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o punhal está no bote de salvação

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o punhal está no botede salvação

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Ike Yagelovic

Diretor de Jornalismo da Band News

Pa r a a v í t i m a , a d o r d e u m c r i m e se torna insu-portável quando a omissão é o resultado da denúncia. Prin-cipalmente quando o crime é praticado por quem deveria ser o responsável pelo combate aos desvios de conduta e por dar guarita moral e material a quem já perdeu o último sentimento a que um náufrago se apoia: a esperança.

A crueldade da subjugação de corpos e mentes, por aqueles que deveriam ser o bote de salvação faz com que o sentimento de afogamento seja a melhor saída. Um sen-timento que cresce à medida que vemos as investigações burocráticas o)ciais não produzirem resultado prático algum. Montanhas de dinheiro gasto pelos governos e entidades internacionais em um marketing que acaba por esconder o desespero das vítimas.

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Ações protocolares são anunciadas em releases cuidado-samente preparados em gabinetes, para serem divulgados com ares circunspectos. Notícias como a de milhares de caminhões de lixo retirados das ruas e becos ganham destaque, mas, ao mesmo tempo, servem para ajudar no esquecimento do lixo produzido pela própria corporação. Um lixo físico e moral, destruidor de vidas cimentadas pela omissão (e consequente cumplicidade) dos responsáveis.

O jornalista Igor Patrick resolveu dar nomes e rostos às histórias, ao sofrimento que não entra nos números o)ciais. Com um jornalismo investigativo, procura dar visibilidade aos desesperados gritos silenciosos de mulheres e homens que são tratados com menos pompa do que o lixo retirado das ruas. O esgoto que desce das comunidades não é nada comparado às denúncias que o jornalismo investigativo apontou nestes últimos anos no Haiti. Um jornalismo que não alcança um respaldo adequado, pela importância, nas redações dos prin-cipais veículos de comunicação dos vários países envolvidos. A versão o)cial é o que mais se vê, lê e ouve sobre o Haiti.

A boa investigação é, principalmente, ética. E ética não se fragmenta, não se negocia. O que Igor Patrick se propõe a fazer foca em histórias de vida, em consequências e inconse-quências. Balanço real não existe, pois em uma situação como a do Haiti, quando ainda restam forças para que sejam feitas denúncias, milhares de vozes preferem continuar caladas, amordaçadas pela impunidade.

Não se trata de números e, sim, de vidas. Régine, Martine, Fabiana, Jacquendia, Johnny e tantos homens e mulheres haitianos não podem ser tratados como parte de uma triste estatística, alimentada pela imunidade. É subsidiar

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a cruel e covarde postura dos criminosos, mas principalmente dar cobertura dos governantes e magistrados dos países que deveriam ser responsáveis pela condenação sumária destes criminosos de farda e que se escondem atrás de providencial burocracia. Criminosos estes que mancharam de sangue o trabalho da maior parte das tropas de defesa de toda uma população acuada por gangues locais organizadas.

As fontes dos tristes e emocionantes relatos de Igor Patrick são as primárias, as que ainda são levadas a se considerarem responsáveis pelos abusos que sofreram. As lágrimas secas, a voz muda, o rosto duro podem até ser relatadas em uma tentativa de interpretação do jornalista que se propõe a ter estômago para conhecer a vida real. Mas di)cilmente vão superar a barreira justi)cada pela interpretação da lei de acordo, com interesses que estão longe de proteger do horror dos abusos.

Somos capazes de tentar entender a tragédia vivida por um sem número de haitianos de todas as idades (mulheres, em sua grande maioria). Tentam explicar os abusos, como se fossem culpadas, por uma necessidade real de autopreservação, pelos sonhos transformados em pesadelos por predadores. Mas o que não se consegue explicar são as causas da falta de combatividade de estes delitos serem debelados com o mesmo vigor com que são cometidos.

