativas porque de retornos econmicos mais rpidos. No primeiro caso, o tempo csmico, da natureza, reivindica parceria na determinao do ritmo da produo agrcola, mas tambm no ritmo dos processos sociais. No segundo caso, o tempo linear de uma economia liberta das determinaes imediatas da natureza cria a iluso de uma independncia absoluta de ritmo, sem entraves.

    no marco dessa iluso que as cincias sociais impem certa tirania de perspectiva ao seu objeto, levando o socilogo a interpret-lo como aquilo que no , como um feixe de processos sociais unitemporais. nessa deformao que a sociologia v como atraso e passado o que diversidade de ritmos e de tempos do que Henri Lefebvre definiu como de-senvolvimento desigual, contraposto e combinado ao desenvolvimento igual do processo do capital e do processo histrico. O desigual definido como passado expressa o primado ideolgico do desenvolvimento igual em vrias correntes da interpretao sociolgica.

    A sociologia rural que decorre da concepo unitemporal dos processos sociais insurgiu-se contra os valores fundantes da cincia, sobrepondo juzos de valor aos juzos de realidade. Transformou-se numa ideologia do progresso tcnico antes de ser propria-mente um ramo do conhecimento cientfico. preciso rever criticamente isso tudo. Se conseguissem colocar entre parnteses rural e urbano, em suas observaes e em suas anlises, os socilogos seriam mais objetivos e mais felizes. Se conseguissem colocar entre parnteses o primado explicativo do econmico, explicariam mais e melhor e descobririam uma imensa riqueza antropolgica na realidade que observam e muitas vezes no veem. Se conseguissem interessar-se pelo aparentemente irrelevante, entenderiam o quanto o irrelevante decisivo na vida de cada dia das populaes do campo e da cidade.

  • O fato de que um grupo social, uma comunidade, um bairro rural permanea organi-zado com base em valores comunitrios e tradicionais no o torna avesso necessariamente tecnologia moderna nem o torna personagem do passado, avesso aos deslumbramentos do futuro. Torna-o, sim, crtico em relao s imensas irracionalidades que podem atraves-sar o uso dessa tecnologia. A tradio a grande referncia social de pensamento crtico das populaes rsticas em relao aos riscos corrosivos da modernizao antagnica aos costumes, e at socialmente destrutiva.

    Certo abuso interpretativo atribuiu s persistncias sociais e s resistncias mudan-a um carter anmico e patolgico. Na verdade, a anlise durkheimiana da anomia pode ser compreendida tambm em relao ao que propriamente novo e moderno. A anomia durkheimiana tanto diz respeito a valores de orientao da conduta ainda referidos estru-tura social ultrapassada, quanto diz respeito estrutura social referida a uma nova diviso do trabalho social que no disseminou valores e regras de conduta com ela compatveis. Portanto, o anmico tanto diz respeito norma sem estrutura social de referncia quanto estrutura social que ainda no se constitui em referncia de valores e normas.

    A inovao tcnica no se legitima socialmente nos impactos que causa, pois esses impactos podem ser negativos, desorganizadores e penosos. Portanto, no um valor social positivo em si, mas um valor relacional. A inovao depende amplamente do modo como a trama de relaes sociais em que ocorre define sua funo e as contradies sociais que alimenta. O agrnomo e o extensionista tm condies de avaliar, primeira vista, o impacto econmico e agronmico de uma inovao agrcola. Mas no tm a menor condi-o de avaliar seus desdobramentos sociais negativos, contrrios, portanto, sua ideologia profissional modernizante.

    A desorganizao social oriunda da modernizao econmica pode ser perfeitamen-te compreendida como fator de anomia e crise social, e de fato assim . O que econmico e momentaneamente lucrativo no , necessariamente, o que melhor expressa os valores sociais relativos constituio do humano, humanizao do homem, e superao de suas carncias e no propriamente nem primariamente carncias econmicas e materiais. Temos carncia de liberdade, de alegria, de esperana, de saber, de beleza, de msica, de poesia, de sonho e de tantas outras possibilidades do esprito humano. A modernizao econmica no as prov nem as supre. No h nenhuma poesia num novo modelo de trator ou numa nova variedade de semente selecionada de feijo. Mas pode haver muita poesia, como testemunhei e vivi, no cuidado de um milharal ou no cultivo de coloridas znias ou tagetes nos disfarados jardins ao p do terreiro de rsticas casas de roa, como vi durante extensa pesquisa no Alto e no Mdio Paraba, em 1970. As flores do entorno dos terreiros, os pastos e as plantaes no estavam separados na esttica de uma harmnica concepo do mundo e da vida dos pequenos e mdios produtores daquela regio. Pode haver delicada poesia num cafezal, como me relatou idoso e rico fazendeiro paulista, gran-de empresrio, que se compraz muito mais na brancura da florao de suas plantaes na

  • Bahia do que no lucro cinzento do caf que colhe e exporta. Para ele, produzir e lucrar apenas um momento da prpria produo.

