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O PRINCÍPIO DE NECESSIDADE COMO FUNDAMENTO DO AGIR HUMANO DOUGLAS FERREIRA DE LOURENZO (IC) 1 , MARCOS CÉSAR SENEDA (PQ) 2 1 FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG; [email protected] 2 FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG; mseneda@. ufu.br

O PRINCÍPIO DE NECESSIDADE COMO FUNDAMENTO DO … · As sensações e os sentimentos correspondem às fontes principais das quais as idéias se originam. ... de reflexão, em outras

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O PRINCÍPIO DE NECESSIDADE COMO FUNDAMENTO DO AGIR HUMANO

DOUGLAS FERREIRA DE LOURENZO (IC)1, MARCOS CÉSAR SENEDA (PQ)2

1FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG; [email protected] 2FAFCS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG; mseneda@. ufu.br

RESUMO A teoria das paixões apresentada pela filosofia empirista de David

Hume se identifica com a teoria do conhecimento desse mesmo filósofo. Ambas partem do princípio de causalidade para tentar explicar as operações realizadas pela mente humana. Enquanto a teoria do conhecimento aborda o princípio de causalidade através do estudo da relação existente entre causa e efeito (ações da matéria), a teoria das paixões, em contrapartida, o utiliza de forma distinta, recaindo assim seu estudo sobre a relação que se estabelece entre motivos (paixões) e ações (ações da mente). Desse modo, será possível evidenciar a intenção principal do filosofo escocês, isto é, demonstrar que uma paixão poderá ser causa suficiente para suscitar no sujeito o desejo de agir.

As operações mentais concernentes às ações da matéria estão submetidas a alguns princípios provenientes da natureza humana. São alguns deles: a crença, o hábito, o costume e a necessidade. As ações da mente, por conseguinte, se encontrarão igualmente submetidas a tais princípios, além de estarem à mercê da influência que esses exercem sobre nossas operações mentais que dizem respeito à relação entre motivo e ação. O objetivo central, portanto, será mostrar ao leitor a proximidade existente entre ambas as teorias humeana, tentando delimitar com precisão a compreensão de quais são as conseqüências e conclusões que podemos extrair das influências desses mesmos princípios, os quais geram operações em nossas mentes e nos conduzem às ações.

Com efeito, notar-se-á que o foco desse trabalho se circunscreverá a temática das paixões. Isso será realizado para entendermos com clareza se o homem é levado a agir segundo a razão ou segundo seus próprios sentimentos. Desta maneira, será possível verificar se o agir humano é fruto de uma liberdade pura ou, pelo contrário, está fundamentado no princípio de necessidade.

Palavras-chaves: impressões, idéias, impressões de reflexão, necessidade, ações da matéria.

INTRODUÇÃO O presente artigo iniciar-se-á pela explicitação da teoria humeana do

conhecimento, com o intuito de demonstrar quais são as afecções que de fato representam as percepções da mente, realizado tal feito, abordar-se-á concomitantemente a temática das paixões, a fim de entendermos melhor a relação que essas estabelecem com nossas outras percepções da mente. Em seguida, no segundo capítulo, discorreremos acerca de um princípio humeano denominado crença, em vista de compreendermos como esse princípio se aplica as ações da mente (operações mentais concernentes à relação entre causa e feito) e às ações da matéria (operações mentais concernentes à relação motivo e ação). Após esse meticuloso estudo, analisaremos mais detalhadamente a influência efetuada pela crença sobre nossas ações da mente, com o propósito de evidenciarmos qual seja a relação que esse princípio obtém com as ações humanas.

Enfim, no terceiro e último capítulo do então trabalho, nos debruçaremos sobre o estudo de outros dois princípios humeanos, são eles: a necessidade e a liberdade. No intuito de verificarmos suas origens e suas definições e, ademais, distinguir quais dentre eles, segundo Hume, são utilizados pela mente, para fundamentar nossas ações. É importante ressaltar que esse estudo será realizado, em virtude de descobrirmos se de fato a mente é capaz de conceber esses princípios e, além disso, caso lhe seja possível concebê-los faz-se, igualmente, forçoso saber qual será a razão para que a mente os utilize.

O SISTEMA FILOSÓFICO HUMEANO 1.1 As Percepções Da Mente Para tratar da teoria das paixões, no que concerne à filosofia

humeana, e, por conseguinte, de princípios como necessidade e liberdade que se coadunam com ela, é preciso antes que façamos uma recapitulação da teoria do conhecimento de Hume com o intuito de encontrar nela conhecimentos que nos possam auxiliar na demonstração dessa teoria. Hume, primeiramente, fundamenta toda a sua filosofia sobre o método empírico, ou seja, sua filosofia é pautada única e exclusivamente pela experiência e pela observação e, portanto, extrai todos os seus conteúdos a partir desse plano. As sensações e os sentimentos correspondem às fontes principais das quais as idéias se originam. Assim, considerar a existência de outro tipo de fonte da qual se originam nossas idéias e que seja independente do plano empírico é totalmente inaceitável para o empirismo. Hume afirma:

As percepções da mente se reduzem a dois gêneros distintos, que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS. A diferença entre estas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência (2000, p. 25)

Tudo aquilo que o sujeito pode vir a conhecer, inclusive o seu próprio eu, se encontra restrito a esse âmbito, o da percepção. Desse modo, Hume afirma haver dois tipos de percepções da mente com as quais os sujeitos trabalham, são elas: as impressões e as idéias.

As impressões são aquelas percepções que nos chegam por intermédio dos sentidos, são as primeiras afecções que possuímos ao percebermos determinado objeto. Essas percepções são mais intensas e vivazes, pois nos afetam de maneira mais forte e chegam à mente de forma mais intensa. Além disso, esse tipo específico de percepção da mente é dotado de uma característica singular que a diferencia do segundo tipo de percepção da mente (idéias), as impressões são advindas dos sentidos e não possuem vínculo algum com outras percepções que lhes sejam anteriores. Elas surgem na mente, de forma inusitada, a partir do momento em que nossos órgãos dos sentidos são afetados. Em contrapartida, as idéias são percepções menos intensas e vivazes, pois se constituem em cópias de impressões. Essas estão situadas na mente, e têm por função remeter ou corresponder às impressões de sensação a partir das quais se originaram. Embora tida por cópia à idéia se assemelha somente em parte à sua impressão correspondente. Ela não possui os mesmos graus de força e vivacidade que são encontrados em uma impressão determinada. A cópia ou a idéia tem o papel de ser uma espécie de índice remissivo capaz de conduzir um indivíduo, através do pensamento, à sua percepção mais original, ou seja, capaz de conduzi-lo a uma impressão passada. O sentido da idéia é copiar sua impressão correspondente, pois assim possibilita ao indivíduo lembrar-se de uma impressão que outrora fora percebida. As idéias correspondem ao ato de pensar enquanto as impressões correspondem ao ato de sentir. Afirma Hume no Tratado:

As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões; sob esse termo incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino idéias as pálidas imagens dessas impressões no pensamento e no raciocínio, como, por exemplo, todas as percepções despertadas pelo presente discurso... Cada um, por si mesmo, percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar. (2000, p. 25).

Geralmente se nota que Hume classifica as sensações de dor e prazer

como sendo impressões de sensação. Isso se dá porque toda vez que percebemos algo, e, por conseguinte, produzimos certas impressões em relação a isso, sempre encontramos a elas ligadas sensações ou de prazer ou de dor. A respeito disso, diz-nos Hume no Tratado:

As impressões podem ser divididas em duas espécies: de SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originalmente na alma, de causas desconhecidas. As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias, conforme a ordem seguinte. Primeiramente, uma impressão atinge os sentidos, fazendo-nos perceber o calor ou o frio, a sede ou a fome, o prazer ou a dor, de um tipo ou de outro. (2000, pág. 32).

Na passagem acima podemos perceber a razão pela qual Hume

designa os sentimentos de prazer e de dor como sendo impressões de sensação. Para ele, ambos os sentimentos são conseqüências inexoráveis de nossas percepções da mente. No instante em que somos afetados por uma impressão, referente a algo supostamente externo a nós, sentimos ora prazer ora dor em relação àquilo que nos afetara. Esses sentimentos se dão concomitantemente à nossa afecção e são indissociáveis dessa. É uma espécie de reação à impressão. Dor ou prazer são sentimentos que comumente sentimos quando somos atingidos por algo que nos impressiona, e isso ocorre de maneira imediata e instantânea. Os objetos que constantemente nos afetam não nos fazem produzir somente impressões, mas também provocam em nós sentimentos que servem como princípios para orientar nossas ações, esses sentimentos, por sua vez, sempre se encontram anexados às impressões produzidas por nós. Segundo Hume, toda vez que formos afetados por uma impressão qualquer, sempre criaremos em resposta a essa afecção sentimentos de prazer e de dor que, em certos momentos, nos farão almejar ou rejeitar um objeto particular. Contudo, as sensações de dor e de prazer não são tomadas como impressões de sensação somente pelo fato de estarem conectadas com nossas impressões. Elas são impressões de sensação, porque se constituem em percepções originais e imediatas, ou seja, são percepções que aparecem na mente de um sujeito a partir do momento em que essa é atingida por uma impressão determinada (seja ela simples ou complexa) e, para que isso aconteça, não se faz necessária a presença de uma percepção anterior da qual essas devam se originar.

1.2 Impressões De Reflexão E A Divisão Das Paixões Além desses dois tipos de percepções da mente, presentes no interior

da filosofia humeana, existe um terceiro que é de suma importância para podermos entender com precisão o verdadeiro intuito desse texto. Esse terceiro tipo de percepção é denominado por Hume de impressões de reflexão, em outras palavras, poderíamos denominá-las de paixões. Contudo, não se pode considerar que as impressões de reflexão sejam análogas às impressões de sensação. Sem dúvida, uma depende intrinsecamente da outra, mas jamais representam as mesmas coisas ou exercem as mesmas funções. Enquanto que as primeiras dizem respeito a sentimentos que são produzidos por nós em relação a um objeto que nos afeta, as segundas, em contrapartida, concernem ao sentir. Ou seja, as impressões de sensação são afecções produzidas pelos órgãos dos sentidos (olfato, paladar, audição, tato e visão) e concernem portanto ao primeiro momento da experiência (o momento em que percebemos algo pela primeira vez), enquanto que as impressões de reflexão são produzidas através de uma reflexão, realizada pela mente, sobre uma idéia determinada, e assim, consistem em ser afecções de uma segunda espécie de experiência (uma experiência que se passa somente no interior da mente do sujeito).

É de outra maneira que as impressões de reflexão se originam na mente de um indivíduo. Descrever o trajeto percorrido pela mente, que se inicia em uma impressão de sensação até a produção de uma impressão de reflexão, é essencial para entendermos como as paixões surgem na mente. Segundo Hume, as impressões de reflexão não são produzidas da mesma forma como as impressões de sensação que as antecedem. Aquelas se originam, em sua grande maioria, das idéias e nesse sentido são vistas como secundárias, isto é, são impressões decorrentes da interposição de idéias correspondentes a certas impressões de sensação. Hume comenta em uma de suas passagens:

Assim como todas as percepções da mente podem ser divididas em impressões e idéias, assim também as impressões admitem uma outra divisão, em originais e secundárias[...] As impressões secundárias ou reflexivas são as que procedem de algumas dessas impressões originais, seja imediatamente, seja pela interposição de suas idéias. (2000, p. 309).

