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POMAR / FAVI Daniele Amaral de Sá O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE FADA E SUAS IMPLICAÇÕES NA ARTETERAPIA Rio de Janeiro 2016

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE … · incentivaram meus caminhos de formação por mais diversos que fossem. 4 AGRADECIMENTOS ... de Marie-Louise Von Franz, discípula

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POMAR / FAVI

Daniele Amaral de Sá

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE FADA E SUAS IMPLICAÇÕES NA ARTETERAPIA

Rio de Janeiro

2016

2

DANIELE AMARAL DE SÁ

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE FADA E SUAS IMPLICAÇÕES NA ARTETERAPIA

Monografia de conclusão de curso a ser apresentada ao

POMAR/FAVI como requisito parcial à obtenção do título de

Especialista em Arteterapia.

Orientadora:

Profª Ms. Dina Lúcia Chaves Rocha

Rio de Janeiro

2016

3

Dedico este trabalho à minha mãe e minha irmã que sempre

incentivaram meus caminhos de formação por mais diversos

que fossem.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Deus por sua força, luz e amor.

À minha família por toda compreensão e incentivo.

Ao companheiro Cosme por sua presença sempre amiga e cuidadosa.

Aos professores da Pomar por todas as trocas e ensinamentos.

À minha orientadora Dina Rocha por sua disponibilidade e comprometimento.

Às amigas da turma de Arteterapia pela convivência generosa e acolhedora.

5

RESUMO

Ao longo do tempo, os contos de fada tradicionais sofreram diversas modificações,

assumindo variadas versões das quais poderiam ser retirados ou adicionados novos

elementos. Sabendo que o conto de fadas pode ser um recurso simbólico no

processo arteterapêutico, este trabalho buscou estudar as interferências destas

transformações no campo da arteterapia. Neste sentido, a partir do referencial

teórico da psicologia analítica, realizou-se uma pesquisa bibliográfica abordando-se

a necessidade de transformação destas narrativas ancestrais e sua utilização no

campo arteterapêutico.

Palavras-chave: Arteterapia – Contos de Fada – Transformação – Psicologia

Analítica.

6

ABSTRACT

Over the years the traditional fairy tales suffered various modifications assuming

numerous versions of which could be taken or added new elements. Knowing that

fairy tale can be a symbolic resource in the art therapeutic process, this work

searched to study the interferences of this transformations in the art therapy field. In

this sense, from the analytic psychology theoretical background, this study carry out

a bibliographic research addressing the transformation necessity of this ancient

narrative and your use in the art therapeutic field.

Key words: Art therapy – Fairy Tale – Transformation - Analytic Psychology.

7

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - A leitura dos contos de fada. .................................................................. 13 Disponível em: //mlb-s1-p.mlstatic.com/garota-lendo-livro-conto-fadas-fruta-pintor-gow-tela-repro-18501-MLB20156481871_092014-O.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 2 - Roda da Vida.......................................................................................... 15 Disponível em: www.sacredcirclecreativelife.com/wpcontent/uploads/2012/11/circleofwo men.jpeg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 3 - Linguagens da alma. .............................................................................. 19 Disponível em: //peoplemattersleeds.files.wordpress.com/2013/02/paint-brushes.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 4 - Colagem. ................................................................................................ 20 Acervo pessoal da autora

Imagem 5 - Modelagem em argila. ............................................................................ 21 Acervo pessoal da autora

Imagem 6 - Esculturas em argila. .............................................................................. 21 Acervo pessoal da autora

Imagem 7 - Pintura .................................................................................................... 22 Acervo pessoal da autora

Imagem 8 - Tecelagemem Olho de Deus e Filtro dos Sonhos. ................................. 22 Acervo pessoal da autora

Imagem 9 - Chapeuzinho Vermelho construída com sucata. .................................... 23 Acervo pessoal da autora

Imagem 10 - Mil pedaços. ......................................................................................... 24 Acervo pessoal da autora

Imagem 11 - Árvore da Vida - mosaico em E.V.A e papelão .................................... 24 Acervo pessoal da autora

Imagem 12 - Mundo encantado ................................................................................. 25 Disponível em: //iai.tv/assets/Uploads/fairy.jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 13 - Pintura de John William Waterhouse. .................................................. 28 Disponível em: //trasnformandovidas.blogspot.com.br/2012/02/o-contador-dehistorias.

html

Acesso em: 07/06/2016.

8

Imagem 14 - João, Maria e a Bruxa .......................................................................... 31 Disponível em: http://1.bp.blogspot.com/-tsJXQCJF8h0/UG4YXTGC_PI/AAAA AAAAAbs/s1Lz6zV8eVo/s1600/hansel-and-gretel-grimms-fairy-tales-rackham.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 15 - Mundo secreto...................................................................................... 33 Disponível em: //mlb-s1-p.mlstatic.com/garota-lendo-livro-conto-fadas-fruta-pintor-gow-tela-repro-18501-MLB20156481871_092014-O.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 16 - Chapeuzinho Vermelho em feltragem. ................................................. 36

Acervo pessoal da autora

Imagem 17 - Matriz universal. ................................................................................... 39

Disponível: www.pinterest.com/pin/569423946615027189/ Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 18 - Nossos símbolos. ................................................................................. 40

Disponível em: //41.media.tumblr.com/bd3b8fbde19df847b5914a2d2f0a7a4f/tumblr_n

jmgxje83W1qzs5cgo1_1280.jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 19 - Chapeuzinho Vermelho e o Lobo. ........................................................ 43

Disponível: //4.bp.blogspot.com/-utXHJbwziX0/UFlZgBhu2xI/AAAAAAAACYY/5OaeV C_vgV8/s1600/Blaz+Porenta+-+Red+Riding+Hood+(Chapeuzinho+Vermelho).jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 20 - Um caminho para o inconsciente. ........................................................ 46

Disponível em: //i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/01476/littleredriding_1476012f. jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 21 - Os dois lados de um rio. ....................................................................... 51

Disponível: //l.exam-10.com/pars_docs/refs/12/11514/11514_html_m34842ed3.jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 22 - Desfazer-se. ......................................................................................... 55

Disponível em: //2.bp.blogspot.com/-RP2pd3eD66Q/UuwcXnMLiNI/AAAAAAAAQms /lTf2o80ov6o/s1600/Christian+Schloe_digital_artodyssey+(1).jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 23 - Caminho. .............................................................................................. 59 Disponível em: //4.bp.blogspot.com/-QBe3sukmf_8/U6weNwuPRpI/AAAAAAAAYhM /54_MSO7V7Us/s1600/6348260-R3L8T8D-800-0_9e966_f5ab1d79_XXXL.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 24 - Asas à imaginação. .............................................................................. 64 Disponível em: //www.neeerd.com/img/imgAlbumes/4334/9528/0019_gSlpu8lm-surrealismo-expresiones-colores-raras.jpg Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 25 - Descoberta. .......................................................................................... 65

Disponível em: //brasilescola.uol.com.br/upload/conteudo/images/6b56dd486f15053

693cc34b2ac8f0e8b.jpg

9

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 26 - Contando histórias. .............................................................................. 67 Disponível em: br.pinterest.com/pin/385480049336013075/

Acesso em: 07/06/2016.

Imagem 27 - "O príncipe encantado"- antiga fábula chinesa..................................... 69 Disponível em: //grupopapeando.wordpress.com/tag/inconsciente-coletivo/

Acesso em: 07/06/2016.

Imagem 27 - Sopro ....................................................................................................70

Disponível em: http://contacausos.com.br/site2/blogcontacausos/

Acesso em: 07/06/2016.

Imagem 29 - Branca de Neve e a Rainha Má. .......................................................... 71

Disponível em: cacaupinho.com.br/movie-time-conto-de-fadas-no-cinema/

Acesso em: 07/06/2016.

Imagem 30 - A garota da capa vermelha. ................................................................. 72 Disponível em://lh3.googleusercontent.com/-3Gy2gar9DRg/VFlntGw1IZI/AAAAAAAA DAc/fvfQLKIYokk/%25255BUNSET%25255D.png Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 31 - Chapeuzinho Vermelho e o Lobo escondido........................................73 Disponível em: http://www.surlalunefairytales.com/illustrations/ridinghood/dorered3.

html

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 32 - João e Maria: Caçadores de bruxas. .................................................... 75

Disponível em: //br.pinterest.com/pin/149604018849880146/

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 33 - Casa de doces. .................................................................................... 76

Disponível em: //www.blog.quartogeek.com.br/wp-content/uploads/2012/06/snowwhi

te_quartogeek.jpg

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 34 - Branca de Neve e o Caçador. .............................................................. 77

Disponível em: //www.blog.quartogeek.com.br/wp-content/uploads/2012/06/snowwhi

te_quartoeek.jpg

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 35 - Branca de Neve guerreira. ................................................................... 78

Disponível em: //eclipsevemai.files.wordpress.com/2011/08/snow-w.jpg

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 36 - Malévola. .............................................................................................. 80 Disponível em: //jumphawk.jovemnerd.com.br/wp-content/uploads/maleficent-533fa 922b3277.jpg Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 37 - Malévola e Aurora. ............................................................................... 81

Disponível em: //imgsapp.df.divirtasemais.com.br/app/noticia_133890394703/2014/ 05/29/149447/20140529090812173914o.jpg

10

Acesso em: 03/02/2016.

Imagem 38 - Princesas modernas. ............................................................................ 82

Disponível em: www.obaoba.com.br/outros/noticia/veja-cinco-adaptacoes-de-contos-de-fada-em-filmes

Acesso em: 07/06/2016.

Imagem 39 - União dos opostos. ............................................................................... 84

Disponível em: //s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/61/fb/02/61fb02dca52bdc50fa 502139384e1e0d.jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 40 - Saindo do papel. .................................................................................. 86

Disponível em: //horoscopovirtual.uol.com.br/imagem/artigos/interno/images/conto-de-

fadas(1).jpg

Acesso em: 27/01/2016.

Imagem 41 - Ponte. ................................................................................................... 89

Disponível em: //simplistanapista.files.wordpress.com/2012/11/ponte-surrealista-2.jp g?w=584&h=424

Acesso em: 27/01/2016.

11

SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................... 5

ABSTRACT ................................................................................................................. 6

LISTA DE IMAGENS .................................................................................................. 7

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... ....13

CAPÍTULO 1 A ARTETERAPIA ............................................................................... 15

1.1 MODALIDADES EXPRESSIVAS ........................................................................ 19

CAPÍTULO 2 OS CONTOS DE FADA ...................................................................... 25

2.1 A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADA ....................................................... 28

2.2 A ARTETERAPIA E OS CONTOS DE FADA ...................................................... 33

2.2.1 A amplificação e o conto de fadas ................................................................ 36

CAPÍTULO 3 A PSICOLOGIA ANALÍTICA E OS CONTOS DE FADA ................... 39

3.1 CONTOS DE FADA E O SÍMBOLO .................................................................... 40

3.2 CONTOS DE FADA E A SOMBRA ..................................................................... 43

3.3 OS CONTOS DE FADA, OS ARQUÉTIPOS E O INCONSCIENTE COLETIVO . 46

3.4 OS CONTOS DE FADA E O ANIMUS E A ANIMA ............................................. 51

3.5 CONTOS DE FADA E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO ............................... 55

3.6 OS CONTOS DE FADA E O SELF ..................................................................... 59

CAPÍTULO 4 O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE FADA E

SUAS IMPLICAÇÕES NA ARTETERAPIA .............................................................. 64

4.1 O NASCIMENTO DE UM CONTO DE FADAS ................................................... 65

4.2 COMO OS CONTOS DE FADA SE TRANSFORMAM........................................ 67

4.3 A UNIVERSALIDADE DOS CONTOS DE FADA ................................................ 69

4.4 OS CONTOS DE FADA NO CINEMA ................................................................. 71

4.4.1 Os novos elementos em a “A garota da capa vermelha” ........................... 72

4.4.2 Os novos elementos em “João e Maria: caçadores de bruxas” ................ 75

4.4.3 Os novos elementos em “A Branca de Neve e o caçador” ........................ 77

12

4.4.4 Os novos elementos em “Malévola”............................................................. 80

4.5 A TRANSFORMAÇÃO NOS CONTOS DE FADA ............................................... 82

4.6 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO DOS OPOSTOS ..................................... 84

4.7 IMPLICAÇÕES NO TRABALHO ARTETERAPÊUTICO ..................................... 86

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES ................................................................... 89

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 92

ANEXO ..................................................................................................................... 94

13

INTRODUÇÃO

Imagem 1 - A leitura dos contos de fada.

Disponível em: //mlb-s1-p.mlstatic.com/garota-lendo-livro-conto-fadas-fruta-pintor-gow-tela-repro-

18501-MLB20156481871_092014-O.jpg

O conto é um recurso que faz parte do processo arteterapêutico e sua

utilização possibilita acessar conteúdos inconscientes por meio dos símbolos

existentes nas histórias.

Atualmente é possível perceber a transformação dos contos de fada

tradicionais, especialmente nas adaptações do cinema. Os contos reaparecem com

elementos comuns, mas trazem modificações no enredo, por vezes, construindo

outros finais para as histórias. Esta mudança nos contos de fada evidencia uma

transformação no campo simbólico, objeto de investigação da arteterapia.

A partir destas observações, objetivou-se estudar a relação entre a

transformação dos contos de fada em seu contexto histórico-cultural e sua

implicação no campo arteterapêutico. Desta forma, este trabalho foi dividido em

quatro capítulos, o primeiro capítulo aborda o campo da arteterapia em sua atuação

e importância, o segundo capítulo define e contextualiza o conto de fadas, o terceiro

14

capítulo trata da relação entre a psicologia analítica e os contos de fada e o quarto

capítulo discute as transformações dos contos tradicionais e suas adaptações atuais

pelo cinema. Neste quarto capítulo analisou-se os contos “A Bela Adormecida”,

“João e Maria”, “Chapeuzinho Vermelho” e “Branca de Neve” em suas respectivas

adaptações pelo cinema, nos filmes “Malévola”, “João e Maria: caçadores de

bruxas”, “A garota da capa vermelha” e “Branca de Neve e o Caçador”.

Como referência para este trabalho recorreu-se principalmente às produções

de Marie-Louise Von Franz, discípula de Jung. Esta autora oferece importantes

contribuições para os estudos relacionados aos contos de fada em sua expressão

como construção humana e representação da estrutura psíquica.

Em geral os contos de fada fazem parte da formação das pessoas. Muito

utilizado com as crianças em casa ou na escola, sua popularização atravessou as

fronteiras dos territórios onde foram criados. Com o avanço dos meios de

comunicação tornou-se difícil conhecer alguém que nunca tenha ouvido um conto de

fadas, seja em sua versão tradicional ou nas adaptações recorrentes. O interesse

em pesquisar este tema refere-se também ao encantamento provocado pelos

contos. Ao se ter contato com este mundo mágico é frequente a identificação com

seus temas, fazendo com que suas narrativas continuem sendo contadas de

geração para geração.

15

CAPÍTULO 1

A ARTETERAPIA

Imagem 2 - Roda da Vida.

Disponível em: www.sacredcirclecreativelife.com/wpcontent/uploads/2012/11/circleofwomen.jpeg

Arte é a expressão mais pura que há para a demonstração do inconsciente de cada um. È a liberdade de expressão, é sensibilidade, criatividade e vida.

Jung

A arteterapia é um processo terapêutico que utiliza materiais expressivos e

por meio da arte promove saúde. Como afirma Philippini (2013b, p. 11) “uma, dentre

as inúmeras formas de descrever o que é mesmo Arteterapia, será considerá-la

como um processo terapêutico, que ocorre por meio da utilização de modalidades

expressivas diversas”.

16

A partir das imagens produzidas pelo sujeito, é possível ter acesso aos

conteúdos inconscientes e transformar os processos geradores de doença que

aprisionam a energia vital, em centros geradores de saúde. Para Philippini (2013b,

p. 13), a arteterapia oferece “[...] a possibilidade de ativar núcleos de saúde e

criatividade.”.

Neste contexto a expressão criativa propícia a descoberta do significado de eventos psíquicos até então obscuros, amplia a possibilidade de estruturação da personalidade e constrói maneiras mais produtivas para a comunicação, interação e o “estar-no-mundo”. (PHILIPPINI, 2013b, p. 71, grifo do autor)

No Brasil, a precursora do trabalho terapêutico a partir da arte foi a médica

psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu do Inconsciente. Nise oferecia a

arte como forma de tratamento para a esquizofrenia, obtendo valiosos resultados no

Hospital Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro, na década de quarenta.

Pode-se dizer que a arteterapia é “[...] um processo terapêutico que resgata

técnicas milenares de promoção, prevenção e expansão da saúde.” (PHILIPPINI,

2013b, p. 13) A arteterapia utiliza uma gama de técnicas e materiais plásticos para

proporcionar a fluidez criativa e a materialização dos símbolos inconscientes. Esta é

uma terapia não verbal, que prioriza o uso de imagens na construção do trabalho

terapêutico. A palavra é secundária durante o processo, pois primeiro são

produzidas as imagens.

A “Arteterapia é o uso terapêutico da atividade artística [...]” (PHILIPPINI,

2013b, p. 11), e esta, por sua vez, promove a liberação do fluxo criativo,

aumentando a força vital do sujeito. O processo arteterapêutico abre caminhos para

a manifestação dos conteúdos psíquicos que são expressos por meio de imagens.

Utilizando-se linguagens como a pintura, a colagem, a modelagem e o desenho, é

possível expressar por meio das imagens questões pertinentes ao sujeito. Estas

imagens, quando acessadas pelo consciente, podem ser trabalhadas, buscando a

promoção da saúde.

Durante o processo, cabe ao arteterapeuta, em consonância com o cliente que cria o símbolo, contextualizar o seu significado, tendo em consideração a individualidade e a história daquele que se expressa. Para tal, o universo junguiano em Arteterapia fornece uma bússola que orienta o entendimento desta produção simbólica. (NAGEM, 2013, p. 22, grifo do autor)

17

O movimento de transformação do sujeito acontece por meio da identificação

de símbolos que fazem ressonância à suas questões psíquicas, convocando o

sujeito para a ressignificação destas imagens.

As imagens são modos de comunicar, de relacionar-se, de expressar algo e

muitas vezes estas evocam conteúdos inconscientes, vestígios que podem ser

ampliados e trabalhados no setting arteterapêutico.

O setting em Arteterapia é um local que oferecerá ao sujeito uma terra fértil

para a atividade artística e sua transformação. Um terreno seguro, onde o fluir

criativo permite expor os conteúdos psíquicos para que possam ser trabalhados num

processo de construção, desconstrução, reconstrução e elaboração. Philippini

afirma que este deve ser um território sagrado, um espaço de acolhimento “[...] no

qual em meio as asperezas do cotidiano, abrem-se trilhas de entrada num espaço

mítico de autodescoberta, lugar de gestar-se em sonhos e projetos” (PHILIPPINI,

2013b, p. 41).

O setting da Arteterapia, com sua formatação de laboratório de alquimista, recria nos tempos atuais, o tão necessário território sagrado. Funciona como local de criação, de resgatar e expandir potencialidades adormecidas, de desvelar sentimentos, de compreender conteúdos inconscientes. (PHILIPPINI, 2013b, p. 39)

Mobilizar afetos por meio da produção de imagens é o objetivo da artererapia.

Este movimento propicia um encontro com a energia criativa da vida, trazendo à

tona conteúdos particulares e coletivos, matéria-prima para variadas formas

expressivas como pintura, dança, teatro, desenho, entre outros. Entrar em contato

com algo desconhecido da consciência é um passo importante para acessar níveis

afetivos mais profundos. Como afirma Nagem (2013, p. 23),

Recuperando seu potencial criativo, que é fruto de seu processo de trabalho e de crescimento contínuo, o homem criador toma posse da matéria-prima essencial ao seu processo transformador psíquico e plástico, imaterial e material, de sua identidade e de sua forma.

Nagem (2013) afirma que a arteterapia constrói com o sujeito um caminho de

individuação, possibilitando seu desenvolvimento. Neste sentido, as criações de

cada pessoa serão pistas de um caminho para a promoção de saúde. As formas de

ser, sentir e experimentar o mundo manifestadas plasticamente, podem ser

transformadas a partir do contato com as próprias imagens, atribuindo-lhes novos

18

sentidos, podendo entendê-las e modificá-las. O arteterapeuta não interpreta as

imagens criadas, mas proporciona um apoio, oferecendo técnicas e materiais

diversos para a criação e simbolização. O arteterapeuta oferece um território

sagrado para criação e amplificação das imagens.

Em Philippini (2013b), observa-se que o método de amplificação das imagens

é fundamental em Arteterapia, pois explora de forma aprofundada os símbolos que

aparecem no processo terapêutico podendo tornar conscientes seus significados e

entrelaçamentos. Trabalhar sobre uma imagem é dar à ela outras formas por meio

de técnicas diversas e, assim, buscar seu entendimento, compreendendo sua

origem e sentido. “A amplificação simbólica tem o propósito de aumentar a

possibilidade de compreensão do significado de um símbolo.” (PHILIPPINI, 2013b,

p. 21)

Segundo Philippini (2013b) as imagens produzidas em arteterapia não

passam por um critério estético, mas guardam uma preocupação com sua

capacidade expressiva. Sendo assim, em um processo arteterapêutico não são

necessários ao cliente conhecimentos prévios de técnicas artísticas.

De acordo com Nachmanovitch (1993), é comum observarmos em nossa

sociedade um acentuado bloqueio criativo em que o sujeito não percebe sua

capacidade criativa, a qual encontra-se embotada pelos modos mecânicos e

formatados de viver. Ao tornar-se adulto o sujeito desliga-se cada vez mais de sua

capacidade expressiva artística, não permitindo seu desenvolvimento.

Por meio das modalidades expressivas da pintura, do desenho, da

modelagem, da colagem, do teatro, da dança, da escrita criativa, da tecelagem, da

música, dos contos, da fotografia, do vídeo, da construção, entre outros recursos

plásticos, o indivíduo é convidado a mobilizar conteúdos inconscientes particulares e

coletivos construindo percursos de integração, desbloqueando a energia criativa.

A sensação de conflito, que por algumas vezes se faz presente no caminho de transformação, induz o indivíduo a voltar-se para o seu interior e buscar em seu inconsciente uma resposta para suas mais frequentes dúvidas. Para o artesão-artista, ou qualquer pessoa que busque o dom de criar pelas próprias mãos, o confronto entre o real (a matéria, o consciente) e o imaginário (o inconsciente externado pela arte) é a melhor forma de resolução de conflitos, pois integra as dimensões consciente e inconsciente, por meio de uma solução criativa, real e palpável. (NAGEM, 2013, p. 23)

A energia criativa é a energia que move, que possibilita encontrar saídas para

as situações cotidianas, é o que permite ter saúde, pois é pelo caminho criativo que

19

encontram-se os modos para lidar com os desafios do viver, recriando-se e

transformando-se continuamente. A energia vital quando encontra-se bloqueada

configura um estado que conduz para o adoecimento. A arteterapia age

reconectando o sujeito com sua energia criativa e resgatando seu estado de saúde.

“Deste modo, como uma rede de Indra, um processo criativo se ativa, pode vir a

libertar movimentos expressivos que fazem nascer outros gestos criativos.”

(PHILIPPINI, 2013b, p. 72). A atividade artística alia-se de forma tão próxima às

forças anímicas que é difícil antevermos uma vida sem criatividade, sem criação,

sem arte. Segundo Philippini (2013a), a sociedade ocidental por vezes tenta calar a

Anima Mundi, a alma do mundo, nossa força criadora e acabamos por desconhecer

seu imenso potencial.

Desta forma, a arte atua no nível da sensibilidade, dizendo aquilo que as

palavras não conseguem expressar. O fazer artístico surge para dar conta deste

não dito que precisa fluir de alguma forma e materializar-se.

1.1 MODALIDADES EXPRESSIVAS

Imagem 3 - Linguagens da alma.

Disponível em: //peoplemattersleeds.files.wordpress.com/2013/02/paint-brushes.jpg

Na arte, a inspiração tem um toque de magia, porque é uma coisa absoluta, inexplicável. Não creio que venha de fora pra dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que emerge do mais profundo eu da pessoa, do inconsciente individual, coletivo e cósmico.

Clarice Lispector

20

Como meio de acesso aos conteúdos inconscientes o arteterapeuta utiliza as

imagens produzidas pelo cliente, as quais permitem a identificação de elementos

relacionados à experiência do indivíduo, tanto conhecidos como desconhecidos.

Estas imagens podem ser produzidas a partir de diversos materiais e modalidades

artísticas. Com isto, são oferecidos uma diversidade de técnicas impulsionando a

produção destas imagens.

As modalidades expressivas aliam-se à vitalização de energias criativas. Estas

conexões produzidas pelas diversas técnicas dão sinais sobre os bloqueios e os

caminhos do fluxo criativo. É necessário perceber a modalidade expressiva que mais

mobiliza o indivíduo ao encontro de seu centro, proporcionando o conhecimento de

seus símbolos, podendo ressignificá-los. Neste sentido, a arteterapia utiliza os

materiais expressivos para dar forma aos afetos e, assim, compreendê-los.

É importante ter em mente o que as imagens produzidas informam para seu

autor. As colagens, por exemplo, podem ser observadas em vários aspectos como

os materiais utilizados, as cenas escolhidas, suas cores e a posição em que são

coladas e se relacionam. Com isto, a seguir, partindo das considerações de

Philippini (2009), são destacadas algumas modalidades expressivas e suas

principais características.

Imagem 4 - Colagem.

Acervo pessoal da autora

21

A modelagem é um recurso que auxilia no processo de concretização, seu

caráter tridimensional oferece maior realidade aos objetos criados, deste modo pode

trazer grande intensidade na manifestação dos conteúdos inconscientes.

Imagem 5 - Modelagem em argila.

Acervo pessoal da autora

Imagem 6 - Esculturas em argila.

