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    O REGENTE DE CORO INFANTIL DE PROJETOS SOCIAIS

    E AS DEMANDAS POR NOVAS COMPETNCIAS E HABILIDADES

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    MIRIAN MEGUMI UTSUNOMIYA

    O REGENTE DE CORO INFANTIL DE PROJETOS SOCIAIS

    E AS DEMANDAS POR NOVAS COMPETNCIAS E HABILIDADES

    Dissertao apresentada Escola de

    Comunicaes e Artes da Universidade de So

    Paulo, como exigncia parcial para a obteno

    do ttulo de Mestre em Msica sob a orientaodo prof. Dr. Pedro Paulo Salles.

    SO PAULO2011

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

    U95rUtsunomiya, Mirian Megumi.

    O regente de coro infantil de projetos sociais e as demandas pornovas competncias e habilidades / Mirian Megumi Utsunomiya. --

    So Paulo; SP: [s.n], 2011.130p.: il. ; 30 cm.

    Orientador: Pedro Paulo Salles.Dissertao (mestrado) - Programa de Ps-Graduao em

    Msica, Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de SoPaulo.

    1. Regncia (Msica) 2. Coral infantil 3. Msica (Histria) - Brasil4. Sociedade civil 5. Terceiro setor. I. Salles, Pedro Paulo. II. Escolade Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo. Programa dePs-Graduao em Msica. III. Ttulo.

    CDU: 78.071.2(043.3)CDD: 781.635

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    MIRIAN MEGUMI UTSUNOMIYA

    O REGENTE DE CORO INFANTIL DE PROJETOS SOCIAIS

    E AS DEMANDAS POR NOVAS COMPETNCIAS E HABILIDADES

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica,

    rea de Concentrao: Musicologia, Linha de Pesquisa: Histria, Estilo e Recepo,

    da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, aprovada pela

    Banca Examinadora, constituda pelos seguintes professores:

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Rose Hikiji Gitirana

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Fbio Cardozo Mello Cintra

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Pedro Paulo Salles

    So Paulo, 03 de Junho de 2011

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    ABSTRACT

    This works aims at focusing the new skills and competencies demanded for

    children's choir conductors in social projects. It was based on a research developed

    in So Paulo with professionals of this area. Such skills and competencies vary

    according to the social actors who support the choirs. The profile of a social project

    children's choir conductor has proved to be different from other chorus modalities

    due to the peculiarity of its children features and the specific context in which the

    conductor must act. These factors increase the range of skills required for this job. It

    was analysed the socio-historical arise of children's choir in Brazil in three specific

    periods: The children's choir of the Colonial Period, ran by mestre-de-capela; the

    children's choir of Canto Orfenico, conducted by teachers at Repblica Velha time

    and the contemporary children's choir, from Nova Repblica, considered a civil

    society action implemented in social projects of Nongovernmental Organizations,

    which consequently order a different performance of this professional. Then, it will be

    contextualized the emerging concepts of "Global Stage", "social actor", "Civil Society",

    "Third Sector" and "competencies" in order to reflect on those current demands which

    are shaping the profile of this new professional childrens choirconductor.

    Key words:

    Childrens choir ConductorCompetenciesCivil SocietyThird Sector

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    A todos os regentes de corais infantis,

    especialmente aos que atuam em projetos sociais

    e acreditam no valor intrnseco

    do ser humano.

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    AGRADECIMENTOS

    ADeus, minha Rocha Eterna;

    ao Fred, meu companheiro, minha gratido eternaa Michelle, ao Gabriel e ao Leonardo, pelos inmeros abraos e pela pacincia;

    ao Shinobu e Tokiko Yamamoto, ao Hissao e Kioko Utsunomiyapelo apoio incondicional;

    ao Marlon Isamu Okubo, Silmara Drezza e Lilia Valentepor dividirem suas experincias em prol do coral infantil de projetos sociais;

    Thelma Chan, Gisele Cruz e ao Samuel Kerrpelo resgate de uma histria que no pode se perder no tempo;

    ao Celso Delneri, Clausi Nascimento, Carmen Lcia Teixeira, Viviane Valladopelos valiosos depoimentos;

    Magal Elisabete Sparano e ao Edilson Vicente de Limapela reviso e longas conversas instigantes e

    aos professores do curso de Msicada Universidade Cruzeiro do Sul

    pelo incentivo que sempre me dispensaram.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1.1Atores Sociais no Palco Global ............................................................ 8Figura 1.2Diagrama dos trs setores da sociedade............................................. 10Figura 3.1Websitedo Centro de Promoo Social Cnego Luiz Biasi ................ 73

    Figura 3.2Websitedo Instituto Bacarelli .............................................................. 75

    Figura 3.3Websiteda ONG Moradia e Cidadania ................................................ 77

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro 3.1Competncias requeridas ao regente em funo de objetivo e

    enfoque do coro ............................................................................... 83

    Quadro 3.2Competncias requeridas ao regente de coro infantil de

    projeto social .................................................................................... 85

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................... 1

    1. PERCURSOS DO REGENTE DE CORO INFANTIL NO BRASIL ................................ 5

    1.1 Atuao do regente de coro infantil sob a perspectiva da demanda do atorsocial em destaque ....................................................................................................... 6

    1.1.1 O conceito de palco global e de ator social .............................................. 61.1.2 O conceito de setores da sociedade: o Terceiro Setor ................................. 9

    1.2 O mestre-de-capela: o regente no Brasil do Perodo Colonial............................. 101.2.1 O mestre-de-capela no perodo do Brasil-Imprio ....................................... 131.2.2 Consideraes sobre o mestre-de-capela como regente de coro infantil ..... 14

    1.3 O regente professor de Canto Orfenico no Brasil da Repblica Velha e noEstado Novo ................................................................................................................... 15

    1.3.1 O Canto Orfenico na Frana ....................................................................... 161.3.2 O Canto Orfenico na Espanha .................................................................... 181.3.3 O Canto Orfenico no Brasil ........................................................................ 191.3.4 Consideraes sobre o professor de Canto Orfenico no Brasil .................. 25

    1.4 O regente de coro infantil no contexto de fortalecimento da Sociedade Civilno perodo da Nova Repblica ................................................................................. 27

    1.4.1 Corais infantis demandados por segmentos da Sociedade Civil fora doambiente eclesistico e escolar .................................................................... 29

    1.4.2 Painis Funarte de Regncia Coral: participao diferenciada do Estado ... 301.4.3 O coral infantil na contemporaneidade paulistana ........................................ 331.4.4 O papel da ARCI na formao de regentes de coros infantis ....................... 361.4.5 Outras iniciativas alm da ARCI .................................................................. 391.4.6 Consideraes sobre o regente de coro infantil de projetos sociais ............. 41

    2. HABILIDADES E COMPETNCIAS DO REGENTE DE CORO INFANTIL .................. 43

    2.1 Conceituao de coro infantil e sua prtica contempornea no Brasil................ 432.1.1 Definio de coral infantil, faixa etria e composio ..................................... 452.1.2 O regente de coro infantil e a equipe de trabalho ........................................... 472.1.3 Voz infantil e tcnica vocal .............................................................................. 482.1.4 Escolha de repertrio, ensaios e apresentao .............................................. 49

    2.2 Competncias e habilidades no contexto do regente de coro infantil.................. 512.2.1 A importncia da liderana do regente ressaltada .......................................... 512.2.2 Demandas para o regente como gestor. O conceito de competncia ............ 56

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    2.2.3 Competncias para o regente como educador musical .................................. 642.2.4 Competncias para o regente de coro infantil em ONGs: demandas de uma

    formao no atendidas .................................................................................. 66

    3. DEMANDAS PARA O REGENTE DE CORAL INFANTIL DE PROJETOS SOCIAISSEGUNDO A TICA DOS PRPRIOS REGENTES ................................................... 69

    3.1 A busca por fontes primrias de informaes ......................................................... 693.1.1 A coleta de dados ......................................................................................... 69

    3.2 O perfil dos regentes entrevistados e das ONGs onde atuam ............................... 723.2.1 Marlon Okubo, do Centro de Promoo Social Cnego Luiz Biasi ................ 723.2.2 Silmara Drezza e o Coral da Gente do Instituto Baccarelli ............................ 74

    3.2.3 Lilia Valente e o coral infantil da ONG Moradia e Cidadania ......................... 76

    3.3 Novas competncias demandadas segundo a percepo dos prprios regentes783.3.1 Viso geral sobre os depoimentos e atuao dos regentes ........................... 783.3.2 Demandas por uma perspectiva holstica do coro infantil ............................... 82

    4. FECHANDO AS DISCUSSES: GUISA DE UMA CONCLUSO............................. 88

    4.1 O coro infantil e as demandas dos atores sociaisno palco global ....................... 88

    4.2 O coro infantil em projetos sociais no Terceiro Setor ........................................... 89

    4.3 Coral infantil em projetos sociais: um desafio para toda a sociedade ................. 91

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................. 92

    APNDICES ...................................................................................................................... 100

    APNDICE 1 - Entrevistas com os regentes ................................................................. 100

    Apndice 1.1 Entrevista em udio de Henry Leck e em vdeo de Marlon Okubo,e Lilia Valente .................................................................................... 100

    Marlon Isamu Okubo (Vdeo disponvel no DVD em anexo)Entrevista concedida em 9 de dezembro de 2010 ............................. 100

    Lilia Valente (Vdeo disponvel no DVD em anexo)Entrevista concedida em 14 de dezembro de 2010 .......................... 100

    Henry Leck (udio disponvel no DVD em anexo)Entrevista concedida em 30 de maio de 2008

    Intrprete: Aderbal Soares ................................................................ 100

    Apndice 1.2 Depoimento de Silmara Drezza .......................................................... 101

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    APNDICE 2 Contextualizao sobre o coro infantil ................................................ 106

    Apndice 2.1 Entrevista com Gisele Cruz ................................................................ 106Apndice 2.2 Entrevista com Samuel Kerr ............................................................... 108Apndice 2.3 Entrevista com Thelma Chan ............................................................. 109

    APNDICE C Outros depoimentos ............................................................................... 122

    Apndice 3.1 Entrevista com Celso Delneri ............................................................. 122Apndice 3.2 Entrevista com Clausi Nascimento ..................................................... 125Apndice 3.3 Entrevista com Carmen Lcia de Souza Teixeira .............................. 127Apndice 3.4 Entrevista com Viviane Vallado ........................................................ 129

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    INTRODUO

    Cantar em grupo uma atividade humana ancestral. Cantou-se em grupo por

    diversos motivos e com inmeras finalidades no decorrer da histria da humanidade.No Ocidente, o canto dividido em vozes harmoniosas comeou ligado ao ambiente

    sacro, mas veio desenvolver-se, tambm, no meio no-religioso, como forma de

    expresso artstica e, posteriormente, como forma de lazer e terapia para os

    participantes.