Em geral as impressões de reflexão ou paixões podem ser dividas em

diretas e indiretas. Quando essas se originam imediatamente de impressões de sensação (dor ou prazer), Hume as denomina de paixões diretas. Quando essas se originam de outras qualidades que estejam além desses princípios, Hume denomina-as de paixões indiretas. Por paixões diretas entende-se o desejo, a aversão, a tristeza, a alegria, a esperança, o medo, dentre outras; entre as indiretas encontra-se o orgulho, a humildade, a ambição, a vaidade, o amor, o ódio, etc. Apesar de todas essas considerações acima mencionadas, é preciso antes explicar qual o processo que a mente desencadeia, no interior de si mesma, desde o momento em que percebe um objeto até o momento em que forma uma impressão de reflexão ou paixão correspondente a essa percepção anterior. O processo se dá da seguinte maneira, segundo Hume: ao percebermos um objeto, uma impressão atinge nossos sentidos e nos fornece sensações variadas (sede ou fome, calor ou frio, dor ou prazer); a partir dessa

impressão advinda dos sentidos, fazemos uma cópia, que é produzida pela mente na forma de idéia e que fica ali armazenada. Essa idéia tem a função não só de remeter-se à impressão de sensação da qual se originara, mas também dá ao sujeito a possibilidade de recordar uma impressão passada que outrora fora percebida. Porém, a recordação de uma impressão passada poderá ser feita, de acordo com Hume, por dois tipos de faculdades distintas, pela imaginação ou pela memória. Na memória normalmente são encontradas idéias mais intensas e vivazes. Isso se dá porque a função da memória é conservar a ordem e a posição que as idéias ocupavam no momento em que foram percebidas por um sujeito. Dessa maneira, suas idéias estão mais próximas das impressões de sensação que lhes correspondem e quando evocadas possuem maior nitidez e vivacidade, oferecendo assim maior vividez ao indivíduo que tanto deseja relembrar um fato específico. À imaginação, em contrapartida, correspondem outras características. Nela as idéias são, geralmente, menos intensas e vivazes do que as idéias situadas na memória; ademais, essa faculdade possui liberdade o suficiente para compor ou decompor suas idéias e, com isso, distintamente da memória, sua função não é a de conservar a posição e a ordem de suas idéias, mas sim, a de compor, decompor, criar ou inventar novas idéias. As idéias da imaginação são mais fracas, pois estão mais distantes de suas impressões correspondentes e, por conseguinte, essas idéias jamais servirão para reavivar a lembrança de uma situação específica que um sujeito deseja recordar, mas servirão apenas para imaginá-la. Tendo isso em vista, podemos agora notar que, na maior parte do tempo, para Hume, as idéias (prazer ou dor) que utilizamos no processo de formação de impressões de reflexão geralmente se referem ao âmbito da memória. Se isso ocorre é porque nesse âmbito tais idéias possuem maior vividez e força, sendo assim mais capazes de nos causar alguma espécie de emoção, além de nos proporcionarem maior facilidade no que diz respeito à lembrança de fatos ocorridos no passado. Hume afirma:

Sempre que pudermos fazer uma idéia se aproximar das impressões no que se refere à força e vividez, ela também as imitará em sua influência sobre a mente; e vice-versa, quando imita essa influência, como no caso presente, isso deve proceder de sua aproximação em força e vividez. (2000, p. 150)

As idéias de prazer ou de dor, quando anexas às idéias pertencentes ao

âmbito da memória, assumem um aspecto mais intenso e vivaz. As idéias da memória nos apresentam a devida ordem e posição que cada idéia deverá ocupar na mente, seguindo assim uma determinada sucessão de fatos que, por sua vez, é ditada de acordo com as sucessivas experiências (impressões de sensação) que um sujeito pode vivenciar; essa proximidade que as idéias da memória possuem em relação às impressões de sensação as concede mais vivacidade e intensidade e, portanto, são sentidas pelo individuo de maneira mais violenta do que as idéias da imaginação. Essa violência com que as idéias da memória afetam o homem que as possui é decorrente da semelhança estreita existente entre as idéias da memória e as impressões que as correspondem, as idéias da memória por estarem conectadas umas as outras e seguirem uma ordem determinada dos fatos, pela qual devem se pautar, têm como função não só dar ao sujeito a possibilidade de rememorar um evento singular, mas sim todo o contexto no qual esse evento se

encontrava inserido. Nesse sentido, as idéias da memória se configuram em idéias complexas, ou seja, idéias compostas que em si suportam várias idéias simples, porém, distintas entre si. Idéias simples não possuem essa capacidade que as idéias complexas operam, pois tais nos apresentam apenas idéias particulares de dados observados isoladamente e não traz consigo todas as outras idéias que lhe são contíguas. Sendo assim, as idéias da memória possuem a habilidade de reconstituir com exatidão toda uma situação passada que, em um primeiro momento, fora percebida; a semelhança que se estabelece, segundo Hume, entre uma lembrança e a impressão (situação ou fato experienciado) que a ela corresponde provoca no sujeito efeitos, quase idênticos, àqueles que foram provocados quando esse mesmo indivíduo havia sido afetado por uma impressão de sensação. As sensações de prazer ou de dor sentidas pelo sujeito, no momento em que esse fora impressionado por algo, ao serem reavivadas pela lembrança (idéia) dessa mesma impressão afetarão o sujeito de modo tão violento quanto o afetaram no fato empírico que ele outrora presenciou e observou. Parte da intensidade e da vivacidade contidas nas idéias da memória será transmitida, igualmente, às idéias de dor ou prazer que as acompanham, o que surtirá no sujeito sentimentos (paixões) semelhantes aos que, em um primeiro instante, foram sentidos pelo mesmo sujeito quando esse fora afetado pela impressão de sensação que corresponde ao fato lembrado. Dotada de mais vivacidade a idéia de prazer ou dor consegue afetar de maneira mais intensa o sujeito que a possui o que, por conseguinte, causará na mente desse homem certas reações, isto é, certos sentimentos os quais denominamos de paixões. O fato de dizermos que, as idéias de prazer ou de dor quando situadas no âmbito da memória se constituam em idéias mais eficazes, para a produção de impressões de reflexão é devido não só a maior intensidade que essas possuem por se encontrarem unidas às idéias da memória, mas também a habilidade que tais idéias contêm de reconstituir quase perfeitamente toda uma situação que antes fora alvo de uma experiência passada.

Não se pode concluir, entretanto, que as idéias pertencentes ao âmbito da imaginação não sejam idéias que sirvam para a produção de impressões de reflexão. Pelo contrário, assim como as idéias da memória, essas são de grande utilidade para a formação de impressões de reflexão, porém, as mesmas não são usadas com tanta freqüência em tal processo devido ao fato de serem menos intensas e vivazes do que as idéias da memória, e por não causarem tanta emoção no sujeito que sofre sua afecção. Enquanto as idéias da memória são ligadas entre si segundo uma ordem e posição determinada as idéias da imaginação, em contrapartida, jamais são interligadas entre si por alguma espécie de determinação que a mente deverá se pautar; a associação de idéias realizada na imaginação, ao contrário da efetuada na memória, é uma associação que se dá de modo livre, ou seja, à imaginação é dada a liberdade de compor, decompor, separar e unir qualquer idéia particular a uma outra. Assim o individuo que se utiliza das idéias da imaginação para evocar a lembrança de uma situação passada poderá, portanto, incorrer em erro, pois na imaginação as idéias poderão se unir umas as outras sem se pautarem por uma ordem ou posição determinadas e, com isso, levarão o indivíduo a conceber talvez uma situação da qual ele não possua nenhuma experiência passada que a dê autenticidade ou que a comprove. A liberdade que se tem de unir ou separar idéias na imaginação pode até mesmo conduzir o sujeito a ter uma lembrança fictícia referente a um fato específico, como nesse âmbito a possibilidade de se unir uma idéia

particular com outra idéia qualquer que mais apraz o indivíduo eventualmente as chances que esse indivíduo possui de associar uma idéia que, não estabeleça nenhum vinculo com o fato que se deseja rememorar, podem ser em certa medida consideradas como certas. Desse modo, a lembrança de um fato, decorrente de idéias pertencentes a imaginação, poderá correr o risco de ser uma lembrança fictícia desse próprio fato, pois como suas idéias são interligadas entre si de forma aleatória e não obedecem, portanto, uma ordem determinada dos sucessivos fatos empíricos, mais distantes essas estarão da impressão de sensação que elas supostamente deveriam se remeter. Detentoras de menor grau de intensidade e vivacidade as idéias da imaginação assim não serão tidas, segundo Hume, como afecções da mente que mais freqüentemente são usadas para que a mente produza impressões de reflexão. A paixão é despertada no sujeito no instante em que esse é afetado por uma idéia mais intensa e vivaz capaz de reproduzir, com quase perfeição, uma situação passada antes observada. Uma idéia tão próxima ao fato percebido que faça com que o sujeito pense que, aparentemente, esteja deveras diante daquele fato que outrora percebia. A idéia de prazer ou de dor, portanto, quando evocada por um sujeito, deve produzir na alma desse novos tipos de impressões, por exemplo, desejo ou aversão, esperança ou medo. E são as idéias da memória que se configuram nas afecções mais aptas para a produção de impressões de reflexão, somente elas podem possuem um maior grau de força e vividez que, quando transmitido às idéias de prazer ou de dor que lhes estão associadas faz com que desperte na mente de um indivíduo sentimentos tão fortes quanto aqueles que o mesmo sentira ao ser afetado por uma impressão de sensação. Essas impressões são assim denominadas de impressões de reflexão, porque se originam da reflexão que um sujeito realiza sobre uma dessas idéias. Depois essas novas impressões são novamente copiadas pela mente e transformam-se em idéias, que posteriormente poderão gerar outros tipos de impressões, e assim sucessivamente.