    Avassaladores programas de modernizao econmica na agricultura tm suprimido a liberdade poltica da sociedade tanto em pases capitalistas quanto em pases socialistas. A modernizao econmica foi responsvel por graves episdios de fome em pases como a Unio Sovitica nos anos 1920. Aqui mesmo no Brasil, a modernizao agrcola, com a er-radicao do caf, a partir dos anos 1950, destruiu o colonato, desenraizou os agricultores que foram transformados em boias-frias e temporrios, favelizou as cidades, degradou suas vtimas. No Rio Grande do Sul, a disseminao da soja corroeu a economia autrquica da agricultura familiar na opo absoluta pela agricultura mercantil de exportao. Quebrou o equilbrio e a lgica prprios da economia camponesa de excedentes e mergulhou as populaes rurais nas vicissitudes da tirania do mercado que as empobreceu. Outros exem-plos poderiam ser arrolados. E so muitos.

    A autarquia da agricultura familiar deve ser compreendida na peculiaridade de sua insero na diviso social do trabalho. No exclui a insero no mercado. Muito ao con-trrio, diz respeito forma equilibrada dessa insero, assegurada, em graus variveis, a produo direta dos meios de vida pelo agricultor e sua famlia. Ou, ento, pela diversifica-o agrcola, em que um produto se torna, em termos lgicos, excedente de outro. Mesmo quando a produo mercantil dominante e at decisiva organiza-se como economia de excedentes. No porque o que se destina ao mercado seja a sobra da agricultura familiar, mas porque o que se destina ao mercado produzido na lgica e no imaginrio da recusa e do temor dos efeitos corrosivos e socialmente desorganizadores da dependncia absoluta do produtor em relao ao mercado.

    Um extenso retrocesso social vivido pelo Pas h meio sculo em consequncia de uma modernizao agrcola de prancheta, sem fundamentos sociolgicos e antropolgi-cos. A ditadura ideolgica do econmico devasta, no s desorganizando as sociedades tradicionais. Devasta, tambm, na destruio do capital social representado por um saber centenrio, de relativamente pouca eficincia econmica e de grande eficincia social. Todo um imenso saber agrcola e ambiental est desaparecendo, engolido por um saber agronmico direcionado exclusivamente para o curto prazo do lucro. O que lucrativo neste ano agrcola pode trazer grandes prejuzos econmicos em anos posteriores, o que no entra no clculo moderno.

    As escolas superiores de agronomia no deveriam perder de vista o conhecimento que vem sendo recuperado, sistematizado e analisado nas novas disciplinas cientficas vol-tadas para a memria: a etnoagronomia, a etnomedicina, a etnoveterinria, a etnoecologia, a etnoclimatologia, a etnobotnica, etc. Isso ajudaria a atenuar a arrogncia acadmica e a reinventar a agronomia, dando-lhe um fundamento antropolgico e criativo. A agronomia ficaria mais agronmica se de fato dialogasse com o saber que quer confrontar e at invo-luntariamente destruir.

  • H aspectos fascinantes desse saber tradicional que, ignorados, levam a desastres cientificamente fundamentados. Em 1977, nos primeiros meses de minha extensa pesquisa artesanal sobre os conflitos sociais e tnicos nas frentes de expanso, visitei Ariquemes, em Rondnia. No muito longe das runas do posto telegrfico implantado pelo general Rondon, no incio do sculo, abria-se na mata a Nova Ariquemes, uma cidade planejada em dois blocos: um mais institucional e comercial e outro residencial. Ambos separados por uma avenida que atravessava cerca de um quilmetro de selva. A selva preservada seria uma espcie de jardim botnico natural, mata-testemunho da Amaznia que ali existira. Voltei a Ariquemes alguns anos depois. Era uma cidade enorme, moderna. Ia-se de um pon-to a outro em nibus circulares. J no existiam os barraces da cidade pioneira. Interessei--me pela avenida que atravessava a selva. Havia a avenida, mas no a selva. Os temporais e o vento a derrubaram. Mata milenar em solo ralo, as rvores se seguravam umas s outras. Derrubada a mata de apoio e aberta a cicatriz de passagem, as rvores vieram abaixo com a chuva e o vento.

    Ao lado da velha Marab, no Par, na confluncia dos rios Araguaia e Tocantins, foi construda a Nova Marab, cidade planejada, que ficou em baixo dgua na primeira en-chente. Salvaram-se as habitaes rsticas, quase improvisadas da populao tradicional e pobre. Explicaram esses moradores que era fcil prever at onde a enchente anual ia chegar. Bastava observar um tipo de formiga que faz sua toca e seu ninho na barranca do rio. Quando as formigas comeam a mudar de lugar, levando os ovos, vo fazer o novo ninho num lugar acima de onde ser o ponto de enchente.

    Vale a pena lembrar a importncia que teve o conhecimento dos hbitos das abelhas na derrota dos americanos pelos vietcongs na Guerra do Vietn. Contra toda a sofisticada tecnologia do invasor, os camponeses vietnamitas usaram seu conhecimento tradicional da natureza. As abelhas saem procura de fontes de mel. As que acham as floradas voltam colmeia e fazem uma dana que decodificada pelas demais. Nessa dana indicam direo e distncia das flores. Os vietcongs simplesmente condicionaram abelhas para identifica-rem americanos pelo odor, decorrente da alimentao peculiar. Aprenderam a decodificar a dana e a saber, portanto, a localizao e direo das foras inimigas. Simples e higinico.

