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O PEIXE.BO I A FAuNÀ brasileira e fêrtil em animais inte- A ressantes e úteis. Um dêles é o peixe-boi, L L conhecido no Brasil desde os tempos co- loniais, quando as primeiras explorações cruza- ram o vale amazônico. Foi com o índio que os primeiros povoado- res vieram a conhecer tanto o valor alimentício dêste grande mamíÍero, como as aplicações que se poderiam dar à sua abundante gordura. Por esta qualidade é ainda hoje, no Amazonas, cha- mado pelos nativos "urauá" (peixe gordo). Apesar de viver dentro d'água, nada tem de peixe; é um mamífero'herbívoro. duas esp+ácies brasileiras: uma, muito conhecida e ainda bem abundante na Amazõ- nia; e a outra, quase extinta, ocorrendo na costa setentrional do Brasil, cabo Orange, cabo Nor- te, costa das Antilhas até o Orenoco. Pescando o peixe.boi Aunona Reuos or Moners RÊco Professôra do Colégio Estadual do Amazonas A espécie amazônica também é encontrada ainda hoje, mas com muito pouca freqüência, no Rio Doce (Espírito Santo), e no rio Gurupi (Maranhão ) . É na região amazônica e nos imensos lagos que a caracterizam que existe a maior quanti- dade de peixe-boi, principalmente no rio Purus, nos lagos lari e Piraiauaras ' (Aiapuá). Vivem geralmente nos lagos, mas por oca- sião das enchentes são levados para os rios pela fôrça das águas. Êsses lagos geralmente são cobertos por uma aglomeração de capim e plan- tas aquáticas, conhecidas na região com o nome de "matupâ". É, pois, debaixo dos "matupás" que o peixe-boi é encontrado, quase sempre à procura da sua principal alimentação, que e justamente êsse aglomerado de plantas, além da fruta do araçá, aÍÍoz bravo e "cominho urana". "Comi- nho urana", na língua indígena quer dizer falso cominho. É uma espécie de dePó- sito constituído de detritos vege- tais e animais gue se encontram em camadas tênues no fundo dos la - gos com aspecto terroso, como o do cominho. O peixe - boi é um vertebrado de temperatura constante; res- piração pulmo- nar; coração com quatro cavida - i, í^' t .' ,l t ,ii a Ç '', t t t-,§ I. úl' -çqa -.. . /, ür.*à'^-. 'ííg -ü,i 't

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O PEIXE.BO I

A FAuNÀ brasileira e fêrtil em animais inte-A ressantes e úteis. Um dêles é o peixe-boi,L L conhecido no Brasil desde os tempos co-loniais, quando as primeiras explorações cruza-ram o vale amazônico.

Foi com o índio que os primeiros povoado-res vieram a conhecer tanto o valor alimentíciodêste grande mamíÍero, como as aplicações quese poderiam dar à sua abundante gordura. Poresta qualidade é ainda hoje, no Amazonas, cha-mado pelos nativos "urauá" (peixe gordo).

Apesar de viver dentro d'água, nada temde peixe; é um mamífero'herbívoro.

Há duas esp+ácies brasileiras: uma, muitoconhecida e ainda bem abundante na Amazõ-nia; e a outra, quase extinta, ocorrendo na costasetentrional do Brasil, cabo Orange, cabo Nor-te, costa das Antilhas até o Orenoco.

Pescando o peixe.boi

Aunona Reuos or Moners RÊcoProfessôra do Colégio Estadual do Amazonas

A espécie amazônica também é encontradaainda hoje, mas com muito pouca freqüência,no Rio Doce (Espírito Santo), e no rio Gurupi(Maranhão ) .

É na região amazônica e nos imensos lagosque a caracterizam que existe a maior quanti-dade de peixe-boi, principalmente no rio Purus,nos lagos lari e Piraiauaras ' (Aiapuá).

Vivem geralmente nos lagos, mas por oca-sião das enchentes são levados para os rios pelafôrça das águas. Êsses lagos geralmente sãocobertos por uma aglomeração de capim e plan-tas aquáticas, conhecidas na região com o nomede "matupâ". É, pois, debaixo dos "matupás"que o peixe-boi é encontrado, quase sempre àprocura da sua principal alimentação, que ejustamente êsse aglomerado de plantas, alémda fruta do araçá, aÍÍoz bravo e "cominho

urana". "Comi-nho urana", nalíngua indígenaquer dizer falsocominho. É umaespécie de dePó-sito constituídode detritos vege-tais e animais gue

se encontram emcamadas tênuesno fundo dos la -

gos com aspectoterroso, como odo cominho.

