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II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

ISSN 2178-8200

O PRODUTOR, O TEXTO E O LEITOR: EM FOCO, A CONSTRUÇÃO DA

COERÊNCIA EM DOIS TEXTOS SOBRE RACISMO NO BRASIL

BELONI, Wânia Cristiane (G-UNIOESTE)1

CORBARI, Alcione Tereza (UNIOESTE)2

SELLA, Poliana (G-UNIOESTE)3

RESUMO: Toma-se como objetivo central para o desenvolvimento deste trabalho a

análise dos fatores de coerência que orientam a interpretação de dois textos retirados do

livro didático Textos: Leituras e Escritas: Literatura, Língua e Produção de Textos, de

Ulisses Infante. As duas produções analisadas abordam questões sobre o racismo no

Brasil a partir de perspectivas de análise distintas: a cantora Zezé Motta, produtora de

um dos textos, afirma que existe racismo no país, enquanto o outro texto, produzido

pelo ex-senador Jarbas Passarinho, apresenta argumentos que vão na direção de negar a

existência do racismo no Brasil. Embora se considere que os fatores de coerência

estejam todos interligados, seguindo a proposta de Koch e Travaglia (2007), neste

trabalho eles são analisados separadamente, tendo em consideração a contribuição de

cada um para a construção da textualidade e da interpretabilidade do texto. Envolvendo

fatores de ordem cognitiva, interacional e linguística, tais elementos põem em evidência

ora o produtor, ora o texto, ora o leitor, todos estes relevantes para a interpretação global

do texto. Pretende-se, com essa análise, contribuir para a reflexão sobre a necessidade

de se abordar o texto, nas aulas de língua materna, a partir de uma “perspectiva textual-

interativa” (KOCH; TRAVAGLIA, 2007, p. 102). Nesse sentido, é relevante que o

professor tenha claro que “o texto não significa exclusivamente por si mesmo” (COSTA

VAL, 2006, p. 6), o que quer dizer que o produtor e o aluno, este no papel de leitor,

precisam ser considerados como parte importante para a construção dos sentidos.

PALAVRAS-CHAVE: Textualidade, Interpretabilidade, Coerência Textual, Ensino de

Língua Portuguesa.

1- Introdução

Tendo como objeto de estudo o texto, A Linguística Textual contribui

significativamente para o ensino de Língua Portuguesa na medida em que investiga o

funcionamento, a produção e a compreensão da escrita (BENTES, 2008). Isso significa

dizer que não só a estrutura do texto é considerada, mas também, e fundamentalmente, o

conjunto de condições externas da produção, recepção e interpretação dos textos.

1 Graduada em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo pela UNIPAR e acadêmica do 2º ano de

Letras - Português/Italiano da UNIOESTE. 2 Professora orientadora, mestre em Letras pela UNIOESTE e doutoranda em Letras e Linguística pelo

Doutorado Interinstitucional UFBA/UNIOESTE. 3 Acadêmica do 2º ano de Letras - Português/Inglês da UNIOESTE.

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Assim, além dos elementos linguísticos, os fatores interacionais e socioculturais tomam

lugar de destaque no processo de produção de sentido(s).

Chega-se, assim, à noção de textualidade: “chama-se textualidade ao conjunto de

características que fazem com que um texto seja um texto, e não uma seqüência de

frases” (COSTA VAL, 2006, p. 5, grifo da autora). Em outras palavras, a textualidade

se dá quando o leitor percebe a unidade significativa global do texto, e a produção

textual passa a ter unidade de sentido.

Conforme Costa Val (2006), o fator fundamental da textualidade é a coerência,

porque é responsável pelo sentido do texto. É ela que relaciona aspectos lógicos e

semânticos a fatores de ordem cognitiva e interacional; ou seja, é responsável pela

comunicação efetiva. Nesse processo, texto, produtor e leitor constituem as três partes

essenciais para a construção de sentido(s).

