56
Luís Fontes Unidade de Arqueologia O Norte de Portugal entre os séculos V e XI: o contributo da Arqueologia Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Estudos Medievais 16 de Novembro de 2011 (18-1945h) IX Semana de Estudos Medievais

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI: o contributo ... · Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História ... passados num tratado simples e leve ... organização

  • Upload
    buidat

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Luís Fontes

Unidade de Arqueologia

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI:

o contributo da Arqueologia

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História

Programa de Estudos Medievais 16 de Novembro de 2011 (18-1945h) IX Semana de Estudos Medievais

Ensaio de síntese sobre o conhecimento histórico do período compreendido entre os séculos V e XI no Norte de Portugal. Centramos a nossa atenção na região bracarense, a melhor documentada, tanto do ponto de vista das fontes escritas como das fontes arqueológicas. Numa primeira parte, fazemos uma breve introdução à Arqueologia Medieval, referindo o seu enquadramento disciplinar, as áreas de interesse e o seu desenvolvimento em Portugal. Na segunda parte, procuramos identificar as problemáticas históricas dominantes e sumariar as principais interpretações produzidas, sublinhando a renovação que conheceram graças à revisão crítica da documentação histórica e ao contributo da arqueologia. Na terceira parte apresentamos com mais detalhe alguns contributos recentes da arqueologia para o aumento do conhecimento deste período, contributos que sustentaram a referida renovação das problemáticas históricas associadas. Daremos destaque aos resultados proporcionados pelos trabalhos arqueológicos desenvolvidos nos últimos 20 anos na região de Braga, designadamente no mosteiro de São Martinho de Tibães, na igreja velha de São Torcato, no mausoléu/capela de São Frutuoso de Montélios, na igreja de São Martinho de Dume e na própria cidade de Braga. Concluímos com uma pequena síntese em que se sumariam as principais conclusões dos estudos arqueológicos. No final, junta-se uma seleção de referências bibliográficas relativas ao tema tratado.

O N

orte

d

e P

ortu

ga

l e

ntre

o

s sé

cu

lo

s V

e

X

I:

o c

on

trib

uto

d

a A

rq

ue

olo

gia

Luís Fontes

Unidade de Arqueologia

RESUMO

citação

“ (...) Recebi a carta da tua santa caridade, na qual me pedes que te escreva sobre a instrução dos rústicos, os quais, ligados ainda às antigas superstições dos pagãos, prestam culto de veneração mais aos demónios do que a Deus, e bem assim sobre outras coisas acerca das origens dos ídolos e dos seus crimes, ou seja, que te escreva sobre muitas coisas em poucas palavras. Mas, porque convém desenvolver uma breve notícia do que sucedeu desde o princípio do mundo, de modo que eles entendam, foi-me necessário resumir a enorme floresta dos tempos e dos acontecimentos passados num tratado simples e leve preparando assim o alimento dos rústicos com uma rústica linguagem. (...) ” De Correctione Rusticorum, São Martinho Dumiense Tradução de Manuel Justino Maciel (1989, 304)

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

“A função do arqueólogo é particularmente inovadora, e eu diria que cada vez mais, neste novo questionar da história à luz das atitudes epistemológicas do nosso maltratado século XX. Por exemplo, a arqueologia alcança temas e aspectos da vida, monumentais ou paupérrimos, talvez nunca tratados, ou apenas aflorados pelos historiadores ou letrados da Antiguidade, abarcando universalmente o mundo das estruturas, dos objectos, as mínimas marcas e os mínimos escritos conservados no espaço e no tempo, para além dos desejos de memória e de esquecimento de cada sociedade, talvez também contra eles. Deste ponto de vista, o estudo arqueológico é desapiedado, pois viola as intenções do mundo sepultado que estuda.”

