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O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 1
O REI EM AMARELO – O Reparador de Reputações
Escrito por: ROBERT W. CHAMBERS
Tradução: Sarkhano Mallamuerte
Edição: F.R.A
Data da publicação original: 1895.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 2
Sumário INTROITO ................................................................................................................... 4
I ..................................................................................................................................... 5
II ................................................................................................................................. 13
III ................................................................................................................................ 27
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 3
O REI EM AMARELO
É DEDICADO
AO
MEU IRMÃO.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 4
INTROITO
Ao longo da costa quebram ondas nebulosas,
Os sóis gêmeos mergulham sob o lago
As sombras se alongam
Em Carcosa.
Estranha é a noite onde se erguem negras estrelas
E luas alienígenas circulam os céus
Mas ainda mais estranha é a
Perdida Carcosa.
Canções que as Híades entoarão,
Onde tremulam os farrapos do Rei,
Devem morrer inauditas na
Obscura Carcosa.
Canção de minha alma, falece a minha voz;
Morre Tu também, muda, como lágrimas jamais vertidas
Secarão e morrerão na
Perdida Carcosa.
Canção de Cassilda no “Rei em Amarelo“, Ato I, Cena 2.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 5
I
"Ne raillons pas les fous; leur folie dure plus longtemps que
la nôtre....(Não zombemos dos loucos; sua folia apenas dura mais que a
nossa....) Voila toute la différence." (Aí está a única diferença.)
Em direção ao fim do ano de 1920, o Governo dos Estados Unidos
praticamente completara seu programa, adotado durante os últimos meses do
governo do Presidente Winthrop. O país estava aparentemente tranquilo.
Todos sabem como as questões Tributárias e Trabalhistas foram resolvidas. A
guerra com a Alemanha, incidente no qual aquele país tomou as Ilhas Samoa,
não deixou cicatrizes visíveis sobre a república e a ocupação temporária de
Norfolk pelo exército invasor fora esquecida na emoção das repetidas vitórias
navais, e a subsequente situação ridícula em que se encontraram as forças do
General Gartenlaube no Estado de Nova Jérsei. Os investimentos cubanos e
havaianos renderam cem por cento e o território de Samoa valia bem mais que
seu custo como uma mina de carvão. A defesa do país estava em um estado
soberbo. Todas as cidades costeiras estavam bem supridas de fortificações em
terra; o exército sob o olhar paternal do General Staff, organizado de acordo
com o sistema prussiano, fora incrementado a até 300.000 homens, com uma
reserva territorial de um milhão deles; e seis magníficos esquadrões de
cruzeiros e navios de guerra patrulhavam as seis estações dos mares
navegáveis, deixando uma ampla reserva de vapores preparada para controlar
as águas territoriais. Os cavalheiros do Ocidente foram forçados a reconhecer
que um colégio para o treinamento de diplomatas era tão necessário quanto as
escolas de direito são para os advogados; consequentemente nós não
poderíamos mais ser representados no exterior por patriotas incompetentes. A
nação era próspera; Chicago, paralizada por um momento após um segundo
grande incêndio, reerguera-se de suas ruínas, alva e imperial, e mais bela que
a cidade branca que fora construída para sua diversão em 1893. Em todo
lugar, a boa arquitetura substituía a má, e até mesmo em Nova Iorque, um
súbito desejo por decência varreram uma grande porção dos horrores lá
existentes. Ruas foram alargadas, apropriadamente pavimentadas e
iluminadas, árvores foram plantadas, calçadas assentadas, estruturas elevadas
demolidas e rodovias subterrâneas construídas em seu lugar. Os prédios
públicos e os quartéis eram ótimas peças de arquitetura e o longo sistema de
cais de pedra que rodeavam completamente a ilha foram transformados em
parques que se provaram providenciais para a população. Os subsídios aos
teatro e ópera estatais trouxeram sua própria recompensa. A Academia
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Nacional de Design dos Estados Unidos era muito semelhante às instituições
européias do mesmo tipo. Ninguém invejava o Secretário de Belas Artes, seja
por sua posição de gabinete, seja por seu portfólio. O Secretário Florestal e da
Preservação da Caça tinha uma vida muito mais fácil, em virtude do novo
sistema da Polícia Montada Nacional. Havíamos lucrado muito com os últimos
tratados com França e Inglaterra; a exclusão dos judeus estrangeiros, como
uma medida de autopreservação, o assentamento do novo estado negro
independente de Suanee, o impedimento da imigração, as novas leis referentes
à naturalização, e a gradual centralização do poder no Executivo, tudo isso
contribuiu para a calma e prosperidade da nação. Quando o Governo resolveu
o problema indígena e esquadrões de sentinelas montados em trajes nativos
foram substituídos por organizações lamentáveis, postas ao cabo de
regimentos esqueléticos pelo Secretário de Guerra anterior, a nação soltou um
longo suspiro de alívio. Quando, após o colossal Congresso das Religiões, o
fanatismo e a intolerância foram sepultadas em seus túmulos e a bondade e a
caridade começaram a unir sectos que antes guerreavam, muitos acreditaram
que o milênio havia chegado, pelo menos no novo mundo que, no final das
contas, é um mundo em si mesmo.
Mas a autopreservação é a primeira lei, e os Estados Unidos tinham que olhar
adiante com pesar, enquanto a Alemanha, Itália, Espanha e Bélgica se
contorciam à beira da Anarquia, e a Rússia, observando do Cáucaso,
pisoteava-as e amarrava-as uma a uma.
Na cidade de Nova Iorque, o verão de 1899 foi sinalizado pelo
desmantelamento das Rodovias Elevadas. O verão de 1900 viverá nas
memórias dos novaiorquinos por muitos ciclos; a Estátua Dodge foi removida
naquele ano. No inverno seguinte começou a agitação pela revogação das leis
proibindo o suicídio, o que deu seu último fruto no mês de Abril de 1920, com a
primeira Câmara Letal Governamental aberta na Praça de Washington.