Dessa maneira, vemos que há uma interdependência entre as impressões de reflexão, idéias e impressões de sensação. Uma impressão de reflexão só surge devido à reflexão que um indivíduo realiza sobre uma idéia determinada. Essa idéia, no entanto, só será produzida se houver uma impressão de sensação que a anteceda e à qual ela deva corresponder. Assim, pode-se notar que as impressões de sensação se constituem na fonte da qual se origina qualquer outro tipo de percepção da mente (idéias ou impressões de reflexão). Como as idéias são percepções advindas das impressões de sensação e as impressões de reflexão são percepções advindas de nossa reflexão sobre as idéias, torna-se evidente que essas últimas têm uma relação intrínseca com as impressões de sensação, mesmo que essa relação seja uma relação indireta. Para que tenhamos idéia de algo, faz-se necessário uma impressão de sensação que lhe seja anterior, para que se tenha impressões de reflexão é preciso que existam idéias sobre as quais possamos refletir. Desse modo, a interdependência entre esses três tipos de percepção está na base do sistema filosófico humeano, e se a ignorarmos, dificilmente poderemos entendê-lo. As impressões de reflexão, semelhantemente às impressões de sensação, deixam também suas marcas na mente na forma de idéias. Nesse sentido, essas impressões podem ser consideradas anteriores às suas idéias correlatas, pois tais serão as únicas percepções que das quais essas idéias poderão se originar e às quais essas poderão se remeter. Se comparadas às impressões de sensação e suas idéias correspondentes, as impressões de

reflexão são geradas como percepções posteriores, já que a produção de uma impressão de reflexão é efetuada somente depois de termos fixado em nossa mente nossas impressões de sensação e as idéias que correspondem a essas impressões. Sem as impressões de sensação e suas idéias correlatas, as impressões de reflexão jamais poderiam existir. Hume afirma:

Desse modo, as impressões de reflexão antecedem apenas suas idéias correspondentes, mas são posteriores às impressões de sensação, e delas derivadas. (Hume, 2000, p.32)

De fato, na maioria das vezes, as impressões de reflexão surgem de idéias. No entanto, isso não poderia acontecer se não existissem impressões de sensação que antecedessem as suas idéias, a partir das quais, ulteriormente, surgiriam as paixões. A impressão de sensação é uma espécie de percepção da mente que fornece a condição para que outros tipos de afecção possam surgir, e dentre esses tipos estão as paixões. Mesmo que as paixões necessitem das idéias para serem formadas, disso não se pode inferir que as paixões sejam cópias das idéias, assim como essas são tomadas como cópias de impressões passadas. As paixões se distinguem das idéias por serem percepções originais, ou seja, o efeito que elas provocam na mente de um sujeito é totalmente diferente do efeito provocado pelas idéias no interior da mente desse mesmo sujeito. Tais impressões de reflexão não são encontradas nas idéias, elas são sim derivadas de uma reflexão que se faz sobre as idéias, e é a partir dessa reflexão que obtemos uma nova espécie de percepção da mente. Quando temos idéia de algo, não possuímos a paixão que essa idéia pode nos proporcionar, a reflexão realizada sobre a idéia é que fornece essa nova afecção. Em última instância, é um novo tipo de experiência que se passa no interior da mente de um sujeito, capaz de afetá-la com um outro tipo de impressão. A paixão não pode ser apreendida imediatamente quando somos afetados por algo, ela é uma afecção antes não percebida e que surge somente no interior da mente. A paixão é um dado que vai além do próprio dado, ela surge em meio à mente do indivíduo como algo inusitado, novo. Ela é original enquanto sentida pelo sujeito.

2. DA INFLUÊNCIA DA CRENÇA NAS AÇÕES DA MENTE E SUA RELAÇÃO COM A AÇÃO

2.1 Ações Da Matéria E Ações Da Mente Tendo acima exposto o que Hume considera como paixões e, ademais,

tendo explicitado o processo de como essas surgem na mente humana, cabe agora elucidar qual será a relação existente, segundo Hume, entre as paixões e a ação. São as ações motivadas pelas paixões? Se assim forem, qual será o princípio que lhes dá constância e uniformidade, o suficiente para que com isso possam ser consideradas como causas de certos tipos de ações? Antes de responder a essas questões, é preciso primeiro expor qual o intuito de Hume ao tentar relacionar paixões e ação. De início, para se explicar essa relação é necessário estabelecer uma distinção entre o que Hume adota como causalidade e crença, posteriormente, deverão ser analisados os princípios de necessidade, liberdade e vontade que estão intrinseca e igualmente ligados com o tema das paixões.

Nossa maneira de raciocinar, segundo Hume, reduz-se a uma comparação feita pela mente das relações que dois ou mais objetos estabelecem entre si. Ora comparamos os objetos quando ambos estão diante de nós, ora quando nenhum dos dois está presente e, em certos momentos, os comparamos quando somente um deles nos é apresentado. Fazemos isso, pois possuímos uma forte tendência em produzir conexões que sejam capazes de nos fornecer convicções acerca da existência dos objetos que se encontram dispostos na realidade. Esse ato é realizado a partir de um princípio específico que se denomina causalidade. Em relação a isso, Hume observa:

Apenas a causalidade produz uma conexão capaz de nos proporcionar uma convicção sobre a existência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra existência ou ação. (2000, p. 102).

Somente a causalidade nos oferece, em parte, certa segurança em relação ao conhecimento que obtemos sobre os objetos presentes na realidade. Quando nos atemos à experiência e à observação dos fatos, geralmente, segundo Hume, vemos que o aparecimento de determinado objeto se dá concomitantemente ao aparecimento de outro que o precede. Nesse caso, tomamos o objeto antecedente como sendo a causa e o segundo, ou seja, aquele que o sucede, como o efeito. Assim, concebemos que ambos estarão constantemente ligados entre si, e toda vez que verificarmos a existência de um poder-se-á, por conseqüência, inferir a existência do outro. Evidencia-se, portanto, que, para Hume, o princípio de causalidade é o único que nos remete para além do que os nossos sentidos podem perceber. Ele nos fornece informações sobre as existências de objetos, dos quais nem ao menos podemos ver ou tocar. Porém, não basta analisar como ocorre a causalidade na experiência, é preciso também examinar sua origem ou a impressão original da qual esse princípio surge, para que assim se possa entender com mais clareza sua idéia.

Em primeira instância, Hume tenta investigar se a origem de tal idéia é derivada das qualidades particulares que um determinado objeto possui. Contudo, o filósofo escocês reconhece que esse tipo de impressão não se

constitui na fonte da qual brota a idéia de causação. Jamais encontramos, segundo Hume, no efeito as mesmas qualidades presentes em sua causa. O efeito, portanto, é representado por um objeto distinto e, na maior parte, não possui nenhuma relação de identidade (concernente às suas qualidades) com a causa que provavelmente o produzira. É algo de anômalo. Qualquer que seja a qualidade escolhida como parâmetro para se estabelecer uma relação entre causa e efeito é considerada insuficiente para explicá-la. Não existem características internas (qualidades) aos objetos que lhes conceda em certos momentos a função de causa e em outro a de efeito.

Já que a qualidade não é vista como uma impressão da qual se origina o princípio de causalidade, Hume supõe que este princípio terá sua origem estabelecida em certos tipos de relação que são: contigüidade, prioridade e conexão necessária. Ao considerarmos certos objetos como causas e efeitos, vemos que tanto a causa quanto o efeito são contíguos, isto é, após o aparecimento de um (causa) nota-se pouco depois o aparecimento do outro (efeito). É comum conceber, segundo Hume, que a causa sempre estará ligada ao seu efeito, e que o efeito virá logo em seguida à respectiva causa. Mesmo que seja um caso à parte, no qual o efeito esteja distante de sua causa correspondente, ainda assim se tomará o efeito como sendo contíguo e conseqüência imediata de sua causa, pois nesses casos os objetos intermediários presentes entre a causa e o efeito são todos ligados por uma cadeia de causas contíguas que, não obstante, estabelecem relação com o efeito outrora distante. Segundo Hume, a relação de contigüidade é essencial para a compreensão de como se origina o princípio da causalidade. Até nos casos em que não se consegue observar a existência de tal relação entre os objetos, o sujeito, afirma Hume, ainda a concebe como existente.

Mas somente essa relação não é o bastante para se ter um entendimento claro acerca da origem do processo de causação. Um segundo tipo de relação que, para Hume, fundamenta o princípio de causalidade é a relação de prioridade temporal que a causa tem em relação ao efeito. Todo objeto visto como causa, para Hume, deve ser anterior ao seu efeito e não o contrário. Acreditar que o efeito possa ser contemporâneo à causa que o produziu é questionável, pois, segundo Hume, a experiência por si só contradiz essa possibilidade. Nela podemos notar que o aparecimento de uma causa, com freqüência, antecede o aparecimento de seu efeito correlato. Isso se dá justamente porque a produção de um efeito é posterior ao aparecimento da causa que lhe corresponde. O efeito será produzido a partir do momento em que a causa (objeto) for retirada de seu estado de inatividade ou inércia, por intermédio de outro princípio qualquer (força, movimento e etc.), fazendo com que essa última exerça a energia necessária para produzi-lo. Outro motivo, de acordo com Hume, que se pode tecer em defesa da prioridade temporal da causa sobre o efeito, é o fato de que, se o nosso raciocínio fosse pautado por um princípio de causalidade no qual efeito e causa coexistissem, provavelmente seríamos incapazes de realizar qualquer espécie de inferência sobre os objetos presentes na realidade. Não se poderia com isso saber ao certo qual objeto produz o quê, e, por conseguinte, entraríamos em uma total confusão acerca da seqüência dos dados empíricos. Jamais haveria sucessão de fatos ou sequer noções acerca do tempo, já que todos os objetos, situações e acontecimentos se dariam no mesmo instante e seriam assim todos coexistentes. Eis o que Hume nos diz:

A conseqüência disso seria nada menos que a destruição da sucessão de causas que observamos no mundo e mesmo a total aniquilação do tempo. Porque se uma causa fosse contemporânea a seu efeito, e esse efeito a seu efeito, e assim por diante, é claro que não haveria algo como uma sucessão; e os objetos seriam todos coexistentes. (2000, p. 104)

A prioridade temporal concedida à causa em relação ao efeito é devida à capacidade que a causa tem de produzir um efeito determinado. Mesmo que o objeto que represente a causa tenha que ser animado por um princípio exterior a ele, qualquer princípio alheio que sobre esse incidir será o suficiente para despertá-lo de seu repouso e sua energia até então escondida se revelará para que a produção de um novo objeto aconteça. Hume denomina esse processo de produção de ações da matéria, aonde um objeto tomado como causa produz, supostamente, um segundo objeto que recebe a designação de efeito. Por fim, esse processo não se restringe somente à conexão dos corpos externos, ele se estende também às paixões. Assim, comenta Hume:

Antes de passar adiante, observarei apenas que, embora as idéias de causa e efeito sejam derivadas das impressões de reflexão assim como as de sensação, entretanto, no interesse da concisão, mencionarei em geral apenas estas últimas como a origem de tais idéias – mas estou supondo que tudo o que dela disser pode se estender às primeiras. As paixões estão tão conectadas com seus objetos e umas com as outras quanto os corpos externos entre si. Portanto, a mesma relação de causa e efeito que pertence a um tipo de impressão deve ser comum a todas. (2000, p.106)

Porém, quando nos referimos às paixões, o que analisaremos não é a

relação entre causa e efeito, mas a relação entre motivo e ação. Hume denomina tal relação de ações da mente.

2.2 Da Importância Da Crença Nas Ações Mentais Antes de adentrarmos na temática das paixões, é necessário,

primeiramente, que façamos uma breve investigação acerca de um princípio humeano que nos auxiliará doravante na compreensão de outros assuntos. Esse princípio humeano que exerce tal influência sobre o assunto em questão é denominado crença. A crença, assim como o costume e o hábito, desempenha papel importante no interior da filosofia humeana. Segundo Hume, é a partir dela que podemos distinguir o que é real do que é apenas um mero produto da imaginação (ficção). Desse modo, vê-se que a crença tem não só influência sobre a mente humana, como também consiste em ser um princípio que incide diretamente no âmbito prático, já que é a partir dela que obtemos os motivos correspondentes às nossas ações. Mas o que é a crença? É ela um sentimento, uma idéia, uma impressão ou simplesmente uma nova maneira de se conceber as afecções que nos são dadas? Investigar o que seja a crença, na filosofia humeana, requer antes uma explanação sobre como e porque o sujeito, segundo Hume, necessita de tal princípio para poder conceber suas afecções como afecções reais.

