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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal Silvia Valencich Frota Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura, especialidade de Cultura e Comunicação 2016

O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o … · 2021. 1. 27. · O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais: o caráter

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

    o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

    Silvia Valencich Frota

    Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

    Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,

    especialidade de Cultura e Comunicação

    2016

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    O papel simbólico da língua na construção das identidades nacionais:

    o caráter identitário da discussão sobre o AO90 em Portugal

    Silvia Valencich Frota

    Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia

    Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e de Cultura,

    especialidade de Cultura e Comunicação

    Júri:

    Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e

    Membro do Conselho Científico, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    Vogais:

    - Doutor Fernando Ramallo Fernández, Professor Titular, Facultade de Filoloxia e Tradución da

    Universidade de Vigo – Espanha:

    - Doutora Marta Susana Filipe Alexandre, Professora Adjunta Convidada, Escola Superior de

    Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria;

    - Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação, Faculdade de

    Letras da Universidade de Lisboa.

    - Doutora Maria Teresa Barbieri de Ataíde Malafaia, Professora Associada, Faculdade de Letras

    da Universidade de Lisboa.

    - Doutor Manuel Amador Frias Martins, Professor Auxiliar com Agregação, Faculdade de

    Letras da Universidade de Lisboa.

    2016

  • iii

    Indicação de direitos de cópia

    A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm

    licença não exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu

    repositório institucional, esta tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso

    mundial. A Faculdade de Letras da Universidade Lisboa e a Universidade de Lisboa estão

    autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue para

    qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,

    para efeitos de preservação e acesso.

  • iv

  • v

    Aos meus pais

  • vi

  • vii

    Resumo

    A língua, ainda hoje, figura como um importante e recorrente elemento de

    identificação e, em especial, de identificação com uma certa identidade nacional. Neste

    estudo, procura-se refletir sobre os diferentes modos como a relação entre língua e identidade

    nacional é construída no âmbito do debate sobre a adoção do Acordo Ortográfico de Língua

    Portuguesa, de 1990. Tal acordo, assinado por diferentes países, todos membros da CPLP

    (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), propõe, entre outros objetivos, a promoção da

    unificação da grafia do português nos diversos países que o têm como língua oficial. Com

    essa preocupação em mente, são analisados artigos de opinião sobre o acordo ortográfico,

    publicados pelos jornais portugueses, em 2012.

    O enquadramento teórico-metodológico adotado é o da análise do discurso, em sua

    vertente crítica, entrelaçado com os princípios da linguística sistêmico-funcional. As

    identidades nacionais, nesse contexto, são consideradas numa perspectiva não essencialista,

    que se fundamenta nos diferentes processos de contrução discursiva nos quais a língua

    desempenha um papel relevante.

    Parte-se de uma breve retrospectiva do desenvolvimento dos nacionalismos na Europa,

    centrada no papel da língua, para, a seguir, identificar-se o contexto português, naquilo que

    interessa a este estudo. Passando-se à análise propriamente dita, identifica-se e analisa-se um

    conjunto de representações associadas à ideia de pátria, nação, soberania, povo, cultura,

    identidade e matriz, que são, neste estudo, caracterizados como “marcadores identitários”.

    Também as relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais e

    supranacionais são levadas em conta, num esforço de identificação de simetrias e assimetrias,

    de movimentos de aproximação ou afastamento e de afirmação de força ou fraqueza, que, em

    alguma medida, representam tentativas de caracterização de um “eu” e de um “outro”, sempre

    marcadas por relações de poder.

    Palavras-Chave: identidade nacional, cultura nacional, língua nacional, acordo

    ortográfico, análise do discurso.

  • viii

  • ix

    Abstract

    Language today still figures as an important and recurrent identification element and,

    in particular, identification of a certain national identity. In this study, we try to realize the

    different ways the relationship between language and national identity is built in the debate on

    the adoption of the Portuguese spelling agreement (Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa

    de 1990). The agreement that is signed by different countries all of them members of the

    CPLP (Community of Portuguese speaking countries) aims to promote the unification of

    Portuguese spelling among others objectives. Considering this, opinion articles on the spelling

    agreement published by the Portuguese newspaper in 2012 are analyzed.

    The theoretical and methodological framework adopted is that of discourse analysis, in

    its critical perspective, intertwined with the principles of systemic functional linguistics.

    National identities, in this context, are understood within a non-essentialist perspective that is

    based on different discursive construction processes in which language plays an important

    role.

    The starting point is a brief review of the development of nationalisms in Europe,

    centered on the role of language. Then the Portuguese context is characterized as far as it is

    considered relevant to this study. Turning to the analysis itself, a set of representations, which

    are characterized as "identity markers" in this study, are identifyied and analyzed. They are

    associated with the idea of homeland, nation, sovereignty, people, culture, identity and matrix.

    Also the relationship between Portugal and other national and supranational entities are taken

    into account in an effort to identify symmetries and asymmetries, approach or distance

    movements, strength or weakness positions, which, to some extent, represent attempts to

    define an "I" and an "other" and always embody power relations.

    Keywords: national identity, national culture, national language, spelling agreement,

    discourse analysis.

  • x

  • xi

    Agradecimentos

    Agradeço a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para que este projeto

    chegasse ao fim: ao Manuel Frias Martins, pela primeira conversa sobre língua e identidade,

    ainda antes do meu ingresso na FLUL; à Urbana Pereira, pela calorosa presença e pelos

    constantes cuidados ao longo deste percurso; à Maria Krebber, pela amizade e cumplicidade,

    que muito amenizaram as inseguranças, a solidão e as angústias que acompanham um projeto

    como este. Por fim, e sobretudo, agradeço ao Carlos Gouveia pela orientação, pelo apoio e

    pela amizade sempre.

  • xii

  • xiii

    Índice

    Introdução………………………………………………………………………. 3

    PARTE I

    Capítulo 1 – As identidades nacionais na Europa do século XXI ……………… 17

    Capítulo 2 – Língua e identidade nacional……………………………………… 47

    Capítulo 3 – A construção discursiva das identidades nacionais……………….. 77

    PARTE II

    Capítulo 4 – Contextualização e apresentação do corpus……………………….. 105

    Capítulo 5 – Análise dos marcadores identitários………………………………. 129

    Capítulo 6 – Análise das relações de simetria e assimetria envolvendo Portugal 159

    Capítulo 7 – Reflexão final……………………………………………………… 189

    Conclusão……………………………………………………………………….. 211

    Apêndice A……………………………………………………………………… 219

    Apêndice B……………………………………………………………………… 223

    Apêndice C……………………………………………………………………… 239

    Apêndice D……………………………………………………………………… 249

    Referências……………………………………………………………………… 263

    Obs.: Anexos disponíveis apenas em suporte digital.

  • xiv

  • xv

    Índice de Quadros

    Quadro 4.1 – Total de artigos por jornal analisado 114

    Quadro 4.2 – Total de artigos publicados por autor 115

    Quadro 4.3 – Dispersão dos artigos ao longo do ano 116

    Quadro 4.4 – Posição assumida face ao AO90 116

    Quadro 4.5 – Síntese dos argumentos 124

    Quadro 5.1 – Marcadores identitários 131

    Quadro 5.2 – Marcadores identitários e contabilização de ocorrências 132

    Quadro 5.3 – Pátria 132

    Quadro 5.4 – Relação entre pátria e língua 134

    Quadro 5.5 – Nação 135

    Quadro 5.6 – Acepções de nação 136

    Quadro 5.7 – Classificação de nacional/is 138

    Quadro 5.8 – Povo 141

    Quadro 5.9 – Classificação de povo 142

    Quadro 5.10 – Cultura 145

    Quadro 5.11 – Classificação dos usos da palavra cultura 145

    Quadro 5.12 – Classificação de cultural/is 147

    Quadro 5.13 – Identidade 149

    Quadro 5.14 – Identidade: língua x ortografia 150

    Quadro 5.15 – Relações de identidade 150

    Quadro 5.16 – Matriz 152

    Quadro 5.17 – Representações de matriz 154

    Quadro 5.18 – Marcadores identitários: quadro-resumo 155

    Quadro 6.1 – Situações de comparação e relações comparativas simples ou complexas 162

    Quadro 6.2 – Relações simétricas ou assimétricas 162

    Quadro 6.3 – Brasil como interveniente frequente no total de relações de comparação 163

    Quadro 6.4 – Intervenientes que figuram nas relações de simetria 164

    Quadro 6.5 – Brasil como interveniente frequente nas relações de simetria 164

    Quadro 6.6 – Estratégias de representação do Brasil quando um dos intervenientes, ao

    lado de outros países de língua portuguesa: referências explícitas e implícitas 165

    Quadro 6.7 – Estratégias de representação do Brasil quando único interveniente:

    referências explícitas e implícitas 166

    Quadro 6.8 – Classificação das representações implícitas do Brasil quando único

    interveniente 167

    Quadro 6.9 – Relações simétricas: convergentes e divergentes 169

    Quadro 6.10 – Relações simétricas convergentes e divergentes: Brasil e outros

    intervenientes 169

    Quadro 6.11 – Relações assimétricas: intervenientes 172

    Quadro 6.12 – Relações assimétricas: o Brasil como interveniente 173

    Quadro 6.13 – Relações assimétricas: outros intervenientes 173

    Quadro 6.14 – Relações assimétricas: forças e fraquezas 174

    Quadro 6.15 – Portugal no pólo forte: os PALOP como principais intervenientes 174

    Quadro 6.16 – Portugal no pólo forte: Timor, Brasil e Espanha intervenientes 175

    Quadro 6.17 – Relações assimétricas: quadro geral 175

    Quadro 6.18 – Portugal no pólo fraco: principais intervenientes 176

    Quadro 6.19 – Relações de simetria e assimetria: quadro-resumo 185

  • xvi

  • Introdução

  • No final do século passado, apregoaram seu fim, mas, nesta segunda década do século

    XXI, os Estados-Nação – e os nacionalismos que estão em suas respectivas origens – ainda

    figuram como intervenientes relevantes neste jogo de azar que cria, desenvolve e regula

    mercados globais de consumo de ideias, valores, produtos, capitais e, também, de pessoas, e

    que constitui uma arena internacional de atuação social em sentido amplo.