Andrea Carandini – voz História, arqueologia e, in Diccionario de Arqueologia

Barcelona, 2001, pp.181

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

«entender e interpretar um território historicamente configurado, equivale a decifrar a linguagem pela qual esse território se expressa e se torna racionalmente perceptível e, portanto, implica a descoberta do sistema de sinais específicos de cada organização territorial». Navia Osorio (2000, 63)

Definição de objectivos = formulação de questões: a) Qual o quadro socioeconómico de sobrevivência das populações? b) Que sistemas organizativos se desenvolveram? c) Que formas de habitar e de construir se produziram? d) Que estruturas de povoamento se desenharam? e) Que paisagens se conformaram?

É esta a tarefa da arqueologia: estudar os sistemas de sinais actuais e passados, com o fim último de chegar às imagens das paisagens desaparecidas.

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

A arqueologia medieval é a disciplina que pretende produzir conhecimento histórico , a partir dos registos arqueológicos e dos textos escritos, sobre o período que, na Europa, se convencionou designar por Idade Média e que se baliza cronologicamente entre os séculos V e XV da nossa Era. À primeira data associa-se, habitualmente, o ano de 406, que marca o início das invasões germânicas ou o ano de 476, correspondente à deposição do imperador Rómulo Augusto e consequente fim do Império Romano do Ocidente. Com a segunda data correlaciona-se o ano de 1453, data da tomada de Constantinopla pelos Turcos, ou o ano de 1492, quando a Europa redescobre a América.

PERIODIZAÇÃO

Alta Idade Média (séculos V – X)

movimentações populacionais (eslavos, francos, godos, anglo-saxões, normandos e árabes); institucionalização do Cristianismo; interrupção do comércio de longa distância

Baixa Idade Média (séculos XI – XV)

Criação e desenvolvimento dos estados feudais

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

As áreas de interesse e objectivos da investigação em arqueologia medieval vinculam-se estreitamente às tradições historiográficas de cada país em que

se desenvolveu, identificando-se uma diversidade assente na diferente valorização dos acontecimentos altomedievais elaborada no decurso do

século XIX e na diferente evolução dos quadros políticos.

Noruega e Suécia: URBANISMO

Dinamarca: PAISAGEM RURAL Finlândia: CASTELOLOGIA

Inglaterra: PAISAGEM, POVOAMENTO E URBANISMO

França: POVOAMENTO, CASTELOLOGIA E CULTURA MATERIAL

Itália: ARQUITECTURA

Espanha: ARQUITECTURA CRISTÃ, URBANISMO ISLÂMICO

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

A Arqueologia Medieval em Portugal desenvolve-se a partir da década de 80 do século XX, sendo hoje uma disciplina aceite e reconhecida, com um significativo volume de produção científica.

INTRODUÇÃO À

ARQUEOLOGIA

MEDIEVAL

1. Enquadramento disciplinar

2. Áreas de interesse e objectivos

3. Arqueologia Medieval em Portugal

Principais áreas de investigação

arquitectura cristã

produções cerâmicas

fortificações

arquitectura e espaços monásticos

práticas funerárias

urbanismo

povoamento

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Modelo historiográfico forjado sob os conceitos de “destruição bárbara”, “ermamento estratégico” e “reconquista”, veiculados pela historiografia espanhola e portuguesa até 1950

cristãos

mouros

BÁRBAROS um “buraco negro”

ou … … o sorvedouro da

história

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Modelo tradicional sistemática e fundadamente rejeitado pelos trabalhos de A. Sampaio (1903), P. David (1947), J.A. Ferreira (1928), A.J. Costa (1959), J. Marques

(1988), J. Mattoso (1992), M. Real (1995 e 2000), M. Barroca (1987, 1990-91 e 2000), L. Fontes (2002, 2005, 2009, 2010 e 2011) e (L. Amaral (2007)

Fastos Episcopaes da Igreja Primacial de Braga (Ferreira 1928)

Études Historiques de la Galice et le Portugal (David 1947)

Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae e

censual Inter Lima et Ave (= “Censual do Bispo D. Pedro”),

documentos do cartulário bracarense únicos no género na Europa ocidental antes do século XIII, são fixados como

principais fontes documentais para o estudo da história

altomedieval da região Norte de Portugal

Censual de Entre Limia et Ave, séc. XI

Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, sécs. XII-XIII

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Apesar de traços fugazes, os documentos e os restos materiais conhecidos para este período entendem-se melhor num quadro conceptual de complexidade e de diversidade. Propõe-se, assim, um novo modelo interpretativo, no qual os séculos V a XI aparecem como tempos de expressões diversas, de avanços e recuos, de isolamento e de abertura, de retracção e de expansão: nas arquitecturas como nas sociedades, nos territórios como nas paisagens.

