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JIVAGO PETRUCCI O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA MESTRADO EM DIREITO

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JIVAGO PETRUCCI

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL

DA PROPRIEDADE PRIVADA

MESTRADO EM DIREITO

3

JIVAGO PETRUCCI

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL

DA PROPRIEDADE PRIVADA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, comoexigência parcial para obtenção do título de Mestre emDireito (Direito do Estado), sob a orientação daProfessora Doutora Flávia Cristina Piovesan.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO

4

2007

Banca Examinadora:

____________________________________

____________________________________

____________________________________

5

Resumo

O presente estudo tem por objetivo enfocar a função social da propriedade privada

como princípio constitucional. Não trata, portanto, das regras que dão concreção à função

social da propriedade nos diversos setores (função social da propriedade rural, da

propriedade urbana etc.), senão no que é imprescindível para a definição do princípio em

si.

A análise tem início com o estudo da interpretação constitucional, espécie de

interpretação jurídica que apresenta peculiaridades que impõem preocupações específicas

ao intérprete. Traça-se um panorama geral dos postulados de interpretação constitucional,

da distinção entre princípios e regras e da função desempenhada por aqueles na tarefa

interpretativa.

Examina-se, então, o desenvolvimento histórico do conceito de propriedade,

desde os remotos tempos do exacerbado individualismo até o reconhecimento de objetivos

coletivos ao instituto, o que permite conceituar a função social da propriedade, realçando

sua relação com a idéia de justiça social e as modificações que ela produz no conceito

tradicional de propriedade.

A exposição se encerra pela análise das diversas funções desempenhadas pelo

princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico, com destaque

para a função interpretativa, por meio da qual o princípio enfocado condiciona a

compreensão do significado de todas as demais normas jurídicas que integram o sistema

jurídico nacional.

6

Abstract

The following study aims the social role of private property as a constitutional

principle. It does not, therefore, deal with the rules that pertain the social role of property

in the several fields (social role of rural or urban estates etc) unless if strongly relevant for

the definition of the principle itself.

The analysis starts with the study of the constitutional interpretation, a legal type

of interpretation which shows peculiarities that demand specific worries from the

interpreter. A whole panorama is drawn of the principles of constitutional interpretation, of

the distinction between principles and rules and the role of those who work with

interpretation.

Following, the historical development of the definition of property is examined,

since the early days of overwhelming individualism until the recognition of the common

objectives of the institute, which allows to define the social role of property, highlighting

its relationship with the principle of social justice and the changes that it brings to the

traditional definition of property.

Finally, this paper analyses the several roles played by the principle of social role

of property in our legal system, specially as it regards interpretation, through which the

focused principle leads to the interpretation of all the remaining legal rules that compose

the national legal system.

7

Sumário

1. Introdução ....................................................................................................................... 9

2. A interpretação constitucional ...................................................................................... 12

2.1 Interpretação jurídica: definição ........................................................................... 12

2.2 Interpretação versus aplicação do Direito ............................................................ 14

2.3 Interpretação constitucional: importância e particularidades ............................... 19

2.4 Postulados de interpretação constitucional ........................................................... 23

2.4.1 Força normativa da Constituição ................................................................ 26

2.4.2 Supremacia da Constituição ................................................................... 31

2.4.3 Unidade da Constituição ........................................................................ 27

2.4.4 Necessidade de harmonização entre as regras e os princípios ............... 29

2.4.5 Maior eficácia possível ......................................................................... 32

3. A moderna interpretação constitucional e os princípios .............................................. 33

3.1 A “moderna” interpretação constitucional .......................................................... 33

8

3.2 Conceito de princípios constitucionais ................................................................. 35

3.3 Princípios e regras como espécies normativas .................................................... 38

3.4 Princípios, valores e interpretação constitucional ................................................ 43

4. Direito de propriedade e função social ........................................................................ 47

4.1 A evolução do direito de propriedade ................................................................. 47

4.2 A função social da propriedade em Textos Constitucionais da Europa e da

América Latina .............................................................................................................. 54

4.2.1 Portugal ................................................................................................. 54

4.2.2 Alemanha .............................................................................................. 56

4.2.3 Itália ....................................................................................................... 57

4.2.4 México ................................................................................................... 58

4.2.5 Espanha ................................................................................................. 60

4.2.6 Argentina ................................................................................................ 61

4.2.7 Chile ...................................................................................................... 61

4.2.8 Análise do Direito comparado ............................................................... 62

4.3 A função social da propriedade no Direito brasileiro pré-1988 ........................... 63

9

4.4 A função social da propriedade na Constituição de 1988 .................................... 72

5. Conteúdo do princípio constitucional da função social da propriedade na Constituição

de 1988 ............................................................................................................................... 75

5.1 A função social da propriedade é verdadeiro princípio da Constituição de 1988? ............. 78

5.2 Delimitação do conteúdo do princípio da função social da propriedade privada 80

5.2.1 Significado da expressão função social ................................................. 81

5.2.2 Função social e justiça social ................................................................. 83

5.2.3 A propriedade em nosso ordenamento constitucional: direito subjetivo ou

função? ................................................................................................................. 88

5.2.4 Objeto da função social da propriedade ................................................ 91

6. Eficácia do princípio constitucional da função social da propriedade ......................... 95

6.1 Funções dos princípios constitucionais ................................................................ 95

6.2 A interpretação conforme à Constituição ............................................................ 97

6.3 O princípio da função social da propriedade e a legislação infraconstitucional .. 99

6.3.1 Função social e limitações à propriedade ............................................... 99

6.3.2 Função social e imposições à propriedade .......................................... 101

6.3.3 Função social e direito de seqüela ....................................................... 107

10

7. Conclusões ................................................................................................................... 114

Referências ...................................................................................................................... 117

11

1. Introdução

Passadas quase duas décadas do advento da Constituição Federal de 1998, pouco

se avançou no que diz respeito à função social da propriedade e a seu objetivo final: a

garantia de existência digna para todos os brasileiros. Ainda que tenhamos tido, durante

esses anos, o advento do Estatuto da Cidade1 e de outros diplomas legislativos destinados à

interferência estatal na propriedade privada, em todos os níveis de governo, não assistimos

a nenhuma revolução na compreensão da propriedade privada, seja pelos órgãos jurídicos

de aplicação das leis, seja pela sociedade civil em geral.

No que respeita, pois, à norma constitucional que instituiu a função social da

propriedade, temos a repetição de um crônico problema: a falta de efetividade2 das regras e

princípios estabelecidos na Lei Fundamental.

Mas não podemos negar que evolução houve. Instrumentos novéis de intervenção

foram criados por leis infraconstitucionais, páginas e mais páginas foram escritas com

análises sobre a função social da propriedade, em seu aspecto jurídico e extrajurídico.

O presente estudo pretende somar-se à literatura já existente, e enfocar a função

social da propriedade com base no status que lhe foi conferido em nosso ordenamento

jurídico: o de princípio constitucional.

Não tenciona analisar as regras3 constitucionais atinentes à função social da

propriedade. Só fará referência a elas no que for indispensável para a definição sistemática

da função social. Não analisará, portanto, a função social da propriedade rural, ou da

1 Lei federal nº 10.257, de 10 de janeiro de 2001.2 O termo aqui é utilizado no sentido especificado por Luís Roberto Barroso: “A efetividade significa,portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa amaterialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quantopossível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social” (BARROSO, Luís Roberto. O DireitoConstitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3. ed. Riode Janeiro: Renovar, 1996. p. 82).3 Aqui a palavra é utilizada em seu sentido técnico atual: espécie de norma jurídica. Toda normaconstitucional é princípio ou regra.

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propriedade urbana, ou qualquer outra manifestação setorial, mas sim a função social da

propriedade, como princípio constitucional.

Para tanto, nossa abordagem iniciará pelo estudo da interpretação constitucional,

analisando-a como uma espécie de interpretação jurídica, mas que apresenta traços

distintivos, peculiaridades que justificam preocupações específicas com seu

desenvolvimento. Traçar-se-á um panorama, tão geral quanto necessário, dos postulados de

interpretação constitucional desenvolvidos pela hermenêutica, enfocando, a seguir, a

distinção entre princípios e regras – edificada pela doutrina tradicional e desenvolvida pela

nova hermenêutica, e que constitui uma das notas características do que se tem rotulado de

pós-positivismo –, concluindo com a análise do papel atribuído aos princípios no que

respeita à interpretação constitucional.

De posse dos conceitos básicos de interpretação constitucional, passar-se-á, então,

a investigar o significado dos preceitos constitucionais que veiculam o princípio da função

social da propriedade.

Começar-se-á pela análise da evolução histórica do conceito de propriedade,

desde remotos tempos do exacerbado individualismo até sua acelerada mitigação,

contemporânea do Estado de Bem-Estar Social e do intervencionismo. Encontrará

abordagem específica a disciplina jurídica de propriedade e da função social tanto no

Brasil – em nível constitucional e infraconstitucional, desde o Império – como em alguns

dos principais Textos Constitucionais estrangeiros, até se chegar especificamente à função

social da propriedade na Constituição Federal de 1988.

A seguir, buscar-se-á conceituar a função social da propriedade, caracterizando-a

como princípio jurídico constitucional e analisando, especificamente, o significado da

expressão; sua relação com a idéia de justiça social; as implicações de sua adoção para o

conceito de direito de propriedade; e o objeto de sua incidência.

A exposição se encerrará pela análise das diversas funções desempenhadas pelo

princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico, com destaque

para a função interpretativa, na qual o princípio enfocado atua como vetor exegético,

13

condicionando o significado de todas as demais normas jurídicas integrantes do sistema

jurídico nacional.

Pretende-se, assim, contribuir para que se dê precisão conceitual à função social

da propriedade, em sua condição de verdadeira norma jurídica, o que se reputa

imprescindível para que o mandamento constitucional ganhe efetividade.

A continuar a análise jurídica do tema restrita a um conflito ideológico, sem

preocupação efetiva de análise do direito positivo, não se vislumbra possibilidade de êxito

no comando constitucional, pois, como frisa Fábio Konder Comparato,

[...] no contexto do amplo debate político e ideológico da atualidade, defender afunção social da propriedade, sem especificações maiores, pode ser e tem sidoum argumento valioso para a sustentação do status quo social em matéria deregime agrário e de exploração empresarial capitalista4.

4 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 25, n. 63, jul./set. 1986, p. 76.

14

2. A interpretação constitucional

2.1 Interpretação jurídica: definição

De início, é necessário sublinhar que, quando se fala em interpretação jurídica,

duas realidades distintas podem estar sendo referidas: o processo intelectual pelo qual o

significado de um texto legal é afirmado, ou o resultado final desse mesmo processo: “O

vocábulo ‘interpretação’, como em geral os vocábulos da língua italiana com o mesmo

sufixo, pode denotar seja uma atividade – a atividade interpretativa – seja o resultado ou

produto desta atividade”5.

Interessa-nos, aqui, a primeira significação: a interpretação como processo

intelectual, como atividade.

Interpretar, segundo a concepção tradicional, é a atividade por meio da qual, no

campo jurídico, extrai-se do texto legal o correto significado de uma norma. Como mostra

a frase de Ferrara, “a missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo real da norma

jurídica”6.

Essa concepção, tributária da existência de uma “verdade única” presente na

própria lei e dali “extraída” pelo intérprete, povoou as mentes dos juristas durante longo

período. Entretanto, com os aportes da semiótica e da filosofia da linguagem surgidos a

partir da metade do século XX, tal conceito sofreu fundamental modificação: o intérprete,

antes relegado a plano inferior, passou a ser peça fundamental no processo interpretativo,

alçado à condição de mediador entre o texto e os destinatários da mensagem ali

consignada.

5 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2005.p. 129.6 FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. 3. ed. Trad. Manuel A. Domingues de Andrade.Coimbra: Arménio Amado, 1978. p. 128.

15

A função de interpretar passou, pois, de uma objetividade quase mecânica a uma

atividade inegavelmente influenciada pela subjetividade7, na qual o sentido do texto

normativo não mais se “extrai” de seus signos lingüísticos, mas é “atribuído” a tais signos

pelo intérprete 8.

Como anota Celso Ribeiro Bastos, “interpretar é atribuir um sentido ou um

significado a signos ou a símbolos, dentro de determinados parâmetros. É que a linguagem

normativa não tem significações unívocas”9. Esclarece o autor, em nota de rodapé:

O emprego do vocábulo atribuir é significativo neste contexto. Por meio dele sedenota a característica integrativa da atividade interpretativa. Comumente seconceitua a interpretação como um processo por meio do qual se extrai umsignificado da norma, o que desde logo está a identificar uma ideologiasubjacente aos que assim se pronunciam, pois o extrair algo pressupõe que essealgo (que seria a solução de um caso concreto) já exista na própria norma. Nessesentido, poder-se-iam empregar igualmente verbos como imprimir, fornecer,imputar ou conferir, todos capazes de fornecer a exata noção do que serádesenvolvido ao longo da obra, no sentido de que a atividade interpretativa é,sem sombra de dúvida, uma atividade volitiva, vale dizer, que envolve a vontadedo agente interpretativo. Não se trata, pois, de operação objetivamentedeterminada, mas, antes, subjetivamente desenvolvida10.

Destarte, interpretar uma norma, ainda que de nível constitucional, “consiste em

atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o

7 “Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a seremenquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um. A identificaçãodo cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que sedenomina pré-compreensão” (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo DireitoConstitucional brasileiro. Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da;GRAU, Eros Roberto (coord.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva.São Paulo: Malheiros, 2003. p. 24). No mesmo sentido escrevia, em época bem anterior, Konrad Hesse: “Elintérprete no puede captar el contenido de la norma desde un punto cuasi arquimédico situado fuera de laexistencia histórica en la que se encuentra, cuya plasmación há conformado sus hábitos mentales,condicionando sus conocimientos y sus pré-juicios. El intérprete comprende el contenido de la norma a partirde una pré-comprensión que es la que va a permitirle contemplar la norma desde ciertas expectativas, hacerseuna idea del conjunto y perfilar un primer proyecto necesitado aún de comprobación, corrección y revisión através de un análisis más produndo, hasta que, como resultado de la progresiva aproximación a la ‘cosa’ porparte de los proyectos en cada caso revisados, la unidade de sentido queda claramente fijada” (HESSE,Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992. p. 44).8 Como define Riccardo Guastini, a interpretação jurídica é “a atribuição de sentido (ou significado) a umtexto normativo” (GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 23). Mais à frente, o autor explicita a assertiva: “Ainterpretação não tem como objeto normas, mas textos. Interpretar é decidir o significado de um textolegislativo. Portanto, interpretar é produzir uma norma. Por definição, as normas são produtos dosintérpretes” (GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 136).9 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso BastosEditor, 2002. p. 28.10 Id., ibid.

16

fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente

fundada”11. A atribuição de significado se faz “mediante a utilização de determinados

critérios (ou medidas) que se pretendem objectivos, transparentes e científicos”12 e 13.

O intérprete não descreve o conteúdo prévio de um texto, mas o constrói

(reconstrói), operando com significados já consolidados pelo uso da comunidade, que

funcionam como verdadeiras condições dadas da comunicação. Os textos são, portanto,

limites à construção de sentido levada a efeito pelo intérprete14 e, ao mesmo tempo, o

ponto de partida dessa construção.

2.2 Interpretação versus aplicação do Direito

Como visto, por meio do processo interpretativo e com base no ferramental

desenvolvido pela hermenêutica jurídica15, o jurista atribui ao texto legal a significação que

lhe pareça mais apropriada.

Essa operação, entretanto, tem função eminentemente prática: regular o

comportamento dos indivíduos.

As normas jurídicas têm um caráter geral, que permite sua aplicação a uma

infinidade de casos reais que se amoldem a sua hipótese de incidência. Quando uma norma

incide sobre determinado acontecimento naturalístico, suas características fáticas

singulares, recebendo o influxo da norma legal, num fenômeno que se designa

11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. p. 1200.12 Id., p. 1206.13 Luís Roberto Barroso chega a afirmar que: “A objetividade possível do Direito reside no conjunto depossibilidades interpretativas que o relato da norma oferece” (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentosteóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto (coord.). Estudos de DireitoConstitucional em homenagem a José Afonso da Silva, cit., p. 29).14 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. SãoPaulo: Malheiros, 2006. p. 31-5.15 “Hermenêutica” e “interpretação”, por vezes, são utilizados como termos sinônimos. Aqui, sãoempregados com significados diversos: a hermenêutica é a ciência que desenvolve as técnicas deinterpretação.

17

“subsunção”, permitem a construção de uma norma jurídica específica, que regulará aquele

– e especificamente aquele – caso concreto.

Essa segunda operação, que leva em consideração não apenas a norma jurídica

geral e abstrata, mas também as características do fato concreto a regular, e culmina com a

definição de uma “nova” norma, que regerá o caso concreto, costuma ser identificada

como aplicação da lei.

A respeito da distinção entre interpretação e aplicação, temos o clássico

ensinamento do Professor J. H. Meirelles Teixeira:

[...] enquanto a interpretação busca apenas o sentido duvidoso, o alcance exatoda norma jurídica – embora tendo em vista hipóteses concretas, situações reaisda vida – pela aplicação, o jurista indaga e procura descobrir qual a normaadequada, isto é, aplicável a essa situação, realizando um trabalho deenquadramento da situação real em uma norma, ou num conjunto de normasjurídicas16.

Modernamente, entretanto, a diferenciação entre interpretação e aplicação da lei

tem sido contestada com veemência. Os métodos de interpretação desenvolvidos nos

últimos anos, sob forte influência da Tópica de Theodor Viehweg, afirmam

peremptoriamente a necessidade de que a interpretação leve em consideração as

peculiaridades do caso concreto a resolver.

Konrad Hesse é enfático ao ligar umbilicalmente interpretação e aplicação.

Afirma ele:

Comprender y, con ello, concretizar solo es posible con respecto a un problemaconcreto. El intérprete tiene que poner en relación con dicho problema la normaque pretende entender, si quiere determinar su contenido correcto aqui y ahora.Esta determinación, así como la aplicación de la norma al caso concreto,constituyen un proceso único y no la aplicación sucesiva a un determinadosupuesto de algo preexistente, general, en si mismo comprensible. No existeinterpretación constitucional desvinculada de los problemas concretos17.

16 MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Curso de Direito Constitucional. Revisto e atualizado por MariaGarcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 283 (grifos no original).17 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 44.

18

Na mesma linha de argumentação está Eros Roberto Grau, para quem “existe uma

equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos

distintos, porém frente a uma só operação [Marí]. Interpretação e aplicação

consubstanciam um processo unitário [Gadamer], superpondo-se”18. O “processo unitário”

referido por Eros Grau é definido pelo próprio Gadamer, quando afirma que “a aplicação

não é uma etapa derradeira e eventual do fenômeno da compreensão, mas um elemento que

a determina desde o princípio e no seu conjunto”19.

Entendemos, no entanto, que a interpretação difere da aplicação da norma

constitucional, ainda que entre ambos os procedimentos possa haver uma estreita conexão.

A busca da definição do sentido de um preceito constitucional pode – e deve – ser feita

independentemente de um caso concreto a reger, exatamente para que, chegado o momento

da aplicação concreta da norma, esta já se apresente com contornos bem delineados, ainda

que apenas em seus aspectos básicos. O trabalho da doutrina, nesse ponto, revela-se como

contribuição inestimável para a contenção do decisionismo dos pronunciamentos judiciais,

problema relevantíssimo do Direito Constitucional pós-moderno. A função da dogmática é

corretamente apreendida por Oscar Vilhena Vieira:

A dogmática estabelece, num campo de batalha ideologicamente impregnado,distintas conseqüências do direito posto, que limitam ainda mais a possibilidadede escolha do magistrado. Finalmente, ao magistrado cabe decidir, numasituação concreta, a aplicação desses princípios, positivados pelo legislador eracionalizados pela doutrina20.

A importância do controle da racionalidade do ato de aplicação do direito não

escapou à genialidade do próprio Gadamer, que, a par de reconhecer a legitimidade do

intérprete-aplicador para criar modelos e dotá-los de eficácia, não deixa de observar que a

18 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo:Malheiros, 2004. p. 31.19 GADAMER. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 1993. v. 1. p. 380, 396-401. Apud COELHO,Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 44.20 VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da Constituição e os limites da empreitada interpretativa – entreBeethoven e Bernstein. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo:Malheiros, 2005. p. 253.

19

hermenêutica só é possível com a vinculação, pela lei, de todos os membros da

comunidade jurídica, pois um déspota sempre saberá explicar o conteúdo de suas

interpretações mediante as regras por ele próprio criadas, e que podem não coincidir com

as regras usuais de interpretação da comunidade por ele dominada21.

Ademais, é certo que a fundamentação, na atividade interpretativa levada a cabo

pela doutrina, transforma-se em seu verdadeiro coração, já que a aceitabilidade das

soluções traçadas pelo intérprete não oficial é diretamente proporcional à qualidade dos

argumentos por ele utilizados. Já na interpretação-aplicação judicial, em que se cria a

norma concreta que regulará o caso levado a julgamento, o componente de “poder” muitas

vezes obscurece a fundamentação – esta fica relegada a segundo plano, pois a sentença

ingressará no universo jurídico como comando obrigatório, ainda que sua fundamentação

seja deficiente, inaceitável ou mesmo delirante.

Disso se pode extrair que a atividade interpretativa da doutrina, pela ênfase natural

na fundamentação, contribui decisivamente para o aumento do grau de racionalidade das

decisões judiciais. Afinal, conforme ensina Aulis Aarnio, “la base para el uso del poder por

parte del juez reside en la aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición formal de

poder que pueda tener”22 e 23.

Por outro lado, a tentação de utilizar as regras de interpretação como forma de

legitimar como justo um resultado pré-concebido é lugar-comum na atividade

jurisdicional. Como observa Inocêncio Mártires Coelho, “a inversão do itinerário

desqualifica por completo a avaliação do resultado como instrumento de controle da

interpretação”24. Nesse ponto, a atividade do doutrinador também está em patamar livre de

amarras: não pretendendo aplicar a lei a um caso concreto, mas apenas construir as

possibilidades exegéticas do texto sobre o qual se debruça, encontra-se menos sujeito às

21 GADAMER. Verdad y método. Salamanca: Sígueme, 1993. v. 1. p. 380, 396-401. Apud COELHO,Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 47-8.22 AAULIO, Arnis. Lo racional como razonable. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p. 29.Apud COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 50.23 Inocêncio Mártires Coelho, com apoio nos ensinamentos de Rodolfo Luis Vigo, coloca em destaque odever de fundamentação das decisões judiciais, afirmando que “a exigência de motivação, que se impõe aointérprete-aplicador do Direito, é condição de legitimidade e de eficácia do seu labor hermenêutico, cujoresultado só se tornará coletivamente vinculante se obtiver o consenso social que, no caso, funcionará, senãocomo prova, pelo menos como ‘sintoma de racionalidade’” (COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 49-50).24 Id., p. 62-3.

20

(pseudo-) exigências de justiça do caso concreto, a ameaçar a racionalidade de seu trabalho

de interpretação.

A interpretação da lei – e, portanto, da Constituição –, livre dos entraves

apresentados pelo caso concreto, contribui para sua melhor aplicação. O cientista constrói

as conexões sintáticas e semânticas; o aplicador soma a estas as circunstâncias do caso concreto25.

Trata-se, ademais, de mecanismo de aprimoramento e valorização da separação de

Poderes, já que, mesmo na pós-modernidade, “continua a ser vedado ao juiz, em um

Estado democrático de direito, inovar na ordem jurídica sem fundamento majoritário, sob

pena de usurpar a competência própria dos demais poderes estatais”26.

O próprio Eros Roberto Grau, acima citado, acaba por diferenciar a atividade do

intérprete “autêntico” (que tem poder para ditar a norma de decisão do caso concreto)

daquela praticada pelos demais operadores do direito27, o que parece resgatar a utilidade da

doutrina na racionalização do processo de decisão judicial. Na mesma obra, o festejado

autor expõe interessante trecho da lavra de Riccardo Guastini no qual se tomam

interpretação e aplicação como atividades exercidas sobre objetos diferentes: a

interpretação se faz sobre textos normativos; a aplicação se refere a normas jurídicas28.

Grau termina por afirmar que tal constatação demonstra serem aplicação e interpretação

um processo unitário, “quando praticadas pelo intérprete autêntico”29. A referência final ao

ato interpretativo praticado pelo “intérprete autêntico” (= juiz) parece autorizar nosso

entendimento de que aplicação e interpretação são, sim, processos diversos, sobretudo

quando a primeira não é realizada pelo chamado “intérprete autêntico”.

25 ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 34.26 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro-SãoPaulo: Renovar, 2005. p. 44. A autora, analisando especificamente o mecanismo da ponderação de princípios,traça linhas que revelam a importância do trabalho desenvolvido na interpretação doutrinária: “[...] quantomais a doutrina precisar os contornos de cada direito, isoladamente considerado e na convivência com outros,menor será a necessidade da chamada ponderação ‘ad hoc’ (aquela levada a cabo pelo juiz no caso concreto,sem vinculação a qualquer parâmetro). Quanto maior a quantidade de parâmetros delimitando o sentido e oalcance de cada enunciado normativo, menor será a discricionariedade e subjetividade envolvidas naponderação” (Id., ibid.).27 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 62-3.28 GUASTINI, Riccardo. Estudios sobre la interpretación jurídica. Trad. Miguel Carbonell. México: Porrúa,2000. p. 10. Apud GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 63.29 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 85-6.

21

Portanto, como resume Willis Santiago Guerra Filho, a doutrina é uma “unidade

cognitiva” que “não apenas é responsável pela sofisticação da hermenêutica jurídica, como

fornece interpretações passíveis de serem adotadas pelo Judiciário, e, assim, introduzidas

no sistema jurídico normativo”30. A interpretação e a aplicação não se apresentam

invariavelmente como processo unitário. Podem estar assim ligadas, mas apenas

eventualmente.

2.3 Interpretação constitucional: importância e particularidades

Tudo o que foi dito a respeito da interpretação jurídica em geral é aplicável à

interpretação da Constituição31. Não poderia ser diferente: a Constituição é uma lei, parte

integrante do direito positivo.

Entretanto, por se tratar de um texto-base, que serve de fundamento aos demais

diplomas legislativos do sistema e, ao mesmo tempo, não conhece nenhum outro que lhe

seja superior, sua interpretação revela extrema importância e apresenta peculiaridades

essenciais.

Em primeiro lugar, desnecessário salientar que o status da Constituição no interior

do sistema social revela a enorme importância da atividade que busca definir-lhe o

conteúdo: na condição de “estatuto jurídico do político”, regulando todas as principais

relações políticas do Estado, seja entre os poderes constituídos, seja entre estes e os

cidadãos, a Constituição configura verdadeiro manual para a vida na sociedade moderna,

cuja intelecção é ponto primordial para que se desenvolva qualquer atividade.

30 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. 2. ed. São Paulo: Celso BastosEditor, 2002. p. 92.31 Cabe anotar, entretanto, que para Konrad Hesse a interpretação constitucional possui uma nota específica:nem toda realização das normas constitucionais é interpretação. Esta só tem vez quando estamos diante deuma questão constitucional “que la Constitución no permite resolver de forma concluyente” (HESSE,Konrad. Op. cit., p. 35).

22

Ademais, a rigidez32 que caracteriza a imensa maioria dos Textos Constitucionais

modernos faz da interpretação constitucional o veículo hábil à atualização silenciosa da

Lei Maior33.

Quanto mais rígida a Constituição, quanto mais dificultosos os obstáculoserguidos a sua reforma, mais avulta a importância da interpretação, maisflexíveis e maleáveis devem ser os seus métodos interpretativos, em ordem afazer possível uma perfeita acomodação do estatuto básico às exigências do meiopolítico e social34.

Como se verá adiante35, o reconhecimento da existência dos princípios como

espécies de normas jurídicas, por meio das quais se positivam os valores presentes em

dada sociedade, e a identificação do Texto Constitucional como o berço próprio desses

valores positivados, agregaram à interpretação constitucional importância ímpar no que se

refere às mutações constitucionais36. Francesco Ferrara, ao analisar a Escola do Direito

Livre e os novos métodos de interpretação que então se descortinavam, aponta, apesar das

críticas que faz ao novo entendimento, “uma renovação benéfica à doutrina da

interpretação, um novo sopro vital”: a interpretação evolutiva. Segundo suas palavras:

A chamada interpretação evolutiva é sempre mera aplicação do direito, e repousaem dois cânones: a “ratio legis” é “objectiva” (não a “ratio” subjectiva do criador

32 “[...] diz-se rígida a Constituição somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formaisespeciais, diferentes e mais difíceis que os processos ordinários de elaboração das leis” (MEIRELLESTEIXEIRA, José Horácio. Op. cit., p. 108).33 São as chamadas mutações ou transições constitucionais (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação eaplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 137),que podem ser definidas como modificações do significado do Texto Constitucional, operadas semmodificação formal desse mesmo Texto. Como explica Lourival Vilanova, “a mutação da circunstânciahistórica determina mutação de sentidos objetivos nas normas de ordenamento. Quer o queira ou não olegislador, fará, inevitavelmente, o poder judicial. A estática dos textos não condiciona a estática dosconceitos normativos” (VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. SãoPaulo: Max Limonad, 1997. p. 322). Como afirma J. J. Gomes Canotilho, “o reconhecimento destasmutações constitucionais silenciosas (‘stille Verfassungswandlungen’) é ainda um acto legítimo deinterpretação constitucional” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1229). Também Celso Ribeiro Bastosrealça a relação entre interpretação e mutação constitucional (BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 111).34 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 458.35 V. Capítulo 3, infra.36 Jorge Miranda faz referência a uma função prospectiva dos princípios, que balizam a interpretaçãoevolutiva de modo que as novas formulações lhes sejam conformes (MIRANDA, Jorge. Manual de DireitoConstitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. t. 2. p. 230). No mesmo sentido, Cármen LúciaAntunes Rocha, que alerta para o que chama de “polimorfia” dos princípios constitucionais, característicaque permite a constante redefinição dos mandamentos principiais, com base nas exigências e nos consensospresentes no corpo social (ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da AdministraçãoPública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 39).