Acervo pessoal da autora

22

A pintura permite a possibilidade de experimentar o não controle por meio da

fluidez das tintas, as quais oferecem sensações a partir do contato com suas cores.

Com estas características as tintas podem ativar ou desbloquear o fluxo criativo.

Imagem 7 - Pintura

Acervo pessoal da autora

A tecelagem propicia o contato com temas relacionados à estruturação e

organização. Ao ligar ponto por ponto, este movimento traz a percepção da

integração, ao tecer a trama até formar um todo.

Imagem 8 – Tecelagem em Olho de Deus e Filtro dos Sonhos.

Acervo pessoal da autora

23

A construção oferece desafios ao propor a materialização de determinados

objetos por meio de partes que necessitam ser agrupadas. Ao confeccionar um

objeto preocupa-se com a junção de materiais diversos, podendo utilizar-se de

sucata, por exemplo. A proporção e o equilíbrio da obra final é outro desafio para o

autor, os quais depois de superados podem agir como promotores da ordenação dos

afetos.

Imagem 9 - Chapeuzinho Vermelho construída com sucata.

Acervo pessoal da autora

O mosaico é uma modalidade que busca a integração, reunindo fragmentos de

cacos de azulejo ou outros materiais, pode-se promover uma reconstrução

emocional. A união dos pedaços para compor uma nova figura que remete ao ato

de fazer e desfazer, assemelhando-se a experiência de dar novos sentidos para a

existência, estabelecendo uma outra organização afetiva.

24

Imagem 10 - Mil pedaços.

Acervo pessoal da autora

Imagem 11 - Árvore da Vida - mosaico em E.V.A e papelão

Acervo pessoal da autora

Philippini (2009) aponta para a possibilidade de utilização de linguagens

expressivas que baseiam-se nas artes plásticas e aquelas que não se utilizam

destas técnicas e materiais, mas que também podem proporcionar grande

mobilização dos conteúdos do cliente. O conto de fadas está dentro desta categoria

que não pertence às artes plásticas, mas que também pode oferecer o acesso às

forças criativas promovendo a elucidação e transformação de seus conteúdos. No

próximo capítulo esta linguagem expressiva será abordada com maior profundidade.

25

CAPÍTULO 2

OS CONTOS DE FADA

Imagem 12- Mundo encantado

Disponível em: //iai.tv/assets/Uploads/fairy.jpg

Sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem. Não importa o lugar, não importa a hora, não importa a estação do ano, o fato de uma história estar sendo contada faz com que um céu estrelado e uma lua branca entrem sorrateiros pelo beiral e fiquem pairando acima da cabeça dos ouvintes.

Clarissa Pinkola Estés

Segundo Corso e Corso (2006), os contos de fada, também chamados contos

maravilhosos, definem-se por conter elementos extraordinários, mágicos e

singulares, são histórias atravessadas por algum encantamento. Desta forma, o

conto não precisa necessariamente conter fadas, mas possuir elementos mágicos.

Perrault, em 1697, foi o primeiro a coletar os contos que circulavam apenas

de forma oral, muitas vezes contados pelas babás e amas de leite que vinham da

classe camponesa. Estes contos faziam parte do cotidiano do povo camponês,

26

classe social diferente de Perrault que pertencia à corte de Luis XIV. Neste sentido,

quando o autor recolheu os contos para publicação, os modificou para que tivessem

aceitação entre a elite da época. No entanto, Darnton (1986) afirma que apesar das

modificações os contos recolhidos e escritos por Perrault conservaram “muito de sua

força original.” (DARNTON, 1986, p. 30).

O autor Robert Darnton (1986) esclarece que a versão de Perrault nos Contos

da Mamãe Gansa não é a única, mas existem outras versões para os contos de

tradição popular. Com isto, o autor aponta para o cuidado em se apegar aos

detalhes de cada conto, pois são estes justamente que se modificam com o tempo e

com a localidade em que são contados. A estrutura básica de muitos contos

permaneceu, o que faz com que diversos contos sejam identificados em localidades

diferentes por manterem a mesma estrutura, no entanto, modificam os detalhes e o

cenário que se assemelham aos costumes locais.

Diante dessas incertezas, parece desaconselhável elaborar uma interpretação com base numa única versão de um único conto, e mais arriscado ainda basear análises simbólicas em detalhes – capuzes vermelhos e caçadores - que podem não ter aparecido nas versões dos camponeses. [...] É possível estudá-lo ao nível da estrutura, observando a maneira como a narrativa é organizada e como os temas se combinam, em vez de nos concentrarmos em pequenos detalhes. Assim, é possível comparar o conto com outras historias. E, finalmente, trabalhando com todo o conjunto dos contos populares franceses, poderemos distinguir características gerais, temas centrais e elementos difusos de estilo e tom. (DARNTON, 1986, p. 6)

Na França do Antigo Regime do século XVII, os contos tinham como tema

especial a fome, os maus tratos e a busca pela sobrevivência. Estes temas refletiam

a realidade de morte iminente e pobreza extrema da época. Neste sentido, Darnton

(1986) apresenta uma outra versão de Cinderela, cujo tema principal é a fome e o

alimento.

Numa versão comum ("La Petite Annette", conto tipo 511), a madrasta má dá à pobre Annette apenas um pedaço de pão por dia e faz com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irmãs postiças vagueiam pela casa e jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette está a ponto de morrer de inanição, quando a Virgem Maria aparece e lhe dá uma varinha mágica, que produz um magnífico banquete, todas às vezes em que Annette toca com ela uma ovelha negra. Não demora muito e a menina está mais gorducha que suas irmãs postiças. Mas sua beleza recém-adquirida - e a gordura corresponde a beleza, no Antigo Regime, como em muitas sociedades primitivas -desperta as suspeitas da madrasta. Através de um artifício, a madrasta descobre a ovelha mágica, mata-a e serve seu fígado a Annette. Annette

27

consegue, secretamente, enterrar o fígado e ele se transforma numa árvore, tão alta que ninguém consegue colher suas frutas, a não ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre que se aproxima. Um príncipe de passagem (que é tão guloso como todos os demais no país) descia tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando casar uma de suas filhas, a madrasta constrói uma grande escada. Mas, quando vai experimentá-la, cai e quebra o pescoço. Annette, então, colhe as frutas, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre. (DARNTON, 1986, p. 13)

Darnton (1986) contextualiza que Perrault recolheu os contos, em meados de

1690, uma época em que a França vivia a pior crise demográfica do século XVII,

assolada pelas pestes, momento em que a vida era curta e a morte habitual. Relata

que neste período eram comuns os salteadores, as madrastas, os órfãos, os

trabalhos intermináveis e exaustivos tanto para as crianças como para os adultos, o

abandono de bebês e crianças e a fome. É comum nos contos elementos que

retratavam tal cotidiano como o abandono de crianças, o cuidado das madrastas, a

pobreza e o sonho por uma vida melhor. O autor aponta que os contos populares

franceses auxiliavam os camponeses a lidarem com a vida grosseira que levavam,

histórias muitas vezes sem final feliz alertavam para a crueldade da ordem social

vivenciada. E neste sentido, afirma que o que chama maior atenção até hoje aos

contos são os conflitos e calamidades a que as personagens são afrontadas, e não

seus finais felizes. Darnton (1986) observa que os contos populares franceses não

são contos moralizantes, mas demonstram a realidade “[...] mostram como é feito o

mundo e como se pode enfrentá-lo.” (p. 31)

No início do século XIX, na Alemanha os Irmãos Grimm realizaram um

movimento de busca pelos contos tradicionais semelhante ao realizado por Perrault

na França, no sentido de resgatarem aquelas histórias que eram passadas de

geração em geração de forma oral. No entanto, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm

desenvolveram um trabalho mais extenso, coletando cerca de 211 contos, os quais

foram impressos em sete edições. A primeira publicação data de 1812 e a segunda

nomeada de “Contos para crianças e para a família” ocorreu em 1819. Nesta

segunda edição, os autores acrescentaram alguns contos e excluíram outros, estas

modificações foram feitas também nas organizações seguintes, findando com a

última publicação em vida no ano de1857. Impulsionados pelo regate das tradições

populares alemãs, os Irmãos Grimm compilaram os contos folclóricos formando um

grande acervo. Este interesse em recolher tais narrativas perpassava o contexto

histórico da época, no início do século XIX a Alemanha não se constituía como um

28

país unificado e surgia neste momento a tentativa de resgate e construção de uma

cultura germânica. Deste modo, a pesquisa e coleta dos contos populares

caminhava ao encontro do estabelecimento de uma história alemã.

2.1 A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADA

Imagem 13 - Pintura de John William Waterhouse.

Disponível em: //trasnformandovidas.blogspot.com.br/2012/02/o-contador-de-historias.html

Se quiseres falar ao coração de um homem, conta uma história dessas em que não faltam animais, ou deuses e muita fantasia. Porque é assim, suave e docemente que se despertam consciências.

Jean de La Fontaine

Darnton (1986) afirma que tais contos de tradição oral fazem parte de uma

“antiga visão de mundo” (p. 32). No entanto, pode-se dizer que esta antiga visão

continua atualizando-se nas releituras contemporâneas, e sua base continua

fazendo sentido na modernidade. Estes contos recebem novos detalhes como

antigamente, mas guardam a mesma estrutura, permanecendo com grande

importância na orientação do indivíduo em seu enfrentamento aos novos obstáculos.

Diferente da época dos camponeses do século XVII, atualmente os contos de

fada são escritos e voltados para o público infantil. Corso e Corso (2006) relacionam

esta mudança de clientela com o que os historiadores chamam de invenção da

infância, o aparecimento de um cuidado especial com a criança e consequente

29

preocupação com sua formação, criando-lhe um mundo particular o que mais tarde

também culminou com o surgimento da psicologia infantil.

Bettelheim (2002) observa que os contos mostram-se para o público infantil

como um orientador em meio ao complexo mundo que a criança ainda está

conhecendo. Assim, a criança “Necessita de ideias sobre a forma de colocar ordem

na sua casa interior, e com base nisso ser capaz de criar ordem na sua vida.”

(BETTELHEIM, 2002, p. 5). Cabe aos adultos oferecer meios para que a criança

construa sentido aos acontecimentos muitas vezes incoerentes e neste âmbito a

educação moral tem seu valor. Bettelheim (2002) aponta que os contos de fada tem

um caráter significativo para as crianças, caráter este que pode não se dar no nível

consciente, mas age de modo fortalecedor e produtor de sentidos, apaziguando

conflitos e questões inconscientes. Entretanto, traduzir em sentimentos ou

interpretar um conto para uma criança pode ter consequências aniquiladoras da

produção de sentido que o conto seria capaz de produzir. Com isto, Bettelheim

(2002) orienta que é necessário deixar as interpretações para as capacidades da

própria criança.

Bettelheim (2002) afirma que os contos de fada folclóricos têm um diferencial

em relação à certas histórias da literatura infantil, pois falam tanto às crianças como

aos adultos. Afirma ainda que

[...] os contos de fadas, sendo recontados, foram tornando cada vez mais refinados, e passaram a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e encobertos – passaram a falar simultanemante a todos os níveis da personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da criança tanto quanto a do adulto sofisticado. (BETTELHEIM, 2002, p. 6)

Assim como uma obra de arte, Bettelheim (2002) observa que os contos

podem oferecer diferentes significados para a mesma pessoa dependendo da época

em que é lido. Para pessoas diferentes os contos também podem ter significados

diferentes, sendo tomados a partir das experiências e necessidades de cada um.

Uma história que foi importante para a criança em determinado momento pode

deixar de ser, sendo substituída por outra, e podendo voltar a ser necessária em

algum outro momento da vida em que assumirá novos significados. Corso (2006)

explica que mesmo um conto como o de “João e Maria” que trata de uma família

assolada pela fome e que por isso se desfaz de seus filhos na floresta, pode sim

30

encontrar sentido para pessoas que nunca vivenciaram a falta de alimentos, pois

seus significados vão além destes elementos concretos, mas o conto também fala

sobre “[...] a separação da mãe nutridora e o medo de ser abandonado pelos pais.”

(CORSO, 2006, p. 21)

Desta forma, Bettelheim (2002) considera os contos de fada de origem

folclórica como histórias que oferecem maior contribuição para as crianças que

muitas produções da literatura infantil, pois estas últimas podem não abordar temas

existenciais. E acrescenta ainda que “As estórias ‘fora de perigo’ não mencionam

nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo

pela vida eterna” (p. 6) Apesar dos contos não conterem elementos e cenários

modernos os contos de fada apresentam-se como um instrumento para “[...]

aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos, e sobre as

soluções corretas para seus predicamentos em qualquer sociedade, do que

qualquer outro tipo de estória dentro de uma compreensão infantil.” (BETTELHEIM,

2002 p. 5). Bettelheim (2002) afirma que em sua experiência “[...] as crianças – tanto

as normais quanto as anormais, e em todos os níveis de inteligência – acham os

contos de fadas folclóricos mais satisfatórios do que todas as outras estórias

infantis.” (p. 6)

Todavia, apesar das qualidades expostas, muitos pais e educadores

demonstram receio em apresentar os contos de fada às crianças por verem nas

histórias conteúdos muitas vezes cruéis, em que variadas formas de maldade e

criaturas terríveis ameaçam o herói ou a heroína, fazendo-os passar por diversas

dificuldades. Assim, alguns pais tendem a oferecer às crianças apenas histórias

agradáveis e sem conflito, as quais demonstram somente o lado bom da vida. No

entanto, Bettelheim (2002) alerta que desta forma se está oferecendo uma visão

unilateral da vida, pois “[...] não é só agradável.” (p. 9)

Neste sentido, o autor também destaca que muitos contos de fada

apresentam uma mensagem importante para as crianças, uma mensagem de

esperança. Os contos demonstram que

[...] uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa. (BETTELHEIM, 2002, p. 6)

31

A universalidade dos personagens nos contos é outro ponto que Betthelheim

(2002) assinala como benéfica para o entendimento das crianças. Os personagens

possuem pouca complexidade o que faz com que sejam facilmente assimilados. É

frequentemente a dualidade bem e mal demonstrada pelos personagens presentes

nos contos, que inaugura o conflito e a consequente aventura para resolver tal

oposição.

Imagem 14 - João, Maria e a Bruxa.

Disponível em: http://1.bp.blogspot.com/-

tsJXQCJF8h0/UG4YXTGC_PI/AAAAAAAAAbs/s1Lz6zV8eVo/s1600/hansel-and-gretel-grimms-fairy-tales-rackham.jpg

Entretanto, a oposição entre bem e mal assumida pelas personagens é

apontada por Bettelheim (2002) como necessária para o desenvolvimento da

criança, pois ainda não é capaz de assimilar os conteúdos ambivalentes, o que é

aos poucos conquistado em seu desenvolvimento. Neste sentido, a dualidade

presente nos contos de fada torna-se favorável para o entendimento infantil.

As ambiguidades devem esperar até que esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações positivas. Então a criança tem uma base para compreender que há grandes diferenças entre as pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções sobre quem quer ser. Esta decisão básica sobre a qual o

32

desenvolvimento ulterior da personalidade se construirá, é facilitada pelas polarizações do conto de fadas. (BETTELHEIM, 2002, p. 10)

Bettelheim (2002) esclarece que não é a dualidade bem e mal que

influenciará a personalidade da criança, mas a positividade que a personagem

manifesta. Os contos tradicionais não guardam um sentido moral sobre o que é bom

ou mal, percebe-se isto em alguns contos como “O gato de botas” em que por meio

de trapaças o felino consegue um casamento real para seu dono. Os contos “O gato

de botas” e “João e o pé de feijão” oferecem à criança “[...] a esperança de que

mesmo o mais medíocre pode ter sucesso na vida.” (BETTELHEIM, 2002, p. 10)

A criança se identifica com o bom herói não por causa de sua bondade, mas porque a condição do herói lhe traz um profundo apelo positivo. A questão para a criança não é "Será que quero ser bom?" mas "Com quem quero parecer?". A criança decide isto na base de se projetar calorosamente num personagem. Se esta figura é uma pessoa muito boa, então a criança decide que quer ser boa também. (BETTELHEIM, 2002, p. 10)

Bettelheim (2002) também acrescenta que o final “viveram felizes para

sempre” não engana a criança em relação à brevidade da vida humana ou suas

limitações, mas tráz um ensinamento sobre a maravilha de construir fortes laços com

outra pessoa.

A capacidade do herói partir rumo ao desconhecido e poder encontrar quem o

ajude e ainda um ambiente onde possa repousar, dá à criança uma confiança na

vida e a esperança de sucesso no enfrentamento dos obstáculos desconhecidos.

Corso e Corso (2006) acreditam que as histórias tornam-se famosas devido a

sua repercussão subjetiva em cada época e também ao que é aceitável em seu

modelo moral. A perpetuação de histórias como “Chapeuzinho Vermelho” e

“Cinderela”, por exemplo, deram-se ao passo que oferecem ainda hoje um campo

simbólico que encontra sentido na sociedade. No entanto, o conto “Pele de Asno”

que aborda uma tentativa de incesto não encontra hoje o mesmo espaço, apesar de

seu conteúdo ser igualmente rico em símbolos e significado. Assim, o fato de

determinados contos terem sido hoje esquecidos, não revela sua desqualificação,

mas sim o que a sociedade valoriza e pode assumir.

O que Bettelheim (2002) afirma como uma capacidade de simbolização,

podemos lançar mão da teoria de Jung e aproximar ao método de amplificação. Os

contos podem favorecer a possibilidade de simbolização quando oferecem

33

elementos que podem ser utilizados pela fantasia consciente e, assim, integrar seus

referidos conteúdos inconscientes.

Com isto, a criança adéqua o conteúdo inconsciente às fantasias conscientes, o que a capacita a lidar com este conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável, conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia descobrir verdadeiramente por si só. Ainda mais importante: a forma e estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais ela pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida. (BETTELHEIM, 2002, p. 8)

2.2 A ARTETERAPIA E OS CONTOS DE FADA

Esse conto de fadas e outros a ele semelhantes são bálsamos a serem aplicados sobre as feridas secretas. Eles são incentivo, orientação e resolução. O que se encontra por trás da formação da sabedoria dos contos de fadas é o fato de que, tanto para os homens quanto para as mulheres, danos ao self, à alma e à psique causados por segredos e por outros motivos, fazem parte da vida da maioria das pessoas. Nem podem ser evitadas as cicatrizes subseqüentes. Existe, no entanto, ajuda para esses danos e existe a cura, sem a menor sombra de dúvida.

Clarissa Pinkola Estés

Imagem 15 - Mundo secreto

Disponível em: //mlb-s1-p.mlstatic.com/garota-lendo-livro-conto-fadas-fruta-pintor-gow-tela-repro-

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34

De acordo com a psicologia analítica, os contos de fada são histórias

construídas a partir do inconsciente coletivo, e deste modo, abordam conteúdos

universais que pertencem a toda humanidade. Com isto, os contos são recursos que

podem ser utilizados pelo arteterapeuta para acessar conteúdos inconscientes.

Estas narrativas oferecem nutrição anímica, e sua escuta propõe alternativas simbólicas para o confronto e a superação de desafios. Seus temas são transculturais, por tratarem-se de dilemas existenciais na escala do humano, e por isso, suas narrativas ultrapassam fronteiras geográficas.” (PHILIPPINI, 2009, p. 122)

Neste sentido, Philippini (2013b) afirma que as histórias e contos de fada

auxiliam no processo de amplificação, um método que permite o aparecimento e a

identificação de símbolos inconscientes. A autora esclarece que mesmo sendo

histórias antigas, os contos continuam atuais em sua capacidade de significação. E

portanto, “Resgatar estas histórias antigas pode nos facilitar o encontro e a

compreensão dos mesmos temas em histórias contemporâneas de clientes em

processo arteterapêutico.” (PHILIPPINI, 2013b, p. 31) Com isto, a história do cliente

pode se compor com temas semelhantes presentes nos contos de fada.

As fantasias e sonhos pessoais têm a mesma fonte que os mitos e contos de

fada, todos originam-se do inconsciente coletivo. Utilizar-se de recursos como os

contos tradicionais é um meio de interpretação, análise e elaboração dos símbolos

apresentados pelo cliente.

Deste modo, os contos de fada são um recurso valioso para o arteterapeuta

que pode introduzir determinadas narrativas a partir do campo simbólico abordado

pelo cliente, possibilitando o aparecimento de imagens arquetípicas e temas míticos.

De acordo com Philippini (2013b), a utilização dos contos de fada pode ser

complementada com diversas modalidades expressivas, oferecendo maior

oportunidade para os conteúdos simbólicos emergirem. Os contos de fada a partir

da expressão dos conteúdos do inconsciente coletivo associados às modalidades

expressivas permitem a manifestação de conteúdos inconscientes do cliente.

Medeiros e Branco (2012) afirmam a partir de Estés, que trabalhar com histórias é

acionar a energia arquetípica que envolve o conto. Deste modo ao escutar um

conto, é possível a identificação com um arquétipo presente em uma personagem.

Permitir que esses conteúdos sejam adequadamente reconhecidos e trabalhados é papel do arteterapeuta, que utiliza as histórias como ponto de

35

partida e fio condutor para o propósito final de seu trabalho, que vem por meio das artes plásticas. (MEDEIROS E BRANCO, 2012, p. 34)

Philippini (2009) explica que o caráter terapêutico dos contos é observado há

muitos anos, sendo utilizado como tratamento de doenças. Desde a antiguidade,

histórias são contadas com objetivo medicinal. Na Medicina Tradicional Hindu, os

contos eram narrados para que o indivíduo pudesse refletir sobre a história e assim,

relacioná-la aos problemas que estava vivenciando. “A trama e os personagens dos

contos, pela estruturação arquetípica que apresentam, oferecem a possibilidade de

movimentar, transformar e harmonizar a energia psíquica de quem ouve.”

(PHILIPPINI, 2009, p. 118) O trabalho com contos em Arteterapia oportuniza o

surgimento de imagens com sentidos inconscientes, que podem ser amplificadas

contribuindo para o desenvolvimento pessoal. Uma história devidamente escolhida

para determinado público a partir de seu campo simbólico pode ser um grande

propiciador de transformação, articulando-se aos conteúdos do inconsciente coletivo

e pessoal.

Segundo Philippini (2009), os contos de fada e os mitos contém estruturas

chamadas mitemas, estruturas que sinalizam a direção do processo de individuação,

são unidades de significado simbólico pertencentes a estrutura maior que compõe a

história. Em geral, os contos apresentam um caminho de desenvolvimento da

personagem que passa por variados conflitos até o desfecho final da história, dentro

desta trama cada um pode encontrar pistas que auxiliem no próprio processo de

individuação. Assim, o caminho construído no conto pode oferecer contribuições

para a resolução dos conflitos enfrentados por quem o escuta. Com isto, é

necessário que o arteterapeuta estude os campos simbólicos que cada conto

apresenta para assim, fazer a escolha de acordo com as “[...] questões

psicodinâmicas sobre as quais determinados grupos precisam refletir e elaborar.”

(PHILIPPINI, 2009, p. 120)

As fábulas por serem estruturas simbólicas muito simples contém um ou dois mitemas ou mitologemas, habitualmente identificado como “a moral da história...”. Os contos de ensinamento costumam apresentar de dois a quatro mitemas ou mitologemas em sua estrutura simbólica, apesar de que em muito deles, estas estruturas estão inseridas em percursos narrativos bastante longos. Os contos clássicos, os contos de fada e os contos maravilhosos podem apresentar dezenas de mitologemas em uma mesma narrativa, o que oferece inúmeras possibilidades em termos simbólicos, mas também tornam muito mais complexo o estudo e a identificação destas estruturas. (PHILIPPINI, 2009, p. 120)

36

Branco (2010) destaca a particularidade dos contos de fada em trazer em

suas narrativas questões existenciais, que aparecem representadas em geral por

quatro momentos: O momento da travessia em que por algum motivo o herói é

levado para um lugar distante de sua terra; o segundo momento, o conflito que se dá

por meio do encontro com seu opositor, podendo este ser uma bruxa, um monstro,

uma madrasta, um ogro, etc.; o terceiro momento caracterizado pela conquista em

que o herói consegue vencer a situação conflituosa derivada do encontro com a

figura maléfica; e o quarto momento, a celebração, representada por um casamento,

o retorno para casa ou o encontro com a família. Esta estrutura comum aos contos

de fada, aproxima estas narrativas à jornada do herói que cada ser humano vivencia

em sua própria existência, passando por conflitos e vitórias que o fazem crescer e

desenvolver-se. Deste modo os contos de fada podem ser associados ao processo

humano de individuação e desenvolvimento.

Contemos pois, histórias para nossas crianças, para que elas enfrentem seus lobos, suas bruxas e toda a sorte de encantamentos que a vida possa lhes impor, para que elas lutem como heróis e trilhem seus caminhos, sabedoras de que todo final feliz requer lutas e encontros nem sempre agradáveis, mas sempre e infindavelmente, mágicos. (MEDEIROS E BRANCO, 2012, p. 31)

2.2.1 A amplificação e o conto de fadas

Imagem 16 - Chapeuzinho Vermelho em feltragem.

Acervo pessoal da autor

37

Agora eu era o rei

Era o bedel e era também juiz

E pela minha lei

A gente era obrigado a ser feliz

Chico Buarque – letra João e Maria

O método de amplificação descrito por Jung é utilizado de modo a ampliar o

símbolo destacado pelo cliente. O símbolo, por sua vez, caracteriza-se como uma

ponte entre o inconsciente e o consciente, um sinal produzido pelo Self como pista

para orientação do indivíduo em busca de seu desenvolvimento e obtenção de uma

vida saudável. No entanto, o símbolo precisa ser ampliado, é preciso oferecer-lhe

significado, pois por si só pode não produzir o entendimento necessário para o

indivíduo. “Amplificar um símbolo será, deste modo um processo que retoma trilhas

muito antigas, presentes na história do homem há muitos séculos [...]” (PHILIPPINI,

2013b, p. 16).