2- A coerência textual

Coerência é o nome que se dá ao princípio de atribuição de sentido

(interpretabilidade) ao texto, conferindo-lhe uma unidade de sentido global,

considerando-se fatores semânticos, pragmáticos e sintáticos. Considera-se que o texto

não pode ser tomado como coerente em si; a coerência se estabelece na inter-relação

produtor-texto-leitor. Assim, um texto pode ser coerente para uma pessoa e incoerente

para outra, dependendo do domínio dos múltiplos fatores dos quais depende a

coerência.

Numa perspectiva de análise aproximada à de Costa Val (2006), Koch e

Travaglia (2007, p. 26/27) dizem que “é ela [a coerência] que dá origem à textualidade”.

Logo, uma união de frases torna-se um texto quando as frases se inter-relacionam

produzindo continuidade de sentido. Portanto, para os autores, textos que apresentem

discrepâncias entre os conhecimentos ativados ou inadequação entre esses e o universo

de conhecimentos do leitor/ouvinte não produzirão unidade de sentido e serão

considerados incoerentes pelo receptor.

De forma geral, pode-se dizer que o estabelecimento da coerência depende de:

[...] a) de elementos lingüísticos (seu conhecimento e uso), bem como,

evidentemente, da sua organização em uma cadeia lingüística e como

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e onde cada elemento se encaixa nesta cadeia, isto é, do contexto

lingüístico; b) do conhecimento de mundo [...], bem como o grau em

que esse conhecimento é partilhado pelo(s) produtor(es) e receptor(es)

do texto, o que reflete na estrutura informacional do texto, entendida

como a distribuição de informação nova e dada nos enunciados e no

texto, em função de fatores diversos; c) de fatores pragmáticos e

interacionais, tais como o contexto situacional, os interlocutores em

si, suas crenças e intenções comunicativas, a função comunicativa do

texto. (KOCH; TRAVAGLIA, 2007, p. 47/48, grifos dos autores).

Koch e Travaglia (2007) apresentam os seguintes fatores de coerência:

conhecimento linguístico, conhecimento de mundo, conhecimento partilhado, fatores de

contextualização, situacionalidade, informatividade, focalização, intertextualidade,

intencionalidade e aceitabilidade, consistência e relevância. Cada um desses fatores é

explicado na seção abaixo, ao mesmo tempo em que se analisa como eles podem ser

percebidos nos textos sob análise.

3- Os fatores de coerência em dois textos sobre o racismo no Brasil

O corpus de análise deste trabalho é constituído por dois textos retirados do livro

didático Textos: Leituras e Escritas: Literatura, Língua e Produção de Textos, de

Ulisses Infante. Tais textos, primeiramente publicados na revista IstoÉ, respondem à

seguinte questão: Existe racismo no Brasil?. O primeiro texto é atribuído à cantora e

atriz Zezé Motta; o segundo, ao ex-senador Jarbas Passarinho. Ambos estão transcritos

abaixo:

Texto 1 SIM

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“Há preconceito até nas relações afetivas. Já desisti de casar com um rapaz

branco por causa da pressão da família dele”.

Zezé Motta, cantora e atriz

Meu Deus, até quando serei procurada para opinar sobre este tema? Certamente

enquanto houver discriminação nesse país. Acreditar que não existe racismo no Brasil é

perda de tempo. Existe, sim, apesar de vivermos em uma nação mestiça. Na verdade, o

racismo é um fenômeno multifacetado que atinge todas as esferas: social, econômica,

política e cultural. Se não há racismo no Brasil, onde estão os nossos representantes entre

os empresários, embaixadores, ministros da Fazenda, da Indústria, etc? E não me venham

dizer que o negro não está preparado para estas funções. É claro que está. Mas, nas

relações de trabalho, os negros ganham menos do que as mulheres, que, por sua vez,

ganham menos do que os homens.