23

da lei) e é “actual” (não a “ratio” histórica do tempo em que a lei foi feita).Assim pode acontecer que uma norma ditada para certa ordem de relaçõesadquira mais tarde um destino e função diversa.

E arremata:

A interpretação evoluciona e satisfaz novas necessidades, sem todavia mudar alei. A lei lá está; mas porque a sua “ratio”, como força vivente móvel, adquirecom o tempo coloração diversa, o intérprete sagaz colhe daí novas aplicações 37 e 38.

Em compensação, os mesmos fatores que revelam a importância da interpretação

da Constituição (posição hierárquica superior; inicialidade fundante; disciplina do jogo

político da sociedade; necessidade permanente de atualização) acabam por impingir-lhe

algumas peculiaridades.

Destarte, ainda que não haja plena concordância da doutrina a respeito do tema39,

parece inegável a necessidade de armas específicas do campo constitucional para que

sejam superados, com sucesso, os obstáculos específicos criados pelas características

particulares apresentadas pelas normas da Constituição.

Jorge Miranda fala em “fatores de perturbação” do intérprete, arrolando a

variedade das normas constitucionais quanto ao objeto e à eficácia; sua indeterminação; a

proximidade dos fatores políticos; a influência da ideologia (e da pré-compreensão do

intérprete); os diferentes critérios que balizam a atividade dos órgãos políticos; a origem

compromissória dos Textos, que trazem em si princípios diferentes e muitas vezes

discrepantes40.

37 FERRARA, Francesco. Op. cit., p. 173.38 Vale ressaltar, todavia, a existência de limites à mutação constitucional: “O primeiro deles é representadopelo próprio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não sãoabsolutas, devendo estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentaisdo sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderãocontravir os programas constitucionais” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação daConstituição, cit., p. 139).39 Sobre as controvérsias a respeito de ser ou não a interpretação constitucional modalidade específica deinterpretação, ver BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.p. 393-4.40 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 259.

24

Também Meirelles Teixeira ensina que o conhecimento dos “íntimos significados

da Constituição” esbarra em “dificuldades óbvias”. De início, o fato de serem os preceitos

constitucionais mais sintéticos do que aqueles constantes da legislação infraconstitucional

já se revela como primeiro obstáculo. Além disso, a maior estabilidade da norma

constitucional, advinda da sua rigidez, torna mister que ela continue a ser aplicada em

condições históricas muito diversas daquelas sob as quais foi criada, o que demanda

esforço interpretativo bem mais intenso41. De fato, não há em relação ao Texto

Constitucional norma hierarquicamente superior que lhe dê fundamento de validade. É a

chamada “inicialidade fundante” das normas constitucionais, que ressalta a importância da

existência de um órgão incumbido de estabelecer com caráter vinculante qual interpretação

deve prevalecer (corte constitucional), impondo suas decisões aos demais órgãos

superiores de governo. Além disso, por ser a Constituição o fundamento de validade das

demais normas, o estabelecimento do conteúdo de seus mandamentos pode acarretar a

invalidação das normas inferiores que a contrariem, conseqüência que não está presente na

interpretação das normas jurídicas infraconstitucionais.

Como resume Willis Santiago Guerra Filho, as normas constitucionais não podem

ser aplicadas por meio dos cânones tradicionais de interpretação, “isso pelo simples motivo

de que a elas próprias faltam normas superiores, como elas são para as demais normas,

para ajudar na determinação de seu alcance e significado”42.

De outra parte, a linguagem utilizada pelo legislador constituinte é mais sintética

que a do legislador comum, e se apóia, por isso, em disposições mais genéricas (princípios)

que fazem referência, muitas vezes, a definições extrajurídicas. Observa Paulo Bonavides:

A interpretação das normas constitucionais, pelo caráter político de que serevestem em razão de seu conteúdo, se aparta, em importantíssimo ponto, dametodologia empregada para a fixação do sentido e alcance das outras normasjurídicas, cuja interpretação se move num círculo menos sujeito a incertezas edificuldades como aquelas que aparecem tocante à norma constitucional43.

41 MEIRELLES TEIXEIRA, J. H. Op. cit., p. 266.42 GUERRA FILHO, Willis S. Op. cit., p. 128.43 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 130.

25

Esse caráter político, para o mesmo autor, também é determinante para revelar a

substância dos princípios constitucionais, que nada mais são do que “princípios políticos

introduzidos no texto constitucional”. Alerta, contudo, para o risco de conceder

importância extrema ao elemento político, de forma a sacrificar a normatividade do Texto

Maior e a instaurar o arbítrio44.

A mesma advertência é feita por Inocêncio Mártires Coelho. Ressalta ele que,

ainda que se tenha por cabível uma interpretação especificamente constitucional, as

peculiaridades que a sustentam não devem chegar ao ponto de excluir a norma suprema do

ordenamento jurídico: “as normas constitucionais são, portanto, normas ‘jurídicas’, com

todas as conseqüências teóricas e práticas que resultam dessa qualificação”45.

O mesmo autor reconhece, entretanto, que a Constituição possui uma estrutura

normativo-material que a distingue da lei ordinária, já que os Textos Constitucionais

apresentam um caráter aberto, polissêmico e indeterminado, só aplicável mediante os atos

legislativos e judiciais. Conclui, assim, que as especificidades geralmente atribuídas à

interpretação da Constituição estão ligadas umbilicalmente à natureza aberta dos princípios

constitucionais, não se logrando localizar nenhum autor que sustente que também as regras

demandem uma forma específica de interpretação.

Com apoio em Larenz, leciona que:

[...] as normas constitucionais não contêm uma previsão por “elementos”,limitando-se a enunciar “princípios” ou critérios gerais de valoração, que nãopodem exercer a função de premissa maior de um silogismo subsuntivo e, porisso, só se tornam operantes depois de densificados e concretizados pelointérprete-aplicador46.

E arremata: a polissemia dos Textos Constitucionais advém de serem eles

repositórios de princípios, “preceitos cuja estrutura normativo-material é aberta e

44 Id., p. 462.45 COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 25-6.46 COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., p. 78.

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indeterminada”. Isso justifica a existência de uma hermenêutica especial, uma

“hermenêutica de princípios”47.

Por fim, as normas constitucionais, apesar de seu inegável caráter vinculante

(jurídico), regulam questões políticas. Estão sujeitas, pois, a um influxo político, que deve

ser levado em consideração pelo intérprete. Portanto, “a interpretação das normas

constitucionais deve ter em conta a especificidade resultante do facto de a constituição ser

um estatuto jurídico do político”48. Nesse sentido, legítimo o recurso a valores políticos na

tarefa interpretativa, desde que efetivamente positivados na Constituição.

Conclui-se, pois, que a interpretação da Constituição, apesar do inegável caráter

normativo de suas disposições, apresenta peculiaridades que, se não a apartam, pelo menos

a singularizam em relação à interpretação das demais normas jurídicas.

2.4 Postulados de interpretação constitucional

As características particulares das normas constitucionais, vistas anteriormente,

conduzem a uma conclusão inafastável: a interpretação dessas normas deve ser norteada

por premissas básicas igualmente peculiares, ausentes quando a tarefa interpretativa tem

por objeto normas jurídicas de nível ordinário. Tais postulados49, estabelecidos pela

hermenêutica constitucional, possuem natureza de condicionamento, verdadeiros axiomas

que devem ser observados para levar a cabo a tarefa interpretativa com bons resultados:

47 Id., p. 85-6.48 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1207.49 Também chamados de “princípios da interpretação constitucional”, “regras básicas de concretização”,“pontos de apoio”, “diretrizes” etc. Não há uniformidade na nomenclatura utilizada pela doutrina paradesigná-los. Sánchez de La Torre os denomina “postulados doutrinários” (Los principios clásicos delderecho, p. 166-167. Apud FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. Los principios generales del derecho y suformulación constitucional. Madrid: Civitas, 1990. p. 100), expressão que reputamos assaz adequada, masque realça o aspecto da origem dos postulados (= doutrina) e não sua função (= interpretativos). Por issopropomos a designação de “postulados de interpretação”, que lhes coloca em evidência tanto a origem(doutrina) quanto a função (auxiliar no processo de interpretação constitucional).

27

“não poderás interpretar a Constituição devidamente sem antes atentares para estes

elementos”50 e 51.

As normas constitucionais são normas jurídicas e, como conseqüência, suainterpretação serve-se dos conceitos e elementos clássicos da interpretação emgeral. Todavia, as normas constitucionais apresentam determinadasespecificidades que as singularizam, dentre as quais é possível destacar: a) asuperioridade jurídica; b) a natureza da linguagem; c) o conteúdo específico; d) ocaráter político. Em razão disso, desenvolveram-se ou sistematizaram-secategorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ouprincípios instrumentais de interpretação constitucional. [...]

Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissasconceituais, metodológicas ou finalísticas, que devem anteceder, no processointelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta52.

A introdução do catálogo de tais princípios entre nós costuma ser imputada à obra

de Konrad Hesse53. Entretanto, o desenvolvimento posterior experimentado em diversas

obras nacionais permite afirmar que não há, hoje, nenhuma uniformidade na enumeração

desses postulados.

Optamos, aqui, por apresentar os que reputamos primordiais. São eles:

50 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 165.51 Convém frisar, neste ponto, que esses postulados hermenêuticos não podem ser considerados normasjurídicas, já que não estão estabelecidos no sistema jurídico por uma decisão, ou seja, não estão positivados.São, portanto, verdadeiros postulados construídos pela ciência, “situados num plano distinto daquele dasnormas cuja aplicação estruturam” (ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 122). As normas valem ou não; ospostulados, por serem científicos, são verdadeiros ou falsos.52 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretaçãoconstitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.).Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 298-9.53 Conforme anota Virgílio Afonso da Silva, “esses princípios de interpretação constitucional, que no Brasilsão recebidos como se fossem moeda corrente na Alemanha, são apenas a sistematização das idéias de umúnico autor: Konrad Hesse”. E, mais à frente, complementa: “A propagação que os ‘princípios deinterpretação constitucional’ alcançaram no Brasil pode ser considerada, por isso, exacerbada. Mas a poucadifusão que esse rol de princípios de interpretação alcançou em seu próprio país de origem não seria, em si,um problema, não fosse também a ‘pouca importância prática’ que esses princípios têm para a interpretaçãoconstitucional”, já que “alguns deles em nada se diferenciam dos cânones tradicionais de interpretação”(SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, VirgílioAfonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 118-21).

28

2.4.1 Força normativa da Constituição

A Constituição é uma lei, e não um conjunto de recomendações políticas ou

morais. O ponto inicial de qualquer tentativa de interpretação jurídica da Constituição é a

afirmação de que se trata de uma lei, ou seja, de um conjunto de disposições prescritivas,

de preceitos de dever-ser:

Embora resultante de um impulso político, que deflagra o poder constituinteoriginário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico.E as normas jurídicas, tenham caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões,meras aspirações ou plataforma política. As regras de direito, consigna RecasénsSiches, “son instrumentos prácticos, elaborados y construidos por los hombres,para que, mediante su manejo, produzcan en la realidad social unos ciertosefectos, precisamente el cumplimiento de los propósitos concebidos”54.

A premissa básica da interpretação constitucional é: a Constituição é uma norma

jurídica, que pretende vincular o comportamento das forças sociais. Não é apenas o reflexo

do jogo real de poder que se manifesta em determinada sociedade, nem um compromisso

político futuro, despido de positividade55.

Como relata Luís Roberto Barroso, a teoria constitucional tradicional foi

subvertida por três grandes mudanças de entendimento: o reconhecimento da força

normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o surgimento de uma

nova dogmática da interpretação da Lei Maior. Até meados do século XIX a teoria que

54 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 58 (grifos dooriginal).55 Como se pode perceber, atribuímos ao conceito de força normativa da Constituição significado diversodaquele apontado pela maioria dos autores. J. J. Gomes Canotilho, por exemplo, assim define o princípio emtela: “Segundo o princípio da força normativa da constituição na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos daconstituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental. Consequentemente, devedar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais,possibilitam a ‘actualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência”(CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1226). Parece que a definição apresentada pelo eminente Professoracaba por identificar a força normativa da Constituição com o postulado da máxima eficácia (no mesmosentido, SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 131-2). Não é esse aspecto da interpretação constitucional

29

prevalecia na Europa entendia a Constituição como documento de cunho político, cujas

disposições não tinham força vinculante. Modernamente,

[...] passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de suaforça normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Valedizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo detodas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismospróprios de coação, de cumprimento forçado56.

2.4.2 Supremacia da Constituição

Além de ser uma lei, a Constituição é a Lei Suprema de um Estado. Assim,

“procede-se à interpretação do ordenamento jurídico a partir da Constituição”57, e não ao

contrário.

O princípio da supremacia da Constituição nasceu atrelado a duas distinções

próprias do constitucionalismo liberal: a diferenciação entre poder constituinte e poder

constituído (Sieyès), e entre Constituições rígidas e flexíveis58.

A rigidez constitucional se traduz no fato de que o processo de modificação das

normas do Texto é mais dificultoso. Da rigidez decorre o princípio da supremacia da

Constituição: esta, sob o ângulo normativo, está colocada no vértice do sistema jurídico do

que queremos ressaltar com a inclusão da “força normativa da Constituição” no catálogo dos postuladosinterpretativos, e sim o apresentado no texto.56 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio doDireito Constitucional no Brasil. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, nº63/64, jan./dez. 2006, p. 6-7.57 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 172.58 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 150-1.

30

País, e “todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na

proporção por ela distribuídos”59.

A norma jurídica fundamental está acima das leis produzidas pelo Estado. Para

garantir sua incolumidade, ela mesma estabelece mecanismos para extirpar do sistema

jurídico as leis que lhe são contrárias. “É o chamado controle da constitucionalidade das

leis, realizado no Brasil pelo Poder Judiciário, através de ações adequadas”60.

Como explica J. H. Meirelles Teixeira:

No sistema das Constituições rígidas, portanto, à legalidade comum, isto é, àconcordância dos atos jurídicos com as normas legais, sobrepõe-se umasuperlegalidade constitucional, que consiste na existência de certas normasjurídicas fundamentais, superiores às leis ordinárias, normas às quais se confereuma eficácia jurídica superior, uma eficácia vinculante da própria atividade dolegislador ordinário, e também da atividade de qualquer outro órgão ou agente doPoder Público61.

Disso decorre que incide em grave erronia o intérprete que se debruça sobre a

Constituição com os olhos voltados às significações atribuídas à legislação ordinária: “a

interpretação da Constituição pode ser conciliada com a lei ordinária, mas não pode ser

restringida ou alterada por ela”62.

Além disso, toda a teleologia do ordenamento jurídico é pautada pela

Constituição:

É da natureza de toda constituição estabelecer objetivos a serem realizados pormeio de sua aplicação. Logo, cabe ao intérprete, seja ele qual for, interpretartodas as normas jurídicas do aludido ordenamento, em consonância com asfinalidades previstas constitucionalmente, porquanto a constituição ocupa,

59 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 45.60 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 40-1.61 MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Op. cit., p. 373.62 CARVALHO, Márcia Haydée Porto de. Hermenêutica constitucional: métodos e princípios específicos deinterpretação. Florianópolis: Livraria e Editora Obra Jurídica, 1997. p. 77.

31

hierarquicamente, o ápice da ordem jurídica positivada: princípio da supremaciada constituição63.

2.4.3 Unidade da Constituição

Em cada ordenamento jurídico só pode haver uma Lei Fundamental, que deve ser

interpretada evitando as contradições entre suas normas. Como ensina Konrad Hesse:

La relación e interdependencia existentes entre los distintos elementos de laConstitución obligan a no contemplar en ningún caso sólo la norma aislada sinosiempre además en el conjunto en el que debe ser situada; todas las normasconstitucionales han de ser interpretadas de tal manera que se evitencontradicciones con otras normas constitucionales64.

Trata-se do mais importante postulado de hermenêutica constitucional, sobretudo

porque por seu intermédio se preserva a legitimidade das decisões tomadas pelo poder

constituinte. Destarte, caso fosse dada ao intérprete a possibilidade de prestigiar

determinadas disposições constitucionais em detrimento de outras, poderiam ser

cuidadosamente selecionadas aquelas que refletissem sua (dele, intérprete) ideologia, o que

lhe converteria no verdadeiro legislador constitucional.

A visão da totalidade de uma Constituição faz ressaltar a importância do método

lógico-sistemático na interpretação. Encarada a Lei Maior como um sistema de normas,

associadas umas às outras, ter-se-ão meios mais eficazes de captação da idéia de unidade

da Carta Magna, fundamental em qualquer trabalho interpretativo. Na precisa lição de

Ferrara:

63 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica jurídica e Constituição no Estado de Direito Democrático. Rio deJaneiro: Forense, 2001. p. 43.64 HESSE, Konrad. Op. cit., p. 48

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O preceito singular não só adquire individualidade mais nítida, como podeassumir um valor e uma importância inesperada caso fosse consideradoseparadamente, ao passo que em correlação e em função de outras normas podeencontrar-se restringido, ampliado e desenvolvido65.

A constatação não escapa a Jorge Miranda: o “apelo ao elemento sistemático

consiste aqui em procurar as recíprocas implicações de preceitos e princípios em que

aqueles fins se traduzem, em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar,

assim, chegar a uma idônea síntese globalizante”66.

Por fim, cabe ressaltar que, num sentido menos difundido, a unidade da

Constituição significaria a inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais67.

Com relação a essa segunda significação, como bem observa Virgílio Afonso da Silva, a

existência de clausulas pétreas produz um considerável abalo no fundamento da teoria68.

2.4.4 Necessidade de harmonização entre as regras e princípios

O intérprete deverá encontrar o espaço adequado a cada uma das normas em

atrito, de maneira que nenhuma delas reste completamente aniquilada. Diante das tensões

entre regras e princípios constitucionais, o princípio da harmonização (também chamado

65 FERRARA, Francesco. Op. cit., p. 143.66 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 261.67 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 187; CARVALHO, MárciaHaydée Porto de. Op. cit., p. 71.

33

de concordância prática) “impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em

conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”69.

A harmonização acima citada é alcançada mediante a aplicação do chamado

princípio da proporcionalidade70. Assinala Canotilho:

Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (enão uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de unsem relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentosrecíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância práticaentre estes bens71.

Como muito bem frisa Juarez de Freitas,

[...] o princípio da proporcionalidade quer dizer, finalística e essencialmente,isto: temos de fazer concordar os valores jurídicos e, quando um tiver quepreponderar sobre o outro, mister salvaguardar, ao máximo, aquele que restourelativizado72 e 73.

68 SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 122-3. Oautor também sustenta a existência de graus diferentes de importância para as normas constitucionais, mesmoque sob a ótica material (Id., p. 123-5).69 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1225.70 Convém deixar claro, neste ponto, que, quando se rotula a proporcionalidade de princípio, não se estáutilizando a expressão como espécie de norma, mas sim como postulado interpretativo. Isso deve ficar claroporque há, na doutrina, grande discussão a respeito da natureza jurídica da proporcionalidade: se regra ouprincípio. Diante de nossa posição, essa querela perde a razão de ser, pois, como anota Rodney Cláide B. E.da Silva, “a proporcionalidade consiste em um método empregado para operacionalizar uma colisão dedireitos. É tida apenas como forma de concatenar o raciocínio, do que propriamente um princípio indicativode um valor intrínseco” (SILVA, Rodney Cláide Bolsoni Elias da. O princípio como norma jurídica. Estudosobre o princípio, a regra e os valores dentro do sistema normativo constitucional. São Paulo: Esfera, 2006.p. 83), E, após citar o ensinamento de Robert Alexy, que o enquadra na categoria de regras, afirma:“Discorda-se do citado posicionamento, porque a proporcionalidade não é uma regra, na medida em que nãoprescreve condutas e tampouco impõe conseqüências. A proporcionalidade não prevê os modais deônticos‘permitido, obrigado ou proibido’ e também não impõe sanções. É uma forma de resolver conflito entredireitos expressos em normas-princípios” (SILVA, Rodney Cláide B. E. da. Op. cit., p. 84). Com a mesmaopinião temos Eros Roberto Grau (GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 181). Em sentido contrário está PauloBonavides, que afirma tratar-se de princípio positivado em nosso ordenamento constitucional, tendo origemem diversos dispositivos de nossa Lei Maior (BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 434-6). Também o TribunalConstitucional alemão o considera verdadeiro preceito constitucional, que deita raízes, juntamente com opreceito da proibição do excesso, no princípio do Estado de Direito, conforme anota Luís Afonso Heck (Otribunal constitucional federal e o desenvolvimento dos princípios constitucionais: contributo para umacompreensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. p. 176).71 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1225.72 FREITAS, Juarez de. O intérprete e o poder de dar vida à Constituição: preceitos de exegeseconstitucional. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.). Direito Constitucional:estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 234.

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A importância do princípio da proporcionalidade para a resolução de antinomias

de princípios é ainda maior, como ressalta Willis Santiago Guerra Filho:

Para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado peloconflito entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, porser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, preconiza-se orecurso a um princípio dos princípios, o princípio da proporcionalidade, quedetermina a busca de uma solução de compromisso, na qual se respeita mais, emdeterminada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar omínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é,ferindo-lhe(s) seu núcleo essencial onde se acha insculpida a dignidadehumana74.

Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos reputam a proporcionalidade

sinônimo de razoabilidade75. Já para Virgílio Afonso da Silva, a identificação não é

correta, pois, apesar de terem objetivos semelhantes, a regra da proporcionalidade

[...] tem uma “estrutura” racionalmente definida, com subelementosindependentes – a análise da “adequação”, da “necessidade” e da“proporcionalidade em sentido estrito” –, que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que adiferencia, “claramente”, da mera exigência de razoabilidade76.

Importante frisar, a par das raízes históricas e do desenvolvimento que a

proporcionalidade experimentou, é que ela “ordena que a relação entre o fim que se

73 A utilização do verbo “concordar” revela a intensa relação entre a proporcionalidade e a “concordânciaprática”, postulado constante originalmente do catálogo de Konrad Hesse. Para Paulo Bonavides, o princípioda concordância prática foi idealizado por Hesse como uma projeção do princípio da proporcionalidade, eestá fundamentado no princípio da unidade da Constituição, “mediante o qual se estabelece que nenhumanorma constitucional seja interpretada em contradição com outra norma da Constituição” (BONAVIDES,Paulo. Op. cit., p. 425).74 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e Teoria do Direito. In: GRAU, ErosRoberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.). Direito Constitucional: estudos em homenagem aPaulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 269.75 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 302.76 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, ano 91, v. 798, abr. 2002,passim. No mesmo sentido é a posição de SILVA, Rodney Cláide B. E. da. Op. cit., p. 85-8.

35

pretende alcançar e o meio utilizado deve ser adequada, necessária e proporcional”77, o que

nos impõe uma análise, ainda que superficial, de seus subelementos.

Para reputar-se conforme ao postulado da proporcionalidade, a interpretação deve

desembocar em um ato sucessivamente adequado, necessário e proporcional em sentido

estrito. Há, pois, três subelementos no postulado da proporcionalidade.

Pelo requisito da adequação, procura-se analisar se a interpretação gerará um ato

capaz de atingir a finalidade desejada pela norma.

Pelo requisito da necessidade, verifica-se se não existem outras soluções

interpretativas, menos gravosas, para serem adotadas.

O requisito da necessidade parte de três premissas básicas, as quais devem serpercorridas pelo julgador: a) a intervenção no direito fundamental deve sermínima; b) deve haver meios alternativos para chegar à mesma finalidade; c) eledeve realizar um juízo empírico de comparação entre o meio escolhido e o(s)outro(s) meio(s) existente(s) no que tange ao resultado final a ser alcançado78.

Superadas as duas fases anteriores, passa-se ao exame da proporcionalidade em

sentido estrito, devendo “levar em consideração as vantagens e desvantagens que o ato

normativo poderá provocar quanto aos valores tutelados pelo ordenamento jurídico. Aqui

deverá o julgador escolher o valor que irá prevalecer no caso concreto”79.

Vê-se, portanto, como muito bem frisado por Virgílio Afonso da Silva, que “a

análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da

proporcionalidade em sentido estrito”80, havendo verdadeira subsidiariedade entre as sub-

regras: se o “teste” de constitucionalidade não resistir ao exame da adequação, a solução

que se pretende dar ao caso concreto é inconstitucional; se resistir a esse primeiro exame,

77 STEINMETZ, Wilson. Princípio da proporcionalidade e atos de autonomia privada restritivos de direitosfundamentais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros,2005. p. 39.78 SILVA, Rodney Cláide B. E. da. Op. cit., p. 95.79 Id., p. 96.80 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista cit., p. 34.

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passa-se ao segundo (necessidade), e somente se a solução interpretativa resistir também a

ele é que se analisará a proporcionalidade em sentido estrito. Superada esta última etapa, a

constitucionalidade poderá ser afirmada. Ou seja: uma solução somente poderá ser

reputada proporcional, em sentido estrito, se também for considerada adequada e

necessária81.

2.4.5 Maior eficácia possível82

A Constituição, como detentora de força normativa, é uma típica norma jurídica.

Quando começa a vigorar, deve ter força suficiente para alcançar as situações do mundo

fático nela previstas e regulá-las conforme seus dispositivos. A interpretação

constitucional, nesse cenário, deve ser encarada como maneira de pôr em funcionamento o

motor do Texto, e não relegá-lo a um eterno stand by.

Como afirma Jorge Miranda, “a cada norma constitucional é preciso conferir,

ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. ‘Interpretar’

a Constituição é ainda ‘realizar’ a Constituição”83.

Virgílio Afonso da Silva sustenta que a idéia está contida no postulado da força

normativa da Constituição84. Além disso, circunscreve a utilidade do citado princípio a

uma idéia regulativa “que aponta para uma determinada direção a ser seguida, mesmo que

esse máximo nem sempre possa ser alcançado”, pelo que propugna a nomenclatura de

81 Do que se pode extrair da estrutura da proporcionalidade e de seus subelementos, verifica-se que não setrata, propriamente, de um postulado de interpretação constitucional, mas sim de um postulado de aplicaçãoda norma constitucional, já que é impossível a realização do procedimento sem um caso concreto a serresolvido. A ponderação in abstracto, entretanto, é tida como possível por Ana Paula de Barcellos (Op. cit.,p. 146-55). Sobre a diferenciação entre interpretação e aplicação, adotada no presente trabalho, v. Capítulo 2,supra.82 Este postulado pode ser denominado “máxima efetividade”. É também rotulado de “princípio daeficiência” ou da “interpretação efetiva” (GUERRA FILHO, Willis S. Teoria processual da Constituição,cit., p. 80).83 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 263.

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“efetividade ótima”85. A máxima efetividade seria, assim, uma bússola a guiar o intérprete

constitucional em seu trabalho, e não uma exigência que condicione, a priori, o resultado

da interpretação.

84 V., todavia, a definição que adotamos de “força normativa da Constituição” no item 2.4.1, supra.85 SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional, cit., p. 131.

38

3. A moderna interpretação constitucional e os princípios

3.1 A “moderna” interpretação constitucional

Designa-se por “moderna” interpretação constitucional aquela dominada pelas

novas técnicas de cunho “principiológico”, na qual o processo de atribuição de sentido ao

Texto é permeado – e, mais além, é condicionado – pelos “valores” positivados pelo poder

constituinte.

O adjetivo “moderna”86 quer significar tanto a suplantação dos meios tradicionais

de interpretação (lógico, sistemático, histórico, gramatical)87 como o abandono dos

cânones juspositivistas88, que desprezavam a realidade social na qual os preceitos

86 Vale citar, aqui, o alerta de Virgílio Afonso da Silva: “’Moderno’ é, aliás, um adjetivo usado quase semprecomo sinônimo de ‘argumento de autoridade’. Opinião abalizada é aquela que segue a ‘doutrina maismoderna’, que nada mais é do que aquela defendida por quem usa essa expressão. Falar em ‘direitoconstitucional moderno’ ou em ‘princípios da moderna interpretação constitucional’ é, assim, uma forma dese autolegitimar” (Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da(org.). Interpretação constitucional, cit., p. 116, nota de rodapé nº 2).87 Como esclarecem Luís Roberto Barroso e Ana Paulo de Barcellos: “A idéia de uma nova interpretaçãoconstitucional liga-se ao desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade daconstituição. Não importa desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo, fundado na aplicação deregras –, nem dos elementos tradicionais de hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico.Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na soluçãode casos concretos. Relevante, mas nem sempre suficiente” (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, AnaPaula de. Op. cit., p. 274).88 Norberto Bobbio esclarece a posição do positivismo jurídico em relação à interpretação: “O juspositivismotem uma concepção formalista da ciência jurídica, visto que na interpretação dá absoluta prevalência àsformas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções puramente lógicas que se possam fazer combase neles, com prejuízo da realidade social que se encontra por trás de tais formas, dos conflitos de interesseque o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários do positivismo jurídico) guiar o jurista na suaatividade interpretativa” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito.Compiladas por Nello Morra. Trad. e notas Márcio Publiesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo:Ícone, 1995. p. 221). Lourival Vilanova alerta para o fato de que o positivismo foi concebido num contextosocial que exprimia necessidades de: transposição do racionalismo filosófico para a prática jurídica;sistematização e unificação do Direito; unificação das fontes normativas; primazia da lei como expressão davontade geral; concepção da função judicial como mera aplicação dos textos legais; e interpretação vistaapenas como compreensão do sentido estabelecido (pelo legislador histórico ou pelo próprio texto). “Tudoisso eram pressupostos do Estado moderno, que se iniciou com o Estado absoluto e teve no Estado-de-Direitosua expressão maior, como Estado de poderes divididos, constitucionalmente repartidos, dotado de previsão

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constitucionais são moldados, sem representar, entretanto, a adoção de um jusnaturalismo

sem base científica sólida. “A quadra atual é assinalada pela superação – ou, talvez,

sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupadas

sob o rótulo genérico de pós-positivismo”89.