    A pessoa que conduz o coral o regente, figura que, em algum momento da

    trajetria do estabelecimento dessa atividade social, torna-se o elemento central

    para organizar, instruir, treinar e dirigir as apresentaes do grupo de pessoas quecantam em conjunto. Para exercer esse papel de condutor com essas atribuies, foi

    necessrio que esse regente desenvolvesse certas competncias e habilidades para

    atender s demandas que a um grupo de canto coral requerido em determinado

    contexto social e histrico.

    Nos ltimos sculos prevaleceu uma concepo do canto coral a partir da viso

    ocidental e este modelo encontrou guarida na grande gama de grupos sociais,

    atendendo a objetivos religiosos, artsticos, educacionais e ldicos propostos pela

    sociedade na qual estavam inseridos. Atualmente, o canto coral tornou-se uma

    atividade exercida no mundo todo, por diversos grupos, com os mais variados

    objetivos. H corais com diferentes tipos de constituio (por gnero, por faixa etria,

    por etnia, por profissionais de determinada rea etc.) surgindo ao longo do tempo,

    cumprindo distintos papis nos contextos nos quais se desenvolveram. H corais

    profissionais, cujos integrantes so remunerados para realizar apresentaes, mas a

    grande maioria dos corais composta por coralistas amadores, cuja qualidade

    tcnica, em vrios casos, igual ou superior s dos corais profissionais. Da mesma

    forma, h regentes que exercem voluntariamente o ofcio e h aqueles que so

    pagos.

    Dentre os vrios tipos de corais, h o infantil, assunto desta dissertao. Nela

    pretende-se estudar especificamente as habilidades e competncias do regente de

    coro infantil de projetos sociais da cidade de So Paulo a partir das experincias

    vivenciadas por eles mesmos, entendendo-se que a atividade do canto coral requer

    do regente um perfil flexvel/adaptvel s diferentes demandas conforme diferentes

    contextos scio-histricos em que estiver inserido.

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    Portanto a problematizao do escopo deste trabalho enunciada da seguinte

    forma: no contexto de corais infantis de projetos sociais na cidade de So Paulo

    hoje, quais so as competncias e habilidades requeridas ao regente que est

    frente do empreendimento?.

    Este trabalho de pesquisa justifica-se pela sua relevncia nos seguintes

    aspectos:

    a) o crescimento da importncia de organizaes do Terceiro Setor que tm

    atuado em reas de interesse pblico e a oportunidade profissional que

    surge nesse panorama com a potencial demanda por regentes de corais.

    Organizaes No-Governamentais tm sido protagonistas no cenrio

    social ao desenvolver e financiar projetos com fins educacionais e deinsero social nas camadas da populao destitudas de assistncia no

    tocante a direitos bsicos, os quais deveriam ser garantidos pelo Estado. O

    Terceiro Setor surge como uma alternativa de preenchimento dessa lacuna e

    o regente de coro, como profissional da rea da msica desafiado a

    responder a essa demanda1potencial latente.

    b) A falta de documentao sobre esse processo de insero de corais infantis

    no contexto de atuao em projetos sociais de ONGs, bem como sobre opapel do regente dessa modalidade de coro.

    A metodologia para a execuo dessa dissertao baseia-se na pesquisa de

    campo e consta de duas etapas distintas:

    1) A pesquisa de campo realizada em trs fases: entrevista com regentes de

    coros infantis para resgatar informaes histricas e metodolgicas, alm

    de depoimentos que ajudem a compor um olhar sobre o recorte temticoque seja significativo para o desenvolvimento desta dissertao, e a

    observao in loco da atuao dos regentes nos projetos sociais

    desenvolvidos pelas ONGs, para se obter impresses e informaes

    relevantes sobre a atuao profissional e competncias demandadas; e a

    terceira etapa com a pesquisa bibliogrfica buscando-se conceituar e

    posicionar-se historicamente o canto coral infantil no Brasil, sobretudo na

    1 uma demanda potencial e latente porque as oportunidades de emprego no Terceiro Setor, segundo os especialistas, tendem acrescer nos prximos anos, num movimento natural de equiparao aos padres dos pases de economia e sociedade maisdesenvolvidos, pois a rea de educao tem sido uma das prioridades do setor no Brasil, mas que, por desconhecimento tanto porparte das ONGs, como por parte dos regentes e empresas financiadoras, permanece sub-aproveitada, sendo pouco desenvolvida,frente ao rol de possibilidades de atividades propostas pelas Organizaes do Terceiro Setor.

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    cidade de So Paulo, alm de se refletir sobre os elementos constitutivos

    do coro infantil e suas especificidades, bem como as demandas requeridas

    ao regente quando se trabalha com essa modalidade de coro, atravs do

    vis do gestor.

    2) A consolidao das informaes bibliogrficas em dilogo com os

    levantamentos obtidos na pesquisa primria composta de entrevistas e

    observao de campo.

    Esta dissertao est organizada em quatro partes: a primeira parte,

    denominada Percursos do regente de coro infantil no Brasil, refere-se, dentro da

    abordagem scio-histrica realizada sempre a partir da perspectiva do ator socialatuante no palco globala trs momentos nos quais se identifica a figura do regente,

    do coro infantil e do ator social em questo, demandante da atividade do coro

    baseado em Dupas (2005). Os perodos abordados so: O Perodo Colonial e

    Imprio, em que a figura de mestre-de-capela, regente do coral de adultos, tambm

    responsvel pelo treino e apresentao das vozes infantis masculinas nos servios

    religiosos (DUPRAT, 1985 e NETO, 2010); a Repblica Velha e Estado Novo,

    perodo em que o Canto Orfenico mobilizou multido de jovens e crianas e nasquais o professor da disciplina identificado como o regente de coro infantil (GILIOLI,

    2008; PAZ, 1989 e MONTI, 2010); e o perodo contemporneo da Nova Repblica,

    onde o fortalecimento da Sociedade Civil e a consolidao do Terceiro Setor (MELO

    NETO & FROES, 1999; ALBUQUERQUE, 2006, entre outros autores), fez surgir

    coros infantis no contexto de projetos sociais, cujo regente um profissional da

    msica que exerce funes de liderana e gesto.

    A segunda parte, Habilidades e competncias do regente de coro infantilaborda, a partir da conceituao e posicionamento do que se entende por coro

    infantil hoje (CRUZ, 1997 e VERTAMATTI, 2008) as habilidades e competncias

    requeridas ao regente no contexto de crianas atendidas por projetos sociais de

    ONGs, pelo olhar da gesto, segundo Maximiano (2004), Fleury & Fleury (2001) e

    Fucci Amato & Amato Neto (2007; 2009), alm de discutir os conceitos e

    concepes sobre a temtica das competncias e habilidades tanto na rea

    pedaggica quanto na de gesto, segundo Zabala & Arnau (2010) e Perrenoud

    (2001).

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    A terceira parte intitulada Demandas para o regente de coral infantil de

    projetos sociais segundo a tica dos prprios regentes analisa, por meio dos

    depoimentos de regentes de corais infantis de projetos sociais em So Paulo, a

    percepo do profissional envolvido nesse novo contexto, realizando um dilogo

    com os conceitos e informaes destacados nos captulos anteriores.

    Finalmente em Fechando discusses: guisa de uma concluso busca-se

    uma reflexo sobre o coro infantil e as demandas dos atores sociais em evidncia no

    palco global; o coro infantil em projetos sociais atravs da demanda dos projetos

    sociais financiados por empresas como instrumento de propaganda e marketing

    social e o perfil desejado para o regente de coro infantil de projetos sociais no

    Terceiro Setor por meio de uma anlise sobre as novas competncias e habilidadesrequeridas ao regente de coro infantil alm da competncia tcnica musical que se

    posiciona como elemento propulsor da atuao diante das demandas do mercado

    de trabalho.

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    1. PERCURSOS DO REGENTE DE CORO INFANTIL NO BRASIL

    Este captulo da dissertao tem como escopo propor uma reflexofundamental geral sobre os profissionais de msica identificados em cada um dos

    trs momentos histricos abordados responsveis, na poca, pela conduo do

    coro de vozes infantis no Brasil. Apesar de ser apresentado numa sucesso

    cronolgica dos acontecimentos, no h a pretenso de ser uma abordagem da

    histria da atividade do canto coral infantil nem de se sugerir um processo de

    evoluo histrica do ofcio de regente. Tem-se apenas a inteno de se

    apresentar aquilo que foi identificado como sendo o equivalente figura do regentedentro do que tambm foi reconhecido como coral infantil em dois significativos

    perodos histricos estudados Perodo Colonial e Estado Novo e avaliar as

    demandas do ofcio para o regente. O terceiro perodo histrico do coral infantil,

    por assim dizer e identificado como tal, refere-se atual modalidade de exerccio

    dessa atividade.

    A descrio do profissional que rege o coro infantil feita considerando-se o

    contexto histrico, social e cultural do momento da poca descrita. Paralelamente,

    observou-se nesses diferentes momentos histricos a figura da instituio, chamada

    de ator social,que cria a demanda pelo coro infantil e financia essa atividade.

    Portanto, neste captulo, far-se- uma abordagem da atuao do regente de

    coro infantil a partir do contexto histrico social e na perspectiva de demandador do

    servio e financiamento do mesmo. Apresentaremos os seguintes momentos:

    O regente no Brasil do Perodo Colonial, identificado na figura do mestre-de-

    capela, onde a Igreja Catlica o ator social que demanda a existncia de

    coros de vozes infantis masculinas. Esse modelo foi norma constante em

    todo o Brasil;

    O regente de Canto Orfenico na cidade de So Paulo, no final da Repblica

    Velha (1930) at o Estado Novo (1945) e pouco alm dele (dcada de 50),

    perodo em que o Estado, representado pela Secretaria de Educao o

    ator social demandador dos coros infantis e

    O regente de coro infantil na capital de So Paulo, demandado por

    organizaes do Terceiro Setor, onde a Sociedade Civil, atravs de ONGs e

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    empresas com fins lucrativos, estabelece a atividade de canto coral com

    crianas com objetivos sociais, notadamente a partir dos anos 90 at hoje.