Pri

nci

pai

s ar

gum

en

tos

de

bas

e d

ocu

men

tal

organização eclesiástica do território no período suevo-visigótico (LF, doc.19)

toponímia antroponímica genitiva anterior ao século VIII (seg. Fernandes 1990)

Principais argumentos de base documental

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Cartografia de igrejas no séc. XI, com base no censual Entre Limia et Ave, (seg. Costa 1959[1997])

Principais argumentos de base documental

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Cartografia de povoamento no séc. XI, com base em fontes documentais (seg. Amaral 2007)

Principais argumentos de base arqueológica

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Cartografia arqueológica para os séculos VI-VIII (seg. Fontes 2009a)

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Cartografia de arquitectura pré-românica, com base em vestígios arquitectónicos e arqueológicos (seg. Almeida C.A.F. 1978a) e de locais fortificados com base em fontes documentais e vestígios arqueológicos (seg. Almeida C.A.F. 1978b)

Principais argumentos de base arqueológica

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Cartografia das necrópoles altomedievais, com base em vestígios arqueológicos (seg. Barroca 1987, in Mattoso 1992) e de elementos de arquitectura datáveis entre finais do séc. IX e meados do século XI (seg. Barroca 1990)

Principais argumentos de base arqueológica

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Principais argumentos de base arqueológica

Evolução da estrutura urbana de Bracara entre os séculos V e XIV (seg. Fontes 2011b)

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

Novo modelo historiográfico reconhece uma efectiva ocupação durante o domínio suévico

e visigótico e aceita a manutenção de parte significativa das populações nos séculos

seguintes.

BARBARI

CONQUISTA

PROBLEMÁTICAS

HISTÓRICAS

cristãos

árabes

Entre o primeiro quartel do século VIII e o terceiro quartel do século IX terá dominado um quadro social e político de ausência de poderes estatais atuantes. A partir do último terço do século IX inicia-se a

reorganização do território no contexto das estruturas de poder galaico-asturiano, leonês e portucalense.

BRACARA

e a REGIÃO

Contributos recentes da Arqueologia

Mosteiro de São Torcato

Igreja de Dume Capela de São

Frutuoso

Cidade de Braga

Mosteiro de Tibães

Localização dos locais estudados

Estudos focados na interpretação de continuidades ou rupturas entre a Antiguidade Tardia e o mundo medieval. Reconhece-se os séculos VIII a X como um período de trânsito, de transformação . Uns valorizam-no como um prelúdio da formação de Portugal; outros consideram-no uma fase da evolução do reino asturiano e leonês. Objectivo principal: compreender os ritmos e tendências de evolução da sociedade alto medieval.

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e T

ibãe

s: f

inai

s sé

c. X

I

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e T

ibãe

s: f

inai

s sé

c. X

I

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e T

ibãe

s: f

inai

s sé

c. X

I

Couto e casais

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e S

ão T

orc

ato

: sé

c. X

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e S

ão T

orc

ato

: sé

c. X

BRACARA

e a REGIÃO

M

ost

eir

o d

e S

ão T

orc

ato

: sé

c. X

BRACARA

e a REGIÃO

M

auso

léu

de

São

Fru

tuo

so:

sécs

. VII

-X

BRACARA

e a REGIÃO

M

auso

léu

de

São

Fru

tuo

so:

sécs

. VII

-X

BRACARA

e a REGIÃO

M

auso

léu

de

São

Fru

tuo

so:

sécs

. VII

-X

BRACARA

e a REGIÃO

M

auso

léu

de

São

Fru

tuo

so:

sécs

. VII

-X

BRACARA

e a REGIÃO

M

auso

léu

de

São

Fru

tuo

so:

sécs

. VII

-X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

B

asíli

ca d

e S

ão M

arti

nh

o d

e D

um

e:

sécs

. VI-

X

BRACARA

e a REGIÃO

O

Te

rmo

de

Du

me

: sé

cs. V

I-X

I

BRACARA

e a REGIÃO

+/- 600 Ha

O termo de Dume 911 (870) [550?]