A nova hermenêutica constitucional abandona por completo a dualidade entre

norma e princípio jurídico. Como afirma Paulo Bonavides,

[...] fica para trás, já de todo anacrônica, a dualidade, ou, mais precisamente, oconfronto princípio “versus” norma, uma vez que pelo novo discursometodológico a norma é conceitualmente elevada à categoria de gênero, do qualas espécies vêm a ser o princípio e a regra 90.

Daí advém a necessidade de, ao se enquadrar os princípios como verdadeiras

normas jurídicas, desenvolver um instrumental específico de interpretação, de modo a

cumprir a difícil missão de dar sentido a preceitos tão genéricos e abstratos que remetam a

valores forjados e desenvolvidos muitas vezes fora dos limites do Direito.

A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, emgeral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas emduas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. Asnormas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita àssituações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ousimplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e umafinalidade mais destacada dentro do sistema 91.

Como afirma Paulo Bonavides, os princípios são “o oxigênio das Constituições na

época do pós-positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais

granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração da sua ordem normativa”.

Acrescenta: a superioridade dos princípios na pirâmide normativa

normativa dos atos dos órgãos do poder, em função da certeza das relações e da segurança individual”(VILANOVA, Lourival. Op. cit., p. 320-1).89 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio doDireito Constitucional no Brasil. Revista cit., p. 5.90 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 276.

40

[...] não é unicamente formal, mas sobretudo material, e apenas possível namedida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até mesmoconfundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentosjurídicos, a expressão mais alta da normatividade que fundamenta a organizaçãodo poder, [...] onde aparecem como pontos axiológicos de mais alto destaque [...]92.

Ao reafirmar a importância dos princípios no processo interpretativo, sem cercear

a estreita ligação existente entre princípio e valor, a moderna hermenêutica constitucional

reaproxima o direito da ética, separação que foi fundamental na era positivista. Nesse

sentido a lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, noqual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras,aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional e a teoria dos direitosfundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Avalorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textosconstitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividadefazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e ética93.

É de notar, entretanto, que o recurso a valores não pressupõe a adoção de um

posicionamento jusnaturalista ou transcendental, que admita a existência de uma pauta de

valores suprapositivos que serviriam de base para a correção do direito positivo. O Direito

continua a ser concebido como fruto de uma decisão do legislador. Somente os valores

adotados pelo sistema jurídico, positivados por meio dos princípios, podem servir de

pautas decisórias e interpretativas:

O Direito Constitucional, ao criar, assim, a Nova Hermenêutica, que lhe éespecífica, acolheu no plano científico do Direito as considerações axiológicas,mas referidas unicamente àqueles valores vazados no direito positivo e que desdemuito, por um certo ângulo, constituem a matéria-prima do sociologismojurídico ou do concretismo, de Ehrlich a Karl Engisch94 e 95.

91 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 141, com apoio em JorgeMiranda, Manual..., 1983, t. 2, p. 198.92 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 288-9.93 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 279.94 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 583.95 Gordillo Cañas, citado por Paulo Bonavides (Op. cit., p. 290), afirma que a positivação dos princípiospermitiu que a Constituição incorporasse uma “ordem objetiva de valores”, positivados e não mais etéreos eabstratos como na concepção jusnaturalista. Como observa Ana Paula de Barcellos, do que se trata, naverdade, não é de integrar valores ao sistema, mas sim de identificá-los no sistema, já que “os elementosvalorativos integram o próprio sistema” (BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 100).

41

3.2 Conceito de princípios constitucionais

Nesse processo de aprimoramento das técnicas de interpretação, a valorização dos

princípios é monumental. O trabalho interpretativo, para chegar a bom termo, exige que o

intérprete da Constituição tenha a noção mais completa possível do conceito de princípios

constitucionais, e das funções que desempenham no sistema.

Convém ressaltar, de início, que a palavra “princípio” é polissêmica, ainda que

analisada apenas em sua acepção jurídica. Designa, v.g., os postulados teóricos

desenvolvidos pela hermenêutica para a interpretação jurídica96 e, ao mesmo tempo, uma

espécie de norma jurídica97.

Sérgio Sérvulo da Cunha elenca quatorze acepções para o termo “princípio”98.

Ensina esse autor, ao comentar a noção de princípio como “prescrição fundamental”:

Toda norma deve ser lida como se fosse o parágrafo de um artigo cujo “caput”compreende os princípios de que se irradia, e que justificam sua existência comonorma. É isso que se tem em vista ao afirmar que as normas devem ser aplicadassegundo seu espírito, e não segundo sua literalidade. Aplicar uma normacontrariamente aos respectivos princípios é o mesmo que aplicar outra norma,inexpressa, ou talvez inexistente no sistema99.

96 V. item 2.4, supra.97 A polissemia, segundo Ruy Samuel Espíndola, não é benéfica para a Ciência do Direito, que ora emprega otermo “princípio” para designar as formulações da doutrina sobre o direito positivo, ora o utiliza comosinônimo de norma jurídica de determinado tipo, ora ainda como postulado teórico independente dedeterminada ordem jurídica (ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementosteóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. 2. ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2002. p. 55). Entendemos, entretanto, que a diversidade de sentidos, além de ser inevitável, nãorepresenta, por si só, um obstáculo intransponível. Como observa Virgílio Afonso da Silva: “Problemas sósurgem a partir do momento em que o jurista deixa de perceber esse fato e passa a usar o termo como setodos os autores que a ele fazem referência o fizessem de forma unívoca” (SILVA, Virgílio Afonso da. Aconstitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo:Malheiros, 2005. p. 36). Portanto, a designação de várias realidades com o mesmo rótulo exige que o juristaespecifique sempre o sentido pelo qual está tomando o termo.98 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O que é um princípio. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto(coord.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,2003. p. 261.99 Id., p. 269.

42

O entendimento de que os princípios são as premissas fundamentais de um

sistema também fundamenta as clássicas definições de Vezio Crisafulli e Geraldo Ataliba:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada comodeterminante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem,desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções maisparticulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem,potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, aocontrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém100.

Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas dosistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade eobrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos)101.

Quando se fala, entretanto, em princípios constitucionais, não se pode perder de

vista o fato de a Constituição representar um ponto de união entre o sistema jurídico e o

sistema político. Portanto, as linhas mestras adotadas por um Texto Constitucional acabam

por representar os valores presentes na realidade social e prestigiados pelo poder

constituinte. Daí a afirmação de Paulo Bonavides no sentido de que os princípios “são, por

conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou o critério com que se aferem os

conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada”102. Como resume

Luís Roberto Barroso:

O Constitucionalismo Moderno promove, assim, uma volta aos valores, umareaproximação entre Ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amploinstrumental do Direito, migrando da Filosofia para o mundo jurídico, essesvalores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar,materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição,explícita ou implicitamente103.

100 CRISAFULLI, V. La Costituzione e le sue disposizioni di principii. p. 15. Apud BONAVIDES, Paulo.Op. cit., p. 257.101 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. 3. tir. atual. por Rosolea Miranda Folgosi. SãoPaulo: Malheiros, 2004. p. 34.102 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 283.103 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro.Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU, Eros Roberto(coord.). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, cit., p. 44.

43

Vale ressaltar, entretanto, que os princípios, apesar de originados em valores, são

normas jurídicas, sujeitas, assim, à lógica deôntica. Os princípios valem ou não valem; aos

valores se aplica código binário diverso104 e 105.

3.3 Princípios e regras como espécies normativas

De início, é de ressaltar que, modernamente, não tem sentido negar o caráter

preceptivo dos princípios jurídicos. Ainda que difiram das regras em determinados pontos,

ambos – princípios e regras – são espécies de um mesmo gênero: as normas jurídicas.

Norberto Bobbio, com sua clareza habitual, é enfático ao afirmar a normatividade

dos princípios:

Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumento são dois, eambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípiosgerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, nãose vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animalobtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a funçãopara a qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas asnormas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídosem caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: masentão servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E por quenão deveriam ser normas?106.

104 “Os princípios relacionam-se aos valores na medida em que o estabelecimento de fins implica qualificaçãopositiva de um estado de coisas que se quer promover. No entanto, os princípios afastam-se dos valoresporque, enquanto os princípios se situam no plano deontológico e, por via de conseqüência, estabelecem aobrigatoriedade de adoção de condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas, os valoressituam-se no plano axiológico ou meramente teleológico e, por isso, apenas atribuem uma qualidade positivaa determinado elemento” (ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 80).105 Joaquín Arce y Flórez-Valdés faz outra interessante observação sobre a diferenciação entre princípios evalores: os valores são metas, enquanto os princípios, como definidos pela antiga filosofia escolástica, sãopontos de partida dos quais deriva outra coisa (FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce. Op. cit., p. 117). Porém,mais adiante assevera que “no se les puede negar, ni a unos ni a los otros, la condición de medios idóneospara completar, desarrollar e interpretar el ordenamiento jurídico” (p. 124), com o que conclui: “[...] losvalores superiores del ordenamiento jurídico son la perspectiva teleológica de los principios generales delDerecho” (p. 131).106 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Revisão técnicaClaudio de Cicco. Apresentação Tércio Sampaio Ferraz Júnior. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília,1999. p. 158-9.

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Também para Riccardo Guastini não há dúvida em afirmar que os princípios são

normas, prescrevem comportamentos. A tese contrária, segundo o autor, somente foi

forjada para negar a determinados princípios a qualidade de determinar

comportamentos107.

Sendo ambos – princípios e regras – espécies de normas jurídicas, a pergunta

imediata a ser respondida é: em que, então, se diferenciam? A questão é tormentosa108, e

vem tomando páginas e páginas da literatura nacional e estrangeira.

De início, uma diferença salta aos olhos: a enunciação das normas jurídicas não

possui um formato único. Há uma indisfarçável dissimilitude entre um dispositivo

constitucional que reza: “Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo

Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado

Federal” e aquele outro que dispõe: “A propriedade atenderá a sua função social”.

Trata-se, em uma dimensão, da diferenciação entre enunciados normativos109: os

preceitos são vazados em formas diversas, apresentando um grau diverso de generalidade e

abstração110. Não se trata, pois – e num primeiro momento –, da diferença entre normas.

Essa distinção entre as espécies normativas é, portanto, uma diferenciação entre

107 GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 185.108 Sobre as atuais críticas de Aulis Aarnio e Luis Prieto Sanchís à distinção entre princípios e regras, verCIANCIARDO, Juan. Principios y reglas: una aproximación desde los criterios de distinción. BoletínMexicano de Derecho Comparado, 108/891-906. Disponível em:http://www.ejournal.unam.mx/boletin_mderecho/bolmex108/BMD10804.pdf. Acesso em 10.5.2006. Passim.109 A diferenciação entre enunciado normativo e norma, aqui utilizada, é bem explicada por J. J. GomesCanotilho: “Deve distinguir-se entre ‘enunciado’ (formulação, disposição) da ‘norma’ e ‘norma’. A‘formulação da norma’ é qualquer enunciado que faz parte de um texto normativo (de ‘uma fonte de direito’).‘Norma’ é o sentido ou significado adstrito a qualquer disposição (ou a um fragmento de disposição,combinação de disposições, combinações de fragmentos de disposições). ‘Disposição’ é parte de um textoainda a interpretar; ‘norma’ é parte de um texto interpretado” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 1201-2). No mesmo sentido: Ana Paula de Barcellos (Op. cit., p. 104) e Eros Roberto Grau (Op. cit., p. 22).Riccardo Guastini também adota a diferenciação entre texto normativo e norma, mas utiliza rótulosdiferentes: o preceito (texto normativo a ser interpretado) é chamado de disposição; a norma é o resultado deum texto normativo interpretado. Mas o autor não deixa de asseverar que ambos são enunciados, já que adisposição não pode ser equiparada a um objeto empírico que é captado pelos sentidos. Ambos – disposição enorma – são discursos: um elaborado pelo legislador; o outro, pelo intérprete (GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 24-8).110 Como esclarece Willis S. Guerra Filho, a generalidade refere-se à classe de indivíduos à que a norma seaplica e a abstração à espécie de fato a que a norma se aplica (GUERRA FILHO, Willis S. Teoria processualda Constituição, cit., p. 157). Para Rodney Cláide B. E. da Silva, a abstração se refere ao conteúdo da norma,e generalidade ao seu destinatário (Op. cit., p. 65).

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enunciados normativos e não entre normas: a estrutura lingüística sob a qual está

construído o preceito denota se estamos diante de uma regra ou de um princípio111.

Entretanto, encarado o texto como limite último da ação interpretativa112, conclui-

se que a generalidade e a abstração do preceito normativo contaminam a norma que será

dali extraída pelo intérprete. Assim, generalidade e abstração são características tanto dos

enunciados principiais como das normas principiais113.

A generalidade específica dos princípios foi realçada por Jean Boulanger, um dos

primeiros a estabelecer com precisão uma diferenciação entre princípios e regras.

Observou ele, com acuidade, que a generalidade de um princípio não pode ser entendida da

mesma forma que a generalidade de uma regra: neste último caso, põe-se em destaque o

fato de a regra ser aplicável a uma série indeterminada de atos ou fatos; naquela, o fato de

o princípio comportar uma “série indefinida de aplicações”. Ainda que a regra seja

aplicável a um imenso conjunto de atos ou fatos, ela é específica ao incidir apenas sobre tal

realidade. Isso não acontece com relação aos princípios, já que não estão diretamente

ligados a um acontecimento fático114.

Ademais, a doutrina costuma apontar outros critérios para apartar os princípios

das regras: a) caráter de fundamentalidade: os princípios, por traduzirem os valores

supremos de um ordenamento, são suas normas fundamentais; além disso, atuam como elo

entre as regras do sistema; b) proximidade da idéia de direito: por se referirem a valores, os

princípios são “modelos de imperativos éticos radicados na idéia de justiça”115; esse

111 Nesse sentido, BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 168.112 J. J. Gomes Canotilho afirma enfaticamente que “a formulação lingüística da norma constitui o limiteextremo para quaisquer variações de sentido jurídico-constitucionalmente possíveis (função negativa dotexto)” (Op. cit., p. 1218).113 Efetivamente, só parece haver utilidade na diferenciação entre princípios e normas se encararmos: a) adiferenciação como dado prévio à interpretação; b) o preceito normativo (texto a ser interpretado) comolimite da atividade interpretativa. Pois: a) se a diferenciação apenas se apresentar no momento final dainterpretação, esta poderá ser direcionada pelo intérprete de modo a apresentar uma conclusão que ele(intérprete) encare como conveniente; b) se o limite da atividade interpretativa for a norma (construída, comovisto, pelo próprio intérprete), as divisas que teriam por finalidade balizar o trabalho intelectual do juristasomente restariam estabelecidas quando esse trabalho já estivesse finalizado. E tudo isso porque, como anotaHumberto Ávila, a razão de ser de se distinguir entre regras e princípios é, sobretudo, facilitar (ou talvez –ponderamos – condicionar?) o processo interpretativo, estruturando e, por conseqüência, aliviando o ônus daargumentação do aplicador do Direito (ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 65).114 BOULANGER, Jean. Principes généraux du droit et droit positif. Apud BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 267.115 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. RevistaLatino-Americana de Estudos Constitucionais, nº 1, 2003, p. 610.

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componente ético não é essencial às regras; c) natureza normogenética: os princípios são

os fundamentos das regras; estão na gênese destas; d) funcionalidade: os princípios têm

funções específicas dentro do ordenamento, que os diferenciam das regras; além de regular

um caso concreto, os princípios são vetores interpretativos das regras (função

interpretativa), limitam a função do legislador e do administrador (função limitativa) e

servem para colmatar lacunas (função integrativa)116.

As obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy aprofundaram a distinção, situando-

a no aspecto lógico da formulação normativa. A doutrina passou, então, a sistematizar em

duas correntes a diferenciação que pode ser feita entre regra e princípio: uma que afirma

ser a distinção apenas de grau (teoria da distinção fraca ou débil) e outra (teoria da

distinção forte) que sustenta haver uma diferença qualitativa entre as espécies normativas.

Segundo anota Willis Santiago Guerra Filho, Dworkin centraliza suas

considerações na premissa de que o Direito é mais do que um simples sistema de regras.

Isso fica claro na análise dos chamados hard cases (casos difíceis), nos quais são utilizadas

outras fontes normativas (standards): princípios éticos ou “imposições para atingir

melhorias econômicas, políticas ou sociais” (policy)117.

O Direito é composto – ao contrário do que pregavam os positivistas – não apenas

por regras, mas também por princípios, do que resulta uma negação da discricionariedade

judicial: ainda quando diante de casos complexos, difíceis (hard cases), os juízes decidem

pautados pelo ordenamento jurídico, e não arbitrariamente. Ao contrário das regras, os

princípios possuem, além da dimensão da validade, uma dimensão de peso, que permite o

sopesamento diante do caso concreto118.

Dworkin constata que, particularmente nas decisões de hard cases, os juristas

“recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como

princípios, políticas e outros tipos de padrões”119. Estrutura sua argumentação na premissa

116 O elenco é apresentado por SILVA, Rodney Cláide B. E. da. Op. cit., p. 65-78.117 GUERRA FILHO, Willis S. Guerra Filho, Teoria processual da Constituição, cit., p. 122.118 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista cit.,p. 610.119 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 36.

47

de que o positivismo “ignora os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não

são regras”120.

Para distinguir os princípios – no sentido genérico121 – das regras, o mencionado

autor recorre a um argumento de natureza lógica: a forma de aplicação. As regras, se

verificada sua hipótese de incidência, ou se aplicam por completo ou não se aplicam; já os

princípios não se caracterizam por esse “tudo-ou-nada”. Não invalida a distinção o fato de,

em última análise, todas as normas serem gerais.

A generalidade das regras (textura aberta) não impede que as exceções a sua

aplicação sejam, ainda que teoricamente, enunciadas, o que não acontece com os

princípios:

A regra pode ter exceções, mas se tiver, será impreciso e incompletosimplesmente enunciar a regra, sem enumerar as exceções. Pelo menos emteoria, todas as exceções podem ser arroladas e quanto mais o forem, maiscompleto e será o enunciado da regra122.

Já as exceções a que estão sujeitos os princípios, como explica Eros Roberto

Grau, “não são suscetíveis, nem mesmo no nível teórico, de enunciação. Isto é: não

podemos capturá-las mediante uma enunciação mais ampla, e pormenorizada, do

princípio”123.

Dessa diferença inicial Dworkin extrai uma outra: os princípios possuem uma

dimensão de peso ou importância, que não está presente nas regras. Um conflito entre

princípios é resolvido por meio da atribuição de um peso maior a um deles, ou seja, sem

necessidade de recorrer a pautas alheias ao conflito. Já a contraposição de regras é

resolvida com base em critérios exteriores às regras em conflito124.

120 Id., ibid.121 Como afirma a próprio Dworkin, a esta altura de sua obra seu objetivo imediato é a distinção entre asregras e o conjunto dos demais padrões, que ele nomeia “princípios em sentido genérico” (Op. cit., p. 36-7).122 Id., p. 40.123 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 89-91.124 DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 42-3.

48

Robert Alexy, por sua vez, também contesta a afirmação de que o diferencial está

apenas no caráter mais genérico dos princípios. Para esse autor os princípios trazem

consigo uma dimensão de peso, que os faz aptos a colidirem entre si, sem afetar a validade.

São os equivalentes normativos dos valores, verdadeiros mandatos de otimização, que

determinam que algo se realize na maior medida possível:

El punto decisivo para la distinción entre regras y principios es que los principiosson normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible,dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, losprincipios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hechode que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de sucumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de lasjurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por losprincipios e reglas opuestos.

En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si unaregla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más nimenos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lofáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas yprincipios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o unprincipio125.

Resume Wilson Steinmetz:

Alexy parte da distinção teórico-estrutural entre regras e princípios: há distinção“qualitativa” e não apenas “quantitativa” (grau de abstração) entre as duasespécies de normas. Os princípios são mandamentos de otimização, quedeterminam que algo seja realizado na maior medida do possível, enquanto queas regras são mandamentos definitivos, cuja aplicação é uma questão de tudo-ou-nada. Como mandamentos otimizadores, os princípios podem ter diferentes grausde aplicação em diferentes casos concretos (relação de precedênciacondicionada), exigindo um procedimento de ponderação na hipótese decolidência. Já as regras aplicam-se ao caso concreto pelo procedimento dasubsunção: ou o caso concreto será regulado pela norma A, ou pela norma B, nãose admitindo a ponderação entre elas126.

No mesmo sentido, escrevem Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

125 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro deEstudios Constitucionales, 1993. p. 86-7 – grifos do original.126 STEINMETZ, Wilson. Op. cit., p. 32-3.

49

Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadascondutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo ahipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicionalda subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se umaconclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo-ou-nada: ouela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflitoentre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua vez,contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a serseguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, desituações. Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram emtensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicaçãodeverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete iráaferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, medianteconcessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida dopossível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo-ou-nada, masgraduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou porsituações de fato127.

3.4 Princípios, valores e interpretação constitucional

Entretanto, convém ter em mente que a distinção entre regras e princípios pelo

aspecto estrutural nem sempre é compatível com a definição clássica de princípios, feita

pela doutrina brasileira. Como alerta Virgílio Afonso da Silva:

[...] o critério que Alexy utiliza para distinguir princípios e regras é um critérioestrutural, que não leva em consideração nem fundamentalidade, nemgeneralidade, nem abstração, nem outros critérios materiais, imprescindíveis nasclassificações tradicionais acima mencionadas. Como conseqüência, muito doque é tradicionalmente considerado como princípio fundamentalíssimo – aanterioridade da lei penal é um exemplo esclarecedor – é, segundo os critériospropostos por Alexy, uma regra e não um princípio128.

De fato, a diferenciação exclusivamente lógica acaba por impedir a caracterização

dos princípios como normas fundamentais de um sistema. Disposições com importância

material realçada em determinado Texto Constitucional podem tanto merecer aplicação

127 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 280-1.128 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relaçõesentre particulares, cit., p. 30. Em outro trabalho o autor identifica de forma ainda mais contundente aincompatibilidade citada: “O conceito de princípio, na teoria de Alexy, é um conceito que nada diz sobre afundamentalidade da norma. Assim, um princípio pode ser um ‘mandamento nuclear do sistema’, mas podetambém não o ser, já que uma norma é um princípio apenas em razão de sua estrutura normativa e não desua fundamentalidade” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de umadistinção, Revista cit., p. 613, grifos do original).

50

incondicional (tudo-ou-nada) como apontar direções, a serem seguidas na maior medida

possível.

Dessa incompatibilidade advém uma importante conseqüência: a estreita ligação

entre princípios e valores fica seriamente comprometida.

Com efeito, a positivação de um valor pode tanto ser feita, sob o aspecto lógico,

por meio de uma regra como por meio de um princípio. O ordenamento positivo, com seus

enunciados, pode dar a determinado valor a roupagem de uma regra – e então ele será

aplicável em termos de tudo-ou-nada – ou a de um princípio – e então ele será buscado na

maior medida possível129.

Em outras palavras, conforme o legislador constitucional lhes dê roupagem mais

específica ou mais genérica, determinado valor adotado pelo Texto terá, sob o aspecto

funcional, a natureza de regra ou de princípio. Isso não afeta, entretanto, seu status de

norma fundamental: não é porque receberam enunciação mais específica que, v.g., o

princípio da irretroatividade da lei penal ou o da vedação dos tribunais de exceção terão

diminuído em importância no sistema constitucional hoje em vigor130.

A diferenciação estritamente lógica (forte) entre princípios e regras acaba por

desnaturar completamente a função primordial daqueles no sistema jurídico: cimentar seus

diversos componentes, funcionando como vetor de interpretação. Afinal, essa função,

segundo acreditamos, está muito mais ligada ao caráter político de determinadas normas

jurídicas do que a sua estrutura lógica.

129 A hipótese pode ser ilustrada com o princípio da irretroatividade da lei penal. Nossa Constituição oagasalha no art. 5º, XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Não há dúvida de que, sob oaspecto lógico, estamos diante de uma regra: a lei penal não poderá ter efeito retroativo. A única exceção estáali expressamente prevista: para beneficiar o réu. Portanto, dada a ocorrência do pressuposto fático traçadopela hipótese de incidência constitucional (qual seja, a promulgação de uma lei penal), ela não pode terefeitos retroativos, salvo em benefício do réu. A aplicação da norma é, claramente, feita em termos de tudo-ou-nada.130 Aliás, é possível afirmar que esses valores, exatamente por se apresentarem já consolidados e enraizadosna cultura de nosso povo, é que puderam ser vazados em regras, que incidirão inapelavelmente – e não namaior medida possível – quando verificada a hipótese fática nelas descrita. Quando não existe, na esferapolítica, esse consenso, a tendência é a que o compromisso possível realizado entre as diversas correntes depensamento existentes na sociedade seja vazado na Constituição por meio de normas mais genéricas, demenor densidade e, portanto, com menor ímpeto de aplicação.

51

É mister, pois, que – sem desprezar as profundas evoluções desencadeadas pela

descoberta da diferenciação lógica entre as espécies normativas – não se perca de vista a

vinculação entre princípios e valores, agora não mais como forma de aplacar-lhes a

eficácia, hodiernamente reconhecida por todos, mas sim de vincular-lhes a interpretação

aos anseios sociais subjacentes ao Texto Constitucional.

Nesse sentido, merece transcrição a lição de Walter Claudius Rothenburg:

Se os princípios têm suas propriedades, diferenciando-se por sua natureza(qualitativamente) dos demais preceitos jurídicos, a distinção está em queconstituem eles “expressão primeira” dos “valores fundamentais” expressos peloordenamento jurídico, “informando materialmente” as demais normas(fornecendo-lhes a inspiração para o recheio)131.

Para os limites do presente trabalho, portanto, os princípios são definidos como as

normas fundamentais de dado sistema. No que se refere ao sistema constitucional, seus

princípios são normas axiologicamente superiores, fruto da internalização de conceitos

extrajurídicos. São, portanto, os valores adotados pela Constituição132.

A vinculação entre princípios e valores, bem como a função normogenética e a

eficácia interpretativa que daí irradiam, acabam por fundamentar outra afirmação de

destacada importância: a supremacia funcional dos princípios no interior do sistema

constitucional.

Destarte, não se pode afirmar a existência de uma autêntica hierarquia entre os

princípios e regras constitucionais – com exceção, obviamente, das clamadas cláusulas

pétreas, que, quer veiculem autênticos princípios, quer se refiram apenas a regras

131 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. 2. tir. Porto Alegre: Sergio Antonio FabrisEditor, 2003. p. 16.132 A adoção desse critério para estremar as regras dos princípios não denota, como dito, qualquer juízo devalor sobre a distinção qualitativa defendida por Alexy e Dworkin. Apenas significa que, para os limites dopresente trabalho, a premissa adotada e sobre a qual todas as demais considerações estarão estruturadas é aidentificação dos princípios como valores internalizados pela Constituição. Busca-se, assim, um mínimo decoerência metodológica. Como diz Virgílio Afonso da Silva: “[...] não há que se falar em classificação maisou menos adequada, ou, o que é pior, em classificação mais ou menos moderna. Classificações ou sãocoerentes e metodologicamente sólidas, ou são contraditórias – quando, por exemplo, são misturados diversos

52

constitucionais, estão alçadas a uma condição superior. Salvo esse caso excepcional, os

princípios e as regras fazem, ambos, parte da Lei Maior, e devem ter suas inter-relações

traçadas tendo em vista a manutenção da unidade da Constituição.

Apesar de se situarem no mesmo nível hierárquico, os princípios e as regras

possuem funções diversas, sobretudo em matéria de interpretação constitucional. É

possível, portanto, sob a estrita ótica da hermenêutica constitucional, estabelecer uma

escala de importância das normas constitucionais no que se refere à tarefa interpretativa,

âmbito no qual os princípios têm inegável supremacia. Nesse sentido:

Fica claro, pois, que, nada obstante as singularidades que cercam os princípiosdas regras, aqueles não se colocam, na verdade, além ou acima destas.Juntamente com as regras, fazem os princípios parte do ordenamento jurídico. Oque nos leva a concluir que todas as normas apresentam o mesmo nívelhierárquico. Ainda assim, contudo, é possível identificar o fato de que certasnormas, as principiológicas, na medida em que perdem o seu caráter de precisãode conteúdo, isto é, perdem densidade semântica, ascendem para uma posiçãoque lhes permite sobrepairar uma área muito mais ampla. O que elas perdem,pois, em carga normativa ganham como força valorativa a espraiar-se por cimade um sem-número de outras normas. No fundo, são normas tanto as queencerram princípios quanto as que encerram preceitos133.

A interpretação constitucional, portanto, resta absolutamente vinculada pelos

princípios. Os princípios estabelecidos pela Constituição, por conseguinte, vinculam tanto

a interpretação do próprio Texto Constitucional como a da legislação inferior, que nele está

baseada.

Nessa mesma linha, ressaltando a função de vetor interpretativo dos princípios

constitucionais, encontramos a lição de Luís Roberto Barroso: “Os princípios

constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica,

irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem

percorridos”134.

De forma enfática, escreve Carlos Ari Sundfeld:

critérios distintivos – e, por isso, pouco ou nada úteis” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras:mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista cit., p. 614 – grifos do original).133 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 75-6.134 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, cit., p. 143

53

Quanto à função dos princípios na interpretação das regras, pode-se dizer que:

a) É incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar contradição, explícitaou velada, com os princípios;

b) Quando a regra admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece aque melhor se afinar com os princípios;

c) Quando a regra tiver sido redigida de modo tal que resulte mais extensa oumais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva,respectivamente, para calibrar o alcance da regra com o do princípio135.