    1.1 Atuao do regente de coro infantil sob a perspectiva da demanda do atorsocial em destaque

    1.1.1 O conceito de palco global e de ator social

    Ao longo da trajetria da humanidade, variados personagens atuaram no

    ambiente scio-cultural, econmico e poltico de diversas pocas, desenvolvendo, a

    partir dessas relaes interpessoais, em interao com o meio sociocultural, ao

    longo da linha do tempo aquilo que se pode chamar de processo histrico. Quando

    se diz personagensno estamos nos referindo apenas a pessoas, mas tambm a

    grupos sociais que sempre exerceram seu papel de atores sociais em um ambiente

    de interao que pode ser chamado de palco global, conforme denominao

    utilizada pelo cientista social Gilberto Dupas em sua obra Atores e poderes na nova

    ordem global: assimetrias, instabilidades e imperativos de legitimao (DUPAS,

    2005, p.26-27), que trata sobre globalizao, economia e poltica internacional,

    empregando conceito tambm utilizado pelo cientista poltico estadunidense Joseph

    Nye2.

    De acordo com essa perspectiva, instituies so identificadas como atores

    sociais num palco global: essas instituies possuem fundamento e obrigaes

    legais reconhecidos pela sociedade, apresentam regulamentos e dispositivos

    prprios para sua gesto e interagem com o governo (podendo tambm ser o

    governo) e com as comunidades em geral (empresarial, internacional, de cidados

    locais). Da mesma forma que essas instituies podem ser vistas sob o prisma deformalizao e legalidade, do outro lado, existem movimentos e instituies sociais

    informaisou que ultrapassam os limites da formalidade, por no se submeterem a

    um s comando, mas criando uma categoria social, como por exemplo a sociedade

    civilou o mercado. Do ponto de vista legal, uma instituio formal constituda

    como uma pessoa jurdicaque, mediante um contrato social pblico ganha vida e

    identidade, podendo atuar no palco social, adquirindo e exercendo direitos e

    2 Reitor da Escola Kennedy de Governo, de Harvard, ex-presidente do Conselho Nacional de Inteligncia dos EUA.Desenvolveu o conceito de soft power, no qual contrape a recente poltica norte-americana de hegemonia poltica eeconmica atravs da fora bruta e interveno militar, a qual denominou hard power.

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    contraindo obrigaes. Elas tornam-se atores sociais, pois compram, vendem,

    agem, planejam, pensam, comunicam-se com diversos pblicos, enfim, atuam no

    palco global que o espao social, poltico-econmico e cultural da sociedade,

    onde se desenvolvem os conflitos e enredos que, em interao com o meio natural e

    ao longo da linha do tempo, consolidam o processo histrico e social. O Governo

    um ator social concebido atravs de processos polticos fundamentados em pactos

    historicamente constitudos (o contrato social) gerando uma srie de outras

    organizaes-atores, como a Polcia, o Poder Judicirio, o governo Executivo, as

    empresas estatais, entre outras. Os cidados se articulam e criam suas prprias

    instituies, sob a gide legal de associaes, fundaes e cooperativas, entre

    outros, que podem ser classificados como uma categoria de atores sociais dasociedade civil. De igual modo, esses mesmos cidados se articulam em sociedades

    com fins lucrativos, formando as empresas, que so categorizadas num outro

    segmento de atores sociais denominado de mercado.

    Conforme Dupas, esses atores podem ser agrupados em trs grandes reas

    principais: rea do Capital (empresas que visam lucro); a rea da Sociedade Civil

    (indivduos e organizaes sociais no-governamentais) e a rea do Estado

    (Executivo, Legislativo, Judicirio, partidos polticos, instituies internacionais eempresas do governo). Essa diviso tripartite da sociedade, diga-se de passagem,

    recente na histria da sociedade, representa em boa parte, sob o aspecto de

    legitimidade e poder, a complexidade da sociedade atual. Ficam de fora dessa

    perspectiva conjuntural, mas no do palco global, grupos margem da lei e da

    ordem, como organizaes terroristas (que tem voz e poder) e criminosas, como

    traficantes e grupos que exercem um poder paralelo atravs de coero e violncia.

    importante perceber que na sociedade contempornea, empresas e organizaestm voz, intenes e se comunicam, enquanto atores do cenrio social.

    Ao longo da maior parte da histria, a presena da Sociedade Civil na

    formao de uma sociedade muitas vezes foi eclipsada e em outras vezes nem

    chegou a se constituir (pessoas que no fossem ligadas ao Estado nem ao poder

    econmico mercado apenas recentemente tm voz no palco global). Por outro

    lado, uma outra instituio a religiosa em alguns momentos da Histria atuou

    muito prximo do poder poltico, como nas civilizaes da Antiguidade, onde o poder

    poltico e as funes sacerdotais eram desempenhadas pelo governante mximo: o

    fara, o imperador, o rei.

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    Figura 1.1Atores Sociais no Palco Global

    De acordo com essa viso tripartite, atores sociais no palco global podem

    assumir algumas identidades, como por exemplo, uma ONG, no caso da Sociedade

    Civil, a Prefeitura, representando o Estado e, por parte do Capital, uma Empresa

    financiadora de um projeto social da ONG. No palco global, portanto, haveria pelo

    menos estes trs atores sociais, representativos de cada uma das trs partes da

    sociedade, que desenvolveriam um enredo. Podem se constituir atores sociais,

    porque so pessoas jurdicas, que possuem autonomia para comprar, vender,

    solicitar ao governo, captar recursos, fazer pronunciamentos. O palco pode ser

    reproduzido num meio de veiculao jornal, por exemplo , mas ele existe

    independente da mdia (Figura 1.1).

    No Brasil, at a proclamao da Repblica, em 1889, havia o regime do

    padroado, oriunda da tradio monrquica portuguesa, onde, por um acordo entre a

    Coroa e Roma, a Igreja Catlica mantinha ingerncia sobre diversos aspectos da

    vida pblica civil dos cidados brasileiros. Tais prerrogativas foram descartadas com

    a laicizao do Estado brasileiro, atravs do decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890,

    consagrada na Constituio Federal de 1891. Dessa forma, a Igreja Catlica pode

    ser considerada, em todo o processo histrico anterior proclamao da repblica,

    uma instituio ligada ao governo da poca (embora em alguns momentos,

    houvesse antagonismo entre as partes). Modernamente, em algumas acepes, ela

    pode ser identificada como um ator da Sociedade Civil.

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    1.1.2 O conceito de setores da sociedade: o Terceiro Setor

    Uma outra forma de categorizao dos atores sociais institucionais atravs

    do vis econmico. Essa perspectiva divide a sociedade em trs setores, a partir do

    ponto de vista de objetivos econmicos e sociais da organizao. O Primeiro Setor

    identificado como Estado instncia social que recolhe tributos e os distribui

    sociedade em geral, valendo-se de sua autoridade por meio da coero (fora da lei,

    aparato policial, rgos de fiscalizadores). O Segundo Setor representado pelas

    organizaes da iniciativa privada visam lucro e agem de acordo com a lgica de

    mercado, desenvolvendo-se de acordo com a capacidade de acumular Capital. E,

    por fim,

    [...] o Terceiro Setor composto de organizaes sem fins lucrativos, criadas e

    mantidas pela nfase na participao voluntria, num mbito no-governamental,

    dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da filantropia e do

    mecenato e expandindo o seu sentido para outros domnios, graas, sobretudo

    incorporao de cidadania e de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil

    (FERNANDES, 1995, p.25).

    O Terceiro Setor abrange o universo de entidades privadas sem fins lucrativosque realizam atividades voltadas para beneficiar a sociedade em geral, ou cumprir

    seus interesses a partir da autogesto. Sua constituio jurdica baseada no

    associativismo: associaes, institutos, fundaes e cooperativas que no visam

    lucro e tenham objetivos de atender a alguma demanda social ou defesa de direitos.

    Num sentido mais amplo, as atividades desenvolvidas pelo Terceiro Setor

    englobam no somente essas instituies sem fins lucrativos ou ONGs, mas atores

    governamentais (regulando, intermediando ou mesmo financiando as aes) e

    atores do Segundo Setor, empresas privadas que, atravs do exerccio da

    Responsabilidade Social Empresarial RSE, atuam em parceria ou desenvolvem

    atividades com fins sociais sem objetivos financeiros. Dessa forma, possvel

    afirmar que o Terceiro Setor envolve, alm das entidades caractersticas do Terceiro

    Setor (organizaes sem fins lucrativos com objetivos sociais), entidades

    governamentais (Primeiro Setor) e empresas privadas com objetivos econmicos

    (Segundo Setor), atuando principalmente como articuladores ou financiadores de

    projetos de interveno social, de carter educacional, humanitrio, cultural,

    assistencialista ou de defesa de direitos. O diagrama a seguir (figura 1.2) representa

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    Durante o perodo do Brasil Colnia, mantiveram-se as influncias musicais

    trazidas pelos portugueses. Na medida em que as vilas eram instaladas pela nova

    terra, a vida musical, essencialmente sacra, tambm se desenvolvia organizada

    pelos mestres-de-capela e organistas (KIEFER, 1997, apud LIMA, 2007).

    O mestre-de-capela era um membro leigo, autorizado por um vigrio da vara

    eclesistica e agregado aos que cuidavam dos assuntos concernentes igreja.

    [...] a prtica da msica em muitos aspectos sobrevivia justamente por ser inerente

    ao culto religioso, logo centralizando na capela musical o seu centro de gravidade.

    Nas igrejas que aqui se erigiram no decorrer dos sculos XVI e XVII, da mesma

    forma que nos conventos e nas capelas de engenhos, a msica dos mestres-de-

    capela era a garantia da legitimao e, portanto, presena sine qua non, mesmo

    em pocas remotas e de intensa retrao econmica (NETO, 2008, p.43).

    No havia um salrio fixo a ser pago pelos servios prestados, por isso,

    os mestres-de-capela buscavam formas de ampliar os ganhos e atenuar custos,

    mantendo escolas de meninos e/ou monopolizando o exerccio da msica na

    freguesia para a qual sua proviso dava jurisdio. [...] A manuteno da msica

    ficava vinculada s possibilidades da comunidade, articulada pelos vigriosatravs dos rendimentos das festas, enterros, batizados, assim como atravs de

    uma pequena colaborao da fbrica da igreja (constituda pelas esmolas e

    demais servios realizados pelos eclesisticos) ou da boa vontade de um senhor

    local (NETO, 2008, p. 44).

    A funo do mestre-de-capela era definida dentro da prtica de msica inerente

    ao culto religioso e tambm da msica (profana) para cerimoniais protocolares na

    corte e suas colnias, desenvolvendo as seguintes atividades:

    O mestre-de-capela um arrematador de servios musicais, subempreendendo

    servios prestados por msicos, cantores, ou instrumentistas, trabalhando sob sua

    orientao e compasso (regncia); eventualmente executante de instrumento

    acompanhante do coro ou do solista (frequentemente um tiple 3 ou soprano);

    proprietrio dos materiais musicais (papis de msica), adquiridos ou copiados

    pela sua prpria mo; eventualmente compositor de obras executadas na ou

    especialmente para a ocasio; integrante do coro ou cantor solista conforme a

    3Tambm chamado de soprano ou vozes agudas.