[...] nas culturas mais diversas, etapas do processo de individuação eram codificadas em símbolos com temáticas similares e estas representações do inconsciente coletivo repetidas em mitos, contos de fadas, tradições religiosas, tratados alquímicos e ritos de passagem de locais geograficamente muito distantes. Estas imagens recorrentes em toda a humanidade reaparecem em sonhos, desenhos, pinturas, esculturas e nos símbolos produzidos por meio da imaginação ativa e nas técnicas de visualização e meditação. (PHILIPPINI, 2013b, p. 15)

Sendo o símbolo um norteador do processo arteterapêutico este aparece nas

produções plásticas do cliente, assim como expressos em outras produções guiadas

pelo inconsciente coletivo. Os símbolos “Poderão vir por meio do material onírico ou

expressar-se pelo ritmo metabólico e pelas disfunções corporais, poderão aparecer

em imagens mentais na meditação ou visualização ou ainda traduzir-se em eventos

sincronísticos.” (PHILIPPINI, 2013b, p. 16).

Stein (2015, p. 88) exemplifica este processo ao citar o método utilizado por

Jung na análise e ampliação dos símbolos, conduzindo à individuação.

Esses pacientes também me davam a impressão de estarem literalmente cheios de fantasias, mas incapazes de dizer em que consistia a pressão interior. Por isso, eu aproveitava uma imagem onírica ou uma associação do paciente para lhe propor como tarefa elaborar ou desenvolver o seu tema, dando rédea solta à fantasia. [...] De conformidade com o gosto ou os dotes pessoais, cada um poderia fazê-lo de forma teatral, dialética, visual, acústica, ou em forma de dança, pintura, desenho ou modelagem. (JUNG apud STEIN, 2015, p. 88)

38

Calluf (1969) explica que a ampliação dos conteúdos do cliente tem um efeito

terapêutico ao relacioná-los à questões e temas universais do humano. Unir a

história do indivíduo à outras histórias, une-o à humanidade, faz com que perceba

que seus conflitos fazem parte de questões da existência humana, problemas

universais que afligem o indivíduo há milhares de anos. Isto revigora o sujeito,

oferecendo-lhe força para enfrentar seus obstáculos, pois o tira do isolamento.

[...] já usado pelos antigos sacerdotes médicos do Egito p. ex.: colocando o drama do indivíduo num contexto universal, mostrando-lhe que sua dor era um aspecto da dor humana, convenciam-no de que seu sofrimento não era único e insolúvel, pelo contrário, constituía um problema de todos e assim suprimiam o isolamento do indivíduo, unindo-o à humanidade inteira. (CALLUF, 1969, p. 42)

Desta forma, apresentar, histórias, contos e mitos para pessoas em processo

arteterapêutico viabiliza a ampliação de símbolos e a conexão do sujeito com

conteúdos universais, expandindo e facilitando a elaboração de suas questões.

39

CAPÍTULO 3

A PSICOLOGIA ANALÍTICA E OS CONTOS DE FADA

Imagem 17 - Matriz universal.

Disponível em: www.pinterest.com/pin/569423946615027189/

Minha tia Magdalena tinha um hábito matreiro para contar histórias. Ela apanhava seus ouvintes de surpresa começando um conto de fadas com "Isso aconteceu há uns dez anos" e depois passava a relatar um conto da era medieval perfeito, com cavaleiros, fossos e tudo o mais. Ou então ela dizia "Era uma vez, bem na semana passada..." e contava uma história do tempo em que os seres humanos ainda não usavam roupa.

Clarissa Pinkola Estés

Para a psicologia analítica os contos de fadas são recursos para

compreensão dos processos psíquicos, pois trazem em si elementos do

inconsciente coletivo. Conhecer os contos de fada e mitos é de fundamental

importância para o arteterapeuta. Por meio dos contos temos acesso aos conteúdos

simbólicos universais os quais permeiam o inconsciente de todas as pessoas,

podendo tais símbolos aparecer em sonhos, ou mesmo serem levados para o setting

arteterapêutico em forma de imagens. Von Franz esclarece que “Há sempre um

pouco de contos de fadas acontecendo na vida. Dele se desenvolvem mitos, e

estes mergulham novamente no conto de fadas.” (2010a, p. 24)

40

Os contos em seus conteúdos simbólicos pertencentes à humanidade

ressoam no inconsciente de cada um, podendo ser um importante instrumento para

trazer estes conteúdos escondidos para a consciência. O que por vezes não é

possível ser dito ou entendido, pode ser trazido por meio dos contos de fada,

buscando a integração.

Esta proximidade entre os mitos e os contos de fada se deve ao fato dos dois

pertencerem à mesma raiz, os arquétipos e o inconsciente coletivo. Neste capítulo

será abordada a relação dos contos de fada com os processos psíquicos descritos

por Jung.

3.1 CONTOS DE FADA E O SÍMBOLO

Imagem 18 - Nossos símbolos.

Disponível em:

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Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens – ou seja, na medida em que conseguia descobrir as imagens que se achavam ocultas nas emoções – eu recuperava a calma e a paz interiores.

Jung

O inconsciente manifesta-se por meio de símbolos e estes podem aparecer

em imagens expressas de diversas formas. Segundo Von Franz (1964) estes

símbolos apresentam-se nos diferentes modos de expressão humana, como nas

artes, nas manifestações culturais, nos mitos, nos contos de fada, nas diversas

41

atividades do indivíduo, entre outros. Neste sentido, os símbolos manifestados por

uma pessoa são pistas para os conteúdos inconscientes.

A abordagem junguiana parte da premissa que os indivíduos, no curso natural de suas vidas, em seus processos de autoconhecimento e transformação, são orientados por símbolos. Estes emanam do self, centro de saúde, equilíbrio e harmonia [...]. (PHILIPPINI, 2013b, p. 15)

Para conhecer a psique é preciso acessar estas imagens, Grinberg afirma

que “[...] o melhor meio de se conhecê-la é a vivência dos sonhos, das emoções,

dos relacionamentos, enfim, dos símbolos que temos.” (1997, p. 64).

Os contos de fada são repletos de símbolos, conteúdos que não podem ser

explicados em sua totalidade, pois remetem ao inconsciente. “Assim, uma palavra

ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado

manifesto e imediato.” (VON FRANZ, 1964, p. 20). O símbolo não tem um

correspondente concreto, mas expressa uma rede de possibilidades e relações. Um

objeto pode ser concreto, mas pode remeter a símbolos, neste sentido o símbolo

não é o sinal de algo, mas esboça possibilidades de algo, podendo oferecer sentidos

variados.

O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós. (VON FRANZ, 1964, p. 20)

Quando os símbolos aparecem, estes podem ser trabalhados de forma

arteterapêutica, promovendo sua elaboração e tornando seu sentido consciente.

Jung “[...] percebeu que todos os acontecimentos da nossa vida, tanto interiores

quanto exteriores, são simbólicos.” (GRINBERG, 1997, p. 42).

É pelos símbolos que entramos em contato com os conteúdos inconscientes e

nos permitem elaborar questões desconhecidas da consciência. “Quantas vezes

não sonhamos com situações de nosso cotidiano? É nosso inconsciente tentando

auxiliar o eu na busca de soluções”. (GRINBERG, 2003, p. 46) De acordo com

Grinberg (1997, p. 82):

Além de conter desejos, memórias e instintos reprimidos, o inconsciente está sempre agrupando símbolos e imagens, produzindo sem cessar

42

sonhos e fantasias, funcionando como uma matriz autônoma criadora da vida psíquica normal.

O próprio Jung partiu em busca de seus símbolos inconscientes num trabalho

heróico e arriscado, investigando e se aprofundando em suas imagens psíquicas,

buscando uma maior compreensão de seus símbolos (GRINBERG, 1997, p.39). “A

crise (metanóia) foi para ele uma oportunidade de descobrir e vivenciar seu próprio

mito e sentido de sua própria existência” (GRINBERG, 1997, p. 43)

Os contos de fada são expressão destes símbolos do inconsciente. O

inconsciente coletivo manifesta-se por meio de imagens derivadas dos arquétipos e

os contos como expressão da psique remetem tais símbolos. O herói no conto de

fadas é muitas vezes símbolo do si-mesmo, “[...] que está envolvido na construção

do ego, em sua manutenção e ampliação. É também um modelo e padrão

arquetípico para o tipo correto de comportamento.” (VON FRANZ, 1980, p. 23),

assim como o novo rei também é um símbolo para o si-mesmo, representando a

renovação. No entanto, a bruxa, o ogro ou o dragão abarcam todos aqueles

conteúdos contrários ao herói ou heroína representando a sombra.

Grinberg (1997, p. 46) explica que a fantasia é a forma de linguagem do

inconsciente e estas podem acontecer de forma ativa e passiva. A forma ativa se dá

de modo compreensível, no nível da consciência quando as imagens são produzidas

pela imaginação, já a forma passiva acontece por meio de devaneios, e está fora do

controle da consciência.

Formamos um modelo, uma imagem do mundo e, de acordo com ela, nos orientamos e nos adaptamos (ou não) à realidade. Por exemplo, conheço alguém, experimento uma comida nova, viajo para um lugar diferente, vou a uma festa onde danço e encontro várias pessoas. Trabalho, estudo, tomo banho, namoro, durmo, fico sem fazer nada. E o que permanece? As imagens que se formaram no meu encontro com aquilo que vivi na viagem na festa, no trabalho ou na escola, a partir de minhas experiências com minha psique. (GRINBERG, 1997, p. 65)

Em sua trajetória de estudo e pesquisa, Jung elaborou métodos de acesso aos

símbolos inconscientes. Um dos métodos elaborados refere-se à associação de

ideias e imagens, processo em que os símbolos são encadeados e aparecem

interligados oferecendo sinais sobre sua origem e sentido. A elaboração dos

símbolos acontece por meio do trabalho de ampliação e análise em torno destas

imagens.

43

Se formos capazes de circundar as imagens que compõem o pensamento associativo, poderemos perceber que estes conteúdos aparentemente irracionais ou extravagantes relacionam-se numa espécie de teia de significados interligados, manifestando-se por meio de uma gama muito variada de símbolos. (GRINBERG, 1997, p. 45)

A análise dos símbolos tem efeito fortalecedor, seu uso no processo

arteterapêutico impulsiona o restabelecimento da saúde psíquica. As imagens

arquetípicas podem possuir forças criadoras ou destruidoras, “[...] criadoras quando

inspiram ideias novas, destruidoras quando estas mesmas ideias se consolidam em

preconceitos conscientes que impossibilitarão futuras descobertas.” (VON FRANZ,

1964, p. 304). Von Franz (1969) adverte que os símbolos devem ser interpretados

de forma sutil e cuidadosa para não retirar sua força, reduzindo-os a uma fórmula.

Um mesmo símbolo pode ter significado diferente para pessoas diferentes, gerando

também interpretações diferenciadas.

3.2 CONTOS DE FADA E A SOMBRA

Imagem 19 - Chapeuzinho Vermelho e o Lobo.

Disponível em: //4.bp.blogspot.com/-

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44

Só há uma atitude que parece alcançar algum resultado: voltar-se para as trevas que se aproximam, sem nenhum preconceito e com toda simplicidade, e tentar descobrir qual o seu objetivo secreto e o que vêm solicitar do indivíduo.

Jung

A sombra é uma parte inconsciente da personalidade. Como afirma Von

Franz em “O Homem e seus Símbolos” (VON FRANZ, 1964, p. 168):

A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo.

Stein (2015) afirma que a sombra é inevitável ao indivíduo, formada

involuntariamente ao deparar-se com as regras sociais. “De um modo geral, a

sombra possui uma qualidade imoral ou, pelo menos, pouco recomendável,

contendo características da natureza de uma pessoa que são contrárias aos

costumes e convenções morais da sociedade.” (Stein, 2015, p.98). Faz parte da

sombra todo o conteúdo escondido e rejeitado pelo sujeito, os quais destoam das

regras sociais, essas características suprimidas agem de modo inconsciente. O ego

em geral não distingue estas características, mas é comum que as projete

externamente. “A tendência das pessoas é, antes para esconder tais traços dos

outros e de si mesmas por trás de uma fachada que as mostre atenciosas,

ponderadas, empáticas, refletidas e benévolas.” (STEIN, 2015, p. 99).

As qualidades aceitas pelo ego, tornam-se a persona, formada de modo geral

pelos conteúdos relacionados aos costumes e regras sociais. “A persona é a pessoa

que passamos a ser em resultado dos processos de aculturação, educação e

adaptação aos nossos meios físico e social.” (STEIN, 2015, p. 101). Assim, a

sombra e a persona constituem-se em opostos, pois possuem conteúdos que são

contrários, a sombra carrega os conteúdos rejeitados e a persona as qualidades que

se aliam ao que é valorizado pelo grupo.

A sombra é dotada de material coletivo e pessoal, os quais tornam-se

acessíveis por meio dos sonhos, por exemplo. A sombra coletiva é especialmente

perigosa, pois é comum a uma sociedade sendo mais difícil percebê-la. Seus sinais

estão de tal modo incorporados ao grupo que confrontá-la se torna um movimento

45

obscuro. Von Franz afirma que é “[...] nas guerras ou nos ódios entre as nações que

se revela algum aspecto da sombra coletiva” (VON FRANZ, 1985, p. 11).

Desta forma o conto de fadas configura-se como um rico material psicológico

de uma sociedade, pois por ele também é possível ter acesso à sombra coletiva de

um povo. “O exame da sombra nos contos de fada deve, portanto, focalizar não a

sombra pessoal, mas a sombra coletiva e grupal.” (VON FRANZ, 1985, p. 19).

As histórias dos contos de fada trazem conteúdos referentes à sociedade em

que foram criados, e Von Franz (1985) afirma que estas histórias trazem temas que

são importantes para a própria cultura que as criou, sendo recorrente sua leitura e o

interesse da população.

[...] antes de terminar uma análise ou interpretação, sempre me pergunto: para quem esta estória deve ser contada? Quem precisa dela? E geralmente ela é perfeita para a nação onde teve origem e é por isso que lá as pessoas a contam com tanto prazer. (VON FRANZ, 1985, p. 153)

A partir de Von Franz (2008) pode-se observar que nos contos de fada o tema

da sombra quando não está presente inicialmente, pode desencadear que a

personagem seja enganada ou envolvida por alguma figura maléfica. Em geral, os

que ignoram seu lado sombrio, são mais suscetíveis a serem enfeitiçados ou

atingidos de alguma forma pelo mal. Para não se deixar enganar pelos próprios

conteúdos sombrios ou mesmo ser ludibriado pela sombra alheia a solução “[...]

consiste em descer até as profundezas do próprio mal, o que em geral torna

possível desenvolver um reconhecimento instintivo dos correspondentes elementos

noutras pessoas.” (2008, p. 28).

Frequentemente nos contos de fada o mal aparece representando uma parte

que foi negligenciada da psique e está presente na escuridão inconsciente. Assim,

os monstros, bruxas, aparecem trazendo estes conteúdos que precisam ser

integrados à consciência. Como afirma Von Franz “[...] o mal não vem do princípio

da consciência, mas de um arquétipo negligenciado do inconsciente, a bruxa.” (VON

FRANZ, 1985, p. 133)

A tensão sombra e persona é uma característica comum nos contos, havendo

em sua estrutura um herói e seu referido opositor. Nos contos é possível perceber

como um fio comum a presença de opostos, como o bem e o mal “[...] é sempre uma

questão de Sim e Não, e as estórias, num sentido e no outro, se contrabalançam.”

(VON FRANZ, 1985, p. 151) Outra característica comum nos contos é a contradição,

46

como afirma Von Franz (1985, p. 150) não há um padrão que perpasse todos os

contos mas encontramos a contradição como um elemento comum.

Stein (2015) sinaliza que a consciência da sombra e sua experimentação é

um complexo drama da existência humana. Esta questão atravessa gerações, pois

deixar vir à tona os conteúdos da sombra de modo intencional configura a perda de

uma personalidade identificada com a persona, já aceita e adaptada. No entanto,

exprimir a força dos conteúdos presentes na sombra oferece ao indivíduo qualidades

importantes e uma energia revigorante, uma energia vital que o faz mais forte. “Se

uma pessoa rechaça completamente a sombra, a vida é correta mas terrivelmente

incompleta. Ao abrir-se para a experiência da sombra, entretanto, uma pessoa fica

manchada de imoralidade mas alcança um maior grau de totalidade.” (STEIN, 2015,

p. 102) Este passo para a integração do conteúdo da sombra à consciência e sua

aceitação é um passo desafiante, mas transformador.

3.3 OS CONTOS DE FADA, OS ARQUÉTIPOS E O INCONSCIENTE COLETIVO

Imagem 20 - Um caminho para o inconsciente.

Disponível em: //i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/01476/littleredriding_1476012f.jpg

47

À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.

Clarice Lispector

De acordo com Grinberg (1997) os arquétipos são estruturas universais,

inatas formadas no imaginário e herdadas pela humanidade. “São conteúdos

coletivos todos os instintos e formas básicas de pensamento e sentimento, tudo

aquilo que consideramos como universal e que pertence ao senso comum.”

(GRINBERG, 1997, p. 136) São formados por experiências humanas longínquas, as

quais cristalizaram-se através do tempo.

Os arquétipos, como imagens universais, não podem ser identificados em seu

conteúdo. Estes pertencem ao inconsciente coletivo, tem-se acesso apenas aos

sinais de sua manifestação, os quais circundam uma determinada ideia.

[...] os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo, e no primeiro caso, de um modo muito limitado. Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo, no caso de tornar-se consciente e portanto preenchida com o material da experiência consciente. (JUNG, 2000, p. 140)

Segundo Jung (2000, p.150), o conteúdo arquetípico expressa-se

metaforicamente. Não é possível ter acesso ao arquétipo em si, mas apenas a

expressão deste que manifesta-se por meio de imagens que relacionam-se

apontando para seu real sentido, o qual será sempre desconhecido. “Estes só

podem ser circunscritos na melhor das hipóteses de modo aproximativo” (JUNG,

2000, p. 171). Assim, utilizando metáforas o arquétipo não estará dentro de

nenhuma delas, mas como afirma Jung, estará num terceiro, o qual não se tem

acesso.

Se falar do Sol e com ele identificar o leão, o rei, o tesouro de ouro guardado pelo dragão, ou a ‘força vital de saúde’ do homem, não se trata nem de um, nem de outro, mas de um terceiro desconhecido, que se expressa mais ou menos adequadamente através dessas metáforas [...] (JUNG, 2000, p. 150).

Os arquétipos produzem ideias e imagens, são a raiz dos mitos. É uma

herança psíquica como uma matriz que conduz a produção de símbolos e imagens

na humanidade. “Desse modo, eles nos predispõem a experimentar a vida de

acordo com alguns padrões estabelecidos na psique.” (GRINBERG, 1997, p.136)

48

Esta estrutura arcaica é comum a todas as sociedades e aparece de forma

mitológica semelhante em diferentes culturas. Apesar da diversidade cultural os

arquétipos preservaram um padrão em suas imagens. “Entretanto o arquétipo não é

uma experiência que se herda, mas o potencial de repetição dessa experiência.”

(GRINBERG, 1997, p. 136) É a partir desta experiência arcaica que o homem

herdou o inconsciente coletivo, parte escondida da consciência.

Von Franz (2008) esclarece que em algumas culturas determinados

arquétipos podem ser ignorados ou mesmo eliminados e este fator leva a tais

arquétipos a se manifestarem nos contos de fada. Como exemplo, Von Franz

(2008) faz referência aos países europeus, onde o arquétipo da grande mãe foi

praticamente suprimido o que leva estes locais a possuírem muitos contos voltados

para este arquétipo. “Daí o fato do arquétipo da mãe-terra, da mãe-natureza,

desempenhar tão importante papel em todos os contos de fada europeus” (VON

FRANZ, 2008, p. 58)

O arquétipo como fonte de energia psíquica pode mobilizar o indivíduo,

sinalizando caminhos e conduzindo processos alinhados com direcionamentos do

self.

[...] o arquétipo é uma fonte primária de energia e padronização psíquica. Constitui a fonte essencial de símbolos psíquicos, os quais atraem energia, estruturam-na e levam, em última instância, à criação de civilização e cultura.” (STEIN, 2015, p. 81)

As imagens arquetípicas são chamadas de imagens primordiais, aquelas que

não tem caráter pessoal, mas coletivo. Este modo inconsciente e arcaico de

experimentar a realidade aparece com seus traços também no humano moderno.

Ao explicar o inconsciente coletivo Jung (2000) afirma que é possível verificar

sua existência por meio de imagens da fantasia de pessoas comuns, as quais são

semelhantes a motivos mitológicos. Ao ter contato com a fantasia de diversas

pessoas, estas manifestavam certos conteúdos com os quais não poderiam ter tido

contato. Estes conteúdos não tratavam-se de vivências pessoais, ou imagens

construídas devido a lembranças, mas eram conteúdos impessoais. Estas fantasias

“[...] assemelham-se de tal forma aos tipos estruturais dos mitos e dos contos de

fadas que somos levados a considerá-los como aparentados.” (JUNG, 2000, p.149).

Segundo: fantasias (inclusive sonhos) de caráter impessoal e pessoal, que não podem ser atribuídas a vivências do passado individual e

49

conseqüentemente não podem ser explicadas a partir de aquisições individuais. Tais imagens da fantasia têm, sem dúvida, uma analogia mais próxima com os tipos mitológicos. Presume-se por este motivo que elas correspondam a certos elementos estruturais coletivos (e não pessoais) da alma humana em geral e que são herdadas tais como os elementos morfológicos do corpo humano. Embora a tradição e a expansão mediante a migração de fato existam, há, como já dissemos, inúmeros casos que não podem ser explicados desse modo, exigindo pois a hipótese de uma revivescência "autóctone". Estes casos são tão numerosos que não podemos deixar de supor a existência de um substrato anímico coletivo. Designei este último por inconsciente coletivo. (JUNG, 2000, p.147)

Von Franz (2013) afirma que mais do que os mitos, os contos de fada

expressam os conteúdos do inconsciente coletivo de uma forma mais básica e

simples, sendo um material de análise e conhecimento da psique por excelência.

Este caráter universal do conto traz “[...] a estrutura mais geral e ao mesmo tempo

mais básica do ser humano. [...] A linguagem do conto parece ser a linguagem

internacional de toda espécie humana – de idades, raças e culturas.” (VON FRANZ,

2013, p. 35)

Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. [...] Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas forncecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva. (VON FRANZ, 2013, p. 9)

Deste modo os arquétipos são o material privilegiado dos contos de fada e

mitos. De acordo com Von Franz (2010a), estes trazem em sua estrutura o esquema

da psique humana. Von Franz afirma que “um conto de fadas não é material de

caso. ‘Um rei’ não é apenas o pai; é dito enfaticamente que se trata de um rei.”

(VON FRAZ, 2010a, p. 16). Desta forma os contos de fada representam muito mais

os arquétipos que figuras humanas comuns.

Os mitos são expressão do inconsciente coletivo, uma forma de simbolizar os

acontecimentos psíquicos e as transformações anímicas. Desta forma os mitos são

extremamente importantes para seu grupo. Jung afirma que os mitos não são

inventados, mas vivenciados, uma materialização da vida inconsciente.

Os mitos, pelo contrário, têm um significado vital. Eles não só representam, mas também são a vida anímica da tribo primitiva, a qual degenera e desaparece imediatamente depois de perder sua herança mítica, tal como um homem que perdesse sua alma. A mitologia de uma tribo é sua religião viva, cuja perda é tal como para o homem civilizado, sempre e em toda parte, uma catástrofe moral. (JUNG, 2000, p. 147)

50

Os contos eram inicialmente criados a partir da experiência de vida de

determinado grupo, estes contos faziam parte das rodas de conversa dos adultos,

mas atualmente estas narrativas são tratadas como algo infantil ou de menor valor o

que deixa de lado sua riqueza em revelar conteúdos do inconsciente coletivo.

O fato de que agora estejam relegadas às crianças revela uma atitude típica — que eu diria define nossa civilização — segundo a qual o material arquetípico é encarado como algo infantil. Se essa teoria a respeito de sua origem é verdadeira, os contos de fada refletem a estrutura psicológica elementar do homem muito mais do que os mitos e as produções literárias. Como certa vez disse Jung, quando estudamos os contos de fada podemos estudar a anatomia do homem. (VON FRANZ, 1985, p. 16)

Como afirma Von Franz (2010a), interpretar um conto de fadas não é uma

tarefa fácil, pois seus conteúdos pertencem ao inconsciente coletivo. Tornar

consciente seus significados é um trabalho árduo, pois depende de um mergulho

nas estruturas psíquicas.

A dificuldade se deve ao fato de que o conto de fadas se baseia em certas funções da psique sem nenhum material pessoal que o sustente. O que temos é apenas o esqueleto da psique com a pele e a carne removidas. (VON FRAZ, 2010a, p. 13)

Os arquétipos presentes nos contos de fada ocorrem de forma a se repetirem

nos diversos contos. Um determinado arquétipo representado em um conto nunca

se dará por acabado, mesmo que na história ele se dilua ou a personagem que o

representa morra, sempre reaparecerá sobre outra forma, pois faz parte de uma

estrutura, devendo existir mesmo que de forma escondida, retornando em diferentes

contos.

Não devemos nos esquecer que os contos de fada lidam com arquétipos, e arquétipos não podem ser mortos. Mas o conto significa que, nessa constelação específica, o aspecto negativo desaparece. O diabo sempre aparecerá de novo, mas em outra forma ou constelação; [...] (VON FRANZ, 2010a, p. 24)

Calluf (1969) expõe que no inconsciente coletivo encontra-se no indivíduo

neurótico de forma escondida na camada mais profunda do inconsciente, e no

psicótico revela-se de forma intensa, motivo pelo qual o próprio Jung iniciou seus

estudos sobre o inconsciente coletivo ao observar o conteúdo mítico das narrativas

psicóticas. No entanto, Calluf (1969, p. 44) explica que “Mesmo na pessoa normal

51

não se requer muito para que ressurja este mundo de ontem, encoberto apenas pelo

verniz da modernidade.”