A questão cultural é constantemente utilizada como des-culpa para crimes odiosos pelas autoridades que se propuseram a dar segurança a um povo tão oprimido, de uma pobreza inimaginável, explorado a vida toda por nações desenvolvidas. Que preferiram não enxergar, na manutenção dessa pobreza, na falta de educação, saúde e oportunidades, a forma mais fácil de domínio e exploração. Que não viram semelhantes,

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mas mão de obra barata. E que ainda hoje continuam a ser vistos desta forma por nações que ocuparam o país (e seus respectivos marqueteiros) em nome da salvação.

A situação caótica da pré-ocupação do Haiti nunca poderá servir de desculpas pelos abusos sofridos. Mesmo que fosse uma só pessoa a ser violada nos seus direitos, no seu corpo, por tropas que vieram trazer o que de mais valioso os haitianos poderiam sentir, a esperança, esse único crime deveria ser apurado e penalizado com uma indignação que trouxesse a todos nós, habitantes de países formadores desta missão, um sentimento de profunda vergonha. É certo que se )zerem uma enquete por aqui, a maioria esmagadora não saberá do que estamos falando. Esse tipo de notícia não é prioridade nos países de onde as tropas saíram.

Este livro demonstra o que deve ser o papel do jorna-lismo investigativo, narrativo. A omissão, cumplicidade ou simples desinteresse dos grandes veículos de comunicação, tornam o jornalismo massivo mais uma peça no encobri-mento dos horrores.

As conhecidas aulas nas salas das faculdades de comu-nicação sobre a importância da notícia baseada no país de nascimento e números de vítimas destes países, nunca esteve tão presente como no caso do Haiti. Ou alguém duvida de que se houvesse a denúncia de que este horror tivesse acontecido com uma norte-americana ou cinco mulheres europeias, o caso não teria uma repercussão de indignação mundial, capitaneado pelos veículos de comunicação de massa do “mundo civilizado”? Que os denunciados teriam uma punição exemplar e ninguém se preocuparia de pronto em culpar a vítima? Só essas duas perguntas básicas, respondidas com facilidade por todos que

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resolveram ler estas linhas, mostram a nossa responsabilidade como jornalistas em revelar que essas denúncias são reais e que há falta de investigações adequadas.

Para que não decretemos a morte do jornalismo da vida real é fundamental que o jornalista não perca esta capacidade de indignação, de pular fora das caixas das redações, para que o mundo lá fora chegue até os leitores.

O jornalista tem de sentir vergonha de não apurar, de fazer matérias em cima de declarações o)ciais, de não sentir as lágrimas descerem ao ouvir histórias reais. A indignação é também nossa matéria prima.

É com orgulho que, ao ler toda a apuração que deu vida a este livro, que deu voz aos denunciantes, aos denunciados e aos que nada )zeram para impedir ou investigar os crimes, me lembro que um dia dividi a mesma redação com Igor Patrick.

Fica a discrepância entre a crueldade do mundo real e as posições o)ciais dos gabinetes, sempre se esquivando de respostas concretas baseados em mentirosas averiguações que nunca chegarão a uma conclusão. Todos sabem que as “apu-rações” não serão apuradas. E, se forem, vão ser engavetadas. As vítimas acabam como a escória que devem ser varridas para baixo dos tapetes, de uma forma que não )gurem nem mesmo em relatórios. Resta ao jornalismo investigativo, como este que Igor Patrick nos apresenta, dar vez a quem teve a vida destroçada por estes predadores, protegidos pela impunidade do descaso.

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Por trás do choro das

montanhas

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C o m e n t e i c o m u m p a s s ag e i ro que viajava do meu lado no voo da American Airlines Miami-Porto Príncipe: olhando de cima, as montanhas do Haiti parecem chorar. E é exatamente essa a impressão quando se sobrevoa uma terra erosiva e pouco arborizada, fruto de uma guerra de independência que levou com ela a escravidão, mas também toda a pouca infraestrutura do país. Cortam-se árvores para fazer carvão. Com o carvão, cozinham-se animais nas frentes das casas, no meio da rua, a população presa nessa querela desenfreada com destino ao abismo. Impossível não comparar com a beleza plástica e quase falsa da visão panorâmica da Flórida, local da minha conexão antes da derradeira viagem.

