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__________________________________________________________________________________________________ Faculdade Municipal Prof. Franco Montoro Interciência & Sociedade, v. 5, n. 1, p. 2-14, ed. especial, 2020 2 O NOVO HUMANISMO CRISTÃO DE JACQUES MARITAIN COMO POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO ANTROPOCENTRISMO MODERNO JACQUES MARITAIN'S NEW CHRISTIAN HUMANISM AS A POSSIBILITY TO OVERCOME MODERN ANTHROPOCENTRISM José Caetano Minus 1 ; Matheus Barbosa Ribeiro 2 1- Docente das FATECs de Itapira e Ribeirão Preto; 2- Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé - UNIFEG, professor de Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio. Contato: [email protected] RESUMO O humanismo renascentista, prescindindo do teocentrismo medieval e retomando valores humanistas da antiguidade, inaugura uma nova visão do homem acerca de si mesmo elevando-o a uma dignidade superior. O pensamento Moderno carrega esta herança de um homem que se vê como o centro e princípio de todo conhecimento. A esta concepção, Jacques Maritain, filósofo cristão neotomista do século XX, dirige uma forte crítica na intenção de fazer voltar o homem à visão de sua autêntica dignidade a partir de sua origem, imagem e semelhança com Deus que se encontra no Evangelho e nos verdadeiros valores do Cristianismo. Palavras-chave: Humanismo. Renascença. Modernidade. Antropocentrismo. Cristianismo. Teocentrismo. ABSTRACT The Renaissance humanism, prescinding the medieval theocentrism and resuming humanist values of antiquity, starts a new vision of the man about himself, raising it to a higher dignity. The modern way to think carries this inheritance of a man who sees himself as the center and principle of all knowledge. Jacques Maritain, while being a neo-Thomist christian philosopher from 20th century, directs a strong criticism to this conception. He does that in order to bring the man back to the vision of an authentic dignity coming from his origin, image and similarity with God, which is present on the Gospel and the real Christian values. Keyword: Humanism. Renaissance. Modernity. Anthropocentrism. Christianity. Theocentrism. 1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, professor na Fatec Itapira e Ribeirão Preto. 2 Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé - UNIFEG, professor de Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.

O NOVO HUMANISMO CRISTÃO DE JACQUES MARITAIN COMO

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O NOVO HUMANISMO CRISTÃO DE JACQUES MARITAIN COMO

POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO ANTROPOCENTRISMO MODERNO

JACQUES MARITAIN'S NEW CHRISTIAN HUMANISM AS A POSSIBILITY TO

OVERCOME MODERN ANTHROPOCENTRISM

José Caetano Minus1; Matheus Barbosa Ribeiro2

1- Docente das FATECs de Itapira e Ribeirão Preto; 2- Licenciado em Filosofia pelo Centro

Universitário da Fundação Educacional Guaxupé - UNIFEG, professor de Ensino Religioso,

Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.

Contato: [email protected]

RESUMO O humanismo renascentista, prescindindo do teocentrismo medieval e retomando valores humanistas da

antiguidade, inaugura uma nova visão do homem acerca de si mesmo elevando-o a uma dignidade superior.

O pensamento Moderno carrega esta herança de um homem que se vê como o centro e princípio de todo

conhecimento. A esta concepção, Jacques Maritain, filósofo cristão neotomista do século XX, dirige uma forte

crítica na intenção de fazer voltar o homem à visão de sua autêntica dignidade a partir de sua origem, imagem

e semelhança com Deus que se encontra no Evangelho e nos verdadeiros valores do Cristianismo.

Palavras-chave: Humanismo. Renascença. Modernidade. Antropocentrismo. Cristianismo. Teocentrismo.

ABSTRACT The Renaissance humanism, prescinding the medieval theocentrism and resuming humanist values of

antiquity, starts a new vision of the man about himself, raising it to a higher dignity. The modern way to think

carries this inheritance of a man who sees himself as the center and principle of all knowledge. Jacques

Maritain, while being a neo-Thomist christian philosopher from 20th century, directs a strong criticism to this

conception. He does that in order to bring the man back to the vision of an authentic dignity coming from his

origin, image and similarity with God, which is present on the Gospel and the real Christian values.

Keyword: Humanism. Renaissance. Modernity. Anthropocentrism. Christianity. Theocentrism.

1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, professor na Fatec Itapira e Ribeirão Preto. 2 Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé - UNIFEG, professor de Ensino Religioso, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.

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INTRODUÇÃO

Quando o homem indaga sobre algum aspecto da realidade que o rodeia, ele busca a compreensão não somente do mundo, mas de si mesmo. O objeto de sua reflexão está sempre relacionado a si e à sua própria vida. Max Scheler afirma: “Em certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reconduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro do ser, do mundo, de Deus” (MONDIN, 2005, p. 7).

Entretanto, o que de fato faz uma filosofia ser humanista? O que é o diferencial do humanismo diante da Filosofia como um todo? Pode-se primeiramente considerar a intensidade do foco de atenção sobre a figura humana, como aquilo que define o que seria uma filosofia de cunho humanista, ou seja, num primeiro momento, pode-se distinguir como humanismo – diante da gama de sistemas filosóficos – aqueles os quais adotaram como âmago da sua reflexão o homem. Aquela reflexão que tem como foco a figura humana, bem como as suas particularidades, aquilo que a difere do mundo, aquilo que a torna, de fato, humana e confere-lhe dignidade.