Descortinar os princípios estabelecidos pelo Texto Constitucional é, destarte, dar

um passo decisivo na direção da interpretação constitucional mais adequada.

4. Direito de propriedade e função social

4.1 A evolução do direito de propriedade

A propriedade privada, sobretudo após o influxo das idéias iluministas, que

culminaram com a eclosão da Revolução Francesa, costumava ser encarada como direito

absoluto e sagrado, diante do qual todos os outros deveriam envergar-se. Entretanto, é

equivocado afirmar que a propriedade, até mesmo em seus mais remotos tempos, não tenha

tido qualquer limite jurídico.

De início, ressalte-se que a idéia de direito, por si só, implica a de limitação: as

normas jurídicas, ao se ocuparem de determinado fato social, naturalmente traçam limites à

atuação humana, exatamente para, por meio da restrição da liberdade individual, garantir a

existência dos direitos. Como observa Celso Ribeiro Bastos,

O direito de propriedade sempre foi assegurado na civilização ocidental, tendoseu apogeu na época da Revolução Francesa. Mas mesmo aí, não se pode dizerque era absoluto, totalmente isento de limites. Essa ausência de limites é estranhaao próprio conceito de direito, que, por natureza, é limitado136.

135 SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., p. 141-2.136 BASTOS, Celso Ribeiro. A função social da propriedade. Revista da Procuradoria Geral do Estado deSão Paulo, nº 25/26, jan./dez. 1986. p. 67-8.

54

Em segundo lugar, convém ter em mente que a idéia de propriedade pode ser – e

freqüentemente é – diversa do perfil que determinado sistema jurídico lhe dá. São coisas

diversas: a) a concepção filosófica de propriedade e b) o reconhecimento, concreto, do

direito de propriedade em um sistema jurídico. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Convém desde logo observar que não se deve confundir liberdade e propriedadecom direito de liberdade e direito de propriedade. Estes últimos são as expressõesdaqueles, porém, tal como admitidos em um dado sistema normativo137.

Sendo o Direito um sistema de promoção da convivência social, e implicando tal

convivência, necessariamente, a redução da esfera de liberdade dos indivíduos, podemos

afirmar que conceber o direito de propriedade como absoluto é incompatível com a idéia

mesma de direito.

A análise das transformações operadas no conceito de propriedade durante a

evolução da humanidade oferece um quadro bem definido das decisivas influências

históricas que incidiram sobre a caracterização do direito de propriedade nos mais diversos

ordenamentos.

Como ensina Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira, por ser um fato antes de ser um

direito, a propriedade está presente desde os mais remotos tempos. Nas tribos primitivas

havia apenas a propriedade privada dos utensílios pessoais. Com o fim do nomadismo e a

fixação dos homens em uma base territorial determinada, surgiu a propriedade coletiva da

terra cultivada pela comunidade. Esse cultivo passou a ser, com o decorrer do tempo,

realizado pela família ou por grupos familiares, originando a propriedade familial, na qual

pela primeira vez se esboçou a diferença entre a propriedade coletiva (da tribo) e a

137 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre o poder de polícia. Revista de DireitoPúblico, São Paulo, v. 3, nº 99, 1969, p. 55 – grifos do original.

55

particular (da família). A idéia de propriedade privada, assim lentamente construída,

chegou à Antigüidade Clássica, quando foi conhecida por todos os povos138.

A passagem da propriedade coletiva à propriedade individual também foi

decisivamente influenciada pela transformação da comunidade gentílica em comunidade

política territorial, já que o Estado, a fim de manter sua hegemonia no seio social, evita a

valorização de grupos sociais que com ele rivalizam, preferindo fortalecer o indivíduo

singularmente139.

O caráter absoluto do direito de propriedade, como já dito, nem sempre o

acompanhou, e já no pensamento aristotélico estava presente a idéia de que a apropriação

privada dos bens existia em função da satisfação das necessidades coletivas140.

Anota Raimundo Bezerra Falcão que o individualismo, na Grécia Antiga, restava

tolhido pelo caráter político da economia da Cidade-Estado, onde as atividades econômicas

e mercantis eram desempenhadas por escravos e estrangeiros, e a propriedade de ouro e

prata era proibida aos cidadãos gregos. Estes somente poderiam ser proprietários de quatro

lotes de terra, e o excedente que lhes viesse por herança retornaria ao Estado141.

Mesmo entre os romanos, desde a Lei das XII Tábuas estavam presentes algumas

restrições aos poderes do proprietário, motivadas pelo interesse público ou religioso. De

acordo com Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira, apesar de a propriedade se ter revestido,

nos primórdios do Direito Romano, de um exacerbado individualismo, as influências do

Direito Canônico e Costumeiro desencadearam alterações no domínio, que adquiriu feição

mais social no Império Justinianeu142.

138 PEREIRA, Rosalinda Pinto da Costa Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seusreflexos na acepção clássica de propriedade. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,São Paulo, v. 17, nº 65, jul./set. 1993, p. 105-106.139 MARTIGNETTI, Giuliano. Propriedade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO,Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 8. ed. Brasília: Editora Universidade deBrasília, 1995. v. 2. p. 1030.140 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 105.141 FALCÃO, Raimundo Bezerra. A função social da propriedade. Revista de Direito Público, São Paulo, v.14, nº 55/56, 1980, p. 309.142 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 106-7.

56

Adilson Abreu Dallari sublinha o caráter “sagrado” da propriedade em Roma,

dada ser ela derivada da religião, dos deuses lares. Mas adverte: “Mesmo nessa fase, o

direito de propriedade não era absoluto, sofria limitações, mesmo porque a idéia de poder

absoluto não se coaduna com a idéia de direito. Qualquer direito será sempre limitado”143 e 144.

Com a invasão bárbara e a queda do Império Romano do Ocidente, as concepções

romanas sobre o direito de propriedade sofreram influência da cultura bárbara,

eminentemente rural. Fortaleceu-se, assim, o poder do dono do solo, surgindo o modo de

produção que caracterizou o feudalismo: a soberania passou a ser exercida pelo

proprietário, confundindo-se a propriedade estatal com a particular. Desapareceu o caráter

exclusivista da propriedade, que se repartiu entre o domínio eminente do Estado, o

domínio direto do senhor feudal e o domínio útil do vassalo145. Resume Adilson Abreu

Dallari: “Quem cultivava a terra não era dono dela e quem detinha a propriedade não a

cultivava”146.

Nesse ambiente floresceram as idéias de São Tomás de Aquino, buscando edificar

uma reação à exploração do homem. Para São Tomás há um direito natural do homem à

apropriação privada de bens, necessário a sua sobrevivência. Entretanto, essa propriedade é

limitada pelo direito que todos têm a uma vida digna147. O filósofo atribui a Deus o

“principale dominium, o único domínio verdadeiramente absoluto, e condiciona, em geral,

o direito de propriedade à obrigação de colocar as próprias riquezas ao serviço dos pobres

e necessitados”148. A concepção tomista, todavia, não teve força suficiente para pautar a

noção liberal de propriedade, que viria a ser delineada nos séculos seguintes.

Com a ascensão da burguesia e a Revolução Francesa, que colocou o indivíduo no

centro do universo, o caráter individualista do direito de propriedade restou ainda mais

prestigiado, a ponto de o Código Civil francês de 1804 ter recebido a alcunha de “código

143 DALLARI, Adilson Abreu. Servidões administrativas. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 14, nº 59-60, 1981, p. 89.144 Para Sá Pereira, a deturpada visão trazida do Direito Romano resultou de um equívoco de tradução dosglosadores e pós-glosadores, que não sublinharam o fato de o abuso do direito de abusar configurar ato ilícito(Man. do Cód. Civil, VIII, p. 3. Apud SODRÉ, Ruy de Azevedo. Sodré, Função social da propriedadeprivada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 19--. p. 35).145 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 107-8.146 DALLARI, Adilson Abreu. Op. cit., p. 89.147 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 108.148 MARTIGNETTI, Giuliano. Op. cit., p. 1033.

57

da propriedade”, e de a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 elevar a

propriedade ao patamar de direito “sagrado e inviolável” (art. 17)149. O caráter

marcadamente individualista que caracterizou o período liberal, mais do que tudo, foi

decorrência natural da conjuntura política presente naquela época.

Com efeito, a classe burguesa do final do século XVIII buscava traçar limites

muito claros à ação estatal, substituindo a figura do "súdito" pela do "cidadão". A guarida

mais ampla possível da “propriedade privada”, destarte, era pedra de toque do regime que

se pretendia implantar. Era, ademais, encarada como verdadeiro instrumento da liberdade,

sobretudo a liberdade de iniciativa.

Mas também é inegável o fato de que o liberalismo não teve força suficiente para

trazer à humanidade o oásis prometido pela economia de mercado, acarretando, sobretudo

após a Revolução Industrial e os problemas dela advindos, uma crescente ação interventiva

do Estado, com o objetivo de impedir – ou pelo menos minorar – a dominação do

indivíduo por outros indivíduos.

A acentuada divisão do trabalho bem como os diversos reflexos outros daRevolução Industrial haveriam de revolver os princípios tradicionais, máximedepois de se haver chegado à conclusão de que os detentores da propriedade dosmeios de produção açambarcam também a mais-valia, munindo-se, destarte, deuma autoridade ou de um poder – para quem assim preferir – quase-público.Adquirem eles uma capacidade, às vezes desmesurada, de exercer influênciapolítica ou social150.

Nesse novo quadro, a oposição de limites mais estreitos ao direito de propriedade

foi um desdobramento natural.

Enquanto a consagração dos direitos individuais substancia uma defesa doindivíduo perante o Estado, a estatuição dos direitos sociais traduz uma defesado indivíduo perante a dominação econômica de outros indivíduos. Passaram,assim, a ser limitados os direitos individuais, atribuindo-se a alguns, funções

149 LEONETTI, Carlos Araújo. Função social da propriedade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 88, nº770, 1999, p. 730. O autor relembra, ainda, que a 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos da Américatambém consagra a propriedade privada, da qual ninguém poderá ser privado a não ser para uso público emediante justa compensação (Id., ibid.).150 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Op. cit., p. 311.

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sociais. Foi o que se verificou com o direito de propriedade, cuja expressão,agora, já não mais se cinge a um simples direito, mas a um direito-dever151.

Portanto, se com a Revolução Francesa o direito de propriedade foi prestigiado

como forma básica de proteção do indivíduo em face do Estado, prolongamento mesmo da

personalidade humana, com o intervencionismo estatal tudo mudou, passando a sobressair

um caráter social no direito de propriedade, até então obscurecido por sua concepção

marcadamente individualista.

Outro fator, também ligado à Revolução Industrial, que contribuiu decisivamente

para o amesquinhamento da concepção individualista do direito de propriedade foi o

fenômeno da urbanização, do que decorreu uma necessidade imperiosa de mecanismos de

intervenção estatal para frear o desenvolvimento irracional dos núcleos urbanos, cada vez

mais inchados.

O objeto imediato, portanto, de tal intervenção estatal não poderia ser outro senão

a propriedade urbana, ou, mais exatamente, as faculdades dadas pela lei àquele que detém

a posição jurídica de proprietário de um imóvel urbano.

As limitações impostas ao titular do domínio, ao longo do tempo, acabaram por

forjar uma nova concepção de propriedade, vista não mais como direito subjetivo, mas

agora como situação jurídica, na qual estão presentes não apenas as prerrogativas do

proprietário, mas igualmente suas sujeições. Como ensina José Diniz de Moraes:

Falar em propriedade é, em síntese, falar de uma “situação jurídica subjetivacomplexa”, compreensiva de poderes, faculdades, deveres jurídicos, obrigações,encargos, ônus e limitações; sendo o vetusto “direito subjetivo de propriedade”apenas uma situação jurídica de ocorrência possível, em casos particulares,inservível para designar a multiplicidade fenomenológica do direito depropriedade 152.

151 SOUZA, Junia Verna Ferreira de. Solo criado: um caminho para minorar os problemas urbanos. In:DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico - 2. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 147.152 MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo:Malheiros, 1999. p. 124.

59

A evolução do conceito de propriedade no campo jurídico sofreu decisiva

influência de Léon Duguit, por meio de sua concepção da propriedade como função.

Lecionava o Mestre:

Todo indivíduo tem obrigação de cumprir, na sociedade, uma certa função deacordo com o lugar que ocupa. Ora, o detentor da riqueza, por isso que detém ariqueza, pode cumprir uma função que somente ele pode cumprir. Só ele podeaumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação de necessidades gerais fazendovaler o capital que detém. Há, pois, para ele, uma obrigação de cumprir essatarefa e só será protegido socialmente se é nas medidas em que a cumpre. Apropriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário, mas “a função socialdo detentor da riqueza”153 e 154.

Hoje se pode afirmar que o regime jurídico da propriedade privada encarta tanto

normas de Direito Privado como normas de Direito Público155, que condicionam os

poderes do titular do domínio à consecução de finalidades coletivas156, como é muito bem

elucidado por Vladimir da Rocha França:

O regime jurídico da propriedade não se restringe às normas de direito civil,compreendendo sim todo um complexo de normas administrativas, ambientais,urbanísticas, empresariais e, evidentemente, civis, fundamentado nas normasconstitucionais. Cabe ao direito civil disciplinar as relações jurídicas civisdecorrentes do direito de propriedade 157.

153 DUGUIT, Léon. Principes de droit public. p. 38. Apud SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 69(atualizamos a redação).154 A concepção de Duguit, apesar de ter colaborado inegavelmente com a modernização da noção depropriedade, costuma ser reputada excessiva. Como anota Ruy de Azevedo Sodré: “A propriedade ‘tem’ umafunção social, tal seja o dever moral de auxiliar os indigentes e a obrigação cívica de satisfazer às justasexigências do Estado; ela, porém, ‘não é’ uma função social” (SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 29).155 Celso Antônio Bandeira de Mello afirma categoricamente que o direito de propriedade está inserido nodireito público, mais especificamente no direito constitucional. E justifica seu posicionamento afirmando:“Basta ver que dependendo do tratamento que for dispensado ao direito de propriedade um Estado serásocialista ou capitalista, com todas as implicações jurídicas daí decorrentes. Trata-se, portanto, de um direitonodular à caracterização político-social do Estado e, por isso, de todo o quadro jurídico da sociedade; logoum Direito Público, por excelência” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da funçãosocial da propriedade no Direito Público. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 20, nº 84, 1987, p. 39).156 É importante ressaltar, entretanto, como anota João Lopes Guimarães Júnior, que “a relativização dodireito de propriedade não decorreu de concessão generosa dos proprietários, mas para atender a situações deincontestável necessidade” (GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. Função social da propriedade. Revista deDireito Ambiental, São Paulo, v. 8, nº 29, jan./mar. 2003, p. 117).157 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista deInformação Legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 36, nº 141, jan./mar. 1999, p. 11.

60

As modificações sociais acima descritas, por óbvio, influíram decisivamente na

concepção jurídica da propriedade. Nem poderia ser diferente: o Direito é manifestação

cultural, sendo, portanto, constantemente mutável, como o é sua própria fonte, a sociedade.

A lição de Adilson Abreu Dallari merece ser reproduzida:

Onde houver um grupo social aí estará presente o direito: ubi societas ibi jus.Esta afirmação, de caráter axiomático, convida a uma meditação a respeito dasrepercussões no instrumental jurídico produzidas pelo aumento quantitativo epelas alterações qualitativas havidas nos grupamentos humanos em geral e nasociedade humana como um todo. [...]

Portanto, parece também axiomática a afirmação de que o direito acompanha asmutações sociais e, dado o caráter dinâmico da sociedade humana, o direitojamais será algo estático, jamais poderá ser uma obra completa, acabada econsolidada, pois é, na verdade, um processo e não um ser158.

A concepção da função social da propriedade foi a resposta do mundo do direito

às intensas modificações sociais então havidas por força da Revolução Industrial.

A redução do campo reservado ao domínio privado, aos poderes do proprietário, é

decorrência da própria evolução do Estado, e de seu crescente grau de intervencionismo,

objetivando exatamente frear os comportamentos particulares anti-sociais. Portanto, numa

sociedade em que se busca cercear e dirigir o comportamento livre dos grupos econômicos

privados no modelo capitalista, é perfeitamente natural que o Estado seja eleito para balizar

tais comportamentos, e tal intervenção não pode deixar de influir decisivamente sobre a

propriedade privada, “cerne do modelo capitalista”159. “Surge, assim, o princípio da função

social da propriedade, representando um compromisso entre a ordem liberal e a ordem

socializante, de maneira a incorporar à primeira certos ingredientes da segunda”160.

158 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriação para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 1.159 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 2.160 Id., ibid.

61

4.2 A função social da propriedade em Textos Constitucionais da Europa

e da América Latina

4.2.1 Portugal

A Constituição portuguesa de 1976161 não se refere especificamente à função

social da propriedade em nenhum de seus preceitos. Garante a propriedade privada no art.

62º162 do “Título III – Direitos e deveres económicos, sociais e culturais” do “Capítulo I –

Direitos e deveres económicos”.

Ao tratar dos princípios gerais da organização econômica (Parte II, Título I), o

Texto Maior português determina, no art. 80º, que deve coexistir a propriedade pública,

privada e social dos bens de produção, além de afirmar a propriedade pública dos recursos

naturais e dos meios de produção quando o interesse coletivo assim o exigir (alíneas b e c).

Garante-se, outrossim, proteção especial ao setor cooperativo e social de propriedade dos

meios de produção (alínea f)163. O art. 82º define, especificamente, cada um dos setores de

propriedade dos bens de produção164.

161 Atualizada até a VII Revisão, realizada em 2005. Texto extraído de http://www.parlamento.pt/const_leg/crp_port/constpt2005.doc.Acesso em 5.1.2007.162 “Artigo 62.º (Direito de propriedade privada):1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termosda Constituição.2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante opagamento de justa indemnização.”163 “Artigo 80.º (Princípios fundamentais):A organização económico-social assenta nos seguintes princípios: [...]b) Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dosmeios de produção; [...]d) Propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo; [...]f) Protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;”164 “Artigo 82.º (Sectores de propriedade dos meios de produção):

62

A coexistência dos setores público, privado e social de apropriação dos bens de

produção é garantida até mesmo contra a revisão constitucional165, e a apropriação pública

dos meios de produção deve ser regulada pela lei, assegurada a devida indenização166. A

competência para tratar dessa matéria é reservada à Assembléia da República167, e o veto

presidencial quanto ao tema somente pode ser derrubado por maioria qualificada168.

A expropriação de bens sem utilização é prevista no art. 88º, que não faz menção

a indenização e relega à lei a fixação das condições em que se dará a perda da

propriedade169.

1. É garantida a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção.2. O sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado oua outras entidades públicas.3. O sector privado é constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoassingulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do disposto no número seguinte.4. O sector cooperativo e social compreende especificamente:a) Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos,sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública,justificadas pela sua especial natureza;b) Os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais;c) Os meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores;d) Os meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenhamcomo principal objectivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista.”165 “Artigo 288.º (Limites materiais da revisão):As leis de revisão constitucional terão de respeitar: [...]f) A coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dosmeios de produção;”166 “Artigo 83.º (Requisitos de apropriação pública):A lei determina os meios e as formas de intervenção e de apropriação pública dos meios de produção, bemcomo os critérios de fixação da correspondente indemnização.”167 “Artigo 165.º (Reserva relativa de competência legislativa):1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvoautorização ao Governo: [...]j) Definição dos sectores de propriedade dos meios de produção, incluindo a dos sectores básicos nos quaisseja vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza;”168 “Artigo 136.º (Promulgação e veto):1. No prazo de vinte dias contados da recepção de qualquer decreto da Assembleia da República para serpromulgado como lei, ou da publicação da decisão do Tribunal Constitucional que não se pronuncie pelainconstitucionalidade de norma dele constante, deve o Presidente da República promulgá-lo ou exercer odireito de veto, solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada.2. Se a Assembleia da República confirmar o voto por maioria absoluta dos Deputados em efectividade defunções, o Presidente da República deverá promulgar o diploma no prazo de oito dias a contar da suarecepção.3. Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioriaabsoluta dos Deputados em efectividade de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a formade lei orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias: [...]b) Limites entre o sector público, o sector privado e o sector cooperativo e social de propriedade dos meiosde produção;”169 “Artigo 88.º (Meios de produção em abandono)1. Os meios de produção em abandono podem ser expropriados em condições a fixar pela lei, que terá emdevida conta a situação específica da propriedade dos trabalhadores emigrantes.”

63

O Título III dispõe sobre as políticas agrícola, comercial e industrial. Estabelece o

art. 93º, entre os objetivos da política agrícola, a promoção do acesso à propriedade e posse

da terra pelos trabalhadores rurais170. Também ali são traçadas normas para a eliminação

do latifúndio (art. 94º)171 e do redimensionamento dos minifúndios (art. 95º)172.

4.2.2 Alemanha

A Lei Fundamental alemã de 1919, conhecida como Constituição de Weimar, foi

a primeira a adotar a concepção de que a propriedade, além de perfazer um tradicional

direito subjetivo, impunha obrigações a seu titular173.

Suas disposições sobre o tema foram repetidas, com ligeiras modificações de

redação, pela Constituição alemã de 1949, que estabelece a vinculação da propriedade ao

bem-estar geral (art. 14)174.

170 “Artigo 93.º (Objectivos da política agrícola):1. São objectivos da política agrícola: [...]b) Promover a melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos agricultores, odesenvolvimento do mundo rural, a racionalização das estruturas fundiárias, a modernização do tecidoempresarial e o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizadosna sua exploração por parte daqueles que a trabalham;”171 “Artigo 94.º (Eliminação dos latifúndios):1. O redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto devista dos objectivos da política agrícola será regulado por lei, que deverá prever, em caso de expropriação, odireito do proprietário à correspondente indemnização e à reserva de área suficiente para a viabilidade e aracionalidade da sua própria exploração.2. As terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenosagricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadoresrurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração por trabalhadores, sem prejuízo daestipulação de um período probatório da efectividade e da racionalidade da respectiva exploração antes daoutorga da propriedade plena.”172 “Artigo 95.º (Redimensionamento do minifúndio):Sem prejuízo do direito de propriedade, o Estado promoverá, nos termos da lei, o redimensionamento dasunidades de exploração agrícola com dimensão inferior à adequada do ponto de vista dos objectivos dapolítica agrícola, nomeadamente através de incentivos jurídicos, fiscais e creditícios à sua integraçãoestrutural ou meramente económica, designadamente cooperativa, ou por recurso a medidas deemparcelamento.”173 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 85,nº 732, out. 1996. p. 41: “A noção de que o uso da propriedade privada deveria também servir ao interesse dacoletividade foi, pela primeira vez, estabelecida na Constituição de Weimar de 1919. Em seu art. 153, últimaalínea, dispõe ela: ‘A propriedade obriga. Seu uso deve igualmente ser um serviço ao bem comum’”.174 “Artikel 14 [Eigentum, Erbrecht, Enteignung]

64

Como anota Fábio Konder Comparato, a Constituição alemã também inclui, no

art. 15, uma “norma de socialização da propriedade”:

O solo e as terras, as riquezas naturais e os meios de produção podem, com afinalidade de socialização, ser transformados em propriedade comum ou emoutras formas de economia comunitária, por meio de lei que regulará a espécie ea extensão da expropriação175.

Entretanto, observa o festejado Professor, “[...] até hoje esse dispositivo polêmico

permanece inaplicado”. A Corte Constitucional daquele país já afirmou que o mencionado

dispositivo não impõe a socialização da propriedade privada176. Além disso, na concepção

que impera na doutrina germânica, a norma constitucional não seria apta a justificar, sem

que lei expressa o faça, a expropriação ou utilização dos bens alheios, afirmação essa

frontalmente combatida pelo autor quando afirma que, sendo a propriedade um direito

fundamental, obriga com a mesma intensidade tanto o Poder Público quanto os

particulares. Portanto – finaliza ele –, na experiência germânica a simples afirmação do

princípio da função social da propriedade, “sem maiores especificações e

desdobramentos”, revelou-se falha177.

(1) Das Eigentum und das Erbrecht werden gewährleistet. Inhalt und Schranken werden durch die Gesetzebestimmt.(2) Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich dem Wohle der Allgemeinheit dienen.(3) Eine Enteignung ist nur zum Wohle der Allgemeinheit zulässig. Sie darf nur durch Gesetz oder auf Grundeines Gesetzes erfolgen, das Art und Ausmaß der Entschädigung regelt. Die Entschädigung ist untergerechter Abwägung der Interessen der Allgemeinheit und der Beteiligten zu bestimmen. Wegen der Höheder Entschädigung steht im Streitfalle der Rechtsweg vor den ordentlichen Gerichten offen” (texto extraídode http://www.jura.uni-sb.de/BIJUS/grundgesetz/, acesso em 18.12.2006).Em língua portuguesa:“Artigo 14 [Propriedade, direito de sucessão, desapropriação](1) Serão garantidos a propriedade e o direito de sucessão. Seu conteúdo e limites serão definidos por lei.(2) A propriedade pressupõe obrigações. Seu uso deverá servir também ao bem comum.(3) Só se admitirá a desapropriação em vista do bem comum. Ela só poderá ser efetuada por uma lei ou emvirtude de uma lei que estabeleça a natureza e a extensão da indenização. A indenização deverá ser calculadalevando-se em conta, de forma eqüitativa, os interesses da comunidade e os das partes afetadas. Litígiosconcernentes ao montante da indenização serão dirimidos pelo Juízo ordinário” (Tradução disponível no sítioda embaixada alemã em Brasília, http://www.brasilia.diplo.de/Vertretung/brasilia/pt/03/Constituicao/indice_20geral.htm, acesso em19.12.2006).175 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 42.176 Id., ibid.177 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista cit., p. 75-6 e 79.

65

4.2.3 Itália

A Constituição italiana de 1948, de forma inovadora, deslocou as disposições

sobre a propriedade para os tópicos relativos à economia (arts. 41 a 44), contribuindo para

superar o vezo privatista que caracterizava o instituto. Seu art. 42, que emprega

expressamente a locução função social da propriedade, dispõe:

A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, aentidades privadas ou às pessoas.

A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina asformas de aquisição, de sua posse e os limites que asseguram sua função social ede torná-la acessível para todos.

A propriedade privada pode ser, nos casos previstos pela lei, e salvo indenização,expropriada por motivos de interesse geral.

A lei estabelece as normas e os limites da sucessão legítima e testamentária e osdireitos do Estado sobre a herança178.

O Texto acaba por utilizar-se da expressão “limites que asseguram sua função

social”, que acabou por redundar numa restrição. Como esclarece Fábio Konder

Comparato, o dispositivo da Constituição italiana “é bastante claro ao reduzir a função

social à existência de certas restrições quanto ao uso dos bens próprios”, o que “tornou

vazias e inconseqüentes todas as tentativas doutrinárias para alargar o alcance da norma no

sentido de deveres positivos do proprietário perante a coletividade”179.

O art. 44 estabelece a possibilidade de imposição legal de obrigações e vínculos à

propriedade imobiliária, fazendo expressa menção ao latifúndio. In verbis:

178 Texto extraído de http://www.senado.gov.br. Acesso em 18.12.2006. No original: “Art. 42. La proprietà èpubblica o privata. I beni economici appartengono allo Stato, ad enti o a privati.La proprietà privata è riconosciuta e garantita dalla legge, che ne determina i modi di acquisto, di godimentoe i limiti allo scopo di assicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile a tutti.La proprietà privata può essere, nei casi preveduti dalla legge, e salvo indennizzo, espropriata per motivid’interesse generale.La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione legittima e testamentaria e i diritti dello Stato sulleeredità” (disponível em: http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf. Acesso em 19.12.2006).179 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 42.

66

Art. 44. Para conseguir a exploração racional do solo e estabelecer équosrelacionamentos sociais, a Lei impõe obrigações e vínculos à propriedadeprivada da terra, fixa limites para sua extensão segundo as regiões e as zonasagrárias e promove e impõe o saneamento das terras, a transformação dolatifúndio e a reconstituição das unidades produtivas; ajuda a pequena e a médiapropriedade. A Lei providencia medidas a favor das zonas montanhosas180.

4.2.4 México

A Constituição mexicana de 1917 também alberga dispositivos que traduzem a

adoção da função social da propriedade naquele sistema. Trata-se, ademais, de verdadeira

socialização da propriedade, tendo em conta a intensidade das restrições impostas ao

direito em benefício da coletividade.

Estabelece seu art. 27 a propriedade originária da Nação sobre todas as terras e

águas, bem como o direito, conferido ao Estado, de impor as restrições necessárias ao

domínio particular, em benefício social das populações urbanas e rurais181. O inciso VI do

mesmo artigo prevê a ocupação da propriedade privada pelos entes estatais, determinando

180 Tradução extraída de http://pinoulivi.com/verpor/costitu2_2c.htm. Acesso em 19.12.2006. No original:“Art. 44. Al fine di conseguire il razionale sfruttamento del suolo e di stabilire equi rapporti sociali, la leggeimpone obblighi e vincoli alla proprietà terriera privata, fissa limiti alla sua estensione secondo le regioni e lezone agrarie, promuove ed impone la bonifica delle terre, la trasformazione del latifondo e la ricostituzionedelle unità produttive; aiuta la piccola e la media proprietà. La legge dispone provvedimenti a favore dellezone montane” (disponível em: http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf. Acesso em19.12.2006).181 “Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del territorionacional, corresponden originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de trasmitir eldominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada. Las expropiaciones sólo podránhacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización.La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte elinterés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturalessusceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar desu conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de lapoblación rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientoshumanos y establecer adecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto deejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento y crecimiento de loscentros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de loslatifundios; para disponer, en los términos de la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva delos ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura,de la ganadería, de la silvicultura y de las demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar ladestrucción de los elementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad”(texto extraído de http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/doc/1.doc. Acesso em 19.12.2006).