O peixe - boié um vertebradode temperaturaconstante; res-piração pulmo-nar; coração com

quatro cavida -

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des; circulaçãodupla e comple-ta; órgãos geni-tais idênticos aodo gado bovino.Possui glândulasde secreção in-terna, externa e

mista, não exis-tindo, porém, nê-les, as glândulassudoríparas,

O corpo é co-berto de pêloscurtos e lisos; asmamas, nas Íê-meas, ficam si-tuadas debaixodos membros âÍr-teriores, únicosexistentes.

Em estadoadulto o peixe-

\

-boi mede de três a três metros e meio. Atingeo máximo de crescimento aos quatro anos deidade.

O esqueleto é constituído pelos ossos dacabeça, pela coluna vertebral com cinqüenta e

três vértebras e por dezesseis pares de coste-las. A caixa craniana é pequena e os ossos ma-xilares muito grandes.

O aparêlho nasal só possui função respi-ratória, não constituindo órgão olfativo. O fi-gado é muito grande e rico de óleo.

O aparêlho auditivo não possui pavilhão.Apesar disso o sentido da audição é bem apu-rado nesses animais, justamente por receberemas vibrações sonoras dentro d'água.

O macho acompanha a fêmea, principal-mente quando esta tem cria. É muito raro, porisso, encontrarem-se isolados, andando sempreaos pares ou em grupo de três, porque a fêmeasó dá uma cria de cada vez. O período de ges-tação é de nove meses e o peixe-boi ao nascermede meio metro, mais ou menos, tendo o pêlobem acinzentado.

Como herbívoro, o peixe-boi só possui mo-lares que, à medida que se vão gastando, vãosendo substituídos por outros, acontecendo istomais de duas vêzes, tendo sempre nas maxilasinferiores, ou mandíbulas, dentes sobressalentes.Êste fato constitui o que se poderá chamar cres-cimento contínuo. Sua fórmula dentária é, pois,guase idêntica à dos ruminantes, variando ape-nas pela ausência dos incisivos e caninos.

A carne do peixe-boi é muito usada comoalimento em tôda a região amazõnica. Um

Pesca de um dia, no lago do Àiapuá, rio Purus, Àmazonas

exemplar de3,5 m dá de 300 a 400 kg de carne.Essa carne pode ser conservada na própria gor-dura, onde é feita, constituindo ótima conserva,chamada "mixira". Antigamente era vendidaa lata de "mixira", contendo 20 kg, por Cr$50,00; o kg de carne fresca custa Cr$ I ,4.0; ocouro, de muita resistência, era vendido, até hápouco tempo, a Cr$ 1,20 o kg, sendo grande oseu emprêgo. Hâ 40 anos era ainda o courodo peixe-boi inteiramente desaproveitado. Osnativos, não percebendo ainda 6 valor indus-trial dêle, lançavam-no aos lagos, juntamentecom parte da carne e ossos, fornecendo ótimaalimentação aos jacarés.

Hoje, substitui com grande vantagem osoutros couros, principalmente nos tacos de com-pressão, correames de fábricas, etc. Sua es-pessura é de 0,018 a 0,020mm, mais ou menos.Devido ao grande tamanho do peixe-boi, as fi-bras do couro são muito longas e compactas, esua disposição dá-lhes grande elasticidade-' e Í?-sistência. Quer cortido, quer sêco, êste couroé muito mais resistente ao choque e à torsãoque o do búfalo; é ainda empregado para a f.a-bricação de uma cola animal de superior quali-dade, muito usada no estado. de São Paulo,onde a industrializaçáo e beneficiamento. docouro do peixe-boi já produz hoje em dia boarenda.

A pesca dêstes herbívoros se f.azia para oaproveitamento da carne, ossos e óleo, desde ostempos coloniais, como já foi dito.