Humanismo tomado como nome comum, exprime qualquer ponto de vista filosófico que atribui a si o propósito de pensar o valor do homem, sua dignidade diante dos outros seres e do mundo. “Uma filosofia que se arroga humanista parte da admiração pela natureza humana, não só no âmbito da definição, mas procurando situá-la na realidade, de modo a encontrar o seu lugar perante tudo” (MONDIN, 2006, p. 370).

Não faltaram, no decorrer da história, doutrinas filosóficas que tomaram como sua a incumbência de traçar ou descobrir o que seria um autêntico humanismo. Esta busca proporcionou a produção de um rico acervo reflexivo sobre o homem, sua dignidade e seu papel no mundo.

Nota-se que o termo Humanismo é extremamente abrangente, tal característica reflete na história de modo que há uma quantidade relativamente extensa de filosofias que se auto definem humanistas. A conceituação comum de humanismo não é suficiente para especificar com precisão todas as nuances de sua significação histórica, ou seja, aquilo que significou em certos períodos e qual era a conotação que carregava em certo tempo.

O humanismo, no período da Renascença, foi uma marca histórica que serviu de influência para os vários tipos de Humanismos do período Moderno, pois, desvinculando a relação do homem com Deus – forte característica que motivou todo o pensamento filosófico-teológico Medieval – ressalta a figura humana como centro de toda reflexão e inspiração. Desprovida de sua dependência de Deus, é totalmente autônoma e superior a tudo que existe.

É digno de nota que o pensamento Moderno foi fortemente influenciado por esta marca antropocêntrica da Renascença. Entretanto, autores contemporâneos se dedicaram à crítica deste Humanismo, elencando aspectos positivos, mas também as consequências negativas para o homem em sociedade, influenciado por tais concepções.

Dentre eles, se destaca Jacques Maritain. O autor procurou atualizar concepções Medievais importantes abandonadas pelo Renascimento e, baseando-se nos valores do Cristianismo, traçou as principais linhas para um novo humanismo cristão, denominado por ele de “humanismo integral”. São destas raízes históricas do Humanismo Moderno, criticadas por Jacques Maritain, bem como das principais características do seu novo Humanismo Cristão, que se ocupa o presente artigo, que vislumbra como objetivo oferecer uma discussão entre perspectivas distintas que buscam configurar-se como Humanismo autêntico no cenário filosófico.

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Raízes do Antropocentrismo Moderno: O Humanismo Renascentista

Antes de delinear os principais pontos do pensamento de Maritain, torna-se necessário evidenciar, em âmbito renascentista e moderno, algumas concepções que posteriormente serão objetos de suas críticas. Além disso, um breve esboço do pensamento grego acerca da figura humana possibilitará uma melhor compreensão do Renascimento, como proposta de retomada de alguns valores Clássicos.

No contexto do surgimento da filosofia percebe-se, no ambiente grego de então, o crescente humanismo abordado sobremaneira nas tragédias, que conferia ao homem uma nova forma de sistematizar sua visão sobre o mundo. Os avanços das especulações científicas, o ceticismo perante qualquer explicação sobrenatural, permite ao homem se situar como o ser de uma civilização em constante progresso. Pode-se ressaltar, como exemplo, a evolução das versões do mito de Prometeu, em que se encontra uma progressiva relação da visão do homem com sua história e com os deuses. O personagem que, num primeiro momento, é visto como um mero enganador, posteriormente é tomado como o deus fonte do progresso da humanidade e, por fim, elevado à categoria de imagem simbólica da luta do próprio homem – e não mais um deus – rumo ao progresso e à civilização. Nota-se a elaboração de um percurso gradativo até chegar à visão do homem como responsável pelo seu progresso, enfatizado por Tarnas, nos dizeres:

Quando a cultura grega avançou da poesia arcaica para a filosofia humanista – a tragédia clássica marcando um ponto intermediário – a visão grega da História passou do regresso ao progresso, e a fonte da realização humana passou do divino ao Homem (TARNAS, 2001, p. 504).

Neste mesmo ambiente surge a figura dos sofistas, que contribuem com as reflexões acerca do tema, afirmando que o homem é a medida de todas as coisas e que a Verdade é fruto de um julgamento pessoal e relativo. Reivindicavam assim, perante o naturalismo, a subjetividade na análise da realidade, excluindo a objetividade pura. O verdadeiro desígnio do pensamento humano não seria compreender tudo, mas servir ao próprio homem e as suas necessidades.

Reale e Antiseri sintetizam esta influência sofística no pensamento grego:

[...] Os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão filosófica da physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como membro de uma sociedade. É compreensível, portanto, que a so-fística tenha feito de seus temas predominantes a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião e a educação, ou seja, o que chamamos a cultura do homem. Assim é exato afirmar que, com os sofistas, inicia-se o período humanista da filosofia antiga (REALE & ANTISERI, 2005, p. 73-74).

O homem encontra, dessa forma, a maior posição perante o mundo até então nunca antes formulada. Ele torna-se a medida do conhecimento, embora rejeite que se possa considerar um absoluto.

Sócrates, não obstante, se apresentando contrário à formulação sofística, no que concerne à capacidade humana de conhecer a verdade, não deixa de enfatizar o encontro com a felicidade e verdadeira sabedoria a partir do “conhece-te”, ou seja, tendo como ponto de partida a especulação interior do homem, o seu autoconhecimento. Para ele, a capacidade do homem de conhecer o absoluto é uma realidade que amplia a visão sobre o homem e o reconhece como detentor de uma faculdade divina que apenas seria despertada (TARNAS, 2001).