Como vimos na seção passada, Hume faz uso de vários argumentos, que geralmente são apresentados para que se valide não só a primazia da causa sobre o efeito, mas também a possível existência de uma conjunção necessária que se estabelece entre ambos. Porém, o próprio filósofo nos mostra que tal conjunção ou primazia jamais poderiam ser inferidas tendo somente como base o plano da experiência. Segundo Hume, quando consideramos os objetos da experiência isoladamente, ou seja, independentes das idéias que são a partir deles produzidos em nossa mente, sejam esses objetos causa de certos efeitos ou efeitos de certas causas, nota-se que nenhum desses objetos tem o poder de implicar a existência de um segundo objeto que lhe seja totalmente distinto. Em outras palavras, ao analisarmos um objeto, particularmente, não se evidencia a presença de nenhuma conjunção constante que nos faça inferir a existência de um segundo objeto que seja posterior e contíguo ao objeto anterior. O que Hume quer deixar claro com isso é que, diante da causa e do efeito não há nada que nos possa garantir a certeza de que um e outro estejam ligados necessariamente entre si. Hume afirma:

É fácil observar que, ao traçarmos essa relação, a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva meramente de um exame desses objetos particulares, nem de uma penetração em suas essências que pudesse revelar a dependência de um em relação ao outro. (2000, p. 115)

O mesmo acontece quando, na maioria das vezes, passamos de uma

impressão presente aos nossos sentidos à idéia de um objeto qualquer que temos em nossa mente. A possibilidade de se separar ambas as afecções, segundo Hume, nos demonstra a incapacidade que temos de inferir um objeto a partir da existência de um outro que o anteceda. Diz-nos Hume:

Tudo que é diferente é distinguível; e tudo que é distinguível pode ser separado[...] Se, ao contrário, esses objetos não forem

diferentes, eles não serão distinguíveis; e se não forem distinguíveis, não poderão ser separados. (2000, p.62)

Não há como inferir uma idéia de um objeto qualquer de uma

impressão que nos seja presente. Isso ocorre, segundo Hume, porque o sujeito não consegue perceber a união necessária que, supostamente, dá validade à junção entre ambas as afecções. Para que se possa afirmar a existência de uma conjunção necessária entre impressão e idéia, é preciso primeiro que tenhamos não só a idéia referente a essa união, mas também, é preciso que sejamos capazes de percebê-la. Como não nos é possível perceber tal conjunção, Hume argumenta que a idéia outrora inferida pode a qualquer momento ser substituída por qualquer outra idéia que melhor nos apraz, e isso jamais poderia ser considerado um erro de nossa parte. Então o que nos assegura que de uma impressão possamos inferir a idéia de um determinado objeto, a qual não tem a mínima relação com a impressão passada? Hume nos dirá que somente a experiência poderá dar validade a essa inferência. Ao experienciarmos um objeto (tido como causa) observamos logo em seguida o aparecimento de um outro objeto (efeito) que, todavia, mesmo sendo distinto e independente do anterior, se apresenta de modo sucessivo e contíguo a ele. Geralmente, atribuímos ao objeto considerado como causa a habilidade de produzir um segundo objeto distinto, ao qual denominamos efeito. No entanto, essa experiência por nós sentida não nos garante a veracidade do acontecimento acima relatado, ou seja, não nos garante que a causa e o efeito estejam de fato ligados por uma espécie de conjunção constante. Apesar de haver contiguidade e sucessão dos fatos, não possuímos provas suficientes que possibilitem a afirmação de que o segundo objeto produzido deveras se constitui em um efeito que esteja necessariamente ligado a sua causa respectiva. À primeira vista, a experiência parece não nos fornecer todos detalhes do fato ocorrido, no entanto, à medida que retemos essa experiência e notamos que os resultados se identificam com os da primeira experiência, segundo Hume, passamos a conceber a ligação entre causa e efeito não mais como algo incerto, mas a apresentamos agora como uma conjunção constante que jamais se desatará. Eis o que afirma Hume:

Contiguidade e sucessão não são suficientes para nos fazer declarar que dois objetos são causa e efeito, a não ser que percebamos que essas duas relações se mantém em vários casos (2000, p. 116)

Essa nova maneira de conceber a ligação entre causa e efeito nos toca

de forma tão violenta e forte, que a mente não mais consegue aderir a outra concepção que não tenha vínculo algum com a forma de conceber em questão. Na verdade, o que ocorre é que nossas experiências passadas, acerca de determinado fato, confirmam a hipótese de que os dois objetos antes observados continuam sendo contíguos e sucessivos um em relação ao outro. O primeiro objeto, visto como causa, ainda se faz anterior ao segundo objeto tomado como efeito. Ademais, o efeito só se apresenta a nós a partir do momento em que a causa já se fez presente. O costume penetra em nossa mente de tal forma que a faz renovar o mesmo ato ou operação que outrora acontecera. Assim, de causas que nos aparentam ser semelhantes, esperamos efeitos que também nos sejam semelhantes. Fazemos de nossa experiência

passada o padrão de nosso juízo futuro acerca das questões de fato, as quais presenciamos, e tal é a influência que essa experiência exerce sobre a mente que, ao sermos afetados por uma impressão, referente a um objeto (causa), não mais nos atemos a observar o outro objeto (efeito) que o sucede. Apenas um será percebido e lembrado, enquanto que o outro será inferido ou suprimido em concordância com nossa experiência passada, sendo assim concebido em forma de idéia pela mente. O fato é que inferimos algo sem que haja uma experiência que confirme essa inferência, ultrapassamos o simples dado que nos é fornecido para, supostamente, determinar o possível evento que a ele se segue. Porém, quando se concebe a experiência passada como arquétipo que sirva para orientar os juízos futuros acerca de questões de fato, deve-se ter em mente que a maioria desses juízos terão como fundamento raciocínios prováveis, já que a certeza de que o futuro se assemelhará ao passado não é tão clara e evidente à mente. Portanto, o que coage a mente a aceitar que os fatos do futuro se assemelham aos do passado é o costume. Esse princípio, segundo Hume, rege toda e qualquer vida humana; a partir dele a experiência ganha utilidade e espera-se com isso que os eventos futuros se assemelhem aos que aconteceram no passado. Mas, mesmo ciente de que o costume seja capaz de exercer tamanha influência sobre a mente, ainda assim o recurso à experiência passada aparenta não ter, para Hume, nenhuma utilidade. Somente constatamos, por intermédio desse recurso, que aquele mesmo objeto que outrora produzira um outro, agora num outro instante distinto continua sendo dotado do mesmo poder que anteriormente já possuía. Hume argumenta:

Vosso recurso à experiência passada não serve de nada neste caso, podendo no máximo, provar que aquele mesmo objeto que produziu um outro era, naquele mesmo instante, dotado de tal poder. (2000, p. 120) Comenta ainda Hume: A conexão das idéias não se torna habitual após uma única experiência; mas essa conexão está compreendida sob um outro princípio, que é habitual – o que nos traz de volta à nossa hipótese. Em todos os casos, transferimos nossa experiência a ocorrências de que não tivemos experiência, expressa ou tacitamente, direta ou indiretamente. (2000, p. 135)

Embora notemos isso, a mente, não obstante, se encontra

impossibilitada de perceber uma conjunção constante que seja capaz de unir a causa ao seu efeito. A mera repetição dos fatos não assegura a conexão entre esses dois momentos. A certeza de que haja realmente uma conexão entre dois momentos distintos que se sucedem não deriva da experiência concreta que se tem desse acontecimento, mas sim da maneira como esse evento é concebido pela mente; se o concebermos, segundo Hume, de maneira mais intensa e vivaz e, portanto, acreditarmos que sempre esses dois momentos estabelecerão uma união entre si, aí então, poderemos julgar que a tal acontecimento de fato se constitui em uma afecção válida.

O que será necessário ocorrer, para que a mente consiga conceber tais eventos ou fatos como reais? É necessário, para Hume, haver crença. Mas, afinal, em que consiste tal princípio? O autor afirma:

A crença é um princípio que apenas muda a maneira pela qual concebemos nossas idéias. (2000, p. 124)

Cabral observa: “Para Hume, nós concebemos bem todas as coisas

como existentes, mas de uma existência mental (2003, p.163)”. Somente a crença pode dar às nossas idéias essa espécie de concepção, sem ela jamais poderíamos, dando seqüência a esse raciocínio, distinguir entre idéias reais e idéias fictícias. Cabral insiste: “A crença se move no plano das idéias, onde estabelece a diferença entre o que existe de fato e o que não é mental. (2003, p.166)”. Mas tal princípio não pertence a nenhuma faculdade específica, seja ela a razão, a imaginação ou a memória, a crença só pode ser sentida pelo sujeito. Ela concede a nossas idéias uma força e vividez adicionais, capaz de torná-las tão intensas que acabamos, por fim, acreditando nelas como sendo algo que, para a mente, realmente existe. A crença consiste em ser algo que, segundo Hume, não pode ser negado pelo humano, na medida em que todos os indivíduos sabem o que é a crença, já que esse princípio afeta a todos nós a cada instante, que supomos saber a existência de algo. Ninguém, pois, segundo Hume, desconhece o significado desse termo. De fato, não há como renunciar à idéia de que os homens são conscientes a cada momento desse sentimento representado pela crença. Para que as ações da mente ou da matéria sejam reconhecidas válidas, é necessário que o sujeito que realize tais ações as sinta de maneira mais forte e vívida. Assim como nos demonstra Cabral, esse sentimento não recai sobre o conteúdo de nossas idéias, ele apenas incide na força com a qual iremos conceber as idéias, faz com que uma idéia possa ser sentida de forma diferente. Eis o que Hume nos relata:

A crença é, porém, algo mais que uma simples idéia. É uma maneira particular de formar uma idéia. E como a mesma idéia só pode ser alterada por uma alteração em seus graus de força e vividez, segue-se de tudo o que foi dito que a crença é uma idéia vívida produzida por uma relação com uma impressão presente... (2000, p.126)

Nas palavras de Cabral, é um “acréscimo de força, vivacidade,

consistência, firmeza ou de estabilidade”. A diferença se encontra toda na forma através da qual sentimos a coisa, a crença serve para nos pôr em movimento, é ela que fornece à mente, segundo Cabral, a intensidade da vida mental, dá à natureza um dinamismo novo. Mas é preciso, antes, explicar o motivo de concebermos a idéia de forma tão intensa e vivaz. O que Hume diz, acerca desse assunto, é que sempre que tendemos a inferir a existência de um objeto qualquer a partir da existência de outro, é necessário que haja algum objeto ou impressão que esteja, anteriormente, presente aos sentidos ou à memória e que sirva de base para nossos raciocínios. No momento em que um objeto é apresentado à memória ou aos sentidos, percebemos, pelo costume, que somos levados a conceber o objeto que a ele se encontrava associado. O que de fato fazemos, para Hume, não é apenas conduzir a

mente, a partir de determinadas impressões, às idéias com as quais estas se relacionam. Vamos muito além, porque além de conduzir a mente, comunicamos às idéias, que associamos a essas impressões parte de sua força e vividez. É isso que podemos observar na passagem abaixo:

Objetos sensíveis exercem sempre uma influência maior sobre a fantasia que qualquer outro tipo de objeto; e transmitem essa influência facilmente às idéias com que estão relacionados e às quais se assemelham. (Hume, 2000, p.130)

Para Hume, é a impressão presente que contém a capacidade de

causar a crença, ela transfere parte de sua força e vividez para a idéia com a qual se relaciona possibilitando, desse modo, que essa seja sentida de maneira mais violenta pelo o sujeito. Isso, por conseqüência, conduz o indivíduo à crença. Cabral afirma: “É, pois, a vivacidade da impressão que constitui a crença” (Cabral, 2003, p.173). A crença é então uma concepção mais viva e intensa que se tem de uma idéia específica, mas que procede da relação dessa idéia com uma impressão que lhe é anterior e com qual estabelece um vínculo. No entanto, não podemos derivar a crença simplesmente através do aparecimento de uma impressão particular que nos seja presente; é preciso haver experiências passadas que comprovem a validade de uma crença. Ou seja, antes é necessário que o sujeito já tenha passado por experiências como esta que estamos analisando, pois assim ele terá em sua mente quais são as conseqüências que se podem esperar após o aparecimento de tal impressão particular. Assim como concebe Hume, o costume deve agir sobre nossa natureza antes que essa tenha tempo para refletir acerca do fato que lhe é apresentado. Os objetos devem parecer tão unidos e ligados que nem ao menos possamos aguardar para que se realize a passagem de um ao outro. Cabral comenta: “Acreditamos nas causas vendo os efeitos e acreditamos nos efeitos vendo as causas (2003, p. 167). Posto desse modo fica-nos claro que a crença é o que a vivacidade das impressões ou das idéias da memória provoca em nós ao nos afetar a mente, mesmo quando, em certos casos, como afirma Hume, transferimos nossa experiência a acontecimentos que de fato não tivemos nenhum contato ou experiência.

2.3 Relação Entre Crença E Ação Nossa intenção, na seção acima, foi demonstrar que, assim como a

crença representa um princípio capaz de validar as ações da matéria (causa e efeito), o mesmo acontece em relação às ações da mente. Ao analisarmos a relação entre causa e efeito, ficou evidente que a única relação capaz de tornar válida essa relação, segundo Hume, é constituída pela crença. Essa relação faz com que a mente consiga conceber uma idéia determinada de forma diferente, ou seja, fá-la sentir essa idéia de maneira mais forte e vivaz, o que possibilita a mente diferenciar com clareza idéias fictícias de idéias que correspondam de fato a impressões antes percebidas.

Como já se havia dito, do mesmo modo que há relação entre certas causas e certos efeitos, tem-se igualmente relação entre certos tipos de motivos e certas ações. Ambas as relações, no entanto, se fundamentam sobre um único princípio, o da causalidade. Nesse sentido, o motivo representa a causa, enquanto que a ação se configura no efeito. Dessa maneira, todas as considerações tecidas na seção acima sobre a crença poderão ser aplicadas ao âmbito das ações da mente. Hume vê as paixões como causas de nossas ações, o que nos leva a conceber que os motivos que nos coagem à ação serão, na verdade, as paixões relativas às afecções que percebemos e possuímos. Geralmente, para Hume, quando uma paixão afeta a mente de um sujeito, esse rapidamente é impelido a agir em relação àquilo que o afetou, ora tendo em vista se aproximar do objeto, se esse for objeto de um desejo particular, ora tendo em vista se afastar do objeto, caso haja um sentimento de aversão em relação ao mesmo. Esse acontecimento é devido, segundo Hume, ao caráter original desempenhado pela paixão, tal afecção consiste em ser um novo tipo de percepção capaz de produzir um efeito sobre a mente que seja tão distinto de qualquer outro que por ela fora sentido. A paixão, portanto, jamais poderá ser vista como uma idéia, mas sim como impressão (de reflexão) e sua força e vividez serão tão intensas quanto as que concernem às impressões da sensação.

Dessa forma notar-se-á que toda paixão particular possui uma ação que lhe seja respectiva, ou seja, toda espécie de paixão que afetou ou afetará um sujeito sempre trará consigo uma idéia de uma ação particular que, habitualmente, a ela se encontra associada. Um exemplo visível é quando estamos a sentir fome e, portanto, possuímos um sentimento de desejo em relação a um objeto específico (qualquer tipo de alimento), esse desejo básico do homem o afeta de forma tão violenta que, segundo Hume, o impele a agir em vista de procurar alguma espécie de alimento que possa, em certa medida, satisfazer ou saciar o seu desejo em questão. Logo, a partir da experiência anterior da qual tivemos contato inferir-se-á que toda vez que sentirmos fome, conseqüentemente, haverá uma ação que acompanhará esse sentimento e que, portanto, deverá ser realizada em virtude de atingirmos aquilo que se deseja. Tal operação se torna tão habitual à mente que, com o passar do tempo, quando nos vermos novamente em uma situação na qual estamos com fome não mais nos ateremos à reflexão desse sentimento, mas sim a mente passará da impressão de reflexão (fome) presente a nós à idéia da ação que a ela sempre associamos sem que haja, segundo Hume, uma evidência clara de que tal inferimento se constitua em uma operação valida da mente. Assim como se espera que toda causa possua um efeito que lhe esteja ligado, pressupomos de igual modo que toda paixão possui uma ação que a ela esteja unida. Da mesma forma que inferimos o efeito a partir da existência de sua

causa, se inferirá, por conseguinte, ações a partir da existência de motivos (paixões) determinados. Essa relação exerce idêntica influência sobre a mente como a relação entre causa e efeito. Adverte Hume:

A constante união entre motivos e ações exerce também influência sobre o entendimento, na medida em que esse infere a existência de uns a partir da existência de outros. (2000, pag. 440)

Argumenta ainda Hume:

A evidência moral não é mais que uma conclusão acerca das ações dos homens derivada da consideração de seus motivos, temperamentos e situações. (2000, pag. 441)

Não há mais razões para se ater a experiência e a observação do fato,

a mente, sobre o efeito do costume, conceberá de tal maneira que um motivo particular esteja ligado a um determinado tipo de ação que, não somente passará a aceitar isso como algo certo, mas também acreditará nisso piamente. Hume denomina essa ação da mente de evidência moral, isso quer significar que a partir da observação de motivos (paixões), situações e temperamentos dados o sujeito poderá pressupor ações que lhes serão supostamente inexoráveis; essas ações, em contrapartida, não serão inferidas na forma de impressões de sensação, mas pelo contrário, tais serão inferidas apenas na forma de idéias, pois serão as experiências passadas que outrora tivemos as quais embasarão as inferências presentes

As impressões de reflexão que correspondem às paixões transmitem

parte de sua força e a vividez às idéias (de determinadas ações) que, geralmente, se encontram a elas ligadas. Desse modo, o sujeito passará a conceber a idéia (de uma ação específica) de maneira mais forte e vivaz e, é isto o que, justamente, denominamos de crença. Essa maneira mais forte de conceber uma idéia seja ela de uma ação ou de um objeto é a característica fundamental da crença. Como se pode perceber, para Hume, a crença tem a função de ser um princípio fundamental não só para as operações mentais concernentes ao entendimento, mas também para aquelas que dizem respeito ao âmbito da moral. Comenta Hume:

E, na filosofia, não podemos ir mais longe do que aferir que a crença é algo sentido pela mente, que distingue as idéias do juízo das ficções da imaginação. Dá-lhes mais peso e influência; fá-las aparecer de maior importância; reforça-as na mente e faz delas o princípio diretivo das nossas ações. (2000, p.441)

A crença fornece uma espécie de importância complementar à idéia

sobre a qual ela incide, e faz com que acreditemos que determinadas ações estejam sempre vinculadas a certos motivos. Isso nos leva à conclusão de que, para agirmos, nos pautamos, segundo Hume, principalmente sobre a crença e não sobre raciocínios abstratos referentes à razão; para agir basta somente um sentimento mais forte e intenso.

3. NECESSIDADE E LIBERDADE – DOIS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DA CONDUTA HUMANA.

3.1 A Identidade Entre As Ações Da Matéria E As Ações Da Mente É notável a semelhança existente entre as ações da matéria e as ações

da mente, ambas espécies de operações realizadas pelo sujeito, segundo Hume, tem como fundamento um mesmo princípio, o da causalidade. A respeito disso afirma Hume:

Nas ações da mente há a mesma uniformidade e regularidade do que nas ações da matéria; causas semelhantes produzem efeitos semelhantes. (2000, p. 439)

Essa afirmação possibilita-nos concluir que, tanto aquilo que diz

respeito às ações humanas quanto a certas operações naturais que efetuamos, sempre que houver alguma espécie de conexão constante que, por ventura, esteja interposta entre situações dadas e certos temperamentos dos indivíduos que nelas se encontram inseridos, por conseguinte, ter-se-á também a idéia de necessidade vinculada às idéias de ações que esses deverão posteriormente realizar. Necessárias, no entanto, são aquelas ações que, segundo Hume, possuem uma probabilidade maior de ocorrer quando comparadas em relação a outros tipos distintos de ações, assim à medida que se observa que determinados motivos, temperamentos ou caracteres estarão, geralmente, associados a determinados tipos de ações vemos que se estabelece certa constância no modo de conceber as ações humanas e, portanto, passamos a eleger caracteres e ações que sejam comuns a toda humanidade. Supondo assim que o conhecimento desses caracteres se dê justamente pela observação da uniformidade das ações que deles decorrem, sendo essa uniformidade o constitui da própria essência do princípio de necessidade.