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    ocasio; no necessariamente ocupante de cargo estvel de msica em igreja,

    sempre ttulo identificado com o de regente (DUPRAT, 1985, p. 154).

    Segundo Neto (2008), o mestre-de-capela, tinha tambm a funo de prepararfuturos msicos que pudessem assumir as atividades musicais, entretanto, seu

    papel de educador no se limitava a formao de novos msicos. O mestre-de-

    capela tambm se ocupava de ensinar as letras e contas at mesmo para as

    mulheres que eram consideradas como poro excluda da sociedade.

    No sculo XV, a funo educacional cabia ao mestre-de-capela, mas as

    especificidades pedaggicas permitiram a criao da funo do mestre-escola para

    atender a diversidade das disciplinas alm da obrigatoriedade do ensino decontraponto, cantocho, gramtica e latim.

    Esse fenmeno foi fundamental para a caracterizao do mestre-de-capela como

    professor de letras, principalmente nas Colnias, onde a constituio de escolas

    era deficitria e distante, ao que parece, das preocupaes primeiras do Bispado

    da Bahia. Enfim, essas escolas institucionais vinham substituir no s uma tarefa

    secular dos msicos que, com dispndio prprio sustentavam seus alunos, mas

    tambm as escolas de ler e contar, quase inexistentes na Colnia (NETO, 2008,

    p.84-85).

    Alm das funes no mbito musical e educacional, o mestre-de-capela

    tambm ocupava uma funo administrativa e corretiva dos sacramentos por falta de

    pessoas qualificadas e formadas para isto.

    Justamente na fragilidade de convenes e nas amplas possibilidades diante da

    falta da administrao social da Coroa, o mestre-de-capela surgiu como um

    elemento-chave que ocupou espaos e, ao mesmo tempo, tornou-se agente de

    controle fundamental dos poderes estabelecidos. Encontrando-se em uma funo

    capital para o espetculo poltico, sua proviso foi entendida como articuladora

    das possibilidades crticas que poderiam consolidar as zonas de influncia e poder,

    atuando alm da capela, na administrao de Irmandades e na instruo pblica

    de ler e contar (NETO, 2008, p.62).

    Os corais eram formados por solistas, crianas (meninos) e adultos. Havia um

    contrato de trabalho para isso. No havia espao para a participao feminina.

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    1.2.1 O mestre-de-capela no perodo do Brasil-Imprio

    Quando a famlia real portuguesa chegou ao Brasil em 1808, assistiu a um Te

    Deumem ao de graas pela viagem bem sucedida que acabara de fazer. O coral

    foi formado por capeles, cantores e o Coral de Meninos do Seminrio So Joaquim,

    alm de msicos da orquestra e do organista, todos regidos pelo padre Jos

    Maurcio Nunes Garcia que, na sua infncia, fez parte do coral infantil do Seminrio

    So Joaquim (MATTOS, 1997, In: LIMA, 2008, p.30). Com a instalao da famlia

    real no Rio de Janeiro, os msicos foram transferidos para a Catedral e Capela Real,

    perodo em que houve um profcuo desenvolvimento do canto coral no pas. Porm,

    com a volta da famlia real a Portugal, em abril de 1821 e posterior Proclamao da

    Independncia do Brasil, a vida musical entra em declnio por falta de recursosfinanceiros para manuteno da orquestra que, anteriormente, chegou a ter 150

    msicos contratados alm dos cantores que vieram da Europa.

    Nessa poca, j havia a prtica de um canto coral com temas no-religiosos,

    dentro do contexto de peras e operetas. Houve, portanto, um desprendimento do

    canto coral do universo religioso, atendendo s demandas da aristocracia voltado,

    sobretudo, para o entretenimento. No entanto, o canto coral infantil como atividade

    autnoma, com a participao de meninas e meninos, no existia. O coral estavaatrelado ao servio religioso ou servia como coadjuvante em montagens opersticas.

    No entanto, esse pequeno perodo de expanso da atividade do canto coral para

    fora do contexto religioso foi interrompido com a sada da famlia real portuguesa do

    pas.

    Jos Maurcio Nunes Garcia foi um grande organista, regente, compositor e

    professor. Filho de pais descendentes de escravos e prerrogativa do mestre-de-

    capela em seu exerccio, utilizou seu grande conhecimento musical em favor decrianas e jovens menos favorecidas, ensinando msica gratuitamente em sua

    prpria residncia. Este curso preparou muitos msicos para as igrejas e atividades

    opersticas do Rio de Janeiro. Formaram-se compositores, instrumentistas, cantores,

    modinheiros, compositores e intrpretes de modinhas como o caso de Gabriel

    Fernandes da Trindade que atuava em teatros e festas particulares.

    Ocupando a cadeira de nmero 5 da Academia Brasileira de Msica, padre

    Jos Maurcio, foi o inspirador de Francisco Manuel da Silva, o criador e o primeiro

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    presidente do Imperial Conservatrio de Msica4uma escola maior e gratuita, hoje

    Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta instituio, sob

    os auspcios de Francisco Manuel da Silva, propiciou a formao musical de jovens

    menos favorecidos, criando uma estrutura que possibilitou o alcance de seus

    objetivos pedaggicos. Nesse perodo, a msica era ensinada por professores

    particulares nas casas de famlias que tinham melhores condies para propiciar

    aulas particulares a seus filhos e pela aquisio de instrumentos. Aqueles que

    possuam o domnio do conhecimento musical no faziam parte das orquestras e

    corais das igrejas, mas exerciam seus dotes musicais em recitais e concertos

    privados (LIMA, 2008).

    A msica poderia servir como uma forma de ascenso social e,consequentemente, msicos mestios fizeram uso dessa prerrogativa. No se pode

    negar que, com Jos Maurcio Nunes Garcia, h um prenncio do que seria o ensino

    de msica no Brasil: classes dominantes com poder aquisitivo e que possuam

    acesso cultura musical erudita e classes desfavorecidas sem acesso a nenhum

    tipo de conhecimento musical.

    Somente em 1843, h um fato relevante em direo recuperao do

    movimento musical no Brasil com a criao do Conservatrio5

    de Msica do Rio deJaneiro. Em 1851, meninos cantores que estudavam neste Conservatrio foram

    admitidos para a Capela Imperial que voltou ao centro do movimento musical da

    poca.

    1.2.2 Consideraes sobre o mestre-de-capela como regente de coro infantil

    Embora a formao dos corais infantis desse Perodo Colonial no tenha tido a

    participao feminina, ainda assim considera-se este perodo como importantereferncia para anlise desta pesquisa centrada no regente (mestre-de-capela) e

    suas competncias e habilidades.

    O mestre-de-capela era um membro leigo do corpo administrativo da Igreja,

    agente de controle fundamental dos poderes estabelecidos [...] atuando alm da

    4O Imperial Conservatrio de Msica foi criado em 1848. Aps a Proclamao da Repblica, em 1890, passou a denominar-seInstituto Nacional de Msica. Em 1937, Escola Nacional de Msica e em 1965, Escola de Msica da Universidade Federal doRio de Janeiro (LIMA, 2008).

    5 A palavra Conservatrio tem origem italiana e significa, asilo, orfanato e hospcio. CONSERVATRIO: () escolas demsica, de certa importncia, para o ensino gratuito ou mediante mdica retribuio, da msica, do canto, de instrumentos, dacomposio e regncia. O nome provm do primeiro estabelecimento, em 1537, pelo padre espanhol Joo de Tapia, residenteem Npoles, do Conservatrio della Madonna di Loreta, que recolhia e conservava, at a maioridade, crianas abandonadas,conseguindo grandes resultados no ensino da msica (SINZIG, 1959, In: GILIOLI, 2008, p. 57).

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    capela, na administrao de Irmandades6 e na instruo pblica de ler e contar

    (NETO, 2008, p.62).

    Para exercer as funes do mestre-de-capela, o regente dos grupos

    instrumentais e vocais do Perodo Colonial, era necessrio ter certas competncias

    que o habilitassem a assumir e desenvolver as funes: competncia intelectual e

    tcnica (conhecer a linguagem musical, liderar e ensinar os grupos instrumentais e

    vocais para o servio religioso, compor, dispor de repertrio adquirido ou copiado

    por ele mesmo e instrumentista organista, harpista etc.), administrativa/gerencial

    (na participao das Irmandades e questes relativas ao convvio da e na

    comunidade) e competncia interpessoal (participar do jogo de relaes a fim de

    conseguir e manter seu sustento financeiro), alm de conhecimentos pedaggicospara alfabetizar e ensinar a contar, sendo tambm uma forma de compor o seu

    sustento (DUPRAT, 1985 e NETO, 2008).

    Este perfil de regente existiu devido demanda de um profissional capaz de

    atender a todos os pr-requisitos. A sociedade vigente e a sua estruturao

    constituram um campo diferenciado para o surgimento de um mestre-de-capela

    imbudo de muitas competncias. Lembrando que mesmo com todas estas funes,

    muitos deles ainda desenvolviam alguma atividade paralela a fim de complementarsua renda atravs do trabalho com uma mercearia, no cultivo da lavoura, como

    vereador e outras profisses. A esse acmulo de funes e profisses, Duprat

    chama de pluralismo profissional(DUPRAT, 1985).

    1.3 O regente professor de Canto Orfenico no Brasil da Repblica Velha eEstado Novo

    O Canto Orfenico uma modalidade amadorstica do canto coral, imbudo dos

    aspectos pedaggico-musical e moral, geralmente executado a capella. O carter

    pedaggico-musical est implcito no objetivo de no formar pequenos maestros ou

    msicos profissionais, mas alfabetizar musicalmente as crianas (GILIOLI, 2008, p.41).

    6 As Irmandades eram espaos de socializao, formadas por membros leigos da sociedade. Caracterizava-se pelaorganizao de festividades e eventos catlicos, realizao de caridade e, segundo Rainer SOUSA, as irmandades atuavamcomo espao de consolidao da f catlica, ao mesmo tempo em que tambm serviam de alternativa para a resoluo ediscusso de problemas e questes que no eram diretamente controladas pelas instituies polticas oficiais. Disponvel em:http://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil/as-irmandades-leigas.htm.Acesso em 14 de maro de 2011.

    http://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil/as-irmandades-leigas.htmhttp://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil/as-irmandades-leigas.htm
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    Em pases como a Frana, os grupos de Canto Orfenico eram formados por

    operrios das fbricas ou de alunos das escolas pblicas, todos com a finalidade de

    civilizao dos costumes e se constitua tambm como um espao de lazer. No

    Brasil, os orfees eram formados por alunos do ensino fundamental ao mdio (ou

    primrio, ginsio e colegial/normal) ou por professores.