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A referida visão grega do homem servirá de inspiração ao Renascimento do século XV, bem como ao longo período da Idade Média em que a visão do homem assumiu novo aspecto com o passar do tempo e a transformação histórica.

A Idade Média proporcionou um ambiente de reviravolta na visão do homem sobre ele mesmo. Comumente tomado como o tempo do teocentrismo cristão, em que o pensamento filosófico se confundia com o conhecimento teológico, o período Medieval tem como característica a visão do homem a partir de Deus e sua necessidade de redenção O homem medieval confessa o seu nada e contenta-se com uma vida humilde e discreta. A sua fé cristã confere-lhe um lugar de eleição no universo, embora esse lugar ele o tenha recebido de Deus somente como graça. (ETCHEVERRY, 1975).

Emergindo de um ambiente histórico marcado por passagens trágicas como a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, a crise da Igreja, entre outros eventos lamentáveis, vem à tona uma resposta ao aparente esquecimento da figura do homem no modo de pensar nesse período: o Renascimento. Habitualmente assim chamado, o movimento renascentista situou-se no ambiente histórico dos séculos XV e XVI, tendo como referência principal a cidade de Florença, na Itália, e, revelou grandes expoentes na literatura, arquitetura, artes plásticas, e na filosofia, como Petrarca e outros como Pico della Mirandola, Ficino, Montaigne, Erasmo dentre outros.

O Renascimento possui como característica marcante o forte apelo humanista em todas as expressões artísticas, bem como a reverência e a acepção da figura do homem como o centro de todas as manifestações e elaborações do pensamento. Promove então uma ruptura com a visão teocêntrica medieval, valorizando o homem e elencando-o como inspiração para tudo o que se pensa e faz neste período.

O Humanismo tem sua raiz histórica no século XV e o termo designava os professores de gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral. “Consonante às humanitas no latim e ao Paideia grega, assumia como proposta conduzir o homem a ser aquilo que deveria ser. O conceito é então designado como tendência geral em torno dos conhecimentos, cujas referências são os mestres em humanidades gregos e latinos” (REALE & ANTISERI, 1990, p. 17).

Neste sentido, ligado à formação do homem, o período renascentista é o cenário de uma renovada atenção pelos textos clássicos, como TARNAS (2001, p. 232) ressalta na figura decisiva de Petrarca:

Os textos clássicos forneciam uma nova base para a avaliação do Homem; a erudição clássica constituía “as humanidades”. Petrarca entregou-se à tarefa de descobrir e absorver as grandes obras da cultura antiga – Virgílio, Cícero, Horácio, Lívio, Homero, Platão – não para inculcar a imitação estéril dos mestres do passado, mas para instilar em si o mesmo fogo moral e criativo que eles haviam expressado de modo tão soberbo. A Europa esquecera seu nobre legado clássico e Petrarca exigia sua lembrança. Uma nova história sagrada estava sendo estabelecida, um testamento Greco-romano que deveria estar ao lado do judaico-cristão.

O contato apaixonado com os textos clássicos fundamenta este novo movimento de revivescência de valores expressos na cultura antiga. Os sofistas são revisitados, uma vez que provoca um certo entusiasmo ao humanista da Renascença a visão de si como medida de tudo.

Os diálogos de Platão também seduziam os humanistas, pois sua eloquência e retórica tornaram-se um grande diferencial diante da rígida lógica escolástica. Tal aproximação e encantamento com os textos clássicos se deve tanto ao trabalho de tradução dos textos gregos, como à criação da imprensa, importante invenção que contribuiu na difusão dos escritos antigos e modernos.

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Na investigação acerca da natureza do Humanismo percebe-se a estreita ligação da mudança da visão de mundo com o movimento literário e pedagógico. Reale e Antiseri abordam dois pontos de vista contrários na concepção do significado do Humanismo. Segundo eles, a primeira interpretação concebe o Humanismo como mero programa cultural e pedagógico importante, porém limitado nos estudos; mais ligado à literatura que a Filosofia, seria apenas uma parte do fenômeno renascentista. Numa segunda perspectiva é interpretado como um filosofar efetivo, que substitui a construção de um grande sistema pela pesquisa definida e concreta, sobretudo na área das ciências morais. “Não é simplesmente a redescoberta do mundo antigo, mas a descoberta do próprio homem ao se comparar com os valores clássicos” (REALE & ANTISERI, 1990, p. 18-23).

Em suma, estas duas visões do Humanismo Renascentista – como movimento literário e como filosofar efetivo – ajudam na sua compreensão e estabelecem a sua marca distintiva, como sintetizam os autores mencionados.

As diversas expressões do Humanismo Renascentista visam ressaltar a dignidade humana dignitas hominis, que se opõe ao tema medieval da miséria humana miseria hominis. A valorização da vida humana está nas expressões artísticas e a retrata como a mais digna diante de tudo. Pico della Mirandola exclama na Oração sobre a Dignidade do Homem: “Ó suprema e admirável felicidade do homem! Homem ao qual foi concedido obter aquilo que deseja e ser aquilo que quer” (MARCONDES, 2002, p. 145).