Depois de meses lendo, pesquisando e entrevistando dezenas de pessoas, embarquei para o Haiti em agosto de 2017 com uma missão aparentemente simples: acompanhar a desmobilização das tropas militares pertencentes à Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (do francês, Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti ou, como )cou conhecida, pelo acróstico Minustah).

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Presentes no país desde pouco depois da fuga mal-ex-plicada do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide para a África em 2003, as tropas dos chamados Capacetes Azuis – alcunha dada aos paci)cadores enviados pelas Nações Unidas a Esta-dos frágeis ou falidos – se preparavam para o encerramento da missão e da sua transformação em força policial e civil.

Mas a pauta guardava uma particularidade: estava ali também para ouvir um tipo especial de vítima da vulnerabilidade a que o Haiti está exposto. Não se tratava de sobreviventes ao terremoto, nem ao furacão. Nem mesmo vítimas da pobreza (algo que aqui vem como causa e consequência). Desembarquei em Porto Príncipe para ouvir mulheres que foram estupradas por soldados da Organização das Nações Unidas (ONU).

As denúncias de abuso sexual pelos Capacetes Azuis não são novas. Ainda em 2001/2002, o tema foi discutido na Assembleia Geral da ONU, época em que o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) solicitou investigações1 ao Escritório de Serviços de Supervisão Interna (OIOS) por denúncias de abusos sexuais cometidos por paci)cadores em três países da África Ocidental: Guiné, Libéria e Serra Leoa.

O caso surgiu depois da divulgação do relatório de dois consultores contratados pelo ACNUR e pela ONG Save the

Children para estudar a questão nas comunidades de refugiados nos três países. Advogados, investigadores pro)ssionais, espe-cialistas em proteção de refugiados, tradutores e especialistas em trauma pediátrico foram colocados a campo. À época, 43

1 Os resultados dessa investigação, condensado nos capítulos posteriores, po-dem ser lidos nas anotações gerais do então Secretário-Geral da ONU, KoX Anan, no documento “Investigation into sexual exploitation of refugees by aid workers in West Africa”.

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casos foram investigados, 10 deles acatados por evidências fortes. O trabalho, no entanto, foi “di)cultado pela falta de informações sobre fontes e do acesso à vítima”, de acordo com as conclusões apresentadas pela equipe.

Mesmo considerando que os relatos traziam “exemplos vagos ou datados de incidentes não corroborados de explo-ração sexual” e com uma variedade de abusos perpetrados “por locais ou internamente deslocados, por sexo comercial (prostituição) ou incidentes relacionados à guerra”, o Secre-tário-Geral KoX Anan lista uma série de 17 recomendações do OIOS no que tange ao tema.

São pontuações vagas que incluem a necessidade pre-mente em “trabalhar com todas as organizações e agências humanitárias para garantir que as normas de conduta [...] proíbam especi)camente a exploração sexual”, o pedido que agências internacionais “façam mais para evitar o problema, reportando casos de relacionamentos com refugiados” e a “sensibilização da população local” sobre o tema. Não é surpresa que, até hoje, o número de casos seja subestimado2 nas estatísticas o)ciais e pouquíssimos militares a serviço da ONU sejam efetivamente acusados, julgados e condenados.

***

A Alta Burocracia da ONU, porém, não precisava olhar para outro continente para constatar a óbvia falha de conduta de seus Capacetes Azuis. Ali, a quatro horas de voo de Nova

2 O Instituto de Pesquisas para a Paz Internacional, sediado em Oslo, Noruega, produziu em 2009 o artigo “Sexual Explotation and Abuse by UN Peacekee-pers” mostrando como casos do tipo raramente são punidos. Em um exemplo apresentado na peça, de 27 casos de abuso e exploração sexual apenas dois foram levados à Justiça.

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Iorque, toda sorte de abuso era cometida por soldados en-viados ao Haiti.