67

que a indenização se faça segundo o valor venal do bem que tenha servido como base de

cálculo dos tributos sem oposição do proprietário182.

O latifúndio é expressamente proibido no inciso XV, que também define a

pequena propriedade, utilizada para a agricultura ou a pecuária. No inciso seguinte é

estabelecida uma forma de fracionamento e alienação compulsória da área que exceda à

pequena propriedade rural183.

4.2.5 Espanha

182 “VI. Los estados y el Distrito Federal, lo mismo que los municipios de toda la República, tendrán plenacapacidad para adquirir y poseer todos los bienes raíces necesarios para los servicios públicos.Las leyes de la Federación y de los Estados en sus respectivas jurisdicciones, determinarán los casos en quesea de utilidad pública la ocupación de la propiedad privada, y de acuerdo con dichas leyes la autoridadadministrativa hará la declaración correspondiente. El precio que se fijará como indemnización a la cosaexpropiada, se basará en la cantidad que como valor fiscal de ella figure en las oficinas cadastrales orecaudadoras, ya sea que este valor haya sido manifestado por el propietario o simplemente aceptado por élde un modo tácito por haber pagado sus contribuciones con esta base. El exceso de valor o el demérito quehaya tenido la propiedad particular por las mejoras o deterioros ocurridos con posterioridad a la fecha de laasignación del valor fiscal, será lo único que deberá quedar sujeto a juicio pericial y resolución judicial. Estomismo se observará cuando se trate de objetos cuyo valor no esté fijado en las oficinas rentísticas” (textoextraído de http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/doc/1.doc. Acesso em 19.12.2006).183 “XV. En los Estados Unidos Mexicanos quedan prohibidos los latifundios.Se considera pequeña propiedad agrícola la que no exceda por individuo de cien hectáreas de riego ohumedad de primera o sus equivalentes en otras clases de tierras.Para los efectos de la equivalencia se computará una hectárea de riego por dos de temporal, por cuatro deagostadero de buena calidad y por ocho de bosque, monte o agostadero en terrenos áridos.Se considerará, asimismo, como pequeña propiedad, la superficie que no exceda por individuo de cientocincuenta hectáreas cuando las tierras se dediquen al cultivo de algodón, si reciben riego; y de trescientas,cuando se destinen al cultivo de plátano, caña de azúcar, café, henequén, hule, palma, vid, olivo, quina,vainilla, cacao, agave, nopal o árboles frutales.Se considerará pequeña propiedad ganadera la que no exceda por individuo la superficie necesaria paramantener hasta quinientas cabezas de ganado mayor o su equivalente en ganado menor, en los términos quefije la ley, de acuerdo con la capacidad forrajera de los terrenos.Cuando debido a obras de riego, drenaje o cualesquier otras ejecutadas por los dueños o poseedores de unapequeña propiedad se hubiese mejorado la calidad de sus tierras, seguirá siendo considerada como pequeñapropiedad, aun cuando, en virtud de la mejoría obtenida, se rebasen los máximos señalados por esta fracción,siempre que se reúnan los requisitos que fije la ley.Cuando dentro de una pequeña propiedad ganadera se realicen mejoras en sus tierras y éstas se destinen ausos agrícolas, la superficie utilizada para este fin no podrá exceder, según el caso, los límites a que serefieren los párrafos segundo y tercero de esta fracción que correspondan a la calidad que hubieren tenidodichas tierras antes de la mejora;”“XVII. El Congreso de la Unión y las legislaturas de los estados, en sus respectivas jurisdicciones, expediránleyes que establezcan los procedimientos para el fraccionamiento y enajenación de las extensiones quellegaren a exceder los límites señalados en las fracciones IV y XV de este artículo.El excedente deberá ser fraccionado y enajenado por el propietario dentro del plazo de un año contado apartir de la notificación correspondiente. Si transcurrido el plazo el excedente no se ha enajenado, la ventadeberá hacerse mediante pública almoneda. En igualdad de condiciones, se respetará el derecho de

68

A Constituição espanhola trata da função social da propriedade em seus arts. 33 e

47, o primeiro relativo aos “Derechos y Deberes de los Ciudadanos” e o segundo a “Los

Principios Rectores de la Política Social y Económica”184. O primeiro deles faz menção

expressa à função social.

Observa Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira, no que diz respeito ao Direito

Agrário, que o ordenamento espanhol é norteado pela função social da propriedade. Esta é

vista tanto como propriedade-direito como quanto propriedade-obrigação, na qual

sobressai sua funcionalidade185.

Entretanto, da mesma forma que na Itália, o Texto Maior espanhol,

[...] embora usando de expressão mais contida, tampouco conseguiu dar à funçãosocial da propriedade privada outro alcance que não o da legitimidade doestabelecimento de restrições legais ao seu uso. Lá, também, os autores seesforçam em vão para descobrir algum sentido de deveres positivos impostos aosproprietários, na norma constitucional186.

4.2.6 Argentina

A expressão “função social” não está presente no Texto Maior argentino, embora

conste de todas as Constituições provinciais elaboradas a partir de 1957187.

preferencia que prevea la ley reglamentaria” (texto extraído dehttp://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/doc/1.doc. Acesso em 19.12.2006).184 “Artículo 33:1. Se reconoce el derecho a la propiedad privada y a la herencia.2. La función social de estos derechos delimitará su contenido, de acuerdo con las leyes.3. Nadie podrá ser privado de sus bienes y derechos sino por causa justificada de utilidad pública o interéssocial, mediante la correspondiente indemnización y de conformidad con lo dispuesto por las leyes.”“Artículo 47:Todos los españoles tienen derecho a disfrutar de una vivienda digna y adecuada. Los poderes públicospromoverán las condiciones necesarias y establecerán las normas pertinentes para hacer efectivo estederecho, regulando la utilización del suelo de acuerdo con el interés general para impedir la especulación. Lacomunidad participará en las plusvalías que genere la acción urbanística de los entes públicos” (disponívelem: http://www.congreso.es/funciones/constitucion/indice.htm. Acesso em 19.12.2006).185 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 111.186 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 42.187 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 112.

69

A propriedade encontra-se regulada nos arts. 14 e 17 dessa Constituição, que

assim dispõem:

Art. 14. Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechosconforme a las leyes que reglamenten su ejercicio; a saber: de trabajar y ejercertoda industria lícita; de navegar y comerciar; de peticionar a las autoridades; deentrar, permanecer, transitar y salir del territorio argentino; de publicar sus ideaspor la prensa sin censura previa; de usar y disponer de su propiedad; de asociarsecon fines útiles; de profesar libremente su culto; de enseñar y aprender.

Art. 17. La propiedad es inviolable, y ningún habitante de la Nación puede serprivado de ella, sino en virtud de sentencia fundada en ley. La expropiación porcausa de utilidad pública, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada.Sólo el Congreso impone las contribuciones que se expresan en el artículo 4º.Ningún servicio personal es exigible, sino en virtud de ley o de sentenciafundada en ley. Todo autor o inventor es propietario exclusivo de su obra,invento o descubrimiento, por el término que le acuerde la ley. La confiscaciónde bienes queda borrada para siempre del Código Penal argentino. Ningúncuerpo armado puede hacer requisiciones, ni exigir auxilios de ningunaespecie188.

4.2.7 Chile

A Constituição vigente no Chile, que foi promulgada em 8 de agosto de 1980 e

que atualizou a Constituição de 1925, trata do direito de propriedade em seu Capítulo III,

denominado “De los derechos y deberes constitucionales”. No art. 19, nº 24, a função

social da propriedade encontra-se estabelecida nos seguintes termos:

Artículo 19. La Constitución asegura a todas las personas: [...]

24º – El derecho de propiedad en sus diversas especies sobre toda clase de bienescorporales o incorporales.

Sólo la ley puede establecer el modo de adquirir la propiedad, de usar, gozar ydisponer de ella y las limitaciones y obligaciones que deriven de su funciónsocial. Esta comprende cuanto exijan los intereses generales de la Nación, laseguridad nacional, la utilidad y la salubridad públicas y la conservación delpatrimonio ambiental189.

188 Disponível em: www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php. Acesso em 19.12.2006.189 Atualizada até a Lei nº 20.050, de 2005. Texto extraído de http://www.camara.cl/legis/masinfo/m6.htm.Acesso em 19.12.2006.

70

4.2.8 Análise do Direito comparado

De todos os Textos Constitucionais apresentados, pode-se inferir a existência de

três formas diversas de disciplina do direito de propriedade, que oscilam entre dois limites

extremos: o socialismo e o capitalismo.

Em Constituições como a da Argentina e a de Portugal, a preocupação central está

em garantir o direito de propriedade. Apenas se prevê a possibilidade de desapropriação

por utilidade pública, sem haver sequer menção ao interesse social como motivo plausível

para a expropriação de bens particulares. Enfatiza-se, outrossim, a necessidade de justa

indenização, muitas vezes colocada como exigência prévia ao desapossamento e submetida

ao controle do Poder Judiciário.

A maior parte das Constituições apresentadas busca amenizar o sistema capitalista

– que adotam – com a imposição de limites ou obrigações ao proprietário. Assim, os

Textos Constitucionais da Alemanha, Itália, Espanha e Chile, que, ainda que com discursos

diversos, consideram a propriedade como sujeita a vínculos e obrigações em prol do

interesse social, e a encaram como bem de produção, um fator econômico de máxima

importância, que exige uma disciplina que transcenda a visão individualista que

acompanhou o instituto durante muito tempo.

Por fim, a Constituição mexicana coloca-se numa terceira e mais incisiva posição

no tocante à disciplina da propriedade privada, impondo grandes restrições aos poderes

tradicionalmente tidos como “inerentes ao domínio”, que culminam até mesmo com a

“alienação compulsória” de áreas resultantes do fracionamento obrigatório dos latifúndios

– estes proibidos expressamente. Os vínculos impostos são tão incisivos que, como já dito,

aproximam-na da concepção socialista de propriedade, dada a gama de imposições que “a

Nação” pode infligir à propriedade privada com o fim de “fazer uma distribuição eqüitativa

da riqueza pública” e “melhorar as condições de vida da população rural e urbana”.

71

4.3 A função social da propriedade no Direito brasileiro pré-1988190

Já de início se pode afirmar, como faz Adilson Abreu Dallari, que “desde o seu

surgimento como estado soberano, após a independência, o Brasil acolheu e garantiu, a

nível constitucional, o direito de propriedade”191. Em todas as Constituições brasileiras,

portanto, a disciplina da propriedade esteve presente, e com sua natural antítese: a previsão

da possibilidade de desapropriação. Mas a função social da propriedade só alcançou

menção expressa na Constituição de 1967.

Na época do descobrimento do Brasil, vigorava em Portugal a Lei Régia de 16 de

junho de 1375, que veiculava o regime de sesmarias, para cá transplantado. Por não ter tal

regime conseguido impulsionar a ocupação do território, povoadores começaram a ocupar,

sem título legal, as terras concedidas e não utilizadas. As povoações acabaram por tornar-

se produtivas, e, por meio do Alvará de 5 de outubro de 1795, a Coroa pretendeu

regularizar a situação daqueles posseiros. O regime de sesmarias foi extinto com a

Resolução de 17 de julho de 1822, e a independência brasileira ocorreu sob uma estrutura

agrária indefinida e problemática192.

Lima Stefanini e Fernando P. Sodero identificam no regime de sesmarias o germe

da função social da propriedade, já que a concessão de terras implicava a obrigação de

cultivo ou criação193. De notar, entretanto, que não havia em tais normas, nem na

legislação imediatamente posterior194, o ideal de justiça distributiva que se reputa presente

190 Todos os Textos Constitucionais brasileiros aqui utilizados foram extraídos do sítiohttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/principal.htm. Acesso em 19.12.2006.191 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriação para fins urbanísticos, cit., p. 33.192 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 314-8.193 STEFANINI, Lima. A desapropriação no Direito Agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 86;SODERO, Fernando P. O Estatuto da Terra. Brasília: Fundação Petrônio Portela, 1982 (Curso de DireitoAgrário 2). p. 27. Apud PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 114-5.194 V., infra, Lei imperial nº 601/1850 e seu Regulamento, nº 1.318/1854.

72

no conceito de função social da propriedade. Buscava-se apenas o adequado

aproveitamento das terras195.

A falta de efetividade da legislação, entretanto, acabou por comprometer

completamente o modelo edificado: “A terra perdeu a sua conotação social e foi se

incorporando em nossa cultura como um bem puramente patrimonial”196.

Conforme anota José Diniz de Moraes, as Constituições brasileiras de 1824 e

1891 se limitaram a garantir o direito de propriedade e a estabelecer a possibilidade de

desapropriação por necessidade ou utilidade social, nada dispondo acerca da função social

do domínio, cuja compreensão ainda estava atrelada ao individualismo que caracterizava a

ideologia liberal197.

A Constituição imperial garantia o direito de propriedade no art. 179, XXII, in

verbis:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos CidadãosBrazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade,é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: [...]

XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bempublico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade doCidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará oscasos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinara indemnisação.

Segundo observa Ruy de Azevedo Sodré, na Carta do Império a propriedade era

garantida em toda a sua plenitude, assegurando-se ao proprietário prévia indenização caso

o interesse público determinasse a desapropriação. Essa era a única exceção, prevista no

art. 179, § 22198.

195 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no DireitoPúblico. Revista cit., p. 43.196 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 115.197 MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 38-42.198 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 39. No mesmo sentido, MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 56.

73

Para Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira, “[...] a Constituição de 1824, protegendo

o interesse dos grandes latifúndios, solidificava o latifúndio improdutivo, garantindo a

propriedade privada em toda sua plenitude” 199.

A Lei de 9 de setembro de 1826, a Lei nº 57, de 18 de março de 1836, e o Decreto

nº 353, de 12 de julho de 1845, buscaram viabilizar o disposto no art. 179, XXII,

distinguindo necessidade e utilidade pública200.

Ainda durante a vigência da Carta Imperial foi editada a Lei nº 601, de 1850,

primeiro diploma legal de nossa história a debruçar-se sobre a questão agrária. Como

leciona Ricardo Pereira Lira, a lei tinha por objetivos básicos vedar a apropriação de terras

devolutas, exceto por regular compra e venda; contemplar os detentores de sesmarias e

demais outros tipos de concessões de terras com títulos dominiais; e garantir a legitimação

da posse de terras devolutas em ocupações preexistentes. Regulamentada pelo Decreto nº

1.318, de 30 de janeiro de 1854, teve sua efetividade seriamente comprometida pelo

sistema de venda de terras devolutas em hasta pública e à vista, o que impediu o acesso dos

pequenos e médios agricultores à propriedade rural201. A Lei de Terras acabou por

[...] compor, no plano jurídico, a nova relação imposta pelo modo de produçãopara impedir, num momento historicamente importante de ascensão capitalista, oacesso do trabalhador sem recursos a terra, pois submeteu a aquisição das terrasdevolutas à compra-e-venda, o que economicamente significava destinar a terra aquem tivesse dinheiro para comprá-la202.

Da mesma forma que a Carta Imperial, a Constituição da República dos Estados

Unidos do Brasil, de 1891, manteve o direito de propriedade em sua integralidade,

prevendo apenas a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública,

com prévia indenização. Eis a redação do art. 72, § 17, in verbis:

199 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 115 (grifos do original).200 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos, cit., p. 34.201 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 318-20.202 BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Solo urbano. Apoio Jurídico Popular/FASE, 1986. p. 4. Apud SAULEJÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do Direito Urbanístico brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio FabrisEditor, 1997. p. 56.

74

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no Paísa inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e àpropriedade, nos termos seguintes: [...]

§ 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva adesapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenizaçãoprévia.

Durante sua vigência, o Código Civil de 1916 trouxe importantes contribuições

para o amadurecimento do conceito de propriedade, estabelecendo restrições aos poderes

do proprietário, tais como as hipóteses de usucapião, de desapropriação, de direitos de

vizinhança, de posturas municipais etc. Inovou, aliás, de forma inconstitucional, ao prever

o uso da propriedade, mediante indenização a posteriori, nos casos de sítio ou guerra203.

Sobre a disciplina da propriedade agrária na Velha República, resume Ricardo

Pereira Lira: “Podemos afirmar, sem receito de equívocos, que o segmento rural da

sociedade brasileira, no que concerne à estrutura da propriedade agrária, permaneceu

essencialmente o mesmo, ao longo de toda a velha república”, caracterizada pela

concentração das áreas rurais nas mãos de poucos proprietários – “herança direta do

período colonial”204.

Para Maria Coeli Simões Pires, pouca diferença há entre a disciplina da

propriedade nas Cartas de 1824 e 1891. Esta última apresentou inclusive redação mais

incisiva quanto à proteção do direito, “em toda sua plenitude”. Destaca-se, outrossim, na

disciplina de 1891, a extensão do direito de propriedade aos estrangeiros e a previsão

constitucional da desapropriação – que já era tratada no Texto anterior, mas “numa

formulação imprecisa, que deferia ao legislador ordinário a disciplina do uso e emprego da

propriedade do cidadão” 205.

Com a Carta de 1934, inspirada nas idéias veiculadas pela Constituição de

Weimar, buscou-se pela primeira vez condicionar a atividade do proprietário, impondo-lhe

um limite: o exercício do direito de propriedade não poderia contrariar o interesse social ou

203 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 40-1.204 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 320.

75

coletivo. A desapropriação também foi prevista, por necessidade ou utilidade pública. Nos

debates constituintes, a idéia de função social da propriedade esteve presente em muitos

momentos, conforme noticia Ruy de Azevedo Sodré206. Como frisa Ricardo Pereira Lira,

naquele Texto estava presente o embrião da função social da propriedade em nossa história

constitucional207.

Em seu art. 113, nº 17, assim dispunha o Texto Constitucional de 1934:

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no Paísa inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, àsegurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

17. É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra ointeresse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação pornecessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia ejusta indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoçãointestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular atéonde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.

Ainda que a expressão “função social” não houvesse sido literalmente utilizada,

ali estava presente a semente do instituto, pelas menções ao interesse social ou coletivo.

A Carta de 1937, outorgada em regime ditatorial, relegou à lei ordinária a

imposição de limites ao direito de propriedade, que estava nela garantido, com a ressalva

da desapropriação por necessidade ou utilidade pública. Seu art. 122, item 14, tinha a

seguinte redação:

Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes noPaís o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termosseguintes: [...]

14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidadepública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão osdefinidos nas leis que lhe regularem o exercício;

205 PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 241(grifos no original).206 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 55-60.207 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 321.

76

O caráter ditatorial do Texto fica claro ao relegar a disciplina do direito de

propriedade à legislação infraconstitucional, legislação essa que, com o fechamento do

Congresso durante o Estado Novo, ficou concentrada nas mãos do chefe do Executivo208.

Como resume Adilson Abreu Dallari, “instrumento da ditadura de então, este texto em

todo o seu conteúdo e particularmente no referente ao direito de propriedade e à

desapropriação não significava senão um retrocesso, em relação à Constituição de

1934”209.

Durante a vigência da “Polaca”210, entretanto, editou-se o Decreto-Lei nº 3.365, de

21 de junho de 1941, principal diploma legal sobre desapropriação211.

A Carta de 1946, elaborada em ambiente redemocratizado e repetindo, em linhas

gerais, a disciplina presente na Constituição de 1934212, garantiu o direito de propriedade,

mantendo as hipóteses de desapropriação por necessidade ou utilidade pública e

acrescentando uma nova modalidade: a desapropriação por interesse social, inspirada no

conceito de função social da propriedade (art. 141, § 16)213. Nas disposições relativas à

ordem econômica e social, condicionou o uso da propriedade ao bem-estar social, segundo

os ditames da justiça social, e previu a possibilidade de justa distribuição da propriedade

com igual oportunidade para todos (art. 147)214. Estavam presentes no Texto, portanto, os

“dois ângulos”215 de enfoque do direito da propriedade: como direito individual e como

disposição atinente à ordem econômica e social.

O disposto no art. 147 não escapa à lente de Celso Antônio Bandeira de Mello:

208 PIRES, Maria Coeli Simões. Op. cit., p. 242-3.209 DALLARI, Dalmo de Abreu. Desapropriação para fins urbanísticos, cit., p. 35.210 Alcunha dada à Carta outorgada por Getúlio Vargas em 1937.211 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos, cit., p. 35.212 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 321.213 “Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidadedos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidadepública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigoiminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedadeparticular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.”214 “Art 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância dodisposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”215 MUKAI, Toshio. Op. cit., p. 59.

77

Sem dúvida alguma, este preceptivo é um marco jurídico. Com efeito, nãoapenas se prevê a desapropriação por interesse social, mas se aponta, no aludidoart. 147, para um rumo social da propriedade, ao ser prefigurada legislação quelhe assegure justa distribuição, buscando mais que a tradicional igualdadeperante a lei, igualdade perante a oportunidade de acesso à propriedade216.

Como anota José Diniz de Moraes,

O condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social era,inegavelmente, o reconhecimento explícito do princípio da função social dapropriedade. Inobstante o caráter programático do dispositivo, estava o legisladorautorizado a intervir no domínio privado em benefício de toda a sociedade e acondicionar o exercício do direito de propriedade a um fim social217.

A disciplina jurídica da propriedade, sobretudo da propriedade rural, também

esteve presente em importantes pontos das reformas de base propostas, em 1964, pelo

então Presidente João Goulart. Estavam previstas ali providências como a expropriação de

áreas que margeavam as rodovias federais; a limitação do valor dos aluguéis residenciais; a

justa distribuição da propriedade com vistas a disponibilizá-la a um maior número de

pessoas e a tornar sua exploração adequada, com aumento de produtividade; a promoção

social do trabalhador rural etc. Consignava-se pela primeira vez a possibilidade de

expropriação com pagamento mediante títulos públicos218. Em idêntico rumo, a política

urbana também mereceu atenção, por meio do Seminário Nacional de Habitação e

Reforma Urbana, da criação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU),

da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Financeiro de

Habitação (SFH)219.

216 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função sociedade no Direito Público.Revista cit., p. 40.217 MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 39.218 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 323-4.219 MOREIRA, Mariana. A história do Estatuto da Cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio(coord.). Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 28.

78

Também sob a vigência da Constituição de 1946 tivemos o que Carlos Ari

Sundfeld chama de “primeira tradução legislativa em termos urbanísticos”220 do princípio

da função social da propriedade: a Lei federal nº 4.132, relativa à desapropriação por

interesse social. Na mesma época, promulgou-se a Lei Delegada nº 4/62, que, segundo

anota Rosah Russomano, possibilitava a intervenção do Estado no domínio econômico por

meio da desapropriação, por interesse social, de bens necessários às atividades

agropecuárias, de pesca e de indústria221.

Já durante o governo de militares, mas ainda sob a égide da Constituição de 1946,

veio a lume a Lei nº 4.505, de 30 de novembro de 1964, denominada Estatuto da Terra,

buscando introduzir mecanismos de acesso à terra pelos trabalhadores rurais, e cuja

mensagem de envio ao Congresso Nacional, subscrita pelo Marechal Castelo Branco,

afirmava: “Mantendo a terra inativa ou mal aproveitada, o proprietário absentista ou

descuidado veda ou dificulta o acesso dos trabalhadores da terra ao meio de que necessitam

para viver e produzir”222.

Nas palavras de Rosah Russomano, o Estatuto da Terra:

Condicionou o uso da terra à sua função social. Reportou-se à justa e adequadadistribuição da propriedade. Referiu o dever de explorar racionalmente a terra.Contemplou os diversificados meios de acesso à propriedade, mencionando,entre eles, a desapropriação por interesse social, o usucapião laboral (art. 98), alegitimação da posse, objeto de ratificação por ditame constitucional ulterior (art.171 da CF)223.

No mesmo período deu-se a Emenda Constitucional nº 10, de 10 de novembro de

1964, que alterou a redação do art. 146, § 16224, e introduziu parágrafos no art. 147225,

220 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu;FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo:Malheiros, 2002. p. 46-7.221 RUSSOMANO, Rosah. Função social da propriedade. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 18, nº 75, p. 266.222 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 326.223 RUSSSOMANO, Rosah. Op. cit., p. 266.224 “§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidadepública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção prevista no§ 1º do art. 147. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina as autoridades competentespoderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando todavia, assegurado o direitoa indenização ulterior” (Redação dada pelo art. 4º da Emenda Constitucional nº 10, de 9.11.1964).

79

prevendo no texto da Constituição de 1946 a possibilidade de pagamento de indenização

por desapropriação de terras em títulos da dívida pública.

A Constituição de 1946 foi reproduzida quase literalmente pela Carta de 1967, já

com o acréscimo relativo ao pagamento de indenização em títulos da dívida pública.

Houve uma evolução na redação sobre a ordem econômica: a função social da propriedade

apareceu, pela primeira vez, alçada expressamente à condição de princípio (art. 157, III).

Os §§ 1º a 6º estabeleciam a desapropriação dos chamados “latifúndios” mediante

pagamento de títulos públicos, nos seguintes termos:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes noPaís a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança eà propriedade, nos termos seguintes: [...]

§ 22. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação pornecessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justaindenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 157, § 1º. Em caso deperigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedadeparticular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.

Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nosseguintes princípios: [...]

III - função social da propriedade; [...]

§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover adesapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento de prévia ejusta indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exatacorreção monetária, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelasanuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meiopagamento do preço de terras públicas.

§ 2º A lei disporá sobre o volume anual periódico das emissões, sobre ascaracterísticas dos títulos, a taxas dos juros, o prazo e as condições de regate.

§ 3º A desapropriação de que trata o § 1º é da competência exclusiva da União elimitar-se-á às áreas incluídas nas zonas prioritárias, fixadas em decreto do PoderExecutivo, só recaindo sobre propriedades rurais cuja forma de exploraçãocontrarie o disposto neste artigo, conforme for definido em lei.

§ 4º A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de latifúndio,como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias e úteis, queserão sempre pagas em dinheiro.

225 “Art. 147, § 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação depropriedade territorial rural, mediante o pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais dadívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacionalde Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a suaaceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cincoenta por cento do Imposto Rural e comopagamento do preço de terras públicas” (Introduzido pelo art. 5º da Emenda Constitucional nº 10, de9.11.1964).

80

§ 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serãoaprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será da competênciade órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável saber e idoneidade,nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha peloSenado Federal.

§ 6º Nos casos de desapropriação, na forma do § 1º do presente artigo, osproprietários ficarão isentos dos impostos federais, estaduais e municipais queincidam sobre a transferência da propriedade desapropriada.

Restava consagrado em nossa história constitucional o princípio da função social

da propriedade. Desde então, o nosso ordenamento acolheu “a moderna concepção desse

instituto, pois presente a função social da propriedade como cláusula explícita, medida que

se coaduna às exigências contemporâneas do Estado Social e Democrático de Direito”226.

Como ressalta Adilson Abreu Dallari, a partir de então “não é apenas o uso que está

condicionado, mas é a propriedade privada em si mesma, ou melhor, o próprio direito de

propriedade que tem como condição o cumprimento de uma função social”227.

Com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a função social passou a constar do

art. 160, III, com idêntica redação.

Nas décadas seguintes, a legislação infraconstitucional atinente ao tema sofreu

intenso incremento ao estabelecer regras para o parcelamento do solo urbano (Lei nº

6.766/79); para a implementação de distritos industriais (Lei nº 6.602/78); para a proteção

ambiental (Decreto-lei nº 1.413/75 e Lei nº 6.803/80, relativos ao zoneamento urbano

industrial); para a criação e o funcionamento das regiões metropolitanas (Leis

Complementares nº 14/73 e 20/74) e atinentes ao processo (Lei nº 7.347/85, que regula a

ação civil pública)228. Além disso, a lei que estabelece a Política Nacional do Meio

Ambiente (nº 6.938/81), o Código Penal e a Lei nº 6.368/76, que estabelecem o confisco de

instrumentos do crime229.

226 RIOS, Roger Raupp. A propriedade e sua função social na Constituição da República de 1988. Ajuris:Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 22, nº 64, p. 307-20, jul. 1995, p. 314.227 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos, cit., p. 37.228 Conforme levantamento realizado por SUNDFELD, Carlos Ari Sundfeld. O Estatuto da Cidade e suasdiretrizes gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: comentáriosà Lei Federal 10.257/2001, cit., p. 47.229 GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. Op. cit., p. 119.

81

Pode-se observar, desse pequeno esboço da evolução histórica do direitobrasileiro, que a disciplina da propriedade privada foi sendo paulatinamenteaprimorada, em um movimento evolutivo que partiu de uma visão liberal dapropriedade privada, garantida “em toda a sua plenitude” pelas Constituições de1824 e 1891, e culminou com o reconhecimento do interesse social como apto acondicionar o uso da propriedade e até mesmo a fundamentar a sua perda, peladesapropriação.

A noção de função social da propriedade, acolhida inicialmente pelo Texto Maior

de 1934 como limite negativo aos poderes do dominus, restou celebrada, ao final de trinta e

três anos de evolução, com o status de verdadeiro “princípio constitucional” (art. 157, III,

da Constituição de 1967).

Entretanto, mesmo diante de tão inegável evolução, as Constituições anteriores a

1988 careciam de regras constitucionais que, além de dar ao princípio constitucional maior

eficácia, contribuíssem para maior precisão conceitual de função social da propriedade,

retirando-a do embate exclusivamente ideológico que se travava sobre o tema.

Como se verá a seguir, as possibilidades do Texto Constitucional de 1988 são,

nesse ponto, muito maiores.

4.4 A função social da propriedade na Constituição de 1988

O Texto Constitucional em vigor230 faz menção expressa à função social da

propriedade em sete dispositivos: no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais,

Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelecendo no inciso XXIII

que a propriedade atenderá sua função social; no Título VII – Da ordem econômica e

financeira, Capítulo I – Dos princípios gerais da atividade econômica, no art. 170, III, ao

inserir a função social da propriedade como princípio geral da atividade econômica; no art.