O homem está diante da própria construção de si. A dignidade do homem é o tema das manifestações de todo tipo, como afirma Marcondes: “Valoriza-se o corpo humano como dotado de uma beleza própria que se expressa em sua proporção e em suas linhas harmoniosas, o que corresponde nas artes plásticas ao ideal da dignidade humana (...)”. (MARCONDES, 2002, p. 145).

A visão do homem sobre sua dignidade encontra apoio no pensamento de que este ser descobre que carrega em si uma faísca divina, algo que o distingue em um universo. Sobre este aspecto Richard Tarnas comenta:

O Humanismo deu nova dignidade ao Homem, novo significado à natureza e novas dimensões ao Cristianismo – e tudo era menos absoluto. O Homem, a Natureza e o legado clássico foram divinizados na percepção humanista, o que provocou uma expansão radical da visão e atuação humana muito além do horizonte medieval. (TARNAS, 2001, p. 239).

Nicolau de Cusa afirma “O homem é um Deus não em um sentido absoluto, porque é homem, mas é um Deus humano” (TARNAS, 2001, p. 240). E então, o homem, que antes era apenas plano de fundo de todo o pensar filosófico-teológico de uma época, torna-se novamente centro no qual convergem todas as reflexões. Sua relação com Deus aparentemente não necessita de nenhum mediador, como afirma a doutrina Cristã, ele se vê como capaz de traçar sua própria existência. O Homem da Renascença tem um status divino.

Esta posição do homem, nos termos de Reale e Antiseri (1990), é “rejeitada em bloco” por Lutero que rompe em um de seus aspectos, não somente com a tradição religiosa, mas com a tradição cultural do seu tempo. A Reforma aparece como movimento contrário à adoção da cultura Greco-romana, à paganização do cristianismo e sua consequente debilitação espiritual, manifestada, sobretudo na corrupção dos clérigos. Lutero procurou retirar de cena o que considerava “soberba humana”, propondo uma forte crítica anti-humanista.

Precisamente neste ponto verifica-se uma reviravolta no que se refere à visão do homem sobre si mesmo. A passagem entre a Renascença e a Modernidade, com os conflitos de ordem

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religiosa que se seguiram à Reforma, a revolução científica, o racionalismo e as outras tendências seguintes configuravam novas maneiras de interpretar e analisar o homem.

É certo que não se perdeu de vista a figura humana diante da natureza, mas o Humanismo Renascentista perdeu sua força diante de novas propostas. Dada a brevidade desta pesquisa, não é possível ater à análise de todas as características das vertentes modernas, embora os principais fundamentos herdados pela Renascença já explicitados - como o antropocentrismo - servem de ponto de partida para a crítica de Jacques Maritain ao pensamento Moderno em sua abrangência.

Neste panorama histórico do humanismo, é chamada a atenção para uma proposta atual de um novo Humanismo Cristão, elaborado por alguns autores do século XX, como Jacques Maritain, que, a partir das propostas humanistas apresentadas no seu tempo, elabora uma crítica e procura estabelecer uma reinterpretação dos valores que julga próprios da dignidade humana. Concebe o homem a partir de Deus e deseja elaborar um autêntico humanismo, que o denomina Humanismo Integral.

O Humanismo Integral de Jacques Maritain

Jacques Maritain (1882-1973), insatisfeito com o clima cientificista, cético e relativista da Sorbonne em sua época, juntamente com sua esposa, Raissa, entra em um desespero metafísico, que o fez pensar no suicídio como forma de negação de uma vida sem sentido: “queríamos morrer – escreveu Raissa – com uma recusa livre, se não fosse possível viver segundo a verdade” (MARITAIN, 1999, p. 7).

Entretanto o contato com a filosofia de Bergson propõe aos jovens filósofos a possibilidade de uma metafísica no ambiente em que estavam mergulhados. Ressalta-se a importante influência do amigo e escritor Charles Peguy, bem como a amizade dos Maritain com León Bloy, que os levou à conversão ao Catolicismo em 1906.

A filosofia de Maritain se fundamenta em Tomás de Aquino como ponto de partida, considerando-a como a mais pura e completa expressão da Filosofia Cristã, “uma filosofia cuja característica específica é a perenidade, sendo, portanto, de hoje como de ontem” (MARITAIN, 1999, p.11).

O tomismo adquire um caráter novo, não “arqueológico” (MARITAIN, 1999), encontra sua revivescência e, o que até então era considerado como velho, agora é introduzido nos debates atuais de seu tempo. A partir dos seus estudos, Maritain se propõe adaptar o tomismo ao seu tempo, a fim de restaurar a metafísica cristã, diante do racionalismo antropocêntrico e o irracionalismo panteísta em tempos modernos. É com eficácia que quer repelir o espírito da filosofia moderna sem esquecer das riquezas que o mesmo produziu:

A filosofia escolástica é a única que pode colocar as ciências positivas em seu

verdadeiro lugar, traçando os limites de sua competência, mostrando claramente

o absurdo daqueles que queriam absorver nela todo conhecimento humano e

até mesmo a nossa vida moral e nossa felicidade; e, ao mesmo tempo, fundar e

justificar o trabalho daquelas ciências (MARITAIN, 1999, p.12).

Maritain defende o tomismo como concepção que leva à unidade e não ao imobilismo. Nunca fechado, está sempre em desenvolvimento e movimento vital, relacionando-se sempre com as novas filosofias. “O filósofo busca superar o preconceito do tomismo ligado ao conservadorismo e ao mesmo tempo defender a sabedoria tradicional e a philosophia perennis diante do

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individualismo moderno, mostrando também que a filosofia é jovem e inventiva, possui um caráter progressivo e tende ao universal” (MARITAIN, 1999, p.15).