Eu havia descido naquela dia da casa do Dr. Archer pela Avenida Madison,
local em que havia estado por mera formalidade. Desde minha queda de
cavalo, quatro anos antes, às vezes era atormentado por dores na nuca e
pescoço, mas agora elas estavam ausentes há meses e o doutor despediu-se
aquele dia, dizendo que nada mais havia para curar em mim. Ter-me dito
aquilo dificilmente valia sua consulta ter-me; pois disso eu já sabia. Ainda
assim, não lhe regateei o dinheiro. O que me incomodava era o erro que ele
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havia cometido outrora. Quando eles me levantaram do pavimento onde jazia
inconsciente e alguém misericordiosamente atravessou uma bala na cabeça de
meu cavalo, fui levado até o Dr. Archer, e ele, declarando que meu cérebro fora
afetado, colocou-me em seu sanatório privado, onde fui obrigado a suportar
tratamento para insanidade. Até que enfim ele decidiu que estava bem, e eu,
sabedor que minha mente estava tão lúcida quanto a dele, se não ainda mais
lúcida, "paguei minha tutela" como ele a chamou jocosamente, e fui solto.
Disse-lhe, sorrindo, que um ficaríamos quites pelo erro dele, e ele riu
vigorosamente, dizendo-me para visitá-lo de quando em vez. E isso eu fiz,
esperando por uma chance de acertar as contas, mas ele não me deu
oportunidade, e então disse-lhe que aguardaria.
Felizmente, a queda de meu cavalo não deixou sequelas; pelo contrário,
mudou completamente minha personalidade para melhor. De um jovem e
preguiçoso bon vivant, tornei-me ativo, energético, temperado e acima de tudo
-- oh! mais que qualquer coisa -- ambicioso. Havia apenas uma coisa que me
perturbava, e eu ria de minha inquietação, e no entanto, ela me preocupava.
Durante minha convalescença comprara e li pela primeira vez, O Rei Em
Amarelo_. Lembro-me que depois de terminar o primeiro ato, ocorreu-me que
seria melhor parar. Levantei-me de repente e atirei o livro a lareira; o volume
bateu no engradado e caiu aberto nas chamas, ao clarão do fogo. Se não
tivesse vislumbrado as primeiras palavras do segundo ato, jamais o teria
terminado, mas quando caminhei para pegá-lo, meus olhos fixaram-se na
página aberta e com um grito de horror, ou talvez fosse um gozo tão agudo que
sofri em todos os nervos, que apanhei a coisa dos carvões e rastejei tremendo
até meu quarto, onde li e reli, chorei e ri e tremi com o horror que ainda alguma
vez me assalta. E é isso que me atormenta, porque não consigo esquecer
Carcosa em cujos céus penduram-se negras estrelas; onde as sombras dos
pensamentos dos homens alongam-se no entardecer, quando os sóis gêmeos
mergulham no lago de Hali; e minha mente ostentará eternamente a memória
da Máscara Lívida. Rezo para que Deus amaldiçoe o escritor, assim como o
escritor amaldiçoou o mundo com sua bela, estupenda criação, terrível em sua
simplicidade, irresistível em sua verdade - um mundo que agora treme perante
o Rei em Amarelo. Quando o governo francês confiscou as cópias traduzidas
que acabaram de chegar em Paria, Londres, é claro, impacientou-se para lê-lo.
É cediço que o livro espalhou-se como uma doença infecciosa, de cidade em
cidade, continente em continente, barrado aqui, confiscado acolá, denunciado
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pela Imprensa e pelo púlpito, censurado até mesmo pelos mais modernos dos
anarquistas literários. Nenhum princípio definido fora violado naquelas páginas
perversas, nenhuma doutrina promulgada, nenhuma convicção ultrajada. Não
podia ser julgado por nenhum paradigma conhecido, e no entanto, apesar de
ser reconhecido que uma nota suprema da arte havia sido tocada no Rei em
Amarelo, todos sentiam que a natureza humana não podia suportar a pressão,
nem sobreviver a palavras na qual a essência do mais puro veneno se
emboscava. A própria banalidade e inocência do primeiro ato somente
tornavam mais terrível o efeito do golpe que viria adiante.
Era, lembro-me, o décimo terceiro dia do mês de abril, 1920, a primeira
Câmara Letal Governamental foi estabelecida no lado sul da Praça
Washington, entre a Rua Wooster e a Quinta Avenida Sul. O quarteirão que
anteriormente consistia de vários prédios velhos e maltrapilhos, usados como
cafés e restaurantes por estrangeiros, fora adquirido pelo Governo no inverno
de 1898. Os cafés franceses e italianos vieram abaixo; o quarteirão inteiro foi
cercado por grades douradas e convertido em um jardim adorável com
gramados, flores e fontes. No centro do jardim estava um pequeno prédio
branco, de arquitetura severamente clássica, e rodeados por um matagal de
flores. Seis colunas jônicas suportavam o teto e a porta solitária era de bronze.
Um grupo esplêndido de mármore das "Moiras" postava-se em frente à porta,
trabalho de um jovem escultor americano, Boris Yvain, que morrera em Paris
com apenas vinte e três anos de idade.
As cerimônias de inauguração estavam acontecendo quando cruzei a
Universidade e adentrei a Praça. Percorri meu caminho através da multidão
silente de espectadores, mas parei na Rua Quarta em frente a um cordão
policial. Um regimento de lanceiros dos Estados Unidos ajuntaram-se em uma
praça vazia ao redor da Câmara Letal. Em uma tribuna elevada confrontando o
Parque Washington estava o Governador de Nova Iorque, e atrás dele estavam
agrupados o Prefeito de Nova Iorque e do Brooklyn, o Inspetor-Geral de
Polícia, o Comandante das tropas estaduais, Coronel Livingston, ajudante
militar do Presidente dos Estados Unidos, General Blount, comandando na Ilha
do Governador, Major-General Hamilton, comandando a guarnição de Nova
Iorque e Brooklyn, Almirante Buffby da frota no Rio do Norte, Cirurgião-Geral
Lanceford, o quadro de pessoal do Hospital Público Nacional, Senadores Wyse
e Franklyn de Nova Iorque, e o Comissário da Administração Pública. A tribuna
estava rodeada por um esquadrão de hussardos da Guarda Nacional.