173, § 1º, do mesmo capítulo, ao dispor que a lei estabelecerá a função social das empresas

estatais que explorem atividade econômica; no art. 182, § 2º, do Capítulo II do mesmo

Título VII, denominado Da Política Urbana, ao especificar a forma de cumprimento da

230 Até a Emenda Constitucional nº 53, de 19.12.2006.

82

função social da propriedade urbana; e nos arts. 184, 185, parágrafo único, e 186 do Título

VII – Da ordem econômica e financeira, Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e

da reforma agrária, ao disciplinar, respectivamente, a chamada desapropriação-sanção da

propriedade rural improdutiva; garantir tratamento especial à propriedade rural produtiva e

delegar à lei a fixação dos requisitos de cumprimento de sua função social; e ao fixar as

exigências para que a propriedade rural cumpra sua função social.

Há, ainda, uma série de dispositivos que se relacionam de alguma forma com a

função social da propriedade: o art. 5º, XXIV, que estabelece as três hipóteses de

desapropriação (necessidade pública, utilidade pública e interesse social); o inciso XXV,

ao prever a possibilidade de uso de bem particular em caso de iminente perigo público,

com indenização ulterior; o inciso XXVI do mesmo artigo, ao declarar a

impenhorabilidade da pequena propriedade rural; o art. 21, IX, que dá à União

competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação territorial;

o art. 30, que atribui competência ao Município para ordenar seu território, planejar e

controlar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano e proteger o patrimônio

histórico-cultural local; o art. 153, § 4º, instituindo a progressividade do ITR – Imposto

Territorial Rural para estimular a produtividade do imóvel rural; o art. 176, ao destacar a

propriedade das jazidas e dos potenciais de energia elétrica da do solo, fazendo-os bens da

União; o art. 182, caput, ao dispor que a Política de Desenvolvimento Urbano tem por

objetivo desenvolver as funções sociais da cidade; o § 1º, ao estatuir a obrigatoriedade do

plano diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes; o § 4º do mesmo artigo, ao

fixar os instrumentos para o adequado aproveitamento do solo urbano (parcelamento ou

edificação compulsórios; IPTU progressivo e desapropriação com pagamento em títulos da

dívida pública); ao regular o usucapião de pequenas áreas urbanas (art. 183); ao garantir

contra a desapropriação a pequena e média propriedade rural, bem como aquela produtiva

(art. 185); ao limitar o acesso à propriedade rural por estrangeiros (art. 190); ao prever o

usucapião pro-labore de imóveis rurais (art. 191) e, no art. 216, § 1º, a desapropriação

como instrumento de proteção do patrimônio cultural.

Como se pode observar já à primeira vista, o Texto atual traz uma disciplina bem

mais minuciosa do direito de propriedade e de sua função social se comparado às

83

Constituições anteriores. Mas isso não lhe garante aprovação unânime entre os estudiosos

do tema.

Para Ricardo Pereira Lira, a atuação dos conservadores na elaboração do texto da

Constituição de 1988 conseguiu trazer graves empecilhos aos avanços que se

descortinavam no sistema jurídico nacional em relação ao direito de propriedade rural. A

executoriedade imediata de várias disposições foi posta em séria dúvida pelas sucessivas

remissões à legislação complementar. Até mesmo o usucapião de terras públicas foi

categoricamente proibido, o que não acontecia no regime anterior. A expressão

“latifúndio” foi banida do Texto Constitucional, o que, para o autor, demonstra o ranço

conservador do que foi produzido pelo último constituinte no que se refere à política

agrícola e fundiária231.

Já com relação à política urbana, o Professor Lira ressalta o progresso da

Constituição de 1988, que veicula um “modelo inédito, conduzindo a questão urbana ao

patamar constitucional, dando à Cidade as galas de um prestígio constitucional”232.

Ressalta, como relevantes, os seguintes pontos: competência da União para instituir

diretrizes para o desenvolvimento urbano (art. 21, XX); competência concorrente da

União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre Direito Urbanístico (art. 24, I);

competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I) e para

promover o adequado ordenamento territorial (art. 30, VIII); todo o capítulo sobre Política

Urbana, que prevê o desenvolvimento das funções sociais da cidade como objetivo da

Política de Desenvolvimento Urbano, torna obrigatória a existência de plano diretor para

cidades com mais de vinte mil habitantes, define o cumprimento da função social da

propriedade urbana em relação às exigências do plano diretor, prevê o parcelamento e a

edificação compulsórios e a desapropriação com pagamento mediante títulos da dúvida

pública para o caso de não-cumprimento da função social dos imóveis urbanos. O autor

destaca, porém, também em relação à propriedade urbana, manifestações conservadoras do

Texto Maior, como quando prevê a utilização “sucessiva”, e não autônoma, dos institutos

da edificação e parcelamento compulsórios; quando abandona a tradição de admitir o

231 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 329-32.232 Id., p. 364.

84

usucapião pro labore de terras públicas; e ao omitir-se em relação a uma disciplina mais

abrangente das regiões metropolitanas233.

João Alberto Schützer Del Nero também critica a atual disciplina constitucional

do assunto. Afirma ele que

[...]o fato de o princípio da função social da propriedade ter passado de normasprogramáticas que não mencionam legislação futura (Constituição de 1967-1969) para normas que mencionam legislação futura e normas de eficáciacontida (Constituição de 1988) lhe restringiu a função em nome de segurança ecerteza maiores, trazidas pela minúcia de tratamento. O legislador comprometeu-se mais; comprometeu-se, porém, mais consigo próprio e, de uma certa maneira,descomprometeu a administração e a jurisdição, no que concerne à busca dosentido teleológico da função social da propriedade quando da interpretação,integração e aplicação das normas jurídicas234.

Já Gustavo Tepedino afirma ser o Texto Constitucional

[...] inovador, parecendo injustas muitas das críticas que lhe foram desfechadas,no sentido de que teria resultado conservadora a disciplina sobre a reformaagrária, representando verdadeiro retrocesso em face do próprio Estatuto daTerra235.

Conclui que a garantia de propriedade deve ser orientada pelos princípios e

objetivos fundamentais da República, estabelecidos nos arts. 1º e 3º do Texto Maior, o que

permite afirmar que

[...] o pressuposto para a tutela de uma situação proprietária é o cumprimento desua função social, que, por sua vez, tem conteúdo pré-determinado, voltado paraa dignidade da pessoa humana e para a igualdade com terceiros nãoproprietário236.

233 LIRA, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 364-6.234 DEL NERO, João Alberto Schützer. O significado jurídico da expressão função social da propriedade.Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, nº 3, 1997, p. 96.235 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista da Faculdade deDireito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 1, nº 64, jul. 1995, p. 115-6.236 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista cit., p. 115-6.

85

Ao contrário da Constituição de 1967, o atual Texto Maior inclui a função social

da propriedade tanto entre os princípios da atividade econômica como entre os direitos e

garantias individuais. Daí decorre uma importante conseqüência, apreendida por Luciane

Moessa de Souza:

[...] em caso de conflito entre a função econômica e social, a Constituiçãoprestigia, em primeiro lugar, a função social, já que esta se encontra incluída nãomais apenas como princípio da ordem econômica, como ocorria na ordemconstitucional anterior, mas também entre os direitos e garantias individuais237.

A autora, baseada nas colocações de Fábio Konder Comparato, faz interessante

diferenciação entre o “direito à propriedade privada”, garantido pelo caput do art. 5º da

Constituição, e o “direito de propriedade”, garantido pelo inciso XXII do mesmo artigo. O

direito à propriedade resumir-se-ia no “direito de acesso à titularidade dos bens necessários

a uma existência digna”. Com a introdução da função social da propriedade privada, o

direito de propriedade (= titularidade pura e simples de bens) passaria a ser um instrumento

de realização do direito à propriedade238.

Entendemos que a evolução na disciplina da função social da propriedade é

evidente no Texto atual.

É extremamente relevante, em primeiro lugar, que o Texto Constitucional tenha

submetido a noção tradicional de propriedade privada ao cumprimento de uma função

social, e tenha elevado tal submissão ao nível de cláusula pétrea, tornando-a imune às

reformas constitucionais239.

237 SOUZA, Luciane Moessa de. A natureza jurídica da propriedade em face do princípio da função social dapropriedade no Direito brasileiro, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná,Curitiba, v. 32, nº 33, 2000, p. 200.238 Id., p. 199-200.239 Como afirma Carlos Araújo Leonetti, “[...] como se trata de direito individual, o regime da propriedadeprivada, estabelecido no art. 5º, não pode ser objeto de Emenda Constitucional tendente a aboli-lo, por forçado disposto no art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna, que o erigiu em cláusula pétrea” (LEONETTI, CarlosAraújo. Op. cit., p. 736 – grifos do original).

86

Além disso, pela primeira vez houve um regramento específico para a política

urbana, cuja conformação atinge ferozmente a propriedade dos bens imóveis urbanos,

verdadeiro coração da disciplina civilística da propriedade.

A par da consagração da função social da propriedade como princípio240, a

Constituição traz diversas regras241 que tratam do tema. A intelecção destas, conjugadas

com a noção política de função social da propriedade, contribui decisivamente para a tarefa

de precisar o conceito jurídico do princípio.

Neste ponto, convém não esquecer, sobretudo, que a gênese de uma Constituição

democrática está na própria sociedade, que se apresenta plural e repleta de contradições242.

Esses conflitos tendem a se transportar da base social para o texto jurídico, prejudicando a

tarefa interpretativa e, muitas vezes, gerando avanços e retrocessos na disciplina de

matérias específicas. Daí, v.g., o retrocesso na falta de menção ao latifúndio, mas o avanço

considerável nos instrumentos de implementação da política urbana.

Estamos, portanto, com Eros Roberto Grau, em lição concebida especificamente

em relação à ordem econômica na Constituição de 1988, mas plenamente aplicável à

disciplina da função social da propriedade no Texto atual:

A ordem econômica e a Constituição de 1988, no seu todo, estão prenhes decláusulas transformadoras. A sua interpretação dinâmica se impõe a todosquantos não estejam possuídos por uma visão estática da realidade. Mais do quedivididos, os homens, entre aqueles que se conformam com o mundo, tal comoestá, e aqueles que tomam como seu projeto o de transformá-lo, aparta-os o fatode os segundos terem consciência de que a História – como a vida – émovimento. E de que a História não acabou, ilusão que só pode ser alimentadapor quem não tenha a menor idéia das condições de vida do homem nassociedades subdesenvolvidas243.

240 V., infra, Capítulo 5.241 Sobre a diferenciação entre regras e princípios constitucionais, v., supra, Capítulo 3.242 Como ensina Juarez de Freitas: “Quer-me parecer, com efeito, que uma Constituição democráticaforçosamente precisa apresentar tensão interna congênita, sob pena de não traduzir, de modo legítimo e empermanente legitimação, os multifacéticos anseios alojados no corpo e na alma da sociedade, suscitando ouimpondo o permanente trabalho interpretativo de compatibilização e de dação de vida organizada àsprescrições fragmentárias” (FREITAS, Juarez de. Op. cit., p. 234).243 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 346.

87

5. Conteúdo do princípio constitucional da função social da

propriedade na Constituição de 1988

5.1 A função social da propriedade é verdadeiro princípio na Constituição

de 1988?

A função social da propriedade é elevada à condição de princípio pelo próprio

Texto Constitucional. Está assim expressamente rotulada no art. 170, III da Lei

Fundamental244.

Como ensina Riccardo Guastini, geralmente é o intérprete que eleva determinada

disposição à condição de princípio. Entretanto, há casos em que o próprio legislador faz

essa valoração245. É o caso da função social da propriedade em nosso ordenamento

constitucional.

José Afonso da Silva, com apoio na classificação de Canotilho, eleva a função

social da propriedade à categoria dos princípios políticos constitucionalmente

conformadores, que “explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador

constituinte, nos quais se condensam as opções políticas fundamentais e se reflete a

ideologia inspiradora da constituição”246.

Prossegue o Mestre afirmando que tais princípios são normas que estabelecem os

objetivos do programa a ser cumprido pelo Estado, possuindo plena vigência e

aplicabilidade imediata:

244 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem porfim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintesprincípios: [...] III – função social da propriedade;”245 GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 195-6.246 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 143.

88

Assim, a determinação constitucional segundo a qual as ordens econômica esocial têm por fim realizar a justiça social constitui uma “norma-fim”, quepermeia todos os direitos econômicos e sociais, mas não só eles como, também,toda a ordenação constitucional, porque nela se traduz um princípio políticoconstitucionalmente conformador, que se impõe ao aplicador da Constituições247.

Arremata, no que toca especificamente à propriedade privada e sua função social:

Os demais princípios informadores da ordem econômica – propriedade privada,função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesado meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do plenoemprego – são da mesma natureza. Apenas esses princípios preordenam-se ehão que harmonizar-se em vista do “princípio-fim” que é a realização da justiçasocial, a fim de assegurar a todos existência digna. Nesse sentido, hão de reputar-se plenamente eficazes e diretamente aplicáveis, embora nem a doutrina nem ajurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhes têm dado aplicaçãoadequada, como princípios-condição da justiça social248.

Também Eros Roberto Grau, referindo-se expressamente ao art. 170, III,

reconhece o caráter principial da função social da propriedade, atribuindo-lhe o status de

princípio constitucional impositivo e de norma-objetivo, dotada de caráter “constitucional

conformador”249.

Por outro lado, estão presentes tanto no preceito constante do art. 170, III, como

no do art. 5º, XXIII, da Constituição Federal todos os demais traços com os quais a

doutrina costuma caracterizar as disposições principiológicas, quer se tenha por base uma

distinção quantitativa ou qualitativa250.

Com efeito, os mencionados enunciados veiculam normas com alto grau de

generalidade e abstração: não há a previsão de uma hipótese de incidência, nem o

estabelecimento de determinadas conseqüências para sua ocorrência. Sua aplicação,

portanto, pode ocorrer em uma série indefinidas de situações.

247 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, cit., p. 143-4.248 Id., p. 144 – grifo nosso.249 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 248-9.250 Sobre a distinção, v. Capítulo 3, supra.

89

Ademais, a idéia de função social da propriedade privada traduz normativamente

um valor, de caráter fundamental no sistema constitucional em vigor. Daí a vinculação da

idéia de função social a ideais de justiça social, como mostra seu próprio desenvolvimento

histórico251.

A natureza normogenética de tais disposições também resta clara se as cotejarmos

com as dezenas de regras constitucionais que lhes fazem referência. A idéia de função

social está presente e atua como elemento de coesão e coerência de diversas outras

disposições constitucionais.

Os preceitos insculpidos nos arts. 5º, XXIII, e 170, III podem ser reputados, por

fim, verdadeiros mandamentos de otimização, expressando direitos e deveres prima facie e

impondo que algo (a destinação social da propriedade privada) seja realizado na maior

medida possível, dadas as circunstâncias fáticas e jurídicas.

5.2 Delimitação do conteúdo do princípio da função social da

propriedade privada

Chega-se, então, ao momento da difícil configuração do conteúdo da função

social da propriedade. A tarefa – já afirmaram iluminados autores252 –– é das mais árduas.

Entre nós, as dificuldades são ainda maiores por se tratar, como visto, de princípio

constitucional, cuja interpretação é muito mais permeada por valores metajurídicos.

A grande margem de indeterminação do conceito de função social da propriedade

é vista por Stefano Rodotà como um mecanismo que garante a adaptação do conceito às

exigências históricas das diversas gerações. Escreve ele:

251 Sobre a evolução histórica da propriedade e da função social, v. item 4.1, supra.252 V., a propósito, BASTOS, Celso Ribeiro. A função social da propriedade. Revista cit., p. 77; SUNDFELD,Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle(coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 2.

90

Justamente por isto, deve considerar-se que a indeterminabilidade absoluta doconceito de função social esteja bem valorada pelo legislador, o qual quis assimdispor de um meio idôneo para realizar aquela medida de bem-estar econômico ecoletivo adequada à situação histórica253.

E, como anota João Lopes Guimarães Júnior,

É difícil encontrar, isoladamente, um significado bastante preciso do que seja“função social”. A precisão e a especificidade da expressão devem serprocuradas no próprio ordenamento jurídico, por meio de interpretaçãosistemática254.

Avultam, pois, nesse trabalho interpretativo, o elemento histórico e o elemento

sistemático.

Neste ponto convém repisar que, apesar de a função social da propriedade

representar o núcleo fundamental do Direito Urbanístico e do Direito Civil, a determinação

de seu conteúdo é operação típica de interpretação constitucional. Em outras palavras, o

intérprete que traça linhas sobre tal princípio jurídico, alçado ao nível constitucional em

nosso ordenamento jurídico, estará realizando interpretação das normas constitucionais –

valendo-se, portanto, de instrumentos desenvolvidos no seio do Direito Constitucional –,

apesar de influir diretamente nos cânones do Direito Urbanístico e do Direito Civil.

Assim, torna-se um imperativo inafastável ter em mente as vicissitudes e axiomas

do processo interpretativo, quando o objeto de nossas análises é o Texto Supremo, que

representa, em suma, a moldura jurídica das relações políticas existentes na sociedade que

lhe deu origem.

5.2.1 Significado da expressão função social

253 La proprietà nel nuovo Diritto. p. 145 e s. Apud MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 65.

91

Como explica José Diniz de Moraes, a expressão “função social da propriedade”

se popularizou por intermédio de Léon Duguit, com a obra As transformações gerais do

Direito Privado desde o Código de Napoleão. Ali o festejado autor francês afirma, com

todas as letras: “La propiedad no es, pues, el derecho subjetivo del propietario; es la

función social del tenedor de la riqueza”255.

A palavra função, segundo ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, denota dois

elementos essenciais: um dever, instituído em prol de interesses alheios:

Existe função quando alguém está investido no “dever” de satisfazer dadasfinalidades em prol do “interesse de outrem”, necessitando, para tanto, manejaros poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são “instrumentais” aoalcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função nãoteria como desincumbir-se do “dever” posto a seu cargo. Donde, quem ostitulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no “interesse alheio”256.

No mesmo sentido escreve Fábio Konder Comparato:

Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato de função, em suas múltiplasespécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente é sempre o interessealheio, e não o próprio do titular do poder. O desenvolvimento da atividade é,portanto, um dever, mais exatamente um poder-dever; e isto, não no sentidonegativo, de respeito a certos limites estabelecidos em lei para o exercício daatividade, mas na acepção positiva, de algo que deve ser feito ou cumprido257.

Destarte, ao submeter a propriedade ao cumprimento de uma função, o Texto

Constitucional em vigor submeteu os poderes do titular do domínio ao cumprimento de

finalidades que lhe são estranhas. Ao tradicional conceito de propriedade como a faculdade

de usar, gozar e dispor do bem do modo que melhor aprouver ao proprietário, a função

254 GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. Op. cit., p. 118. No mesmo sentido, Gustavo Tepedino: “Funçãosocial da propriedade é, pois conceito relativo e historicamente maleável, de acordo com a távola axiológicainspiradora da doutrina e do sistema positivo de cada época” (TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 109-10).255 MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 94-5.256 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros,1996. p. 68.

92

social agrega um componente externo: todos esses poderes passam a estar direcionados não

só a atender os interesses individuais do proprietário, mas também a interesses de outrem.

Por sua vez, o adjetivo social deixa claro que a vinculação dos poderes do titular

do domínio ao interesse de outrem se refere a um interesse coletivo, e não individual. Mais

uma vez Fábio Konder Comparato esclarece a questão:

[...] a noção de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria,significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto dapropriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo“social” mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não aointeresse próprio do “dominus”; o que não significa que não possa haverharmonização entre um e outro 258.

No mesmo sentido a lição de Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira:

O adjetivo social demonstra que este objetivo, que esta função, devecorresponder ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do “dominus”, oque não significa que não possa haver uma harmonização entre o poder doproprietário e o interesse social, mas que, de qualquer maneira, se está diante deum interesse coletivo, e sua proteção jurídica somente se justifica com essepropósito259.

5.2.2 Função social e justiça social

A esta altura, o cerne da questão, segundo pensamos, é definir se a função social

seria apenas a obrigação, a cargo do proprietário, de dar um destino socialmente útil a seu

257 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 41.258 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista cit., p. 75.259 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos naacepção clássica de propriedade. Revista cit., p. 111.

93

bem, ou se, mais do que isso, seria a obrigação de dar-lhe um destino que atendesse os

postulados de uma justiça social.

Uma análise restrita ao art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição Federal poderia

fundamentar a adesão ao primeiro dos posicionamentos citados.

Realmente, nos dois dispositivos mencionados apenas se garante o direito de

propriedade, com a inclusão, em seu conteúdo, de uma finalidade externa ao proprietário,

ou seja, de uma função. Nada se dispõe a respeito do objetivo dessa função.

Entretanto, a análise de outras disposições constitucionais relativas ao tema e ao

desenvolvimento histórico experimentado pela noção de função social nos leva a sustentar

que sua previsão está umbilicalmente ligada a objetivos de justiça social.

Com efeito, começando nossa análise pelo art. 3º da Carta Magna, constatamos

que são elencados como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da

marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Uma interpretação

finalística de qualquer disposição constante do texto da Constituição jamais poderá deixar

de levar tais objetivos em consideração260.

Mais à frente, no capítulo reservado à ordem econômica e financeira, tanto o

direito de propriedade como sua função social são submetidos a um objetivo expresso:

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput e

incisos II e III).

O genial trecho da lavra de José Afonso da Silva nos dá a compreensão exata do

significado de tal disposição constitucional:

260 No mesmo sentido está Gustavo Tepedino (Op. cit., p. 115). Como sublinha Eros Roberto Grau, “aafirmação dos significados expressados pelos enunciados normativos apenas se determina, plenamente, apósa penetração, do intérprete, à busca dessa determinação no contexto funcional”, já que “a contemplação, nosistema jurídico, de normas-objetivo, importa a introdução, na sua ‘positividade’, de fins aos quais ele, osistema, está voltado. A pesquisa dos fins da norma, desenrolada no contexto funcional, torna-se maisobjetiva; a metodologia teleológica repousa em terreno firme” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica naConstituição de 1988, cit., p. 177-80 – grifos do original).

94

Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedadeprivada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceberque, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porquesubmetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela sóé legítima enquanto cumpra uma função dirigida à justiça social261.

Na mesma sintonia estão as conclusões esposadas por outros eminentes estudiosos

do tema:

Parece fora de dúvida que a expressão função social da propriedade comportanão apenas o primeiro sentido, a que dantes se aludiu, mas também esta segundaacepção a que agora nos estamos reportando. Com efeito, se alguma hesitaçãopudesse existir quanto a isto, bastaria uma simples inspeção visual no art. 160 daCarta do País – tantas vezes referido – para verificar-se que nele estáexplicitamente afirmado ser finalidade da ordem econômica e social realizar odesenvolvimento nacional e a justiça social. Ora bem, uma vez que estasfinalidades hão de ser realizadas com base, entre outros princípios, no da funçãosocial da propriedade (item III), é óbvio que esta foi concebida tomando emconta objetivos de justiça social262.

Como princípio da ordem econômica, a função social da propriedade assumeformas diversas cujas características sujeitam-se à destinação do bem objeto dapropriedade. Por conseqüência, a propriedade só se justifica enquantoinstrumento para se atingir a finalidade da ordem econômica, ou seja, existênciadigna para todos, conforme os ditames da justiça social (art. 170)263.

A propriedade, como elemento fundamental da ordem econômica, há de servir àconquista de um desenvolvimento que realize a justiça social.Conseqüentemente, o regime jurídico que lhe for traçado deve ensejar odesenvolvimento e favorecer um modelo social que seja o da justa distribuiçãoda riqueza264.

Pois bem, e o que significa a expressão “justiça social”? A resposta vem da pena

privilegiada de Eros Roberto Grau:

[...] “justiça social” é expressão que, no contexto constitucional, não designameramente uma espécie de justiça, porém um seu dado ideológico. O termo“social”, na expressão, como averbei em outra oportunidade, não é adjetivo quequalifique uma forma ou modalidade de justiça, mas que nela se compõe comosubstantivo que a integra. [...]

261 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, cit., p. 790.262 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no DireitoPúblico. Revista cit., p. 44, escrito sob a égide da antiga Constituição.263 SOUZA, Junia Verna Ferreira de. Op. cit., p. 153 – destaque no original.264 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 13.

95

Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças narepartição, a nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo,contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto econômico,não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correçõesna injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando aconsubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista265.

Portanto, a nosso ver, o princípio da função social da propriedade está

umbilicalmente ligado a um objetivo maior: alcançar a justiça social, entendida esta como

a necessidade de uma equânime repartição de riquezas.

A vinculação da expressão “justiça social” ao pensamento social cristão,

inaugurado de maneira formal pela Encíclica Rerum Novarum, de 1891, parece inegável. E

os postulados de tal doutrina se lastreiam exatamente na necessidade de “inserir o homem

num todo social que tinha por fim a plenitude da vida individual”, sustentando a idéia de

que “o interesse social qualificava os interesses individuais e impunha suas regras à

autonomia de cada um”266.

Para José Diniz de Moraes, com arrimo em Manoel Gonçalves Ferreira Filho e em

Castan Tobeñas, a função social da propriedade deita raízes em duas concepções

filosóficas distintas: a doutrina clássica do direito natural da Igreja Católica e o positivismo

filosófico. Estava presente nas doutrinas de Santo Ambrósio e São Tomás de Aquino, e nas

considerações de Augusto Comte267.

Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira não hesita em apontar a teoria da Igreja como

fundamental para a elaboração da teoria da função social da propriedade. Segundo ela, as

encíclicas papais (Rerum Novarum, de Leão XII, de 1891; Quadragesimo Anno, de Pio XI,

de 1931; e Mater er Magistra, de João XXIII) restauraram a idéia tomista do bem comum,

265 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 245 – grifos do original.266 BAGET-BOZZO, Gianni. Pensamento social cristão. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola;PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 8. ed. Brasília: EditoraUniversidade de Brasília. 1995. v. 2. p. 921.267 MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 93.

96

proclamando que a propriedade, apesar de não “ser” uma função, “possui” uma função

social268.

Na mesma linha escreve Gustavo Tepedino, realçando, também, as idéias

jusnaturalistas a respeito da função social da propriedade:

A investigação acerca da função social da propriedade remonta, pelo menos, àdoutrina cristã da Idade Média, com a preocupação da utilização da propriedadepara o bem comum, presença constante na Suma Teológica de São Tomás deAquino. Os bens disponíveis na terra pertenceriam a todos, sendo destinadosprovisoriamente à apreensão individual. O jusnaturalismo, inspirado em critériosde eqüidade e justiça supralegislativa, proclamaria, posteriormente, a funçãosocial da propriedade traduzida na necessidade de utilização do bem enquantoinstrumento de realização da justiça divina269.

Também Adilson Abreu Dallari, apesar de ponderar que não há absoluta certeza

quanto à influência da Igreja Católica na configuração atual do direito de propriedade,

admite que é inegável que as encíclicas sociais sempre mencionaram o assunto270.

A concepção cristã da propriedade, em seus primórdios, esteve estreitamente

ligada à teologia. Adquiriu contornos filosóficos por intermédio de São Tomás de Aquino,

para quem

[...] os bens temporais que são dados por Deus aos homens são verdadeiramenteseus quanto à propriedade; mas, quanto ao uso, eles não devem ser somente seus,mas também daqueles outros que podem achar seu sustento sobre o que ésupérfluo para o proprietário271.

268 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 109.269 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 109.270 DALLARI, Adilson Abreu. Desapropriação para fins urbanísticos, cit., p. 33.271 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 141.

97

O direito de propriedade, portanto, merece proteção, mas somente em seu núcleo

essencial: “A propriedade do ‘necessário’ é um direito absoluto; a propriedade do

‘supérfluo’ não passa de uma gestão em benefício de outrem”272.

Na concepção tomista, portanto, os homens possuem dois poderes em relação às

coisas exteriores: o de administrá-las e distribuí-las e o de usá-las. O primeiro se justifica

por três razões: de início porque cada um tende a administrar melhor o que só a ele

pertence; além disso, porque, se todos administrassem tudo, haveria confusão; por fim,

porque, se cada um está contente com o que tem, conserva-se a paz entre os homens. Já no

que toca ao uso das coisas, os homens deveriam tê-las como coletivas, disponibilizando-as

aos que delas necessitem273.

Na Encíclica Rerum Novarum, o Papa Leão XIII elevou a propriedade privada à

condição de direito natural do homem, fruto direto da inteligência ou razão. Entretanto, na

esteira dos ensinamentos de São Tomás de Aquino, decretou que, satisfeitas as

necessidades e conveniências de cada um, é dever do proprietário prestar socorro às

necessidades alheias274.

As conclusões estabelecidas na Encíclica Rerum Novarum foram aclaradas e

reforçadas por meio da Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI. Nela se apontava como

erro grosseiro a ligação que se fazia entre a Encíclica Rerum Novarum e a noção romano-

civilista da propriedade. Para Pio XI, o direito de propriedade advém da natureza, e não

pode ser tolhido pela autoridade pública. Esta, entretanto, pode disciplinar-lhe o uso,

harmonizando-o com o bem comum275.

Conclui-se, pois, que o princípio da função social da propriedade impõe ao titular

do domínio obrigação de utilizar seus bens em prol da coletividade, de modo a alcançar

objetivos de justiça social.

272 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., bp. 145.273 Summa Theologiae. IIa, IIae, q. 66, art. 2, resp. Apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Propriedade e funçãosocial. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 27, nº 56, 2004, p. 116.274 SODRÉ, Ruy de Azevedo. Op. cit., p. 155.275 Id., p. 158.

98

Por fim, merece referência o fato de que, ao afirmar a propriedade privada sua

função social, nosso ordenamento constitucional institui, ainda que com ponderações, um

regime capitalista de produção.

A função social da propriedade, portanto, ainda que receba influência das

concepções marxistas, não representa a adoção de um sistema econômico socialista276. É,

ao contrário, uma reafirmação da propriedade privada, um instrumento por meio do qual

uma sociedade busca extrair vantagens coletivas da propriedade privada dos bens – por ela

reconhecida277.