Diante de tal compreensão tomista, Maritain lança as bases de uma compreensão do homem e de sua dignidade, rejeitando o espírito da modernidade:

Diante do humanismo antropocêntrico, que caracteriza a modernidade, é necessário refutar o antropocentrismo, não o humanismo: legítima é a valorização do homem, mas não a sua absolutização. O problema, portanto, é conciliar humanismo e cristianismo, propondo um humanismo teocêntrico que é o único verdadeiramente integral e não requer um retorno à Idade Média ou refutar o grandioso e magnífico desenvolvimento das ciências no curso dos últimos séculos (MARITAIN, 1999, p. 17).

Na referida conciliação entre humanismo e cristianismo – uma vez que a concepção moderna vê como antítese a relação destes dois termos – Maritain encontra o cerne de seu Humanismo Integral e se dedica na organização de um humanismo que não exclua Deus, nem exclua a dignidade e a responsabilidade do homem, um humanismo que seja, de fato, cristão.

Ao propor um levantamento dos principais aspectos da filosofia humanista elaborada pelo francês, torna-se necessário partir da sua concepção geral sobre o tema, ou seja, tomar como princípio o que Maritain entende por humanismo. Em uma de suas obras, muito utilizada nesta pesquisa, ele assim o define:

(...) digamos que o humanismo (e uma tal definição pode ser desenvolvida segundo linhas muito divergentes) tende essencialmente a tornar o homem mais verdadeiramente humano, e a manifestar sua grandeza original fazendo-o participar de tudo o que o pode enriquecer na natureza e na história (concentrando o mundo no homem, como dizia mais ou menos Scheler, e dilatando o homem ao mundo); ele exige ao mesmo tempo que o homem desenvolva as virtualidades nele contidas, suas forças criadoras e a vida da razão, e trabalhe por fazer das forças do mundo físico instrumento de sua liberdade (MARITAIN, 1962, p. 4).

Desta conceituação extraímos, portanto, dois aspectos importantes confirmados com o humanismo: a intenção de “tornar o homem mais humano”, bem como de “manifestar a sua grandeza”. Também se encontra na mesma conceituação, além dos dois aspectos, duas exigências que o humanismo reivindica: que “se desenvolva as virtualidades” contidas no homem e “trabalhe para sua liberdade”.

A partir destes quatro pontos importantes na conceituação de humanismo, bem como de uma leitura histórica das raízes do pensamento moderno sobre o homem, Maritain elabora uma crítica com o objetivo de evidenciar o que ele denomina “humanismo inumano”. Para o filósofo, há uma qualidade distintiva fundamental entre o verdadeiro humanismo e o “humanismo inumano” e tal qualidade está ligada à relação entre o homem e Deus. Referindo-se ao conflito destes dois humanismos, Maritain afirma:

O debate divide os nossos contemporâneos, e que nos obriga a todos a ato de escolha, está entre duas concepções do humanismo: uma concepção teocêntrica ou cristã e uma concepção antropocêntrica, da qual o espírito do Renascimento é o primeiro responsável. A primeira espécie de humanismo pode ser chamada humanismo integral, a segunda, humanismo inumano (MARITAIN, 1999, p. 49).

Percebe-se, com base na reflexão do filósofo, que a característica que distingue um “humanismo integral” de um “humanismo inumano” diz respeito ao protagonismo que o homem

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exerce em cada ponto de vista. No primeiro, ele é visto sob a perspectiva de criatura divina, enquanto no segundo ele é o centro para o qual tudo converge. Tal distinção torna-se importante para Maritain na explicitação de seu pensamento e na busca para afirmar um autêntico humanismo de espírito cristão.

O humanismo autêntico, teocêntrico, encontra seus fundamentos basilares na Idade Média. Não haveria contradição, portanto, entre humanismo e cristianismo, uma vez que, na análise de Jacques Maritain, o conceito de pessoa se enriqueceu na Idade Média, com o desenvolvimento da teologia cristã. Tal concepção do homem na qualidade de pessoa define sua característica enquanto ser provido de liberdade de escolha, inalienável, inclusive por Deus, que age no íntimo deste homem. “Mesmo que em sua condição concreta este ser seja ferido na sua natureza pelo pecado, ele tem um fim sobrenatural: ver a Deus como Deus se vê; é portador de uma vocação para uma vida divina; é, em resumo, um ser natural e sobrenatural” (MARITAIN, 1999, p. 10).

O fim da Idade Média – cujo período simboliza uma visão do homem criado e orientado para Deus – representaria o fim do humanismo, pois a dialética resultante do contato com a concepção Renascentista produz outro olhar sobre o homem, que Maritain afirma com resolução: “(...) compreende-se que mereça o humanismo antropocêntrico o nome de humanismo inumano e deva sua dialética ser encarada como a tragédia do humanismo” (MARITAIN, 1963, p. 24). A passagem do período Medieval para o Renascentista provoca uma visão deturpada e antropocêntrica:

A catástrofe da Idade Média abre assim o tempo do humanismo moderno. A dissolução irradiante da Idade Média e de suas formas sacrais é a germinação de uma civilização profana, – não somente profana, mas que se separa progressivamente da Incarnação. É sempre, se se quiser, a era do Filho do homem: mas em que o homem passa do culto do Homem-Deus, do Verbo feito homem, ao culto da Humanidade, do Homem puro (MARITAIN, 1962, p. 14).