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O Governador terminava sua réplica ao breve discurso do Cirurgião-Geral.
Ouvi-o dizer: "As leis proibindo o suicídio e dispensando punição por qualquer
tentativa de auto-destruição foram revogadas. O Governo achou apropriado
reconhecer o direito do homem de por fim a uma existência que possa ter-se-
lhe tornado intolerável, através do sofrimento físico ou desespero mental.
Acredita-se que a comunidade será beneficiada pela remoção de tais pessoas
de seu meio. Desde a aprovação desta lei, o número de suicídios nos Estados
Unidos não aumentou. Agora que o Governo determinou-se a instalar a
Câmara Letal em cada município, cidade e vilarejo do país, ainda resta a ser
visto se aquela classe de criaturas humanas de cujas fileiras despondentes
novas vítimas da auto-destruição caem diariamente aceitarão ou não o alívio
assim providenciado." Ele pausou, e virou-se para a alva Câmara Letal. O
silêncio na rua era absoluto. "Uma morte sem dor espera aquele que não pode
mais suportar os sofrimentos desta vida. Se a morte é benvinda, deixe-o
procurá-la ali." Então voltando-se rapidamente para o auxílio militar da comitiva
do Presidente, disse, "Declaro a Câmara Letal aberta," e novamente dirigindo-
se para a vasta multidão, gritou em uma voz clara: "Cidadãos de Nova Iorque e
dos Estados Unidos da América, em nome do Governo declaro que a Câmara
Letal está aberta."
A quietude solene foi quebrada pelo grito agudo de comando, e o esquadrão de
hussardos enfileiraram-se atrás da carruagem do Governador, os lanceiros
movimentaram-se em formação ao longo da Quinta Avenida aguardando o
comandante da guarnição, e a polícia montada os seguiu. Deixei a multidão
para fitar boquiaberto a Câmara Letal de mármore branco, e cruzando a Quinta
Avenida Sul, caminhei ao longo da parte ocidental daquele logradouro até a
Rua Bleecker. Então, dobrei à direita e parei em frente a uma lojinha lúgubre
que mostrava o sinal:
HAWBERK, ARMOREIRO.
Espiei pela soleira e vi Hawberk ocupado em sua lojinha ao final do corredor.
Ele levantou os olhos, e deparando-se comigo, gritou com sua profunda e
vigorosa voz, “Entre, Sr. Castaigne!” Constance, sua filha, levantou-se para me
encontrar enquanto cruzava o umbral, e estendeu-me sua bela mão, mas eu vi
o rubor de desapontamento em suas faces, e soube que era outro Castaigne
que ela esperava, o meu sobrinho Louis. Sorri para sua confusão e a
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cumprimentei pela bandeira que estava bordando sobre uma placa colorida. O
velho Hawberk sentava-se rebitando as grevas de uma antiga armadura, e o
tim! tim! tim! do seu pequeno martelo soava agradavelmente na curiosa lojinha.
Neste momento ele derrubou seu martelo, e ocupou-se por um momento com
uma pequena chave inglesa.
O baque macio da armadura enviou calafrios de prazer através de mim. Amava
ouvir a música de aço roçando aço, o doce choque do maço nas peças das
coxas, e o tilintar da armadura de malha.
Essa era a única razão porque ia visitar Hawberk. Ele nunca me interessou
pessoalmente, nem Constance, exceto pelo fato dela estar enamorada de
Louis. Isto ocupava sim minha atenção, e às vezes até me deixava sem sono.
Mas em meu coração eu sabia que tudo daria certo no final, e que eu
concertaria o futuro deles, como esperava arrumar aquele do meu caro doutor,
John Archer. Contudo, eu jamais me ocuparia em visitá-lo naquele momento,
não fosse, como disse, porque a música tilintante do martelo exercia sobre mim
essa forte fascinação. Sentava-me por horas, ouvindo e ouvindo, e quando um
raio de sol perdido resvalava no aço embutido, a sensação que me dava era
quase insuportável. Meus olhos tornavam-se fixos, dilatando com o prazer de
mil nervos esticados a ponto de romper-se, até que algum movimento do velho
armoreiro bloqueasse o raio de sol, e então, ainda secretamente excitado,
recostava-me e ouvia novamente o som do trapo de polir, shish! shish!
esfregando a ferrugem dos rebites.
Constance trabalhava com o bordado sobre seus joelhos, e parando aqui e lá
para examinar mais detidamente a figura na placa colorida do Museu
Metropolitano.
“Isso é para quem?” perguntei.
Hawberk explicou, que em adição aos tesouros de armadura no Museu
Metropolitano para os quais ele foi indicado como armoreiro, ele também
tomava conta de diversas coleções pertencentes a amadores abastados. Esta
era a greva faltante de uma armadura famosa que um cliente dele localizou em
uma pequena loja em Paria no Quai d‟Orsay. Ele, Hawberk, negociara e
comprara a greva, e agora a armadura estava completa. Ele baixou o martelo e
leu-me a história da armadura, traçada desde 1450 de dono em dono, até que
foi adquirida por Thomas Stainbridge. Quando esta coleção soberba foi
vendida, aquele cliente de Hawberk comprou a armadura, e desde então
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procurava pela greva faltante, até que ela foi, quase por acidente, localizada
em Paris.
“Você continuou a procurar tão persistentemente mesmo sem nenhuma certeza
de que a greva ainda existisse?” inquiri.
“Certamente,” respondeu-me friamente.
Então pela primeira vez tive interesse pessoal em Hawberk.
“Ela valia algo para você,” aventurei.
“Não,” ele respondeu sorrindo, “meu prazer em procurá-la foi minha própria
recompensa.”
“Você não ambiciona enriquecer?” perguntei, sorrindo.