    No contexto europeu, aqui equiparado ao contexto da União Europeia, os

    nacionalismos se fazem presentes na manutenção da divisão política dos Estados-membros

    em unidades nacionais, nos discursos de afirmação e proteção de uma língua ou de uma

    cultura nacional, nas plataformas políticas defendidas principalmente pelos partidos de

    extrema-direita, nas campanhas de incentivo ao turismo, nas disputas esportivas

    internacionais, nos concursos televisivos como o Eurovisão, entre tantos outros casos e

    situações.

    Os exemplos acima corroboram, em alguma medida, a tese de que os chamados

    Estados-Nação ainda são importantes intervenientes no cenário internacional, mas não

    implicam afirmar que os papéis desempenhados por eles não se tenham transformado ao

    longo das últimas décadas. Como regra geral, parece haver uma maior concorrência entre as

    situações em que o Estado-Nação age sozinho e aquelas em que atua em concerto com outros

    Estados-Nação, ou seja, cada vez mais, os Estados são chamados a atuar como membros de

    uma instituição ou organização internacional, ou nesse contexto, do que a agir em nome

    próprio e individual.

    Essas transformações do papel dos Estados-Nação, e dos nacionalismos propriamente

    ditos, está diretamente relacionada com os diferentes processos de globalização que marcaram

    especialmente o século XX e que seguem se desenvolvendo na atualidade. Tais processos

    extrapolam as fronteiras nacionais, mas não necessariamente prescindem da ideia de nação.

    Pelo contrário, muitas vezes parecem se valer dela, quando, por exemplo, se organizam em

  • Introdução

    4

    torno de acordos comerciais ou tratados internacionais ou, ainda, exploram as especificidades

    das diferentes e diversificadas culturas nacionais. Nesses cenários, a unidade de negociação é

    a unidade nacional, embora o resultado que se busque alcançar seja, em geral, muito mais

    amplo.

    Nesse mesmo sentido, mas no âmbito específico das políticas adotadas pela união

    europeia, parece haver um esforço recorrente, com vistas a assegurar uma suposta soberania

    ou independência nacional – entendidas, neste contexto, como direito à autodeterminação –

    que, em geral, surge como um valor a ser protegido e preservado. Com tal afirmação, no

    entanto, não se pretende corroborar essa tese nem polemizar em torno dela. Por ora, basta

    reconhecer a existência de movimentos em sentidos diversos: os que afirmam que a cautela

    adotada na definição das políticas europeias no que diz respeito à proteção das soberanias

    nacionais pode ser entendida como desejável e saudável; os que a consideram, não mais

    desejável, mas necessária e incontornável; ou, ainda, os que entendem tal cuidado como

    excessivo e prejudicial para a construção de uma identidade europeia comum.

    Nesse contexto de transformação dos nacionalismos, no entanto, seja essa

    transformação conducente ao fim das nações ou não, interessa agora verificar o que acontece

    com as chamadas identidades nacionais. Pensando-se especificamente nos critérios

    identitários, isto é, nos elementos que, no passado, e em especial, ao longo do século XIX e na

    primeira metade do século XX, foram frequentemente associados à construção das

    identidades nacionais – como os conceitos de território (e fronteira), soberania, etnia (e raça),

    povo, história (e memória) e língua entre outros –, interessa refletir sobre seus respectivos

    usos nos dias de hoje.

    A noção de território nacional como sendo o espaço físico onde se localiza

    espacialmente a nação e que delimita sua área de atuação, associado à ideia de fronteira, ou

    seja, de limites físicos e de controlo de acesso ao território nacional, é fortemente impactada

    pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação que redefinem, de certo modo, a

    própria noção de espaço, que agora se amplia para dar conta do mundo digital e do mundo

    virtual.

    Além disso, sob pressão dos processos de globalização que conduzem ao

    estabelecimento de novos mercados e novas solidariedades, os quais, em muitos casos,

    concretizam-se na criação de entidades multi, inter ou transnacionais, essas fronteiras se

    deslocam para além dos estados nacionais, muitas vezes instaurando uma zona cinzenta, de

    indefinição entre o território de um país e o do país vizinho. Exemplo dessa situação é a

    União Europeia e o seu esforço de abertura e de livre circulação interna, levado a cabo pela

  • Introdução

    5

    atribuição de maior porosidade às fronteiras, ao ponto de, às vezes, estas se tornarem

    transparentes ou mesmo invisíveis.

    A ideia de soberania da nação, por sua vez, como direito de autodeterminação e de

    livre arbítrio, ou seja, como o reconhecimento da sua capacidade de e da sua autoridade para

    tomar decisões no âmbito do seu território, sem sofrer ingerências externas, é relativizada pelo

    contexto sócio-econômico global, que instaura um novo jogo de forças e interdependências.

    Apenas como exemplo dessas transformações, pode-se citar duas situações recorrentes: a

    globalização dos mercados financeiros e a globalização dos meios de comunicação de massas.

    Com a mobilidade do capital – que se traduz na internacionalização das unidades de

    produção, das instituições financeiras, assim como dos mercados de consumo entre outros – e

    a consequente criação de novos e ampliados fluxos que transcendem os limites e o controlo

    quer das nações de origem, quer das nações de destino, estabelece-se uma forte relação de

    interdependência caracterizada por maior instabilidade e riscos de contaminação entre países.

    Nessas condições, se é verdade que uma crise econômica pode ser deflagrada pela ação (ou

    omissão) de um único país, dificilmente pode ser contornada sem o consórcio de muitos

    outros, ameaçados pelos riscos de contágio.

    Na perspectiva da internacionalização dos meios de comunicação, que implica, por

    exemplo, a circulação de imagens e mensagens em âmbito global – muitas vezes em tempo

    real, desafiando o controlo e a censura locais –, estes concorrem para a construção de

    reputação e imagem dos diferentes sujeitos nacionais, interferindo nas relações estabelecidas

    entre nações, nas negociações internacionais, no desempenho financeiro e influenciando,

    inclusive, decisões de natureza política.

    Também o conceito de raça sofre um profundo revés, em parte em função da sua

    apropriação pelos regimes totalitários da primeira metade do século XX, com destaque para o

    nazismo, e das dramáticas consequências que acarretou. Posto de lado o conceito de raça, com

    seu sentido pejorativo e sua carga negativa, é preciso encontrar uma maneira de suprir sua

    ausência, corrigir seus defeitos. A ideia de etnia, como indicativo de uma origem comum, é a

    que melhor parece corresponder a tais necessidades.

    Mas também o conceito de etnia é transformado, como bem ilustra a reflexão de

    Fredrik Barth (1998) sobre o tema. O autor apresenta o conceito de etnia, não mais como um

    fato consumado, isto é, como uma caraterística inata e irrevogável de um indivíduo ou de um

    grupo, mas sim como o resultado de um processo de seleção e descarte de traços avaliados

    positiva ou negativamente, ou seja, também como resultado de um processo de construção. O

  • Introdução

    6

    recurso à etnia, portanto, deixa de ser uma referência estática e eterna e torna-se em algo, em

    alguma medida, volátil e passível de transformação ao longo do espaço-tempo.

    Nesse mesmo sentido, a noção de povo como os autores, isto é, os criadores originais

    de uma nação e, ao mesmo tempo, como os seus legítimos e autênticos herdeiros, também é

    reconfigurada à luz dos processos de globalização e da intensificação dos movimentos

    migratórios. Multiplicam-se, assim, os deslocamentos, modificando-se os desenhos das

    cidades, que, aos poucos, transformam-se em espaços multiculturais.

    Pessoas de diferentes nacionalidades convivem num mesmo espaço, interagem,

    estranham-se, identificam-se, num constante movimento de atração e repulsa. Os direitos de

    cidadania – conquistados pelos antes estrangeiros e agora cidadãos – ampliam a capacidade

    de ação do indivíduo, equiparam o que antes era desigual, atenuam ou mesmo apagam as

    diferenças. Em muitos países, partidários do jus solis, filhos de pais estrangeiros, nascidos no

    país são considerados nacionais ou, ao menos, têm essa possibilidade ao seu dispor,

    alimentando em alguma medida o cenário de concorrência entre os conceitos de povo (no viés

    de uma partilha étnica) e cidadão (no viés de uma partilha de direitos), que se confundem em

    certas situações e constrastam em outras.

    A história, com sua forte carga temporal e de continuidade, também é reinventada, ao

    lado da ideia de memória. A história deixa de ser o resgate ou o registro de fatos e

    acontecimentos do passado e tranforma-se numa narrativa, isto é, numa versão motivada,

    parcial e sempre inacabada desse passado. Torna-se, desse modo, objeto de disputa entre

    indivíduos, instituições, ideologias, governos – e o mesmo pode-se afirmar da memória, seja

    individual, seja coletiva.