Outro exemplo típico são os anúncios de jornal que pedem moças e rapazes de

“boa aparência”. Está intrínseco que o candidato precisa ser branco. Mesmo que seja um

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negro com ótimo currículo, a prioridade será sempre para os brancos. Outra prova de que

existe racismo são as piadas e o discurso pejorativos, como aquela que diz: “O negro,

quando não suja na entrada, suja na saída”. Há racismo também nas relações afetivas. Eu

mesma sofri isso na pele nos anos 70, quando vivia com um rapaz. Quando resolvemos

casar, a família dele colocou a maior pressão. Resolvemos, então, continuar apenas

amantes.

O peso da discriminação é muito grande para nossos filhos. Não basta termos

apenas duas senadoras negras, Benedita da Silva e Marina Silva. Queremos que o negro

seja aceito plenamente como cidadão em todos os seus direitos. Só assim ele poderá

morar e ter o direito de ir e vir tanto na zona norte quando na zona sul do Rio de Janeiro,

sem desconfiança nem discriminação. Quem sabe aí nossos filhos terão o direito de

sonhar em se transformarem, um dia, em embaixadores, generais e empresários.

Texto 2 NÃO

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“O problema, no fundo, é de mobilidade social. O negro não pode entrar no

clube do branco porque ele é pobre”.

Jarbas Passarinho, ex-senador da República

Não existe racismo no Brasil. Não temos em nosso país nada que se assemelhe ao

apartheid que existiu na África do Sul ou à discriminação que, nos Estados Unidos,

produziu uma sangrenta campanha pelos direitos civis. A sociedade brasileira não é

racista, e prova disso é que não há clubes exclusivos para brancos. Se o negro não é

admitido lá dentro, o que existe é preconceito econômico. Preto não entra no clube porque

é pobre.

A questão é, no fundo, de mobilidade social. Vindos de uma camada mais pobre,

os negros dificilmente têm acesso à funções de maior relevo. Se já tivemos generais

pretos, nenhum deles chegou a quatro estrelas, por exemplo. Há gente de cor em nossos

tribunais superiores, mas não no Supremo Tribunal Federal. O quadro se assemelha à

discriminação sofrida pela mulher, que também tem dificuldade para chegar aos postos

mais altos. Não podemos esquecer que a situação, no entanto, já foi pior. Quando entrei

para a Escola Militar de Realengo, em 1939, havia um racismo mascarado. Após pegar

sol nas praias do Rio de Janeiro, um caboclo do Pará tirou uma fotografia e a enviou com

o pedido de inscrição à direção da Escola Militar. Foi recusado. Quando compareceu

pessoalmente, o pessoal percebeu que ele não era preto e o rapaz foi aceito. No Realengo,

havia ainda um aberto anti-semitismo. Os judeus eram barrados.

Apesar da escravidão durante o período da monarquia, o racismo como doutrina

não vingou no Brasil por causa da miscigenação. O português aqui cruzou com negros e

índios, ao contrário do que ocorreu na África, e isso gerou a fabulosa mulata brasileira,

admirada por todos. O curioso é que, se há algum tipo de preconceito racial, ele é

cultivado pelos próprios negros. Por que Pelé e Romário escolhem mulheres brancas para

o casamento? Parece que, ao ascender socialmente, o negro brasileiro tende a desprezar a

própria raça.

Antes de começar a análise, ressalta-se que a abordagem dos fatores de

coerência de forma separada retrata uma opção metodológica com vistas à didatização

do conteúdo; na realidade, todos eles se inter-relacionam na constituição do(s)

sentido(s) do texto.