Deste modo, o inconsciente coletivo manifesta-se no indivíduo

contemporâneo revestido com elementos modernos, mas continua fazendo parte de

uma estrutura ancestral com conteúdos universais. Estes conteúdos ancestrais

aparecem com nova roupagem, mas continuam sendo sinalizadores para o caminho

de individuação pessoal e coletivo.

[...] porém o inconsciente coletivo continua agindo em nós, de tal maneira que o conteúdo das psicoses, dos sonhos, dos estados inconscientes, mostra-se com todos os característicos da vida primitiva [...] Embora amiúde os mesmos motivos míticos se disfarcem com imagens modernas, apresentando um avião em vez da águia de Júpiter, uma colisão de trens em lugar da luta entre dragões, o artista de sucesso ao invés do herói que mata o monstro. (CALLUF, 1969, p. 44)

3.4 OS CONTOS DE FADA E O ANIMUS E A ANIMA

Imagem 21 - Os dois lados de um rio.

Disponível em: //l.exam-10.com/pars_docs/refs/12/11514/11514_html_m34842ed3.jpg

Não tenho medo nem de chuvas tempestivas, nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.

Clarice Lispector

52

O animus é a masculinidade interior da mulher, e esta é formada a partir de

sua relação com o pai. Esta experiência dará origem ao complexo de pai na mulher

“[...] que se manifesta tanto em sua atitude em relação aos homens em sua vida

quanto no funcionamento de sua masculinidade interior [...]” (VON FRANZ, 2010a, p.

16). A anima é o feminino interior do homem, formada por influência da figura

materna. Nos contos de fada a anima é representada pelas personagens femininas.

Segundo Stein (2015) o animus e a anima são arquétipos que estão em um

nível do inconsciente coletivo mais profundo que a sombra. Como um arquétipo a

anima e o animus não podem ser descritos em sua forma, mas é possível ter acesso

à suas manifestações e conhecê-los de modo indireto. Estes arquétipos também

são marcados pela polaridade em relação ao ego, são compostos por características

contrárias aos seus correspondentes masculino e feminino, tornando-se

complementar à persona. Deste modo a anima no homem terá características

opostas ao ser masculino, aproximando-se de características relacionadas à

feminilidade e o animus na mulher se relaciona à uma masculinidade interior. Sendo

estas estruturas inconscientes, seu acesso e manifestação é muitas vezes

involuntário. Tanto a anima como o animus podem manifestar-se em sua forma

positiva, agregada à consciência, agindo de modo a fortalecer o indivíduo, como

também pode apresentar-se de uma forma negativa sendo destrutiva, dificultando a

vida do indivíduo.

Nos contos de fada, quando há um desequilíbrio entre a quantidade de

personagens femininos e masculinos, pode haver uma apresentação negativa do

animus ou da anima, no entanto, esta situação busca ao longo do conto equilibrar-

se, podendo surgir novas personagens.

A mulher possuída por um animus negativo está sujeita à invasões do

inconsciente, tornando-se arrogante, controladora e destrutiva em sua forma de lidar

com as situações cotidianas. Este modo prepotente de agir em suas relações

prejudica-a afastando-a das outras pessoas, criando variados conflitos e

comprometendo sua vida como um todo. Os homens possuídos pela anima se

deixam capturar por mágoas e ressentimentos tornando-se sentimentais. Estas

invasões da anima e do animus não conseguem ser controladas sem um trabalho de

acesso à estes conteúdos inconscientes e fortalecimento do ego. O indivíduo

possuído por um animus ou uma anima se verá controlado por ela, sem

possibilidades de mostrar-se de outra forma, deixando-se levar por esta energia

53

inconsciente. A possessão pelo animus ou pela anima é característica de um ego

fraco, subdesenvolvido que permite que os conteúdos fluam sem interrupção ou

intervenção prévia.

A possessão anima/us escancara os portões do inconsciente e deixa entrar nele praticamente tudo o que tenha suficiente energia para transpor o limiar. Humores e caprichos penetram e a pessoa é levada por eles de roldão. O controle de impulsos é mínimo. (STEIN, 2015, p. 121)

O acesso consciente aos conteúdos da anima e do animus é um caminho

necessário para o desenvolvimento psíquico, atingindo tais conteúdos o indivíduo

encontra-se com valiosas potências inspiradas pelo si-mesmo nas profundezas do

inconsciente coletivo. A anima e o animus constituem-se como uma ponte para o si-

mesmo possibilitando o desenvolvimento do indivíduo. Com um objetivo didático,

Stein (2015) exemplifica o que seria um desenvolvimento psicológico ideal:

As partes consciente e inconsciente do sistema psíquico trabalham juntas numa interação equilibrada e harmoniosa, e isso ocorre em parte entre a anima/us e a persona. Nesta situação, o ego não é inundado por material vindo de fora ou de dentro mas, pelo contrário, seu desempenho é facilitado e protegido por essas estruturas. E a energia vital – libido – flui num movimento progressivo para adaptação às tarefas e exigências da vida. Este é o quadro de uma personalidade saudável em perfeito funcionamento, com acesso a recursos internos e competente em sua adaptação externa. (STEIN, 2015, p. 121)

A partir das características internas dos indivíduos é que será possível

verificar sua singularidade, pois suas características externas funcionam muitas

vezes em prol de uma adaptação. Os conteúdos internos, neste sentido, mostrarão

a particularidade do sujeito, assim a anima e o animus também estarão

representando estes conteúdos singulares que tornarão o indivíduo diferenciado.

É esse encontro do ego com a anima ou o animus que, pensou Jung, tem um potencial tão rico para o desenvolvimento psicológico. O encontro com anima/us representa uma conexão para o inconsciente ainda mais profunda do que a da sombra. No caso da sombra, trata-se de uma reunião com as peças desdenhadas e rejeitadas da psique total, com as qualidades inferiores e indesejadas. No encontro com anima/us, temos um contanto com níveis da psique que têm potencial para conduzir às regiões mais profundas e mais altas (de qualquer modo, as mais remotas) que o ego pode alcançar. (STEIN, 2015, p. 128)

De acordo com Von Franz (2010a, p. 16), nos contos de fada, se a figura

materna não está presente no conto, pode ocorrer um enfraquecimento do lado

54

feminino e uma possessão pelo animus. Na análise dos contos de fada, é importante

observar a existência e quantidade das figuras femininas e masculinas e como estas

se contrabalançam denotando um equilíbrio ou desequilíbrio entre estas forças.

O animus como o lado escondido da personalidade da mulher manifesta-se

interiormente por uma complementar masculinidade, assumindo características

típicas da cultura para a personalidade do homem “[...] como ativo, rijo, vigoroso,

penetrante, lógico, peremptório, dominante [...].”(STEIN, 2015, p. 125). Assim como

a anima será a personalidade feminina escondida do homem e comumente

representada “[...] como receptivo, suave, doce, generoso, nutriente, emotivo,

empático.” (STEIN, 2015, p. 125)

Os complexos ligados ao animus e a anima aparecem em situações

problema, quando também é dada a possibilidade de resolver o complexo. Nos

contos muitas vezes o monstro assume o papel de conteúdos inconscientes e

quando este é superado é possível voltar para a consciência integrando tais

conteúdos. É através dos monstros que está também o caminho de resolução do

problema. Quando a personagem é capturada pelo animus, precisa dele para sair

dessa prisão inconsciente, e reconectar-se com a consciência. Como afirma Von

Franz (2010a, p. 20):

Assim, uma pessoa tem uma neurose porque a chance de sair de seu complexo está lhe sendo dada. Se essas pessoas perderem a chance de deixar o complexo na hora certa, ocorre a catástrofe, uma doença, e assim por diante. Histórias de encontros com dragões abordam essa experiência; se você enfrenta o dragão e vence, ganha o tesouro. (VON FRANZ, 2010a, p. 20)

Von Franz (2010a) afirma que há uma diferença entre as personagens

femininas e masculinas nos mitos. As personagens masculinas comumente lutam e

vencem os monstros, já as femininas fogem com astúcia, driblando o monstro e

assim, fazendo seu caminho de individuação e ao final seus monstros podem acabar

sendo mortos por personagens masculinos. Nesse funcionamento diferenciado, o

homem, como afirma Von Franz (2010a), é surpreendido por sua anima, que age de

forma contraditória e escondida, como se sua mão direita não soubesse o que sua

mão esquerda está fazendo. “Mas os homens brincam com a anima, e ela pega a

chave quando eles não estão olhando.” (VON FRAZ, 2010a, p. 25).

O grande problema do animus é que quando uma mulher não tem ciência de seu animus, este se liga com seu lado emocional e ela se torna o

55

proverbial ‘touro em loja de porcelana’ ela pode desenvolver uma mente masculina e olhar para si mesma de forma mais objetiva, mas sua natureza feminina é sufocada e se funde com o animus. Isso causa muitas tragédias na vida, particularmente no campo dos relacionamentos. (VON FRAZ, 2010a, p. 25)

Como se vê em contos e mitos, histórias em que a bruxa tenta se apoderar da

beleza, da energia vital da mulher mais pura e bela do reino para assim poder

sobreviver e se alimentar de sua força, Von Franz (2010a) explica que o animus

negativo na mulher tem esta característica sugadora e destruidora do feminino.

Observa-se isto em “Branca Neve” onde a bruxa busca eliminar uma mulher jovem e

bela, características que quer incorporar a si.

[...] uma das atividades da vida de animus de uma mulher é furtar, sugar a vida das pessoas. Tal mulher se torna uma vampira por que não tem vida em si. Mas ela precisa de vida, então tem de tomá-la onde a encontra. O demônio negativo animus mata todo o aspecto feminino da vida. (VON FRAZ, 2010a, p. 26)

3.5 CONTOS DE FADA E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Imagem 22 - Desfazer-se.

Disponível em: //2.bp.blogspot.com/-

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Quanto mais uma pessoa é inconsciente, tanto mais ela se conforma aos cânones do comportamento psíquico. Mas, quanto mais ela toma consciência de sua individualidade, tanto mais acentuada se torna sua diferença em relação a outros indivíduos e tanto menos corresponderá ela à expectativa comum.

Jung

56

O processo de individuação acontece por meio de um caminho de

desenvolvimento psíquico em que os conteúdos inconscientes são aos poucos

integrados à consciência. Esta é a jornada do herói em que por meio da superação

e enfrentamento dos obstáculos da vida alcança-se o prêmio final.

A atitude do herói depende de sua separação dos temas infantis ligados à

proteção do lar, da mãe cuidadora, de iniciar um caminho de mudança em que

necessita conquistar seu próprio lugar no mundo.

[...] Jung descreveu em linhas gerais a constelação do mito do herói e atribuiu ao herói o papel de criador da consciência. O herói é um padrão humano básico – que exige o sacrifício da “mãe”, significando uma atitude infantil passiva, e que assume as responsabilidades da vida e enfrenta a realidade de um modo adulto. O arquétipo do herói exige o abandono desse pensamento fantasioso infantil e insiste em que se aceite a realidade de um modo ativo. (STEIN, 2015, p. 86)

O desenvolvimento psicológico objetiva que o indivíduo alcance uma “[...]

personalidade unificada mas também única, um indivíduo, uma pessoa indivisa e

integrada.” (STEIN, 2015, p. 156) A individuação é um processo que dura a vida

toda sem com isto se completar, é o caminho de lutas, impasses, descobertas e

superação.

[...] o homem só se torna um ser integrado, tranquilo, fértil e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado, quando consciente e inconsciente aprenderem a conviver em paz e completando-se um ao outro. (JUNG, 1964, p.14)

Todo conto de fadas apresenta um problema inicial e a partir do confronto

com esta problemática que se dará o início do desenvolvimento do herói ou heroína.

O processo de individuação não é um acontecimento pacífico, mas requer da

pessoa um esforço para transformação. Saber acolher as crises como possibilidade

de mudança de percurso para integrar a consciência ao Self. Como afirma Von

Franz (1964) em “O homem e seus símbolos”, muitas vezes não sabemos aproveitar

estas crises e projetamos tais problemas no outro, como se no exterior residisse a

causa do sofrimento.

O verdadeiro processo de individuação — isto é, a harmonização do consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self — em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do conseqüente sofrimento. Este choque inicial é uma espécie de ''apelo", apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta

57

frustração sobre qualquer objeto exterior. Isto é, o ego passa a acusar Deus, ou a situação econômica, ou o chefe, ou o cônjuge como responsáveis por esta frustração. (JUNG, 1964, p. 162)

O surgimento do si-mesmo durante o desenvolvimento pessoal, instaura o

caminho de individuação. O desenvolvimento do ser humano é um movimento

contínuo. Stein (2015) afirma que “Para cada etapa da vida existem tais

constelações de instinto e arquétipo, as quais resultam em padrões de

comportamento, sentimento e pensamento.” (STEIN, 2015, p. 154) Como arquétipos

presentes em cada fase da vida têm-se as imagens arquetípicas do “[...] bebê divino,

o herói, o puer e a puella, o rei e a rainha, a velha bruxa e o sábio ancião [...]”

(STEIN, 2015, p. 173). O si-mesmo produz símbolos indicadores para o processo de

individuação, pois impulsiona esta busca pelo desenvolvimento.

Jung (STEIN, 2015) descreve duas etapas principais no desenvolvimento

psíquico. Uma compreende a primeira metade da vida, a qual coincide com o

crescimento e amadurecimento do corpo físico, onde ocorre o desenvolvimento do

ego e da persona, abarcando a adaptação do sujeito à cultura. A segunda etapa,

ocorre após a formação de uma persona adaptada, o que na sociedade moderna é

comum no período da meia-idade, “quando o desenvolvimento do ego atinge o seu

clímax na meia idade, não faz mais sentido continuar perseguindo os mesmos

objetivos.” (STEIN, 2015, p. 158). Nesta segunda etapa o indivíduo começa a

questionar o caminho de adaptação que construiu, tomando consciência do material

rejeitado em seu caminho de desenvolvimento. Esta etapa caracteriza-se pela

integração dos conteúdos inconscientes à consciência, “tornar-se o que a pessoa já

é potencialmente, mas agora de um modo mais profundo e mais consciente.”

(STEIN, 2015, p. 158). Neste período, os símbolos indicam o caminho para os

conteúdos inconscientes ainda não vividos e o si-mesmo surge com maior força.

Sem a aceitação dos conteúdos do inconsciente o indivíduo pode sucumbir à

neurose, agindo de forma a negar este aspecto da vida em favor da persona. Na

neurose a energia psíquica pode acabar sendo utilizada em grande parte na

negação dos conteúdos inconscientes, exaurindo as forças do indivíduo,

paralisando-o em uma vivência unilateral e empobrecida. A rejeição dos conteúdos

inconscientes gera uma vida sem satisfação e adoecida. Tanto o consciente como o

inconsciente são aspectos legítimos da vida e necessitam ser aceitos em sua

tensão. São estes conteúdos opostos que dão totalidade à psique. O conflito entre

58

opostos é inerente à vida psíquica, mas a rejeição destes é que provoca o

adoecimento. A saúde psíquica é atingida no encontro de ambos os conteúdos,

conscientes e inconscientes, produzindo aceitação e conscientização dos mesmos.

Este encontro e relação entre opostos é produtor de transformação e

desenvolvimento, gerando um ser integrado.

Uma das formas de acesso aos conteúdos rejeitados da consciência é a

observação dos afetos que provocam. Por meio das emoções despertadas e

consequentes perturbações do ego devido aos complexos é possível perceber os

sinais do inconsciente. Estes conteúdos inconscientes muitas vezes guardam

grande carga de energia e manifestam-se quando tocados. Segundo Caluf (1969),

Jung utilizava um método de associações para identificar tais conteúdos

inconscientes. Neste método, o experimentador diz uma série de palavras e solicita

que o entrevistado responda com a primeira ideia que lhe vier à mente. Desta forma

é possível perceber as expressões, tempo de resposta, associações, enfim, as

reações afetivas a partir de cada palavra, podendo assim, identificar sinais do

conteúdo afetivo inconsciente e trabalhá-lo por meio de amplificações do tema.

Interessar-se por estes sinais e identificá-los é o primeiro passo para compreender

seus conteúdos e torná-los conscientes.

Não existe uma regra ou caminho correto para o processo de individuação.

Cada pessoa trilhará seu próprio caminho de desenvolvimento psíquico e

integração. Mesmo que se tente copiar as ações de outras pessoas não se terá

sucesso, pois os problemas apesar de semelhantes guardarão ainda alguma

diferença. Neste sentido, o processo de individuação será sempre singular.

Como assinalei anteriormente, o processo de individuação exclui qualquer imitação, tipo "papagaio". Inúmeras vezes e em todas as terras, as pessoas tentaram copiar pelo seu comportamento exterior ou ritualístico a experiência religiosa original de seus grandes mestres - Cristo, ou Buda, ou algum outro líder - e tornaram-se, assim, ''petrificados''. Acompanhar os passos de um grande líder espiritual não significa que se deva copiar exatamente o seu processo de individuação e sim que se tente, com a mesma sinceridade e devoção destes mestres, viver a própria vida. (JUNG, 1964, p. 212)

Apesar da individuação ser um evento único “[...] existem certos aspectos

típicos coincidentes que se repetem e se assemelham em todo processo de

individuação.” (VON FRANZ, 2008, p. 273). Estas características típicas e seus

elementos podem ser vistos nos contos de fada, pois trazem em sua estrutura as

59

fases deste desenvolvimento em suas bases gerais. Deste modo, um conto

apresenta ao longo de sua narrativa este caminho de transformação pela superação

de conflitos e a integração de elementos contrários.

[...] pode-se dizer que tais contos refletem fases típicas do processo de individuação de muita gente, e que tais fases típicas são ressaltadas de acordo com a atitude da consciência nacional coletiva do povo ao qual elas são relatadas. (VON FRANZ, 2008, p. 274)

3.6 OS CONTOS DE FADA E O SELF

Embora a imensa maioria das pessoas não saiba o motivo pelo qual o organismo precisa de sal, contudo todas elas o exigem por uma necessidade instintiva. O mesmo acontece com as coisas da psique. A imensa maioria dos homens desde tempos imemoriais sempre sentiu a necessidade da continuação da vida. Esta constatação não nos conduz a um desvio; ela nos põe no centro da grande estrada real percorrida pela humanidade ao longo de sua existência. Por isto, pensamos corretamente em harmonia com a vida, mesmo que não entendamos o que pensamos.

Jung

Imagem 23 - Caminho.

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Como afirma Campbell (1949, p. 13), o herói é aquele que passa por variadas

dificuldades e consegue vencer suas “[...] limitações históricas, pessoais e locais”.

Deste modo vê-se que as barreiras e dificuldades encontradas pelo herói nos mitos

60

não estão apenas no campo físico, mas também psíquico, dizendo respeito ao

processo de adaptação e individuação, superando os obstáculos internos e

externos. Esta jornada do herói assemelha-se ao processo de individuação descrito

por Jung em que o indivíduo busca sua integração em um caminho de

desenvolvimento guiado pelo Self, alcançando a totalidade. O Self ou o Si-mesmo é

este núcleo central que ordena e indica o caminho para o herói dando à ele sinais

que podem auxiliá-lo em sua jornada.

Segundo Campbell (1949), os mitos guardam em suas histórias verdades que

são descritas de forma simbólica. Os mitos são explicações dos povos antigos para

a experiência humana. Assim como os rituais são necessários para integrar as

várias fases da vida, auxiliando no processo psíquico, organizando o ser para um

momento de passagem à um novo estado de vida, o homem moderno também

necessita simbolizar suas experiências e transformações. Estas verdades

simbolizadas por meio dos mitos são acessadas pelo homem moderno de forma

inconsciente, muitas vezes por meio de sonhos.

Campbell (1949) observou que a Jornada do Herói possui características

semelhantes aos rituais de passagem realizados pelos povos antigos, obedecendo a

seguinte sequência: a separação do iniciado de seu grupo, a própria iniciação em

que vivencia alguns desafios, e por fim o retorno do indivíduo para os seus. Esta

jornada em busca de um centro do ser, onde este possa ser pleno em sua forma de

vida, pode ser acessado por meio de sinais do self, sinais que são enviados por

meio de símbolos.

Os mitos e rituais auxiliam no processo de simbolização das novas

experiências, deste modo o que os povos antigos criavam para explicar os eventos

da natureza, também criavam para explicar e simbolizar os eventos psíquicos,

dando condições para o enfrentamento das diferentes fases da vida. Na sociedade

contemporânea há uma desvalorização dos rituais deixando os indivíduos

abandonados à sua própria capacidade de simbolizar suas experiências. Quando

este processo de simbolização falha, esta falta de significado pode dar origem às

neuroses.

Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. (CAMPBELL, 1949, p. 9)

61

Campbell (1949) explica que quando não ocorrem os rituais estes podem ser

vivenciados de forma simbólica por meio dos sonhos, trazendo conteúdos

semelhantes à vivência da fase em questão. Muitas vezes os conteúdos dos sonhos

referem-se à mitos e rituais antigos, mesmo que o indivíduo não tenha conhecimento

de tais símbolos. Mas a necessidade de simbolizar tal fase da vida, faz com que o

inconsciente produza os símbolos necessários para a vida do indivíduo.

O Self desempenha o papel de direcionador, o que produz a integração e

conduz para a totalidade do ser. Nos contos de fada é representado, por exemplo,

pela figura do velho sábio, aquele que mostrará o caminho para o herói.

Nos sonhos da mulher este núcleo em geral é personificado por uma figura feminina superior – uma sacerdotisa, uma feiticeira, uma mãe-terra, ou uma deusa da natureza ou do amor. No caso do homem, manifesta-se como um iniciador masculino ou um guardião (o guru, do hindus), um velho sábio, um espírito da natureza e assim por diante. (VON FRANZ, 1964, p. 196)

Como afirma Grinberg (1997, p. 154), o Self ou Si-Mesmo é uma “espécie de

organizador central [...] Ele é responsável pela caracterização da individualidade de

cada pessoa, buscando sua melhor adaptação possível nas diversas fases do

desenvolvimento ao longo da vida”. O Self é uma estrutura ordenadora que traz

soluções para os conflitos surgidos durante a vida. “Toda realidade psíquica interior

de cada indivíduo é orientada, em última instância, em direção a este símbolo

arquetípico do self.” (Von Franz, 1964, p. 196).

Se prestarmos atenção a nossos sonhos, em lugar de vivermos em um mundo frio impessoal, de acasos sem maior sentido, poderemos emergir, aos poucos, para um mundo realmente nosso, repleto de acontecimentos importantes que obedecem a uma ordem secreta. (VON FRANZ, 1964, p. 208)

Segundo Von Franz (2013), os contos de fada revelam esta experiência do

self. A autora caracteriza o self como um fato desconhecido que tenta ser revelado

por meio das narrativas. No entanto, devido à sua complexidade, surgem variados

contos para expressar os mesmos temas, na tentativa que tais conteúdos cheguem

à consciência. Com isto, existem contos que abordam apenas fases deste processo

apontando temas como a sombra, o problema da anima ou do animus, entre outros.

Desta forma pode ocorrer que em determinado conto o príncipe passe por variados

desafios até resgatar a princesa, a qual aparece como a representação de sua

anima e ao final, ao casar-se com ela ocorre a ascensão da anima à consciência,

62

finalizando o processo de integração. Outro formato mostra-se no conto que aborda

a figura da bruxa representando a sombra do herói, ao final quando o herói

consegue vencê-la, conquista suas riquezas, unificando sombra e persona.

Neste sentido, o self é o arquétipo de onde derivam todas as imagens

direcionadoras do processo de desenvolvimento. Um processo que depende da

integração dos opostos na consciência. Embora a integridade total não seja

possível, pois os conteúdos opostos estão sempre se renovando, este movimento de

busca pela integração das estruturas psíquicas é imprescindível para a saúde do

indivíduo. Do self emanam imagens que simbolizam a busca pela integridade e

totalidade da psique, estas imagens, como as mandalas orientam para a existência

de um centro. O número quatro e seus derivados e formas, também são símbolos

que apontam para a necessidade do equilíbrio entre estas forças contrárias. Stein

(2015) relaciona outros símbolos que representam o si-mesmo.

Outras imagens do si-mesmo são as pedras preciosas, como diamantes e safiras, gemas que representam um elevado valor. Entretanto, outras representações do si-mesmo incluem castelos, igrejas, vasos, recipientes, e, é claro, a roda, que tem um centro e raios que se projetam do centro para fora e terminam num aro circular. Figuras humanas que são superiores à personalidade do ego, como os pais, tios, reis, rainhas, príncipes e princesas, também são possíveis representações do si-mesmo. Também existem imagens animais que simbolizam o si-mesmo: o elefante, o cavalo, o touro, o urso, o peixe e a serpente. São animais totêmicos que representam um clã ou um povo. O coletivo é maior do que a personalidade do ego. (STEIN, 2015, p. 146)

De acordo com Von Franz (1964), devido ao modo de vida moderno o

indivíduo está mais voltado para o exterior preocupando-se menos com os sinais

internos da psique, assim é comum que o self se manifeste por meio dos sonhos,

enviando suas mensagens de forma inconsciente.

Deste modo os rituais caminham como manifestação do Self nesta tentativa

de adaptação e simbolização em busca do centramento e totalidade do ser.