    As relações de poder entretecidas nessas narrativas de história-memória têm, afinal,

    sua existência reconhecida, mesmo que nem sempre seus conteúdos sejam facilmente

    identificáveis. Essa história-memória perde seus contornos essencialistas e afirma-se como

    invenção. Agora, portanto, não mais se presta com tanta facilidade à comprovação

    incontestável da existência secular de uma nação, recurso muito frequente no passado dos

    nacionalismos.

    Finalmente, resta referir o papel da língua como elemento de identificação, isto é, o

    recurso à língua como critério de nacionalidade, que ainda parece estar em vigor. A

    associação entre uma língua e uma nação está muitas vezes presente, por exemplo, nos

    discursos de proteção à língua, seja ela minoritária ou não, contra o risco de extinção –

    ameaçada por línguas mais fortes, como o inglês – ou de ser maculada ou contaminada por

    expressões e palavras estrangeiras. Nesse sentido, não são incomuns iniciativas, às vezes no

  • Introdução

    7

    campo jurídico, que visam proibir o uso dos chamados estrangeirismos ou mesmo de instituir

    multas pecuniárias por erros gramaticais – caracterizados como atentados contra a língua –

    em contexto de publicidade ou de circulação pública de informação.

    Também reforçam essa relação entre língua e identidade os discursos que atribuem

    valor cultural e econômico às línguas, como, por exemplo, as iniciativas que procuram reunir

    países que partilham uma mesma língua em busca, entre outras, de vantagens comerciais e

    políticas, como a lusofonia ou a francofonia. Nesse contexto, a língua é entendida como

    patrimônio ou bem passível de ser possuído e rentabilizado.

    A associação entre língua e cultura também contribui para a valorização do papel das

    chamadas línguas nacionais como força que une os indivíduos nacionais e os diferencia dos

    estrangeiros ao estabelecer uma relação entre a língua e um certo caráter nacional, isto é, um

    suposto padrão de comportamento cristalizado em representações, em geral idealizadas e

    arquetípicas, que muitas vezes exercem grande influência nos processos de autoidentificação

    e também no modo como a nação é percebida pelos outros.

    Mas, se o caráter identitário da língua parece persistir na Europa atual, não se pode

    negar que o contexto de uso das línguas se tenha transformado, até porque todos os critérios

    acima indicados estão ligados e são interdependentes, fazendo com que a transformação de

    um afete de algum modo os demais. Com os processos de globalização, o desenvolvimento

    das tecnologias de comunicação, o aumento da mobilidade de dados, bens e pessoas e a

    multiplicação das migrações, o contato entre línguas também se intensifica. A língua única,

    como valor, perde espaço para a diversidade linguística – agora, é esta última que é

    valorizada. O indivíduo monolíngue perde potencial competitivo face ao indivíduo plurilingue

    tanto nos mercados de trabalho como na sociedade em geral.

    No contexto europeu, o multilinguismo é a ideologia linguística adotada, embora não

    isenta de contestação, o que significa dizer que a identidade europeia se constrói em torno da

    diversidade linguística e não em torno da construção de uma só língua para a Europa (cf. a

    Resolução do Conselho da União Europeia de 21 de novembro de 2008, sobre uma estratégia

    europeia a favor do multilinguismo). Mas, nesse cenário, as línguas também podem assumir

    diferentes papéis. Com o esbatimento das fronteiras físicas e a virtualização e fragmentação

    do espaço no interior do continente, as línguas parecem se sobressair como uma espécie de

    barreira natural, a separar ingleses, franceses, portugueses ou alemães. Em reforço a tais

    discursos, a língua ainda figura como um importante canal de acesso ao exercício pleno da

    cidadania, quando não à aquisição primeira dessa cidadania em muitos casos.

  • Introdução

    8

    Resta saber qual é o impacto dessas mudanças e transformações na relação entre

    língua e nação, ou melhor, no modo como o indivíduo se vale da língua para construir sua

    identidade nacional ou a de outrem. O objetivo desta pesquisa é refletir sobre esse tema no

    contexto da União Europeia de hoje. Será que o potencial da língua como elemento de

    identificação nacional realmente permanece? E, se permanece, mantém-se inalterado ou se

    transforma? Nesse contexto, o que se pode dizer sobre a relação entre língua e identidade

    nacional no âmbito do projeto europeu: ela surge como um empecilho para a construção de

    uma identidade europeia ou consiste numa estratégia relevante para a sua construção?

    Com tal objetivo em mente, analisa-se o caso de Portugal, às voltas com um acordo

    ortográfico (AO) que visa uniformizar a grafia da língua entre os países lusófonos e que tem

    suscitado polêmica no país, parte dela em torno de questões de identidade. Para desenvolver

    essa reflexão, estuda-se o caráter identitário das discussões sobre o AO, a partir da análise de

    artigos de opinião publicados na mídia impressa em Portugal.

    A presente pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, que reúne os capítulos

    de 1 a 3, constrói-se o enquadramento teórico e metodológico que servirá de norte para o

    desenvolvimento do estudo do caso português e, ao mesmo tempo, de contraponto para a

    análise dos dados obtidos. Na segunda parte, que reúne os capítulos de 4 a 7, desenvolve-se a

    análise de caso propriamente dita.

    No primeiro capítulo, faz-se um recorte das teorias sobre as identidades a fim de se

    delinear aquelas que são objeto deste estudo: as identidades nacionais. Parte-se da perspectiva

    dos estudos culturais sobre o tema, explorando-se seu caráter transdisciplinar e,

    especialmente, as relações entre identidade e modernidade, marcadas nos tempos atuais pela

    ideia de crise, fragmentação e multiplicação, ou seja, discute-se o fim da identidade singular e

    inteira, por um lado, e a configuração de um cenário de concorrência entre identidades

    diversas, que ora se completam, ora se contradizem ou se anulam.

    Dentre as identidades, desenvolve-se o conceito de identidade nacional, traçando-se

    uma breve retrospectiva da história dos nacionalismos na Europa especialmente a partir do

    século XIX. A ideia de nação como comunidade imaginada, proposta por Anderson (2006), é

    o pano de fundo contra o qual se desenha essa identidade, num processo que mobiliza

    diferentes critérios como os conceitos de raça, etnia, língua, território, povo, soberania,

    cultura, história, memória entre outros.

    A seguir, explora-se a relação entre identidade nacional e cultura – conceitos que, em

    certos momentos, parecem se sobrepor. A própria definição de Anderson (2006: 4) de

    nacionalismo como sendo um tipo especial de artefato cultural já aponta para essa

  • Introdução

    9

    interconexão. O recurso a um conjunto de valores, comportamentos, tradições, memórias,

    visões de mundo e tantos outros elementos que podem ou não fazer parte dessa ideia de

    cultura nacional serve também aos processos de identificação individual e coletiva, de

    classificação de si mesmo e de outrem, de reconhecimento da igualdade e da diferença.

    Por fim, essa reflexão sobre as identidades em geral e as identidades nacionais

    especificamente debruça-se sobre a atualidade dos processos de globalização e seus impactos

    sobre o conceito de nação e de identidade nacional. Tal contexto é em muito devedor da ideia

    de que os nacionalismos estariam perto do seu fim, isto é, de que já não seriam a grande força

    de transformação social que foram ao longo do século XIX e da primeira metade do século

    XX, como destaca Hobsbawm (2012).

    As identidades nacionais são ainda o foco do segundo capítulo, mas, desta vez, a

    ênfase da análise recai especificamente sobre o papel da língua em sua construção. Segundo

    Hobsbawm (2012), é nas décadas finais do século XIX que a língua adquire papel de destaque

    na construção dos nacionalismos, configurando, assim, uma espécie de nacionalismo

    linguístico. A máxima uma língua, uma nação conquista terreno e impulsiona a construção

    das chamadas línguas nacionais, às quais é associado um ideário de pureza e superioridade em

    relação às demais línguas, ou versões dela, faladas num dado território.

    Mas, se a princípio parece ser a qualidade da língua como meio de comunicação e

    expressão que se destaca, numa reflexão mais aprofundada sobre as identidades nacionais o

    que chama a atenção é a forte carga simbólica que as línguas adquirem. Nesse sentido,

    interessa analisar a ideia de língua como símbolo da nação e dos nacionalismos; de língua

    como matéria-prima do indivíduo nacional, como edificadora de mundos, ou melhor, de

    representações dele, conformando o espaço de ação da nação e do seu povo.

    No espaço de interação entre língua e identidade nacional acima delineado, o conceito

    de cultura também se faz presente. Aliás, muitas vezes parece difícil delimitar os campos de

    ação de cada um desses conceitos – língua, identidade nacional e cultura – dada a forte

    correlação estabelecida entre eles. A língua é identificada como elemente essencial da cultura

    nacional, contribuindo para sua formação e constituindo-se no interior dessa cultura

    simultaneamente. Cabe também à língua a importante função de transmissão dessa cultura

    nacional – no bojo da qual se engendram e manifestam as identidades nacionais –, como se a

    língua carregasse, isto é, transportasse cultura.