Um relatório da OIOS vazado para a agência de notícias Associated Press (AP) mostrou que só de 2004, ano do início da Minustah, a 2007, pelo menos 124 crianças foram exploradas sexualmente por militares do Sri Lanka. Em evento relatado às autoridades internacionais, um general do país teria feito sexo com uma menina de 12 anos e pagou a ela o equivalente a US$ 0,753. Cento e oito dos 950 militares presentes no país foram deportados. O então secretário de Relações Exteriores srilanquês, Palitha Kohona, prometeu processar os soldados, mas o caso morreu pouco tempo depois.

Este livro, porém, tratará não de casos de exploração sexual (cujos dados também computam prostituição), mas de estupro consumado. E quando entramos nessa seara os relatos são ainda mais fortes. Um vídeo vazado para a internet em 2011 chocou o mundo ao dar voz e imagem a uma vítima: um jovem haitiano de 18 anos sendo abusado por pelo menos cinco marinheiros uruguaios no país.

São cenas repugnantes, do tipo que só palavras não são capazes de descrever com exatidão. O jovem, Johnny Biulisseteth, encontra-se prostrado, seu rosto )lmado de perto enquanto os marinheiros se revezam ao penetrá-lo. Suas mãos são presas nas costas pelos fortes punhos de dois militares, seu rosto parece triste e resignado. Escutam-se ao fundo os gritos, as risadas e as frases de deboche. Quando terminam, o menino é puxado pelos braços, não tem forças e não con-segue olhar para os rostos de seus algozes. A gravação dura poucos minutos.

3 Ver “UN peacekeepers in Haiti implicated in child sex ring”, reportagem do dia 14/4/2017 disponível no portal do jornal britânico The Independent.

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Na sequência da grande visibilidade internacional, o ministro da Defesa uruguaio Eleuterio Fernandez Huidobro fala em “punições pesadas” aos envolvidos. O então presi-dente José “Pepe” Mujica se desculpa o)cialmente ao Haiti.

O jovem é levado a uma corte em Montevidéu e é obrigado a ouvir do porta-voz da Suprema Corte Uruguaia, Raul Oxandarabat, que “toda a investigação se baseia em um vídeo de baixa qualidade, )lmado em um telefone celular e no testemunho deste jovem haitiano”. Os militares foram condenados pela Justiça Militar – e, por consequência, seus pares – por “violência privada”, acusação bem mais leve que a de estupro. Autoridades uruguaias concluíram que se tra-tava de “pegadinha” que deu errado e que nenhum estupro tinha ocorrido. Informações sobre compensação )nanceira desaparecem logo depois.

Em 2012, três paquistaneses da Polícia das Nações Unidas (UNPOL) são implicados em um caso de abuso sexual que teria durado quase um ano inteiro. A vítima teria sido um menino de 13 anos com de)ciência mental, morador de Gonaïves, no norte haitiano. O)ciais da corregedoria da ONU viajam até o Haiti, mas o menino é sequestrado pelos paquistaneses e nunca encontrado pelos investigadores4.

Ao voltar ao Paquistão os policiais são julgados em tribunal um militar, que não reporta ter ouvido testemunhas e proíbe observadores da ONU de acompanharem o caso. Apenas um homem é condenado por um ano.

Outros relatos contra nigerianos, uruguaios, jordanianos e brasileiros seriam levados ao conhecimento das autoridades

4 Os detalhes desse caso foram repassados pela própria porta-voz da Minustah, Ariane Quentier, à Associated Press.

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da Minustah5. A maioria sem resolução. Como soldados que servem às forças de paz têm imunidade às leis locais, as denúncias, quando reportadas (algo raro, dado ao medo que acomete a vítima habituada com os assassinatos sumários cometidos pela Polícia Nacional Haitiana – PNH), são, via de regra, enterradas no momento em que o militar deixa o país.

Os números de vítimas também não poderiam ser mais desencontrados. Estatísticas domésticas são virtualmente impossíveis de serem encontradas. Estimativas repassadas pelo embaixador brasileiro no Haiti, Fernando Vidal, dão conta de 114 alegações envolvendo civis, policiais e militares da Minustah entre 2010 e 2017, dos quais 34 comprovados. Estimativas independentes feitas por ONGs que acompanham o assunto falam em 500 casos.