No mesmo sentido é o ensinamento de João Alberto Schützer Del Nero, para quem

[...] considerar as funções sociais da propriedade, embora seja um sintoma dodeclínio do capitalismo, em nada a compromete; a antítese real da propriedadeprivada não é sua concepção como função social, mas sim sua abolição, com oestabelecimento da economia planejada socialista278.

5.2.3 A propriedade em nosso ordenamento constitucional: direito

subjetivo ou função?

A atribuição de uma função social ao direito de propriedade acaba por transformar-lhe em

uma função? Ou subsiste a concepção de propriedade privada como direito subjetivo, ao qual a

função social agrega deveres condicionados ao cumprimento de objetivos de justiça social?

A questão já foi objeto de profundas e inúmeras análises na doutrina pátria,

prevalecendo a concepção segundo a qual há compatibilidade entre as noções de direito

subjetivo e função. Como diz Carlos Ari Sundfeld, a noção de função social da propriedade

276 Em sentido contrário: BUSSI, Nilton. A função social da propriedade. Revista da Faculdade de Direito.Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 25, nº 25, 1989, p. 173.277 DINIZ, José Diniz de. Op. cit., p. 106.278 DEL NERO, João Alberto Schützer. Op. cit., p. 86.

99

acaba por trazer “ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o

condicionamento do poder a uma finalidade”279.

A forma pela qual a Constituição Federal tratou do tema não pode ser desprezada

pelo intérprete, e dá claros indícios de que a Lei Maior pretendeu imiscuir no conceito

tradicional de propriedade (resguardado no art. 5º, XXII) uma função social (prevista no

art. 5º, XXIII), encadeando-os em dispositivos separados, porém próximos. Assim entende

Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira:

[...] se a Constituição quisesse considerar a propriedade como função social, nãoteria garantido a “propriedade” em inciso próprio, mas “a propriedade queobedecesse à sua função social”. Se, ao invés disso, deu independência àproteção da propriedade, é porque a assegurou em si mesma, como direito que é,contudo, ela não pode mais ser entendida nos seus caracteres tradicionais: direitoindividual exclusivo, absoluto e perpétuo, mas deve se compatibilizar com a suafunção social, que representa a própria evolução do estado Moderno280.

Por outro lado, diversos dispositivos constitucionais prevêem indenização para

hipóteses de desapropriação de imóveis que não cumprem sua função social, o que levou

Celso Antônio Bandeira de Mello – escrevendo sob a égide do Texto Constitucional

anterior, mas em lições inteiramente aplicáveis à Constituição vigente – a afirmar

enfaticamente que “a propriedade ainda está claramente configurada como um direito que

deve cumprir uma função social, e não como sendo pura e simplesmente uma função

social”. Isto porque, na hipótese contrária, não haveria por que dar proteção jurídica (=

garantia de indenização, ainda que em títulos da dívida pública) às propriedades que não

cumprissem sua função social281.

Ademais – prossegue o autor –, quando o Texto Maior utiliza a expressão

“propriedade”, “todos entendem que está sendo feita alusão à possibilidade de usar, gozar e

279 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 21.280 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 118. Em sentido contrário está Carlos Araújo Leonetti,para quem, “[...] empregada tivesse sido, pelo legislador constituinte, a correta técnica legislativa, oscomandos insculpidos nos incisos XXII e XXIII do art. 5º da Carta Magna deveriam estar contidos nummesmo dispositivo, cujo teor seria: ‘é garantido o direito de propriedade, desde que esta atenda a sua funçãosocial’, ou algo do gênero” (LEONETTI, Carlos Araújo. Op. cit., p. 734).

100

dispor de uma coisa. Donde, ter-se-á de entender que o Texto Constitucional, ao servir-se

deste vocábulo, aludiu a sua significação corrente”282, o que não pode ser desprezado pelo

intérprete.

Na mesma linha está o ensinamento de Marina Mariani de Macedo Rabahie:

O direito de propriedade, segundo entendemos, permanece configurado comodireito individual qualificado pela função social, a que está bem vocacionado enão como a própria função. Vale dizer: “o direito de propriedade não é funçãosocial; trata-se, na verdade, de um direito-função”283.

Eros Roberto Grau, analisando o conceito de direito subjetivo, afirma que “ser

titular de um direito subjetivo é estar autorizado pelo ordenamento jurídico a praticar ou a

não praticar um ato”. Conclui:

[...] por isso inexiste incompatibilidade entre “direito subjetivo” e “função”. Apermissão jurídica para o exercício de uma faculdade pode perfeitamente serconcedida mediante a introdução, como elementos dela (= da permissão)integrantes, de vários requisitos, aí incluídos tanto quantos atribuam deveres eônus para o titular da permissão, isto é, do “direito subjetivo”284.

Evidentemente, não há – como já se imaginou – qualquer incompatibilidade entre

os conceitos de direito subjetivo e função. Tecnicamente, são noções absolutamente

compatíveis, já que nada impede que a ordem jurídica condicione o exercício dos poderes

do domínio (direito subjetivo) ao desempenho de uma atividade, pelo dominus, no

interesse de outrem.

Mas, convém frisar, salta aos olhos que, se não há contradição dogmática entre os

termos, certamente há, aí, tanta contradição ideológica – ou, melhor dizendo, confronto

281 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no DireitoPúblico. Revista cit., p. 41.282 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no DireitoPúblico. Revista cit., p. 41.283 RABAHIE, Marina Mariani de Macedo. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu;FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico - 2. São Paulo: Revista dos Tribunais,1991. p. 252.284 GRAU, Eros Roberto. A propriedade rural e a função social da propriedade. Revista Trimestral de DireitoPúblico, São Paulo, nº 33, 2001, p. 42-3.

101

ideológico – quanto aquela existente entre as concepções sociais e liberais de Estado.

Como observa Cristiane Derani, a propriedade, em si, não é um direito: é uma relação entre

sujeito e objeto, que pode ser protegida pelo Direito. A função social da propriedade

representa a imposição de novos deveres e responsabilidades ao titular dessa relação. E

conclui:

Esse tratamento da relação de propriedade marca a diferença entre Estado liberale Estado social. Enquanto o primeiro garante a propriedade privada contraterceiros, o segundo preocupa-se com a melhoria da vida social a partir dessaapropriação privada de bens285.

Por fim, resta esclarecer: ainda que remanesça o direito de propriedade como

direito subjetivo, a previsão da função social da propriedade não representa apenas uma

restrição exterior aos poderes do titular do domínio.

A função social da propriedade, mais do que significar um elemento externo,

agregado ao conceito de propriedade, acaba por ajudar a conformar-lhe os confins: em

nosso ordenamento jurídico, em virtude da previsão expressa da função social, a situação

jurídica complexa denominada “direito de propriedade” tem seu perfil talhado, entre outras

disposições, por aquelas relativas à função social da propriedade286.

5.2.4 Objeto da função social da propriedade

285 DERANI, Cristiane. A propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da função social. Revista deDireito Ambiental, São Paulo, v. 7, nº 27, jul./set. 2002, p. 59.286 MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 124. Sobre a diferença – fundamental – entre a idéia de propriedadee o direito de propriedade, v. item 4.1, supra.

102

Para encerrar nossas observações sobre o arcabouço jurídico traçado pela

Constituição Federal para o princípio da função social da propriedade, resta indagar se toda

e qualquer relação de propriedade está submetida a suas exigências ou se, ao contrário,

somente as faculdades relativas a determinadas espécies de bens são atingidas.

O desenvolvimento do direito de propriedade através dos séculos e as exigências

cada vez mais incisivas de especificação das legislações devido ao desenvolvimento

industrial permitem vislumbrar a existência, hodiernamente, não mais de um direito de

propriedade, mas de vários, de várias dimensões da propriedade privada, que recebem

tratamento muitas vezes radicalmente diverso nos diversos sistemas jurídicos existentes.

José Afonso da Silva, com sua peculiar argúcia, não deixa escapar essa

particularidade. Para esse autor, baseando-se em lições clássicas de Santigati e Perlingieri,

“a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas,

em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares”, pelo que seria mais adequado

falar em “propriedades”287. Explica, então, a afirmação: há regimes jurídicos diferenciados

para a propriedade pública, para a propriedade social e para a propriedade privada; da

mesma forma, estão sujeitas a regramento diverso a propriedade agrícola e a industrial; a

propriedade rural e a urbana; a propriedade dos bens de consumo e dos bens de capital. E

conclui:

Cada qual desses tipos pode estar sujeito, e por regra estará, a uma disciplinaparticular, especialmente porque, em relação a eles, o princípio da função socialatua diversamente, tendo em vista a destinação do bem objeto da propriedade288.

No mesmo diapasão as lições de Eros Roberto Grau:

A propriedade não constitui uma instituição única, mas o conjunto de váriasinstituições, relacionadas a diversos tipos de bens. Não podemos manter a ilusãode que à unicidade do termo – aplicado à referência a situações diversas –corresponde a real unidade de um compacto e íntegro instituto. A propriedade,

287 Gustavo Tepedino realça que a identificação, pela doutrina, das diversas dimensões da propriedadecontribuiu, também, para realçar o fato de que ao ordenamento jurídico cabe “conceber” o direito depropriedade, “criado e moldado com base em definições exclusivamente normativas” (Op. cit., p. 112-3).288 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, cit., p. 277.

103

em verdade, examinada em seus distintos perfis – subjetivo, objetivo, estático edinâmico – compreende um conjunto de vários institutos. Temo-la, assim, eminúmeras formas, subjetivas e objetivas, conteúdos normativos diversos sendodesenhados para a aplicação a cada uma delas, o que importa no reconhecimento,pelo direito positivo, “da multiplicidade da propriedade”289.

A análise mais detida do próprio Texto Constitucional permite ver que essa

diversidade de dimensões acaba por repercutir incisivamente na disciplina jurídica da

propriedade. Há várias regras constitucionais que traduzem uma incidência absolutamente

diferente do princípio da função social da propriedade em razão de cada tipo de bem e de

cada titular290.

Apenas para exemplificar, a função social da propriedade privada urbana é

vinculada, pelo Texto Constitucional, ao atendimento das exigências estabelecidas pelo

plano diretor, cujo objetivo maior é desenvolver plenamente as funções sociais da cidade

(art. 182, caput e § 2º). O usucapião de pequenas áreas urbanas leva em consideração,

primordialmente, a utilização do local como moradia. Já a função social da propriedade

rural é considerada cumprida quando preenchidos os requisitos previstos no art. 186, no

qual se estabelecem itens que extrapolam, em muito, as exigências de ordenação urbana

indicados no art. 182. O usucapião de pequenas áreas rurais leva em conta, sobretudo, a

produtividade da gleba, demonstrando que os requisitos de cumprimento da função social

da propriedade variam de acordo com as características de cada espécie de bem.

Além disso, a própria natureza do objeto apropriado torna-o apto ou não a receber

o influxo da função social da propriedade. Como observa Cristiane Derani,

289 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 253.290 Eros Roberto Grau chega até mesmo a sustentar que a norma do art. 5º, XXIII, não se justifica, porque apropriedade garantida pelo inciso imediatamente anterior cumpre somente uma função individual, e osabusos cometidos em seu exercício encontram limites adequados no poder de polícia estatal (GRAU, ErosRoberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 252-3). Parece-nos, entretanto, inegável que afunção social foi estabelecida, no Texto Constitucional, tanto em relação aos bens de produção (art. 170, III)quanto em relação às demais dimensões da propriedade privada (art. 5º, XXIII). Não soa legítimo desprezarum comando constitucional expresso, como aquele inserido no rol dos direitos e deveres individuais ecoletivos. O próprio autor aqui citado acaba por reconhecer que a função social afeta não só os bens deprodução, mas “também a propriedade que excede o quanto caracterizável como propriedade tangida por‘função individual’. Entenda-se como excedente desse padrão especialmente a propriedade detida para finsde especulação ou acumulada sem destinação ao uso a que se destina” (Id., p. 254). No mesmo sentido daposição aqui defendida, LEONETTI, Araújo. Op. cit., p. 736).

104

A relação de propriedade capaz de atender ao preceito jurídico “função social dapropriedade” é aquela em que o objeto apropriado é apto a satisfazer acoletividade. Existem objetos que, apropriados, respondem à utilidadeindividual, isto é, são aptos a unicamente suprir as necessidades ou preencher osdesejos do sujeito proprietário. São objetos de fruição exclusivamente privada,posto que seu uso não provoca efeitos para além da relação estabelecida entresujeito e objeto. No entanto, outros objetos quando apropriados provocam umarepercussão social291.

Portanto, como expõe a autora, não é toda relação de propriedade que está

submetida à função social, mas apenas aquela que recaia sobre bens “que são aptos a

preencher necessidades e interesses da coletividade”. E – conclui ela – a própria

Constituição Federal indica quais são eles: os bens de produção, a propriedade urbana e

rural, os bens culturais e os bens ambientais292.

Para finalizar, cabe mais uma observação sobre a função social, agora em relação

à propriedade pública, cuja análise está umbilicalmente ligada à distinção tratada no

presente item.

Entendemos que a sujeição da propriedade pública às exigências decorrentes da

função social é insustentável. Afirmar que o ente estatal – que só existe e detém

competências em razão de finalidades públicas (deveres-poderes) –, quando proprietário de

bens, está sujeito a imposições que, em última análise, forcem-no a utilizar esses mesmos

bens em benefício da coletividade é verdadeira tautologia, quiçá enorme inutilidade.

A apropriação de bens pelo Estado somente pode ser entendida à luz do conceito

de função pública. Só se admite a apropriação de bens pelo Estado se vista como meio para

a consecução das finalidades estatais. Não há, pois, na relação que se estabelece entre o

ente estatal e os demais sujeitos passivos universais do direito de propriedade o resguardo

de poderes com finalidades individuais. Não havendo finalidades individuais – que são

exatamente as que, com a introdução da idéia de função social, são transformadas –, não há

o espaço próprio à atuação do princípio da função social.

291 DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 63. No mesmo sentido, TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 119.292 Id., p. 63-4.

105

Nesse sentido é a lição de Eros Roberto Grau:

[...] a idéia da “função social” como vínculo que atribui à propriedade conteúdoespecífico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito, só tem sentido e razão de serquando referida à “propriedade privada”. A alusão à função social da“propriedade estatal” qualitativamente nada inova, visto ser ela dinamizada noexercício de uma “função pública”293.

A propriedade pública, portanto, só se justifica na medida em que esteja a serviço

das funções estatais. A vinculação dela a objetivos coletivos é integral, não sendo correto

submetê-la a um regime jurídico no qual essa sujeição, ainda que com a adoção do

princípio da função social, é apenas parcial294.

293 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 249 – grifos do original.294 Em sentido contrário se coloca DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública.REDE – Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, nº 6, abr./maio/jun. 2006. Disponível em:http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-6-ABRIL-2006-MARIA%20SYLVIA.pdf. Acesso em17.1.2007. Passim. Também José Diniz de Moraes, afirmando que “a propriedade ‘iure privatorum’ de entepúblico é propriedade privada, segundo o uso comum do termo, de modo que, em termos tradicionais, elatambém ‘tem’ função social” (MORAES, José Diniz de. Op. cit., p. 144).

106

6. Eficácia do princípio constitucional da função social da propriedade

6.1 Funções dos princípios constitucionais

Desde quando tiveram reconhecida sua natureza jurídica de norma, verificou-se

uma gradativa evolução nas funções atribuídas aos princípios jurídicos, sobretudo os de

nível constitucional.

Paulo Bonavides realça três fases na evolução do reconhecimento da juridicidade

dos princípios e de suas funções: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. Na

primeira delas, os princípios são equiparados a normas universais de justiça, o que lhes

suprime a qualidade de normas jurídicas. Na segunda, os princípios cumprem a função de

válvulas de segurança, atuando como fonte normativa subsidiária em casos de lacuna.

Finalmente, alcançam na terceira fase a condição de esteios normativos onde se assenta

todo o edifício jurídico, com amplo reconhecimento de sua normatividade295.

No atual desenvolvimento da doutrina, é possível divisar, com base nas lições de

Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos296, quatro modalidades de eficácia297 dos

princípios constitucionais:

a) Eficácia jurídica positiva ou simétrica:

[...] é o nome pelo qual se convencionou designar a eficácia associada à maioriadas regras. Embora sua enunciação seja bastante familiar, a aplicação da eficáciapositiva aos princípios ainda é uma construção recente. Seu objetivo, no entanto,seja quando aplicável a regras, seja quando aplicável a princípios, é o mesmo:reconhecer àquele que seria beneficiado pela norma, ou simplesmente àquele quedeveria ser atingido pela realização de seus efeitos, direito subjetivo a essesefeitos, de modo que seja possível obter a tutela específica da situaçãocontemplada no texto legal.

295 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 258-66.296 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 306-10.297 Eficácia, aqui, é entendida como sinônimo de função.

107

b) Eficácia interpretativa:

A eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar ainterpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), paraque o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, poraquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucionalpertinente.

c) Eficácia negativa:

[...] autoriza que sejam declaradas inválidas todas as normas ou atos quecontravenham os efeitos pretendidos pela norma.

d) Eficácia proibitiva do retrocesso:

[...] a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma normainfraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar.

Riccardo Guastini, sob a rubrica “uso dos princípios”, ensina que essa espécie

normativa é usada na produção, na interpretação e na integração do direito: na produção,

servindo de parâmetro de legitimidade da fonte normativa subordinada; na interpretação,

justificando a chamada “interpretação conforme”; e na integração, para colmatar lacunas.

Especificamente sobre a função dos princípios na interpretação, o autor afirma que: “Tratar

108

uma norma como princípio significa exatamente assumir a ‘superioridade’ relativamente a

uma outra”, que deve ser interpretada conforme aquela298.

Para Agustín Gordillo:

La norma es límite, el principio es límite y contenido. La norma da a la ley lafacultad de interpretarla o aplicarla en más de un sentido; pero el principioestablece una dirección estimativa, un sentido axiológico, de valoración, deespíritu. El principio exige que tanto la ley como el acto administrativo respetensus límites y además tengan su mismo contenido, sigan su misma dirección,realicen su mismo espíritu299.

6.2 A interpretação conforme à Constituição

O reconhecimento da Constituição como norma jurídica primeira e fundamental,

que condiciona formal e materialmente toda a legislação que lhe é inferior, realça a

necessidade de que a produção e a interpretação da legislação infraconstitucional se faça

em consonância com os mandamentos superiores.

No que diz respeito à interpretação da legislação ordinária, essa preocupação está

presente há bastante tempo na hermenêutica constitucional.

Rotineiramente, o postulado segundo o qual a legislação infraconstitucional deve

ser interpretada em conformidade com os mandamentos constantes da Lei Fundamental é

catalogado entre os princípios de interpretação constitucional.

Entretanto, em rigor esse postulado não contribui para a interpretação do Texto

Constitucional, podendo ser encarado, quando muito, como reforço à força normativa e à

298 GUASTINI, Riccardo. Op. cit., p. 199-203.299 GORDILLO, Agustín. Introdución al derecho administrativo. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot., 1966.p. 176-7. Apud GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 79.

109

supremacia da Constituição, motivo pelo qual dele não tratamos quando o tema foi

abordado no presente estudo300.

Sendo a Constituição a norma fundamental de um ordenamento jurídico, que

vincula formal e materialmente todas as demais, é natural que, dentre os diversos

significados que a um texto legal podem ser atribuídos, devem ser excluídos aqueles que

contravenham a Lei Maior. “Por força deste princípio, deve-se, dentro do possível,

elastecer ou restringir a norma de modo a torná-la compatível com a Lei Maior”301.

Como lecionam Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

Com base na interpretação conforme a Constituição, o aplicador da normainfraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscaraquela que a compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que maisobviamente decorra do seu texto. Como técnica de controle deconstitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição consiste naexpressa exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação“corretiva” que importa em declaração de inconstitucionalidade sem redução detexto302.

Como anota Paulo Bonavides, a interpretação conforme a constituição nasceu em

virtude do trabalho hermenêutico desenvolvido pela Corte Constitucional alemã. Significa

que o intérprete deverá escolher, dentre as interpretações possíveis de uma lei, aquela que

se adequar ao Texto Maior, evitando, assim, a inconstitucionalidade. Trata-se, pois, de

privilegiar os princípios constantes da Constituição, e que moldarão a interpretação das

normas infraconstitucionais, descartando as conclusões que não forem adequadas a eles303.

Bonavides ressalta, ainda, que há um lado negativo e outro positivo no método da

interpretação conforme à Constituição. Afirma que sua utilização desmesurada pode fazer

300 V. Capítulo 2, supra. Como esclarece Virgílio Afonso da Silva: “[...] quando se fala em interpretaçãoconforme à constituição ‘não se está falando de interpretação constitucional’, pois não é a ‘constituição’ quedeve ser interpretada em conformidade com ela mesma, mas as ‘leis infraconstitucionais’. A interpretaçãoconforme a constituição pode ter algum significado, então, como um critério para a ‘interpretação das leis’,mas não para a interpretação constitucional” (SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional, cit., p. 132-3).301 CARVALHO, Márcia Haydée Porto de. Op. cit., p. 79.302 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 301.303 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 518.

110

com que normas inconstitucionais sejam mantidas no sistema, e que a Constituição seja

interpretada conforme a lei. Sob o aspecto positivo, ressalta

[...] a fidelidade que ela parece inculcar quanto à preservação do princípio daseparação de poderes. Faz com que juízes e tribunais percebam que sua missãonão é desautorizar o legislativo ou nele imiscuir-se por via de sentenças eacórdãos, mas tão-somente controlá-lo, controle aparentemente mais fácil deexercitar-se quando, relutante diante da tarefa de declarar a nulidade de leis ouatos normativos, os órgãos judiciais se inclinam de preferência para a obra deaproveitamento máximo dos conteúdos normativos, ao reconhecer-lhes sempreque possível a respectiva validade304.

Daí se conclui que a exigência de interpretação conforme acaba por forçar toda a

legislação infraconstitucional a ter seus significados condicionados pela intelecção da Lei

Maior. No que se refere especificamente ao princípio abordado no presente estudo, a

interpretação de toda a legislação brasileira que trata da propriedade e de sua função social

deve ser condicionada pelo princípio da função social da propriedade, sem o que haverá

patente inconstitucionalidade.

6.3 O princípio da função social da propriedade e a legislação

infraconstitucional

Analisaremos no presente tópico as principais implicações, decorrentes da

definição delineada neste trabalho para o princípio da função social da propriedade, sobre a

legislação infraconstitucional que disciplina a propriedade e sua função social.

304 Id., p. 519-20. Paulo Bonavides faz ainda uma afirmação final e de grande importância sobre ainterpretação conforme: “Em outras palavras, o método em questão, sem embargo do raio de flexibilidadeproporcionado ao intérprete, não deve tomar nunca uma extensão que consinta a interpretação ‘contra legem’.Não deve permitir jamais que o juiz, alterando a lei, se substitua ao legislador” (p. 523). Para Jorge Miranda,a interpretação conforme é uma função quase criadora do órgão controlador. Entretanto, não escapa darazoabilidade: “implica um mínimo de base na letra da lei; e tem de se deter aí onde o preceito legal,interpretado conforme a Constituição, fique privado de função útil ou onde, segundo o entendimento comum,seja incontestável que o legislador ordinário acolheu critérios e soluções opostos aos critérios e soluções dolegislador constituinte” (MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 268-9).

111

Do esboço histórico traçado no Capítulo 4, supra, podemos extrair a idéia de que

a função social da propriedade é uma construção que objetiva retirar da noção de

propriedade aquele caráter marcadamente individual, exacerbado durante o Estado liberal.

Daí a concluir que a adoção de tal princípio pela ordem jurídica dos Estados

contemporâneos está a autorizar – senão exigir – atividades estatais (sobretudo a

legislativa) muito mais incisivas e amplas sobre os tradicionais direitos do proprietário do

que aquelas calcadas no poder de polícia (instrumento característico do Estado liberal) é

apenas um passo.

Mas há grande divergência doutrinária em torno da amplitude dos instrumentos de

intervenção estatal autorizados pelo princípio da função social da propriedade.

6.3.1 Função social e limitações à propriedade

Uma primeira diferenciação é apontada por José Afonso da Silva, que denuncia o

obscurecimento do princípio da função social pela confusão, corrente, que se faz entre ele e

os sistemas de limitação da propriedade. E conclui:

Limitações dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário, enquanto quea função social interfere com a estrutura do direito305.

Limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculandosimplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício dodireito, e se explicam pela simples atuação do poder de polícia306.

Por certo, a adoção do princípio da função social da propriedade implica a

remodelação do direito de propriedade, já que adiciona à noção tradicional de direito

subjetivo um conceito até certo ponto amesquinhado no Direito Privado: a função.

305 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 65.

112

Mas não parece que a distinção entre limitações à propriedade e imposições

decorrentes da função social seja correta.

Tanto as imposições decorrentes da função social da propriedade como as

decorrentes do poder de polícia estatal (as limitações, v.g.) servem para configurar o

âmbito do direito de propriedade, tal como admitido em nosso vigente ordenamento

jurídico. Todas essas imposições têm sede constitucional, e, se assim não fosse,

representariam uma violação do direito de propriedade, também garantido

constitucionalmente.

Por outro lado, ambas as imposições conformam o conteúdo do direito de

propriedade e repercutem diretamente no exercício dos poderes inerentes ao domínio.

Sustentando que as limitações à propriedade também delineiam o perfil do próprio

direito de propriedade encontramos Celso Antônio Bandeira de Mello:

O direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade.É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade, tal como configurada emdada ordenação normativa. É, em suma, a dimensão ou o âmbito de expressãolegítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal. Donde, aslimitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistemanormativo não se constituem em limitações de direitos, pois não comprimemnem deprimem o direito de propriedade, mas, pelo contrário, consistem naprópria definição desse direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhedesenham os contornos. Na Constituição – e nas leis que lhe estejam conformes– reside o traçado da compostura daquilo que chamamos de direito depropriedade em tal ou qual país, na época tal e qual307.

E ainda, em outra obra:

306 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, cit., p. 285. No mesmo sentido,DERANI, Cristiane. Op. cit., p. 63.307 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no DireitoPúblico. Revista cit., p. 39.

113

Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondemà configuração de sua área de manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica daliberdade e da propriedade tuteladas pelo sistema308.

Na mesma linha, João Lopes Guimarães Júnior afirma que a restrição ao uso da

propriedade, estabelecida pelas leis de polícia, ajusta-a aos interesses coletivos: “É por meio

dessas proibições que se opera a relação entre ‘função social da propriedade’ e ‘poder de polícia’”.

Mas reforça que a função social da propriedade não atua somente através da imposição de

abstenções, mas também impondo comportamentos comissivos ao proprietário, “a fim de que ele

construa, plante, parcele etc.”309.

Não acreditamos residir aí, portanto, qualquer diferenciação. Tanto as limitações

administrativas – baseadas na supremacia do interesse público sobre o privado – quanto as

providências estatais baseadas na função social da propriedade configuram o perfil do

próprio direito de propriedade, tal como é reconhecido em nosso sistema jurídico.

Nenhuma delas representa “limitações” a um direito originariamente absoluto. Tanto que o

Texto Constitucional determina que a propriedade atenderá sua função social, e não que o

direito de propriedade a atenderá. Isso porque a função social, tanto quanto as limitações

administrativas, delimita o próprio direito de propriedade.

6.3.2 Função social e imposições à propriedade

Outro ponto de divergência é realçado, com percuciência, por Carlos Ari

Sundfeld, em linhas contundentes. Após afirmar que o princípio da função social não é o

fundamento das clássicas limitações administrativas à propriedade, pondera:

308 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre o poder de polícia. Revista cit., p. 57. Nomesmo diapasão está Lúcia Valle Figueiredo: “As limitações correspondem ao perfil do direito. São a própriaconformação do direito. Daí por que são gerais (como necessariamente a lei é), abstratas (como a lei é) eatingem ou podem atingir a todos, ou a determinadas categorias” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso deDireito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 190).309 GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. Op. cit., p. 126.

114

Ora, se nunca se impugnou o poder de o Estado limitar a propriedade,adequando-a ao interesse público, mesmo quando esta era tida apenas por direitoindividual absoluto, por que achar agora que as limitações baseiam-se noprincípio da função social?310.

E arremata, após observar que, se a função social for tomada em tal sentido

“equivocado”, seu conteúdo restará obscurecido:

Portanto, só se pode concluir que o princípio da função social é um “novoinstrumento” que, conjugado aos normalmente admitidos (as limitações, asdesapropriações, as servidões etc.), possibilitam a obtenção de uma ordemeconômica e social que realize o desenvolvimento com justiça social311.

Sem entrar, aqui, na discussão acerca das imposições decorrentes do poder de

polícia (se consubstanciam obrigação de fazer ou de não fazer)312, entendemos que a

adoção do princípio da função social da propriedade em um ordenamento jurídico acarreta

– ou, pelo menos, deveria acarretar – transformações consideráveis na compreensão da

atividade estatal direcionada à disciplina da propriedade privada.

Como averbamos anteriormente, a concepção da função social da propriedade

nasceu exatamente do desequilíbrio social causado pelas idéias liberais. Representa, pois,

uma contraposição à ordem liberal, ao Estado mínimo, que apenas assegurava as condições

básicas para o funcionamento das regras de mercado, que a tudo proveriam. Seria um

contra-senso afirmar que sua adoção apenas serviria para legitimar as limitações

administrativas, que historicamente sempre estiveram atreladas a uma concepção de

Estado... liberal!

310 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 8.311 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 9.312 V., sobre o tema: SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu;FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 10-11; GRAU, Eros Roberto. Aordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 255; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.Apontamentos sobre o poder de polícia. Revista cit., p. 58; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DireitoAdministrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 110.