    A palavra orfeo passou a ser empregada em diversos pases, inclusive o

    Brasil, para determinar os conjuntos corais escolares, ou de associaes formadas

    por professores, militares, operrios ou amadores de msica, os quais, sem visar

    propriamente a um fim profissional de corista, interpretam de preferncia

    composies musicais acessveis em forma, gnero e contextura (BARRETO, 1938,

    p. 27. In: GILIOLI, 2008, p. 41).Para uma anlise do coral infantil no contexto do Canto Orfenico, buscou-se

    subsdios no contexto histrico do Canto Orfenico na Frana e na Espanha,

    baseados em Gilioli (2008). Estes dois pases apresentaram caractersticas que

    influenciaram diretamente a implantao e seus desdobramentos em terras

    brasileiras, principalmente no Estado de So Paulo.

    1.3.1 O Canto Orfenico na FranaEm 1810 a Frana conheceu os prenncios do Canto Orfenico7, h mais de

    um sculo antes de ser implantado no Brasil. O modelo francs foi trazido em sua

    fase de maturidade, ou seja, depois de passadas as fases de experimentao e

    implantaes parciais.

    Na Frana, medida que as atividades corais se desenvolviam, os mtodos de

    ensino tambm se multiplicavam, ganhando caractersticas pedaggicas e

    racionalizadas. Louis Bocquillon-Wilhem (msico) e Pierre Jean de Branger (poetapopular) desenvolveram os corais, Pierre Gallin8(ex-professor de matemtica), criou

    o sistema de notao musical composto de algarismos. Este mtodo foi modificado e

    amplamente difundido por seus discpulos Aim Paris, Nanine Chev e Emil Chev.

    Por isso, este sistema conhecido pela designao Mtodo Gallin-Paris-Chev ou

    7 O termo orphen surgiu apenas em 1831, segundo Gilioli (2008, p.52); como designao de um grupo de alunosselecionados que se reuniam mensalmente para cantar sem acompanhamento instrumental sob a direo de Louis Bocquillon-Wilhem. Com a constituio da sociedade coral, incentivado pelo Baro de Gerando em 1819, Wilhem foi designado para

    cuidar do ensino de canto e Branger, um poeta popular, escrevia a letra das msicas que seriam ensinadas nas escolas.8O Brasil recebeu grande influncia deste mtodo gallinista que foi trazido ao Brasil por Joo Gomes Jnior. Em 1890, MrciaBrowne trouxe para So Paulo o mtodo tonic-solfa. um mtodo semelhante ao mtodo gallinista que atravs da posiorelativa dos sons, nomeia as notas musicais por letras (dd, rr, mimetc).

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    simplesmente Chev (BEVILACQUA, 1933, In: GILIOLI, 2008, p.54). s ideias

    iniciais de Gallin, foram acrescidas as ideias de Rousseau de atribuir nmeros aos

    sons musicais e o mtodo passou a ser conhecido como Mtodo Rousseau-Gallin-

    Paris-Chev. O Brasil herdou o Canto Orfenico e o Mtodo Chev onde a notao

    se dava da seguinte forma: qualquer que fosse o tom da melodia, a escala era

    indicada por nmeros de 1 a 7 (e as pausas por zeros). Para representar uma oitava

    mais grave ou mais aguda, colocava-se um ponto abaixo ou acima do algarismo,

    respectivamente. Bemis e sustenidos eram indicados com traos que cortavam os

    nmeros em direes diferentes (GILIOLI, 2008, p. 54).

    Na Frana, o Canto Orfenico enfocava hinos e marchas no seu repertrio,

    alm de composies especficas. Gilioli acredita que isto tenha acontecido porque oConservatrio de Msica de Paris surgiu a partir de uma organizao musical militar

    e Wilhem foi aluno, professor e chegou a ocupar o cargo de diretor geral de ensino

    musical desta instituio, ou seja, estes fatos influenciaram e evidenciaram-se nas

    escolhas do repertrio para o Canto Orfenico. O pas recebeu um grande impulso

    no desenvolvimento dessa modalidade de canto em grupo deflagrada pelo

    desenvolvimento industrial no perodo de 1815 a 1830. Utilizaram o canto em grupo

    para ensinar a obedincia laboral desde a infncia (GILIOLI, 2008, p.56).Em 1833, surgiu a Lei da Instruo Primria baseada em um relatrio escrito

    por Victor Cousin que visitou a Alemanha9com a finalidade de conhecer e estudar o

    sistema de ensino musical do pas. Consequentemente, as aulas de canto foram

    institudas neste novo currculo escolar francs em decorrncia do modelo alemo

    que j contemplava o canto coletivo desde a Reforma Protestante. Este fato serviu

    para fomentar o trabalho que Wilhem j fazia com o canto atravs das sociedades

    corais.Em 1835, o Conselho Comunal de Paris votou a favor do ensino regular de

    canto nas escolas da cidade e estabeleceu a introduo imediata da disciplina em

    30 delas. A partir de ento, o ensino de canto passou a ser obrigatrio em todas as

    escolas francesas (COSME, 1957, In: GILIOLI, 2008, p. 58).

    As provas de que o Canto Orfenico j alcanava sua maioridade, se deu com

    o fato de Wilhem criar os concursos orfenicos que, posteriormente foram

    desenvolvidos em nvel nacional por Eugne Delaporte, inspirados nos grandes

    9Na Alemanha, o Canto Orfenico enquanto modalidade do canto em conjunto, foi implantada por influncia da ReformaProtestante liderada por Martinho Lutero, no sculo XVI. Para ele, o canto seria uma disciplina importante nas escolasprimrias porque a msica expulsaria do corao as preocupaes e melancolias (BRAGA, In: GILIOLI, 2008 p. 62).

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    festivais alemes do gnero. Em 1835, o canto passou a ser um curso universitrio.

    Tambm neste mesmo ano, foram criados os orfees para as classes trabalhadoras

    a fim de disciplin-los. Havia tambm vrios jornais que defendiam os interesses das

    associaes e entidades ligadas ao Canto Orfenico. O Estado francs fez uso do

    canto como instrumento poltico e propagandstico10.

    Outro aspecto que precisamos levar em considerao a ideia de que o canto

    coletivo, em grandes massas, no exige perfeio tcnica para se conseguir uma

    performance considerada aceitvel. Segundo Gilioli,

    Uma massa vocal esconde cantores no to bem adestrados. Assim, osconcursos orfenicos eram eventos propcios para estimular o canto e, comele, trazer mensagens e tentar incutir comportamentos nos seus praticantes eespectadores (2008, p.60).

    Na Frana, o Estado financiou a implantao do Canto Orfenico com

    pagamento de salrios, delegando cargos e funes, alm do apoio produo

    literria pedaggica com a publicao de mtodos e cancioneiros que seriam

    utilizados pelos grupos orfenicos.

    1.3.2 O Canto Orfenico na EspanhaOs irmos Lzaro e Fabiano Lozano trouxeram a ideia do Canto Orfenico da

    Espanha, em 1920, influenciados, especialmente pelo Orfeo Catal.

    Em 1851, Jos Anselmo Clav, trabalhando como violinista nos cafs, fundou a

    primeira associao coral de operrios denominada orfeo com o objetivo de

    salvar o operariado do vcio e da ignorncia, tirando-os da bebida e do jogo e

    despertando a sensibilidade esttica. Seu trabalho ganhou grandes propores mas

    no a fora de uma instituio. Alguns historiadores acreditam que a sua falta de

    conhecimento musical, no permitiu que os corais pudessem alcanar um bom nvel

    tcnico. Ou seja, estes orfees tinham uma caracterstica mpar: no se

    aproximavam do ensino da escrita musical erudita mas muito mais da oralidade da

    cultura popular. Isso, talvez, pela formao precria de Clav no domnio da

    partitura(GILIOLI, 2008, p. 71).

    Por outro lado, Luis Millet, em 1881, fundava o Orfeo Millet que, atravs de

    apoios institucionais e prestgio cultural, popularizou e multiplicou o nmero de

    10As apresentaes grandiosas foram intensamente impulsionadas pela Revoluo [Francesa] de 1789, deixando de sercompreendidas como excessos extravagantes para se tornarem fenmenos normais para a poca(GILIOLI, 2008, p.60) [grifonosso].

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    corais pela Espanha especialmente entre operrios e escolares de Barcelona, desta

    vez sem traos de estmulo a uma cultura oral e de tcnicas mnemnicas de

    aprendizado encontrados em Clav (GILIOLI, 2008, p. 71).

    Em 1891, surge o Orfeo Catal, de grande qualidade artstica, com cinquenta a

    sessenta componentes selecionados. Atrelados a eles, havia uma revista que fazia

    um levantamento do folclore regional chamada Revista de La Musica Catalana,

    divulgando o nacionalismo catalo, alm de festas que foram transformadas em

    concursos anuais de orfees.

    A proliferao de orfees por toda a Espanha deflagrou um problema: a falta de

    qualidade tcnico-musical. Grande parte destes orfees comearam a ser vistos

    apenas como um estgio preparatrio para ingresso num orfeo considerado de altaqualidade artstica. Havia tambm um pressuposto de civilizao dos costumes e de

    conteno social das classes trabalhadoras assim como acontecera na Frana

    (GILIOLI, 2008, p.73).

    Apesar deste trao marcante na influncia espanhola, no podemos ignorar o

    carter salvacionista de Clav de que a msica capaz de salvar das influncias

    perniciosas do vcio e do jogo; salvar de uma situao pessoal considerada ruim

    atravs do canto coletivo.Uma aspecto importante do Canto Orfenico na Espanha foi o problema da

    qualidade musical dos orfees que se popularizaram e se multiplicaram

    impulsionados pelos apoios institucionais e do prestgio cultural de Millet. Apoios

    institucionais (sociedade civil) podem ser uma alternativa para a falta de apoio do

    Estado, assim como a sua popularizao e multiplicao, mas necessrio um

    cuidado no que diz respeito qualidade musical e o aprendizado propriamente dito.