11

6 5

4

3

2

1 12

11

10

9

8 7

13 14

15

DUMIO

1…ascendimus in montem

2…petra caracterem Sancti Vicent

3…via Vereda de Bracara

4…archa sculta in petra

5…termino de Pittanes

6…archas principias inter Dumio et Palmaria

7.agirem Certuor inter Dumio et Paretelias

8…usque in terminos de Lesmiri

9…alia via de Vereda qui discurrit de Bracara

10…archa petrinea principia ab antiquis constructa qui dividet inter Dumio et villa Lesmiri

11…agirem firmissimum qui dividet inter Dumio et villa de Forozos

12…archa petrinea qui dividet inter Dumio et Parata Samueli et Forozos

13…congesta qui dividet inter Dumio et Culina

14…termino de villa Pascasi

15…petra scripta ubi dicet terminum et … petra scripta ubi dicet Sancte Eolalie

1…in montem unde primus incoavimus

O

Te

rmo

de

Du

me

: sé

cs. V

I-X

I

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

Sécs. V-VIII Séc. X Séc. XI

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

vias

muralha

edifícios

oficinas

necrópoles

ruas

ad Limia (XIX)

ad Cale (XVI)

ad Saltum (XVII)

ad Portum (XVIII)

ad Occulis Calidarum (Emerita) ad Cale (XVI)

ad mare (XX)

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

templos

CARVALHEIRAS

S.PEDRO MAXIMINOS

S.CLEMENTE FUJACAL

S.VICTOR

S.VICENTE

necrópoles

Rua S.SEBASTIÃO

Arquitetura cristã antiga (séculos V-VII)

BRACARA

e a REGIÃO

vias

muralha

ruas

ad Limia (XIX)

ad Cale (XVI)

ad Saltum (XVII)

ad Portum (XVIII)

ad Occulis Calidarum (Emerita) ad Cale (XVI)

ad mare (XX)

CARVALHEIRAS

Rua S.SEBASTIÃO

S.PEDRO MAXIMINOS

S.CLEMENTE FUJACAL

S.VICTOR

S.VICENTE

templos

necrópoles

Sede Episcopal

Configuração da topografia cristã no tecido urbano (séculos V-VII)

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

ad Saltum (XVII)

S. Victor

ad Portum (XVIII)

S. Vicente

ad Limia (XIX)

S. Martinho Dume

S. Salvador Montélios

Configuração da topografia cristã na periferia (séculos V-VII)

BRACARA

e a REGIÃO

A

Cid

ade

de

Bra

cara

: s

écs

. VI-

XI

vias

ruas

Sede Episcopal

Sécs. VIII-XIII

Sécs. XIII - XIV

Configuração da cidade pleno medieval

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI:

o contributo da Arqueologia

SÍNTESE

Arquitectura cristã: - Intensa actividade construtiva - Actualização de modelos arquitectónicos - Adaptação local de padrões decorativos ‘clássicos’ - Mudanças significativas a partir dos séculos XI-XII, com introdução do estilo românico

Morfologia urbana: - Alteração de áreas funcionais e deslocação do ‘centro’ político e religioso - Evolução ‘orgânica’ da cidade a partir do séc. V - Actividade construtiva continuada - Dominância de soluções construtivas locais - Mudanças significativas a partir dos séculos XII-XIII, com castelo e paço episcopal, de estilo gótico

Ordenamento espaço rural: - Inércia do ordenamento, com dominância do modelo de villas

- Mudanças significativas a partir dos séculos X-XI, com proliferação de paróquias e dispersão de casais