115

Assim entendido, é evidente que teríamos um esvaziamento do princípio, e, por

decorrência, uma interpretação inaceitável do Texto Constitucional.

Mais uma vez, Eros Roberto Grau:

Tenha-se bem presente, porém – e de todo enfatizado – que o princípio da funçãosocial da propriedade deve ser visualizado desde uma perspectiva muito maisampla. Injustificável seja concebido apenas negativamente – isto é, comoexpressivo da imposição de um dever de não fazer ao proprietário. Correto fossetal entendimento e estaríamos, quando diante dele, singelamente em presença deuma designação específica, atribuída à antiga noção de poder de polícia, herançada ideologia do Estado Liberal.

A função social da propriedade é qualitativamente distinta do poder de polícia. Aintegração dela – repita-se – nos conceitos de propriedade de determinados bensimporta a imposição, sobre os proprietários deles, de deveres de ação313.

No mesmo sentido:

A função social da propriedade, pois, na atualidade, não é concebida, como foi àépoca do liberalismo, como “princípio gerador da imposição de limitesnegativos, estabelecidos à atividade do proprietário” – e que simbolizaramsimples projeção do poder de polícia.

Antes, imprime-se-lhe uma concepção positiva, “ como princípio gerador daimposição de comportamentos positivos do proprietário”. Por força de preceitonormativo, este não possui apenas o dever de não exercitar seu direito emdetrimento de outrem, como sucedia anteriormente. Possui, de modo correlato, odever de exercitar aquele direito em favor de outrem314.

Essa conclusão, entretanto, não basta, em nossa visão, para a correta

caracterização do princípio da função social da propriedade.

Não podemos, sob pena de também deprimir seu conteúdo, circunscrever os

efeitos do princípio jurídico da função social da propriedade ao âmbito de alguns

instrumentos jurídicos de intervenção na propriedade privada, retirando de sua influência,

v.g., as tradicionais limitações administrativas.

313 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p . 71.314 RUSSOMANO, Rosah. Op. cit., p. 265 – destaques no original.

116

A função social da propriedade, como princípio constitucional que é, deve irradiar

efeitos sobre todas as normas infraconstitucionais que tratem do tema propriedade; deve

incidir tanto sobre a atividade estatal de contenção do comportamento dos administrados

(poder de polícia) como sobre a atividade estatal de impulsão do exercício dos poderes do

domínio (que extrapola, segundo alguns autores, o âmbito tradicional do poder de polícia),

colocando-as, todas, a serviço do objetivo maior traçado pelo Texto Magno: alcançar a

justiça social.

Sem sombra de dúvida, a função social da propriedade não é só mais uma

disposição constitucional entre as inúmeras estabelecidas pela detalhadíssima Constituição

brasileira. É, ao contrário, pedra de toque de um sistema; vetor interpretativo; diretriz

axiológica. Ou seja: princípio jurídico.

Vale relembrar a clássica lição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de umsistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobrediferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exatacompreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade dosistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É oconhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partescomponentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo315.

No mesmo sentido escreve Carlos Ari Sundfeld:

O princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras, pois determinao sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr emrisco a globalidade do ordenamento jurídico. Deve haver coerência entre osprincípios e as regras, no sentido que vai daqueles para estas.

Por isso, conhecer os princípios do direito é condição essencial para aplicá-locorretamente. Aquele que só conhece as regras ignora a parcela mais importantedo direito – justamente a que faz delas um todo coerente, lógico e ordenado.Logo, aplica o direito pela metade316.

315 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 912-3.316 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público, cit., p. 140.

117

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, após estabelecer a diferença entre normas

concretamente preceptivas (aquelas que impõem comportamentos) e normas abstratamente

preceptivas (aquelas que indicam um gênero de condutas, que serão concretamente

regradas pelas concretamente preceptivas), afirma:

Daí definir-se, sinteticamente, o princípio jurídico como norma indicativa, umavez que sua principal finalidade é apenas a de indicar um valor ou um fim, quedevam ser genericamente alcançados, não importa em que grau satisfativo, portodas as leis (preceitos ou regras jurídicos), normas concretamente preceptivas,que dele derivem.

Resulta nítida dessa conceituação a importância estruturante dos princípios, umavez que a infraestrutura de normas preceptivas se articula polivalentemente comuma superestrutura de normas principiológicas, que lhes conferem sentidovalorativo e finalístico, e lhes dão toda coerência sistêmica necessária paraaplicá-las harmonicamente317.

Estaríamos, pois, ceifando grande parte da força que brota do acolhimento da

função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico se circunscrevêssemos sua

aplicação a alguns instrumentos estatais de intervenção na propriedade privada. O pecado

seria ainda maior se tivermos em conta que o princípio é, além de tudo, de grau

constitucional.

O que peculiariza a interpretação das normas da Constituição, de modo maismarcado, é o fato de ser ela o estatuto jurídico do político, o que prontamentenos remete à ponderação de “valores políticos”. Como, no entanto, esses“valores” penetram o nível do jurídico, na Constituição, quando contempladosem princípios – seja em princípios positivos do direito, seja em princípios geraisdo direito, ainda não positivados – desde logo se antevê a necessidade de ostomarmos, tais princípios, como conformadores da interpretação das regrasconstitucionais318.

Pelo que foi dito até aqui, já se pode perceber que não deixamos de fora do

influxo do princípio da função social da propriedade nenhum dos instrumentos estatais de

317 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 74 –grifos do original.318 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 167.

118

intervenção na propriedade privada. Nem mesmo as tradicionais limitações

administrativas, fundamentadas na concepção tradicional do poder de polícia.

Não queremos, com isso, identificar a função social da propriedade com os

instrumentos tradicionais de limitação da propriedade – o que já foi devidamente

rechaçado linhas atrás. O que sustentamos é que o princípio da função social da

propriedade irradia efeitos não só sobre os novos instrumentos de intervenção no domínio

privado (parcelamento e edificação compulsórios, v.g.), mas também sobre todo e qualquer

instrumento de intervenção, ainda que tradicionalmente calcado no poder de polícia.

Em outros termos, o princípio da função social da propriedade, além de permitir

imposições de “obrigações de fazer” (ou seja, imposição do exercício do próprio direito de

propriedade), potencializa as intervenções amparadas na concepção tradicional do poder de polícia.

Referindo-se à função social da propriedade como verdadeiro vetor interpretativo,

que irradia efeitos sobre toda e qualquer atividade estatal que tenha por objeto a

propriedade privada, encontramos lições de diversos autores nacionais de nomeada:

A função social da propriedade em consonância com os demais princípiosconstitucionais, é o mandamento principal do regime da propriedade urbana quedeve ser disciplinado pelo direito público319.

Como se vê, tal é a relevância e a extensão do princípio da função social dapropriedade, irradiando-se por todo o campo de incidência das normasurbanísticas, que podemos afirmar, com segurança, ser este um princípiofundamental, típico de Direito Urbanístico, verdadeira diretriz a nortear toda aordenação do território320.

A função social da propriedade informa, direciona, instrui e determina o modo decorreção jurídica de todo o qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ouinfraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade321.

Das idéias acima expostas decorre logicamente a afirmação de que não vemos

nenhum equívoco em afirmar que as limitações administrativas também estão amparadas

319 SAULE JÚNIOR, Nelson. Op. cit., p. 54-5.320 COSTA, Regina Helena. Princípios de Direito Urbanístico na Constituição de 1988. In: DALLARI,Adilson Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico - 2. São Paulo: Revistados Tribunais, 1991. p. 121.321 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista deInformação Legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 36, nº 141, jan./mar. 1999. p. 15.

119

pelo princípio da função social da propriedade, ao contrário do que sustenta Carlos Ari

Sundfeld322.

Com razão, portanto, Hely Lopes Meirelles323, Adilson Abreu Dallari324, José

Afonso da Silva325, Vladimir da Rocha França326 e Diogo de Figueiredo Moreira Neto327 ao

afirmar que a função social da propriedade é, sim, fundamento das tradicionais limitações

administrativas (ainda que não seja somente isso).

Aliás, parece que o próprio Professor Carlos Ari, tacitamente, aceita a influência

do princípio da função social sobre as limitações tradicionalmente amparadas no poder de

polícia quando afirma, ao discorrer sobre a utilização compulsória de imóvel urbano:

Não nos parece aceitável, salvo em casos excepcionais, que o Poder Públicoindique ao possuidor exatamente qual a utilização a ser dada, determinando, porhipótese, que se instale um açougue ou que se construa prédio residencial de altopadrão. O meio mais adequado de impor a utilização é o estabelecimento dezonas de uso, onde haja a previsão de usos (genéricos) possíveis, facultada aoadministrado, dentre eles, a escolha daquele que melhor atenda seu interessepessoal328.

Ora, o estabelecimento de zonas de uso (ou seja, o zoneamento) é instrumento

tradicionalmente baseado no poder de polícia. Apesar disso, é classificado pelo Texto

como o “meio mais adequado de impor a utilização do imóvel”, obrigação de caráter

positivo e certamente calcada no princípio da função social da propriedade.

322 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 7, esp. nota de rodapé nº 12.323 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal brasileiro. 12. ed. atual. por Célia Marisa Prendes e MárcioSchneider Reis. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 488.324 DALLARI, Adilson Abreu. Servidões administrativas. Revista cit., p. 90.325 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro, cit., p. 217.326 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Op. cit., p. 16 e 20.327 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Urbanístico e limitações administrativas urbanísticas.Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 27, nº 107, jul./set. 1990, p. 104.328 SUNDFELD, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEIREDO,Lúcia Valle (coord.). Temas de Direito Urbanístico, cit., p. 19 – grifos nossos.

120

Portanto, as limitações – como todas as demais formas de intervenção do Estado

na propriedade privada – estão no princípio da função social da propriedade e recebem seu

influxo.

E aqui cabe mais um destaque.

Não se pode confundir o princípio da função social da propriedade com as regras

baseadas nesse mesmo princípio, ainda que elas tenham sede constitucional.

São coisas completamente distintas: a) a diretriz axiológica constante do art. 5º,

XXIII, da Constituição Federal e b) os institutos que buscam concretizá-la, ainda que

também previstos na Carta Magna – o parcelamento, a edificação e a utilização

compulsórias, por exemplo. Tanto que as normas constitucionais referentes a estes últimos

são, para alguns, de eficácia limitada, o que jamais poderia ser sustentado com exatidão no

tocante ao princípio da função social, sobretudo em face do art. 5º, § 1º, da Constituição

Federal, que determina a aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais329.

6.3.3 Função social e direito de seqüela

A doutrina tradicional, ao especificar as chamadas “faculdades” do proprietário,

costuma, ao lado do direito de usar, gozar e dispor do bem, incluir o chamado direito de

seqüela: a prerrogativa dada ao proprietário de reaver seu bem de quem indevidamente o possui.

329 José Afonso da Silva, no clássico Aplicabilidade das normas constitucionais (Op. cit., p. 119-20), fazquestão de sustentar a aplicabilidade imediata dos princípios gerais da Constituição, distinguindo-os dasnormas constitucionais de princípio institutivo nos seguintes termos: “Mas essas normas-princípios e as deprincípios gerais distinguem-se basicamente daquelas que denominamos normas constitucionais de princípioou de esquema, pois estas são de eficácia limitada e de aplicabilidade indireta, isto é, dependentes delegislação ou outra providência, enquanto aquelas são de eficácia plena e aplicabilidade imediata – auto-aplicáveis, na terminologia norte-americana”.

121

Entretanto, a inserção do princípio da função social da propriedade em nosso

Texto Maior está a exigir, segundo alguns autores, que a proteção jurídica da propriedade

só ocorra quando haja, também, o cumprimento da função social330.

O raciocínio é sedutor: sendo a função social da propriedade um verdadeiro fator

de conformação do direito de propriedade, com sua adoção em nível constitucional é

possível concluir que só merece reconhecimento jurídico a propriedade que atende sua

função social.

Como ensina Carlos Araújo Leonetti, o acolhimento do princípio da função social

da propriedade privada em nosso ordenamento não traz apenas as conseqüências

estabelecidas pelo Texto Constitucional, mas informa todo o sistema jurídico brasileiro, de

modo que somente a propriedade que atenda sua função social merecerá proteção jurídica:

Em outras palavras, todas as garantias, prerrogativas e privilégios que o direitobrasileiro outorga à propriedade (e à posse), inclusive as relativas à proteçãopossessória, estão restritas, a partir de 05.10.1988, à propriedade (e à posse) quecumprir a sua função social331.

E conclui:

Em se tratando de ações possessórias, ou reivindicatórias, incidentes sobre bensimóveis, por exemplo, este princípio constitucional faz com que o Magistradoseja obrigado a examinar, no caso concreto, o cumprimento da função social dapropriedade (ou da posse), tanto por parte do autor, como do réu, se for o caso.Se concluir que o princípio não era atendido pelo autor da ação, o juiz devejulgar a ação improcedente, ainda que os requisitos exigidos pela lei, para suaprocedência, restem atendidos.

Uma sentença desta natureza não implica, no entanto, que a parte vencida nãofaça jus a uma indenização, principalmente se for, efetivamente, o proprietáriodo bem. Neste caso, a indenização deverá ser paga ou pela parte vencedora naação ou pelo Poder Público, se aquela for hipossuficiente332.

330 Há, inclusive, julgados que adotam essa tese. Os mais significativos encontram-se publicados, na íntegra,em Direitos Humanos – Legislação e Jurisprudência – Volume II – Jurisprudência Nacional, p. 46-8 e 351-91, obra editada pelo Estado de São Paulo.331 LEONETTI, Carlos Araújo. Op. cit., p. 738-9.332 Id., p. 739.

122

No mesmo sentido é o entendimento de Luciane Moessa de Souza, que rechaça

expressamente a proteção possessória à propriedade que não cumpre sua função social:

Não encontra respaldo constitucional a interpretação restritiva daqueles queentendem que a função social da propriedade somente pode ser discutida em sedede procedimento administrativo de desapropriação. Na realidade, toda vez que seestiver discutindo a propriedade sobre um bem de produção poderá e deverá serdiscutido o cumprimento da sua função social. Ainda que se entenda que afunção social diz respeito ao aspecto dinâmico da propriedade e não à relação depertinência, aquele acabará por determinar esta, já que o bem é passível dedesapropriação.

Tudo isso porque, no entender da autora,

[...] o direito de propriedade, em caso de descumprimento da função social, deixade existir de imediato, muito embora persista, nos termos da ConstituiçãoFederal, o direito à expressão pecuniária do bem. Assim, a decisão judicial quevier a desapropriar o bem possui natureza declaratória333.

Também Gilberto Bercovici nega peremptoriamente a proteção possessória ao

proprietário de imóvel que não cumpre sua função social:

O descumprimento da função social, portanto, exclui a concessão de garantias aoproprietário que não estejam previstas ou autorizadas pelo texto constitucional. Apropriedade que não cumpre com sua função social perde também a proteçãopossessória, ou seja, a Constituição de 1988 tornou inviável,constitucionalmente, a concessão de reintegração de posse por liminar judicialnestes casos334.

No mesmo sentido estão as conclusões de Fábio Konder Comparato335 e

Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira336.

333 SOUZA, Luciane Moessa de. Op. cit., p. 208.334 BERCOVICI, Gilberto. O direito de propriedade e a Constituição de 1988: algumas consideraçõescríticas. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 3, nº 5, 2003, p. 75.335 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista doCentro de Estudos Judiciários, v. 1, n° 3, p. 97. Apud ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse naConstituição e no novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 5, jan./jun. 2005. Disponível em:

123

Teori Albino Zavascki, sem negar peremptoriamente o direito de seqüela deixa,

todavia, ao prudente arbítrio do magistrado a solução do impasse:

Subjaz aqui também, a toda evidência, o conflito aqui reiteradamente enunciado,entre princípios constitucionais, cada qual a refletir valores jurídicos distintos,mas de mesma estatura. Não há, para tais situações, solução que se possaconsiderar como predeterminada. Cabe ao juiz, mediante a devida ponderação docaso concreto, criar regra de solução que comprometa o mínimo possível osvalores colidentes e faça prevalecer aquele que, nas circunstâncias, puder serconsiderado objetivamente preponderante337.

Parece-nos, entretanto, que a correta intelecção do conteúdo do princípio da

função social da propriedade não autoriza a conclusão defendida pelos eminentes autores

acima mencionados, muito menos que a questão encontre solução apenas no âmbito das

soluções judiciais dadas aos casos concretos que se apresentarem para julgamento.

Não há dúvida de que a função social da propriedade, ao ser reconhecida em nossa

Constituição, acaba por acarretar modificação na própria concepção tradicional de

propriedade. A Constituição Federal, ao submeter o conceito tradicional de propriedade

privada ao influxo da função social, acabou por forjar uma nova definição de direito de

propriedade: à noção tradicional – à qual correspondem as faculdades de usar, gozar e

dispor do bem, e de reavê-lo de quem indevidamente o detenha – a disciplina

constitucional agregou uma função, que condiciona todas essas faculdades. Não se trata,

portanto, de uma limitação externa, imposta a um direito de propriedade supostamente

reconhecido de forma absoluta: a função social atua na conformação do direito de

propriedade que, com seu reconhecimento (dela, função social), passa a ter conteúdo

distinto daquele propalado pela concepção tradicional338.

Parece correto que a nova concepção de propriedade privada, decorrente da

adoção do princípio da função social, acaba por revelar restrições que incidem sobre

qualquer dos tradicionais “poderes” reconhecidos ao proprietário. Com a imposição de

bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/6723/1/A_Tutela_da_Posse_na_Constitui%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em18.1.2007. p. 19-20.336 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. Op. cit., p. 119 e 124.337 ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit., p. 21.338 V. item 5.2.3, supra.

124

uma função social à propriedade privada, o uso do bem apropriado está destinado a

atender, além dos interesses do proprietário, os interesses da coletividade; da mesma

forma, as faculdades de gozo e de disposição estão submetidas aos interesses coletivos. E

tudo isso sob a influência final dos ditames da justiça social.

Essas restrições, todavia, não podem chegar a um ponto tal que aniquilem

completamente o direito de propriedade, o que acabaria por acontecer se a proteção

possessória lhe fosse negada. O ordenamento constitucional em vigor não agasalha essa

solução, ainda que ideologicamente ela representasse – para muitos, inclusive para nós–

uma evolução desejável.

Portanto, reconhecer a impossibilidade de dar proteção possessória, em quaisquer

casos, a um bem que não atende sua função social significa, a nosso ver, extinguir a

propriedade privada sobre tal bem. E essa extinção não é autorizada pelo Texto

Constitucional vigente.

De fato, da análise das normas constitucionais relacionadas ao tema se verifica

que o sistema constitucional reconhece a existência da propriedade privada e lhe dá

proteção, ainda que ela não esteja cumprindo sua função social. Neste último caso, são

previstos mecanismos destinados a recolocar o direito de propriedade na trilha do

cumprimento de sua função social, e que podem culminar, até mesmo, com a previsão da

desapropriação do bem, com pagamento de títulos.

Não há dúvida de que a perda do bem – ou seja, a extinção da propriedade, a

restrição integral de todas as faculdades do proprietário – é uma possibilidade utilizada

como fator de pressão, que impele o dominus a impor ao bem um destino consentâneo com

os mandamentos da função social da propriedade.

A própria Constituição Federal estabelece, como dito, hipóteses de desapropriação

do bem com pagamento em títulos da dívida pública, para o caso da propriedade que não

atende sua função social. Também as hipóteses de usucapião pró-moradia e pro-labore têm

raízes na função social da propriedade. Mesmo a legislação civil, que regula os

mecanismos de aquisição e perda da propriedade, pode, tendo em mira a realização do

125

princípio da função social da propriedade, prever novas hipóteses de extinção como forma

de prestigiar mandamento constitucional339 e 340.

Todas essas disposições são absolutamente constitucionais e representam uma

legítima disciplina do direito de propriedade, que não transborda dos limites impostos pelo

Texto Supremo.

Entretanto, o ordenamento constitucional impõe que, quando se chegue ao ponto

extremo de extinguir o direito de propriedade pelo não-cumprimento de sua função social,

haja indenização. Em outras palavras, a extinção do direito de propriedade com

fundamento no descumprimento de sua função social é uma possibilidade admitida pela

Constituição vigente, mas desde que haja a correspondente indenização, ainda que em

títulos da dívida pública.

Além disso, é de notar que todas as hipóteses constitucionalmente traçadas de

perda da propriedade pelo não-cumprimento da função social trazem como conseqüência a

possibilidade de o Poder Público desapropriar o bem. Ainda assim, como dito, mediante o

pagamento de indenização. Ora, se até mesmo a perda da propriedade privada para o ente

coletivo – que, por definição, representa interesses coletivos – está submetida à exigência

de indenização, como sustentar que, ao negar proteção possessória a um bem que não

cumpre sua função social, particulares possam ser beneficiados com uma aquisição sem

qualquer contraprestação financeira? Parece-nos que, se nem mesmo ao ente coletivo essa

339 Desse teor é, a nosso ver, o art. 1.228, §§ 4º e 5º, do Código Civil vigente, in verbis: “O proprietário tem afaculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente apossua ou detenha. [...] § 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicadoconsistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável númerode pessoas, e estar nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços consideradospelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará ajusta indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro doimóvel em nome dos possuidores”. O que se estabelece, aí, é uma nova modalidade de perda da propriedade,na qual o proprietário do imóvel invadido se vê privado do bem imóvel invadido, mediante o pagamento deuma indenização, arbitrada pelo Judiciário e adimplida pelos invasores.340 Isso demonstra que a função social da propriedade pode ser buscada também na disciplina das relaçõesentre particulares. Assim, ao contrário do que sustenta Fábio Konder Comparato (Estado, empresa e funçãosocial. Revista cit., p. 43), o sistema constitucionalmente traçado para condicionamento da propriedadeprivada nem sempre exige a presença do Estado. Mas com plena razão o eminente jurista quando afirma que,em havendo participação estatal, ela pressupõe a existência de políticas públicas, já que “um Estadodespreocupado com o bem-estar geral da população não tem legitimidade para exigir dos proprietários ocumprimento de sua função social” (Id., ibid.).

126

apropriação incondicional é deferida, com muito mais razão não pode ser admitida,

obliquamente, em favor de particulares.

A investigação sistemática, portanto, dos princípios e regras constitucionais que

disciplinam a propriedade privada e a respectiva função social em nosso ordenamento

jurídico mostra que é possível a extinção da propriedade pelo não-cumprimento de sua

função social, desde que mediante a necessária indenização ao proprietário relapso.

Nem se argumente, outrossim, que o raciocínio aqui defendido acaba por

submeter a definição do princípio constitucional às regras que a Lei Maior traçou com

base naquele próprio princípio, o que representaria inaceitável inversão entre a premissa e

a conclusão.

A objeção seria válida somente se a adoção do princípio da função social em

determinado ordenamento jurídico acarretasse, necessária e inelutavelmente, o

desaparecimento da propriedade que não o atendesse. Entretanto, não é correto considerar

que haja uma relação de implicação necessária entre uma coisa e outra.

Como visto acima, o reconhecimento da função social da propriedade privada traz

em si, como premissa necessária, o reconhecimento do direito de propriedade. São duas

faces de uma mesma moeda: só se pode falar em função social da propriedade privada se

esta última – a propriedade privada – estiver reconhecida.

A adoção da função social da propriedade resulta, portanto, na imposição de

sujeições ao conceito tradicional de propriedade, tendo em mira o bem-estar coletivo.

Nessa definição, não há nada que implique a necessária extinção da propriedade

privada caso o proprietário não dê a seu bem o destino imposto pelo bem-estar da

coletividade. É possível, pois, que o ordenamento jurídico busque fomentar o cumprimento

da função social mediante, v.g., a previsão de hipóteses de perdimento dos bens, sem

qualquer indenização; é possível, entretanto, que prefira a imposição de uma penalidade

monetária ao proprietário, ou que até mesmo criminalize o ato do dominus que não dá a

127

seu bem o destino socialmente útil que dele se espera. Todas essas possibilidades – e

inúmeras outras – se harmonizam com a idéia de função social da propriedade.

Disso se conclui que, ao prestigiar o princípio da função social da propriedade,

um ordenamento jurídico não está impondo, como conseqüência direta disso, a conclusão

de que a propriedade que não a cumpre deixe de existir. Essa é uma apenas uma das

possibilidades que, em nosso sistema constitucional vigente, foi acolhida, mas foi também

condicionada ao pagamento de uma indenização341 ao proprietário despojado do bem.

Portanto, a admissão do entendimento de que, ao não atender sua função social, a

propriedade não mais mereceria proteção possessória representaria a criação de um

mecanismo de extirpação integral dos poderes do domínio, sem qualquer indenização. Se

de extinção incondicionada da propriedade se cuida, é hipótese não agasalhada pelo

ordenamento constitucional hoje vigente.

341 A desapropriação em virtude do não-cumprimento da função social tem caráter sancionatório, como acimadito. Por conseqüência, é também possível sustentar – como o faz Fábio Konder Comparato – que aindenização por ela gerada não tenha ela a mesma amplitude daquela prevista pelo artigo XXIV do art. 5º:“[...] a expropriação pelo descumprimento da função social, por força do seu caráter punitivo, não está sujeitaàs restrições determinadas no artigo 5º, XXIV, da Constituição: a indenização não precisa ter a mesmaamplitude e as mesmas garantias da que é devida quando não há nenhuma disfunção no uso da propriedade”(COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista cit., p. 43).

128

7. Conclusões

A determinação do conteúdo do princípio da função social da propriedade, apesar

de influir diretamente em diversos ramos do Direito Público e Privado, é operação própria

de interpretação constitucional, submetida, pois, a suas técnicas.

A operação que tem por objetivo construir o sentido de uma norma constitucional

carrega particularidades que estremam a interpretação constitucional da interpretação das

normas ordinárias.

Deve a interpretação das normas constitucionais estar norteada por alguns

postulados específicos desenvolvidos pela hermenêutica constitucional: a força normativa

da Constituição, sua supremacia e unidade, a necessidade de harmonização entre as normas

constitucionais em atrito e a busca da máxima eficácia da Lei Maior. Deve, sobretudo,

levar em consideração os valores prestigiados pelo Texto Constitucional, internalizados

por meio dos princípios constitucionais, como preconiza o chamado pós-positivismo.

Os princípios constitucionais, representando o reconhecimento, no sistema

jurídico, dos valores prestigiados pela Constituição, devem servir de vetores

interpretativos, tanto das normas da própria Lei Maior como da legislação

infraconstitucional. A diferenciação exclusivamente lógica entre regras e princípios acaba

por eliminar a função interpretativa dos princípios jurídicos constitucionais.

A propriedade privada experimentou diversos regimes durante a história humana.

O caráter absoluto que se costuma atribuir ao direito de propriedade teve maior destaque

nas idéias liberais que nortearam a Revolução Francesa.

A função social da propriedade é fruto da necessidade de superação dos

problemas gerados pelo liberalismo econômico, surgidos principalmente após a Revolução

Industrial. Buscou-se introduzir um elemento social no perfil do direito de propriedade, até

então caracterizado por intenso individualismo.

129

A função social da propriedade está diretamente ligada aos ditames da justiça

social, nos termos preconizados pioneiramente pelo pensamento social cristão.

Não há incompatibilidade lógica entre os conceitos de direito subjetivo e função.

Há apenas um confronto ideológico entre o individualismo – que caracterizou o Estado

liberal – e a visão coletiva, social, do indivíduo, preocupação posterior ao liberalismo. A

propriedade, entre nós, continua sendo concebida como direito subjetivo, ao qual o

ordenamento constitucional agregou uma função.

A função social só tem sentido se relacionada à propriedade privada. A

propriedade pública, por ser instrumento da realização de finalidades coletivas, não pode

estar sujeita aos influxos obrigacionais derivados da função social da propriedade.

A função social da propriedade, como princípio constitucional, cumpre diversas

funções dentro do ordenamento jurídico: vincula os poderes do Estado e os particulares

como qualquer outra regra jurídica (eficácia positiva); serve como fundamento de validade

e como vetor de interpretação de toda a legislação infraconstitucional que trate da

propriedade privada (eficácia interpretativa), invalidando as que lhe forem contrárias

(eficácia negativa); e impede o retrocesso legislativo (eficácia proibitiva do retrocesso).

Tanto as limitações administrativas tradicionais (advindas do poder de polícia

estatal) como a função social da propriedade contribuem para o delineamento dos confins

do direito de propriedade, tal como aceito em nosso ordenamento jurídico.

A adoção do princípio da função social da propriedade não fundamenta apenas as

intervenções tradicionais sobre a propriedade privada, baseadas na concepção tradicional

do poder de polícia. Concluir assim seria retirar do princípio grande parte de sua força, e

contrariar a razão de sua própria concepção, justamente a necessidade de superar os

entraves criados pelo Estado liberal.

O princípio da função social da propriedade, como princípio constitucional, não

fundamenta apenas os novos institutos de intervenção sobre a propriedade privada (v.g.,

parcelamento, utilização e edificação compulsórios), mas deve também irradiar efeitos

130

sobre toda e qualquer forma de intervenção estatal na propriedade privada. Devemos

diferenciar o princípio jurídico da função social da propriedade dos instrumentos e regras

dele decorrentes, a fim de que seu conteúdo não reste indevidamente deprimido.

A submissão do direito de propriedade ao princípio da função social da

propriedade, tal como estruturada na Constituição vigente, não permite negar a proteção

possessória ao proprietário de um bem que não cumpre sua função social.

A extinção da propriedade que não cumpra sua função social não é decorrência

inelutável da adoção do princípio da função social. Cada ordenamento jurídico pode

sistematizar o cumprimento da função social de maneira diversa.

O sistema adotado em nossa Constituição protege a propriedade privada ainda que

esta não esteja cumprindo sua função social. A extinção da propriedade anti-social é

prevista como forma de fomentar o cumprimento da função social da propriedade, e exige,

ainda quando seja efetivada pelo Poder Público, a respectiva indenização.

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