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O primeiro fator de coerência tomado para análise é o conhecimento linguístico,

que, conforme Koch e Travaglia (2007), abrange o conhecimento gramatical e lexical da

língua. Os elementos que compõem a estrutura superficial do texto, sua escolha e sua

forma de encadeamento são determinantes para o estabelecimento da coerência, agindo

como pistas na construção do(s) sentido(s) do texto. Nas produções sob análise,

observa-se que ambos os autores fazem escolhas linguísticas que vão tecendo a

orientação argumentativa que se quer dar ao texto. Zezé Motta e Jarbas Passarinho

buscam, assim, garantir que seu texto seja tomado como coerente pelo leitor.

Além das próprias predicações feitas e do léxico escolhido, algumas estratégias

são mobilizadas para pontuar a opinião de forma incisiva, como é o caso, por exemplo,

do recorrente uso do presente do indicativo. Além disso, destaca-se o uso de elementos

de coesão textual que organizam o texto e demarcam argumentos/justificativas que

sustentam a tese apresentada - e.g. “outro exemplo típico” (10/1)4, “outra prova” (12/1)

e “prova disso” (04/2). Operadores argumentativos também são mobilizados para

direcionar o(s) sentido(s) dos textos - e.g. “mas” (07/1; 10/2), “mesmo que” (11/1) e “no

entanto” (12/2). Ressaltam-se, ainda, os elementos modalizadores, que são atualizados

para reforçar a opinião apresentada. Para exemplificar, citam-se, do primeiro texto, as

expressões adverbiais “sim” (03/1), “na verdade” (03/1) e “é claro” (07/1). Já no Texto

2 se avultam as reiteradas frases negativas.

Outras formas de organização/apresentação dos elementos linguísticos

contribuem para a atribuição de sentido(s) ao texto. A titulo de exemplo, citam-se as

perguntas retóricas, presentes nos dois textos, e o uso da primeira pessoa do plural. Esta

última estratégia pode ser interpretada de modo distinto, considerando-se quem é o

autor de cada um dos textos. No primeiro texto, especificamente no último parágrafo,

pode-se entender por “nós” as pessoas da raça negra, dentre as quais a autora se inclui.

Já no segundo texto, que não é escrito por um negro, o plural parece ter sido usado para

envolver o leitor na argumentação, com vistas a angariar sua concordância.

Ainda com relação aos elementos linguísticos, é preciso observar que, ao fazer

algumas retomadas, Jarbas Passarinho escolhe, dentre o léxico disponível para se referir

à raça negra, termos largamente aceitos como discriminadores: “preto(s)” (05/2; 09/2 e

16/2) e “gente de cor” (09/2). Pode-se dizer que, com isso, a coerência do texto acaba

4 Leia-se Linha 11/Texto 1.

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sendo abalada, já que expressões consideradas “racistas” são usadas por um brasileiro

que defende que não há racismo no Brasil.

Dos elementos linguísticos, brevemente analisados acima, passa-se aos fatores

de contextualização, que são responsáveis por demarcar o contexto da situação de

comunicação. Koch e Travaglia (2007) apresentam a seguinte divisão:

contextualizadores propriamente ditos - elementos gráficos que ajudam a situar o texto

(data, local, assinatura) - e contextualizadores perspectivos ou prospectivos - fatores que

lançam expectativas sobre o conteúdo e a forma do texto (título, autor, gênero).

No que tange ao primeiro tipo de contextualização, explica-se que os textos

analisados foram publicados na revista IstoÉ em 17 de julho de 1996. A revista,

distribuída semanalmente, tem como público principal adultos das classes média e alta -

em sua maioria, pessoas com formação universitária, profissionais liberais e

empresários. Essas informações são relevantes quando se fala em coerência, já que esta

depende, em grande medida, do interlocutor previsto. O fato de os textos terem sido

utilizados em um livro escolar denota a proposta de debate da questão também entre os

jovens, inclusive de outras classes sociais, que têm menos escolaridade e vivência do

que o leitor previsto na publicação original dos textos.