É feita pela manhã ou, principalmente, aoanoitecer, em virtude do silêncio quase absoluto

DEZEMBRO, 1944

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que é necessário. É justamente nessas horasque o peixe-boi procura alimentação fora dofundo dos lagos. So a paciência do caboclopode conseguir, no grande silêncio gue dominaentão a natureza amazônica, a captura dêssesgrandes herbívoros.

Empregam para o apreender o arpão ouarpoeira; depois a morte ê f.eita por asfixia,com tornos de madeira nas narinas e cacetadasna cabeça.

A arpoeira consta de uma haste de madeirapesada, geralmente de paracuúba, de três a qua-tro metros de comprimento, tendo na extremi-dade um "encaixado" (arpão de aço). Êssearpão fica prêso por uma linha de doze braçasmais ou menos (linha de algodão número 501).Parte da linha é prêsa à parte superior da ar-poeira, por um prego que tem a função de "es-ticador", como é chamado pelos nativos.

Ocorre, guase sempre, a fuga rápida dopeixe-boi, depois de arpoado, conduzindo àsvêzes a grande distância arpão e corda, que sãoalcançados depois de longos e grandes esfor-ços. Com o auxílio das bóias pode verificar-seo lugar exato onde ficaram. Essas bóias sãofeitas de cortiça, ou, mais comumente, de "mo-lungu", madeira muito leve, que flutua.

Dia a dia cresce o comércio e a industriali-zaçáo do peixe-boi e com êles a necessidade dacriação dêsses animais. Facil e rendosa serápara o criador, porque é apenas necessária aajuda do homem aos meios naturais. Se a cria-ção do gado bovino dá lucro, apesar de nãoviverem êstes só de capim, o que não dará acriação de animais que vivem apenas do meioambiente, tão fértil e natural?

Como o peixe-boi vive geralmente em la-gos, é muito fácil fechar os meios de comuni-cação dêstes com outros lagos ou rios, impe-dindo gue escape nas grandes enchentes, semcontudo impedir o curso das águas. Isto de-ve ser feito para gue a espécie não seja extinta.

Sendo a natureza amazônica pródiga emsua vegetação aquática, a alimentação dêssesherbívoros será sempre abundante, não haven-do necessidade senão de uma pequena a1'udapor parte do criador. Mesmo fora da regiã<;amazônica, a criação do peixe-boi poderia serfeita com muito proveito industrial, com pequenamoclificação de meio ambiente, pois é facil aadaptação dêsse animal a outros meios.

Conforme os lugares do Brasil onde sãoencontrados, tomam os seguintes nomes vulga-res: urauá, no Amazonasi uâcã-ntâ.dnha, naBahia; guarabá, no Espírito Santo.

MIMETISM

uÀLeuER pessoa gue ouve falar na varie-dade infinita dos sêres, na riqueza daÍauna dos campos e florestas e resolve

um dia penetrar num bosque ou caminhar pelosdêscampados, recebe dessa primeira visita amais dolorosa decepção. Campinas e selvasparecem-lhe desertas, ouvindo apenas, de lon-ge em longe, o canto de um pássaro, o ruflarde uma asa ou, nas moitas, o trémolo de umgrilo invisível, É que nesse emaranhado de ra-mos e cipós, é gue sob o ervaçal que ondulaao vento; quase tudo é luta e tragédia, escon-derijos e emboscadas, e mais probabilidadestem de vida e perpetuação quem se oculta me-lhor. E por isso mesmo, de um modo geral, to-dos os sêres de um mesmo meio apresentam umcolorido geral semelhante. Milênios antes da

C. or Mrro-LerrÃoEx-prolessor de Zoologia do Museu Nacional

estratégia humana ter verificado a vantagem decertas côres para indumentária dos ,exércitosem campanha e do poder defensivo da camu-

flagem, os animais inferiores a vinham empre-gando com sucesso.

A importância da coloração nas relaçõesdos animais com o meio ou, como se diz hole,em sua ecologia, foi pela primeira vez regis-trada e bem definidamente estabelecida por umfamoso pintor - miniaturista e naturalista deNürenberg, chamado Boser voN RosrNnor,em meados do sáculo XVIII, sendo seguido emalguns casos por EnasMo DARwItt, antepas-sado de Canros DenwIN.

As semelhanças dos animais com o meiosão designadas, de um modo geral, como mime-tismo, embora êsse têrmo, criado por Berns, te-

l2 REVISTÀ DO MUSEU NÀCIONAL