    Nesse contexto, e levando-se em conta o projeto europeu, interessa refletir sobre essa

    relação entre língua, identidade e cultura no âmbito da diversidade linguística, ou melhor, no

    âmbito da ideologia ou política linguística adotada pela Europa: o multilinguismo. Na

  • Introdução

    10

    construção de uma identidade europeia, que papel a língua desempenha? Se as línguas

    carregam cultura e se as identidades são dependentes desse contexto cultural, é possível

    construir uma identidade singular para a Europa? É com essa discussão que se encerra o

    segundo capítulo.

    O terceiro capítulo é dedicado ao enquadramento teórico-metodológico propriamente

    dito, que tem como ponto de partida a noção de discurso. Parte-se da proposta de Foucault

    (1997), isto é, da ideia de discurso como modo de organização de significados, para explorar

    o seu papel como elemento estruturante de e estruturado por relações sociais, transpassado por

    relações de poder e disputas ideológicas.

    De entre a amplitude de discursos possíveis, destacam-se aqueles produzidos e

    veiculados pela mídia, isto é, os discursos midiáticos, uma vez que são estes os que

    constituem o corpus desta pesquisa. Considerando-se as funções desempenhadas pela mídia

    nas sociedades modernas e as relações sociais que ela estabelece e inspira, o discurso

    midiático parece sobressair como elemento formador de opinião pública, conquistando, assim,

    uma certa relevância.

    Nesse contexto, as propostas de investigação apresentadas pela análise do discurso

    ganham destaque e são elas que orientam esta investigação. A vertente da linguística

    sistêmico-funcional é central nesta abordagem e serve como diretriz para o levantamento e

    análise dos dados obtidos a partir de uma seleção de artigos de opinião publicados sobre o

    acordo ortográfico nos jornais portugueses ao longo de 2012.

    Por fim, explicita-se a posição assumida no estudo das identidades nacionais como

    sendo a da construção discursiva. Afasta-se, assim, as visões essencialistas das identidades,

    em geral produzidas em torno de certas representações recorrentes e resistentes à mudança, e

    afirma-se o seu caráter de processo e construção, sempre dinâmico e em constante

    transformação. Nesse contexto, as identidades são entendidas como tomadas de posição no

    âmbito do discurso, em consonância com Tann (2010).

    Com o quarto capítulo, tem início a segunda parte desta pesquisa, voltada

    especificamente para a contextualização, a identificação, o tratamento e a análise de dados.

    Parte-se da elaboração de uma breve retrospectiva histórica de Portugal, onde são

    identificados alguns episódios potencialmente relevantes para a análise do papel da língua na

    construção das identidades nacionais portuguesas, como a fixação das fronteiras do país e a

    participação de Portugal na chamada era dos descobrimentos.

    A seguir, é o contexto da língua que ganha relevância, mas, desta vez, a ênfase recai

    sobre a atualidade. Neste século XXI, interessa observar que discursos se digladiam no debate

  • Introdução

    11

    sobre a língua portuguesa e sobre as suas perspectivas – ou não – de desenvolvimento,

    valorização econômica, afirmação cultural entre tantas outras. Com essa análise, busca-se

    refletir sobre o futuro da língua portuguesa como elemento de construção identitária das

    diferentes nações que a adotam.

    Em continuidade a essa reflexão, passa-se à apresentação, justificativa e descrição do

    conjunto de dados que será analisado, isto é do corpus, que consiste em matérias de opinião

    publicadas nos jornais portugueses, ao longo de 2012, sobre o acordo ortográfico, como já

    referido anteriormente. Na análise desses textos, são considerados exclusivamente os

    discursos de caráter identitário, alguns explícitos, outros não. Com essa afirmação, ficam

    excluídos da análise muitos outros discursos sobre o acordo ortográfico, cuja natureza técnica,

    jurídica ou política não apresentam, a priori, conotação identitária.

    Por fim, encerra-se este capítulo com o delineamento das estratégias de análise, que

    serão apresentadas de forma pormenorizada nos capítulos cinco e seis. Tais estratégias estão

    divididas em duas partes principais. Na primeira delas, procura-se analisar certos elementos

    que, com alguma frequência, surgem nos discursos dos nacionalismos. Na segunda, reflete-se

    sobre as diferentes posições contruídas por e para Portugal na relação com outros países

    citados nos textos.

    No quinto capítulo, parte-se para a análise propriamente dita do corpus, que será

    desenvolvida também no capítulo seguinte. Nesta primeira parte da análise, a perspectiva

    adotada é a da identificação dos principais elementos – designados como marcadores

    identitários – a serem mobilizados na construção de discursos em torno da ideia de identidade

    nacional, em geral, e identidade nacional portuguesa em particular.

    Pátria, nação, soberania, povo, cultura, identidade e matriz são os temas mobilizados

    via tais marcadores, definidos em função de suas respectivas frequências ao longo do corpus

    – verificada pela contagem de palavras do texto – e da sua relevância para os discursos e

    teorias sobre os nacionalismos, elaboradas e desenvolvidas especialmente a partir do século

    XIX, na Europa.

    Por fim, analisa-se o modo como tais marcadores são utilizados, assim como os

    discursos e representações de identidade nacional sinalizados por eles. Nesse processo,

    procura-se realçar as relações estabelecidas entre os mesmos e o conceito de língua – aqui

    entendido de forma abrangente para incluir a ideia de ortografia. O papel simbólico

    desempenhado pela língua na construção das identidades nacionais é, assim, posto em

    destaque.

  • Introdução

    12

    No sexto capítulo, a estratégia de análise desloca-se dos marcadores identitários para

    se concentrar nas relações estabelecidas entre Portugal e outras entidades nacionais ou

    supracionais, com o intuito de se compreender melhor de que forma as identidades são

    estabelecidas por via da construção da ideia de um ou vários outros. É dessa tensão entre um

    eu e um outro que se pretende inferir o papel da língua como símbolo de uma certa identidade

    nacional.

    Com tal objetivo, primeiro busca-se identificar os discursos que relacionam Portugal a

    outras entidades nacionais e supranacionais, para, a seguir, analisar tais relações em função

    das simetrias e assimetrias que são estabelecidas. Nos casos das relações de simetria, isto é, de

    equivalência de forças ou posições, estas são classificadas como positivas ou negativas,

    dependendo do modo como são valoradas em seus respectivos contextos. Nos casos das

    relações de assimetria, busca-se identificar que posição Portugal ocupa: se o pólo forte –

    relação assimétrica em que Portugal assume posição de vantagem – ou o pólo fraco – relação

    assimétrica em que Portugal ocupa posição de desvantagem.

    Por fim, tais relações – simétricas e assimétricas – são analisadas em conjunto, de

    forma constrastada, de modo a se construir um panorama alargado das diversas relações

    estabelecidas entre Portugal – na perspectiva do eu – e diferentes entidades nacionais ou

    supranacionais – na perspectiva do outro. Os principais resultados identificados a partir dessa

    ação são reunidos num quadro-resumo.

    No sétimo e último capítulo, busca-se relacionar os discursos teóricos desenvolvidos

    nos capítulos 1 a 3 às análises de dados desenvolvidas nos capítulos 4 a 6, numa perspectiva

    comparada. Considerando-se, portanto, a evolução dos conceitos de identidade e de

    identidade nacional, pretende-se compreender melhor que papel a língua, como símbolo,

    desempenha hoje na construção dessas identidades no contexto europeu.

    Com essa finalidade, retomam-se os conceitos estudados no âmbito dos marcadores

    identitários, que são agora novamente analisados à luz do conjunto de resultados obtidos e

    dentro do enquadramento teórico-metodológico definido para esta pesquisa. Do mesmo modo,

    os diferentes discursos de representação de Portugal, que afloram na perspectiva da

    comparação entre o país e outras entidades nacionais e supranacionais, são mais uma vez

    avaliados.

    Por fim, a partir do conjunto de dados, conceitos, discursos e representações reunidos

    e construídos ao longo desta pesquisa, busca-se refletir sobre o conceito de identidade

    nacional hoje e o espaço ocupado pelas línguas, numa perspectiva simbólica, em sua

    construção. No presente cenário, propõe-se o exercício do questionamento das forças e

  • Introdução

    13

    fraquezas que são atribuídas às identidades nacionais, assim como das oportunidades e

    ameaças que se lhe apresentam.

  • PARTE I

  • Capítulo 1

    As identidades nacionais na Europa do século XXI

    Identidade e modernidade

    Identidade nacional

    Identidade nacional e cultura

    Identidade nacional e globalização

  • Identidade é uma palavra recorrente nos discursos atuais, tanto na academia, como nos

    jornais, na televisão, no cinema, nos videojogos, na internet, nas conversas do dia-a-dia, nos

    consultórios médicos. No entanto, tanta insistência em torno do seu uso – às vezes abusivo –

    não torna mais fácil a sua definição; pelo contrário. Identidade parece ser mais uma noção do

    que um conceito propriamente dito, muitas vezes confundindo-se com subjetividade,

    personalidade, imagem, cultura, comunidade entre tantos outros termos. Ainda assim, apesar

    desses contornos fluidos e difusos, surge como tema central nas discussões sobre a

    modernidade – aqui entendida como os tempos atuais (ou, mais precisamente, como

    modernidade tardia ou pós-modernidade).

    Este capítulo se inicia precisamente com uma reflexão sobre a ideia de identidade na

    modernidade. A partir dos estudos de Hall (2014), entre outros, procura-se explorar os papéis

    desempenhados pelas identidades na caracterização da atualidade. Identidades múltiplas ou

    identidades fragmentadas? Identidades em crise ou a era das identidades? Identidades

    líquidas? Esses são alguns dos temas que orientam a discussão.