Quando Maritain menciona a existência deste humanismo inumano, perfazendo um

caminho histórico para elaborar uma crítica ao humanismo renascentista, conclui que tal humanismo se constituiu num fracasso, a partir do momento que transportou sua visão exclusivamente para o homem, esquecendo sua relação com Deus: “(...) o vício radical do humanismo antropocêntrico foi de ser antropocêntrico e não de ser humanismo” (MARITAIN, 1962, p. 23).

O humanismo se depara com uma problemática quando concebe o homem como centro. Por isso, ainda que Maritain afirme as fontes cristãs e clássicas do Renascimento, considerando que “se um resto de concepção comum subsiste ainda da dignidade humana, da liberdade, dos valores desinteressados, é uma herança de ideias e sentimentos outrora cristãos” (MARITAIN, 1962, p.10). E não deixa de salientar a verdadeira importância de romper com o espírito do pensamento Renascentista, como se vê:

Quanto mais a natureza decaída inclina-se para compreender o termo humanismo, no sentido do humanismo antropocêntrico, tanto mais urge relevar a verdadeira noção e as verdadeiras condições do único humanismo, que não perturba o homem, mas urge, outrossim, romper com o espírito do Renascimento (MARITAIN, 1962, p. 50).

Segundo o filósofo francês, o humanismo não apresenta contradição em relação ao

cristianismo que, aliás, encontra sua significação profunda nas raízes do Evangelho, sobretudo quando se depara com a imagem do Homem-Deus, Jesus Cristo. Nem mesmo o Renascimento pode ser de todo rejeitado, uma vez que ainda reserva traços – ainda que “adoecidos” – desta dignidade humana afirmada pelo cristianismo.

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A crítica está na centralidade da figura do homem, que encerra sua reflexão sobre si e exclui sua relação com Deus. Tomando a reflexão de Nogare, outro expoente importante que trata do referido tema, pode-se melhor compreender este legado Renascentista:

(...) A consciência da própria capacidade e a exaltação insistente da humanidade levavam consigo o perigo, sempre presente no homem, de esquecer, negligenciar e enfim negar a Deus. Foi o que realmente aconteceu. (...) Aos poucos o homem se exaltou tanto, que se convenceu de ser ele criador de Deus e não o contrário, como até então se pensava: criado por Deus. (...) O pecado da Renascença não foi o de ter valorizado o homem, mas de o ter valorizado em sentido unilateral: erro que levou aos poucos – por força também de outras circunstâncias – ao antropocentrismo absoluto, isto é, ao ateísmo (NOGARE, 1977, p. 72).

O homem que desejou o Renascimento é o mesmo que não somente participa da divindade

de seu criador e tem vocação sobrenatural, mas que acima de tudo se cria e é portador de um atributo divino, sua asseidade. Na esteira deste modo de pensar, a modernidade propõe um indivíduo que exclui de si qualquer influência externa e proclama a existência das coisas somente quando acessíveis ao seu pensamento. O racionalismo cartesiano, o cogito, é uma expressão deste novo meio de compreender o mundo: A existência das coisas, bem como sua organização sistemática, depende da “clareza e evidência” com que se apresentam ao pensamento daquele que as observa. E até mesmo Deus é provado a partir da primeira certeza de que “ergo sum”.

O pensamento que ressalta a autonomia total, excluindo qualquer forma de orientação externa, como também a negação dos limites, que desconsidera as fragilidades que permeiam a condição e natureza humana é criticado por Maritain. Com a finalidade de legitimar tal crítica, ele evoca a conceituação tomista de pessoa, para justificar que o homem não é uma realidade meramente material lançada ao mundo, para crescer e construir sua dignidade:

Ao afirmar que um homem é uma pessoa, queremos significar que ele não é somente uma porção de matéria, um elemento individual na natureza, como um átomo, um galho de chá, uma mosca ou um elefante são elementos individuais na natureza. Onde está a liberdade, onde a dignidade, onde os direitos de um pedaço individual de matéria? (MARITAIN, 1947, p.11).

O elemento diferencial do homem em relação às coisas é a existência de sua alma espiritual,

que supera a mera materialidade e o faz distintamente digno e superior: Uma só alma humana vale mais do que todo o universo dos corpos e dos bens materiais (MARITAIN, 1947, p. 24). Tal superação da simples materialidade é o que faz do homem um ser em relação com o absoluto. E, é neste aspecto que o filósofo francês arremata sua crítica a uma visão moderna de dignidade humana, enfatizando que o homem é um ser frágil e dependente de seu Criador, porém, tal situação não configura sinal de sua insignificância, mas de sua grandeza, pois está em relação com o Absoluto. Em sua obra Os Direitos do Homem e a Lei Natural ele afirma:

A pessoa tem uma dignidade absoluta porquanto está em uma relação direta com o absoluto, no qual somente ela pode encontrar sua plena realização; sua pátria espiritual é todo o universo dos bens que têm um valor absoluto, que refletem de algum modo um Absoluto superior ao mundo e que são atraídos por ele (MARITAIN, 1947, p. 13).