“Minha única ambição é tornar-me o melhor armoreiro do mundo,” ele
respondeu gravemente.
Constance perguntou-me se havia visto as cerimônias na Câmara Letal.
Ela mesma percebera a cavalaria subindo a Broadway aquela manhã, e
quisera ver a inauguração, porém, seu pai queria a bandeira terminada e ela
ficou a seu mando.
“O senhor viu o seu sobrinho lá, Sr. Castaigne?” ela perguntou com o menor
dos tremores de suas ternas sobrancelhas.
“Não,” respondi negligentemente. “O regimento de Louis está manobrando no
Condado de Westchester.” Levantei-me e peguei meu chapéu e bengala.
“Vai subir para ver aquele lunático de novo?” riu o velho Hawberk.
Se Hawberk soubesse o quanto eu odiava a palavra “lunático”, ele jamais a
usaria em minha presença. Ela desperta certos sentimentos em mim que não
quero explicar. Entretanto, respondi secamente: “Creio que vou entrar e ver o
Sr. Wilde por um momento ou dois.”
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“Pobre diabo,” disse Constance, com um menear de cabeça, “deve ser difícil
viver só, ano após ano, pobre, aleijado e quase demente. É muito bom de sua
parte, Sr. Castaigne, visitá-lo tanto como faz.”
“Eu acho ele terrível,” observou Hawberk, começando novamente com seu
martelo. Ouvi ao tilintar dourado nas grevas; e quando ele terminou, respondi:
“Não, ele não é terrível, e muito menos demente. Sua mente é uma câmara
maravilhosa, na qual pode-se extrair tesouros que você e eu daríamos anos de
nossas vidas para alcançar.”„
Hawberk riu.
Continuei um pouco impaciente: “Ele conhece história como ninguém mais
poderia conhecê-la. Nada, por mais trivial que seja, escapa sua atenção, e sua
memória é tão absoluta, tão precisa nos detalhes, que se fosse conhecido em
Nova Iorque que um tal homem existe, as pessoas não poderiam honrá-lo
suficientemente.”
“Absurdo,” resmungouHawberk, procurando no chão um rebite caído.
“E é um absurdo,” perguntei, suprimindo o que sentia, “é um absurdo quando
ele diz que as escarcelas e as joelheiras da armadura esmaltada comumente
conhecida como a “Brasonada do Príncipe” pode ser encontrada em meio a
uma massa de apetrechos teatrais enferrujados, fogões quebrados e refugo de
mineiros em um sótão na Rua Pell?”
O martelo de Hawberk foi ao chão, mas ele o apanhou e perguntou, com
grande calma, como eu sabia que as escarcelas e a joelheira esquerda
estavam faltando na “Brasonada do Príncipe.”
“Não sabia até que o Sr. Wilde o mencionou um outro dia. Ele disse que elas
estavam em um sótão na Rua Pell 998.”
“Absurdo,” ele esbravejou, mas percebi que sua mão tremia sob o avental de
couro.
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“E isto também é um absurdo?” perguntei contentado, “seria um absurdo
quando o Sr. Wilde continuamente se refere a você como o Marquês de
Avonshire e à Senhorita Constance–”
Não terminei, pois Constance pôs-se em pé com horror escrito em suas
feições. Hawberk olhou-me e lentamente desamassou seu avental de couro.
“Isto é impossível,” observou, “o Sr. Wilde pode saber de muitas coisas–”
“Sobre armaduras, por exemplo, e sobre a „Brasonada do Príncipe,‟” interpus,
sorrindo.
“Sim,” ele continuou, vagarosamente, “sobre armaduras também–talvez–mas
ele está errado a respeito do Marquês de Avonshire, que, como o senhor sabe,
assassinou o difamador de sua esposa, anos atrás, e foi para a Austrália onde
não a sobreviveu por muito tempo.”
“Sr. Wilde está enganado,” murmurou Constance. Seus lábios estavam pálidos,
mas sua voz era doce e calma.
“Vamos concordar, se assim desejam, que nesta única circunstância o Sr.
Wilde está enganado,” disse-lhes.
II
Galguei os três lances dilapidados de escadas, que tão frequentemente galgara
antes, e bati à pequena porta no fim do corredor.
O Sr. Wilde abriu a porta e entrei.
Após fechar a porta com dois cadeados e empurrar um baú pesado contra ela,
ele veio e senteu-se ao meu lado, perquirindo minha face com seus pequenos
olhos claros. Meia dúzia de novos arranhões cobriam seu nariz e maçãs do
rosto, e os fios prateados que suportavam suas orelhas artificiais estavam
desarranjados. Pensei comigo que jamais o havia visto tão horrendamente
fascinante. Ele não tinha orelhas. As artificiais, que agora pendiam de um
ângulo dos finos arames, eram sua única fraqueza. Eram feitas de cera e
pintadas de rosa-concha, mas o restante de sua face era amarelo. Certamente
ele poderia ter se permitido o luxo de alguns dedos artificiais para sua mão
esquerda, que era absolutamente desprovida de dedos, mas isso não parecia
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 14
causar-lhe qualquer inconveniência, e estava satisfeito com suas orelhas de
cera. Era muito pequeno, escassamente maior que uma criança de dez anos,
mas seus braços eram magnificamente desenvolvidos, e suas coxas tão
grossas como a de um atleta. Ainda assim, a coisa mais admirável sobre o Sr.
Wilde, era sua prodigiosa inteligência, pudesse o conhecimento ter uma tal
cabeça. A sua era chata e projetada, como as cabeças de muitos daqueles
desafortunados que as pessoas aprisionam em asilos para os deficientes
mentais. Muitos diziam-no insano, mas eu bem sabia que ele era tão são
quanto eu mesmo.