    O falecido etnobilogo Darrell Posey, que se radicou no Brasil, na Amaznia, espe-cialista nas populaes kayap, descobriu tufos de vegetao da floresta no Cerrado, no territrio de perambulao desse grupo indgena. Eram plantas medicinais. Empurrados para fora de seu territrio pelo avano dos brancos e das empresas agropecurias, levaram consigo suas farmcias. As tribos levam consigo, tambm, as sementes de suas plantas alimentares, como o milho. O xodo para elas uma verdadeira epopeia de preservao botnica, que o branco no capaz de praticar seno em condies excepcionais e caras. Posey criou o Projeto Kayap. Promoveu encontros cientficos, em que sbios indgenas foram reconhecidos como autores e preservadores de conhecimento etnocientfico e esta-beleceu com eles um dilogo de grande impacto nas etnocincias. Exatamente o contrrio do que fazem os extensionistas rurais, limitados pela solido de seu ofcio.

  • As populaes camponesas so, em todas as partes, capazes de reinventar suas so-ciedades, at radicalmente, quando alcanadas por alguma crise. Coisa que as sociedades urbanas e modernas no logram. Anomia expresso patolgica de um fenmeno caracte-risticamente urbano e moderno, a ausncia de normas porque suprimidas pelas mudanas sociais. As sociedades rsticas e tradicionais, historicamente, mais do que sociedades desen-volvidas, tm demonstrado mais capacidade de ajustamento dinmico a crises e rupturas. isso que, equivocadamente, os socilogos tm definido como resistncia mudana. So sociologicamente mais autorregenerativas do que as sociedades modernas e urbanas.

    Refiro-me centralidade dos valores da famlia extensa, que mesmo dispersa tende a resistir renncia a suas referncias tradicionais de sociabilidade. O retorno cclico dos parentes, no calendrio festivo das comunidades rurais, especialmente o religioso, ao lu-gar da famlia, mostra o quanto, mesmo espacialmente invisveis, os valores agregativos da tradio comunitria e familstica no sucumbem ao poder de disperso e de desagregao do urbano, do industrial e mesmo do moderno.

    O estudo de Margarida Maria Moura sobre essa funo social da festa do Rosrio, no interior de Minas Gerais, uma boa indicao de persistncia e resistncia.1 Do mes-mo modo que a estratgia das migraes do campo para a cidade, como mostrou Eunice Durham, segue uma pauta de preservao e reforo da estrutura da famlia extensa, cuja mudana visvel, da concentrao espacial disperso espacial, a menos indicativa do contedo sociolgico e antropolgico dos efeitos desagregadores das crises econmicas na agricultura.2 No mnimo, deve-se levar em conta o ritmo da mudana e sua maior lenti-do em relao a populaes socializadas no marco, propriamente, da sociedade moderna. sempre prudente levar em conta que os estados de anomia no so permanentes nem absolutos e que uma sociabilidade compensatria se desenvolve numa espcie de anomia de compensao, sem o que a vida social seria impossvel.

    Cito um caso, mais especfico, de criatividade social continuamente autorregenera-tiva em face de uma adversidade extrema. o da comunidade de Noiva do Cordeiro, em Minas Gerais, no muito longe de Belo Horizonte.3 H cerca de 120 anos, uma moa da roa, casada de casamento arranjado e forado pela famlia, como era costume, acabou tendo um relacionamento com outro homem, solteiro, engravidou e decidiu deixar o marido para viver com o homem que amava. O casal foi excomungado pelo padre do lugar e amaldio-ado at a quarta gerao. O casal teve vrios filhos, todos estigmatizados pela sociedade local, inclusive os vizinhos da roa, e estigmatizados tambm os que se casavam com os membros dessa famlia comunal extensa. O problema persistiu durante as vrias geraes

    1 Moura, M. M. Festa no serto. Travessia: Revista do Migrante, So Paulo, v. 15, n. 6, p. 22-25, 1993.2 Durham, E. A caminho da cidade. So Paulo: Perspectiva, 1984.3 Noiva do Cordeiro. Direo: Alfredo Alves. Produo: Regina Santiago. Noiva do Cordeiro, MG: BemVinda

    Filmes, [2008?]. Disponvel em: .

  • seguintes. Em consequncia do isolamento, o grupo se tornou uma comunidade matriarcal, recriou valores e, na prtica, inventou uma sociedade nova e diferente, moderna, oposta sociedade carrancista que amaldioara a famlia. No obstante a origem na sociedade tra-dicional e, certamente, porque dele expelido, o grupo inovou na agricultura, desenvolveu atividades industriais e culturais a ela associadas, imps-se mesmo no confinamento da marginalidade social de que se tornara vtima. uma comunidade tradicionalista na forma social de sua organizao, inovadora na economia, criativa e empreendedora no modo de buscar solues e de superar adversidades.