Campbell (1949) detalha este processo ritual e sua ligação com as estruturas

psíquicas:

[...] à consideração dos numerosos rituais estranhos das tribos primitivas e das grandes civilizações do passado, cujo relato chega até nós, torna-se claro que o propósito e o efeito real desses rituais consistiam em levar as pessoas a cruzarem difíceis limiares de transformação que requerem uma mudança dos padrões, não apenas da vida consciente, como da inconsciente. Os chamados ritos [ou rituais] de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva (cerimônias de

63

nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.), têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, 1949, p. 9)

Enfim, o processo de desenvolvimento do indivíduo pode ser concebido como

o processo de realização do self, em um movimento constante de conciliação de

suas forças contrárias. Sua manifestação por meio de símbolos de totalidade nos

sonhos, mitos, narrativas ancestrais e rituais, sejam eles modernos ou antigos é um

aspecto deste movimento sempre em busca pela unidade. O self como ordenador

de toda estrutura psíquica em suas várias partes, é um arquétipo fundamental para o

funcionamento e unidade da psique, de modo que esta possa operar como um

sistema interligado e funcional.

64

CAPÍTULO 4

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DOS CONTOS DE FADA E

SUAS IMPLICAÇÕES NA ARTETERAPIA

Imagem 24 - Asas à imaginação.

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expresiones-colores-raras.jpg

Há um ditado que diz que as histórias têm asas. Elas conseguem atravessar voando os montes Cárpatos para ir se abrigar nos Urais. Elas dão, então, um salto até as Sierras e seguem seu espinhaço até pular para as Montanhas Rochosas, e assim por diante.

Clarissa Pinkola Estés

Os contos de fada tradicionais, mesmo sendo antigos, encontram na

atualidade grande interesse do público em geral. Ao longo do tempo foram

realizadas várias adaptações e releituras destas histórias maravilhosas. Este fato

chama a atenção e faz pensar: qual o motivo desta busca pelos contos de fada, por

que estas histórias continuam retornando? Neste capítulo estas, e outras questões

65

serão apresentadas, em seus aspectos fundamentais, no sentido de contribuir para

o estudo neste campo e para a práxis do arteterapeuta.

Sendo o conto de fadas um instrumento simbólico para o arteterapeuta, é

importante refletir sobre o uso que pode ser feito destas histórias transformadas.

Nas últimas décadas e especialmente nos últimos anos, os contos de fada têm sido

abordados pelo cinema de uma forma significativa, trazendo elementos diferentes

das histórias compiladas por Perrault e pelos Irmãos Grimm. Estas produções

cinematográficas alcançaram o interesse de muitas pessoas, lotando as salas de

cinema e gerando muitos comentários sobre as modificações realizadas. A partir

deste fato torna-se importante refletir sobre a necessidade de mudança nos contos,

e o interesse do público nestas histórias transformadas ou não.

4.1 O NASCIMENTO DE UM CONTO DE FADAS

Imagem 25 - Descoberta.

Disponível em:

//brasilescola.uol.com.br/upload/conteudo/images/6b56dd486f15053693cc34b2ac8f0e8b.jpg

Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um….

Lewis Carroll

66

Para entender o processo de formação de um conto de fadas a autora Von

Franz (2013) explica como os contos nascem. Von Franz (2013) relata que muitos

contos surgiram de um acontecimento real e ao longo do tempo ao ser repetido foi

fazendo parte de uma tradição oral, e com isto foram sendo incorporados elementos

importantes para o grupo e o contexto vivenciado.

Como afirma Von Franz (2013) as histórias arquetípicas nascem de uma

experiência individual numinosa em que conteúdos do inconsciente surgem por meio

de sonhos, alucinações, ou acontecimentos sincronísticos, por exemplo. Este

acontecimento é contado para os demais e por tratar-se de um conteúdo do

inconsciente coletivo e portanto, um conteúdo universal, ganha repercussão e

sentido. Von Franz (2013) sinaliza que nos povos primitivos era comum não guardar

segredo, e tais acontecimentos acabavam por ser revelados, espalhando-se como

um boato. “Estes eventos psicológicos, que sempre atingem um indivíduo em

primeiro lugar, são, no meu modo de pensar, o ponto de partida e ao mesmo tempo

o fator que mantém vivos os temas folclóricos.” (VON FRANZ, 2013, p. 31).

É também desta forma que os contos e outras histórias folclóricas atualizam-

se e ganham força. Quando um indivíduo tem uma experiência que alia-se aos

símbolos presentes em determinada crença ou em histórias mais antigas, estas

atualizam-se e unem-se reforçando, os símbolos e significados antecedentes. Para

isto Von Franz (2013) dá como exemplo a atualização da história das bruxas que

transformam-se em raposas. Esta crença renova-se quando um caçador atira na

pata de uma raposa, no outro dia aparece uma senhora mancando e não querendo

dizer o motivo.

Minha hipótese é que, provavelmente, as formas mais originais de contos folclóricos são as sagas locais e as histórias parapsicológicas, histórias miraculosas que acontecem devido a invasões do inconsciente coletivo sob a forma de alucinações em estado de vigília. [...] Quando alguma coisa estranha acontece, ela é cochichada e corre, como correm os boatos; então, sob condições favoráveis o fato emerge enriquecendo de representações arquetípicas já existentes e progressivamente transforma-se num conto. (VON FRANZ, 2013, p. 29-30)

É importante perceber que o fato real precisou ter gerado interesse do grupo

onde surgiu, para que a história ganhasse vida longa e fosse passada de geração

para geração. Uma história certamente com conteúdos significativos nos quais foram

acrescidos novos sentidos a partir das crenças e costumes do povo, gerando as

67

histórias folclóricas. Assim, ao longo do tempo, o acontecimento verídico ia

ganhando novos elementos a partir de sua significação arquetípica.

Estas histórias aos poucos tornavam-se contos fazendo parte da tradição do

grupo, e ao serem recontadas em diferentes lugares podiam ganhar novos

elementos, podendo atingir lugares cada vez mais distantes, acoplando a estas

histórias conteúdos referentes aos novos costumes e realidades locais.

4.2 COMO OS CONTOS DE FADA SE TRANSFORMAM

Imagem 26 - Contando histórias.

Disponível em: br.pinterest.com/pin/385480049336013075/

Para cada contexto histórico há a necessidade e sobreposição de um arquétipo.

Jung

É possível encontrar diferentes versões dos mesmos contos de fada em

locais diferentes. Estas versões tem em comum a mesma estrutura, mas

diferenciam-se em alguns detalhes. Deste modo não é de hoje que verificamos

versões diferentes dos contos de fada.

68

Assim, Von Franz (2013) esclarece que ao serem recontadas e atualizadas as

histórias se enriquecem, pois são acrescidas com temas arquetípicos. O que ocorre

é, na verdade, a ampliação e desenvolvimento destas histórias que ganham novos

campos simbólicos ou mesmo desenvolvem e reafirmam os já existentes.

O que gera o interesse por determinada história é o campo simbólico que ela

carrega e assim, cada grupo possui um conto específico que lhe traz um sentido

especial, pois vai ao encontro de suas necessidades e características. Desta forma,

o conto de fadas sofre modificações de acordo com a cultura em que está inserido,

recebendo elementos diferenciados a partir da necessidade da população.

Von Franz (2013) observa que mesmo a partir do interesse em coletar os

contos de fada da tradição oral e transformá-los em publicações escritas, estes não

cessaram de transformar-se e ganhar novos elementos. Apesar das antigas

narrativas assumirem um formato escrito, este fator não fez com que suas histórias

se cristalizassem. Os contos continuam sofrendo modificações, sendo incorporados

novos elementos e por vezes até mesclando partes de contos diferentes. A autora

afirma que os “[...] contos de fada parecem ser um campo aberto de modo que

alguns se sentem livres para tomar qualquer liberdade.” (VON FRANZ, 2013, p. 13).

Deste modo os contos são reproduzidos e suas versões reimpressas sem o cuidado

de se ater à suas primeiras versões, ou em apontar a mudança com uma nota

explicativa.

Segundo Von Franz (2013), mesmo os Irmãos Grimm que tiveram o cuidado

de escreverem os contos como eram contados, também enxertaram partes de outras

versões, misturando-as, no entanto, o fizeram de forma mais honesta ao citar as

mudanças.

Eles foram bastante honestos para mencionar isso em notas de rodapé ou em cartas para Achim Von Arnim. Mas mesmo os Irmãos Grimm não tiveram aquela atitude que os modernos escritores de folclore e os etnólogos tentam seguir, escrevendo a história literalmente, deixando os vazios e os paradoxos aparecerem, podendo soar tão paradoxais quanto nos sonhos. (VON FRANZ, 2013, p. 14)

Com isto, vemos que o ditado popular “quem conta um conto, aumenta um

ponto” tem sua razão de ser. “Tais invasões do inconsciente coletivo no campo de

experiências de um único indivíduo, provavelmente, de tempos em tempos criam

novos núcleos de histórias e mantém vivos os materiais já existentes.” (VON

FRANZ, 2013, p. 31).

69

4.3 A UNIVERSALIDADE DOS CONTOS DE FADA

Às vezes os contos de fadas e os contos folclóricos brotam de um sentido de lugar, especialmente de lugares significativos da alma.

Clarissa Pinkola Estés

Imagem 27 - "O príncipe encantado" - antiga fábula chinesa.

Disponível em: //grupopapeando.wordpress.com/tag/inconsciente-coletivo/

Já na época da publicação dos contos de fada dos Irmãos Grimm, a coleção

causou um grande sucesso gerando um interesse para além das fronteiras da

Alemanha e assim, outros países também começaram a se interessar a escrever e

colecionar seus próprios contos nacionais. De acordo com Von Franz (2013) foi

neste momento que começou-se a observar a repetição dos temas dos contos. “O

mesmo tema, em milhares de variações, apareciam tanto nas coleções da França,

como da Rússia, Finlândia e Itália.” (VON FRANZ, 2013, p. 14). Neste contexto

surgiram pesquisadores que debruçaram-se em encontrar respostas para a questão

dos temas repetitivos. Von Franz (2013) explica que naquela época ainda não

70

existia o conceito de Inconsciente Coletivo ou teorias que dessem suporte aos

conteúdos inatos e universais da psique.

Imagem 28 - Sopro

Disponível em: http://contacausos.com.br/site2/blogcontacausos/

A pesquisadora Von Franz (2013) afirma que a origem de contos

semelhantes em localidades diferentes, deve-se à migração ou à espontânea

criação destes pela população, guiada por conteúdos simbólicos do inconsciente

coletivo. Assim, histórias semelhantes foram simultaneamente criadas por diferentes

povos, assumindo características próprias, mas obedecendo a uma estrutura básica

e seus campos simbólicos. Como afirma Caluf:

E esta é exatamente mais uma prova do inconsciente coletivo: a existência em todos os homens de motivos míticos comuns que se exprimem no folclore universal com inúmeras variantes mas basicamente nos mesmos termos. Os sonhos falam a mesma linguagem que as lendas, estão povoados de dragões e fadas, de príncipes e feiticeiras, de palácios e abismos... (CALUF, 1969, p. 41)

A partir do exposto, percebe-se que os contos de fada vêm causando desde a

época de sua criação uma grande repercussão, seja nas pequenas aldeias de

camponeses onde foram formados e coletados os primeiros contos, como em suas

versões escritas e atualmente nas adaptações cinematográficas, os contos de fada

continuam encontrando grande valor e importância na sociedade.

71

4.4 OS CONTOS DE FADA NO CINEMA

E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andando a ensinar?

José Saramago

Imagem 29 - Branca de Neve e a Rainha Má.

Disponível em: cacaupinho.com.br/movie-time-conto-de-fadas-no-cinema/

Neste trabalho não foram analisados contos autorais, apesar destes serem

também importantes e terem grande repercussão com o público. Mas privilegiou-se

os contos que foram coletados da história oral, que passando de geração em

geração assumiram variadas versões, inclusive as que encontramos nos dias atuais.

Desta forma os contos analisados são aqueles coletados por Perrault e pelos Irmãos

Grimm, e que tiveram suas versões adaptadas pelo cinema. Os temas destas

narrativas orais permanecem importantes e significativos, retornando na

contemporaneidade. Com isto, discutiu-se a importância destes temas para a

sociedade.

Neste trabalho foram analisados os filmes “A Branca de Neve e o caçador”, “A

garota da capa vermelha”, “João e Maria: caçadores de bruxas” e “Malévola”. Estes

72

filmes foram escolhidos, pois mostram-se significativos para expressar e exemplificar

as questões abordadas.

Estas versões produzidas pelo cinema trazem modificações em relação às

versões tradicionais, com isto é importante analisar os elementos modificados nos

contos, o que trazem de novo e o que conservam. Como afirma Stein (2015, p. 116)

“Os arquétipos não são derivados da cultura; pelo contrário, as formas culturais (na

teoria de Jung) é que derivam de arquétipos.” Neste trabalho, o olhar se voltou para

o caminho de individuação coletivo expresso nos contos de fada, já que estes

trazem em suas narrativas um caminho de transformação e desenvolvimento

humano utilizando metáforas e analogias sobre a existência humana.

4.4.1 Os novos elementos em a “A garota da capa vermelha”

Embora detestemos admitir o fato, na esmagadora maioria das vezes o pacto mais infeliz das nossas vidas é o que fazemos quando nos privamos da nossa vida de conhecimento profundo em troca de uma vida que é muito mais frágil; quando renunciamos aos nossos dentes, nossas garras, nossos sentidos, nosso faro; quando entregamos nossa natureza selvagem em troca da promessa de algo que parece rico mas que se revela vazio.

Clarissa Pinkola Estés

Imagem 30 - A garota da capa vermelha.

Disponível em: //lh3.googleusercontent.com/-

3Gy2gar9DRg/VFlntGw1IZI/AAAAAAAADAc/fvfQLKIYokk/%25255BUNSET%25255D.png

73

O filme Red Riding Hood, “A garota da capa vermelha” foi lançado em março

de 2011 nos Estados Unidos. Baseado no conto “Chapeuzinho Vermelho”, o filme

trouxe mais uma versão para o clássico, levantando elementos intrigantes e dando

um clima de suspense na trama ao abordar o mistério que circunda a origem e a

identidade do lobo.

Neste filme Chapeuzinho Vermelho é a jovem Valerie que mora em uma vila

assombrada por um lobo. Ao longo da trama a menina passa por importantes

descobertas, e vê-se cada vez mais próxima da figura do lobo. Ao final do filme,

“Chapeuzinho Vermelho” descobre que seu pai na verdade é o lobo, mas não aceita

esta condição.

É possível perceber uma evidenciação ao arquétipo da sombra, representado

pelo lobo. O lado obscuro e escondido do ser humano é representado pela fera

devoradora, a qual descobrem ser um homem, que tem o poder de se transformar

em lobo. Esta junção homem-lobo revela-se mais surpreendente quando a

personagem Valerie, apresentada como uma garota frágil, descobre ser filha de um

lobo. Neste desfecho a história caminha buscando revelar a junção entre

“Chapeuzinho Vermelho” e o lobo, apontando a necessidade de integração entre a

sombra e a persona no processo de individuação.

Imagem 31 - Chapeuzinho Vermelho e o Lobo escondido

Disponível em: http://www.surlalunefairytales.com/illustrations/ridinghood/dorered3.html

O lobo representa os aspectos agressivos e instintivos escondidos da

consciência. “Chapeuzinho Vermelho” representa o oposto do lobo, figura frágil e

74

indefesa. Em “A garota da capa vermelha” a personagem Valerie é a única que

consegue comunicar-se com o lobo, mas assustada tenta ignorá-lo, deixando seus

segredos escondidos. Muitas vezes o indivíduo tenta ignorar e esconder os

impulsos da sombra, mas esta atitude compromete seu desenvolvimento e acaba

por torná-la mais perigosa, pois não tendo o controle sobre ela, deixando-a no

inconsciente, esta age quando não se espera.

A não aceitação da figura do lobo como seu pai leva “Chapeuzinho Vermelho”

a uma negação deste seu lado sombrio. O lobo tenta mostrar-lhe que ela também

possui sua força e ímpeto, ao lembrar que quando criança Valerie matou um

indefeso coelho. Mas Valerie diz que não é como ele e o mata. No entanto, seu

namorado é ferido pelo lobo e a partir disto também se transformará na fera. Valerie

então aceita a figura do lobo e passa a morar sozinha na floresta, alcançando um

estado de desenvolvimento e crescimento pessoal, ganhando força e encorajamento

para seguir sua vida. Este processo de integração do elemento agressivo à

personagem possibilita seu controle sobre este aspecto antes desconhecido, mas

que agora pode usá-lo a seu favor.

Pode-se também relacionar a não aceitação inicial do lobo como uma

tentativa em não deixar-se absorver por um animus negativo e destruidor,

representado por seu pai. Com a morte do pai, o animus pôde apresentar-se de

uma forma elaborada na figura de seu namorado, um novo lobo que preocupa-se em

controlar seus atos, não querendo machucá-la.

No filme, o lobo chama Valerie para perto dele, quer mostrar seus segredos, é

uma voz que somente Valerie entende. Esta voz pode assemelhar-se aos sinais do

self conduzindo o indivíduo para seu processo de individuação. Um processo único e

revelador ao demonstrar as potências encobertas do indivíduo. Assim como

apenas Valerie pode escutar o lobo, somente o próprio indivíduo pode reconhecer os

sinais do self e perceber para onde o está guiando.

A aceitação da sombra é um dos passos para o desenvolvimento humano,

torná-la consciente é fundamental para a saúde psíquica. A negação destes

conteúdos contrários à persona pode levar ao adoecimento e a neurose,

cristalizando o indivíduo em uma forma convencional e aparente, não abarcando

todos os seus aspectos. Para haver saúde a fera precisa ser integrada e aceita pela

consciência, suas forças quando devidamente integradas alimentam a alma

contribuindo para o seu amadurecimento.

75

4.4.2 Os novos elementos em “João e Maria: caçadores de bruxas”

De qualquer maneira, porém, a ogra, a bruxa, a natureza selvagem e quaisquer outras criaturas e aspectos que a cultura considera apavorantes nas psiques das mulheres são exatamente as bênçãos que elas mais precisam resgatar e trazer à superfície.

Clarissa Pinkola Estés

Imagem 32 - João e Maria: Caçadores de bruxas.

Disponível em: //br.pinterest.com/pin/149604018849880146/

O filme Hansel and Gretel: Witch Hunters, lançado no Brasil como “João e

Maria: caçadores de bruxas”, em janeiro de 2013, é outra adaptação de conto de

fadas que trouxe grande interesse, ao abordar uma continuidade para o conto “João

e Maria”. Nesta produção, João e Maria, já adultos, dedicam-se a exterminar as

bruxas em uma atitude de vingança pelo que lhes aconteceu na infância. Ressalta-

se nesta versão o arquétipo do herói e do guerreiro na superação da vulnerabilidade

das crianças abandonadas.

No filme, João e Maria sofrem com o abandono de seus pais, que os deixam

sozinhos na terrível floresta, habitada por perigosos animais noturnos. Na floresta

encontram a fantástica casa de doces, o que acham ser a salvação de suas vidas,

no entanto, são novamente enganados e tornam-se alimento para a faminta bruxa.

Abandonadas à própria sorte, a salvação vem das próprias crianças que conseguem

matar a bruxa, desta vez com uma faca, e depois empurrando-a para dentro do

forno. Depois de adultos os dois irmãos continuam unidos e compartilham o mesmo

76

sentimento de raiva e vingança contra as bruxas. É esta força vingativa que os

move a percorrer várias cidades à procura de bruxas para exterminar. A mágoa pelo

abandono é outro fator que os acompanha, não compreendendo a decisão de seus

pais em abandoná-los na floresta.

Imagem 33 - Casa de doces.

Disponível em: //smileq8dotcom.files.wordpress.com/2011/12/fairy_tale_houses_28.jpg

A dor que originou a história de João e Maria passa a ser o combustível de

luta dos irmãos, para não permitir que outras crianças sejam capturadas pelas

bruxas. No entanto, a mágoa do abandono de seus pais ainda ecoa e este mistério

será solucionado ao longo do filme. O sentimento de abandono é superado num

processo de elaboração quando retornam à própria história, que é revelada por uma

bruxa má. Desta forma continuam seu caminho de desenvolvimento, conhecendo

um pouco mais de si mesmos e assim, descobrem forças que não sabiam que

existiam.

Na jornada de João e Maria, os irmãos acabam retornando à cidade natal e

deparam-se com elementos que pertencem à sua história, como a casa de seus pais

e a antiga casa de doces. Nesta cidade os irmãos descobrem segredos sobre sua

origem, o que os fazem ressignificar o sentido de suas vidas. Ao entrar na casa de

seus pais, João e Maria descobrem que são filhos de uma bruxa e surpreendem-se

com esta revelação. Os caçadores de bruxas também são bruxos. Novamente neste

filme a figura temida é integrada às personagens.

É este fator que os fazem ser imunes a alguns feitiços das bruxas e assim,

tenham mais força ao combatê-las. A oposição apresentada nesta trama demonstra

77

a contradição inerente ao ser humano, a vítima é também o caçador e vice-versa. O

equilíbrio se dá ao assumir esta faceta que já operava de forma misteriosa, mas que

ao ser revelada ganha um sentido especial e transformador para João e Maria que

passam a perceber as bruxas de forma diferente.

Esta imunidade à alguns feitiços, pode ser relacionada às forças dos

conteúdos inconscientes, e à riqueza que representam para o indivíduo. É

exatamente por todos os indivíduos comportarem tanto o lado bom como o lado mau

que os fazem ser mais fortes, a existência da sombra em seus conteúdos

escondidos os possibilitam enfrentar diferenciadas situações. Assim são capazes de

superar as adversidades. A unilateralidade faria com que o indivíduo sucumbisse à

situações fora do esperado, que é o que ocorre quando se está cristalizado na

persona, quando não se consegue retirar a máscara para viver as diferentes

situações da vida. Ao ficar preso na máscara, em uma personalidade construída e

cristalizada adoecerá, pois não tem ferramentas para lidar com as situações que

requerem um outro modo de estar na vida.

4.4.3 Os novos elementos em “A Branca de Neve e o caçador”

Imagem 34 - Branca de Neve e o Caçador.

Disponível em: //www.blog.quartogeek.com.br/wp-

content/uploads/2012/06/snowwhite_quartogeek.jpg

78

Como já assinalamos, o lado positivo do animus pode personificar um espírito de iniciativa, coragem, honestidade e, na sua forma mais elevada, de grande profundidade espiritual. Por meio do animus, a mulher pode tornar-se consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua posição objetiva, tanto cultural quanto pessoal, e encontrar, assim, o seu caminho para uma atitude intensamente espiritual em relação à vida. Isso naturalmente pressupõe que seu animus já tenha cessado de emitir opiniões absolutas.

Jung

O filme “A Branca de Neve e o caçador”, originalmente Snow White and the

Huntsman, lançado em junho de 2012, baseou-se no conto “A Branca de Neve”,

compilado pelos Irmãos Grimm. Este conto já havia recebido uma versão para os

cinemas em formato de animação pelos estúdios Disney na década de trinta o que

promoveu sua popularização.

No filme, “A Branca de Neve e o caçador” a heroína Branca de Neve torna-se

uma guerreira e entra em batalha para defender seu reino. Aparece nesta versão o

tema do empoderamento feminino e a ativação do arquétipo do guerreiro.

Imagem 35 - Branca de Neve guerreira.

Disponível em: //eclipsevemai.files.wordpress.com/2011/08/snow-w.jpg

A frágil jovem é substituída pela corajosa guerreira que ao acordar de seu

sono empunha a espada pela liberdade de seu povo. O sono de morte provocado

79

pela maçã envenenada é na verdade um sono de renascimento, um sono que a

acorda para uma nova postura na vida, um momento de desenvolvimento e

transformação. Branca de Neve dorme como uma jovem indefesa e renasce

guerreira.

O caminho de desenvolvimento de Branca de Neve nesta adaptação

cinematográfica a conduz para quem realmente é, ao ocupar seu lugar como rainha

por direito devendo governar e salvar seu reino de sua madrasta e bruxa poderosa.

Assume a liderança que estava escondida, por ter passado sua vida prisioneira em

uma torre. A prisão a escondeu, não sendo mais reconhecida como princesa, mas o

sono de morte a fez renascer. Branca de Neve nesta versão não representa uma

mulher frágil, mas vai à frente de uma tropa. Um equilíbrio em seu animus positivo a

faz ter força para lutar pelo que deseja, criando coragem, não deixando o medo

vencê-la. A bruxa representa a força de um animus instável que apoderou-se de

sua madrasta Ravenna, deixando-a cega e devastadora, destruindo tudo ao seu

redor. Ravenna deseja o coração da bela Branca de Neve, pois alimenta-se da

energia das mais belas. O animus quando descontrolado é destruidor. O animus

negativo tem por característica destruir o feminino, assim Ravenna tenta destruir o

feminino em Branca de Neve, matando-a com uma maçã envenenada. No entanto,

Ravenna só pode ser morta pela mais bela, e é pelas mãos de Branca de Neve

guerreira com um animus equilibrado que a bruxa é morta.

O processo de individuação nesta adaptação de “Branca de Neve” ocorre pelo

caminho de desenvolvimento da personagem que passa da fragilidade ao

encorajamento fortalecendo-se pela passagem à consciência de um animus positivo.

Branca de Neve não se deixa possuir pelo animus, mas o incorpora à consciência

integrando-o e controlando-o, para conquistar seus objetivos e não para destruir.

Como um conto reflete elementos de seu tempo, o processo de

independência e autonomia feminino também é visto nesta saga. A mulher antes

submissa e indefesa reflete no filme o empoderamento que alcançou na sociedade

atual tornando-se capaz de lutar por seus objetivos, não esperando pelo príncipe

salvador. Esta versão vai ao encontro da posição conquistada pela mulher refletindo

uma mudança cultural. A necessidade do conto de elaborar as experiências vividas

pelo indivíduo vem ampliar os novos significados surgidos, clareando seus sentidos.

O arquétipo do guerreiro acionado desta vez por uma mulher, traz para a cena as

mudanças sociais da figura feminina.

80

4.4.4 Os novos elementos em “Malévola”

Imagem 36 - Malévola.