    Parte-se do princípio de que o debate sobre as identidades é prolífico e pode assumir

    contornos distintos a partir das perspectivas que sejam adotadas. Identidades de gênero, etária,

    religiosa, étnica, profissional são apenas algumas delas, entre as quais destaca-se as

    identidades nacionais, que serão aqui analisadas. Com essa finalidade, parte-se da elaboração

    de uma breve retrospectiva histórica dos nacionalismos na Europa, explora-se o tema das

    identidades nacionais e alguns dos seus possíveis significados.

    Nesse contexto, importa ressaltar que, não raras vezes, as identidades nacionais se

    confundem com o conceito de cultura ou identidade cultural. Nesses casos, identidade

    nacional e identidade cultural passam a indicar uma mesma coisa, girando em torno da

    construção de uma suposta cultura nacional como recurso de identificação individual e

    coletiva. Essas relações entre cultura e identidade são analisadas na tentativa de se melhor

    compreender os significados possíves das identidades nacionais hoje.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    20

    Por fim, na “Europa da Nações”, engajada num processo de integração, em diferentes

    níveis, entre nações soberanas e na construção de uma entidade supranacional, interessa

    refletir sobre o que acontece com as identidades nacionais. Mais do que isso, na era da

    globalização, pode-se ainda falar em identidades nacionais? Essas são algumas das questões

    que se pretende discutir ao final deste capítulo.

    O objetivo deste capítulo é, portanto, introduzir o tema das identidades e, mais

    especificamente, das identidades nacionais, a partir de uma reflexão teórica e de uma breve

    retrospectiva do desenvolvimento e transformação da ideia de identidade. Entre tantos

    caminhos possíveis, procura-se, aqui, traçar um pequeno recorte que servirá como ponto de

    partida para este estudo.

    Identidade e Modernidade

    O conceito de identidade é historicamente situado. Essa afirmação, que, a princípio,

    pode parecer banal e desnecessária, marca uma posição que deve ser explicitada desde já: as

    identidades não são inatas nem eternas; não são uma força da natureza ou um fato à espera de

    constatação. Na maioria das vezes, quando se fala em identidade, seja na esfera pública, seja

    na privada, em geral dá-se como certo o mútuo entendimento; mas convém frisar que tal se dá

    menos em função de um conhecimento partilhado e indisputado do seu significado do que

    pela operação de um mecanismo de naturalização e essencialização que incorpora as

    identidades aos discursos da atualidade.

    Para refletir sobre o tema, pode-se partir, por exemplo, acompanhando Hall (2014), da

    Europa do iluminismo. O paradigma da racionalidade, que aflora no século das luzes, traz à

    tona o sujeito racional, movimento este bem representado pela máxima de Descartes: “Penso,

    logo existo”. Uma certa noção de individualidade ganha corpo e se propaga no espaço – em

    especial, no espaço urbano, com o desenvolvimento das cidades. É nas cidades que o sujeito

    se depara com uma infinidade de outros: rostos, vozes e movimentos que passam, muitas

    vezes, sem retorno.

    Se, no espaço rural, isto é, no campo, a vida avança entre cores, odores e vozes

    conhecidas, o mesmo não acontece nas cidades. A consciência de si e da diferença, no

    reconhecimento de um ou muitos outros, está no cerne dessa primeira noção de identidade,

    tendo a razão ou a racionalidade como motor e justificativa. Como bem destaca Benjamim

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    21

    (2006: 40), citando Georg Simmel, o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo

    constitui um bom exemplo desse estranhamento no contato com o outro e do incômodo que

    provoca:

    “As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades… caracterizam-se por um

    evidente predomínio da actividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais deste

    estado de coisas são os meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,

    dos comboios dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de se

    encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem

    dizerem uma palavra.” A nova situação não era, como reconhece Simmel, nada

    tranquilizadora.

    Como descreve Hall (2014: 17-22), o crescimento e a multiplicação das cidades,

    associados à crescente complexidade da vida social e do nível de organização necessário para

    mantê-la em funcionamento e sustentá-la, implicam o estabelecimento de novas fidelidades.

    O indivíduo racional, pouco a pouco, cede seu lugar ao sujeito social, num deslocamento que

    parece refletir as novas exigências e capacidades inerentes e necessárias à vida em grupos

    alargados e heterogêneos, ou seja, em círculos sociais ampliados.

    Os processos de socialização, a formação de e a interação entre grupos e as novas

    relações de poder operam sobre aquele indíviduo racional, transformando-o em sujeito social,

    que, por sua vez, desempenha novos papéis em sociedade. Esses novos papéis ou identidades

    sociais fornecem, em alguma medida, estabilidade e segurança, proporcionando uma sensação

    de conforto e de pacificação de conflitos, ao instilarem no sistema um certo grau de

    previsibilidade e de expectativas pré-fixadas.

    Do indivíduo racional ao sujeito social, chega-se ao século XX, marcado, ao menos na

    perspectiva europeia, por duas grandes guerras em sua primeira metade e pelo despoletar de

    movimentos de acirramento e multiplicação de contatos entre pessoas, grupos e entidades

    (associações, instituições e organismos de natureza diversa), identificados como processos de

    globalização, que provocariam um forte impacto no tecido social, promovendo profundas

    transformações, especialmente nas últimas décadas do século passado e neste início de século

    XXI.

    A noção de identidade – em suas diferentes versões – vai tomando forma ao longo

    dessas transformações, sem que seja possível (ou mesmo importante) fixar um ponto de

    partida. Apenas como referência, vale a pena notar que no vocabulário de termos relevantes

    em cultura e sociedade (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society), de Raymond

    Williams (1981), publicado em 1976, o verbete “identidade” sequer aparece. No entanto, em

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    22

    sua versão revista e ampliada (New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society),

    editada por Tony Bennett, Lawrence Grossberg, Meaghan Morris, publicada em 2005, o

    verbete “identidade”, elaborado por Kevin Robins (Bennett et al, 2005), não só é incluído

    como aparece com algum destaque.

    A perspectiva adotada por Robins, em tal verbete, é a da identidade como

    identificação, isto é, como uma percepção de igualdade individual ou coletiva, que

    supostamente se mantém inalterada ao longo do tempo. Essa ideia de permanência contida na

    ideia de continuidade atuaria como uma espécie de estratégia de organização da complexidade

    da vida moderna tanto no campo subjetivo (psicológico) como social. Os caráteres de unidade

    e continuidade das identidades serviriam de contraponto ao pluralismo, à diversidade e à

    transformação tão característicos desta modernidade tardia:

    Identity is to do with the imagined sameness of a person or of a social group at all times and

    circumstances; about a person or a group being, and being able to continue to be, itself and not

    someone or something else. Identity may be regarded as a fiction, intended to put an orderly

    pattern and narrative on the actual complexity and multitudinous nature of both psychological

    and social worlds. The question of identity centers on the assertion of principles of unity, as

    opposed to pluralism and diversity, and of continuity, as opposed to chance and transformation.

    (Bennet et al, 2005).

    Essa definição de identidade é apenas uma entre tantas possíveis, uma vez que os

    estudos de identidade são objeto de disciplinas diversas como a sociologia, a psicologia, a

    antropologia e os estudos culturais em meio a outras possibilidades. A abordagem adotada

    nesta pesquisa, entretanto, é a dos estudos culturais, que não só reconhece os diferentes vieses

    adotados por áreas de conhecimento distintas, como se vale deles para construir sua reflexão –

    tarefa que pode ser desenvolvida a partir de estratégias diferentes e que, portanto, deve ser

    clarificada. Com tal intutito, propõe-se aqui pensar-se em três categorias distintas,

    identificadas como “multidisciplinar”, “interdisciplinar” e “transdisciplinar”.

    Entende-se a multidisciplinaridade como a opção que se vale de diferentes áreas do

    conhecimento na análise de um dado objeto ou na reflexão sobre um tema qualquer. Nessa

    perspectiva, a divisão do conhecimento em áreas distintas e estanques é assumida à partida e

    respeitada. O resultado obtido é uma espécie de soma das diferentes mais-valias oferecidas

    por cada área. Ao longo desse processo e segundo seus críticos, faz-se presente o receio de

    contaminação entre elas, associado ao risco de perda de rigor científico ou de coerência

    teórico-metodológica.

    https://en.wikipedia.org/wiki/New_Keywords:_A_Revised_Vocabulary_of_Culture_and_Society

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    23

    Entende-se a interdisciplinaridade como a opção que, embora também opere a partir

    das múltiplas disciplinas, não reconhece a existência de limites claros e definidos entre elas.

    Pelo contrário, reconhece o contato e a sobreposição, ou seja, a existência de um espaço

    liminar, valorado positivamente e explorado nessa perspectiva. No entanto, segue

    reconhecendo a divisão do conhecimento em áreas de saber com suas características e

    especificidades.

    Entende-se a transdisciplinaridade como a opção que rompe com a clássica divisão do

    conhecimento em disciplinas independentes, construindo-se a partir de diferentes teorias e

    ideias de origens diversas. Não se quer aqui pôr em causa a classificação e divisão do

    conhecimento para fins didáticos – esse não é o tema em discussão. O que se reclama é uma

    perspectiva de conjunto, que trabalha a partir de ideias e reflexões, recusando-se à

    classificação tradicional ou mesmo à ideia da classificação como um fim em si mesma – a

    classificação é aqui entendida como um recurso de raciocínio, estratégia de reflexão. Há um

    potencial de transformação que é valorizado nessa abordagem, sem que isso signifique

    abdicar do rigor científico ou da coerência teórico-metodológica – embora, muito

    provavelmente, atribuindo-se a tais termos significados em alguma medida diferentes dos

    tradicionais.