    No o nico caso. Cito outro, urbano. A Favela de Helipolis, no bairro do Ipiranga, em So Paulo, surgida no incio dos anos 1970, agrega trabalhadores majoritariamente originrios do Nordeste e da agricultura. Ali surgiu o time de futebol de vrzea Flor de So Joo Clmaco. Os prprios participantes do time, frequentadores de um boteco local todo fim do dia, preocupados com sinais de racismo que havia entre eles, decidiram organizar, todo fim de ano, uma disputa futebolstica de pretos contra brancos. Toda a tenso racial se expressa cruamente nas agresses e xingamentos dessa disputa ritual. Depois, os joga-dores e suas famlias se renem num churrasco de confraternizao. Diversamente do que a sociedade oficialmente faz, que reprimir e negar o racismo, o grupo popular assumiu a discriminao racial e tratou de exorciz-lo ritualmente. Com os casamentos inter-raciais, h no bairro toda uma gerao de mulatos. Para participar do jogo, devem decidir se so brancos ou negros, ou seja, definir uma modalidade de conscincia da diversidade racial. Vtima da questo racial, o grupo reinventou-a segundo um novo cdigo de sociabilidade, o de uma sociedade mestia e multirracial que no escamoteia sua origem racial.4

    Num mundo rural cada vez menos rural, sem ser necessariamente cada vez mais urba-no, o que a valorizao ideolgica do moderno e urbano define como atraso e como passado precisa ser revisto luz do que prprio das cincias sociais. A funo da sociologia e da antropologia no a de reificar categorias de classificao social. As categorias servem para construir a compreenso cientfica, no para impedi-la. A dinmica da sociedade prope as bases sociais da pesquisa sociolgica e da construo de conceitos e noes necessrios reconstituio sociolgica do real e sua explicao cientfica. Cada momento histrico e cada situao social propem sua prpria sociologia.

    As enormes diferenas tericas que h entre os trs autores fundantes e referenciais da Sociologia Marx, Durkheim e Weber certamente dizem respeito ao mtodo cientfico que cada um adota. Mas dizem respeito, tambm, ao modo como a sociedade se props a eles nos diferentes momentos e situaes em que a pensaram sociologicamente.

    O prprio Marx produziu duas verses ligeiramente distintas do primeiro tomo de O Capital, uma para ser publicada na Alemanha e na Inglaterra e outra para ser publicada

    4 Cf. o documentrio antropolgico de Wagner Morales, Preto contra Branco (2004). Direo: Wagner Morales. Produo: Malu Viana Batista. So Paulo, 2004. Disponvel em: .

  • na Frana. Justificou a diferena porque levou em conta o diferente modo de compreender o assunto por parte de alemes e ingleses, de um lado, e franceses, de outro. Explicou, tambm, sua pesquisa sobre o processo do capital como pesquisa localizada, situada. Na Inglaterra teria perspectiva mais abrangente e completa do que na Frana, onde, no obstante, poderia ter melhor compreenso do processo poltico da sociedade capitalista. Em cada um desses lugares, a sociedade capitalista se propunha de um modo diferente do outro e mais completa ou menos completa. Portanto, mais do que diferenas culturais e so-ciais, havia entre elas diferenas histricas, diferentes momentos de realizao do mesmo processo histrico. Nem por isso o capitalismo relativamente atrasado da Frana era menos atual do que o capitalismo ingls.

    Essas diferenas, assumidas por Marx como diferenas desconstrutivas para gerar a compreenso sociolgica da sociedade capitalista, apresentaram-se de outro modo para ele quando se defrontou com um questionamento da militante populista russa, Vera Zas-lich. Ela queria saber se o socialismo era vivel numa sociedade no industrializada, como a russa, uma sociedade agrcola e camponesa, bem diferente do modelo de certo modo ingls analisado em O Capital. Marx no conseguiu dar uma resposta conclusiva a ela. Tal-vez fosse possvel o passo do socialismo numa sociedade que ainda no era plenamente capitalista e estava longe de s-lo. Numa orientao metodolgica que privilegia o tempo histrico e a superao das contradies que o definem, a relutncia de Marx sugere que sua concepo de tempo era dinmica e no se imobilizava no sistema de noes que desenvolvera.

    Sem contar que o socialismo que acabaria se tornando real numa sociedade cam-ponesa e atrasada, a sociedade russa, foi completamente diferente do socialismo terico. Incorporou os valores e as concepes retrgrados da sociedade estamental de sua cir-cunstncia. Isso se repetir na China. Algo que tinha um precedente no capitalismo nas-cente. O Haiti, uma sociedade de escravos, fez sua independncia com base nos valores da Revoluo Francesa. As determinaes prprias do escravismo que socializara os haitianos se apropriaram dessas concepes e geraram uma sociedade atrasada e autoritria, muito distante da Frana da Revoluo de 1789.

    O retardamento do rural em relao ao moderno ou a persistncia do tradicional em face do moderno no , portanto, nessa perspectiva, propriamente passado. Sua so-brevivncia apenas o prope como uma determinao, isto , mediao contraditria e constitutiva do atual, do presente como histria. O tempo desse passado no o passado nem sua sobrevivncia indica resistncia mudana, como se entendeu na sociologia brasileira de certa poca. Esse passado s resiste porque reproduzido pelos processos sociais do atual, do presente, do moderno. o que faz da modernidade uma conjugao de processos sociais de tempos desencontrados. A persistncia de costumes, da chamada tradio, no expressa a funcionalidade do atraso, mas indica que o retardamento de umas relaes sociais quanto a outras se insere na prpria dialtica da transformao social.