Disponível em: //jumphawk.jovemnerd.com.br/wp-content/uploads/maleficent-533fa922b3277.jpg

Uma onda do inconsciente pode facilmente arrebatá-lo e ele se esquecer de quem era, fazendo coisas nas quais não se reconhece. Por isso, os primitivos temem os afetos (emoções) descontrolados, pois neles a consciência submerge com facilidade, dando espaço à possessão. Todo o esforço da humanidade concentrou-se por isso na consolidação da consciência.

Jung

O filme, Malévola, foi lançado pela Wall Disney Pictures em maio de 2014

como Maleficent. Esta nova versão do conto “A Bela Adormecida” apresenta uma

narrativa na perspectiva da fada Malévola, a vilã da história. Em “Malévola”, a fada

que amaldiçoa a Bela Adormecida arrepende-se, e ao final consegue reverter a

maldição com um beijo de amor verdadeiro. Observa-se nesta narrativa o tema da

redenção da bruxa e a evidenciação do amor fraternal e feminino.

“Malévola” apresenta o conflito sombra e persona, denotando de modo mais

forte e produtivo o processo de individuação que acontece por meio do arquétipo da

grande mãe que toma a frente resolvendo os conflitos e integrando os opostos

sombra e persona, caminhando para o desenvolvimento pessoal da personagem

Malévola.

Malévola é a protetora do reino dos Moors, um lugar encantado, onde vivem

criaturas mágicas, neste local prevalecem a bondade e a justiça. Malévola é uma

fada boa e cuidadora, mas ao ser traída por Stefan, seu amor de infância, deixa-se

ser possuída pela raiva e pela vingança. Stefan retira de Malévola suas asas de fada

e em recompensa recebe o trono como rei no reino dos humanos. A partir deste

momento, Malévola desacreditada do amor, transforma-se em bruxa má e utiliza seu

81

feitiço contra Aurora, a filha de Stefam e faz com que ao completar dezesseis anos

Aurora fure o dedo em uma roca e durma para sempre, ou até receber um beijo de

amor verdadeiro, o que Malévola acredita ser impossível. Enquanto Aurora cresce,

Malévola vê por meio da pureza da criança despertar novamente o amor em sua

vida, fazendo-a arrepender-se do feitiço contra Aurora. Quando Aurora adormece

em seu sono eterno, Malévola faz com que o príncipe a beije na esperança da

menina acordar, no entanto, nada acontece. É somente com o beijo de amor

verdadeiro da própria Malévola que Aurora acorda, e o feitiço é quebrado. Ao final

Malévola recupera suas asas e volta a governar o reino dos Moors com justiça e

bondade.

Esta adaptação apresenta a transformação da fada em bruxa e da bruxa

novamente em fada. O filme dialoga com os opostos bem e mal e como estes polos

podem se inverter. No entanto, é somente ao final que Malévola consegue encontrar

o equilíbrio entre estas forças. Ambos os reinos vivem em polos opostos, assim

como seus habitantes. Moors é o lugar onde reina a bondade e o reino dos

humanos é o local das guerras e da ambição. A sombra apodera-se de Malévola e

revela seu lado perverso que até então desconhecia. Quando a fada Malévola é

tocada pela maldade dos humanos, ela sai de um polo para o outro, agindo através

de um animus negativo. O arquétipo da grande mãe está presente em suas duas

formas, a mãe má e a mãe boa, Malévola traz este arquétipo em seu ímpeto de

cuidar e proteger e também em seu oposto destruidor, vingativo e estéril.

Imagem 37 - Malévola e Aurora.

Disponível em:

//imgsapp.df.divirtasemais.com.br/app/noticia_133890394703/2014/05/29/149447/20140529090812173914o.jpg

82

A transformação de Malévola acontece quando ela entra em contato com a

criança Aurora, a “Bela Adormecida”. O símbolo da criança remete à capacidade de

integração. Segundo Jung, a criança é um símbolo de unificação dos conteúdos

inconscientes e conscientes. É por meio do arquétipo da criança que Malévola

consegue integrar os conteúdos inconscientes, alcançando um novo estágio no

processo de individuação. Jung afirma que a criança

É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completitude. Devido a este significado, o motivo da criança também é capaz das inúmeras transformações acima mencionadas: pode ser expresso, por exemplo, pelo redondo, pelo círculo ou pela esfera, ou então pela quaternidade como outra forma de inteireza. Designei esta inteireza que transcende a consciência com a palavra si-mesmo (Selbst). A meta do processo de individuação é a síntese do si-mesmo. (JUNG, 2000, p. 157)

Pelo amor foi ferida e é no amor que está o antídoto. Malévola precisa em sua

jornada amadurecer o amor que descobriu na infância. É em sua dor por ter sido

traída que está o caminho para transformação e desenvolvimento. Por esta dor

Malévola conhece os sentimentos de raiva e ódio que estavam inconscientes. Suas

atitudes a levam a reencontrar sentimentos de proteção e bondade. Malévola não

fica estagnada no ódio, mas encontra em Aurora uma nova forma de amor e

reencantamento com a pureza e ingenuidade da infância, ingenuidade esta que a

fez ser traída por Stefan. Malévola também trai Aurora ao aproximar-se dela e não

contar quem realmente é. Neste jogo de inversões, Malévola aprende que pode ter

novamente sentimentos positivos e verdadeiros por meio da amizade e cuidado. O

amor fraternal traz o equilíbrio, permitindo o amadurecimento da personagem. A

mãe boa volta à cena, mas desta vez fortalecida pelo que lhe ensinou a mãe má.

4.5 A TRANSFORMAÇÃO NOS CONTOS DE FADA

Mas o engraçado é que,

assim que encontrou o LOBO,

a Chapeuzinho Amarelo

foi perdendo aquele medo:

o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.

Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.

Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.

Chico Buarque – Chapeuzinho amarelo

83

Imagem 38 - Princesas modernas.

Disponível em: www.obaoba.com.br/outros/noticia/veja-cinco-adaptacoes-de-contos-de-fada-em-

filmes

Estas narrativas podem trazer à tona sinais e novas construções sobre o

modo de viver e agir da sociedade atual, assim como o que é valorizado ou não por

ela. A princesa indefesa pode ter sido a marca de uma época nos contos de fada, o

que atualmente percebe-se estar se modificando.

Atualmente as releituras dos contos de fada tradicionais trazem um apelo à

liberdade feminina e a possibilidade de seu processo de desenvolvimento

independente da figura masculina. O predomínio de personagens femininas

caracterizadas como heroínas e guerreiras associa-se ao movimento histórico de

empoderamento das mulheres, tornando-se cada vez mais independentes da figura

masculina. Nos filmes a personagem masculina aparece como um apoio à heroína

em sua jornada.

Von Franz (2010b) afirma que para ocorrer uma mudança no modo de

existência humano são necessários muitos anos formando e construindo um

território favorável, pois a mudança não se dá de uma hora para outra. E neste

sentido, as histórias e contos são um meio de simbolizar estas tentativas de

mudança e caminhos de transformação.

Para entender este processo de retorno de determinados contos, retoma-se a

ideia da existência de símbolos locais, os quais aliam-se à história de

desenvolvimento de determinado grupo. O conceito de sombra coletiva pode

também ser uma pista para indicar alguns temas que retornam e outros que

aparecem transformados e ainda outros que foram omitidos nas histórias. A sombra

coletiva enquanto escondida na persona grupal pode revelar-se nas histórias, lendas

e mitos de um povo. Estas transformações dos contos podem indicar pistas destes

conteúdos ora escondidos, ora revelados. Da mesma forma os arquétipos podem

ser acionados tanto na dimensão individual como na dimensão coletiva. O retorno de

84

narrativas de contos de fada, e suas transformações, podem revelar esta

necessidade de ativar determinados arquétipos a partir da realidade vivenciada.

Cada época pode produzir um modelo para o processo de individuação, a

valorização de um modo de vida que caminharia para o desenvolvimento humano,

este modelo é criado de acordo com o que é valorizado em cada tempo e espaço.

Von Franz (2013) esclarece sobre esta transformação colocando-a no alvo do

processo de individuação coletivo:

Toda época histórica apresenta convicções coletivas generalizadas acerca do processo de individuação. Por exemplo, para as pessoas da Idade Média, o modelo para toda sua vida e para suas condutas interiores deveria estar pautado na vida de Cristo, sendo isso o que se chama de individuação, Hoje em dia, o pensamento corrente é que as pessoas são sadias, satisfeitas e completas quando os instintos físicos são normais, especialmente o instinto sexual. (VON FRANZ, 2013, p. 154)

Neste sentido, é preciso observar as ideias que cada época produz para o

desenvolvimento do sujeito, o que lhe é permitido, valorizado ou imposto como

modelo ideal. A expressão destas ideias fazem parte de um movimento histórico e

não apenas individual o que traz questões para o modo como cada ser humano

dirige sua vida. Suas produções não são livres de uma interferência coletiva.

4.6 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO DOS OPOSTOS

Imagem 39 - União dos opostos.

Disponível em: //s-media-cache-

ak0.pinimg.com/236x/61/fb/02/61fb02dca52bdc50fa502139384e1e0d.jpg

85

Mas esse aspecto ativo e criador do núcleo psíquico só pode entrar em ação quando o ego se desembaraça de todos os projetos determinados e ambiciosos em benefício de uma forma de existência mais profunda e fundamental. O ego deve ser capaz de ouvir atentamente e de entregar-se, sem qualquer outro propósito ou objetivo, ao impulso interior de crescimento.

Jung

Nos contos analisados foi possível perceber a evidenciação da integração dos

opostos. As adaptações remeteram a uma busca pela integração dos contrários,

denotando uma tentativa de desenvolvimento pela revelação e aceitação dos

conteúdos inconscientes.

O principal meio de desenvolvimento do sujeito em seu caminho de

individuação é a integração à consciência de conteúdos que estão escondidos no

inconsciente. Estes conteúdos muitas vezes opostos às regras sociais e morais,

quando revelados, precisam ser aceitos para o estabelecimento da saúde psíquica

do indivíduo. A persona é apenas uma face do ser humano, e está muitas vezes

polarizada em relação às características internas do sujeito, com as quais entra em

conflito, podendo ser rejeitada. Viver em apenas um polo significa viver em um modo

doentio. Na sociedade, o indivíduo é por vezes incentivado a viver apenas uma

máscara, assumindo comportamentos que são valorizados socialmente. Esta

postura retira do sujeito seu potencial, mantendo-o cativo em uma vida ilusória e

mutilada, pois deixa de lado suas reais capacidades e potencialidades, ao identificar-

se com a persona.

O processo de integração passa por um caminho de transformação do

indivíduo. É preciso trilhar uma jornada heróica para conquistar a recompensa final,

a transformação pessoal. Os monstros precisam ser enfrentados, mesmo aqueles

que estão dentro do próprio indivíduo. Viver identificado a um papel social é

prejudicial. Na atualidade, ocorre uma busca pelo desenvolvimento profissional e

intelectual, buscando-se a adaptação ao mundo externo e deixando-se de lado o

desenvolvimento interior, formando um ser frágil, com poucas estratégias para lidar

com determinados conteúdos internos, o que provoca abalos na saúde psíquica e

emocional. A persona esconde determinados conteúdos do indivíduo para que

possa adaptar-se no trabalho, na família, entre outros. No entanto, é necessário

haver uma relação equilibrada entre os conteúdos internos do sujeito e as

necessidades do mundo externo. Poder construir máscaras diferentes a partir do

contexto social, protege o ego, sendo saudável ao indivíduo, pois este movimento

86

não permite que o ego seja aprisionado por uma persona. Na caminhada de

desenvolvimento humano é preciso saber ouvir aos anseios externos e internos.

Integrar é não negar as várias possibilidades da existência humana, aceitando

o lado mais sombrio da alma e poder levá-lo em um processo de transformação para

a luz da consciência, deixando vir à tona sua energia e força. Integrar a sombra,

não é deixar-se apoderar por ela, mas transformá-la e deixá-la compor com a vida.

Os conteúdos inconscientes reprimidos, atuando em oposição às ideias conscientes,

não permitem a unidade e o uso de seus valiosos conteúdos pelo sujeito.

No filme, a personagem Malévola vive quando criança uma personalidade

onde só há espaço para a bondade. No entanto, encontra sua redenção ao

conseguir integrar os conteúdos da sombra à consciência. Alcança seu

desenvolvimento ao passar de uma inicial identificação com a sombra, em um

doloroso processo de elaboração de seus conteúdos, incorporando todas as

qualidades que este arquétipo pode lhe oferecer, tornando-se um ser singular. O

caminho de constituição de um ser único passa pela elaboração e tomada de

consciência dos opostos. Em “A garota da capa vermelha” Valerie tenta negar estes

conteúdos inconscientes, mas ao final os aceita, tornando-se mais forte e

amadurecida.

4.7 IMPLICAÇÕES NO TRABALHO ARTETERAPÊUTICO

Imagem 40 - Saindo do papel.

Disponível em: //horoscopovirtual.uol.com.br/imagem/artigos/interno/images/conto-de-fadas(1).jpg

87

Uma vez que na maioria dos casos as neuroses nào são apenas fenômenos particulares, mas sim sociais, devemos admitir geralmente a presença de arquétipos: o tipo de arquétipo que corresponde à situação é reativado, e disso resultam as referidas forças motrizes ocultas nos arquétipos que, por serem explosivas, são tão perigosas e de conseqüências imprevisíveis.

Jung

O arteterapeuta precisa observar o contexto histórico, político e social no qual

vive, para que possa perceber as relações destas variáveis na ativação e expressão

de arquétipos específicos, que vêm à tona para facilitar processos de transformação

da consciência coletiva, em uma determinada época e contexto cultural. Estas

transformações operam nas relações humanas e são expressas também nas

histórias produzidas em cada época.

A partir das análises dos filmes, percebe-se que as figuras arquetípicas e

seus símbolos podem vir à consciência, por meio dos contos de fada e também

pelas releituras veiculadas pelo cinema. Assim como o inconsciente coletivo

manifestou-se nos contos tradicionais, este continua se fazendo presente nestas

novas narrativas

É necessário investigar por meio de que símbolos o inconsciente coletivo está

se manifestando, quais arquétipos estão sendo acionados em determinado contexto

cultural, buscando o processo de integração e individuação. Desta forma, os contos

de fada tanto tradicionais como as releituras veiculadas pelo cinema são um

excelente meio para trazer à consciência elementos inconscientes.

A constelação do arquétipo da grande mãe na adaptação do conto “Bela

Adormecida” em “Malévola” é um exemplo de como outros arquétipos surgem das

releituras dos contos tradicionais, trazendo novos símbolos. Outro exemplo é poder

pensar na continuação de um conto, como aconteceu com a adaptação de “João e

Maria” em “João e Maria: caçadores de bruxas”, vê-los adultos e podendo elaborar o

sentimento de abandono que viveram na infância trouxe grande interesse do público.

Ver os irmãos numa atitude de superação dos conflitos da infância pode trazer

encorajamento e esperança.

Os contos tradicionais guardam sua riqueza ao carregar os símbolos

universais referentes à existência humana, sua importância como produtor de

sentidos não diminui com a existência de diferentes versões para suas narrativas,

mas atualiza o que estas histórias têm a dizer. A força do conto tradicional continua

atual e suas releituras são expressão de sua importância. A escolha pela utilização

88

de um conto tradicional ou uma versão do conto dependerá do campo simbólico a

ser trabalhado. Neste sentido, o arteterapeuta precisará realizar uma leitura

simbólica para lançar mão tanto dos contos tradicionais como das adaptações.

89

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Imagem 41 – Ponte.

Disponível em: //simplistanapista.files.wordpress.com/2012/11/ponte-surrealista-2.jpg?w=584&h=424

Neste estudo, observou-se que os contos de fada, apesar de expressarem

conteúdos arquetípicos e ancestrais, podem sofrer transformações devido a

contextos históricos e culturais. Desta forma, em Arteterapia, será um material fértil,

para auxiliar na compreensão do modo de agir e sentir, em determinado tempo e

espaço, e na percepção do que é importante, aceitável e inaceitável.

O conto de fadas aborda o contexto de sua época, assim quando foram

criados e transmitidos de forma oral também traziam a realidade e os medos da

sociedade camponesa. Uma das indagações deste trabalho remetia aos motivos da

evidenciação de certos arquétipos nos contos transformados; com isto, observou-se

que os conteúdos modificados dizem muito das transformações e conflitos que são

vivenciados no contemporâneo.

O próprio retorno dos contos de fada aponta para sua importância como

registro simbólico dos processos psíquicos. A utilização dos contos de fada tanto

90

tradicionais como as releituras no trabalho arteterapêutico oferece possibilidades de

amplificação simbólica. Mesmo os contos transformados exprimem realidades

arquetípicas, símbolos universais que expressam complexos da vida cotidiana. A

transformação dos contos não inviabiliza sua utilização no trabalho arteterapêutico,

oferecendo material para ampliação dos símbolos abordados pelo cliente. Os contos

transformados trazem novos campos simbólicos que podem ser instrumentos na

busca de ressignificação de conteúdos afetivos. As histórias modificadas também

são caminhos para a cura. Poder contar a história de outra forma faz parte do

movimento da vida, da diversidade que é a existência humana. Oferecer novos finais

para os contos conectam o expectador destes filmes a novos símbolos e dão outras

possibilidades de leitura para os conflitos apresentados na trama tradicional. Poder

relacionar e comparar as diferentes versões pode ser um modo de produzir sentidos

e amplificar. Olhar de outra forma cria possibilidades para antever um caminho novo.

Cada época possui um tema específico que encontra sentido em seu

contexto. O inconsciente coletivo exprime suas questões com novas roupagens.

Hoje vemos o tema da integração dos opostos como um possível caminho apontado

pelos novos elementos inseridos nos contos de fada. Indicando modos mais

vitalizados e prazerosos de se viver. A individuação também caminha de modo

coletivo, um desenvolvimento, mais lento e complexo. Mas é preciso estar atento

aos modos de vida produzidos na atualidade e para onde estão levando. A

consciência das polaridades bem e mal, sombra e persona, na anima e no animus,

pode ser um primeiro passo para a constituição de um ser mais integrado. A persona

cristalizada não comporta a diversidade humana e também as produções culturais

exprimem esta realidade, chamando para a transformação e aceitação dos

conteúdos rejeitados. A polarização da bruxa, da fada, da princesa e da guerreira

não dá conta das facetas da vida. Ser sempre bruxa, ou sempre fada mostra-se

como uma atitude adoecedora. O caminho para a saúde é a integração destes

opostos. Exprimir a força e a qualidade destas polaridades e aceitar os conteúdos

reprimidos torna o ser humano pleno em suas potencialidades, encontrando-se

como ser único e diferenciado.

O inconsciente coletivo é o mesmo em todas as épocas, a forma com que se

apresentará é que poderá modificar-se. Neste sentido, o arteterapeuta necessita ser

sensível para captar os símbolos que estão envoltos na trama dos contos.

91

Os filmes “Branca de Neve e o Caçador”, “Malévola” e “A Garota da Capa

Vermelha” conservam uma estrutura semelhante aos contos tradicionais. Vê-se que

mesmo as adaptações dos contos mantêm a “espinha dorsal” das narrativas

tradicionais, o que possibilita que sejam reconhecidos. Neste sentido, as adaptações

com seus novos elementos abrem caminho para outros campos simbólicos.

Nos filmes “Malévola”, “A garota da capa vermelha” e “João e Maria:

caçadores de bruxas” há uma busca pela aceitação das figuras que nos contos

tradicionais representavam conteúdos contrários. Estas figuras são trazidas e

convidadas à integração, em um processo de individuação e assimilação dos

opostos.

Os filmes “João e Maria: caçadores de bruxas” e “Branca de Neve e o

Caçador” ressaltam o arquétipo do herói e do guerreiro. João e Maria e Branca de

Neve, descritos nos contos tradicionais como personagens vulneráveis, são

modificados em sua forma de enfrentamento dos conflitos, agindo nos filmes de

modo afirmativo e guerreiro, empunhando armas para lutar contra o mal.

É importante observar que a necessidade destas mudanças pode

acompanhar o contexto cultural vivenciado. É possível perceber nestas narrativas

uma construção subjetiva que se quer imprimir e valorizar, assim como novos

significados assumidos para o amor, para os modos de ser homem e mulher, para

os desafios e conflitos humanos, entre outros. Assim como ressignificações das

representações do bem e do mal podem ser vistas nas novas versões trazidas pelo

cinema.

Desta forma, as manifestações do inconsciente coletivo, seguem

apresentando-se na produção destas novas narrativas, apontando para as

necessidades atuais de simbolização da sociedade. A riqueza simbólica dos contos

tradicionais continua viva, já que constituem-se como um mapa da alma humana.

Vê-se que os temas abordados pelo cinema e trazidos por meio dos contos

de fada, mostram-se significativos e necessários para o público. Sendo um

importante meio de entendimento dos acontecimentos psíquicos e culturais,

possibilitando a assimilação destes significados na vida contemporânea.

Recomenda-se, para estudos posteriores, ampliar as pesquisas sobre as

representações arquetípicas da sombra coletiva nas releituras e adaptações dos

contos tradicionais.

92

REFERÊNCIAS

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002. BRANCO, S. Deuses e Fadas: Arteterapia e arquétipos no dia-a-dia. Rio de Janeiro, WAK, 2010. CALLUF, E. Sonhos, complexos e personalidade: psicologia analítica de C. G. Jung. São Paulo, Mestre Jou, 1969. CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo, Cultrix, 1949. CORSO, D. L. e CORSO, M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre, Artmed, 2006. DARNTON, R. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro, Graal, 1986. GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo, FTD, 1997. JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964. JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro, Vozes, 2000. MEDEIROS, A. e BRANCO, S. Contos de fada: Vivências e técnicas em Arteterapia. Rio de Janeiro, WAK, 2012. NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993. NAGEM, D. Caminhos de Transformação: Transformar para Integrar da Restauração à Reciclagem. Em Philippini, A. (org) Arteterapia: Métodos, Projetos e Processos. Rio de Janeiro: WAK, 2013.

93

PHILIPPINI, A. Arteterapia: Métodos, Projetos e Processos. Rio de Janeiro: WAK, 2013a. _____________. Linguagens e materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro, WAK, 2009. _____________. Para entender arteterapia: cartografias da coragem. Rio de Janeiro, WAK, 2013b. STEIN, M. Jung: o mapa da alma, uma introdução. São Paulo, Cultrix, 2015. VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. São Paulo, Paulus, 2008. _____________. A interpretação dos contos de fada. São Paulo, Paulus, 2013. _____________. A sombra e o mal nos contos de fada. São Paulo, Paulus, 1985. _____________. Animus e anima nos contos de fada. São Paulo, Versus, 2010a. _____________. O feminino nos contos de fada. Rio de Janeiro, Vozes, 2010b. _____________. O processo de individuação. Em: JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964. _____________. O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos de fada. São Paulo, Cultrix, 1980.

94

ANEXO

Seguem os contos “Branca de Neve”, “Bela Adormecida”, “João e Maria” e

“Chapeuzinho Vermelho” segundo a compilação dos Irmãos Grimm retiradas do livro

“Contos de Fada de Perrault, Grimm, Andersem e outros”. (MACHADO, 2010)

Branca de Neve

ERA UMA VEZ uma rainha. Um dia, no meio do inverno, quando flocos de

neve grandes como plumas caíam do céu, ela estava sentada a costurar, junto de

uma janela com uma moldura de ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e

espetou o dedo com a agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O

vermelho pareceu tão bonito contra a neve branca que ela pensou: “Ah, se eu

tivesse um filhinho branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como

a madeira da moldura da janela”.

Pouco tempo depois, deu à luz uma menininha que era branca como a neve,

vermelha como o sangue e negra como o ébano. Chamaram-na Branca de Neve. A

rainha morreu depois do nascimento da criança. Um ano mais tarde seu marido, o

rei, casou-se com outra mulher. Era uma dama belíssima, mas orgulhosa e

arrogante, e não podia suportar a ideia de que alguém fosse mais bonita que ela.

Possuía um espelho mágico e, sempre que ficava diante dele para se olhar, dizia:

“Espelho, espelho meu, Existe outra mulher mais bela do que eu?” E o espelho

sempre respondia: “Não, minha Rainha, sois de todas a mais bela.” Então ela ficava

feliz, pois sabia que o espelho sempre dizia a verdade. Branca de Neve estava

crescendo e, a cada dia que passava, ficava mais bonita. Quando chegou aos sete

anos, havia se tornado tão bonita quanto o dia e mais bonita que a própria rainha.

Um dia a rainha perguntou ao espelho: “Espelho, espelho meu, Existe outra mulher

mais bela do que eu?” O espelho respondeu: “Ó minha Rainha, sois muito bela

ainda, Mas Branca de Neve é mil vezes mais linda.” Ao ouvir estas palavras a rainha

pôs-se a tremer, e seu rosto ficou verde de inveja. Desse momento em diante, odiou

Branca de Neve. Sempre que batia os olhos nela, seu coração ficava frio como uma

pedra. A inveja e o orgulho medraram como pragas em seu coração. Dia ou noite,

ela não tinha um momento de paz.

95

Um dia chamou um caçador e disse: “Leve a criança para a floresta. Nunca

mais quero ver a cara dela. Traga-me seus pulmões e seu fígado como prova de

que a matou.” O caçador obedeceu e levou a menina para a mata, mas no momento

exato em que estava puxando sua faca de caça e prestes a mirar seu coração

inocente, ela começou a chorar e a suplicar: “Misericórdia, meu bom caçador, poupe

minha vida. Prometo correr para dentro da mata e nunca mais voltar.” Branca de

Neve era tão bonita que o caçador teve pena dela e disse: “Então vá, fuja, pobre

criança!”