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI:

o contributo da Arqueologia

CONCLUSÕES

Os séculos V, VI e VII correspondem à época de domínio suevo e visigodo, afirmando-se como um período fulcral para a compreensão dos múltiplos aspetos que caracterizam tanto o fim do domínio romano como o nascimento dos reinos cristãos alto-medievais. A emergência do reino suevo e a ação organizativa da Igreja, protagonizada por São Martinho de Dume, constituem, talvez, duas das mais significativas expressões da vitalidade sociocultural das populações do Noroeste peninsular (fontes 2009). As fontes documentais, arqueológicas e toponímicas documentam, para o período compreendido entre os séculos V e VIII, uma significativa diversidade de tipos de povoados, desde cidades a simples casais, evidenciando-se como elemento comum a todas estas referências não só a manutenção do modelo administrativo romano, como o facto de praticamente todas as sedes episcopais suevo-visigóticas corresponderem às principais cidades ao tempo da administração romana, mantendo-se, portanto, o seu estatuto de capitalidade, denunciando uma clara emulação entre os poderes político, militar e religioso. As disposições conciliares deixam, precisamente, entrever uma organização eclesiástica completamente desenvolvida, com numerosas paróquias e igrejas privadas, afirmando os séculos V, VI e VII como um período de contínuo labor construtivo, especialmente impulsionado pela Igreja – isso mesmo tem vindo a ser confirmado pelas recentes investigações arqueológicas. E se, do ponto de vista da arquitetura, os restos conhecidos de templos deste período nos revelam uma surpreendente atualização de modelos construtivos, detetando-se influências oriundas do Mediterrâneo oriental, da península itálica, do Sul peninsular e do Norte de África, os elementos decorativos, sobretudo capitéis, denunciam a permanência de padrões arquitetónicos romanos, com evoluções que acolhem, por um lado, as tradições locais e, por outro, que afirmam o enraizamento do cristianismo. Apesar da reconhecida retracção populacional dos séculos VII e VIII, da desarticulação político-administrativa que acompanhou o estabelecimento do domínio árabe no sul peninsular e das vicissitudes do processo de expansão asturiano e leonês, a ampla região da diocese de Braga, então correspondente ao Norte do actual território português, sempre esteve povoada, enquadrando-se as suas populações, a partir do último terço do século IX ,nas estruturas de poder galaico-asturiano, leonês e portucalense, identificando-se muitos dos protagonistas das suas elites laicas e religiosas.

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI:

o contributo da Arqueologia

Os processos da expansão asturiana e leonesa nos séculos IX e X e a definição do Condado Portucalense, no decurso dos séculos X-XI, conheceram ritmos e intensidades diferentes, determinados por contextos militares e socioeconómicos específicos. Assim, o noroeste do território só se reorganiza, de forma sistemática e sustentada, a partir da segunda metade do século IX, com Afonso III das Astúrias. Os séculos IX e X assistem à emergência de uma nova estrutura de povoamento, agora ordenado em torno das paróquias e diversamente hierarquizado por igrejas, mosteiros e castelos, umas e outras fixando antigos núcleos de povoamento e antigas vias ou originando novas aldeias e novas redes de caminhos. Os desequilíbrios Norte/Sul e interior/litoral parecem esbater-se temporariamente, para se virem a acentuar novamente com a criação do reino de Portugal, já no século XII. Os vestígios arqueológicos deste período que chegaram até nós, apesar de escassos, apontam no mesmo sentido do processo histórico acima delineado, reportando-se a esmagadora maioria a edificações religiosas. Neste sentido, pode afirmar-se que continuou a ser a Igreja a principal impulsionadora da actividade construtiva, repetindo o quadro identificado no período Suevo-visigótico (Fontes 2009a). Nas arquitecturas, percebe-se a existência de influências externas, de inércia endógena e de autonomia criativa, que cumulativamente se traduzem numa espécie de arquitectura de fusão, fortemente marcada pela tradição local e que, nos finais do século XI e durante todo o século XII, vai encontrar expressão plena na arquitectura românica portuguesa. A herança romana conservou-se especialmente na topografia dos espaços urbanos e rurais. Menos nos primeiros e mais nos segundos, revelando um ritmo diferenciado de transformação. A cidade conheceu mais alterações formais num tempo mais curto, enquanto o campo manteve, praticamente sem alterações até aos séculos XIX-XX, a sua antiga estrutura parcelaria. A existência de programas arquitectónicos vinculados a projectos de poder, que se traduzem na produção de uma arquitectura estereotipada, parece corresponder, na Alta Idade Média do norte do actual território português, à expressão de poderes efémeros. A arquitectura “não erudita” (nova, de reconstrução, de adaptação ou de simples manutenção), parece traduzir melhor o fluir do tempo e as vivências da sociedade, do que uma suposta arquitectura de modelos padronizados que, verdadeiramente, é raro encontrar. Neste sentido, os séculos IX e X são tempos de expressões diversas, de avanços e recuos, de isolamento e de abertura, de retracção e de expansão, entendendo-se melhor num quadro conceptual de complexidade e de diversidade.