  • claro que a tradio e o tradicionalismo, geralmente associados ao mundo rural, mas que de fato no se confinam nele, expressam-se de diferentes modos. Na conscincia do homem comum, d-lhe referncias para compreender criticamente as transformaes sociais de que se d conta na corroso de seu modo de vida e nas transformaes sociais que o alcanam. Mas tambm como meio de orientao autodefensiva e transformadora de suas aes. O classificacionismo sociolgico que infectou a sociologia rural por longo tempo confinou o tradicional num cubculo imaginrio e o moderno em outro. Na verdade, determinam-se reciprocamente. a tenso entre eles que responde pelo modo como a dinmica social alcana e transforma o mundo rural e a agricultura. Alcana e transforma no marco dos valores da tradio, dos valores que humanizam a mudana social e lhe do o sentido que pode ter na situao social de quem vive do que peculiar e prprio da agricultura e do campo.

    O mundo rural pode ser cada vez mais moderno sendo ao mesmo tempo cada vez mais tradicional, isto , reconstituindo e atualizando sua diferena como fonte de identidade e instrumento de afirmao e sobrevivncia. Essa a dialtica do processo social. Podemos ver isso no Brasil, com relativa facilidade. A grande empresa rural se modernizou acentua-damente no ltimo meio sculo. Ao mesmo tempo, tornou-se acentuadamente poltica e conservadora, isto , referida tradio. No polo oposto, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), que supostamente expressa o modo de ser e de pensar do pequeno agri-cultor, originrio que da agricultura familiar do Sul, claramente conservador nos valores de referncia e na concepo comunitria de sociedade que cultua. Nem por isso avesso ao mundo moderno desde as tcnicas agrcolas at o equipamento domstico. Difere na escala de sua adeso ao moderno. Os que se espantam com o fato de que em suas marchas e demonstraes os militantes estejam munidos de telefones celulares no compreendem, de fato, o modo peculiar como a dinmica a que me refiro chega at o agricultor de carne e osso.

    Os agentes econmicos da agricultura familiar, ou pequena agricultura como j foi chamada, diferem do grande empresrio rural, no pelo tamanho, mas pelos valores sociais e pela lgica social, econmica e poltica que os norteia, que outra. Eles podem ver e va-lorizar a terra que lhes est cotidianamente perto, diversamente do grande empresrio que se relaciona com a terra pela mediao da renda fundiria, de uma abstrao. O pequeno a v como mediao e condio de um modo de vida, pode ver nela a poesia que nela h. V tambm na perspectiva do valor de uso. O grande a v como instrumento de uma relao racional de interesse, uma relao seca e puramente instrumental. V na perspectiva do valor de troca que pode produzir.

    A palavra terra, reduzida a mero objeto de clculo econmico, perde atributos que lhe so culturalmente prprios, base e referncia de outras concepes da relao entre o homem e a natureza. Terra uma categoria conceitual cujo empobrecimento etimolgico est diretamente referido ao advento da moderna economia fundiria e mesmo ao direito. Entre ns, foi a Lei de Terras, de 1850, que ao instituir no Brasil o moderno e atual direito de

  • propriedade criou a ideia da propriedade absoluta da terra, a terra-coisa. Os grupos tribais, mesmo os aculturados, e as populaes rurais de tipo campons, no entanto, continuaram se relacionando com a terra em termos mais abrangentes do que ocorria em Portugal. No Brasil, inclusive, ganharam um estatuto na Lei de Sesmarias, de 1375, que teve seus efeitos suspensos em 1822, pouco antes da Independncia, at que o Pas tivesse uma nova e moderna lei agrria. A terra deixou de ser essencialmente referncia de uma mstica, que ainda sobrevive, para se tornar mera referncia de clculo.

    Jos de Souza MartinsSocilogo, doutor em Sociologia, professor emrito da Universidade de So Paulo (USP)

  • Sumrio

    Introduo ...................................................................................................................................... 35Zander Navarro, Antnio Mrcio Buainain, Eliseu Alves e Jos Maria da Silveira

    Parte 1. Contextos e perspectivas ................................................................................................ 77

    Captulo 1. Agricultura e indstria no desenvolvimento brasileiro ............................................................. 79Geraldo SantAna de Camargo Barros

    Captulo 2. Sustentabilidade e sustentao da produo de alimentos e o papel do Brasil no contexto global .......................................................................................117Antonio Carlos Guedes, Danielle Alencar Parente Torres e Silvia Kanadani Campos

    Captulo 3. Exportaes na dinmica do agronegcio brasileiro: oportunidades econmicas e responsabilidade mundial ...............................................................................147Elsio Contini

    Captulo 4. Quais os riscos mais relevantes nas atividades agropecurias? ............................................175 Antnio Mrcio Buainain, Maria Thereza Macedo Pedroso, Pedro Abel Vieira Jnior, Rodrigo Lanna Franco da Silveira e Zander Navarro

    Parte 2. Uma nova fase do desenvolvimento agrrio ............................................................... 209

    Captulo 1. Alguns condicionantes do novo padro de acumulao da agricultura brasileira ......211Antnio Mrcio Buainain