Não posso negar que ele era excêntrico; a mania que tinha de manter aquela
gata e de atiçá-la até que se agarrava a sua face como um demônio, era
certamente excêntrica. Nunca pude entender o porquê dele manter aquela
criatura, nem o prazer que nutria em trancar-se em seus aposentos, com
aquela besta intratável e feroz. Lembro-me que certa vez, espiei por cima de
um manuscrito que estudava à luz de alguns tocos de velas, e vi o Sr. Wilde
agachado e imóvel em sua cadeira alta, seus olhos veramente brilhando com
excitação, enquanto a gata, que erguera-se de seu recanto próximo ao fogão,
veio rastejando pelo chão diretamente até ele. Antes que eu pudesse me
mover, ela apertou a barriga no chão, agachou-se, tremeu e pulou em sua face.
Uivando e babando, eles rolaram e rolaram pelo chão, arranhando e dando
garradas, até que a gata gritou e correu para baixo de uma estante, e o Sr.
Wilde deitou-se de costas, seus membros contraindo-se e enrolando-se, como
as pernas de uma aranha moribunda. Ele _era_ excêntrico.
O Sr. Wilde subiu em sua cadeira alta e, após estudar minha face, pegou um
diário gasto pelo uso e o abriu.
“Henry B. Matthews,” ele leu, “contador da Companhia Whysot Whysot,
negociantes de ornamentos religiosos. Veio em 03 de abril. Reputação
manchada na corrida de cavalos. Conhecido como caloteiro. Reputação a ser
reparada em 1º de agosto. Cinco dólares de comissão.” Ele virou a página e
correu seu punho sem dedos pelas colunas escritas apertadamente.
“P. Greene Dusenberry, Pastor do Evangelho, Fairbeach, Nova Jérsei.
Reputação manchada na vizinhança de Bowery. Para ser reparada tão rápido
quanto possível.
Comissão $100.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 15
Ele tossiu e complementou, “Veio em 6 de abril.”
“Então o senhor não precisa de dinheiro, Sr. Wilde,” inquiri.
“Ouça,” tossiu novamente.
“Senhorita. C. Hamilton Chester, do Parque Chester, Cidade de Nova Iorque.
Veio em 7 de abril. Reputação manchada em Dieppe, França. A ser reparada
por 1º de outubro
Comissão $500.
“Nota.–C. Hamilton Chester, Capitão da U.S.S. „Avalanche‟, retornando ao
porto do Esquadrão Marítimo Sul em 1º de outubro.”
“Bem,” eu disse, “a profissão de um Reparador de Reputações é lucrativa.”
Seus olhos descoloridos procuraram os meus, “Eu apenas queria demonstrar
que estava correto. O senhor disse-me que era impossível ter sucesso como
um Reparador de Reputações; que mesmo que eu tivesse algum sucesso em
certos casos, isso me custaria mais do que ganharia ao fazê-lo. Hoje possuo
quinhentos homens empregados, que são mal pagos, mas perseguem o
trabalho com um entusiasmo que pode muito provavelmente ser nascido do
medo. Esses homens adentram todas as sombras e degradês da sociedade;
alguns são mesmo pilares dos mais exclusivos templos sociais; outros são o
orgulho do mundo financeiro; outros, ainda, detém incontestável influência
sobre a „Moda e o Talento.‟ Eu os escolho ao meu bel prazer daqueles que
respondem aos meus anúncios. É fácil demais, eles são todos covardes.
Poderia triplicar seu número em vinte dias se assim quisesse. Então veja você,
aqueles que possuem sob sua guarda as reputações de seus concidadãos, eu
tenho sob minha paga.”
“Eles podem rebelar-se,” sugeri.
Ele esfregou o polegar sobre suas orelhas cortadas, e ajustou as substitutas de
cera. “Creio que não,” murmurou pensativamente, “raramente tenho que aplicar
o chicote, e quando o faço, apenas uma única vez. Além disso, eles gostam do
salário.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 16
“Como o senhor aplica o chicote?” demandei.
Sua face por um momento foi horrível de se ver. Seus olhos diminuíram até
tornarem-se um par de faíscas verdes.
“Eu os convido a virem e ter uma conversinha comigo,” ele disse em uma voz
macia.
Uma batida na porta interrompeu-o, e sua face resumiu sua expressão
amigável.
“Quem é?” perguntou.
“Sr. Steylette,” foi a resposta.
“Venha amanhã,” replicou o Sr. Wilde.
“Impossível,” começou o outro, mas foi logo silenciado por uma espécie de
latido do
Sr. Wilde.
“Venha amanhã,” repetiu.
Ouvimos alguém se afastando da porta e dobrar a quina em direção à
escadaria.
“Quem era?” perguntei.
“Arnold Steylette, Dono e Editor em Chefe do grande diário de Nova Iorque.”
Ele bateu no diário com sua mão sem dedos, completando: “Pago-lhe deveras
mal, mas ele pensa que é uma boa barganha.”
“Arnold Steylette!” repeti maravilhado.
“Sim,” disse o Sr. Wilde, com uma tosse satisfeita.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 17
A gata, que entrara a sala enquanto conversávamos, hesitou, olhou para cima
e rosnou. Ele desceu da cadeira e agachando no chão, tomou a criatura em
seus braços e a acariciou. A gata cessou seu rosnar e imediatamente começou
um ronronar alto, que parecia crescer em timbre a cada carícia. “Onde estão as
anotações?” perguntei-lhe. Ele apontou para a mesa, e pela centésima vez
peguei o pacote de manuscritos intitulado–
“A DINASTIA IMPERIAL DA AMÉRICA.”
Uma a uma, estudei as páginas bem gastas, gastas pelo meu próprio
manuseio, e conquanto as conhecesse de cor, do início, “Quando de Carcosa,
as Híades, Hastur, e Aldebaran,” até “Castaigne, Louis de Calvados,
nascido em 19 de dezembro, 1877,” lia com uma ansiosa, absorta atenção,
parando para recitar algumas partes, e demorando-me especialmente em
“Hildred
de Calvados, filho único de Hildred Castaigne e Edythe Landes Castaigne,
primeiro na sucessão,” etc., etc.
Quando terminei, o Sr. Wilde assentiu com a cabeça e tossiu.
“E por falar em sua legítima ambição,” ele disse, “como vão Constance e
Louis?”