BIBLIOGRAFIA

. Almeida, C. A. F. (2001). História da Arte em Portugal. O Românico, Editorial Presença, Lisboa.

. Almeida, F. (1962). Arte Visigótica em Portugal, O Arqueólogo Português, Nova Série, IV, Lisboa.

. Amaral, L. (1999). Organização eclesiástica de entre-Douro-e-Minho: o caso da diocese de Braga (sécs. IX-XII). In Del Cantábrico al Duero: trece estúdios sobre organización social del espacio en los siglos VIII a XIII. Universidad de Cantabria/Parlamento de Cantabria, Santander, pp.313-349. . Barroca, M. (1987). Necrópoles e Sepulturas Medievais de Entre-Douro-e-Minho (séculos V a XV), Faculdade de Letras da Universidade do Porto (policopiado), Porto. . - (1990). Contribuição para o Estudo dos Testemunhos Pré-Românicos de Entre-Douro-e-Minho. 1. Ajimezes, Gelosias e Modilhões de Rolos, in Actas IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga (Congresso Internacional), vol. I, Faculdade Teologia . – Cabido de Braga, Braga, pp.101-145. . - (2000) - Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), 3 vols., (dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1995), Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação Ciência e Tecnologia, Lisboa. . Coelho, M.H.C. e Homem, A.L.C. (1996), (coord. de). Portugal em Definição de Fronteiras. Do condado portucalense à crise do século XIV, Nova História de Portugal (dir. de Joel Serrão e A.H de Oliveira Marques), vol. III, Lisboa. . Costa, A.J. (1959 [1997]). O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga, (2.ª ed., refundida e ampliada), I, Irmandade de S. Bento da Porta Aberta, Braga. . - (1959 [2000]). O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga, (2.ª ed., refundida e ampliada), II, Irmandade de S. Bento da Porta Aberta, Braga. . David, P. (1947). Études Historiques sur la Galice et le Portudal du VIe au XIIe sècle, Lisboa / Paris. . Díaz, P.C. (2011). El reino suevo (411-585). Ediciones Akal: Madrid. . Díaz Martínez, P., Martínez Maza, C. e Sanz Huesma, F. (2007). Hispania tardoantígua y visigoda. Ediciones Istmo: Madrid. . Fernandes, A. (1990). Oposição toponímica à doutrina do despovoamento do Norte de Portugal, in Actas IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga (Congresso Internacional), vol. I, Braga, pp.225-282. . Ferreira, J. (1928). Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga (séc. III - séc. XX), Tomo I, Mitra Bracarense, Braga. . Fontes, L. (1991-92). Salvamento Arqueológico de Dume (Braga). Resultados das Campanhas de 1989-90 e 1991-92, Cadernos de Arqueologia, Série II, 8-9, Braga, 1991-92, pp. 199-230. . - (1993). Inventário de sítios arqueológicos do concelho de Braga, Mínia, 3ª série, 1, Ano I, pp. 31-88. . - (2002). Arqueologia Medieval Portuguesa, in Arqueologia & História, n.º 54, [Actas das VI Jornadas da Associação dos Arqueólogos Portugueses. “Arqueologia 2000: Balanço de um Século de Investigação Arqueológica em Portugal”, (25 a 27 Maio 2000)], Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, pp.221-238. . - (2005). Tibães: um sítio onde se fez um mosteiro. Ensaio em arqueologia da paisagem e arquitectura. IPPAR, Lisboa. . - (2006). A Basílica Sueva de Dume e o Túmulo dito de São Martinho, Núcleo de Arqueologia da Universidade do Minho, Braga. . - (2009a). O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território, in Minho. Traços de Identidade, (coord. Paulo Pereira), Conselho Cultural da Universidade do Minho, Braga, p.272-295. . - (2009b). A igreja sueva de São Martinho de Dume, nos contextos da arquitectura cristã antiga de Braga e da Antiguidade Tardia do Noroeste de Portugal. Revista de História da Arte, 7, Actas do Ciclo de Palestras Internacional sobre “Arquitectura, Mosaicos e Sociedade da Antiguidade Tardia e Bizantina a Ocidente e Oriente. Estudos e Planos de Salvaguarda”. Lisboa: FCG / UNL, p.162-181. . Fontes, L. (2011) – Braga e o norte de Portugal em torno a 711, in 711. Arqueología e Historia entre dos mundos, Zona Arqueológica, 15, Madrid: Museo Arqueologico Regional de Madrid, p.313-333. . Fontes, L. et al. (2009). Colecção de Epigrafia e de Arquitectura Antigas (séculos I a.C – VII d.C.), 2 vols., Braga: IAHC – Instituto de História e Arte Cristãs / Arquidiocese de Braga. . Fontes, L. et al. (2010). A cidade de Braga e o seu território nos séculos V-VII. Actas do Congresso “Espacios Urbanos en el Occidente Mediterráneo, ss. VI-VIII, Toledo (Set./Out. 2009). Toledo: Toletum Visigodo, p.255-262. . Fontes, L. e Gaspar, A. (1997). Cerâmicas da região de Braga na transição da Antiguidade Tardia para a Idade Média, Actes VIème Colloque sur la Céramique Médiévale en Méditerranée, (13-15 Novembre 1995), Aix-en-Provence, pp. 203-212. . Fontes, L. e Pereira, B. (2009). Colecção de Epigrafia e de Arquitectura Medievais (séculos IX-XV), 2 vols., Braga: IAHC – Instituto de História e Arte Cristãs / Arquidiocese de Braga.