“Os animais selvagens não tardarão a devorá-la”, pensou, mas lhe pareceu

que seu coração estava aliviado de um grande peso, pois pelo menos não teria de

matar a menina. Naquele instante um filhote de javali passou correndo, e o caçador

matou-o a estocadas. Retirou os pulmões e o fígado e os levou para a rainha como

prova de que matara a criança. O cozinheiro recebeu instruções de fervê-los na

salmoura, e a perversa mulher os comeu, pensando que estava comendo os

pulmões e o fígado de Branca de Neve.

A pobre menina foi deixada sozinha na vasta floresta. Estava tão assustada

que ficou a olhar para cada folha de cada árvore, sem saber o que fazer. Depois

começou a correr, passando sobre pedras pontudas e entre espinheiros. De vez em

quando, feras passavam por ela, mas não lhe faziam mal. Ela correu enquanto suas

pernas aguentaram. Ao cair da noite, avistou uma cabaninha e entrou para

descansar. Todas as coisas na casa eram minúsculas, mas tão caprichadas e limpas

que não se podia acreditar. Havia uma mesinha, com sete pratinhos sobre uma

toalha branca. Sobre cada pratinho havia uma colher; além disso, havia sete

faquinhas e garfinhos e sete canequinhas. Contra a parede, sete caminhas lado a

lado, todas arrumadas com lençóis brancos como a neve. Branca de Neve estava

com tanta fome e com tanta sede que comeu um pouquinho de salada e um

bocadinho de pão de cada pratinho e tomou uma gota de vinho de cada canequinha.

Não queria tirar tudo de um só. Mais tarde, sentiu-se tão cansada que tentou se

deitar numa das camas, mas nenhuma parecia lhe servir. A primeira era comprida

demais, a segunda, curta demais, mas a sétima tinha o tamanho certo, e ali ela

ficou. Rezou suas orações e adormeceu profundamente. Era noite fechada lá fora

quando os proprietários da cabana retornaram. Eram sete anões que trabalhavam o

dia inteiro nas montanhas, garimpando a terra e escavando em busca de minérios.

96

Eles acenderam sete lanterninhas e, quando a cabana se iluminou, viram que

alguém passara por ali, pois nem tudo estava como haviam deixado.

O primeiro anão perguntou: “Quem se sentou na minha cadeirinha?”

O segundo perguntou: “Quem comeu do meu pratinho?”

O terceiro perguntou: “Quem comeu o meu pãozinho?”

O quarto perguntou: “Quem comeu minha saladinha?”

O quinto perguntou: “Quem usou o meu garfinho?”

O sexto anão perguntou: “Quem cortou com a minha faquinha?”

E por último o sétimo perguntou: “Quem bebeu da minha canequinha?”

O primeiro anão olhou em volta e viu que seus lençóis estavam amassados e

disse: “Quem se deitou na minha caminha?”

Os outros vieram correndo e todos gritaram: “Alguém andou dormindo na minha

cama também!”

Quando o sétimo anão olhou para sua caminha, viu Branca de Neve deitada nela,

dormindo a sono solto. Gritou para os outros, que foram correndo e ficaram tão

assombrados que todos ergueram suas sete lanterninhas para iluminar Branca de

Neve. “Ó céus, ó céus!” todos exclamaram. “Que bela menina!”

Os anões ficaram tão encantados com aquela visão que resolveram não

acordá-la e deixá-la continuar dormindo em sua caminha. O sétimo anão dormiu

uma hora com cada um dos companheiros, até que a noite chegou ao fim. De

manhã Branca de Neve acordou. Quando viu os anões, ficou amedrontada, mas

eles foram amáveis, e perguntaram: “Qual é o seu nome?”

“Meu nome é Branca de Neve”, ela respondeu.

“Como conseguiu chegar a esta casa?” eles quiseram saber.

Branca de Neve contou-lhes como sua madrasta havia tentado matá-la e

como o caçador poupara sua vida. Contou que correra o dia inteiro até chegar à

cabana deles. Os anões lhe disseram: “Se quiser cuidar da casa para nós, cozinhar,

fazer as camas, lavar, costurar, tricotar e manter tudo limpo e arrumadinho, pode

ficar conosco, e nada lhe faltará.”

“Sim, quero ficar, não desejo outra coisa”, Branca de Neve respondeu, e ficou com

eles.

Branca de Neve cuidava da casa para os anões. De manhã eles iam para o

alto das montanhas em busca de minérios e ouro. Ao cair da noite voltavam, e o

jantar estava pronto à sua espera. Como a menina passava os dias sozinha, os

97

anões a advertiram seriamente: “Tome cuidado com sua madrasta. Ela não vai

demorar a saber que está aqui. Não deixe ninguém entrar na casa.”

Mas a rainha, acreditando que havia comido os pulmões e o fígado de Branca

de Neve, estava certa de que era novamente a mais bela de todas. Foi até o espelho

e perguntou: “Espelho, espelho meu, Existe outra mulher mais bela do que eu?” O

espelho respondeu: “És sempre bela, minha cara rainha. Mas na colina distante, por

sete anões cercada, Branca de Neve ainda vive e floresce, E sua beleza jamais foi

superada.” Ao ouvir estas palavras a rainha ficou pasma, pois sabia que o espelho

nunca dizia uma mentira. Compreendeu que o caçador certamente a enganara e

que Branca de Neve estava viva. E pôs-se a maquinar uma maneira de se livrar

dela. Se não fosse a mais bela de todo o reino, nunca seria capaz de sentir outra

coisa senão inveja. Finalmente concebeu um plano. Pintou o rosto e vestiu-se como

uma velha vendedora ambulante, tornando-se completamente irreconhecível. Assim

disfarçada, viajou para além das sete colinas até a casa dos sete anões. Lá

chegando, bateu à porta e anunciou: “Mercadorias bonitas a precinho camarada.”

Branca de Neve espiou pela janela e disse: “Bom dia, minha boa mulher. O que a

senhora tem para vender?” “Coisas boas, coisas bonitas”, ela respondeu. “Cordões

multicoloridos para o corpete”, e puxou um cadarço de seda tecido de muitas cores.

“Posso deixar esta boa mulher entrar”, Branca de Neve pensou, e, correndo o

ferrolho da porta, comprou o bonito cadarço. “Oh, minha filha, como você está

desarrumada. Venha, deixe que eu arrume o cadarço como convém.” Branca de

Neve não estava nem um pouquinho desconfiada. Postou-se diante da velha e

deixou que ela arrumasse o cadarço novo. A velha apertou o cadarço tanto e tão

depressa que Branca de Neve ficou sem ar e caiu no chão como se estivesse morta.

“Agora quero ver quem é a mais bela de todas”, disse a velha, afastando-se

depressa.

Não muito depois, ao anoitecer, os sete anões voltaram para casa. Quando

viram sua amada Branca de Neve estendida no chão, ficaram horrorizados. Como

não se mexia, nem um pouquinho, não tiveram dúvida de que estava morta.

Ergueram-na e, percebendo que o cadarço de seu corpete estava apertado demais,

cortaram-no em dois. Branca de Neve então começou a respirar, e pouco a pouco

voltou à vida. Quando os anões souberam do que tinha acontecido, disseram: “A

velha vendedora ambulante não era outra senão a rainha má. Tome cuidado e não

deixe ninguém entrar, a menos que estejamos em casa.” Ao chegar de volta em

98

casa, a rainha foi até o espelho e perguntou: “Espelho, espelho meu, Existe outra

mulher mais bela do que eu?” O espelho respondeu como de costume: “És sempre

bela, minha cara rainha, mas na colina distante, por sete anões cercada, Branca de

Neve ainda vive e floresce, E sua beleza jamais foi superada.” Quando a rainha

ouviu essas palavras, o sangue gelou em suas veias. Ficou horrorizada ao saber

que Branca de Neve continuava viva. “Mas desta vez”, disse ela, “inventarei alguma

coisa para destruí-la.”

Usando toda a bruxaria que conhecia, fabricou um pente envenenado. Depois

trocou de roupa e se disfarçou de velha mais uma vez. E novamente viajou para

além das sete colinas até a casa dos sete anões, bateu à porta e anunciou:

“Mercadorias bonitas a precinho camarada.” Branca de Neve espiou pela janela e

disse: “Vá embora, não posso deixar ninguém entrar.” “Mas pode ao menos dar uma

olhada”, disse a velha, e, pegando um pente envenenado, segurou-o no ar. A

menina gostou tanto daquele pente que caiu como um patinho e abriu a porta.

Quando chegaram a um acordo sobre o preço, a velha disse: “Agora vou pentear

seu cabelo como ele merece.” A pobre Branca de Neve não desconfiou de nada e

deixou a mulher fazer como queria. Mal o pente tocou no seu cabelo, porém, o

veneno fez efeito e a menina tombou no chão, sem sentidos. “Pronto, minha bela”,

disse a perversa mulher. “Está liquidada.” E partiu a toda pressa.

Felizmente, os anões já estavam a caminho de casa, pois já era quase noite.

Quando viram Branca de Neve caída no chão como morta, desconfiaram

imediatamente da madrasta. Ao examiná-la, descobriram o pente venenoso. Assim

que o desemaranharam de seu cabelo, Branca de Neve voltou à vida e lhes contou

o que havia acontecido. Mais uma vez eles lhe recomendaram que tivesse cuidado e

nunca mais abrisse a porta para ninguém. Em casa, a rainha se dirigiu ao espelho e

perguntou: “Espelho, espelho meu, Existe outra mulher mais bela do que eu?” O

espelho respondeu como de costume: “És sempre bela, minha cara rainha, mas na

colina distante, por sete anões cercada, Branca de Neve ainda vive e floresce, E sua

beleza jamais foi superada.” Ao ouvir as palavras pronunciadas pelo espelho, a

rainha começou a tremer de raiva. “Branca de Neve tem de morrer!” exclamou.

“Mesmo que isso custe a minha vida.”

Foi para uma câmara secreta, onde ninguém jamais pisava, e confeccionou

uma maçã cheia de veneno. Do lado de fora, era bonita – branca com as faces

vermelhas – vê-la era desejá-la. Mas quem lhe desse a menor das mordidas,

99

morreria. Quando a maçã ficou pronta, a rainha pintou o rosto de novo, vestiu-se

como uma camponesa e viajou para além das sete colinas até a casa dos sete

anões. Bateu à porta, e Branca de Neve pôs a cabeça pela janela para dizer: “Não

posso deixar ninguém entrar. Os sete anões proibiram.”

“Não faz mal”, a camponesa respondeu. “Logo vou me livrar das minhas maçãs.

Tome, dou-lhe esta.”

“Não”, disse Branca de Neve. “Estou proibida de aceitar qualquer coisa.”

“Está com medo de que esteja envenenada?”, perguntou a mulher. “Veja, vou partir

a maçã ao meio. Você come a parte vermelha, eu como a branca.”

A maçã fora feita com tanta perícia que só a parte vermelha tinha veneno.

Branca de Neve sentiu um ardente desejo pela linda maçã e, quando viu a

camponesa dar uma mordida, não pôde resistir mais. Enfiou a mão pela janela e

pegou a metade envenenada. Assim que mordeu, caiu morta no chão. A rainha

contemplou-a com olhos furiosos e explodiu numa gargalhada: “Branca como a

neve, vermelha como o sangue, negra como o ébano! Desta vez os anões não

conseguirão trazê-la de volta à vida!”

Em casa, ela perguntou ao espelho:

“Espelho, espelho meu, quem é de todas a mais bela?”

E ele finalmente respondeu: “Sois vós, minha rainha, do reino a mais bela.”

Finalmente o coração invejoso da rainha ficou em paz (tanto quanto um coração

invejoso pode ficar em paz).

Quando os anões voltaram para casa ao cair da noite, encontraram Branca de

Neve estendida no chão. Nem um sopro exalava de seus lábios. Estava morta.

Ergueram-na e procuraram em volta algo que pudesse ser venenoso. Desataram

seu corpete, pentearam seu cabelo, banharam-na com água e vinho, mas foi tudo

em vão. A querida menina se fora, e nada podia trazê-la de volta. Depois de

colocarem Branca de Neve num caixão, todos os sete se sentaram em volta dele e a

velaram. Choraram por três dias. Estavam prontos para enterrá-la, mas ela ainda

parecia viva, com bonitas faces vermelhas.

Os anões disseram: “Não podemos enterrá-la na terra escura.” Assim,

mandaram fazer um caixão de vidro transparente que permitia ver Branca de Neve

de todos os lados. Colocaram-na dentro dele, escreveram seu nome nele com letras

douradas e acrescentaram que se tratava da filha de um rei. Levaram o caixão até o

topo de uma montanha, e um dos anões ficava sempre junto dele, montando guarda.

100

Animais também foram chorar Branca de Neve, primeiro uma coruja, depois um

corvo e por último um pombo. Branca de Neve ficou no caixão por muito, muito

tempo. Mas não se decompôs, e dava a impressão de estar dormindo, pois

continuava branca como a neve, vermelha como o sangue, e com os cabelos tão

negros como o ébano.

Um dia o filho de um rei atravessava a floresta quando chegou à cabana dos

anões. Esperava poder passar a noite ali. Quando subiu no alto da montanha, viu o

caixão com a linda Branca de Neve deitada dentro dele e leu as palavras escritas

com letras douradas. Disse então aos anões: “Deixai-me levar este caixão. Eu lhes

darei o que quiserem em troca.” Os anões responderam: “Não o venderíamos nem

por todo o ouro do mundo.” Ele disse: “Deem-me então como um presente, pois não

posso viver sem ver Branca de Neve. Vou honrá-la e tratá-la como se fosse a minha

amada.”

Ao ouvirem estas palavras, os bons anões se apiedaram e lhe entregaram o

caixão. O príncipe ordenou a seus criados que pusessem o ataúde sobre os ombros

e o transportassem. Mas aconteceu que eles tropeçaram num arbusto e o solavanco

soltou o pedaço de maçã envenenado que estava entalado na garganta de Branca

de Neve. Ela voltou à vida e exclamou: “Céus, onde estou?”

O príncipe ficou emocionado e disse: “Você vai ficar comigo”, e contou-lhe o

que acontecera. “Eu te amo mais que tudo no mundo”, ele disse. “Venha comigo

para o castelo do meu pai, seja minha noiva.” Branca de Neve sentiu afeição pelo

príncipe, e partiu com ele. As núpcias foram celebradas com enorme esplendor. A

madrasta perversa de Branca de Neve também foi convidada para a festa de

casamento. Vestiu belas roupas, plantou-se diante do espelho e disse: “Espelho,

espelho meu, Quem é de todas a mais bela?” “Ó minha rainha, sois muito bela

ainda, Mas a jovem rainha é mil vezes mais linda.” A malvada mulher lançou uma

praga e ficou tão paralisada de medo que não soube o que fazer. Primeiro resolveu

não ir à festa de casamento. Como isso não a acalmou nem um pouco, viu-se

obrigada a ver a jovem rainha. Quando entrou no castelo, Branca de Neve a

reconheceu no mesmo instante. A rainha ficou tão aterrorizada que estacou ali, sem

conseguir se mexer um centímetro. Sapatos de ferro já haviam sido aquecidos para

ela sobre um fogo de carvões. Foram levados com tenazes e postos bem na sua

frente. Ela teve de calçar os sapatos de ferro incandescentes e dançar com eles até

cair morta no chão.

101

Chapeuzinho Vermelho

ERA UMA VEZ uma menininha encantadora. Todos que batiam os olhos nela

a adoravam. E, entre todos, quem mais a amava era sua avó, que estava sempre

lhe dando presentes. Certa ocasião ganhou dela um pequeno capuz de veludo

vermelho. Assentava-lhe tão bem que a menina queria usá-lo o tempo todo, e por

isso passou a ser chamada Chapeuzinho Vermelho. Um dia, a mãe da menina lhe

disse: “Chapeuzinho Vermelho, aqui estão alguns bolinhos e uma garrafa de vinho.

Leve-os para sua avó. Ela está doente, sentindo-se fraquinha, e estas coisas vão

revigorá-la. Trate de sair agora mesmo, antes que o sol fique quente demais, e

quando estiver na floresta olhe para a frente como uma boa menina e não se desvie

do caminho. Senão, pode cair e quebrar a garrafa, e não sobrará nada para a avó. E

quando entrar, não se esqueça de dizer bom-dia e não fique bisbilhotando pelos

cantos da casa.” “Farei tudo que está dizendo”, Chapeuzinho Vermelho prometeu à

mãe.

Sua avó morava lá no meio da mata, a mais ou menos uma hora de

caminhada da aldeia. Mal pisara na floresta, Chapeuzinho Vermelho topou com o

lobo. Como não tinha a menor ideia do animal malvado que ele era, não teve um

pingo de medo.

“Bom dia, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo. “Bom dia, senhor Lobo”, ela

respondeu.

“Aonde está indo tão cedo de manhã, Chapeuzinho Vermelho?”

“À casa da vovó.”

“O que é isso debaixo do seu avental?”

“Uns bolinhos e uma garrafa de vinho. Assamos ontem e a vovó, que está doente e

fraquinha, precisa de alguma coisa para animá-la”, ela respondeu.

“Onde fica a casa da sua vovó, Chapeuzinho?”

“Fica a um bom quarto de hora de caminhada mata adentro, bem debaixo dos três

carvalhos grandes. O senhor deve saber onde é pelas aveleiras que crescem em

volta”, disse Chapeuzinho Vermelho. O lobo pensou com seus botões: “Esta

coisinha nova e tenra vai dar um petisco e tanto! Vai ser ainda mais suculenta que a

velha. Se tu fores realmente matreiro, vais papar as duas.”

O lobo caminhou ao lado de Chapeuzinho Vermelho por algum tempo. Depois

102

disse: “Chapeuzinho, notou que há lindas flores por toda parte? Por que não para e

olha um pouco para elas? Acho que nem ouviu como os passarinhos estão cantando

lindamente. Está se comportando como se estivesse indo para a escola, quando é

tudo tão divertido aqui no bosque.”

Chapeuzinho Vermelho abriu bem os olhos e notou como os raios de sol

dançavam nas árvores. Viu flores bonitas por todos os cantos e pensou: “Se eu

levar um buquê fresquinho, a vovó ficará radiante. Ainda é cedo, tenho tempo de

sobra para chegar lá, com certeza.”

Chapeuzinho Vermelho deixou a trilha e correu para dentro do bosque à

procura de flores. Mal colhia uma aqui, avistava outra ainda mais bonita acolá, e ia

atrás dela. Assim, foi se embrenhando cada vez mais na mata. O lobo correu direto

para a casa da avó de Chapeuzinho e bateu à porta.

“Quem é?”

“Chapeuzinho Vermelho. Trouxe uns bolinhos e vinho. Abra a porta.”

“É só levantar o ferrolho”, gritou a avó. “Estou fraca demais para sair da cama.”

O lobo levantou o ferrolho e a porta se escancarou. Sem dizer uma palavra, foi

direto até a cama da avó e a devorou inteirinha. Depois, vestiu as roupas dela,

enfiou sua touca na cabeça, deitou-se na cama e puxou as cortinas.

Enquanto isso Chapeuzinho Vermelho corria de um lado para outro à cata de

flores. Quando tinha tantas nos braços que não podia carregar mais, lembrou-se de

repente de sua avó e voltou para a trilha que levava à casa dela. Ficou surpresa ao

encontrar a porta aberta e, ao entrar na casa, teve uma sensação tão estranha que

pensou: “Puxa! Sempre me sinto tão alegre quando estou na casa da vovó, mas

hoje estou me sentindo muito aflita.”

Chapeuzinho Vermelho gritou um olá, mas não houve resposta. Foi então até

a cama e abriu as cortinas. Lá estava sua avó, deitada, com a touca puxada para

cima do rosto. Parecia muito esquisita.

“Ó avó, que orelhas grandes você tem!”

“É para melhor te escutar!”

“Ó avó, que olhos grandes você tem!”

“É para melhor te enxergar!”

“Ó avó, que mãos grandes você tem!”

“É para melhor te agarrar!”

“Ó avó, que boca grande, assustadora, você tem!”

103

“É para melhor te comer!”

Assim que pronunciou estas últimas palavras, o lobo saltou fora da cama e

devorou a coitada da Chapeuzinho Vermelho. Saciado o seu apetite, o lobo deitou-

se de costas na cama, adormeceu e começou a roncar muito alto. Um caçador que

por acaso ia passando junto à casa pensou: “Como essa velha está roncando alto!

Melhor ir ver se há algum problema.” Entrou na casa e, ao chegar junto à cama,

percebeu que havia um lobo deitado nela. “Finalmente te encontrei, seu velhaco”,

disse. “Faz muito tempo que ando à sua procura.” Sacou sua espingarda e já estava

fazendo pontaria quando atinou que o lobo devia ter comido a avó e que, assim, ele

ainda poderia salvá-la. Em vez de atirar, pegou uma tesoura e começou a abrir a

barriga do lobo adormecido. Depois de algumas tesouradas, avistou um gorro

vermelho. Mais algumas, e a menina pulou fora, gritando: “Ah, eu estava tão

apavorada! Como estava escuro na barriga do lobo.” Embora mal pudesse respirar,

a idosa vovó também conseguiu sair da barriga. Mais que depressa Chapeuzinho

Vermelho catou umas pedras grandes e encheu a barriga do lobo com elas. Quando

acordou, o lobo tentou sair correndo, mas as pedras eram tão pesadas que suas

pernas bambearam e ele caiu morto. Chapeuzinho Vermelho, sua avó e o caçador

ficaram radiantes. O caçador esfolou o lobo e levou a pele para casa. A avó comeu

os bolinhos, tomou o vinho que a neta lhe levara, e recuperou a saúde. Chapeuzinho

Vermelho disse consigo: “Nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata

quando sua mãe proibir.”

HÁ UMA HISTÓRIA sobre uma outra vez em que Chapeuzinho Vermelho

encontrou um lobo quando ia para a casa da avó, levando-lhe uns bolinhos. O lobo

tentou fazê-la desviar-se da trilha, mas Chapeuzinho Vermelho estava alerta e

seguiu em frente. Contou à avó que encontrara um lobo e que ele a cumprimentara.

Mas tinha olhado para ela de um jeito tão mau que “se não estivéssemos num

descampado, teria me devorado inteira”. “Pois bem”, disse a avó. “Basta trancar a

porta e ele não poderá entrar.” Alguns instantes depois o lobo bateu à porta e gritou:

“Abra a porta, vovó. É Chapeuzinho Vermelho, vim lhe trazer uns bolinhos.” As duas

não abriram a boca e se recusaram a atender a porta. Então o espertalhão rodeou a

casa algumas vezes e pulou para cima do telhado. Estava planejando esperar até

que Chapeuzinho Vermelho fosse para casa. Pretendia rastejar atrás dela e devorá-

la na escuridão. Mas a avó descobriu suas intenções. Havia um grande cocho de

pedra na frente da casa. A avó disse à menina: “Pegue este balde, Chapeuzinho

104

Vermelho. Ontem cozinhei umas salsichas. Jogue a água da fervura no cocho.”

Chapeuzinho Vermelho levou vários baldes d’água ao cocho, até deixá-lo

completamente cheio. O cheiro daquelas salsichas chegou até as narinas do lobo.

Ele esticou tanto o pescoço para farejar e olhar em volta que perdeu o equilíbrio e

começou a escorregar telhado abaixo. Caiu bem dentro do cocho e se afogou.

Chapeuzinho Vermelho voltou para casa alegremente e ninguém lhe fez mal algum.

A Bela Adormecida

HÁ MUITOS E MUITOS ANOS viviam um rei e uma rainha. Dia após dia eles

diziam um para o outro: “Oh, se pelo menos pudéssemos ter um filho!” Mas nada

acontecia.

Um dia, quando a rainha estava se banhando, uma rã saiu da água, rastejou

para a borda e lhe disse: “Seu desejo será realizado. Antes que se passe um ano,

dará à luz uma filha.”

A previsão da rã se realizou, e a rainha deu à luz uma menina tão bonita que

o rei ficou fora de si de contentamento e preparou um grande banquete. Convidou

parentes, amigos e conhecidos, e mandou chamar também as feiticeiras do reino,

pois esperava que viessem a ser bondosas e generosas para com sua filha. Havia

treze feiticeiras ao todo, mas como o rei só tinha doze pratos de ouro para servir o

jantar, uma das mulheres teve de ficar em casa.

O banquete foi celebrado com grande esplendor e, quando se aproximava do

fim, as feiticeiras concederam suas dádivas mágicas à menina. A primeira lhe

conferiu virtude, a segunda lhe deu beleza, a terceira fortuna, e assim por diante, até

que a menina tivesse tudo que se pode desejar deste mundo. No exato momento em

que a décima primeira mulher estava concedendo sua dádiva, a décima terceira do

grupo surgiu. Não fora convidada e agora desejava se vingar.

Sem olhar para ninguém ou dizer uma palavra a quem quer que fosse, gritou

bem alto: “Quando a filha do rei fizer quinze anos, espetará o dedo num fuso e cairá

morta.” E, sem mais uma palavra, virou as costas a todos e deixou o salão. Todos

ficaram apavorados, mas no mesmo instante a décima segunda do grupo de

mulheres se levantou. Ainda restava um desejo a conceder para a menina, e,

embora a feiticeira não pudesse suspender o feitiço maligno, podia abrandá-lo.

Assim, ela disse: “A filha do rei não morrerá, cairá num sono profundo que durará

105

cem anos.” O rei, que queria fazer o possível e o impossível para preservar a filha da

desgraça, ordenou que todos os fusos do reino inteiro fossem reduzidos a cinzas.

Quanto à menina, todos os desejos proferidos pelas feiticeiras se realizaram, pois

ela era tão bonita, bondosa, encantadora e ajuizada que não havia um que nela

pusesse os olhos e não passasse a amá-la.

Exatamente no dia em que a menina completou quinze anos, o rei e a rainha

saíram e ela ficou sozinha em casa. Vagou pelo castelo, espionando um cômodo

após o outro, e acabou ao pé de uma velha torre. Depois de subir uma estreita

escada em caracol dentro da torre, viu-se diante de uma portinha com uma chave

velha e enferrujada na fechadura. Quando rodou a chave, a porta girou e revelou um

quartinho minúsculo. Nele estava uma velha com seu fuso, muito ocupada em fiar

linho.