    1.3.3 O Canto Orfenico no Brasil

    O repertrio do Canto Orfenico apresenta menor dificuldade tcnica do que o

    destinado aos corais profissionais. Segundo GILIOLI (2008), vem deste fato a

    tradio de se cantar peas arranjadas ou adaptadas, sem a exigncia da tcnica

    vocal. Heitor Villa-Lobos entendia que a tcnica vocal e os procedimentos do canto

    lrico no eram compatveis com o Canto Orfenico. A utilizao do manossolfa 11foi

    11 Manossolfa uma tcnica de solfejo em que cada nota associada a um sinal feito com as mos, dividindo-se nascategorias falado (para fixar a associao das notas com os sinais especficos), entoado (em que j aplicada a entonaocorreta das notas ao associ-las aos sinais), simples (a uma voz) e desenvolvido (a duas ou mais vozes). (LISBOA, 2005, p.32).Joo Gomes Jr. foi o criador desta tcnica, influenciado pelo mtodo gallinista e tonic-solfa (GILIOLI, 2008, p. 93).

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    bastante til no ensino da diferena de altura dos sons juntamente com a

    metodologia da Melodia das Montanhas12.

    As festas escolares e um elevado nmero de comemoraes cvicas permitiam

    a regularidade e a quantidade das apresentaes, em geral, em grandes

    concentraes cvicas. A direo musical destas concentraes ficava a cargo do

    regente (no Rio de Janeiro e So Paulo foi regido por Heitor Villa-Lobos) e ao

    professor de Canto Orfenico cabia a regncia nas apresentaes internas da

    escola, assim como a preparao do repertrio para o grande coral. Os professores

    de Canto Orfenico eram legitimados apenas quando concluam seus cursos

    preparatrios no SEMA Superintendncia de Educao Musical e Artstica 13e,

    aps a sua extino, no Conservatrio Nacional de Canto Orfenico ou nosconservatrios oficiais criados em outros Estados brasileiros. Os cursos que

    deveriam fazer eram: Curso de Frias (durao de dois meses), Curso de

    Emergncia (um semestre) e o Curso de Especializao ou Seriado (trs anos). O

    diploma de Professor de Canto Orfenico era concedido apenas queles que

    terminassem o ltimo curso (MONTI, 2010).

    Um dos grandes problemas enfrentados por Villa-Lobos foi a capacitao de

    professores que poderiam assumir as aulas de Canto Orfenico. Embora houvesseuma instncia onde o professor deveria buscar sua formao especfica, no eram

    suficientes para a demanda que existia para atender todas as escolas brasileiras,

    alm de serem dificultados pela distncia e a disponibilidade de tempo para

    participarem dos cursos14.

    Algumas pesquisas tem procurado conhecer como foi o processo de

    implantao e o desenvolvimento do Canto Orfenico em alguns Estados brasileiros,

    retomados atravs de documentos da poca, como por exemplo: Oliveira (2004)com o tema O canto civilizador: msica como disciplina escolar nos ensinos

    12Melodia das Montanhas: consiste em delinear o contorno de montanhas e acidentes geogrficos sobre uma folha de papelquadriculado (milimetrado). Convenciona-se, antecipadamente, o valor e altura dos sons, de acordo com os traos horizontaise verticais. Este processo foi criado com o fim de incentivar os alunos a construrem melodias, estimulando e desenvolvendosua criatividade e visando tambm colocar em prtica os conhecimentos de teoria musical. Utilizam-se para isto desenhos,gravuras ou fotografias de montanhas, morros, etc., a serem reproduzidas, podendo ser depois harmonizadas ou no, peloprofessor, a melodia resultante (PAZ, 1988, p.63).

    13A Superintendncia de Educao Musical e Artstica (SEMA) foi criada com a finalidade de desenvolver e cultivar o ensino damsica. Esse organismo era responsvel pela superviso, orientao e implantao do programa do ensino de msicaCantoOrfenico (PAZ, 1988, p. 16).

    14O problema da capacitao de professores de Canto Orfenico foi tambm comentada por LEMOS JNIOR (2005, p. 24),confirmando que somente em 1956 foi criado o Conservatrio Estadual de Canto Orfenico do Paran [...] treze anos depoisda formao do Conservatrio Nacional, que atendia uma demanda muito grande para formar professores de Canto Orfenicopara todo Brasil.

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    primrio e normal de Minas Gerais, durante as primeiras dcadas do sculo XX;

    Lemos Jnior (2005), Canto Orfenico: uma investigao acerca do ensino de

    msica na escola secundria pblica de Curitiba; Lima Jnior (2009) com o tema

    Histria da disciplina de msica e Canto Orfenico em duas escolas secundrias

    pblicas de Londrina (1946-1971); Unglaub (2009) com o tema A prtica do Canto

    Orfenico e cerimnias cvicas na consolidao de um nacionalismo ufanista em

    terras catarinenses.

    O Canto Orfenico no foi um projeto pedaggico pioneiro, pensado, implantado

    e gerido por Heitor Villa-Lobos. Gilioli (2008, p. 6-8) afirma que muito antes de sua

    implantao no Rio de Janeiro, ento capital da Repblica, atravs do Decreto n

    19.890 de 18 de abril de 1931, o Canto Orfenico j fazia parte do rol de disciplinas dealgumas escolas nos Estados de Minas Gerais 15 e So Paulo 16 . Somente na

    Constituio de 1934, o Canto Orfenico passa a ser obrigatrio em todo territrio

    nacional.

    Joo Gomes Jnior foi apontado por muitos como o criador do Canto Orfenico

    no Brasil, mas ele prprio admitia que o Canto Orfenico j existia antes dele, com

    Elias lvares Lobo, um compositor ituano que deixou a profisso para se dedicar ao

    ensino de msica em So Paulo. Ainda antes de Elias lvares Lobo, Gilioli (2008, p.83-86) aponta algumas citaes bibliogrficas que levantam suposies sobre o

    precursor do Canto Orfenico no Brasil, no entanto, os documentos so escassos

    para confirmar a veracidade.

    Embora existam poucos elementos para definir a paternidade do Canto

    Orfenico no Brasil, constata-se que j havia a preocupao em incluir a msica e

    mais especificamente o canto coral no currculo escolar mesmo antes de definir que

    as aulas nas escolas deveriam ser ministradas na lngua materna, o portugus(GILIOLI, 2008, p.84).

    15Tambm se desenvolveram, enquanto experincias musicais, as apresentaes dos escolares nas grandes festas cvicas dacapital. Os jornais da poca traziam diferentes relatos sobre a performance musical das crianas e das alunas normalistas,principalmente aps a criao, por Joo Pinheiro, dos grupos escolares e da Escola Normal da Capital, a partir de 1906.Nessas apresentaes, destaca-se um forte apelo nacionalista, associado a canes de contedo cvico-patritico e por vezesde contedo folclrico (OLIVEIRA, 2004, p.74).

    16A oficializao da disciplina chamada Canto Orfenico em substituio disciplina Msica, em So Paulo, aconteceu em1930, ou seja, antes do Decreto de implantao no Rio de Janeiro que aconteceu em 1931 (GILIOLI, 2008). SegundoCONTIER (1998, p. 16), Fabiano Lozano apresentou Diretoria Geral do Ensino no Estado de So Paulo, um projeto sobre oensino do Canto Orfenico nas escolas, com dois objetivos fundamentais: a necessidade de despertar no aluno o sentimentoesttico; a utilizao da msica como instrumento para a formao cvica do aluno.

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    Os irmos Lzaro e Fabiano Lozano, em Piracicaba, Carlos Alberto Gomes

    Cardim, Joo Gomes Jnior, Honorato Faustino e Joo Baptista Julio, so alguns

    dos nomes que participaram da implantao do Canto Orfenico em So Paulo17.

    A influncia espanhola no pensamento de Lzaro e Fabiano Lozano foi

    bastante pontual: criao de um orfeo com vozes selecionadas e treinadas com o

    fim de alcanar qualidade na execuo da msica vocal coletiva, nos moldes do

    Orfeo Catal. No criaram vrios grupos mas investiram em um grupo formado por

    alunos e ex-alunos da Escola Normal de Piracicaba: o Orfeo Piracicabano 18em

    1914, reconhecido oficialmente em 1925.

    As crianas e jovens que tiveram acesso educao formal no incio do sculo

    XX podiam ser consideradas privilegiadas. Em especial aqueles alunos queconseguiam chegar ao ensino mdio (curso normal que corresponde ao que hoje

    conhecemos como magistrio) como por exemplo, o que ocorria na cidade de

    Piracicaba/SP, onde a escola era sinnimo de distino social, de conhecimento

    elitizado, riqueza cientfica e cultural, prerrogativa das elites que governavam a

    cidade (SIMES, 2006, p.1-2).

    Na cidade de Piracicaba-SP, os cerimoniais escolares que aconteciam desde a

    inaugurao da Escola Agrcola Prtica Luiz de Queiroz em 1901, Escola Normal,Escola Complementar e Colgio Piracicabano, foram noticiados no jornal da cidade

    com todos os detalhes da programao, nomes das autoridades presentes, os

    discursos, as msicas entoadas pelo coral dos alunos e depois os detalhes de como

    tudo transcorreu. Os jornais recebiam o patrocnio dos comerciantes e pessoas que

    tinham algum interesse na publicao da notcia.

    A reproduo dos cerimoniais escolares na imprensa da poca pode servir de

    diagnstico da dimenso que a esfera escolar tinha para essa sociedade. Se nos

    apoiamos nas reportagens jornalsticas da Repblica Velha perceberemos que a

    17O que realmente ocorreu nas dcadas de 1920 e 30 foi uma disputa de poder e de liderana no interior do movimentoorfenico. Na medida em que a Revoluo de 1930 significou uma grande derrota das elites paulistas e os mentores domovimento orfenico paulista eram por demais ligados a esse establishment poltico que havia perdido poder, a capacidade deinfluncia do grupo tambm foi praticamente dizimada. Foi nesse vcuo que, aps superar dificuldades iniciais, Villa conseguiuse estabelecer como o nome central do movimento orfenico brasileiro (GILIOLI, 2008, p.105). A participao no ensino demsica e o canto coral em So Paulo, a importncia e os feitos de cada um destes educadores citados, est detalhado napesquisa de Gilioli (2008, p. 108-116).

    18O Orfeo Piracicabano, em 1929, gravou seu primeiro LP com o Hino Nacional e outras canes folclricas a 4 vozes. EsteLP o registro mais antigo do Canto Orfenico, segundo GILIOLI (2008, p. 82). Aps a sua institucionalizao, fez concertosem Campinas e nos Teatros Municipais de So Paulo e do Rio de Janeiro. Foram bem recebidos pela crtica e pelo pblicodevido escolha de repertrio que visava, fundamentalmente, ao enaltecimento da Nao. Mrio de Andrade os chama depassarinhada do Brasil em uma crtica publicada no Dirio Nacional com muitos elogios ao coral e ao grupo de solistas doOrfeo (CONTIER, 1998, p. 13,14).