Mesmo que a conduta humana seja considerada um fato irregular ou de difícil previsão a mente do homem ainda assim conceberá que tal conduta se constitui em algo regular, pois as diversas associações que esse realiza entre determinados motivos e ações serão pautadas pelo princípio de necessidade, o qual se constitui em algo regular já que tem como pressuposto o princípio de causa e efeito. Hume ao ver que a idéia de necessidade é sempre atribuída a relação de causalidade acaba por constatar que, toda vez em que considerarmos tal idéia, devemos ter em mente a relação entre dois objetos que se associam em todas as situações nas quais poderão ser encontrados. Eis o que Hume nos diz acerca disso:

Sempre que houver conexão constante entre a situação e o temperamento dos agentes, haverá também a idéia de necessidade nas ações mesmo que nos recusemos a reconhecê-la. (2000, p. 439)

A experiência que obtemos das diversas uniões ou ligações que nossa

mente opera entre as variadas impressões e idéias que possuímos, segundo

Hume, exerce o mesmo efeito sobre essa sejam as afecções unidas motivos e ações ou figuras e movimentos. Por isso a afirmação de Deleuze: “A relação entre motivo e ação é homogênea à causalidade, de modo que a história deve ser concebida como uma física do homem.” (2001, p.25). A afirmação de Deleuze comprova não só o que havíamos dito anteriormente, mas também nos traz algo de inusitado. Deleuze concebe que a associação feita entre motivos e ações como sendo “uma regra que guia a imaginação, torna-a uniforme e a coage” (2001, p. 15) através dessa uniformidade as paixões (os motivos), segundo Deleuze, fornecem aos sujeitos “o conteúdo de uma constância, torna possível uma atividade prática e moral, e dá à história sua significação.” (2001, p.25). Visto por esse ângulo, segundo Hume, o indivíduo que deverás tem como base de seu raciocínio essa constância referida por Deleuze na assertiva acima, ou, em outras palavras, conclui que de certos motivos ou ações pode-se inferir outros motivos ou ações (evidência moral), conseqüentemente, admite que a origem de seus atos correspondentes a sua vontade provem, na verdade, do princípio de necessidade. Desse modo, devido a capacidade que o homem tem de associar motivos e ações e, ademais, a habilidade que a mente desse tem de tornar tal associação em uma crença inabalável é que, segundo Deleuze, o possibilita criar uma moralidade sobre a qual ele poderá pautar todas suas ações; moralidade essa, por sua vez, não necessariamente restrita somente ao âmbito particular, mas, pelo contrário, estende-se e aplica-se a toda a humanidade, dando assim sentido a história (e a história é construída pelas ações dos indivíduos) não só de um sujeito particular, mas de todo o mundo. Observa Hume:

Evidências morais e naturais obtêm a mesma natureza e ambas derivam dos mesmos princípios. (2000, p. 442)

Assim, Hume consegue colocar tanto o campo prático quanto o

especulativo no mesmo nível, pois sejam as ciências naturais ou práticas todas elas, terão seus fundamentos sedimentados pelos mesmos princípios, isto é, pelos princípios de causalidade e necessidade.

3.2 Da Definição E Da Origem Da Idéia De Necessidade Antes, porém, de adentrarmos na questão se a necessidade, ao invés da

liberdade, constitui-se no princípio que deverás rege a conduta humana para Hume, devemos primeiramente nos ater a analise desse próprio princípio, no intuito de descobrir se esse princípio é proveniente da experiência e da observação que temos dos objetos que supostamente compõe a realidade ou, em contrapartida, o mesmo se configura em uma mera idéia da imaginação do homem. Em que consiste, portanto, nossa idéia de necessidade quando dizemos que motivos e ações estão necessariamente conectados uns ao outros? Observa Hume:

Se afirmamos que realmente temos uma idéia de necessidade, então devemos encontrar alguma impressão que a origine, porque não temos nenhuma idéia que não seja derivada de uma impressão. (2000, p. 188)

Para que possamos responder à questão acima mencionada devemos

submeter essa idéia de necessidade ao método humeano, o qual tem por pressuposto verificar se caso uma idéia presente na mente de um sujeito, de fato corresponda a uma impressão passada da qual se originou. Esse exercício, por sua vez, é de grande importância já que sua realização possibilita-nos descobrir se o princípio de necessidade representa um princípio decorrente da experiência, ou, caso contrário, se esse é de origem puramente fictícia sendo assim mera criação da imaginação humana.

Hume, entretanto, considera que o princípio de necessidade pode ser designado por diversas maneiras diferentes, termos como “eficácia, ação, poder, força, energia, necessidade, conexão e qualidade produtiva” (Hume, 2000, p.189) são, segundo o filosofo, sinônimos e, portanto, seria um esforço desnecessário dar preferência a um desses termos sendo que todos eles se referem a um só e mesmo princípio. Contudo, ao invés de nos preocuparmos com as mais variadas formas que se tem de denominar o princípio de necessidade, devemos nos ater sobre a análise da idéia de necessidade como havíamos argumentado acima. Sobre isso afirma Hume:

Apenas inferirei que, como a razão jamais pode dar origem à idéia de eficácia, tal idéia tem que ser derivada da experiência e de alguns exemplos particulares dessa eficácia, que penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão. (2000, p. 190)

A razão não possui autonomia necessária para produzir, por si só, a

idéia de necessidade devido a dois motivos principais, são eles: enquanto tal a razão jamais poderia gerar alguma espécie de idéia original, isso ocorre, pois a filosofia humeana não concebe essa faculdade como sendo um dos elementos constituinte da natureza humana, ademais, o empirismo radical de Hume não nos concede condições favoráveis para que possamos, a partir dele, inferir a existência de um âmbito que seja independente (da imaginação e da memória) e o qual tenha a potência de produzir idéias “puras” as quais não se referem a nenhuma espécie de impressão ou experiência passada. Para

Hume, como já vimos, toda idéia tem o dever de se remeter a uma impressão que a corresponda, caso contrário, ela seria apenas uma ficção gerada pela mente. É nisso em que consiste a pedra de toque da filosofia humeana, a negação desse fundamento representa a negação de toda a filosofia de Hume. Aliás, Hume tanto no Tratado quanto na Investigação não expressa com clareza o que ele realmente concebe por razão, entretanto seria dispendioso tratar desse assunto, já que tal requer uma maior atenção para que seja analisado com cautela. No entanto, por outras razões devemos conter nossa curiosidade, no que diz respeito ao assunto da razão na filosofia humeana, em vista de darmos prosseguimento em nossa pesquisa acerca da idéia de necessidade. O segundo motivo, dado por Hume, para demonstrar a insuficiência da razão para gerar a idéia de necessidade, se dá devido à incapacidade que essa tem de provar ao sujeito que uma força seja necessária para que algo seja produzido ou formado. Somente a experiência a observação, segundo Hume, que fazemos em relação aos supostos objetos externos que nos rodeiam é que podem de fato nos conduzir a tal conclusão. Eis o que nos diz o filosofo:

E como o poder não pode subsistir por siso, sendo sempre considerado como um atributo de algum ser ou existência, devemos ser capazes de situar esse poder em algum ser particular e de conceber esse ser como dotado de uma força e energia reais, que fazem que tal efeito particular resulte necessariamente de sua operação. (Hume, 2000, p. 195)

Nesse sentido, Hume então irá analisar os mais variados casos

particulares nos quais determinados motivos se encontram sempre vinculados a determinados tipos de ações, e o mesmo ocorrerá em relação às ações da matéria, visando assim entender a origem da idéia de necessidade. Porém, ao se ater a analise desses respectivos casos o que ficou evidente fora que, apesar de vermos constantemente que determinados motivos sempre se uniam a certos tipos de ações, não se pôde experienciar a presença de nenhuma espécie de impressão de sensação que estivesse interposta entre tais motivos e ações e a qual correspondesse à idéia de necessidade. O que apenas pudemos perceber foi a incessante união que era estabelecida entre os diversos motivos e ações ou causas e efeitos particulares, mas não que essa união consistisse em algo que necessariamente deveria acontecer. Considerados em si mesmos, nenhum dos motivos, segundo Hume, foram causas suficientes para implicarem de maneira necessária a existência das ações que lhes acompanhavam. Assim como ocorre com a causa e o efeito, tanto os motivos quanto as ações se configuram em dois momentos distintos e, portanto, totalmente separáveis. O que de fato se efetuou foi que de um motivo, a nós presente, passamos ligeiramente à idéia da ação que acreditamos a ele estar unida, mas não foi possível perceber o surgimento de nenhuma espécie de força que, estivesse contida nesse motivo, capaz de produzir aquela ação. A mera repetição desse evento não fora o bastante para garantir o caráter necessário do mesmo. Observa Hume:

A única noção que temos de causa e efeito é a de certos objetos que existiram sempre conjuntamente, e que, em todos os casos passados mostraram-se inseparáveis. Não podemos penetrar na

razão da conjunção. Apenas observamos o próprio fato e vemos sempre que, em conseqüência de sua conjunção constante, os objetos adquirem uma união na imaginação. (2000, p. 122)

Desse modo, para Hume, quando falamos a respeito de uma conexão

necessária entre motivos e ações e, além do mais, conjecturamos que essa decorre de uma energia ou força própria de um motivo respectivo estamos, na verdade, a utilizar termos ordinários dos quais não possuímos nenhuma idéia clara que os corresponda. Assim como a matéria seja, em si mesma desprovida de qualquer espécie de poder que, por sua vez, possa ensejar a produção de outro objeto, o mesmo se aplica à relação entre motivos e ações. Por mais fortes que sejam as paixões que nos afetam, tais não contém em si o poder de provocar em nós ações que necessariamente deveriam ocorrer. Como podemos evidenciar na afirmação seguinte: “Nenhuma impressão interna possui uma energia evidente, não mais que os objetos externos.” (Hume, 2000, p.194)

Concluir-se-á, portanto, que a idéia de necessidade não se constitui em uma idéia que tenha sua origem na experiência, mas, pelo contrário, será uma idéia de ordem exclusivamente mental. Deleuze a respeito disso nos diz que “a impressão de necessidade não poderia produzir a idéia como qualidade das coisas, poís ela é uma qualificação do espírito” (2001, p.25), a afirmação anterior do filosofo francês reforça a tese humeana de que o princípio de necessidade se configura em uma criação da imaginação. Deleuze demonstra através dela que esse poder ou energia não é uma qualidade pertencente a um objeto específico, mas sim a mente; somente essa terá a habilidade de fazer com que o sujeito acredite que, o efeito ou a ação que pratica, sejam conseqüências necessárias de uma causa ou um motivo que lhes são respectivos. Apesar da causa donde tal princípio deriva lhe ser totalmente desconhecida. É forçoso assim perguntarmo-nos: mas, enfim, em que consiste então o princípio de necessidade? Sobre o assunto comenta Hume:

A necessidade é derivada da união constante de certos objetos e da inferência exercida pela mente, ao passar de um objeto àquele que comumente o acompanha, concedendo a existência de um a partir da existência do outro. (2000, p. 436)