    Captulo 2. Notas para uma anlise da financeirizao do agronegcio: alm da volatilidade dos preos das commodities ............................................................................................241Moiss Villamil Balestro e Luiz Carlos de Brito Loureno

    Captulo 3. Coordenao e governana de sistemas agroindustriais ........................................................267Decio Zylbersztajn

    Captulo 4. Novas formas de organizao das cadeias agrcolas brasileiras: tendncias recentes .............................................................................................295Maria Sylvia Macchione Saes e Rodrigo Lanna Franco da Silveira

    Captulo 5. Gerao e distribuio de excedente em cadeias agroindustriais: implicaes para a poltica agrcola ........................................................................317Hildo Meirelles de Souza Filho

    Captulo 6. A logstica do agronegcio: para alm do apago logstico ................................................337Andra Leda Ramos de Oliveira

  • Parte 3. Inovaes na agricultura: o maior de todos os desafios ............................................. 371

    Captulo 1. Agricultura brasileira: o papel da inovao tecnolgica ..........................................................373Jos Maria da Silveira

    Captulo 2. Transformao histrica e padres tecnolgicos da agricultura brasileira .......................395Jos Eustquio Ribeiro Vieira Filho

    Captulo 3. Reflexes sobre os rumos da pesquisa agrcola..........................................................................423Sergio Salles-Filho e Adriana Bin

    Captulo 4. A nova etapa do desenvolvimento agrrio e o papel dos agentes privados na inovao agropecuria ...............................................................................453Anderson Galvo

    Captulo 5. Cooperativas brasileiras nos mercados agroalimentares contemporneos: limites e perspectivas .............................................................................479Andrei Cechin

    Captulo 6. O agronegcio ser ecolgico...........................................................................................................509Ademar Ribeiro Romeiro

    Parte 4. O desenvolvimento agrrio bifronte ........................................................................... 531

    Captulo 1. Pequenos e mdios produtores na agricultura brasileira: situao atual e perspectivas ..........................................................................................533Steven M. Helfand, Vanessa da Fonseca Pereira e Wagner Lopes Soares

    Captulo 2. Trabalho rural: tendncias em face das transformaes em curso ......................................559Junior Ruiz Garcia

    Captulo 3. A nova configurao do mercado de trabalho agrcola brasileiro .......................................591Alexandre Gori Maia e Camila Strobl Sakamoto

    Captulo 4. Trabalho e pobreza rural no Brasil ....................................................................................................621Henrique Dantas Neder

    Parte 5. A histria no terminou, mas o passado vai se apagando ......................................... 653

    Captulo 1. Uma histria sem fim: a persistncia da questo agrria no Brasil contemporneo ....655Pedro Ramos

    Captulo 2. Por que no houve (e nunca haver) reforma agrria no Brasil? ..........................................695Zander Navarro

  • Captulo 3. Governana de terras e a questo agrria no Brasil ..................................................................725Bastiaan Philip Reydon

    Captulo 4. Experincias internacionais com a agricultura familiar e o caso brasileiro: o desafio da nomeao e suas implicaes prticas .........................................................................................761Maria Thereza Macedo Pedroso

    Parte 6. O Estado: da modernizao s novas tarefas .............................................................. 793

    Captulo 1. Poltica agrcola: avanos e retrocessos ao longo de uma trajetria positiva ..................795Carlos A. M. Santana, Antnio Mrcio Buainain, Felipe Prince Silva, Junior Ruiz Garcia e Pedro Loyola

    Captulo 2. O trip da poltica agrcola brasileira: crdito rural, seguro e Pronaf ..................................827Antnio Mrcio Buainain, Carlos A. M. Santana, Felipe Prince Silva, Junior Ruiz Garcia e Pedro Loyola

    Captulo 3. Gastos pblicos e o desenvolvimento da agropecuria brasileira .......................................865Jos Garcia Gasques e Eliana Teles Bastos

    Captulo 4. Mudanas e desafios da extenso rural no Brasil e no mundo .............................................891Marcus Peixoto

    Captulo 5. Desafios da Agncia de Extenso Rural .........................................................................................925Eliseu Alves e Geraldo da Silva e Souza

    Parte 7. A ativao de uma relao perversa ............................................................................ 943

    Captulo 1. Os estabelecimentos rurais de menor porte econmico do Semirido nordestino frente s novas tendncias da agropecuria brasileira..................................945Aldenr Gomes da Silva e Fernando Bastos Costa

    Captulo 2. Dinmica econmica, tecnologia e pequena produo: o caso da Amaznia ................979Alfredo Kingo Oyama Homma, Antnio Jos Elias Amorim de Menezes e Aldecy Jos Garcia de Moraes

    Captulo 3. Sucesso geracional na agricultura familiar: uma questo de renda? ............................. 1011Norma Kiyota e Miguel Angelo Perondi

    Parte 8. Rumo via argentina de desenvolvimento ............................................................... 1047

    Captulo 1. Brasil agropecurio: duas fotografias de um tempo que passou ...................................... 1049Flavio Bolliger

    Captulo 2. O esvaziamento demogrfico rural .............................................................................................. 1081Alexandre Gori Maia