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    escola era um dos principais eixos do centro de poder e representao social

    durante esse perodo e provavelmente o principal local de encontro das elites. A

    reproduo dos cerimoniais que aconteciam nas escolas por meio da imprensa

    revela que a instituio escolar simbolizava espao de poder e prestgio social.

    Estar presente no cerimonial escolar, especialmente se na condio de

    protagonista dirigindo os trabalhos ou sendo homenageado, significava fazer parte

    da boa sociedade.(SIMES, 2006, p.4)

    O Brasil passou por muitas mudanas no cenrio poltico, desde a

    Proclamao da Repblica at a posse de Getlio Vargas como presidente. Por

    meio de um programa de governo no perodo de 1930 a 1950, o coral infantil volta a

    ser o centro das atenes. O coral infantil, antes restrito aos ambientes eclesisticose em algumas atividades opersticas, ganha os espaos de um estdio de futebol

    como o Parque Antrtica em So Paulo, associaes atlticas e teatros. Tambm

    neste perodo havia orfees de professores e de alunos do colegial (ensino

    mdio/normalistas). As grandes concentraes cvico-artsticas contavam com a

    participao de crianas, jovens e adultos (civis e militares) como exemplificado por

    Contier (1998, p. 39):

    Nesse espetculo deveriam participar conjuntos corais constitudos por 25.000

    policiais militares, 10.000 estudantes ginasianos, 6.000 da E. S. do DEM, 9.000

    soldados do exrcito, 6.000 operrios, 2.000 marinheiros, 2.000 msicos de banda,

    2.000 policiais e 2.000 escoteiros, totalizando uma massa coral de 64.000 vozes,

    acrescida dos roncos de 100 avies (PAZ, 1998, p.54).

    Ermelinda Paz afirma ainda que, para Villa-Lobos conseguir reunir trinta,

    quarenta, at cinquenta mil pessoas num grande coral, os professores de Canto

    Orfenico deveriam ensinar a disciplina19para conseguir manter crianas e jovens

    em seus lugares e prontos para cantarem. Existem documentos20com o registro de

    19A palavra disciplina deve ser entendida aqui como respeito e obedincia a regras, mtodos, autoridade superior(DicionrioDigital Aulete).

    20 Ermelinda Paz anexa os documentos referentes a um destes eventos para demonstrar a grandiosidade e os detalhespertinentes aos preparativos da solenidade: a Hora da Independncia que aconteceu em 7 de setembro de 1940. Constam doanexo, os seguintes documentos: Comisso Central da Secretaria Geral de Educao e Cultura (relao de nomes e cargos);Instrues gerais para a Solenidade da Hora da Independncia (local, horrio, acesso e procedimentos); Comissesespeciais organizadas pelo Departamento de Educao Nacionalista (nomes e funes especficas para o andamento dasolenidade); Edital endereo aos Diretores de Departamento e do Instituto de Educao; Instrues especiais do Servio de

    Educao Fsica (procedimentos gerais e relao de convocados); Instrues especiais emanadas do servio de educaofsica (organizao dos ensaios extras anteriores apresentao, com datas, horrios, locais e a escolas que iriam participar);Escolas que tomaro parte na concentrao cvico-orfenica do Dia da Ptria (Hora da Independncia) a realizar-se no dia 7de setembro de 1940, com o respectivo nmero de alunos, discriminados por grupos (quantidade de alunos por naipes); Editaisn 6 (uniforme); n7 (convocao para contribuir no brilhantismo do evento); n 8 (dirigido aos pais com solicitao de apoio no

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    cada procedimento e os setores da sociedade envolvidos no planejamento e na

    execuo de um destes grandes encontros.

    Alm de policiais, nibus, professores de educao fsica que auxiliavam no

    posicionamento das crianas, havia tambm a participao de msicos populares

    muitas vezes convidados para serem solistas nos eventos. Isto se deve ao fato de

    que Villa-Lobos teria grande admirao e respeito pelos artistas populares

    (intrpretes e compositores) e por isso a sua incluso na programao do dia (PAZ,

    1998, p.46-47).

    Embora Villa-Lobos no o tenha criado, ele contribuiu para a divulgao

    nacional e internacional do movimento orfenico que j existia no Brasil. No perodo

    de 1930, 40 e 50, o Canto Orfenico experimentou o seu auge atravs de grandesconcentraes corais em estdios de futebol, como o Pacaembu, em So Paulo. O

    problema da capacitao dos professores que trabalharam nesse projeto j havia

    sido detectado desde a sua implantao, no perodo de 1910 a 1930. Mesmo com a

    criao dos conservatrios oficiais em alguns Estados brasileiros, estes no foram

    suficientes para atender demanda de professores a serem capacitados.

    Heitor Villa-Lobos foi um dos principais compositores e arranjadores de peas

    para coro infantil (notadamente em sua modalidade de Canto Orfenico) desseperodo. Desenvolveu grande repertrio nacionalista, trazendo ao pblico produes

    inspiradas ou transcritas da cultura popular brasileira alm de transformar para coral

    peas do repertrio instrumental erudito. Foi o incio de uma popularizao do

    repertrio, a servio da poltica nacionalista de Getlio Vargas, exercido nos circuitos

    educacionais infantis do pas.

    Com o fim da era Vargas, o canto coral escolar promovido, gerido e financiado

    pelo Estado entra em declnio. Em 1971, a msica como disciplina foi absorvida pelaEducao Artstica, como determinao da nova Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao (Lei 5692/71) e passa a abranger msica, artes plsticas, teatro e dana.

    Segundo Gilioli (2008, p.24), isso definiu a extino da msica enquanto disciplina

    no sistema escolar brasileiro.

    comparecimento dos filhos e a presena deles na solenidade); Edital n 46 (solicita o apoio para facilitar o preparo dosprofessores de msica do Departamento de Educao Nacionalista para o evento); Edital n 44 (instruo de uso da verba daCaixa Escolar para aquisio de uniformes para os alunos mais necessitados, devendo enviar relao de beneficiados);Conduo (instrues para chegada a p, de carro ou de bonde); Policiamento (instrues de fechamento de ruas prximas aolocal do evento e local de estacionamento dos nibus e bondes); Relao de escolas na ordem de sada do estdio; Relaode escolas que devero ser transportadas em nibus e Relao de escolas e bandas de msica que devero sertransportadas em especiais da Light(PAZ, 1998, p.116-155).

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    Analisando as funes e cargos ocupados por Villa-Lobos durante o perodo

    em que esteve frente do Canto Orfenico no Brasil, observamos a atuao

    produtiva de um grande compositor, maestro, professor, administrador no SEMA

    (Secretaria de Educao Musical e Artstica) e depois no Conservatrio Nacional de

    Canto Orfenico e um interlocutor com o governo de Getlio Vargas. De posse

    desses ttulos, organizou grandes concentraes cvico-artsticas que tiveram incio

    em 1931 em So Paulo e medida que faziam sucesso, aumentava o nmero de

    integrantes, tornando a festividade de maior pompa. Um instrumento de marketing

    pessoal e institucional, dentro e fora do Brasil (CONTIER, 1998, p. 19-22).

    Gilioli (2008, p. 163-211) fez uma anlise do acervo fonogrfico disponvel na

    Biblioteca Nacional com gravaes de orfees artsticos a partir de 1929. Sogravaes do Orfeo Piracicabano de Fabiano Lozano e os orfees de professores

    de Canto Orfenico e orfees de escolas, regidas pelo prprio Villa-Lobos ou pelos

    professores de Canto Orfenico. Ele ressalta que a falta de tcnica vocal dos

    coralistas percebida nas gravaes atravs da afinao do repertrio, seja na

    manuteno da tonalidade no decorrer da msica ou na diferena da tonalidade

    cantada em relao partitura.

    1.3.4 Consideraes sobre o professor de Canto Orfenico no Brasil

    Quando nos reportamos ao tema central desse trabalho, ficam as questes

    sobre as competncias e habilidades de Villa-Lobos para exercer a liderana de um

    grande movimento coral em nvel nacional. Ser que as competncias e habilidades

    referentes sua atuao s se tornaram conhecidas com o fim de favorecer os

    ideais do governo?Alm de Villa-Lobos como gestor deste movimento, no podemos ignorar os

    professores que atuavam diretamente com crianas e jovens na implantao do

    Canto Orfenico. Ser que as competncias tcnicas resumiam-se aos seus

    conhecimentos musicais? Quais as outras competncias exigidas para o exerccio

    da profisso?

    Nem todas as questes sero respondidas, pois no h documentos que

    comprovem as exigncias para o exerccio da profisso de professor de Canto

    Orfenico e nem a observao in locopara comprovarmos a veracidade dos dados

    coletados.

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    De qualquer forma, esse perodo em que o Estado, atravs do Ministrio da

    Educao e Cultura, instituiu o Canto Orfenico como atividade obrigatria a todos

    os alunos da rede de ensino, confirma, novamente, o protagonismo de um ator

    social na gerao da demanda por coros infantis. A atividade de coro infantil

    continuou, com alguma diferenciao, a ser em certo nvel, requerida pela igreja,

    atravs da demanda de vozes infantis para os servios religiosos. No entanto, outro

    ator do palco global o Estado um dos trs componentes da sociedade sob a

    perspectiva tripartite da sociedade, desencadeou toda uma demanda de coros e

    professores regentes sob a gide do Canto Orfenico, modalidade de canto a

    capella surgida com contornos ideolgicos e polticos na Frana e na Espanha,

    importada para o Brasil, onde ganhou o seu auge a servio do Estado Novo.Novamente, a demanda requerida ao regente de coro infantil o professor de Canto

    Orfenico moldada a partir das diretrizes do financiadordo projeto. De certa

    forma, o Canto Orfenico serviu como plataforma de propaganda poltica do governo

    e difuso de sua ideologia, pois ao analisar o repertrio utilizado na poca do

    governo Vargas (1937-1945), auge do perodo da atividade orfenica, encontramos

    ttulos de obras nacionalistas e ufanistas como: Brasil Unido, Regosijo de uma

    raa (sic), Brasil Novo, Desfile aos heris do Brasil, Tiradentes, Verde Ptria,Cano do Operrio Brasileiro, Saudao a Getlio Vargas21. oportuno lembrar

    que Getlio Vargas, nessa poca, flertava com os governos nacionalistas europeus,

    como a Alemanha de Hitler e a Itlia de Mussolini, que exaltavam o nacionalismo e

    tratavam com ufanismo a classe trabalhadora, alm do culto da personalidade do

    dirigente do pas, associando o Estado figura do governante, por meio de

    mecanismos hoje reconhecidos como sendo de propaganda poltica explcita.