Como vimos a necessidade não pode ser apercebida por um sujeito,

levando em consideração apenas a estrutura física dos corpos, objetos e, nesse caso, ações que sucedem a certos motivos e causas. Sobre isso Deleuze nos adverte que “a causa não pode ser conhecida; não há uma causa dos princípios uma origem do seu poder. O original é seu efeito sobre a imaginação” (2001, p.15). Essa afirmação deleuziana descreve com precisão a origem, não só do princípio de necessidade, como também a de todos outros princípios que são criados pela mente. Nela Deleuze expressa que o princípio de necessidade, por exemplo, não provem de uma impressão de sensação possível de ser percebida no plano da experiência, não há uma causa para que tal se instale na mente. A necessidade é apenas conseqüência da constante união que realizamos entre diversos motivos e as respectivas ações que o acompanham, seguido da incessante inferência que fazemos a partir do

aparecimento de um motivo à suposta ação que a ele deveria suceder. Esse hábito que temos surte considerável efeito sobre a mente que, não obstante, passa a conceber essa relação (motivo/ação) como sendo uma espécie de ação da mente necessária a qual não estará submetida a nenhum tipo de mudança. O mesmo, por conseguinte, deverá ser igualmente aplicado, segundo Hume, sobre aqueles assuntos que concernem às ações da matéria. A simples união que efetuamos entre vários objetos ou motivos e ações, quando incide no interior da mente, é que nos conduz a imaginar que uma determinada ação jamais poderá desvencilhar – se da paixão que lhe causara. Um exemplo é o parricídio; sempre se tem o hábito de associar que o amor, que um filho sente em relação a seu pai, seja suficiente para suscitar nesse apenas ações boas e as quais visam somente demonstrar o apreço que esse tem em relação aquele que o gerou. Entretanto, esquecemo-nos de que isso se constitui em um fato que provavelmente seria passível de ocorrer, e, portanto, passamos a concebê-lo como algo que necessariamente deverá acontecer, pois o amor de um filho em relação a seu pai de modo algum poderá ser causa de um homicídio. Assim ao nos depararmos com a notícia de um crime, em que um filho põe fim à vida de seu próprio pai, ficamos perplexos com tal informação e, ademais, parecemos não entender o porquê dessa ação. A união constante que estabelecemos entre o amor de um filho em relação a seu pai e as boas ações que esse realiza, em virtude de demonstrar seu carinho em consideração a seu progenitor, faz com que concebamos essa relação como algo que deva acontecer necessariamente. Contudo, descartamos a hipótese de que essa relação seja apenas provável de se efetivar e que, talvez, o ódio, por exemplo, que esse indivíduo sinta em relação a seu pai se sobreponha ao amor que esse sente pelo mesmo. Adverte Hume:

Portanto, uma vez que a idéia de poder é uma nova idéia original, que não se encontra em nenhum caso singular e que, não obstante, surge da repetição de diversos casos, segue-se que a repetição, por si só, não tem esse efeito, devendo antes revelar ou produzir alguma coisa nova que seja a fonte dessa idéia. (2000, p. 197)

Deleuze reforça a existência da idéia de necessidade, porém, a concebe

de outra maneira, nas palavras do filosofo: “Há, certamente, uma idéia de necessidade. Porém, basicamente, se devemos falar de uma impressão de reflexão é no sentido de que a relação necessária é o espírito como afetado, como determinado (em certas circunstâncias) a formar pela idéia de um objeto a idéia de um outro objeto.” (2001, p. 22) Deleuze quer demonstrar que a mente, por estar determinada a inferir a idéia de uma ação específica a partir de uma paixão (motivo) que a afeta, concebe a necessidade como um tipo de impressão de reflexão, justamente, para possibilitar uma conjunção constante entre ambas afecções; em outras palavras, o sujeito deseja, segundo Deleuze, que a união entre determinados motivos e ações seja de caráter necessário. A necessidade é, portanto, a paixão que o homem tem de inferir constantemente um efeito singular de uma determinada causa ou uma ação particular do respectivo motivo que a causou. Isso se dá, pois somente assim o sujeito será capaz de criar para si uma moralidade dotada de regras firmes e fixas, as quais por suposto terão seu fundamento na experiência concreta. A multiplicidade de casos semelhantes que se repetem, de maneira incessante, é,

segundo Hume, “a essência mesma do poder ou conexão, sendo a fonte de que nasce sua idéia.” (2000, p. 196) Não devemos, enfim, procurar a causa da necessidade alhures, em corpos que se situam externamente de nosso campo perceptivo. Assim expressa Deleuze: “Ao passo que a necessidade está no sujeito, a relação necessária é, nas coisas, somente uma conjunção constante; a necessidade é tão-somente isso. Mas ela está no sujeito enquanto ele contempla não enquanto age: a conjunção é toda a relação necessária.” (2001, p. 17) Evidente torna-se, portanto, que o princípio de necessidade consiste em ser apenas uma percepção da mente, mas isso só poderá ser entendido por nós, segundo Deleuze, enquanto estamos apenas a analisar o modo como tal idéia se institui no interior de nossas mentes, entretanto, a partir do instante em que deixamos nossas considerações acerca de nossas operações mentais e, por conseguinte, sobre o principio de necessidade e somos impelidos a agir, em virtude de uma paixão que nos afetara, jamais concebemos que tal ação seja uma conseqüência necessária dessa paixão, pois supomos ser indivíduos dotados de liberdade. Contudo, a relação necessidade, liberdade e ação serão exploradas na secção a seguir.

3.3 A Impossibilidade De Haver Liberdade Nas Ações Humanas E A Incapacidade Da Mente De Conceber A Idéia De Necessidade.

Posto que a necessidade se configure em um princípio cuja origem

esteja na conjunção constante a qual submetemos os diversos objetos da experiência e, ademais, da inferência exercida pela mente ao passar de um objeto qualquer àquele que, supostamente, o acompanha é preciso indagarmo-nos: pode a mente humana, para Hume, conceber essa idéia tão distinta e evidentemente? Além dessa, outra questão também requer de nossa parte certa atenção, estabelecido que as ações humanas sejam consideradas como conseqüências necessárias, das paixões (motivos) que nos afetam, logo, agirá o homem, portanto, pautado por uma liberdade a ele intrínseca e inata, ou, ao contrário, estarão todas suas ações, segundo Hume, fundadas no princípio de necessidade? Sobre isso, observa Hume:

Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são necessárias, e que, na comunicação de seu movimento e em sua atração e coesão mútuas, não há nenhum traço de indiferença ou liberdade. Todo objeto é determinado por um destino absoluto a um certo grau e uma certa direção de movimento[...] (2000, p.436)

Conclui ainda o filosofo:

Portanto, as ações da matéria devem ser vistas como exemplos de ações necessárias; e tudo que, por esse aspecto, estiver na mesma situação que a matéria deverá ser admitido como necessários. (2000, p.436)

Como já fora antes demonstrado a mente humana, no que diz respeito

às ações da mente e as ações da matéria, pauta todas as operações sobre um único princípio, o da causalidade. Assim, para Hume, tanto as ações da matéria quanto as da mente correspondem em ações que necessariamente deveriam ocorrer, nesse sentido, nossas ações são já determinadas pela mente, quando somos afetados por uma paixão que nos coage a agir; antes, essa paixão que outrora nos afetara é submetida a uma reflexão, realizada pela imaginação, a qual tem por função avaliar se essa impressão de reflexão deveras possui um fim determinado, o qual seja possível de ser concretizado por intermédio da ação humana. Caso, o resultado dessa avaliação seja negativo, segundo Hume, a ação que provavelmente deveria estar unida à essa paixão será, contudo, impossível de se praticar. A imaginação ao conceber que, o fim estabelecido por uma paixão qualquer, seja impossível de ser realizado ou esteja para além da capacidade que, um sujeito particular possui de efetivá-lo, tal âmbito desvencilha por completo a idéia de necessidade que há entre essa paixão e a suposta ação que a deveria acompanhar. Porém, não nos delongaremos com esse assunto, pois tal não representa a temática central dessa então seção.

As paixões, portanto, “designam certas impressões que ele, o espírito, constitui como fins de nossa atividade” (2001, p. 140) somente elas, segundo Deleuze, ao transformarem os sentimentos de prazer e dor em fins determinados, é que fornecerão ao sujeito o motivo de suas ações. Desse

modo, as paixões ou motivos serão considerados como meios, para que atinjamos um fim específico, porém, para que ela seja tomada como é necessário algo a mais. Observa Deleuze:

Mas, para que uma causa possa ser considerada como meio, é ainda preciso que nos interesse o efeito que ela produz, ou seja, é preciso, primeiramente, que coloquemos a idéia do efeito como fim de nossa ação. (2001, p.141)

Em outras palavras, para Deleuze, a ligação existente entre as paixões

(meios) e os fins que essas almejam alcançar, não se constitui em um vínculo estabelecido simplesmente pelo princípio de causalidade. Para que uma paixão seja vista como meio, através do qual possamos atingir um fim específico, é preciso que esse vínculo seja útil ao indivíduo; o termo útil é definido por Deleuze como “o útil pela sua apropriação, pela sua disposição “a promover o bem”. (2001, p.141). Isto é, para que a paixão seja concebida como um meio, para um indivíduo, faz-se necessário primeiro que, as determinações da vontade do mesmo, estejam de acordo com o fim almejado e estabelecido por tal motivo. Caso contrário, a ação jamais irá se concretizar.

Resta evidente, enfim, que para Deleuze “os princípios da paixão fixam o espírito, dando-lhe fins, e eles o ativam porque as perspectivas desses fins são ao mesmo tempo motivos, disposições para agir, inclinações, interesses particulares.” (2001, p.147) A partir dessa explanação deleuziana, concluir-se-á que, em Hume, do mesmo modo que os objetos externos são determinados por um destino absoluto e necessário, conseguintemente, isso se aplicará também às ações da mente. Essas terão, por sua vez, seus destinos já delimitados os quais visam certos fins definidos. A liberdade, portanto, na filosofia de Hume, consiste em ser um princípio inexistente e, em hipótese nenhuma, pode ser considerado como elemento constituinte da natureza humana, ou seja, não poderá ser concebida como princípio essencial do homem cuja função seja a de orientar suas ações. Hume, no entanto, afirma que os homens se recusam a acreditar que suas ações derivam de uma suposta conexão necessária, isso porque essa idéia de necessidade lhes parece ser um princípio de caráter violento e forte o suficiente para ser aplicado ao âmbito prático. Quando agimos, segundo Hume, não temos consciência de que nossa ação seja impelida pela necessidade, mas sim pensamos ser capazes de agir da maneira como desejamos ou escolhemos agir e, jamais, aceitamos ser forçados a agir de determinada forma e não de outra; tudo isso ocorre, pois supomos ser dotados de certa liberdade, a qual nos oferece a possibilidade de escolhermos qual seria a maneira mais adequada de agir, diante das circunstâncias nas quais nos encontramos inseridos. Comenta Hume:

Poucos são capazes de fazer uma distinção entre a liberdade de espontaneidade, como é chamada na escolástica, e a liberdade de indiferença, ou seja, entre aquilo que se opõe à violência e aquilo que significa uma negação da necessidade e das causas. (2000, p.443)

Hume, nessa passagem, intenta alertar para a existência de dois tipos de liberdade, a liberdade de espontaneidade a qual se configura como a liberdade que um indivíduo possui de escolher entre realizar ou não uma ação que já esteja determinada por um motivo qualquer (devido à incessante união constante que se pode constatar entre esse motivo e a respectiva ação que o acompanha) e a qual tenha um fim já estabelecido. No entanto, a liberdade de indiferença consiste em ser outro princípio. Essa se constitui na ilusão de conceber o homem como um ser demasiado livre e que, por sua vez, tenha a capacidade de realizar qualquer ação pautando-se somente em sua vontade a qual para incitar o sujeito à ação independe, portanto, do princípio de necessidade ou de quaisquer motivos fixados. Para Hume, a liberdade de indiferença não passa de uma “falsa sensação ou experiência... que é vista como um argumento em favor de sua existência real” (2000, p.444), pois, geralmente, sente-se que, as ações por nós realizadas são provocadas por nossa vontade e, ademais, entendemos essa vontade como sendo algo livre de coações ou submissões o que prova que essa seja hábil de mover-se em todas as direções, o que conseqüentemente nos leva a pensar que seja de fato à vontade o princípio motor de nossas ações. Porém, para Hume, nossas ações não se configuram em ações realizadas por um simples acaso, sem que se tenha um motivo que lhe preceda e que a fundamente . Diz-nos o filosofo escocês:

Por mais caprichosas e irregulares que sejam as ações que então pratiquemos, como o desejo de mostrar nossa liberdade é seu único motivo, nunca podemos nos libertar das amarras da necessidade. Podemos imaginar que sentimos uma liberdade dentro de nós, mas um espectador comumente será capaz de inferir nossas ações de nossos motivos e de nosso caráter. (2000, p. 444)

Outro sujeito que, segundo Hume, esteja a observar a ação que um

indivíduo particular realiza, poderá pressupor qual foi o motivo ou paixão que provocara nele tal ação. Isso porque, por mais que o indivíduo agente não admita essa associação para si mesmo, a mente dos homens, entretanto, insiste em unir a paixão que o afetara à ação que realizou, caso contrário, não haveria razão para instituirmos uma moralidade sobre a qual a humanidade poderia fundamentar suas ações. Desse modo, o princípio de necessidade, apesar de ser como veremos posteriormente uma afecção inconcebível pela mente, é de fundamental importância, de acordo com Hume, para entendermos a conduta humana. Porém, antes é preciso que façamos uma análise mais pormenorizada da idéia de necessidade, em vista de avaliarmos se de fato essa idéia se constitui em uma afecção da mente, pois vimos que essa idéia não possui nenhuma espécie de impressão de sensação que lhe corresponda. Como já havíamos dito a idéia de necessidade se origina da mera repetição freqüente de certos casos em que, um motivo específico estabelece uma conjunção constante com um tipo determinado de ação, entretanto, Hume afirma que, a partir disso, não se pode aceitar que essa repetição dê legitimidade para que a idéia de necessidade se instale na mente. Eis o que comenta Hume:

Porque após uma repetição freqüente, descubro que, quando um dos objetos aparece, o costume determina a mente a considerar aquele que usualmente o acompanha, e a considerá-lo de um modo mais intenso em virtude de sua relação com o primeiro objeto. (2000, p. 188-189)

Isto é, ao observarmos a repetição freqüente de nossas ações mentais o

único juízo que podemos emitir em relação a isso é o de que, pelo costume, somos levados a inferir uma ação determinada a partir de uma paixão que, em um dado momento, nos afeta ou afetou. Aliás, somos coagidos a conceber essa ação de maneira mais intensa, posto que a relação entre ação e paixão faça com que, parte da força e vividez, presentes na paixão seja transmitida à idéia da ação que a acompanha. Isso, por conseguinte, nos proporciona a prova concreta de que tal união seja sempre existente e evidente, pois assim como a crença recai sobre nossas operações mentais acerca das ações da matéria o mesmo se realiza no que concerne às ações da mente. Somos, portanto, induzidos a acreditar em tal fato.

A reflexão, segundo Hume, que exercemos sobre os diversos casos em que se repete a união de um motivo a uma ação que, geralmente, o acompanha não nos confere razão suficiente para podermos confirmar a existência do princípio de necessidade. O que se torna evidente a partir dessa repetição de casos semelhantes é que, somente o que se repete são os objetos, ou, no que diz respeito às ações da mente, os motivos e as ações que os constituem; disso resulta, portanto, que da mera repetição de tais casos não podemos inferir a geração de uma nova idéia como a de necessidade. Primeiro, porque na experiência não se encontra nenhuma espécie de impressão de sensação que corresponda a essa idéia gerada e, segundo, pois a mente em nenhum desses casos poderá ir além do que seja possível a ela conceber, ou seja, a mente humana apenas consegue perceber nesses casos a união constante que se estabelece entre motivos e ações. Jamais essa seria capaz de aperceber uma terceira relação que esteja situada entre esses dois momentos distintos. Sobre isso comenta Deleuze:

Nesse sentido, o sujeito reflete e se reflete: daquilo que o afeta em geral, ele extrai um poder independente do exercício atual isto é, uma função pura, e ele ultrapassa sua parcialidade própria. (2001, p. 94)

Deleuze afirma, assim como Hume, que toda percepção da mente tem

sua existência separada de qualquer outra afecção que possa a ela estar unida, a partir dessa afirmativa conclui-se que não se tem nada de necessário que possa assegurar-nos ou sustentar a existência de uma dada percepção; a experiência, para Deleuze, é o plano da sucessão no qual se nota o movimento de idéias distintas as quais se configuram em idéias separáveis, justamente, por serem diferentes. A existência em si de uma percepção, aos olhos de Deleuze, pertence de maneira exclusiva à unidade o que o homem pensa haver entre um motivo e uma ação consiste em uma espécie de conexão da qual ele nem ao menos possui um conhecimento exato. Uma conexão que decorre de uma inferência, feita por nós, entre “as qualidades sensíveis e os poderes da natureza” (2001, p. 93). O sujeito quando vítima de um efeito

proveniente de um princípio da paixão e, por conseqüência da violência com que esse princípio o afeta, passa a almejar um alvo, um fim e uma intenção específica. Em vista disso, organiza todos os seus meios (motivos e causas) para poder alcançar o fim proposto. Nesse sentido, o mesmo passa então a criar em sua mente a idéia de necessidade e, como se não fosse o bastante, a aplica às nossas ações da mente visando assim tornar o fim por ele proposto, não em algo restrito ao seu interesse particular, mas sim em uma regra geral a qual, por conseguinte, deva ser considerada necessária para embasar a conduta dos homens. Como bem diz Deleuze, esse homem ultrapassa sua própria parcialidade, porém, tendo em vista a defesa de seu próprio interesse. Para efetivar o objetivo que intenta alcançar, a mente se permite conceber duas coisas que eram antes entendidas distinta e separadamente, por exemplo, o motivo e a ação, como sendo dois fatos que possuem uma relação necessária entre si. Somente tornando necessária a relação entre motivo e ação é que será ao homem, segundo Hume, atribuir nexos às suas ações. Nas palavras do próprio Deleuze: “Se as idéias se associam, isso ocorre em função de um objetivo ou de uma intenção, de uma finalidade que só a paixão pode conferir à atividade do homem. (2001, p.63)

Motivos e ações, assim como causas e efeitos, são ambas as coisas separadas e distintas. Pela experiência e observação da união constante que se fixa entre essas duas coisa é que somos capazes de realizar inferências a respeito dessa ação mental; inferências que somente são passíveis de acontecerem devido ao efeito que o costume exerce sobre nossas mentes. A constante conjunção entre motivos e ações e a respectiva inferência que realizamos a partir de um desses objetos o qual esteja a nós presente, segundo Hume, nos fornece às idéias de causa e necessidade e, pela influência que tal conjunção constante submete à mente é que somos coagidos a sentir a necessidade como um princípio deverás existente.

Conclusão Vimos que nesse artigo a conduta humana, segundo a teoria das

paixões de David Hume, tem como princípio orientador a idéia de necessidade. Esse princípio, por sua vez, se constitui em nada mais do que a constante união que realizamos entre motivos (paixões) e ações seguida, da inferência efetuada pela mente, ao passar de um motivo determinado à idéia da suposta ação que deve a ele estar unida. Desse modo, a necessidade será entendida como sendo uma percepção de origem, exclusivamente, mental e não uma afecção que tenha seu princípio fundado na experiência, com isso a necessidade será considerada senão uma mera invenção da mente a qual presa pela defesa dos interesses particulares dos indivíduos.

O homem, em virtude de alcançar fins particulares, intenções definidas atribui às ações da mente um caráter necessário, ou seja, passa a conceber que uma ação só poderá ser realizada se essa contiver um vinculo necessário com uma paixão que a anteceda, tendo em vista assim a instituição de uma moralidade que estabeleça sentido e nexo às suas ações. Apesar das paixões e das ações serem percepções distintas e separáveis, o costume que temos de observar, repetidamente, uma espécie de conjunção constante que se estabelece entre elas exerce tamanha influência sobre a mente que, de imediato, somos levados a conceber essa relação como um fato necessário e evidente.

Nesse sentido, as ações da mente se assemelham às ações da matéria, posto que, tanto a relação causa e efeito quanto a relação motivo e ação estão ambas fundamentadas sobre o princípio de causalidade. Assim, as paixões serão consideradas como as causas de nossas ações e homem será, portanto, impelido a agir ora em vista de se aproximar daquilo que o causa prazer, ora a afastar-se daquilo que lhe proporciona aversão.

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Uberlândia e ao Departamento de Filosofia pela oportunidade de realizar este artigo.

Às instituições PIBIC-UFU, CNPq e FAPEMIG as quais fomentam os projetos de iniciação cientificas e o IX Encontro Interno & Seminário de Iniciação Científica.

Aos meus pais que pacientemente me apoiaram.

Referências Bibliográficas Tratado da natureza humana: Uma tentativa de introduzir o método

experimental e raciocínio nos assuntos morais. (Livros I e II, p. 15-489). Tradução de Débora Danowski. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

.Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios

da moral. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. Rio de Janeiro: Editora

34; 2001. DUARTE, Luciano José Cabral. A natureza da inteligência no tomismo

e na filosofia de Hume;Tradução de Antonio Carlos Mangueira Viana. Aracaju: J. Andrade, 2003.

THE PRINCIPLE OF NECESSITY AS GROUND OF HUMAN ACT

DOUGLAS FERREIRA DE LOURENZO (IC)3, MARCOS CÉSAR SENEDA (PQ)4

3 FAFCS-UFU, AV. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG 4 FACFS-UFU, Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1U; CEP 38400-902, Uberlândia MG

ABSTRACT The theory of the passions presented by the empirist philosophy of

David Hume is identified with the theory of the knowledge concerning about that same philosopher. Both of them initiate from the principle of causality in order to explain the operations carried out by the human mind. While the theory of the knowledge deal with the principle of causality through the study of the existing relation between cause and effect (actions of the matter), the theory of the passions, in compensation, utilizes him of distinct form, relapsing like this their study about the relation that is established between motives (passions) and actions (actions of the mind). Of that way, will be possible show up the main intention of David Hume philosophy, which is, demonstrate that a passion will be able to produce na effect in the subject the desire of acting.

The mental operations concerning about actions of the matter, are submitted to some principles originating from human nature. Healthy some of them: the belief, the habit, the custom and the necessity. Actions of the mind, consequently, will find equally submitted to such principles, beyond of being to the mercy of the influence that those exercise about our mental operations which concern about the relation between motive and action. The central objective, therefore, will be show to the reader the existing proximity between both those theories, trying to mesure with precision which are the consequences and conclusions that we be able to extract of the influences of those principles, which ones generate operations in our minds and conduct us to actions.

Indeed, it will notice itself that the focus of this work will circumscribe around the thematic of the passions. That will be carried out for we could understand with clarity if humanity tended to act in accordance with the reason or second his own feelings. Of this way, will be possible to verify if men upon acting are guided by a pure liberty or, by the contrary one, is coerced it act having like base the principle of necessity.

Keywords: impressios, ideas, impressions of reflexion, necessity, actions of the matter.