  • Captulo 3. Um contraponto tese da argentinizao do desenvolvimento rural no Brasil ....... 1101Arilson Favareto

    Captulo 4. Alcance e limites da agricultura para o desenvolvimento regional: o caso de Mato Grosso ........................................................................................ 1125Pedro Abel Vieira Jnior, Eliana Valria Covolan Figueiredo e Jlio Csar dos Reis

    Anexo .......................................................................................................................................... 1157

    Sete teses sobre o mundo rural brasileiro .................................................................................................... 1159Antnio Mrcio Buainain, Eliseu Alves, Jos Maria da Silveira e Zander Navarro

  • IntroduoO mundo rural brasileiroInterpret-lo (corretamente) preciso

    Zander NavarroAntnio Mrcio BuainainEliseu AlvesJos Maria da Silveira

  • Introduo

  • Introduo O mundo rural brasileiro: interpret-lo (corretamente) preciso 37

    [] Voltando s condies sociais dos agricultores, faz-se necessrio lembrar que difcil conseguir a melhoria dessas condies quando a produtividade e o salrio so baixos. Alm disso, a obteno dessa melhoria se revela difcil, de forma acentuada, quando se toma em considerao o que foi dito a respeito da modernizao agrcola (que permitiria esse aumento da produtividade), isto , que a modernizao, aps alcanar o que foi cha-mado de grau adequado de modernizao, fica na dependncia do crescimento do setor no agrcola. E como este setor no agrcola no consegue se desenvolver a taxas muito rpidas, conclui-se que atravs do aumento da produtividade muito improvvel que se possa vir a ter um aumento de salrio e desse modo uma melhoria nas condies de vida do trabalhador [] (PAIVA et al., 1973, p. 95).

    Entender os tempos! esse mote, afirmado assim com simplicidade, deveria ser o lema, imodesto, mas primordial, das Cincias Sociais. Os campos disciplinares que foram chamados de cincias do esprito por Max Weber tm diante de si essa tarefa, cujas mltiplas dimenses analticas elaboram perguntas sem fim, pois instadas a interpretar as manifestaes da vida social e econmica em suas ilimitadas combinaes e possibilidades objetivas. Implicam tambm demonstrar a inteligibilidade do passado como o pressuposto lgico para decifrar o presente e, quem sabe, divisar o futuro. Mas seria aquele um motto razovel e, especialmente, seria alcanvel? Haveria, de fato, alguma chance de resoluo cientfica que iluminasse convincentemente as sociedades e assegurasse algum dia o pleno desvendamento dos comportamentos sociais? E tambm explicasse simultaneamente as escolhas dos cidados, a formao e o desenvolvimento da cultura, a estrutura e a gigan-

  • O mundo rural no Brasil do sculo 2138

    tesca complexidade da esfera econmica, a arquitetura sociopoltica das naes, ou, enfim, o prprio significado da ao dos indivduos? Esses so alguns dos inmeros desafios que incentivaram o nascimento e o desenvolvimento dos campos cientficos que constituram historicamente as Cincias Sociais, motivando seus estudiosos a procurar respostas para aquelas perguntas, ampliadas pelo rosrio infindvel de indagaes sobre os mistrios da vida humana e suas estruturaes sociais.1

    Quarenta anos depois, a citao-prembulo desta Introduo, inspirada no en-tendimento do mundo concebido por um dos mais brilhantes economistas agrcolas brasileiros, Ruy Miller Paiva, demonstra com cristalina nitidez os formidveis bloqueios que a aventura humana impe aos seus interpretadores, mesmo para aqueles especia-listas mais reconhecidos e reputados. Embora tenha sido o mais competente estudioso do tema em sua gerao, considerado que foi o pai da Economia Agrcola brasileira, um lendrio pioneiro, cujos escritos principais so das dcadas de 1960 e 1970, dificilmente Miller Paiva teria imaginado, nos primrdios da modernizao agrcola daqueles anos, que sua viso, relativamente ctica acerca das possibilidades aparentes da transformao produtiva agropecuria, mostrar-se-ia vencida pela histria ao longo dos anos seguintes. 2 Menos ainda poderia antever que no apenas os obstculos aos quais se referia se-riam removidos em larga extenso, mas at mesmo a agricultura brasileira, no espao de tempo de pouco mais de uma gerao, apresentar-se-ia como aquela que disputaria a posio de mais importante do mundo. Como interpretar essa reviravolta histrica? Quais foram os mecanismos sociais e econmicos (ou os institucionais e tecnolgicos) decisivos para impulsionar tal transformao? Como conseguimos saltar de um tempo em que era a questo agrria que ocupava as mentes e as aes polticas, para os dias atuais, em que o setor apresenta-se como o mais dinmico da economia brasileira? Como esquecer que, quase no mesmo perodo em que Miller Paiva escreveu (em coautoria) o livro cujo excerto est aqui reproduzido, setores influentes de nossa intelectualidade debatiam a natureza das relaes sociais predominantes no campo brasileiro e dispu-tavam acidamente se ainda estaramos observando alguma feio feudal nas formas sociais vigentes nas regies rurais, ou se, contrariamente, sinais de uma sociabilidade capitalista estariam finalmente surgindo como a marca principal da atividade econmica

    1 Seria interminvel o debate sobre o poder heurstico e ontolgico das diversas disciplinas que integram as Cincias Sociais. Ainda que um socilogo faa parte do grupo que organizou este livro, os que assinam a Introduo concordam, em significativa proporo, com a observao de Michael Piore, quando alertou que [...] o que me atraiu para a Economia foi a sua oferta de uma teoria coerente e sua orientao s polticas. Ela tenta se dirigir aos problemas da sociedade e o faz sob uma forma disciplinada e razovel. Nenhuma das demais cincias sociais parece oferecer nada parecido com a coerncia e a relevncia da Economia (PIORE, 2002, p. 292).