“Ela o ama,” respondi simplesmente.
A gata em seu joelho repentinamente virou-se e atacou seus olhos, e ele
atirou-a fora e subiu em sua cadeira a minha frente.
“E o Dr. Archer! Mas esse assunto você pode resolver a hora que desejar,”
acrescentou.
“Sim,” respondi, “o Dr. Archer pode esperar, mas está na hora de ver meu
sobrinho
Louis.”
“É hora,” ele repetiu. Então, tomou outro diário da mesa e correu as folhas
rapidamente. “Nós estamos agora em comunicação com dez mil homens,”
resmungou. “Podemos contar com cem mil dentro das primeiras vinte e oito
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 18
horas, e em quarenta e oito horas o estado levantar-se-á _en masse_. O país
seguirá o estado, e a porção que não fizer, quero dizer Califórnia e o Noroeste,
seria melhor que jamais tivessem sido habitadas. Não enviar-lhes-ei o Sinal
Amarelo.”
O sangue subiu a minha cabeça, mas respondi tão somente, “Uma vassoura
nova varre bem limpo.”
“A ambição de César e de Napoleão empalidece perante aquele que não pode
descansar enquanto não tomar as mentes dos homens e controlar até mesmo
seus pensamentos não nascidos,” disse o Sr. Wilde.
“O senhor fala do Rei em Amarelo,” gemi, com um calafrio.
“Ele é um rei a quem imperadores serviram.”
“Sou grato em servi-lo,” respondi.
O Sr. Wilde sentou-se esfregando as orelhas com sua mão aleijada. “Talvez
Constance não o ame,” sugeriu.
Comecei a responder, porém uma súbita explosão de música militar vinda da
rua abaixo afogou minha voz. O vigésimo regimento de dragões, anteriormente
alojado no Monte São Vicente, retornava das manobras no Condado de
Westchester, para seu novo quartel na Praça Washington Leste. Era o
regimento de meu sobrinho. Era um excelente grupo de rapazes, em seus
casacos justos de azul claro, seus garbosos colbaques e suas bombachas
brancas de cavalgar com a faixa amarela dupla, nas quais seus membros
pareciam moldados. Um a cada dois soldados estava armado de lanças, com
pontas de metal nas quais baloiçavam bandeirolas brancas e amarelas. A
banda passou, tocando a marcha regimental, então veio o coronel e os oficiais,
com os cavalos se ajuntando e pisoteando, enquanto suas cabeças acenavam
em união, e as bandeirolas agitavam-se das pontas de suas lanças. As tropas,
que cavalgavam com com a bela sela inglesa, pareciam bronzeados como
bagas de suas campanhas sem sangue nas fazendas de Westchester, e a
música de seus sabres contra os estribos, e o tilintar de esporas e carabinas
era um deleite para mim. Então vi Louis cavalgando com seu esquadrão. Ele
era mais belo que qualquer oficial que já havia visto. O Sr. Wilde, que havia
montado cadeira à janela, também o via, mas nada dizia. Louis virou e olhou
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 19
diretamente para a loja de Hawberk enquanto passava, e pude ver o rubor de
suas faces coradas. Acredito que Constance estivesse à janela. Quando as
últimas tropas passaram fazendo barulho, e as últimas bandeirolas
desapareceram na Quinta Avenida Sul, o Sr. Wilde desceu de sua cadeira e
puxou o baú para longe da porta.
“Sim,” ele disse, “é hora de você se ver com seu sobrinho Louis.”
Ele destrancou a porta e eu tomei meu chapéu e bengala e adentrei o corredor.
A escadaria estava escura. Tateando, pisei em algo macio, que rosnou e
cuspiu, e mirei um golpe assassino na gata, mas minha bengala fez-se em
pedaços na balaustrada, e a besta correu para dentro da sala do Sr. Wilde.
Passando novamente pela porta de Hawberk, vi-o ainda trabalhando a
armadura, mas não parei, e adentrando na Rua Bleecker, segui até Wooster,
margeei o terreno da Câmara Letal, e cruzando o Parque Washington fui
diretamente aos meus aposentos na Benedick. Aqui almocei confortavelmente,
li o _Arauto_ e o _Meteoro_, e finalmente fui ao cofre de aço no meu quarto e
acionei a combinação temporal. Os três minutos e três quartos que é
necessário esperar, enquanto a fechadura cronometrada está abrindo, são
para mim momentos dourados. Do instante em que aciono a combinação até o
momento em que pego as maçanetas e abro as portas de aço sólido, vivo um
extâse de ansiedade. Esses momentos devem ser comoo aqueles no Paraíso.
Sei o que encontrarei ao findar do limite de tempo. Sei o que o cofre massivo
guarda para mim, e somente para mim, e o prazer singular de esperar quase
não aumenta quando o cofre abre e eu levanto, de uma coroa de veludo, a
diadema do mais puro ouro, reluzindo com diamantes. Faço isso diariamente, e
ainda assim, o prazer de esperar e por fim tocar de novo a diadema apenas
parece aumentar a cada dia que passa. É uma diadema propícia para um Rei
entre reis, um Imperador entre imperadores. O Rei em Amarelo poderia
esnobá-la, mas ela será usada por seu real servo.