“Boa tarde, vovó”, disse a princesa. “Que está fazendo aqui?”

“Estou fiando linho”, respondeu a velha, cumprimentando a menina com a cabeça.

“O que é isso bamboleando assim tão esquisito?” a menina perguntou. E pôs a mão

no fuso, pois também queria fiar. O feitiço começou a fazer efeito imediatamente,

pois espetara o dedo no fuso. Assim que tocou a ponta do fuso, a menina caiu

prostrada numa cama que havia ali perto e caiu num sono profundo. Seu torpor

espalhou-se por todo o castelo. O rei e a rainha, que acabavam de voltar para casa

e estavam entrando no grande salão, adormeceram, e com eles toda a corte. Os

cavalos adormeceram nos estábulos, os cães no quintal, os pombos no telhado e as

moscas na parede. Até o fogo que crepitava na lareira morreu e adormeceu. O

assado parou de chiar, e o cozinheiro, que estava a ponto de puxar o cabelo do

auxiliar de cozinha porque ele fizera uma tolice, deixou-o escapar e adormeceu. O

vento também amainou, e nem mais uma folha balançou nas árvores fora do

castelo. Logo uma cerca viva de urzes começou a crescer em volta do castelo. A

cada ano ficava mais alta, até que um dia encobria o castelo inteiro. Ficara tão

espessa que não deixava ver nem a flâmula no alto do torreão do castelo. Por todo o

reino, circularam histórias sobre a bela Rosa da Urze, alcunha dada à princesa

adormecida. De vez em quando um príncipe tentava abrir caminho através da cerca

viva para chegar ao castelo. Mas nenhum jamais conseguia, porque as urzes se

entrelaçavam umas às outras como se estivessem de mãos dadas, e os jovens que

se enredavam nelas e não conseguiam se desprender morriam. Era uma morte

terrível.

106

Passados muitos e muitos anos, um outro príncipe apareceu no reino. Ouviu

um velho falar sobre uma cerca viva de urze que, ao que se dizia, escondia um

castelo. Nele, segundo o velho, uma princesa fabulosamente bela, chamada Rosa

da Urze, estava dormindo havia cem anos, junto com o rei, a rainha e toda a corte. O

velho ouvira de seu avô que muitos outros príncipes haviam tentado romper a cerca

viva de urze, mas haviam ficado presos pela planta e tido mortes horríveis. O jovem

disse: “Eu não tenho medo. Vou encontrar esse castelo para poder ver a bela Rosa

da Urze.” O bondoso velho fez o que podia para dissuadir o príncipe, mas ele não

lhe deu ouvidos.

Aconteceu que o prazo de cem anos acabara de se esgotar, e chegara o dia

em que a Rosa da Urze iria acordar. Quando se aproximou da cerca viva de urzes, o

príncipe não encontrou nada senão grandes e lindas flores. Elas se afastaram para

lhe abrir caminho e o deixaram passar são e salvo; depois se fecharam atrás dele,

formando uma cerca. No pátio, os cavalos e os cães de caça malhados estavam

deitados no mesmo lugar, profundamente adormecidos, e os pombos permaneciam

empoleirados com as cabecinhas metidas debaixo das asas. O príncipe avançou até

o castelo e viu que até as moscas dormiam a sono solto nas paredes. O cozinheiro

ainda estava na cozinha, com a mão erguida no ar como se estivesse a ponto de

agarrar o auxiliar de cozinha, e a criada continuava sentada à mesa, com uma

galinha preta que estava prestes a depenar. Indo um pouco adiante, o príncipe

chegou ao salão, onde viu a corte inteira dormindo profundamente, com o rei e a

rainha deitados bem junto de seus tronos. Seguiu em frente, e tudo estava tão

silencioso que podia ouvir sua própria respiração. Finalmente chegou à torre e abriu

a porta do quartinho em que a Rosa da Urze dormia. Lá estava a princesa deitada,

tão bonita que ele não conseguia tirar os olhos dela. Então, curvou-se e beijou-a.

Mal o príncipe lhe roçara os lábios, a Rosa da Urze despertou, abriu os olhos e

sorriu docemente para ele. Desceram juntos a escada. O rei, a rainha e toda a corte

haviam despertado e olhavam uns para os outros com grande espanto. Os cavalos

no pátio se levantaram e se sacudiram. Os cães de caça se ergueram de um salto e

abanaram os rabos. Os pombos botaram as cabeças para fora das asas, olharam

em volta e revoaram para os campos. As moscas começaram a se arrastar pelas

paredes. O fogo na cozinha crepitou, rebentou em chamas e começou a cozinhar a

comida de novo. O assado voltou a chiar. O cozinheiro deu uma palmada tão forte

no auxiliar de cozinha que ele berrou. A criada terminou de depenar a galinha.

107

O casamento da Rosa da Urze e do príncipe foi celebrado com grande esplendor, e

os dois viveram felizes para sempre.

João e Maria

PERTO DE UMA GRANDE FLORESTA, vivia um pobre lenhador com sua

mulher e dois filhos. O menininho chamava-se João e a menina chamava-se Maria.

Nunca havia muito o que comer na casa deles, e, durante um período de fome, o

lenhador não conseguiu mais levar pão para casa. À noite ele ficava na cama aflito,

remexendo-se e revirando-se em seu desespero. Com um suspiro, disse para sua

mulher: “O que vai ser de nós? Como podemos cuidar de nossos pobres filhinhos

quando não há comida bastante nem para nós dois?”

“Ouça-me”, sua mulher respondeu. “Amanhã, ao romper da aurora, vamos levar as

crianças até a parte mais profunda da floresta. Faremos uma fogueira para elas e

daremos uma crosta de pão para cada uma. Depois vamos tratar dos nossos

afazeres, deixando-as lá sozinhas. Nunca encontrarão o caminho de volta para casa

e ficaremos livres delas.”

“Oh, não!” disse o marido. “Não posso fazer isso. Quem teria coragem de deixar

essas crianças sozinhas na mata quando animais selvagens vão com certeza

encontrá-las e estraçalhá-las?”

“Seu bobo”, ela respondeu. “Nesse caso vamos os quatro morrer de fome. É melhor

você começar a lixar as tábuas para os nossos caixões.” A mulher não deu ao

marido um minuto de sossego até que ele consentiu no plano dela.

“Mesmo assim, sinto pena das pobres crianças”, ele disse.

As crianças também não tinham conseguido dormir, porque estavam famintas, e

ouviram tudo que a madrasta dizia ao pai. Maria chorou inconsolavelmente e disse a

João: “Bem, agora estamos mortos.”

“Fique sossegada, Maria”, disse João. “Pare de se preocupar. Vou descobrir uma

saída.”

Depois que os dois adultos tinham adormecido, João se levantou, vestiu seu

paletozinho, abriu a parte de baixo da porta e escapuliu. A lua resplandecia e os

seixos brancos em frente à casa cintilavam como moedas de prata. João se abaixou

e pôs tantos quanto pôde no bolso do paletó. Foi então até Maria e disse: “Não se

108

aflija, irmãzinha. Vá dormir. Deus não haverá de nos abandonar.” E voltou para a

cama.

Ao raiar do dia, pouco antes do nascer do sol, a madrasta se aproximou e

acordou as duas crianças. “Levantem, seus preguiçosos, vamos à floresta apanhar

um pouco de lenha.”

A madrasta deu a cada criança um pedaço de pão dormido e disse: “Aqui está

alguma coisa para o almoço. Mas não comam antes da hora, porque não terão

mais nada.”

Maria pôs o pão no avental, porque João tinha o bolso do paletó cheio de

seixos. Partiram todos juntos pela trilha que penetrava na floresta. Depois que

tinham caminhado um pouco, João parou e olhou para trás na direção da casa, e

vez por outra fazia isso de novo. Seu pai disse: “João, porque a toda hora você para

e olha? Preste atenção e não se esqueça de que tem pernas para andar.”

“Ah, pai”, João respondeu. “Estou olhando para trás para ver meu gatinho branco,

que está sentado no telhado tentando me dizer adeus.” A mulher disse: “Seu bobo,

aquilo não é o seu gatinho. São os raios do sol refletindo na chaminé.”

Mas João não tinha olhado para nenhum gatinho. Tinha pegado os seixos

cintilantes de seu bolso e deixado-os cair no chão. Ao chegarem no meio da floresta,

o pai falou: “Vão catar um pouco de lenha, crianças. Vou fazer uma fogueira para

vocês não sentirem frio.”

João e Maria juntaram uma pequena pilha de gravetos e fizeram fogo.

Quando as chamas estavam altas o bastante, a mulher disse: “Deitem-se junto do

fogo, crianças, e procurem descansar um pouco. Vamos voltar à floresta para cortar

alguma lenha. Assim que acabarmos, viremos buscá-los.”

João e Maria sentaram-se perto do fogo. Ao meio-dia comeram suas crostas

de pão. Como podiam ouvir os golpes de um machado, estavam certos de que o pai

andava por perto. Mas não era um machado que estavam ouvindo, era um galho

que o pai prendera numa árvore morta e que o vento fazia bater para cá e para lá.

Ficaram sentados ali por tanto tempo que seus olhos se fecharam de exaustão, e

adormeceram profundamente. Quando acordaram, estava escuro como breu. Maria

começou a chorar, dizendo: “Nunca vamos conseguir sair desta floresta!” João a

consolou: “Espere um pouquinho, a lua vai nos ajudar. Então vamos encontrar o

caminho de volta.”

Sob a luz do luar, João pegou a irmã pela mão e foi seguindo os seixos, que

109

tremeluziam como moedas novas e apontavam o caminho de casa para eles.

Caminharam a noite inteira e chegaram à casa do pai exatamente ao romper da

aurora. Bateram à porta, e quando a mulher abriu e viu que eram João e Maria,

disse: “Suas crianças malvadas! Por que ficaram dormindo esse tempo todo na

mata? Pensamos que nunca voltariam.” O pai ficou radiante, porque não gostara

nada de ter abandonado os filhos na floresta.

Pouco tempo depois, cada cantinho do país foi castigado pela fome, e uma

noite as crianças ouviram o que a mãe dizia a seu pai quando já estavam na cama.

“Já comemos tudo que tínhamos de novo. Só sobrou a metade de um pão, e quando

isso acabar estamos liquidados. As crianças têm que ir embora. Desta vez, vamos

levá-las para o coração da floresta, de modo que não consigam encontrar uma

saída. Caso contrário, não há esperança para nós.”

Tudo aquilo deixou o coração do marido apertado, e ele pensou: “Seria

melhor que você partilhasse a última côdea de pão com as crianças.” Mas a mulher

não dava ouvidos a nada que ele dizia. Não fazia outra coisa senão ralhar e

censurar. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento, e como ele cedera na primeira

vez, teve de ceder também numa segunda vez.

As crianças ainda estavam acordadas e ouviram a conversa toda. Depois que

os pais adormeceram, João se levantou e quis ir catar uns seixos como fizera antes,

mas a mulher tinha trancado a porta e ele não pôde sair. João consolou a irmã,

dizendo: “Não chore, Maria. Trate só de dormir um pouco. O bom Deus vai nos

proteger.”

Bem cedo na manhã seguinte a mulher veio e acordou as crianças. Cada uma

ganhou um pedaço de pão, desta vez menor ainda que da outra. No caminho para a

mata, João amassou o pão em seu bolso e, volta e meia, parava para espalhar

migalhas no chão.

“João, por que está parando tanto?” perguntou o pai. “Não pare de caminhar.”

“Estava olhando para o meu pombinho, aquele que está pousado no telhado e

tentando me dizer adeus”, João respondeu.

“Seu bobo”, disse a mulher. “Aquilo não é o seu pombinho. São os raios do sol da

manhã refletindo na chaminé.”

Aos pouquinhos, João havia espalhado todas as migalhas pelo caminho. A

mulher levou as crianças ainda mais para o fundo da floresta, para um lugar onde

nunca tinham estado antes. Mais uma vez fez-se uma grande fogueira, e a madrasta

110

disse: “Não se afastem daqui, meninos. Se ficarem cansados, podem dormir um

pouco. Vamos entrar na floresta para cortar um pouco de lenha. À tarde, quando

tivermos acabado, viremos pegá-los.”

Era meio-dia e Maria dividiu seu pão com João, que havia espalhado as

migalhas do dele pelo caminho. Depois adormeceram. A tarde passou, mas ninguém

foi buscar as pobres crianças. Acordaram quando estava escuro como breu, e João

consolou a irmã dizendo: “Espere um pouquinho, Maria, a lua vai nos ajudar. Então

vamos poder ver as migalhas de pão que espalhei pelo caminho. Elas vão apontar o

caminho de casa para nós.”

Sob a luz do luar, os dois partiram, mas não conseguiram encontrar as

migalhas porque os milhares de pássaros que voam por toda parte na floresta e

pelos campos as tinham comido. João disse a Maria: “Vamos encontrar o caminho

de casa.” Mas não conseguiram encontrá-lo. Caminharam a noite inteira e depois o

dia seguinte inteiro, desde a manhãzinha até tarde da noite. Tudo em vão: não

acharam um caminho para sair da floresta e foram ficando cada vez com mais fome,

pois não encontraram nada para comer além de umas amoras espalhadas pelo

chão. Como suas pernas estavam bambas de tanto cansaço, deitaram-se embaixo

de uma árvore e adormeceram. Fazia três dias que tinham deixado a casa do pai.

Começaram a andar de novo, mas só faziam se embrenhar cada vez mais na mata.

Se não conseguissem uma ajuda logo, com certeza morreriam. Ao meio-dia, viram

um lindo pássaro, branco como a neve, empoleirado num galho. Cantava tão

docemente que pararam para ouvi-lo. Terminado seu canto, o pássaro bateu asas e

foi voando à frente de João e Maria. Eles o seguiram até que chegaram a uma

casinha, e o pássaro foi pousar lá no alto do telhado. Quando chegaram mais perto

da casa, perceberam que era feita de pão, e que o telhado era de bolo e as janelas

de açúcar cintilante. “Vamos ver que gosto tem”, disse João. “Que o Senhor

abençoe nossa refeição. “Vou provar um pedacinho do telhado, Maria, e você pode

experimentar a janela. Só pode ser doce.” João ergueu o braço e quebrou um

pedacinho do telhado para ver que gosto tinha. Maria debruçou-se sobre a janela e

deu uma mordidinha. De repente, uma voz suave chamou lá de dentro: “Ouço um

barulhinho engraçado.

“Quem está roendo o meu telhado?”

As crianças responderam: “É o vento, leve e ligeiro, Que sopra no seu

terreiro.” Continuaram comendo, sem a menor cerimônia. João, que gostou do sabor

111

do telhado, arrancou um grande pedaço dele, e Maria derrubou uma vidraça inteira e

sentou-se no chão para saboreá-la. De repente a porta se abriu e uma mulher velha

como Matusalém, apoiada numa muleta, saiu coxeando da casa. João e Maria

ficaram tão apavorados que deixaram cair tudo que tinham nas mãos. A velha

sacudiu a cabeça e disse: “Olá, queridas crianças. Digam-me, como conseguiram

chegar até aqui? Mas, entrem, entrem, poderão ficar comigo. Nada de mal vai lhes

acontecer na minha casa.” Pegou-os pela mão e levou-os para dentro de sua

casinha.

Uma bela refeição de leite e panquecas, com açúcar, maçãs e castanhas, foi

posta diante deles. Um pouco mais tarde, duas bonitas caminhas, com lençóis

brancos, foram arrumadas para eles. João e Maria se deitaram e tiveram a

impressão de estar no céu.

A velha estava só fingindo ser bondosa. Na verdade, era uma bruxa malvada,

que atacava criancinhas e tinha construído a casa de pão só para atraí-las. Assim

que uma criança caía nas suas mãos, ela a matava, cozinhava e comia. Para ela,

isso era um verdadeiro banquete. As bruxas têm olhos vermelhos e não conseguem

enxergar muito longe, mas, como os animais, têm um olfato muito apurado e sempre

sabem quando há um ser humano por perto. Quando sentiu João e Maria se

aproximando, a velha riu cruelmente e ciciou: “Estão no papo! Desta vez não vão

escapar!” De manhã bem cedo, antes de as crianças se levantarem, ela saiu da

cama e contemplou os dois a dormir tranquilamente com suas macias bochechas

vermelhas. Murmurou baixinho consigo: “Vão dar um petisco muito gostoso.”

Agarrou João com seu braço magricela, levou-o para um pequeno galpão e o

trancou atrás da porta gradeada. João poderia gritar o quanto quisesse que não

adiantaria nada. Depois foi até Maria, sacudiu-a até que acordasse, e gritou: “De pé,

sua preguiçosa. Vá buscar água e cozinhar alguma coisa gostosa para seu irmão.

Ele ficará lá fora no telheiro até ganhar um pouco de peso. Quando estiver gordo e

bonito, vou comê-lo.”

Maria começou a chorar o mais alto que pôde, mas não adiantou nada. Teve

de fazer tudo que a bruxa lhe mandava. A comida mais deliciosa foi preparada para

o pobre João; para Maria, só sobraram as cascas dos caranguejos. Toda manhã a

velha ia furtivamente até o pequeno galpão e gritava: “Mostre o dedo, João, para eu

ver se você já está gorducho!” João então enfiava um ossinho por entre as grades, e

a velha, que tinha a vista fraca, acreditava que era o dedo do menino e não

112

conseguia entender por que ele não estava engordando. Depois de quatro semanas

e João continuando magrelo como sempre, ela perdeu a paciência e resolveu que

não podia esperar mais. “Maria!” gritou para a menina. “Vá apanhar água, e

depressa. Pouco se me dá se o João está magro ou gordo. Amanhã vou acabar com

ele e depois vou cozinhá-lo.” A pobre irmãzinha soluçou de aflição, as lágrimas

correndo pelas faces. “Ó meu Deus, ajude-nos!” exclamou. “Se pelo menos os

animais selvagens da floresta nos tivessem comido, teríamos morrido juntos.”

“Poupe-me da sua choradeira!” disse a velha. “Nada pode ajudá-la agora.”

De manhã cedo, Maria teve de ir encher o caldeirão e acender o fogo.

“Primeiro tenho que assar pão”, a velha disse. “Já aqueci o forno e sovei a massa.”

Então empurrou Maria na direção do forno, que cuspia labaredas. “Engatinhe até lá

dentro”, disse a bruxa, “e veja se está quente o bastante para eu enfiar o pão.” O

que a bruxa estava planejando era fechar a porta assim que Maria se metesse

dentro do forno. Depois iria assá-la e comê-la também. Maria percebeu o que ela

estava tramando e disse: “Não sei como fazer para entrar ali. Como vou conseguir?”

“Sua pateta”, disse a velha. “Há espaço de sobra. Veja, até eu consigo entrar”, e ela

trepou no forno e enfiou a cabeça dentro dele. Maria lhe deu um grande empurrão

que a fez cair estatelada. Então fechou e aferrolhou a porta de ferro. Ufa! A bruxa

começou a soltar guinchos medonhos. Mas Maria fugiu e a bruxa perversa morreu

queimada de uma maneira horrível.

Maria correu para junto de João, abriu a porta do pequeno galpão e gritou:

“João, estamos salvos! A bruxa velha morreu.” Como um passarinho fugindo da

gaiola, João voou porta afora, assim que ela se abriu. Que emoção os dois sentiram:

abraçaram-se e beijaram-se e pularam de alegria! Como não havia mais nada a

temer, foram direto para a casa da bruxa. Em todos os cantos havia baús cheios de

pérolas e joias. “Estas aqui são melhores ainda que seixos”, disse João e meteu nos

bolsos o que podia. Maria juntou-se a ele: “Vou levar alguma coisa para casa

também.” E encheu seu aventalzinho. “Vamos embora agora mesmo”, disse João.

“Temos que sair desta floresta de bruxa.”

Após andar por várias horas, deram com um rio muito largo. “Não vamos

conseguir atravessar”, disse João. “Não estou vendo nenhuma ponte.” “Também não

há nenhum barco por aqui”, notou Maria, “mas ali vem uma pata branca. Ela vai nos

ajudar a atravessar, se eu pedir.” Gritou: “Ajude-nos, ajude-nos, patinha, Que a sorte

nos abandonou. Não vemos ponte nem canoinha, Só o seu socorro nos sobrou.”

113

Lá veio a pata, patinhando. João subiu nas suas costas e chamou a irmã para se

sentar na garupa. “Não”, disse Maria, “seria uma carga pesada demais para a

patinha. Ela pode nos levar um de cada vez.” Foi exatamente o que a boa criaturinha

fez.

Depois que chegaram sãos e salvos do outro lado e caminharam por algum

tempo, a mata começou a lhes parecer cada vez mais familiar. Finalmente avistaram

a casa do pai lá longe. Começaram a correr e entraram em casa numa disparada,

abraçando o pai. O homem tinha passado maus momentos desde que abandonara

os filhos na floresta. Sua mulher tinha morrido. Maria esvaziou seu avental, e pérolas

e joias rolaram por todo o piso. João enfiou as mãos nos bolsos e tirou um punhado

de joias depois do outro. Suas aflições tinham terminado e eles viveram juntos em

perfeita felicidade. Minha história terminou. Entrou por uma porta, saiu pela outra,

quem quiser que conte outra.

A seguir está o conto “Chapeuzinho Vermelho” segundo Charles Perrault

retirado do livro “Contos de Fada de Perrault, Grimm, Andersem e outros”.

(MACHADO, 2010)

Chapeuzinho Vermelho

ERA UMA VEZ uma pequena aldeã, a menina mais bonita que poderia haver.

Sua mãe era louca por ela e a avó, mais ainda. Esta boa senhora mandou fazer para

a menina um pequeno capuz vermelho. Ele lhe assentava tão bem que por toda

parte aonde ia a chamavam Chapeuzinho Vermelho.

Um dia sua mãe, que assara uns bolinhos, lhe disse: “Vá visitar sua avó para

ver como ela está passando, pois me disseram que está doente. Leve para ela um

bolinho e este potinho de manteiga.”

Chapeuzinho Vermelho partiu imediatamente para a casa da avó, que morava

numa outra aldeia. Ao passar por um bosque, encontrou o compadre lobo, que teve

muita vontade de comê-la, mas não se atreveu, por causa dos lenhadores que

estavam na floresta. Ele lhe perguntou para onde ia. A pobre menina, que não sabia

que era perigoso parar e dar ouvidos a um lobo, respondeu: “Vou visitar minha avó e

114

levar para ela um bolinho com um potinho de manteiga que minha mãe está

mandando.”

“Sua avó mora muito longe?” perguntou o lobo.

“Ah! Mora sim”, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Mora depois daquele moinho lá

longe, bem longe, na primeira casa da aldeia.”

“Ótimo!” disse o lobo. “Vou visitá-la também. Vou por este caminho aqui e você vai

por aquele caminho ali. E vamos ver quem chega primeiro.”

O lobo pôs-se a correr o mais que podia pelo caminho mais curto, e a menina

seguiu pelo caminho mais longo, entretendo-se em catar castanhas, correr atrás das

borboletas e fazer buquês com as flores que encontrava. O lobo não demorou muito

para chegar à casa da avó. Bateu: Toc, toc, toc.

“Quem está aí?”

“É sua neta, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo, disfarçando a voz. “Estou

trazendo um bolinho e um potinho de manteiga que minha mãe mandou.” A boa avó,

que estava de cama por andar adoentada, gritou: “Puxe a lingueta e o ferrolho se

abrirá.” O lobo puxou a lingueta e a porta se abriu. Jogou-se sobre a boa mulher e a

devorou num piscar de olhos, pois fazia três dias que não comia. Depois fechou a

porta e foi se deitar na cama da avó, à espera de Chapeuzinho Vermelho, que pouco

tempo depois bateu à porta. Toc, toc, toc.

“Quem está aí?”

Ouvindo a voz grossa do lobo, Chapeuzinho Vermelho primeiro teve medo, mas,

pensando que a avó estava gripada, respondeu: “É sua neta, Chapeuzinho

Vermelho. Estou trazendo um bolinho e um potinho de manteiga que minha mãe

mandou.” O lobo gritou de volta, adoçando um pouco a voz: “Puxe a lingueta e o

ferrolho se abrirá.” Chapeuzinho Vermelho puxou a lingueta e a porta se abriu. O

lobo, vendo-a entrar, disse-lhe, escondendo-se na cama debaixo das cobertas:

“Ponha o bolo e o potinho de manteiga em cima da arca, e venha se deitar comigo.”

Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi se enfiar na cama, onde ficou muito

espantada ao ver a figura da avó na camisola. Disse a ela:

“Minha avó, que braços grandes você tem!”

“É para abraçar você melhor, minha neta.”

“Minha avó, que pernas grandes você tem!”

“É para correr melhor, minha filha.”

“Minha avó, que orelhas grandes você tem!”

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“É para escutar melhor, minha filha.”

“Minha avó, que olhos grandes você tem!”

“É para enxergar você melhor, minha filha.”

“Minha avó, que dentes grandes você tem!”

“É para comer você.”

E dizendo estas palavras, o lobo malvado se jogou em cima de Chapeuzinho

Vermelho e a comeu.

MORAL

Vemos aqui que as meninas,

E sobretudo as mocinhas

Lindas, elegantes e finas,

Não devem a qualquer um escutar.

E se o fazem, não é surpresa

Que do lobo virem o jantar.

Falo “do” lobo, pois nem todos eles

São de fato equiparáveis.

Alguns são até muito amáveis,

Serenos, sem fel nem irritação.

Esses doces lobos, com toda educação,

Acompanham as jovens senhoritas

Pelos becos afora e além do portão.

Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,

São, entre todos, os mais perigosos.

MACHADO, A. M. Contos de Fadas: de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.