A relação do homem com Deus está intimamente ligada à sua dignidade: “A verdadeira

deificação do homem está em abrir-se ao dom que o Absoluto faz de si mesmo, e no baixar da divina

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plenitude sobre a criatura inteligente” (MARITAIN, 1946, p. 40). Tal deificação, aspiração de caráter Renascentista, Maritain o relaciona, não mais com a supervalorização ou criação de uma natureza humana perfeita, mas com a concepção de santidade cristã, como meta e aspiração do espírito humano e realização perfeita de uma autêntica humanidade, assim:

A perfeição cristã é perfeição de amor entre duas pessoas, entre o homem e Deus. Assim sendo, a nossa tarefa não é a de construir por meio dos nossos esforços uma natureza humana perfeita, e sim a de fazer-nos conduzir pela graça a uma vida perfeita e a uma reciprocidade de amor, que utiliza cada coisa em seu proveito (MARITAIN, 1999, p. 146).

O humanismo teocêntrico se relaciona à santidade do homem. Os santos são aqueles que

se deixaram conduzir pela graça de Deus e se tornaram, de par em par, mais humanos. Isto retoma sua definição de humanismo, cuja exigência principal é “tornar o homem mais humano”. E à máxima de Karl Marx: “É fácil ser santo, quando não se quer ser humano” (MARX apud MARITAIN, 1999, p. 56), se opõe veementemente:

Esta seria, então, a grande mentira do humanismo ateu: pois, nascemos para tender a perfeição do amor, de um amor que envolve realmente a universalidade dos homens, sem dar lugar ao ódio, contra um só deles e que, realmente, transforma todo o nosso ser; o que não é possível a nenhuma técnica social, nem a qualquer trabalho de reeducação, mas só ao criador do ser – eis o que se chama santidade (MARITAIN, 1999, p. 56).

A santidade é definida por Maritain não como uma idealização de uma figura que se dedica

somente a uma ordem sacra, mas ao que ele caracteriza como “homem de humanidade comum”. Aqueles indivíduos empenhados nas estruturas morais e sociais, que, embora levem uma vida humilde, se empenham na “grande obra elementar e anônima da vida humana e não são tentados a se crerem uma raça superior” (MARITAIN, 1999, p. 170).

É nessa perspectiva que Jacques Maritain concebe uma reabilitação da figura humana, enquanto digna de uma valorização superior: a relação com Deus é condição sine qua non para a elaboração de um autêntico humanismo: “humanismo, mas humanismo teocêntrico, enraizado lá onde o homem tem suas raízes, humanismo integral, humanismo da Incarnação” (MARITAIN, 1962, p. 58).

O humanismo proposto pelo filósofo é aquele cuja base não nega a certeza de que “é para Deus, ao contrário, para a Causa Transcendente do ser que tendem, normalmente, as aspirações transnaturais da pessoa humana; é nele que elas incitam a alma a procurar a liberação" (MARITAIN, 1946, p. 38). Um humanismo integral supõe a valorização do homem em todos os âmbitos e em todas as suas nobres potencialidades. É a promoção “de todo homem e do homem todo”, como mais tarde viria a afirmar o Papa – e seu amigo – Paulo VI na sua encíclica Populorum Progressio. (PAULO VI,1967, p. 10)

Neste sentido, o humanismo integral, não se relaciona somente com uma concepção deificante do homem à medida de sua relação com Deus, mas também com sua aplicação no tempo e seu engajamento no mundo. Como assim define o filósofo em sua principal obra sobre o assunto, Humanismo Integral:

Este novo humanismo, sem medida comum com o humanismo burguês, e tanto mais humano quanto menos adora o homem, mas respeita realmente e efetivamente a dignidade humana e dá direito às exigências integrais das pessoas, nós o concebemos como que orientado para uma realização social-temporal desta atenção evangélica ao

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humano, a qual não deve existir somente na ordem espiritual, mas incarnar-se, e também para o ideal de uma comunidade fraterna. Não é pelo dinamismo ou pelo imperialismo da raça, da classe ou da nação que ele pede aos homens de se sacrificarem, mas por uma vida melhor para os seus irmãos, e pelo bem concreto da comunidade das pessoas humanas; pela humilde verdade da amizade fraterna a fazer passar – ao preço de um esforço constantemente difícil, e da pobreza, – na ordem do social e das estruturas da vida comum; é deste modo somente que um tal humanismo é capaz de engrandecer o homem na comunhão, e é por isto que ele não poderia ser outro senão um humanismo heroico (MARITAIN, 1962, p. 7-8).

A caracterização deste novo humanismo não supõe jamais – e ele se trairia se assim fosse

– uma busca somente pelo “Reino celeste” afastado e contrário ao mundo temporal. As raízes do Evangelho devem pautar o caminhar histórico da humanidade. E o cristianismo é tanto mais realizado e testemunhado à medida que se instaura já na história uma aspiração que tende à vida futura. Em outras palavras:

A tarefa temporal do mundo cristão é trabalhar aqui na terra pela realização social-temporal das verdades evangélicas: pois, se antes de tudo diz o Evangelho respeito às coisas da vida eterna, e transcende infinitamente a toda a sociologia como a toda filosofia, entretanto fornece-nos as soberanas regras de nossa vida, e nos traga de nosso comportamento terreno um quadro moral muito preciso, ao qual toda civilização cristã, na medida em que merece este nome, deve procurar conformar, segundo as diversas condições da história, a realidade social-temporal (MARITAIN, 1962, p. 36-37).