Levantei-a meus braços até que o alarme do cofre soou asperamente, e
depois, suavemente, orgulhosamente, recoloquei-a em seu lugar e fechei as
portas de aço. Voltei vagarosamente ao meu estúdio, que encara a Praça
Washington, e debrucei-me na beirada da janela. O sol da tarde despejou-se
em minhas janelas e uma brisa gentil mexeu os galhos dos olmos e dos bordos
no parque, agora cobertos de botões e folhagem tenra. Uma revoada de
pombos circulou a torre da Igreja Memorial; às vezes pousando no telhado
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 20
roxo, outras girando para baixo, em direção as fontes em direção à fonte de
lótus em frente ao arco de mármore. Os jardineiros ocupavam-se dos canteiros
de flores em volta da fonte, e a terra recém revolvida cheirava doce e
temperada. Um cortador de grama, puxado por um gordo cavalo branco, retiniu
ao longo da relva verde, e carros de aguar despejavam duchas e borrifos sobre
as vias asfaltadas. Ao redor da estátua de Peter Stuyvesant, que em 1897
substituíra a monstruosidade que supostamente representava Garibaldi,
crianças brincavam no sol da primavera, e amas jovens empurravam
elaborados carrinhos de bebê com uma descuidado desprezo aos seus
ocupantes de faces pastosas, o que provavelmente poderia explicar-se pela
presença de meia dúzia de soldados dragões enfeitados, descansando
languidamente nos bancos. Através das árvores, o Arco Memorial de
Washington brilhava como prata ao sol, e além, na extremidade oriental da
praça os quartéis de pedra cinza dos dragões e os estábulos de granito branco
da artilharia estavam vivos com cor e movimento.
Olhei para a Câmara Letal na esquina do quarteirão oposto. Alguns poucos
curiosos ainda demoravam-se nas grades doiradas, mas dentro do terreno os
caminhos estavam desertos. Olhei as fontes ondulando e reluzindo; os pardais
já haviam encontrado esse novo rincão para banhar-se, e as bacias estavam
cobertas com pequeninas criaturas com penas pardacentas. Dois ou três
pavões brancos faziam seu caminho em meio dos jardins, e um pombo de
cores sombrias sentava-se tão estaticamente no braço de uma das “Moiras,”
que parecia ser parte da pedra esculpida.
Enquanto virava-me descuidademente, uma pequena comoção no grupo dos
curiosos desocupados ao redor dos portões atraiu minha atenção. Um jovem
havia adentrado, e avançava com passos nervosos o caminho de cascalho que
leva às portas de bronze da Câmara Letal. Ele parou por um momento ante as
“Moiras,” e enquanto erguia sua cabeça para as três misteriosas faces, o
pombo levantou-se de seu poleiro esculpido, circulou por um instante e dirigiu-
se para o leste. O jovem levou sua mão ao rosto, e com um gesto indefinível
subiu os degraus de mármore, as portas de bronze fecharam a suas costas, e
meia hora depois os desocupados foram embora, e o pombo assustado
retornou ao seu lugar nos braços do Destino.
Coloquei meu chapéu e fui ao parque para uma pequena caminhada antes do
jantar. Enquanto atravessava o logradouro central um grupo de oficiais
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 21
passava, e um deles chamou-me, “Olá, Hildred,” e veio apertar minhas mãos.
Era o meu sobrinho Louis, que postava-se a minha frente sorrindo e batendo
seu relho em seus saltos espigados.
“Acabei de chegar de Westchester,” disse; “estava vivendo bucolicamente; leite
e coalhada, você sabe, fazendeiras com gorros, que dizem „quê?‟ e „Num acho‟
quando você lhes diz como são bonitas. Estou quase morte de fome por um
jantar no Delmonico. Quais são as novas?”
“Nada de novo,” respondi amavelmente. “Vi teu regimento chegando esta
manhã.”
“Viu? Pois eu não o vi. Onde estava?”
“À janela do Sr. Wilde.”
“Oh, infernos!” começou impacientemente, “aquele homem é um louco varrido!
Não consigo entender como você–”
Ele viu o quão aborrecido fiquei com sua explosão, e então pediu meu perdão.
“Realmente, meu velho,” ele disse, “Eu não quero desfazer de akguém que
você goste, mas pela minha vida, não consigo entender que raios você pode
ter em comum com o Sr. Wilde. Ele não é muito bem alimentado, e estou
sendo educado; ele é horrendamente deformado; sua cabeça tem a forma da
cabeça de uma pessoa criminalmente insana. E você bem sabe, ele esteve em
um sanatório–”
“Assim como eu também estive,” interrompi calmamente.
Louis pareceu surpreso e confuso por um instante, mas se recuperou e bateu-
me vigorosamente nos ombros. “Mas você está completamente curado,”
começou; porém, interrompi-o novamente.
“Suponho que você queira dizer que na verdade, reconheceram que eu jamais
estive insano.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 22
“É claro–era isso que quis dizer,” riu.
Desagradou-me seu riso pois sabia que era forçado, mas assenti
contentemente e perguntei-lhe aonde estava indo. Louis olhou atrás de seus
colegas oficiais que agora quase alcançavam a Broadway.
“Era nossa intenção experimentar um coquetel de Brunswick, mas para falar-
lhe a verdade, estava ansioso por uma desculpa para ir ver Hawberk em vez
disso. Venha comigo, farei de você minha desculpa.”
Encontramos o velho Hawberl, impecavelmente vestido em frescas roupas de
primavera, parado à porta de sua loja loja e cheirando o ar.
“Acabei de decidir levar Constance para um pequeno passeio antes do jantar,”
ele respondeu à impetuosa rajada de perguntas de Louis. “Pensávamos em
caminhar no parque ao longo do Rio Norte.”
Naquele momento Constance apareceu e ora empalidecia, ora enrubecia, aos
turnos, enquanto Louis beijava-lhe as pequenas mãos enluvadas. Tentei
escusar-me, alegando um encontro na cidade, mas Louis e Constance não
quiseram ouvir,
e percebi que esperavam que eu ficasse e entretesse a atenção do velho
Hawberk.
E além disso, seria bom manter meus olhos sobre Louis, pensei, e quando eles
chamaram uma carruagem na Rua Primavera, entrei depois deles e tomei
assento ao lado do armoreiro.
A bela linha de parques e terraços de granito sobrepondo-se ao cais ao longo
do Rio Norte, que fora constriuído em 1910 e terminado no outono de 1917,
tornara-se uma das mais populares passeios da metrópole. Eles estendiam-se
da bateria até a 190ª Rua, sobre o rio nobre e proporcionando uma bela vista
da margem do Jérsei e as Montanhas do lado oposto. Cafés e restaurantes
espalhavam-se aqui e acolá entre as árvores, e duas vezes por semana as
bandas militares do regimento tocavam nos parapeitos dos quiosques.