Outro fator de contextualização importante para a atribuição de sentido é a

autoria. O Texto 1 é atribuído a Zezé Motta, e o Texto 2, a Jarbas Passarinho. Essa

informação orienta a leitura desde a apresentação dos títulos dos textos - SIM e NÃO -,

já que estes deixam explícitas as opiniões que serão defendidas pelos autores, orientadas

pela posição social e experiências particulares vivenciadas por cada um deles. Zezé

Motta, ligada ao mundo artístico, pertence à raça negra, enquanto Jarbas Passarinho,

coronel reformado do Exército, ex-ministro e ex-senador, é um homem branco. Essas

características podem ser tomadas como elementos que influenciam na posição

defendida por cada um deles; portanto, o conhecimento de quem é o autor do texto pode

contribuir para a atribuição de coerência ao texto.

Além disso, as superestruturas ou esquemas textuais, referentes ao

conhecimento adquirido de todos os textos com os quais o leitor já tomou contato ao

longo da vida, auxiliam na determinação da coerência semântica, conforme explicam

Koch e Travaglia (2007). Ao reconhecer a predominância de estruturas argumentativas,

o leitor já se prepara para receber os textos como uma expressão de posições subjetivas,

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considerando que cada autor faz um recorte do “mundo real” em conformidade com sua

perspectiva de análise, com seu modo de ler o mundo.

Assim, chega-se à noção de intertextualidade, já que a leitura (entendida, aqui,

não só em relação ao texto escrito), de outros textos de opinião leva o leitor a

compreender a forma de organização e as características próprias dos textos em tela.

Mas a intertextualidade vai além disso. Conforme Koch e Travaglia (2007), esse fator

de coerência refere-se à relação existente entre o texto em questão e os demais textos

previamente existentes. Assim, para uma compreensão satisfatória do sentido do texto, é

necessário que produtor e receptor partilhem - ainda que parcialmente - os mesmos

textos.

Segundo os autores, a intertextualidade pode ser analisada em sentido amplo ou

em sentido restrito. No primeiro caso, entende-se que nenhum discurso é original, mas

nasce de discursos já existentes, o que envolve todos os objetos e contextos culturais

tomados como textos. Essa relação fica evidente na primeira frase de Zezé Motta (“Meu

Deus, até quando serei procurada para opinar sobre este tema?”), que revela não só que

ela já opinou sobre o assunto em outras ocasiões, mas indicia também que esse tema é

recorrentemente abordado na sociedade brasileira. Assim, o leitor que tem mais leituras

a respeito dessa discussão conseguirá atribuir coerência aos textos mais facilmente do

que o leitor que, por ventura, teve pouco contato com a temática em questão.

No que se refere à intertextualidade stricto sensu, tem-se a relação do texto

lido/ouvido com outras produções verbais (orais e escritas) existentes. Como exemplo

de intertextualidade explícita, tem-se os anúncios de jornais, as piadas e o discurso

pejorativo, citados por Zezé Motta. Mas, de forma implícita, a intertextualidade permeia

o desenvolvimento dos dois textos. É preciso, por exemplo, se ter lido/ouvido outros

textos para saber o que foi o apartheid, na África do Sul, ou a citada sangrenta

campanha pelos direitos civis, nos Estados Unidos.

Como se pode observar, a intertextualidade está intimamente ligada com o

conhecimento de mundo, referente a todo o conhecimento armazenado na memória

durante a vida do indivíduo. Segundo Koch e Travaglia (2007, p. 64), esses

conhecimentos são armazenados em blocos, conhecidos com modelos cognitivos

globais, e podem ser empíricos (ligados à experiência do indivíduo) ou resultantes de

ensinamentos socialmente adquiridos. Ou seja, todos os textos com os quais entrou em

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contato, além da própria experiência sinestésica, são relevantes para o conhecimento

armazenado na memória, ativados no momento da interpretação do texto.