    Nesse perodo de domnio dessa modalidade de canto coral infantil houve aproduo, distribuio e uso, financiado pelo Estado, de partituras impressas usadas

    nas aulas de Canto Orfenico. Ao professor de Canto Orfenico, nem sempre

    devidamente capacitado para o ofcio, cabia treinar o repertrio para as

    apresentaes previamente institudas por instncias superiores. O que hoje seria

    consenso ser classificado como ensaio do coroeram na verdade, o desenvolver da

    aula de Canto Orfenico, disciplina onde se aprendia o repertrio e se treinava

    para essas apresentaes de cunho cvico-patritico, mas com carter de

    21VILLA-LOBOS, Heitor. Canto Orfenico. Marchas, canes e cantos marciais para Educao Consciente da Unidade deMovimento. 1 vol. So Paulo, Irmos Vitale Editores, 1940.

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    propaganda ideolgica para a manuteno do status quopoltico. O Estado usou a

    mquina estatal composta pelas escolas e professores, para transmitir sua influncia

    e impor seu domnio ideolgico populao (alunos, pais e comunidades em geral)

    utilizando-se da msicao Canto Orfenicocomo um dos instrumentos.

    1.4 O regente de coro infantil no contexto de fortalecimento da sociedade civilno perodo da Nova Repblica

    Na dcada de 1980, em meio a crises econmicas e altos ndices inflacionrios,

    uma boa parte dos pases latino-americanos, aps um perodo de ditadura militar,

    comeou a se envolver na busca do restabelecimento da democracia. Juntamente

    com o processo de abertura poltica os governos passaram a adotar uma poltica

    neoliberal de desenvolvimento, o que agravou a situao de pobreza nos pases do

    Terceiro Mundo. Houve tambm um crescimento do setor informal da economia e

    com isso aumentou o descrdito do Banco Mundial e das instituies internacionais

    quanto ao destino dado pelos rgos governamentais aos recursos alocados em

    programas de desenvolvimento social afirma o cientista social Antonio Carlos de

    Albuquerque, em sua obra Terceiro Setor: Histria e Gesto de organizaes

    (ALBUQUERQUE, 2006, p.23). No Brasil, essa nova fase de abertura poltica e

    redemocratizao comea em 1985, com o trmino da ditadura militar e a eleio

    ainda que de forma indireta do primeiro presidente civil aps 20 anos de

    hegemonia poltica das Foras Armadas no governo.

    Juntamente com o processo de abertura poltica, a sociedade civil,

    forosamente diminuda de sua autonomia nas duas ltimas dcadas anteriores

    comea a se reorganizar e a participar novamente no somente do processo polticodo pas, mas tambm no protagonismo em algumas reas outrora obscurecidas pela

    ao paternalista do governo. o perodo de surgimento e desenvolvimento de um

    contemporneo Terceiro Setor no Brasil, a partir da consolidao de Organizaes

    No-Governamentais atuantes nas reas de educao e assistncia social e da

    participao das empresas (Segundo Setor) devido divulgao e incorporao do

    conceito de Cidadania Empresarial, mais tarde evoluda para a forma de

    Responsabilidade Social Empresarial. Melo Neto & Froes, em sua obraResponsabilidade Social & Cidadania Empresarial, define o primeiro conceito:

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    A cidadania empresarial um novo conceito decorrente de um movimento social

    internalizado por diversas empresas e que tem por objetivo conferir uma nova

    imagem empresarial quelas empresas que se convertem em tradicionais

    investidoras de projetos sociais e com isso conseguem obter seus diferenciais

    competitivos (p.98).

    Segundo definio existente no site institucional do Instituto Ethos22:

    Responsabilidade social empresarial a forma de gesto que se define pela

    relao tica e transparente da empresa com todos os pblicos com os quais ela

    se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o

    desenvolvimento sustentvel da sociedade, preservando recursos ambientais e

    culturais para as geraes futuras, respeitando a diversidade e promovendo a

    reduo das desigualdades sociais.23

    Durante os anos de ditadura militar, temas como pobreza, participao

    popular e desenvolvimento social eram encarados pelo governo como provocao

    ao regime, por isso tanto organizaes da sociedade civil, como as empresas em

    geral, eram discretas em tratar desses assuntos. A abertura poltica devolveu

    sociedade a responsabilidade de se envolver nessas temticas. Segundo o estudoGlobal Civil Society Dimensions of the nonprofit sector, citada por Antonio Carlos

    de Albuquerque (2006, p.23), os desafios para as organizaes do Terceiro Setor

    para o incio do sculo XXI na Amrica Latina seriam: torn-lo uma realidade, uma

    vez que era necessrio consolidar sua existncia enquanto ator social efetivo; treinar

    e capacitar os profissionais e voluntrios atuantes nas organizaes; formar

    parcerias com o governo e o setor privado. Isso tem efetivamente acontecido no que

    se refere ao crescente nmero de projetos de interveno social liderados pelasONGs e financiadas tanto pelo governo quanto pela iniciativa privada, evidenciando

    uma forte caracterstica do Terceiro Setor brasileiro que a presena dos trs

    setores da economia na sustentao das suas atividades. Dessa forma, em sua

    22O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social uma organiz ao sem fins lucrativos, cuja misso mobilizar,sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negcios de forma socialmente responsvel, tornando-as parceiras naconstruo de uma sociedade justa e sustentvel. Foi criado em 1998 por um grupo de empresrios e executivos oriundos dainiciativa privada, sendo um plo de organizao de conhecimento, troca de experincias e desenvolvimento de ferramentas paraauxiliar as empresas a analisar suas prticas de gesto e aprofundar seu compromisso com a responsabilidade social e odesenvolvimento sustentvel. As empresas associadas correspondem a 35% do PIB do Brasil, denotando o envolvimento dasempresas 2 setor na temtica de Responsabilidade Social Empresarial. O Instituto Ethos tambm uma referncia

    internacional nesses assuntos, desenvolvendo projetos em parceria com diversas entidades no mundo todo. Texto disponvel emhttp://www1.ethos.org.br/EthosWeb/pt/31/o_instituto_ethos/o_instituto_ethos.aspx . Acesso em 10 de fevereiro de 2011.

    23Definio extrada do site do Instituto Ethos, disponvel em: http://www1.ethos.org.br/EthosWeb/pt/29/o_que_e_rse/o_que_e_rse.aspx. Acesso em 10 de fevereiro de 2011.

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    definio mais ampla, a Sociedade Civil englobaria tambm as empresas, as quais,

    apesar de na viso tripartite da sociedade serem consideradas como sendo da rea

    do capital, segundo a tica da Responsabilidade Social Empresarial, elas fazem

    parte de uma comunidade cidad organizada, composta por pessoas e instituies.

    Na dcada de 1990, o Brasil v surgir associaes como a ABONG

    Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais (1991), alm de

    diversos outros movimentos sociais, empreendimentos sem fins lucrativos e

    fundaes empresariais. H tambm uma profuso de trabalhos acadmicos e livros

    versando sobre o assunto, indicando o crescimento e desenvolvimento do Terceiro

    Setor no Brasil. Um estudo realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica

    Aplicada) mostrou que 67% das empresas na regio Sudeste realizam algum tipo deao em benefcio das comunidades (ALBUQUERQUE, 2006, p. 33-35), denotando

    a rpida assimilao dessa nova dimenso de atuao desses atores sociais no

    palco global.

    1.4.1 Corais infantis demandados por segmentos da Sociedade Civil fora do

    ambiente eclesistico e escolar

    nesse novo momento histrico e poltico que ressurge a Sociedade Civilcomo protagonista no palco global segmento canto coral infantil representada

    por atores das mais variadas organizaes sem fins lucrativos, financiadas por

    entidades do Segundo Setor (o Capital) e tambm pelo Estado.

    No tocante ao coro infantil, com o fim do Canto Orfenico, a atividade de canto

    coral no Brasil se diversificou e passou a fazer parte de programas desenvolvidos

    em clubes, escolas, centros culturais, teatros, igrejas, universidades e escolas de

    msica, alm de ajuntamentos motivados somente pelo prazer de cantar e dedesenvolver repertrio especfico para o canto coral. Essa foi uma manifestao de

    certa forma esperada, dado o clima de abertura poltica que propiciou a participao

    da sociedade em reas at ento monopolizadas pelo governo.

    Desde esse perodo de redemocratizao permaneceram em atividade, ainda

    que de forma dispersa, resistente e isolada, alguns pequenos grupos de canto coral

    infantil nas escolas, tanto privadas, quanto pblicas, desobrigadas, no entanto, de

    seguir determinaes impostas pelo governo, no que se refere manuteno dos

    corais infantis (Canto Orfenico). A atividade do canto coral infantil no Brasil, deixou

    de ter no Estado a figura de seu principal demandador e financiador, principalmente

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    porque o governo atribuiu o ensino da msica a um hipottico polivalente professor

    de Educao Artstica, versado em Artes Plsticas, Msica e Artes Cnicas. Tal

    exigncia jamais pde ser cumprida a contento, pois essa formao genrica em

    trs reas complexas desestimulou a formao de um educador musical competente.

    As regies Sul, Sudeste e o Nordeste do Brasil so plos de um movimento de

    corais infantis estabelecidos h algumas dcadas. Em outras regies brasileiras, h

    notcias de algumas iniciativas no menos importantes nem de menor qualidade

    tcnica, impulsionadas por uma tradio do canto coletivo.

    Os corais formados por adultos tomam configuraes diferenciadas como:

    corais de colaboradores de uma empresa (a atividade fazendo parte, por exemplo,

    de programas de Qualidade Total de empresas estatais ou privadas24), corais emuniversidades, hospitais, clubes, corais amadores formados por pessoas que gostam

    de cantar e queriam desenvolver um determinado estilo de repertrio, corais para

    terceira idade, corais profissionais, enfim, tipos e finalidades bastante diferentes de

    grupos, tendo em comum, no entanto, a vontade de cantar em grupo. Esse

    movimento de canto coral surge de iniciativas da Sociedade Civil, tanto pelo brao

    de ONGs, quanto de Associaes e empresas preocupadas em desenvolver

    programas e projetos de Responsabilidade Social Empresarial, nas modalidades deendomarketing(aes de marketing interno, objetivando o cuidado da empresa para

    com seus funcionrios), quanto de incentivo cultura e educao, alm do enfoque

    de realizao de projetos de assistncia e incluso social.

    1.4.2 Painis Funarte de Regncia Coral: participao diferenciada do Estado

    A documentao escrita formal e sistematizada sobre este perodo da histria

    recent