    A perspectiva da transdisciplinaridade, no enquadramento dos estudos culturais, é

    aquela adotada nesta pesquisa, o que não implica desconsideração pelos riscos inerentes à

    transposição de um conceito de uma área para outra. Considera-se, no entanto, que um

    conceito – ou uma ideia, um pensamento, uma reflexão, uma teoria – é indissociável do seu

    contexto, isto é, do contexto no qual é produzido. Desconsiderar tal relação, impossibilita esse

    exercício nos moldes propostos. Em outras palavras, o que se defende é que o conhecimento é

    construído a partir do diálogo, da relação e do embate entre ideias. Partir de uma ideia

    desenvolvida por outro/s, apropriar-se dela e transformá-la é atividade inerente à produção do

    conhecimento e não uma ameaça à mesma.

    Claro que não se está isento do risco de se construir ideias ou relações inconsistentes

    ou incoerentes, que, nesse caso, logo serão constestadas, criticadas, descartadas ou

    transformadas. Mas tal movimento é salutar para o desenvolvimento e a produção de

    conhecimento. Também é preciso considerar que, muitas vezes, compreender mal significa

    simplesmente discordar da corrente dominante, isto é, compreender diferentemente de outros

    ou não conseguir convencer seus pares da validade e pertinência de uma perspectiva – isso se

    dá em função de vários fatores, que, em geral, envolvem relações de poder, prestígio e

    posição de quem fala ou de contra quem se fala.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    24

    A discussão em torno dos conceitos de multi, inter e transdiciplinaridade, além de

    controversa, não é, no entanto, objeto deste estudo. O que se pretende é simplesmente

    explicitar a posição aqui adotada. Feito esse alerta e esclarecido tal ponto, retoma-se a

    discussão sobre as identidades no contexto atual, caracterizado como pós-modernidade ou

    modernidade tardia.

    Em A Condição Pós-Moderna (1986), Lyotard reflete sobre os tempos atuais,

    marcados pelo aumento da complexidade das relações sociais entre sujeitos e pela

    fragmentação e multiplicação dos centros. É o momento que representa o suspiro final das

    grandes narrativas que caracterizavam o período que lhe antecede, ou seja, o fim dos

    discursos com pretensão de generalidade e universalidade que serviam de justificativa e de

    estrutura para uma dada sociedade – não mais a busca por regras gerais, aplicáveis a toda

    multiplicidade e complexidade de situações e casos, mas sim o caso específico e particular,

    sempre contingente.

    Para o autor, esse cenário constitui uma mudança, uma transformação suficientemente

    relevante para marcar uma distinção entre a noção de modernidade e de pós-modernidade,

    também chamada de modernidade tardia – expressões utilizadas para denominar o período

    que se estende da segunda metade do século XX até a atualidade. No âmbito deste trabalho,

    como regra geral, as referências à modernidade, contemporaneidade e modernidade tardia

    remetem para o tempo presente.

    É nesse contexto da modernidade tardia que Stuart Hall (2014: 22-28) afirma que as

    identidades perdem seu centro, num processo marcado, principalmente, por cinco

    movimentos: o pensamento marxista, o surgimento da psicanálise, a semiologia de Saussure,

    as ordens do discurso de Foucault e as teorias feministas. Essa afirmação se assenta num

    cenário anterior no qual as identidades teriam adquirido uma certa estabilidade ou fixidez ou,

    ao menos, seriam assim percebidas.

    Tanto o pensamento marxista, desde o século XIX, como os movimentos feministas, a

    partir dos anos 60 do século XX, ao promoverem um novo tipo de identidade ampliada,

    colaboram para esse processo de deslocamento do centro (ou descentramento) das

    identidades. A promoção de uma identidade da classe trabalhadora assim como a de uma

    identidade feminina promovem a ideia de identidade desterritorializada e descontínua, isto é,

    estabelecem uma relação identidade/diferença que não depende da vinculação a um território

    ou a uma progressão temporal contínua. Pressupõem uma identidade motivada pelo status

    social e econômico – pela ideia/condição de trabalhador – ou pelo status social e biológico –

    pela ideia/condição de mulher.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    25

    As teorias psicanalíticas, a partir de Freud e depois com Lacan, promovem a noção de

    subjetividade, ao mesmo tempo em que ressaltam o papel do inconsciente no

    desenvolvimento humano e na construção do indivíduo. Os discursos em torno da supremacia

    da razão e do predomínio do indivíduo racional na construção da identidade são fortemente

    influenciados pela noção de inconsciente e da sua relevância na formação do ser humano.

    A semiologia de Saussure, ao se debruçar sobre os modos de criação e troca de

    significados, ou seja, sobre os processos de comunicação, põe em evidência a complexidade

    da interação humana e sua dependência de um sistema de trocas simbólicas. A língua é

    afirmada como um sistema social e simbólico, dotado de um repertório de significados –

    construídos e reconstruídos ao longo do tempo-espaço – do qual o indivíduo se vale para

    viver em sociedade.

    A teoria sociológica de Foucault, que posiciona o discurso como elemento estruturante

    da sociedade, põe em causa mais uma vez a autonomia do indivíduo racional, suspendendo a

    invisibilidade, ou melhor, revelando as redes sociais (poder/saber) que limitam e delimitam a

    possibilidade de ação e manifestação humanas. São as ordens do discurso que pré-determinam

    o que pode ou não ser dito, de que modo, por quem, em que contexto, com qual valor, numa

    espécie de condicionamento da autonomia e do poder de agência do indivíduo.

    Em comum, todas elas anunciam o fim da supremacia do indivíduo racional como o

    principal – ou mesmo, o único – ator social, dotado de autonomia, capaz de determinar seu

    próprio destino, contrariando, de certo modo, a máxima de Descartes (“Penso, logo existo”).

    Fazem-no ao trazer à luz uma série de outras perspectivas e forças que interagem e

    condicionam em algum grau a vida em sociedade. O indivíduo torna-se sujeito numa dupla

    perspectiva: do ser e do estar, ou seja, quer numa perspectiva estática e essencialista, quer

    numa perspectiva dinâmica e performativa.

    A ideia de fragmentação, recorrente nos discursos da modernidade tardia, parte do

    paradigma de uma identidade una e indivisa que se perde ou se parte, ou seja, de identidades

    que se fragmentam. Com o fim das grandes narrativas, a narrativa das identidades, em sua

    completude, também se perde. A complexidade da vida moderna, a multiplicação das

    variáveis que regulam as relações entre sujeitos, as difíceis e confusas equações de

    interdependência entre fatores e o consequente aumento da especialização, associado ao

    aumento da quantidade de informação e dados a circular, permitiriam no máximo vistas

    parciais, fragmentos que poderiam ou não ser combinados.

    Essas identidades fragmentadas instauram um estado de tensão permanente, quer em

    função de um exercício incessante de combinação e conjugação das partes, nem sempre

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    26

    conseguido, mas muitas vezes desejado – numa busca pela estabilidade ou pelo equilíbrio –,

    quer em função da ansiedade gerada pela tentativa de se reconstituir um todo indiviso – meta,

    agora, impossível de ser alcançada.

    Essas tensões transparecem, muitas vezes, nos discursos de afirmação de uma certa

    “crise das identidades” que se teria instalado nas sociedades modernas. A perda de pontos de

    referência seguros e estáveis, além da multiplicação das possibilidades de identificação,

    provocam insegurança e ansiedade no sujeito social moderno, que vivencia essa situação

    como crise.

    Ora em paralelo, ora em concorrência com a ideia de fragmentação das identidades –

    que pressupõe, como já afirmado, a existência anterior de um todo, de uma totalidade, que se

    perde – está a noção de multiplicação: não mais identidades fragmentadas, mas sim

    identidades múltiplas. Para dar conta da complexidade do sistema social é preciso se

    multiplicar – não mais fragmentar o todo, mas sim multiplicá-lo em sua inteireza. Trata-se, na

    verdade, de uma justificativa ou estratégia diferente para dar conta do mesmo resultado: o fim

    de uma identidade una e indivisível e o desenvolvimento de novas e diversas identidades.

    Essa perspectiva parece inverter a ideia de crise convertendo-a em oportunidade. A

    modernidade tardia não é mais caracterizada pela “crise das identidades”, mas sim como a

    “era das identidades” – em vez da fragmentação, a multiplicação. Para fazer face à

    complexidade da modernidade, o indivíduo se vale de várias identidades distintas e

    independentes: de gênero, etária, profissional, nacional, etc.

    Nesse sentido, cada indivíduo teria um repertório de identidades à sua disposição, que

    poderiam ser utilizadas sempre que necessário, segundo o critério de cada um, para melhor

    atender as necessidades da vida em sociedade. Na era das identidades, o indivíduo exercitaria

    seu poder de escolha e sua capacidade de compra, como se de um bom consumidor se

    tratasse, beneficiando-se de um livre-mercado das identidades (Billig, 1995: 134). A

    identidade de consumidor, desse modo, ganharia proeminência, especialmente numa

    sociedade caracterizada como sociedade de consumo.