    2 Alguns de seus trabalhos so considerados clssicos na literatura (PAIVA, 1968, 1971). Ruy Miller Paiva aposentou-se em 1986, como servidor estadual, em So Paulo, e faleceu em 1998.

  • Introduo O mundo rural brasileiro: interpret-lo (corretamente) preciso 39

    agrcola?3 So exemplos, portanto, que iluminam com intensidade os dilemas analticos e os imensos desafios das Cincias Sociais.

    Circunscrevendo ainda mais o escopo do comentrio aos propsitos desta coletnea, a ttulo de ilustrao, fazemos referncia a um dos mais fascinantes livros de um dos precur-sores dos estudos culturais o campo multidisciplinar que emergiu com fora na dcada de 1980 e reconfigurou radicalmente as Cincias Sociais nos tempos atuais, incluindo a Economia. O campo e a cidade obra que foi originalmente publicada h quatro dcadas, de autoria de Raymond Williams (WILLIAMS, 1973) j investigava muitas daquelas per-guntas, embora especficas da histria da Inglaterra.

    um livro no qual o autor, um dos mais importantes marxistas daquele perodo, usou lentes finamente lapidadas para analisar as transies sociais e econmicas, bem como as repercusses culturais experimentadas pelos povos que deram origem ao Reino Unido, sob periodizaes histricas que lentamente deixaram antigos padres sociais para adentrar o capitalismo industrial, que emergiu vigorosa e pioneiramente naquela sociedade. tambm um livro de imensa qualidade analtica e sofisticada leitura, pois o autor aventurou-se na in-terpretao de aspectos sociais cuja evidenciao emprica extremamente problemtica, j que partes integrantes da cultura, das artes e da literatura, da simbologia da linguagem ou das dimenses da realidade social no imediatamente tangveis ou mensurveis.

    A anlise de Williams oferece um significativo substrato para introduzir e levar adiante a coleo de textos que constituem este livro, porque um dos seus temas princi-pais a dificuldade de explicar os ritmos diferentes que distanciam fortemente as vises humanas (e suas interpretaes) dos processos de mudanas sociais experimentados pela sociedade, especialmente os econmicos. Ou seja, o recorrente tema dos tempos distintos que opem as rpidas fraturas e as mudanas no subsolo econmico lenta construo das percepes humanas acerca daquelas transformaes. Para tanto, esse notvel cientista social recorre, sobretudo, a duas antinomias no apenas temporal, que ope o presente ao passado em uma sincronia vertical, mas tambm quela enten-dida inicialmente como uma dualidade igualmente espacial e horizontal. Esta ltima an-tinomia confronta o campo vida urbana, antinomia que no parecia to empiricamente ntida em sua gnese, quando o rural ainda se confundia com os nascentes burgos, mas tornada cada vez mais (pelo menos em relao a uma sociabilidade cotidiana) separvel, com o passar dos tempos, ante a exploso das cidades, acelerada na segunda metade do sculo passado. Segundo Williams,

    [...] Na longa histria dos assentamentos humanos tem sido profundamente conhecida essa conexo entre a terra, da qual direta ou indiretamente todos ns retiramos a sobre-

    3 Conforme o estudo clssico de Moacir Palmeira (PALMEIRA, 1971).

  • O mundo rural no Brasil do sculo 2140

    vivncia, e as conquistas da sociedade humana. E um dos avanos tem sido a cidade: a capital, a metrpole, uma forma distintiva de civilizao [...] sentimentos poderosos foram constitudos e generalizaram-se. Sobre o campo, a ideia acerca de uma forma de vida natural, de paz, inocncia e a virtude simples. Sobre a cidade se formou a ideia de um centro de conquistas: de aprendizado, de comunicao, de luzes. Mas fortes associaes negativas tambm se desenvolveram: sobre a cidade como um lugar barulhento, de vida mundana e ambies; sobre o campo como um lugar de atraso, ignorncia, limitao. O contraste entre o campo e a cidade, como formas de vida fundamentais, remonta aos tempos clssicos [...] Contudo, as ideias e as imagens do campo e da cidade retm grande fora e presena. Essa persistncia tem uma significao relativizada apenas pelo fato da grande variao, social e histrica, das prprias ideias. Claramente, o contraste entre o campo e a cidade uma das formas principais pelas quais nos tornamos conscientes de uma parte central de nossa existncia e das crises de nossa sociedade. Mas, quando isso ocorre, a tentao reduzir a variao daquelas formas de interpretao ao que chama-mos de smbolos ou arqutipos tornar abstratas mesmo essas mais evidentes e concre-tas formas sociais [...]