Nesse sentido, pode-se dizer que palavras como discriminação, desconfiança e

racismo ativam frames de uma mesma imagem: discriminação; já as palavras

empresários, embaixadores e ministros remetem o leitor às classes sociais de prestígio,

recorrentemente ativadas nos textos para contextualizar o papel social do negro na

sociedade brasileira. Já o uso da expressão “nação mestiça” (03/1) só pode ser entendida

como forma de referência ao Brasil se o leitor tiver conhecimento da grande

miscigenação de raças que compõe o povo brasileiro. Maior coerência dará ao texto se

souber que o Brasil é o país mais mestiço do mundo - o que, em tese, deveria ser

entendido como um fator de exclusão da mentalidade racista dessa sociedade. Do

segundo texto, destaca-se a frase “produziu uma sangrenta campanha pelos direitos

civis” (03/2). A coerência do texto, nesse momento, depende de o leitor entender que

“campanha” evoca luta, disputa pelos direitos do povo, tomando sentido aproximado de

guerra - situação que não ocorreu no Brasil, segundo o autor.

Outros conhecimentos, além dos já citados acima, são necessários para que a

interpretação feita pelo leitor se aproxime das intenções dos autores. É preciso saber,

por exemplo: o lugar tomado pelo Superior Tribunal Federal na instância jurídica

nacional; qual é a posição social assumida por empresários, embaixadores, ministros e

generais; o que são as esferas social, econômica, política e cultural, citadas no primeiro

texto; quais são as condições de trabalho do negro e da mulher na sociedade brasileira; o

que significa ser antissemita e judeu nos contextos apresentados; o que é uma

monarquia; quem são Benedita da Silva e Marina Silva; o que significa morar na zona

sul ou norte do Rio de Janeiro. Esses são apenas alguns dos exemplos de conhecimentos

de mundo contribuem para que o leitor entenda o texto como uma unidade coerente.

Quando os conhecimentos são partilhados entre produtor e leitor, a coerência do

texto é mais facilmente estabelecida. Embora o desconhecimento de um ou outro

aspecto não inviabiliza o entendimento global do texto, quanto mais conhecimentos o

leitor compartilhar com o produtor do texto, mas próximo aquele chegará das intenções

deste - o que não implica, necessariamente, em aceitá-las. Os conhecimentos

partilhados são considerados informações dadas, às quais o produtor acrescenta

informações novas. O equilíbrio entre informações dadas e novas é muito importante

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para a compreensão do texto. Isso porque textos com excessiva quantidade de

informações novas são de difícil compreensão, enquanto os que possuem excesso de

informações dadas tornam-se entediantes. Assim, o grau de informatividade que o texto

carrega constitui um dos fatores relevantes para o estabelecimento da coerência.

Comparando-se os dois textos, e considerando o seu público alvo inicialmente

visualizado - quando foram publicados na IstoÉ -, tem-se um grau de informatividade

menor no primeiro caso. As informações apresentadas no Texto 1 são esperadas e

previsíveis dentro do contexto dado. Por exemplo, dizer que existe racismo, que a nação

é mestiça, que não há negros em determinadas funções sociais, além de citar o tipo de

piada que é feita com os negros, entre outros aspectos, são argumentos esperados para

sustentar a afirmação de que existe racismo no Brasil. A informação nova fica a cargo,

basicamente, da experiência vivenciada pela autora do texto.

Já o segundo texto exige, para sua compreensão, conhecimentos um pouco mais

pontuais e que extrapolam os limites do país. É o que ocorre, por exemplo, quando o

autor faz alusão à situação da África e dos Estados Unidos perante a questão racial e ao

lugar ocupado por antissemitas e por judeus no contexto dado. Ainda que todos os fatos

citados sejam de conhecimento do leitor, a forma de relacioná-los e a própria

perspectiva argumentativa assumida por cada autor impedem que o texto seja tomado

como uma simples repetição de textos já produzidos.