Este livro, portanto, é uma tentativa desesperada de fazer ecoar as vozes de algumas dessas vítimas. É o grito de socorro de Régine, Martine, Fabiana e Jacquendia, mas também de dezenas (centenas?) de outras mulheres (e por vezes homens) que sofreram nas mãos daqueles cujos juramentos clamam pela promulgação da paz e proteção àqueles cuja realidade já trata de destruir- lhes diariamente. Seus depoimentos, raras exceções, são toda prova que podem fornecer.

Quando lhe tomam a pureza da vida, quando lhe abrem suas pernas e lhe subjugam pela violência física, moral e psi-cológica só )ca sua história. É aquilo que resta de nós.

5 Em 2006, a rede britânica BBC revelou que um soldado brasileiro tinha sido investigado três vezes pela ONU por supostamente ter cometido estupro contra uma jovem haitiana de 16 anos. Ele foi liberado sem acusações e, segundo o porta-voz da Minustah à época, David Wimhurst, “nenhuma evidência foi en-contrada da alegação.” O advogado da jovem denunciou à reportagem que lhe foi negado acesso para interrogar o acusado.

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obrasileiro

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M a r t i n e G e s t i m é nunca foi uma criança saudável. Também pudera, cresceu em Cité Soleil, a maior, mais pobre e mais perigosa favela de todo o Ocidente.

Localizada a extremo-oeste do Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, na capital haitiana Porto Príncipe, a comuna que hoje abriga cerca de 250 mil pessoas em área de pouco mais de 2.180 hectares6 nasceu em 1958 como agru-pamento urbano comum. Sua história posterior é carregada de tragédia.

Em 1966, um incêndio na favela de La Saline leva mi-lhares a buscarem ali refúgio. Constrói-se Cité Simone, região de 1.200 casas, batizada à semelhança do nome da esposa do sanguinário ditador Papa Doc, Simone Duvalier. Seis anos depois, outro incêndio nos arredores do Mercado Central leva para lá mais centenas de famílias, posteriormente acom-panhadas por sonhadores camponeses que abandonavam as

6 A título de comparação, a maior favela do Brasil, a Rocinha (Rio de Janeiro), tem pouco mais de 70 mil habitantes espalhados por 69 mil hectares de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geogra)a e Estatística (IBGE).

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paisagens idílicas do interior em busca de trabalho nas fábricas açucareiras, inauguradas em meados dos anos 70 em virtude da abertura nacional à onda neoliberalista.

Cité Soleil se torna a partir daí o depósito de almas perdidas e futuros destroçados, que se amontoam hoje em quarteirões com nomes de toda sorte: Boston, Brooklyn, Waaf e outros tantos de referência a terras longínquas e radicalmente diferentes do que ali se encontra. É o que a Cruz Vermelha descreveu em 2006 como “o microcosmos de todos os males na sociedade haitiana: desemprego endêmico, analfabetismo, serviços públicos inexistentes, condições insalubres, crimes desenfreados e violência armada”7.

Crescer nessa favela é dividir o terreno com porcos e cachorros, que chafurdam o lixo a céu aberto em busca das poucas sobras deixadas por dezenas de milhares de famílias que lutam contra todas as adversidades na mais absoluta miséria. Não resta quase nada comestível no lixo de quem se acostu-mou a se alimentar até de terra, mas os animais continuam bailando a ópera dantesca da sobrevivência, alheios a números e probabilidades. Poças de lama são disputadas por mosquitos e por crianças que, sem acesso à água corrente e limpa, usam de qualquer quantidade do líquido para tomar banho.

O esgoto escorre pelas ruas sem calçamento e invade as casas feitas de pedaços de madeira e placas de metal en-ferrujado pelo tempo. Doenças chegam de carona na chuva, na poeira, se impregnam nas paredes e se tornam parte de quem você é.

Martine raramente tinha o que comer. O que, vez ou outra, obrigava sua mãe – vendedora divorciada que

7 Revol, Didier. “Hoping for change in Haiti’s Cité-Soleil”. Cruz Vermelha Internacional, 2006.

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bravamente criou duas filhas e dois filhos – a disputar, a gritos, um lugar na fila dos poucos hospitais da região mantidos com recursos de organizações não governamentais que atuam em Porto Príncipe.