Nesse sentido, qualquer proposta que imobilize o homem não se refere ao verdadeiro

humanismo. O homem é tanto mais humano à medida que caminha em direção à sua perfeita conformidade entre o que é espiritual e temporal. O engajamento humano na sociedade, quando passa pelo crivo do cristianismo, deve permanecer sempre no esforço para o desenvolvimento completo do homem. O filósofo francês explicita:

Um humanismo realmente cristão não imobiliza o homem, para o bem nem para o mal, em nenhum momento de sua evolução; sabe que não somente em seu ser social, mas no ser interior e espiritual, o homem não passa de um esboço noturno de si mesmo, e que antes de atingir à figura definitiva – depois do tempo – deverá passar por muitas mudas e renovações. Pois há uma natureza humana imutável como tal, mas é precisamente uma natureza em movimento, a natureza de um ser de carne feito à imagem de Deus, isto é, espantosamente progressiva no bem e no mal (MARITAIN, 1962, p. 46).

Deste modo o humanismo cristão maritainiano representa uma busca por uma nova

dialética do espírito cristão Medieval com o período Moderno-Renascentista, que encontre como síntese uma resposta humana adequada a todas as necessidades do homem. O homem é tanto mais humano à medida que não escolhe uma de suas potencialidades em detrimento de outras, mas, ao contrário, é capaz de se desenvolver de modo integral. E, somente assim, buscando entender o homem em todas as suas dimensões, é que Maritain aplica sua filosofia como meio de transformação social:

Sugere a Filosofia social e política implícita no humanismo integral, para nosso atual regime de cultura, transformações radicais, digamos, para empregar analogicamente o vocabulário hilemorfista, uma transformação substancial. E não exige essa transformação somente a instauração de novas estruturas sociais e de um regime novo

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de vida social que suceda ao capitalismo, como também, e consubstancialmente, uma subida das forças de fé, de inteligência e de amor brotadas das fontes interiores da alma, um progresso na descoberta do mundo das realidades espirituais. Nesta condição somente, poderá o homem verdadeiramente ir mais avante nas profundezas de sua natureza, sem mutilá-la nem desfigurá-la (MARITAIN, 1962, p. 71).

Esta afirmação do autor reitera a sua posição em relação ao homem em face do mundo e aos fatos que o rodeiam. De fato, o homem de Maritain está além das estruturas sociais; ele é maior que o Estado; supera as relações econômicas; tem sua liberdade perante o seu destino e isto é visto em sua sacralidade quando relacionado ao absoluto. É autônomo à medida que se deixa conduzir por uma vocação especial que não o estagna, mas o revigora no seu propósito de humanizar-se.

A reflexão de Maritain expõe um pensamento que tem como afirmação e anseio a transformação e o desenvolvimento do temporal, que implica na adoção de novas medidas éticas, morais e políticas, pautadas nas raízes vivas do Evangelho e nos verdadeiros valores do Cristianismo. Que realmente tomem como fim a superação dos grandes regimes e das grandes estruturas sociais, bem como a construção de um mundo mais humano.

Todavia, não se perde de vista em nenhum instante de sua reflexão que o alcance de todos estes objetivos não se dá sem que antes tais medidas e mudanças sejam inspiradas no coração do homem, no seu íntimo, a partir do momento que se reconhece capaz de se relacionar com algo, aliás, com Alguém que o supere, o ame e o inspire a viver autenticamente humano, em outras palavras, uma vida divinamente humana.

CONSIERAÇÕES FINAIS

É possível notar no humanismo integral de Maritain sua proposta para uma radical escolha do homem, enquanto ser capaz e superior a qualquer estrutura externa, quando relacionado com o divino. Identifica-se em seu peculiar modo de pensar a crítica à raiz antropocêntrica do pensamento Moderno e a indicação de um novo humanismo, centrado nos valores do Evangelho e nos principais fundamentos do Cristianismo.

Sua filosofia, não obstante a presença de elementos frágeis, – talvez no pressuposto do Deus cristão como validade universal – é uma possibilidade para qualquer forma de “humanismo inumano”, que concebe o homem apenas como meio ou que destaque apenas algumas de suas potencialidades inerentes.

O desejo do humanismo cristão de Maritain é a aplicação de medidas que visem o homem como finalidade verdadeira. A educação, a ética, a política, enfim, as várias áreas do saber e da vida humana, sob o prisma do humanismo maritainiano, deverão convergir para o mesmo objetivo: olhar o homem a partir de Deus e valorizá-lo por sua grandeza, buscando meios para que tal grandeza seja de fato defendida diante das feridas sociais que ameaçam a vida humana.

O conteúdo exposto nesse trabalho procura mostrar que Maritain não quer simplesmente levar o homem a pensar sobre si mesmo, senão na pessoa de cada homem que sofre, mas que esconde em si sua relação com o Deus. Nessa ótica, seria em vão afirmar a dignidade do indivíduo e a vocação da pessoa humana sem o intuito de transformar as condições de vida que a oprimem, e em promover condições para que ela possa dignamente contar com o necessário para sua subsistência.

Uma mera divagação sobre a figura humana, sua dignidade e valor, não teria sentido algum sem o objetivo de construir uma sociedade que reconheça em qualquer ser humano, independente

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de sua condição, a sua grandeza perante todos e perante Deus; e que tal reconhecimento levasse a uma atitude conjunta da sociedade em valorizar as mais nobres aspirações de todo homem e proteger qualquer vida humana que sofre num mundo marcado pela desigualdade e desumanidade.

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Os autores declararam não haver qualquer potencial conflito de interesses referente a este artigo.