Há que se observar que, de forma geral, os conhecimentos previstos no texto

serão mais facilmente ativados pelo leitor da IstoÉ do que pelo aluno que lê o livro

didático onde esses textos foram reproduzidos, haja vista o perfil do leitor de cada um

dos suportes (revista IstoÉ x livro didático). A falta de conhecimento de mundo pode,

por exemplo, levar o leitor a considerar coerente a justificativa de Jarbas Passarinho de

que a admiração dispensada à “mulata brasileira” representa um exemplo de não-

racismo, quando, na verdade, esse fato pode ser tomado como uma ratificação do

racismo. Isso porque a mulata é estigmatizada como um monumento sexual; antes,

objeto sexual dos seus senhores, agora, sexualmente disponível a qualquer um que

queira usufruir de seu erotismo. Ou seja, a posição reservada à mulata é de inferioridade

em relação à mulher branca e, mais ainda, em relação ao homem branco. Trata-se,

portanto, da focalização que o produtor do texto dá a determinada situação. Quanto

mais leituras o interlocutor tiver a respeito do assunto abordado, mais possibilidades

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tem de se desvencilhar da manipulação, na medida em que tem discernimento o

suficiente para tomar a “realidade” posta no texto como uma forma, dentre outras

possíveis, de interpretar o mundo.

A focalização dada pelo autor depende de seus objetivos e do contexto em que

está inserido. Conta para a interpretação do Texto 1, por exemplo, o fato de Zezé Motta

ser negra e, ainda, de ser artista, ou seja, não ocupa uma posição social privilegiada

(como ocupam o embaixador, o general e os empresários, segundo a autora). A

experiência por que passou com a família do ex-namorado também contribui para a

focalização de dá ao tema „racismo‟. Posição bem diferente ocupa Jarbas Passarinho;

político branco, não teve as mesmas experiências que a autora do Texto 1. Ao afirmar,

no final do texto, que, se há algum tipo de racismo, este é cultivado pelos próprios

negros, deixa evidente que está fora desse grupo, se eximindo - e eximindo todo o seu

grupo - de responsabilidades em relação ao preconceito racial.

Vale lembrar que o leitor também dá enfoque à temática abordada a partir de

seus conhecimentos, crenças e experiências. Por exemplo, se o leitor for uma pessoa da

raça negra, é bem possível que se identifique mais com a perspectiva de análise

apresentada no Texto 1 do que aquela dada no Texto 2. Na realidade, são inúmeras as

possibilidades de contextos e de fatores que podem influenciar na focalização que o

leitor pode dar à leitura dos textos.

A focalização tem relação direta com a situacionalidade, que, conforme Koch e

Travaglia (2007), refere-se ao conjunto de elementos que conferem relevância a um

texto em determinada situação. Segundo os autores, ela se estabelece em dois sentidos:

da situação para o texto e do texto para a situação. No primeiro caso, a situação

comunicativa interfere na construção do texto. Os textos sob análise só têm razão de ser

se partirem de uma situação social em que o debate proposto tenha relevância, por

exemplo. No segundo caso, conforme já se tratou nos parágrafos anteriores, tem-se uma

dada situação que é construída pelos interlocutores (produtor e receptor). Estes, por

meio de suas crenças, convicções e objetivos, alteram o mundo real, conformando-o à

sua perspectiva de mundo.

Outros fatores relevantes para o estabelecimento da coerência são a

intencionalidade e a aceitabilidade. Esses fatores dizem respeito às intenções do

produtor e às atitudes do receptor. Referem-se, em sentido restrito, à intenção do

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produtor em produzir um texto coeso e coerente e, em contrapartida, ao esforço do

receptor em tomar o texto como uma unidade coerente e relevante. Ou seja, esses dois

fatores “são as duas faces constitutivas do princípio da cooperação” (KOCH;

TRAVAGLIA, 2007, p. 80). Em sentido amplo, a intencionalidade move os autores em

busca de argumentos capazes de angariar a concordância do leitor em relação às teses

defendidas nos textos. O leitor, no entanto, mesmo que atribua coerência aos textos,

pode não se moldar às orientações argumentativas aí estabelecidas.