A menina franzina, de olhos puxados e cabelo crespo, )cava horas, por vezes dias, à espera de atendimento. Com os braços )nos e desnutridos levantava as pequenas mãos para os médicos em busca de ajuda. Mais uma vez seria humilhada e ignorada.

Na juventude, decidiu que estudaria para ser médica. “Desiste menina, é muito sacrifício”, dizia-lhe a mãe, não por maldade, mas pelo senso realista da mulher calejada pela miséria. Nada que falasse, porém, lhe demoveria do sonho: ser um dia capaz de passar por uma criança doente e ajudar ao invés de ignorá-la.

***

O ciclo escolar no Haiti começa sempre aos três anos: é o nosso jardim de infância. Com essa idade, uma criança de classe média já carrega nas costas uma mochila e aprende a manobrar o lápis de escrever, habilidade rara por essas terras caribenhas. Não há, porém, escolas públicas e o ensino não é prioridade na vida de quem mal tem o que comer.

Assim, quando )nalmente consegue entrar na escola, seja por sacrifício da família, seja pela ajuda )nanceira de algum benfeitor estrangeiro, o haitiano comum já tem mais de 10 anos de idade. Ao completar 20, 25 anos, idade em que deveria estar na universidade, é provável que esteja )nalizando o ensino fundamental ou curse meados da escola secundária.

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Da porta de casa, assistindo, dia sim e outro também, ao sol esturricar o improdutivo solo da favela, Martine nunca deixou de sonhar com o jaleco branco. Tanto falava do assunto que, dado momento, conseguiu convencer a mãe: iria estudar.

Por meses construiu aos poucos o frágil e modesto material escolar. Alguns lápis, um único caderno. Era seu tesouro, o bem mais precioso de uma existência de sofrimen-to. Escondia-os embaixo da única cama da casa, e enquanto caminhava até a escola abraçava-os contra o peito consciente de que naquelas folhas amarelas e nos tocos sem ponta re-pousava todo o signi)cado de sua vida.

Percorrer Cité Soleil a pé, no entanto, era sempre uma roleta russa. Densamente povoada, a favela guardava riscos a cada esquina, com quarteirões inteiros controlados por uma ou mais das 30 facções criminosas rivais, que não raro se enfrentavam em con`itos brutais. Dado momento, encon-trar cadáveres apodrecendo no chão empoeirado da região se tornou tão comum que era como desviar de entulho ou contornar os inúmeros lixões.

“Martine, esse lugar é muito perigoso, minha )lha. De-siste dessa bobagem de estudar, em casa consigo te proteger”, repetia a mãe em uma espécie de mantra que entrava e saía dos ouvidos da menina sem lhe demover de coisa alguma. E Martine caminhava, caminhava e caminhava. Saía de casa cedo, faminta e para lá só retornava quando a noite caía.

Tanta perseverança seria uma sina. E um dia lhe destruiria.

***

A fuga mal-explicada do ex-presidente Jean-Bertrand Aris-tide para a África em 2003 – que envolve forças estadunidenses

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supostamente retirando o político contra sua vontade da residência o)cial e uma carta de renúncia, cuja autoria foi mais tarde negada, pelo líder haitiano – trouxe grande insta-bilidade para o Poder Executivo. Ela coincide também com o esforço conjunto dos Estados Unidos, França e Brasil para a aprovação da resolução no Conselho de Segurança da ONU, que autorizaria o envio de destacamento militar ao Haiti e com extrema resistência das gangues armadas em Cité Soleil.

Visto como defensor dos pobres e bastante amado pelos habitantes da favela, Aristide desperta com sua saída inédita onda de violência pela capital. É natural, portanto, que quando tropas da Jordânia, Brasil e Sri Lanka chegam, em dezembro de 2004, a esse pedaço miserável de Porto Príncipe, as reações não seriam as mais calorosas.