. Fontes, F., Lemos, F. e Cruz, M. (1997-98). “Mais Velho que a Sé de Braga. Intervenção Arqueológica na Catedral Bracarense: notícia preliminar”, Cadernos de Arqueologia, Série II, 14-15, Braga, p. 137-164. . Fontes, L., Martins, M. e Andrade, F. (2010). Salvamento de Bracara Augusta. Quarteirão dos CTT/Interligação Túnel Avenida da Liberdade (BRA 09 CTT-ITAVL). Relatório Final, Trabalhos Arqueológicos da U.A.U.M. / MEMÓRIAS, N.º 2, Braga: Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. https://www.uaum.uminho.pt/edicoes/revistas.htm . Gaspar, A. (2003). Cerâmicas cinzentas da Antiguidade Tardia e alto-medievais de Braga e Dume. In Cerámicas tardorromana y altomedievales en la Península Ibérica. Anejos de AEspA, XXVIII, Instituto Arqueologia Mérida, Madrid, pp.455-482. . Gurt i Esparraguera, J.M. y Sánchez Ramos, I. (2008): “Las ciudades hispanas durante la antiguëdad tardía: una lectura arqueológica”. En Recópolis y La Ciudad en la Época Visigoda. Zona Arqueológica, 9: 182-202. Museo Arqueológico Regional. Madrid. . Isabel Loring, M., Dionisio Pérez e Pablo Fuentes (2008). La Hispania Tardorromana y Visigoda. Siglos V-VIII. Editorial Sintesis: Madrid. . Isla Frez, A. (1992): La Sociedad Gallega en la Alta Edad Media. Madrid. . Kulinovwski, M. (2004). Late Roman Spain and Its Cities, The Johns Hopkins University Press: Baltimore and London. . Leguay, J.-P. (1993): “O «Portugal» germânico”, En A.H. de Oliveira Marques (coord.): Nova História de Portugal, vol. II: 12-115. Lisboa. . Lemos, F., Leite, J e Fontes, L. (2001). A muralha de Bracara Augusta e a cerca medieval de Braga, in Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica (500-1500), Actas do Simpósio Internacional Sobre Castelos, (Palmela, 3 a 8 de Abril de 2000), Edições Colibri/Câmara Municipal de Palmela, pp.121-132. . López Quiroga, J. (2004). El final de la Antiguedad en la Gallaecia. La transformación de las estructuras de poblamiento entre Miño y Duero (siglos V al X), Fundación Pedro Barrié de la Masa, s/l. . - (2011). Gentes Barbarae. Los Bárbaros, entre el Mito y la Realidad. Antigüedad y Cristianismo, XXV, (2008), Universidad de Murcia: Murcia. . Marques, A. (2006). O Casal: uma unidade de organização social do espaço no Entre-Douro-e-Lima (906-1200). Universidade do Porto, Porto. Dissertação de mestrado. . - (2008). Itinerários de uma unidade de organização social do espaço: o casal e o processo de senhorialização do Entre-Douro-e-Lima (906-1200). In Paisagens Rurais e Urbanas. Fontes, Metodologias, Problemáticas. (coord.) de