Por fim, citam-se os fatores consistência e relevância. Enunciados consistentes

se relacionam com os demais sem contradições e são relevantes quando versam sobre

um mesmo tópico discursivo. As digressões devem ser marcadas por conectores

explícitos, para não prejudicar a coerência. Nesse sentido, o Texto 1 parece ter mais

consistência e relevância do que o Texto 2. Neste, o autor recorrer a justificativas um

tanto quanto frágeis para sustentar a tese de que não há racismo no Brasil, como, por

exemplo, a inexistência de clubes exclusivos para brancos e a admiração pela mulata,

conforme já se analisou mais acima. Além disso, o exemplo do caboclo paraense que foi

recusado pela Escola Militar por parecer negro na fotografia contradiz o argumento

dado pelo autor de que o racismo não vingou no Brasil por conta da miscigenação. No

final do texto, Jarbas Passarinho diz que, “se há algum tipo de preconceito racial, ele é

cultivado pelos próprios negros”. Ou seja, admite a existência de racismo no Brasil, o

que também caracteriza uma inconsistência com relação à tese que se propôs a defender.

4- Algumas considerações

Neste trabalho, não se pretendeu fazer uma análise exaustiva dos fatores de

coerência, nem dos textos sob análise. Este artigo configura-se, antes, uma tentativa

inicial de se observar como os fatores de coerência podem contribuir para que sentido(s)

seja(m) dado(s) ao texto. Tal reflexão permite perceber que a coerência depende não só

do que é linguisticamente produzido, mas é construída pelo triângulo produtor-texto-

leitor. Os conhecimentos, as crenças e as experiências vivenciadas pelos interlocutores

assumem, então, papel relevante na constituição da coerência e da textualidade.

Costa Val contribui para essa reflexão ao pontuar que

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Um discurso é aceito como coerente quando apresenta uma

configuração conceitual compatível com o conhecimento de mundo do

recebedor. Essa questão é fundamental. O texto não significa

exclusivamente por si mesmo. Seu sentido é construído não só pelo

produtor como também pelo recebedor, que precisa deter os

conhecimentos necessários à sua interpretação. [...] É fácil verificar

que grande parte dos conhecimentos necessários à compreensão dos

textos não vem explícita, mas fica dependente da capacidade de

pressuposição e inferência do recebedor. (COSTA VAL, 2006, p. 6).

Isso significa dizer que, ao escolher os textos com que trabalhará em sala, o

professor precisa considerar o perfil dos estudantes para decidir se estes terão condições

de estabelecer a coerência do texto, de realmente perceber a produção verbal que lhes é

posta à análise como um texto. Quando os textos não são escolhidos pelo professor, mas

são dados pelo livro didático, por exemplo, a mesma reflexão é necessária. Nesse caso,

cabe ao docente propor uma pré-leitura para perceber como os alunos lidam com a

temática abordada e em que nível os conhecimentos que o produtor acredita

compartilhados com o leitor realmente o são.

Nesse sentido, é fundamental que chegue aos professores de Língua Portuguesa

as reflexões propostas pela Linguística Textual, já que esta dá um passo importante em

relação à abordagem didática fundamentada no Estruturalismo ao propor que, além da

estrutura linguística, sejam ressaltados os fatores interacionais e socioculturais,

essenciais para a construção da textualidade e para a interpretabilidade do texto.

Referências bibliográficas

BENTES, A. C. Linguística Textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Org.).

Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 245-

285.

COSTA VAL, M.G. Texto e textualidade. In. ______. Redação e Textualidade. 3. ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 3-16.

INFANTE, U. Texto: Leituras e Escritas: Literatura, Língua e Produção de Textos. v.

único. São Paulo: Scipione, 2005.

KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2007.