Predominava nessa época a tática das gangues armadas de “atirar e correr”. Criminosos de posse de fuzis automá-ticos 7,62 e 5,56mm e metralhadoras automáticas 7,62mm – remanescentes do arsenal roubado por ex-militares quando da extinção mal calculada das Forças Armadas Haitianas em 1994, após uma série de tentativas de golpe militar – reali-zavam chacinas diárias, com objetivo aparente de assustar a população. Sob a liderança do miliciano Emmanuel ‘Dread’ Wilmer, os chamados chimères usavam de extrema violência para desestabilizar o poder central e exigir a volta de Aristide.

Quando o comando brasileiro inicia as operações em Cité Soleil, os bandidos estão preparados. Posicionam fuzis nos buracos das casas da favela e disparam por todos os lados, confundindo os militares que não sabem de qual direção se defender.

Organizados, os chimères abriam fossos e bloqueavam as ruas da favela com lixo, impedindo o avanço das tropas.

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O emprego de blindados8, a construção de uma rede de infor-mantes pelo Serviço de Inteligência da Minustah e complexa logística envolvendo os efetivos dos três países foram neces-sários para criar condições mínimas de atuação às entidades humanitárias, à ONU e à PNH.

Dread Wilmer é morto no ano seguinte, em ação pos-teriormente denunciada pelo Comitê de Ação Haitiana dos Estados Unidos relatando o lançamento de granadas e o assassinato da mulher e dois )lhos do gângster9.

***

Acostumados à violência extrema e desenfreada, os ha-bitantes de Cité Soleil passam a ver nos soldados da Minustah uma fonte de segurança. Martine, por outro lado, viu a chegada dos militares como incentivo para continuar a estudar. Agora que desviar de tiroteios não fazia mais parte de sua rotina.

A pobreza que lhe acompanhava desde o nascimento, no entanto, não acabaria com a morte de um gângster. Ela continuava tão miserável quanto sempre foi dependendo da caridade de estranhos e de uma resiliência que desconhece limites. Estudar nessas condições é difícil.

“Eu )cava faminta o dia todo. Às vezes, escorava nas paredes para não desmaiar. Ia com minhas amigas para uma praça perto de casa e tentávamos conseguir algo de comer. Era

8 O resumo detalhado dessa operação pode ser conferido no artigo do major da cavalaria do Exército Carlos Alexandre Geovanini dos Santos, “Emprego de Blindados no Haiti – Operação Liberté”, do Centro de Pesquisas Estratégicas Paulo Soares de Sousa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).9 O general Augusto Heleno Ribeiro, que comandava as forças de paz da ONU no Haiti, à época chamou a denúncia de “mentirosa”. Ele acusou a ONG de manipular a foto que mostrava o resultado da ação na casa de Wilmer.

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um lugar iluminado, perto da base da Minustah e, portanto, mais seguro”, conta a mulher. Ou pelo menos ela achava que assim seria.

Uma vez ocupada a favela, era comum ver por ali militar com armas em punho e posição em alerta. É, no entanto, im-possível se manter indiferente à extrema miséria que assola o local e tais condições de vida não passavam indiferentes aos que serviam e patrulhavam as labirínticas ruas da comunidade.

Cria-se então o hábito de se frequentar as ruas pró-ximas da base – imponente prédio de dois andares azul e branco, facilmente identi)cável no emaranhado de pequenos barracos improvisados – na esperança de se conseguir comer. O)cialmente, militares eram proibidos de dar água e comida a moradores, sem autorização do comando da ONU, mas a regra sempre foi desrespeitada por quaisquer que fossem as nacionalidades dos soldados. Brasileiros, então, eram amados justamente pelo sentido de humanidade que, de acordo com os haitianos, não se veri)cava em outros países.

Na multidão que anda de um lado para o outro sem nenhuma direção aparente, uma menina com cadernos na mão logo chama a atenção. Um militar se aproxima de Martine. Fala algumas palavras, aponta para seu material escolar e faz sinal de aprovação. Ela não entende nada até que ele olhe para os lados e, com cara de quem pede segredo, lhe estende um pacote de biscoito e vai embora.