    A ideia de livre-mercado das identidades acentua a noção de voluntarismo e a

    perspectiva sócio-econômica associadas ao tema ao delinear um cenário em que as

    identidades se transformam em mercadoria, passíveis de serem adquiridas ou descartadas em

    função do poder aquisitivo do consumidor e da sua vontade. Essa contaminação da lógica de

    mercado a tantas outras esferas da vida social é também uma característica dos discursos da

    modernidade.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    27

    A metáfora da liquidez, tão bem explorada por Bauman (2006), parece útil na

    caracterização das identidades nesse contexto de modernidade tardia como “identidades

    líquidas”. A matéria em estado sólido se transforma. O estado de liquidez acentua o caráter

    fluido e de certo modo volátil das identidades, que estão em permanente estado de

    transformação e acentua também sua flexibilidade, isto é, a sua capacidade de assumir formas

    diferentes em função do seu entorno.

    O que as perspectivas da crise e da era das identidades têm em comum, no entanto, é a

    valorização do papel desempenhado por elas nas sociedades atuais. Essa afirmação é em parte

    corroborada pelo volume de trabalhos produzidos em torno do tema e pela frequência dos

    discursos que dela se valem. Apesar da grande variedade de posições e conceitos veiculados,

    é possível refletir sobre o tema a partir de duas visões antagônicas que atravessam essas

    discussões: as visões essencialistas e as visões não-essencialistas das identidades.

    Considerando-se os dois extremos, pode-se caracterizar as visões essencialistas como

    aquelas que partem da ideia de identidade como algo dado, algo que nasce com o indivíduo e

    o acompanha – mesmo à sua revelia – até a morte. Faz dele o que ele é, regula seus atos,

    determina seu comportamento, isto é, constitui sua essência. Sendo assim, não pode ser

    modificada ou transformada. Essas perspectivas retiram poder e autonomia do indivíduo, que

    passa a estar sujeito a essa identidade, e são compatíveis com os discursos de descoberta, isto

    é, da ideia do indivíduo que parte em busca de si mesmo.

    Do lado oposto, estão as visões não-essencialistas que negam o caráter inato das

    identidades, afirmando seu potencial de criação e transformação. O indivíduo não nasce com

    uma identidade, mas sim a constrói na relação com si mesmo e com os outros. As identidades

    resultariam, assim, de um processo de construção. No âmbito dessas teorias, esses processos

    de construção podem ser descritos e caracterizados de formas bastante distintas, mas, em

    geral, em todas elas o indivíduo adquire algum poder de participação – maior ou menor, mais

    ou menos ativo, mais ou menos condicionado. O indivíduo, desse modo, pode escapar à

    situação de sujeição e passar à posição de sujeito.

    A grande maioria das teorias e reflexões sobre as identidades em vigor hoje, no

    entanto, parecem se situar entre um extremo e outro, combinando perspectivas essencialistas e

    não-essencialistas. Partindo-se dessa premissa, pode-se delinear algumas das concepções mais

    frequentes a partir de duas analogias: a do núcleo-duro e a da moda, que serão desenvolvidas

    a seguir.

    Uma dessas perspectivas de construção identitária pode ser pensada recorrendo-se a

    uma analogia com o conceito de “núcleo-duro”, retirado do direito. O sistema jurídico-

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    28

    constitucional é construído a partir de um núcleo-duro, isto é, de um conjunto de regras e

    valores fundamentais – estáveis e, praticamente, inalteráveis – aos quais outras normas

    jurídicas são associadas e incorporadas, sendo consideradas válidas apenas se e à medida que

    forem compatíveis com ele. Do mesmo modo, as identidades seriam constituídas a partir de

    um núcleo-duro, de um centro irradiador de controlo, validade e sentido – perspectiva

    essencialista – em torno do qual o indivíduo construiria sua identidade ao longo da vida –

    perspectiva não-essencialista.

    Na segunda perspectiva, recorrendo-se à moda como metáfora, as identidades seriam

    como as roupas, um traje que se veste e se despe segundo o livre-arbítrio, a escolha, o humor

    do indivíduo – para cada situação, um traje diferente. Nesse modelo, a noção de estilo permite

    uma certa ligação entre um traje e outro, criando, em seu conjunto, alguma unidade. Desse

    modo, seria possível reconhecer o indivíduo independentemente do traje utilizado ao se

    reconhecer o seu estilo. Embora esse modelo se aproxime mais das visões não-essencialistas,

    quando comparado com o anterior, ainda é compatível com um viés de essência, presente na

    definição de cada traje a ser utilizado, ou seja, na definição de um repertório de identidades

    pré-fabricadas à disposição do indivíduo.

    A perspectiva adotada nesta pesquisa parte de uma visão não-essencialista das

    identidades, em que estas são o resultado de um processo constante de construção. Tal

    processo consiste na tomada de posição no âmbito do/a discurso/prática social. Com essa

    afirmação, não se pretende fazer qualquer juízo sobre os elementos que condicionam tais

    processos – sua validade, possibilidade, credibilidade – mas sim afirmar seu caráter relacional

    e sua necessária fluidez, sua eterna incompletude e sua natureza de projeto sempre em

    andamento.

    A discussão desenvolvida até o momento girou em torno das identidades, consideradas

    no presente contexto num alto grau de abstração. Agora, no entanto, o que interessa é fazer

    um recorte mais específico de modo a focar naquela que, entre tantas e tão variadas

    possibilidades, é o objeto principal desta reflexão: a identidade nacional ou, melhor, as

    identidades nacionais.

    Como alerta Kuper (1999: 235), as identidades, mesmo na perspectiva individual e

    privada, são vividas no mundo, no diálogo com o/s outro/s – e, na perspectiva construtivista,

    são aí construídas. No entanto, são vivenciadas individualmente, ou seja, numa perspectiva

    subjetiva, o indivíduo descobre essa identidade em si mesmo, no seu interior. Essa identidade

    consiste na identificação com o outro, com o/s grupo/s com o/s qual/is estabelece relação/ões

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    29

    de pertença, encontrando, assim seu lugar no mundo – seja uma nação, uma minoria étnica,

    uma classe social ou um movimento político ou religioso, como exemplifica o autor.

    Tais recursos à identificação com o outro e ao estabelecimento de relações de

    pertença, como referido acima, conduzem ao “mito da nação”, que, como afirma Billig (1995:

    137), assim como o mito da tribo ou o da religião, oferece algum conforto ao indivíduo ao

    propiciar a possibilidade do resgate de uma certa integridade, de uma certa inteireza, isto é, de

    uma noção do todo em meio à fragmentação e à insegurança inerentes à contemporaneidade.

    Identidade nacional

    Dois eventos são frequentemente indicados como sendo os precursores dos

    nacionalismos na Europa: a declaração da independência americana, em 1776, e a revolução

    francesa, em 1789. Mas é o século XIX aquele caracterizado como sendo o da “era das

    nações”, ou seja, o período em que os nacionalismos – como movimento político, social e

    econômico e como ideologia – ganham força e as nações são construídas.

    Em sua primeira metade, a Europa passa por grandes transformações, com o início da

    era industrial e a incidência (e persistência) de uma crise econômica que se espraia pelos

    campos, promovendo insatisfação e conflitos que culminam com uma série de levantes

    populares um pouco por toda a Europa, período identificado como sendo o da “primavera dos

    povos” ou “primavera das nações” (1848).

    O poder dos reis é posto em causa e sua origem divina é questionada pelas novas

    teorias liberais, com destaque para os pensamentos de Rousseau e Adam Smith, que se

    fundamentam na ideia de que o poder pertence ao povo e só em seu nome pode ser exercido.

    Trata-se do período que representa o início do fim dos regimes monárquicos e a ascenção da

    democracia.

    Fichte, Korais, Rousseau, Herder e Mazzini, cada um na sua época e à sua maneira,

    são identificados como os fundadores dos nacionalismos na Europa e, portanto, precursores

    do seu estudo. No entanto, embora tais estudos constituam uma referência importante para

    esta pesquisa, é importante ressaltar que seu foco são as identidades nacionais e os

    nacionalismos como projeto político, meio de mobilização das massas, movimento liberal,

    requisito democrático entre tantas outras possibilidades, sendo que, muitos desses temas, não

    são aqui explorados. O que se busca identificar nessas teorias são elementos que contribuam

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    30

    para a reflexão sobre o papel simbólico das línguas na construção das identidades nacionais

    num contexto bastante específico: a Europa do século XXI.

    Todas as transformações acima referidas e as instabilidades que lhe são inerentes

    contribuíram para o deflagrar das duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) que

    marcaram a primeira metade do século XX na Europa e redefiniram suas fronteiras. Não por

    acaso, esse período se confunde com aquele identificado por Hobsbawm (2012) como sendo o

    do apogeu dos nacionalismos: de 1918 a 1950.

    É no desdobramento desses conflitos, em 1951, que nasce a Comunidade Europeia do

    Carvão e do Aço (CECA), que viria a ser o embrião do que é hoje a União Europeia. A CECA

    é sucedida pela Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1967, e, finalmente, pela União

    Europeia, em 1992. Em seu primeiro momento, trata-se de um acordo comercial estabelecido

    entre França, Itália, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Ao longo dos

    anos seguintes, no entanto, passa por vários alargamentos e transformações em natureza,

    funções e objetivos, chegando à sua configuração atual como entidade supranacional,

    constituída por 28 países soberanos, em busca de integração nos mais variados níveis e

    engajada na construção de uma identidade própria.