Iria Gonçalves, IV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, pp. 167-207. Separata. . Mattoso, J. (1988). Identificação de Um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325), I - Oposição, (3ª edição), Editorial Estampa, Lisboa. . - (1992) (dir. e coord. de) - História de Portugal, (Primeiro Volume), Antes de Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa. . - (1993) (dir. e coord. de). História de Portugal, (Segundo Volume), A Monarquia Feudal, Círculo de Leitores, Lisboa. . Navia Osorio, J. (2000). A Construção do Território. Mapa Histórico do Noroeste da Península Ibérica, Madrid. . Pereira, P. (dir.) (1995) - História da Arte Portuguesa, 3 vols., Círculo de Leitores, Lisboa. . Real, M. (1995). Inovação e Resistência: dados recentes sobre a antiguidade cristã no ocidente peninsular, in Actas IV Reunião de Arqueologia Cristã Hispânica, (Lisboa, 1992), Institut d’Estudis Catalans, Barcelona, pp.17-68. . - (1998). Os Moçarabes do Gharb português, in Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo, (Catálogo exposição no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa), Instituto Português de Museus, Lisboa, pp.35-56. . - (2000). “Portugal: cultura visigoda e cultura moçarabe”, in Visigodos y Omeyas. Un debate entre la Antigüedad Tardía y la Alta Edad Media, Anejos de AEspA, XXIII, Madrid, p.21-75. . - (2007a). A escultura decorativa em Portugal: o grupo “portucalense”. In Escultura decorativa tardorromana y altomedieval en la Península Ibérica. Anejos de AEspA, XLI, Instituto Arqueologia Mérida, Madrid, pp.135-151. . – (2007b). A arquitectura pré-românica do norte de Portugal, in Arte e Cultura da Galiza e Norte de Portugal. Arquitectura, vol. I, Marina Editores, Santiago de Compostela, pp.94-113. . Real et al. (1982). As covas eremíticas de Sabariz (Vila Fria - Viana do Castelo), Minia, Aspa, Braga, pp.5-31. . Reinhart, W. (1952). Historia General del Reino Hispánico de los Suevos. Seminario de Historia Primitiva del Hombre: Madrid. . Sampaio, A. (1979). As Vilas do Norte de Portugal, (Estudos Históricos e Económicos, I), (reedição da edição de 1903 com prefácio de Maria José Trindade), Editorial Vega, Lisboa. . Sanz Serrano, R. (2009): História de los Godos. La Esfera de los Libros. Madrid.

Luís Fontes

Unidade de Arqueologia

O Norte de Portugal entre os séculos V e XI:

o contributo da Arqueologia

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História

Programa de Estudos Medievais 16 de Novembro de 2011 (18-1945h) IX Semana de Estudos Medievais