Martine ainda não é capaz de acreditar, mas trata de dividir o alimento com as amigas e vai correndo para casa. Tinha conseguido comer naquele dia e nada podia alegrá-la mais. No )m da tarde do outro dia, volta aos arredores da base. Era junho de 2007 quando conhece Franco.

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***

Haitiano, Franco é o tradutor responsável por intermediar

a comunicação entre os militares brasileiros e o restante da

população. Olhando para trás, Martine percebe que pouco se

lembra das características do homem, mas não se esqueceu

das conversas que teve com ele.

Em junho de 2007, passar pela base se torna rotina

na vida da jovem. Também se torna rotina o contato com

o brasileiro, que acompanhado de Franco, sempre tenta

conversar com ela. O militar é branco e um pouco mais

baixo e fora de forma em relação aos colegas. Tinha a pele

“branca, branca, branca”, como o descreve, cabelos negros

e olhos claros. Usava sempre um boné azul - característico

dos participantes da missão de paz - e ostentava a bandeira

do Brasil no peito e no braço.

Até aquele momento, o Brasil soava como um nome tão

distante quanto qualquer outro país mencionado nas aulas de

geogra)a. De lá, Martine nada sabia além de uma e outra foto

que via do Rio de Janeiro e do sucesso de seus jogadores de

futebol, apresentados à população poucos anos antes naquele

que )cou conhecido posteriormente como “o Jogo da Paz”10.

10 Nos debates sobre a polêmica decisão do Brasil em liderar as tropas milita-res sob a égide da ONU, o então primeiro-ministro haitiano Gerard Latortue reclamou com ironia que o país deveria ter mandado seus jogadores de fute-bol e não seus soldados a Porto Príncipe. O presidente Lula gostou da ideia e promoveu uma partida histórica entre as duas seleções em agosto de 2004. A seleção, então campeã do mundo, foi recepcionada por uma multidão e des)-lou em carro blindado pelas ruas da capital. O jogo, realizado no Estádio Sylvio Castor, terminou com o placar de 6x0 para o Brasil e serviu para consolidar o que teóricos das relações internacionais classi)caram como “diplomacia dos gramados” brasileira.

Page 14: o punhal está no bote de salvação€¦ · { 12} Ike Yagelovic Diretor de Jornalismo da Band News Para a vítima, a dor de um crime se torna insu-portável quando a omissão é

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Com a tradução constante de Franco, ela conversa com o militar sempre que pode. Compartilha com ele a sua curiosi-dade pelos costumes do país, ao passo que recebe conselhos dele. “Você precisa continuar estudando, só assim vai poder sair daqui e conseguir ser alguém na vida”, ela se lembra de ele ter dito uma vez, sorrindo ao ver que ela ainda carregava seus cadernos.

Também por meio do tradutor, o militar fazia elogios à sua aparência. Mostrava-se surpreso com o capricho dela com as roupas, sempre bastante limpas e arrumadas. Sempre a presenteava com um pacote de biscoitos. Martine con)rma-va na prática o que se dizia pelas ruas de Porto Príncipe: ao contrário dos africanos e dos asiáticos, os brasileiros militares eram “bombagai”, gíria em crioulo usada equivalente ao nosso “gente boa”. Simpáticos, menos violentos e mais preocupados com a população em geral, o soldado do Brasil vê-se livre da usual descon)ança reservada aos de outras nações.

Martine não tinha com o que se preocupar, certo? Que mal lhe faria um homem de tão bom coração, que lhe dava biscoitos e aliviava sua fome? Qual o problema se ele pedisse para ela entrar na base militar de Cité Soleil e aguardar pró-ximo à entrada até que os superiores desaparecessem e ele pudesse lhe dar mais comida que o normal? Por que deveria )car apreensiva com o fato de o soldado ter dispensado Franco e olhar para os lados o tempo todo enquanto caminhava em sua direção?

Não, não havia motivos para preocupação. Por pensar assim, por acreditar no melhor de cada pessoa, talvez Marti-ne não tenha percebido, de relance, um brilho diferente no olhar do amigo soldado. Um brilho que, hoje quando pensa sobre, compara com um predador à espera da vítima. Ela não