    A ideia de nação como uma espécie de força da natureza, embora dormente, à espera

    de irromper constitui o ponto de partida de muitos dos nacionalismos europeus. Nesse

    contexto, a nação é concebida como o resultado de séculos de vivência em comum, partilhada

    por indivíduos que se assemelham, que possuem uma mesma origem, que ocupam um dado

    território, que partilham uma mesma história, uma língua, uma cultura. Todos esses elementos

    se mobilizam e conjugam na formação de um Estado-Nação – uma nação politicamente

    constituída e reconhecida –, dotado de autodeterminação, estrutura política e jurídica,

    instituições públicas, etc.

    Nesse sentido, a posição construída por Renan (1994) e defendida num importante

    discurso, proferido em 1882, intitulado “Qu’est-ce qu’une nation?” (“O que é uma nação?”)

    representa mudança significativa. Para o autor (ibidem:17), a nação seria um “princípio

    espiritual”, uma entidade dotada de alma e capaz de inspirar sentimentos de solidariedade e

    sacrifício. Nessa concepção de nação, o que faz de uma determinada comunidade nacional

    uma nação propriamente dita é o sentimento de solidariedade que ela é capaz de inspirar e que

    une todos aqueles que dela fazem parte. Tal sentimento seria suficientemente forte para

    justificar sacrifícios – matar e morrer em nome da nação e daqueles que no passado, hoje e

    também no futuro, estiveram, estão e estarão dispostos a fazer o mesmo.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    31

    O principal critério de existência nacional seria o desejo de um povo de permanecer

    unido, a vontade de ser uma nação. Nesse mesmo sentido, pertencer a uma nação seria uma

    questão de escolha, e não de origem étnica, língua materna, local de nascimento ou de

    qualquer outro critério objetivo. Para Renan, a pertença nacional consiste num compromisso

    livremente assumido e reafirmado diariamente numa espécie de “plebiscito diário” (Renan,

    1994).

    O pensamento de Renan rompeu com os modelos clássicos dos nacionalismos em

    vigor até àquele momento – que, em geral, se afirmavam a partir de elementos como etnia,

    língua, território, povo, religião, história, antiguidade, etc. – e exerceu grande influência nos

    estudos sobre o tema. Renan foi, nesse sentido, o precursor de uma série de desenvolvimentos

    que levariam a uma guinada no campo teórico a partir dos anos 80 do século XX, como

    exemplificam Anderson (2006) e Hobsbawm (2012).

    Em geral, as novas teorias nacionalistas se afastam das visões essencialistas da ideia

    de nação e assumem o viés da construção. Nesse sentido, as ideias de Gellner são um bom

    indicativo da mudança. Para o autor, são os nacionalismos que engendram a nação, e não o

    contrário. Gellner (1994: 63) contesta a visão do “despertar da nação”, que enfim toma

    consciência de si, da sua história e das suas raízes – discurso corrente nos nacionalismos. Para

    o autor, os nacionalismos consistem em novas formas de organização social, baseadas em

    sistemas de educação pública organizados, controlados e instituídos pelo Estado.

    Gellner contesta o mito da nação como uma força latente, mergulhada num sono

    profundo e ininterrupto, apenas à espera de se manifestar ou, ainda, como uma ordem natural

    e universal de classificar os homens em grupos distintos. Nesse mesmo sentido, o autor nega a

    ideia de nação como destino inexorável, apenas postergado, sempre na expectativa de

    emancipação. Para o autor, as nações são fabricadas a partir de um processo seletivo,

    arbitrário e inconsciente que se vale de culturas pré-existentes e ora as apaga ora as

    transforma radicalmente. Nesse processo, vários elementos são mobilizados, com destaque

    para as línguas, as tradições e um sentido de autenticidade e pureza que seriam característicos

    da alma da nação (1994: 63-64):

    Nationalism sees itself as a natural and universal ordering of the political life of mankind, only

    obscured by that long persistent and mysterious somnolence. (…) It´s nationalism which

    engenders nations, and not the other way round. Admittedly, nationalism uses the pre-existing,

    historically inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very

    selectively, and it most often transforms them radically. Dead languages can be revived,

    traditions invented, quite fictitious pristine purities restored.

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    32

    A nação seria, portanto, uma “comunidade inventada”, numa perspectiva que põe em

    causa a existência de comunidades homogêneas, compostas por indivíduos que partilham uma

    mesma origem, traços genéticos, língua, etc. e que parece não se sustentar face a uma análise

    detalhada, um olhar perscrutador. Mas a inexistência – e mesmo a impossibilidade – dessa

    homogeneidade não impede que uma comunidade seja percebida ou se perceba como tal.

    Anderson parte das reflexões de Gellner e constrói sua própria teoria, que ainda hoje

    exerce grande influência nos estudos dos nacionalismos. Critica o recurso à “invenção”,

    presente no conceito de Gellner, por acreditar que essa expressão remete para o universo da

    arbitrariedade, da fabricação de uma mentira, dificultando o seu entendimento. Anderson

    (2006: 5-6) propõe, como alternativa, a definição de nação como comunidade “imaginada”,

    ressaltando seu caráter “limitado e soberano”, como ilustrado abaixo:

    In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of the nation: it is an

    imagined political community – and imagined as both inherently limited and sovereign.

    It’s imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their

    fellow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of

    their communion.

    É interessante observar que, embora Anderson defina os nacionalismos como artefatos

    culturais, como referido na introdução deste estudo, o autor define nação como comunidade

    política – e não cultural, religiosa ou étnica, por exemplo. Esse entendimento de nação e

    nacionalismo parece condizer com o ideário do Estado-Nação, que remete para a ideia de

    Estado como nação politicamente organizada, ao mesmo tempo em que acentua o papel da

    cultura em sua construção.

    A substituição de inventada por imaginada pretende ressaltar a dependência do

    processo de construção da nação em relação a elementos pré-existentes. As nações não

    surgem do nada, nem no vácuo, mas sim da mobilização (ativação/passivação,

    afirmação/negação, apagamento/insersão, transformação/cristalização) de certos elementos

    que lhe são anteriores ou não, ou seja, o processo de imaginar a nação não é arbitrário, pelo

    contrário, há sempre condicionamentos.

    Na comunidade imaginada como nação proposta por Anderson, a noção de soberania

    que caracteriza os Estados é associada à ideia nação, acentuando o seu direito de se

    autodeterminar. A definição de limites pode ser interpretada como o estabelecimento de

    fronteiras, de limites territoriais, mas também de uma clara linha divisória a marcar a

    diferença, definindo critérios de inclusão e exclusão. Em ambos os casos, a analogia com o

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    33

    modelo de Estado-Nação pode ser retomada – mesmo que apenas como destino, esperado,

    desejado ou almejado.

    Partilhando a ideia de nação de Anderson, Hobsbawm desenvolve sua análise dos

    nacionalismos numa perspectiva histórica. Reconhecendo que o processo de imaginação da

    nação é, como já alertavam Gellner e Anderson, em muito dependente do sistema educativo e

    da apropriação seletiva de culturas pré-existentes, Hobsbawm debruça-se sobre o papel da

    tradição, que, para ele, também é resultado de um processo de construção. Num célebre artigo

    sobre a invenção da tradição, Hobsbawm (1994: 77-78) identifica três desenvolvimentos que

    considera prioritários para a invenção das tradições: o desenvolvimento de um sistema

    nacional de educação primária, a criação de cerimônias públicas e a produção em massa de

    monumentos públicos.

    Hobsbawm (1994: 76) chama a atenção para o paradoxo que envolve as nações que,

    embora se afirmem e percebam como entidades naturais e seculares, muitas vezes à espera de

    serem afirmadas e reconhecidas, mas sempre profundamente enraizadas e cujas origens se

    perdem no tempo, são, pelo contrário, bastante atuais – são o resultado de um processo de

    construção, isto é, são organizações características da modernidade.

    Nesse mesmo sentido, Giddens (2002) afirma que os Estados-Nação são a mais

    destacada forma social produzida pela modernidade. Assim, o Estado-Nação se distinguiria de

    outras entidades sociopolíticas tradicionais pela sua forma particular de territorialidade,

    vigilância e controlo, onde se destaca o monopólio do uso legítimo da força, como registrado

    abaixo:

    Modernity produces certain distinct social forms, of which the most prominent is the nation-

    state. As a sociopolitical entity the nation-state contrasts in a fundamental way whith most

    types of traditional order. It develops only as part of a wider nation-state system (which today

    has become global in character), has very specific forms of territoriality and surveillance

    capabilities, and monopolises effective control over the means of violence. (Giddens, 2002:

    15).

    O papel da tradição também é explorado por Giddens (2000: 60-61), que estabelece

    uma relação com o conceito de “memória coletiva” proposto por Hallbwachs (1990). Segundo

    este último, a memória não implica a preservação do passado, pois este é continuamente

    revisto e reescrito em função do presente. A memória, portanto, seria essa reconstrução, em

    parte individual, mas, sobretudo, social e coletiva desse passado.

    A tradição, para Giddens, consiste num “meio de organização da memória colectiva”

    (2000: 61), envolvendo a ideia de ritual e um caráter de obrigatoriedade, que o autor

  • As identidades nacionais na Europa do século XXI

    34

    caracteriza como dotado de conteúdo moral e emocional. Giddens, portanto, também se afasta

    de uma abordagem essencialista do tema, explorando outras dimensões da ideia de tradição.

    Deslocando-se o foco do conceito de nação para o de povo,