Sentamo-nos sob o sol no banco aos pés da estátua equestre do General
Sheridan. Constance abaixou a aba de seu chapéu para proteger seus olhos, e
ela e Louis começaram a murmurar uma conversação que era impossível de
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 23
ouvir. O velho Hawberk, apoiando-se em sua bengala com cabo de mármore,
acendeu um charuto excelente, de cujo par eu polidamente recusei, e sorri para
o nada. O sol pendia baixo sobre as árvores da Ilha Staten, e a baía estava
pintada de tons doirados refletidos nas velas quentes das naus do porto.
Brigues, escunas, iates, balsas desengonçadas, seus convéses apinhados de
gente, transportes de ferro carregando linhas de carros de carga marrons,
azuis e brancos, vapores majestosamente robustos, navios charter déclassé,
navios costeiros,
dragas, navios de vela, e pervadindo toda a baía pequenos
rebocadores baforando e assoviando oficiosamente;–essas eram as naus que
revolviam as águas brilhantes até onde os olhos podiam alcançar. Em calmo
contraste com a agitação das naus navegantes e vapores, havia a esquadra
silenciosa de navios de guerra branco que pairavam estáticos no meio da
correnteza.
O riso contente de Constace acordou-me de meus devaneios.
” _O que_ você está fitando?” inquiriu.
“Nada–a esquadra,” sorri.
Então Louis nos disse quais eram as naus, indicando cada qual por sua
posição relativa ao Forte Vermelho na Ilha do Governador.
“Aquele em forma de charuto é um torpedeiro,” explicou; “há mais quatro deles
por perto. Chamam-se _Curimbatá_, o _Falcão_,
a _Raposa do Mar_, e o _Polvo_. As canhoneiras logo acima são
_Princeton_, a _Champlain_, a _Água Parada_ e a _Erie_. Perto delas estão
os cruzadores _Faragut_ e _Los Angeles_, e acima deles os navios de guerra
_California_, e _Dakota_, e o _Washington_ que é a nau capitânia. Aqueles
dois pedaços de metal baixos ancorados perto do Castelo William são os
monitores encouraçados de duas torretas
_Terrível_ and _Magnífico_; atrás deles está o navio com rostro, _Osceola_.”
Constance olhava-o com profunda admoração em seus belos olhos. “Para um
soldado até que você sabe de muitas coisas,” e todos nós nos juntamos a
gargalhada que se seguiu.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 24
Nese momento Louis levantou-se com um menear de cabeça para nós e
ofereceu seu braço para Constance, e desceram andando ao longo da margem
do rio. Hawberk olhou-os por um momento e depois virou-se para mim.
“O Sr. Wilde estava certo,” disse. “Encontrei as escarcelas e a joelheira
esquerda perdidas da „Brasonada do Príncipe,‟ em um sótão velho e vil na Rua
Pell.”
“998?” inquiri, com um sorriso.
“Sim.”
“O Sr. Wilde é um homem muito inteligente,” observei.
“Quero dar-lhe o crédito desta importantíssima descoberta,”
continuou Hawberk. “E pretendo que seja conhecido que ele é intitulado a
receber as glórias disso.”
“Ele não irá agradecê-lo por isso,” respondi secamente; “por favor não diga
nada sobre o assunto.”
“Você sabe quanto ela vale?” perguntou Hawberk.
“Não, cinquenta doláres, talvez.”
“O valor é de quinhentos doláres, mas o dono da „Brasonada do Príncipe‟ dará
dois mil dólares para a pessoa que completar sua armadura; essa recompensa
também pertence ao Sr. Wilde.”
“Ela não a quer! Ele recusará!” respondi enraivecido. “O que você sabe sobre o
Sr. Wilde? Ele não precisa de dinheiro. Ele é rico–ou será–mais rico que
qualquer homem vivo além de mim. Que importará o dinheiro para nós–que
nos importará, a ele e para mim, quando–quando–”
“Quando o quê?” demandou Hawberk, espantado.
“Você verá,” respondi, em guarda novamente.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 25
Ele olhou-me apertando os olhos, tal qual o Doutor Archer fazia, e eu soube
que ele achava-me mentalmente desequilibrado. Talvez tenha sido afortunado
para ele não usar a palavra lunático naquele momento.
“Não,” respondi seu pensamento não dito, “Minha mente não está franca;
minha mente é tão sadia quanto a do Sr. Wilde. Não quero explicar ainda o que
tenho em mãos, mas é um investimento que pagará mais que em mero ouro,
prata e pedras preciosas. Ele assegurará a felicidade e a prosperidade de um
continente–sim, de um hemisfério!”
“Oh,” disse Hawberk.
“E eventualmente,” continuei mais baixo, “assegurará a felicidade do mundo
todo.”
“E incidentalemente a sua própria felicidade e prosperidade tão bem como a do
Sr. Wilde?”
“Exatamente,” sorri. Mas poderia tê-lo repreendido por falar naquele tom.
Ele olhou-me em silêncio por um tempo e disse depois gentilmente, “Porque
você não deixa seus livros e estudos, Sr. Castaigne, e faz uma viagem pelas
montanhas ou para algum lugar ou outro? O senhor era afeiçoado à pescaria.
Jogue uma linha ou duas para as trutas no Rangelys.”
“Não me importo mais com pescarias,” respondi, sem nenhuma sombra de
aborrecimento na minha voz.
“O senhor era afeiçoado a tudo,” continuou; “atletismo, iatismo,
tiro, cavalgadas–”
“Nunca me importei com cavalgar desde minha queda,” respondi quietamente.
“Ah, sim, sua queda,” repetiu, olhando para outra direção.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 26
Pensei que todo esse absurdo havia ido longe demais, então trouxe a
conversação de volta para o Sr. Wilde; mas ele estava examinando munha face
novamente, de uma maneira altamente ofensiva para mim.
“O Sr. Wilde,” ele repetiu, “o senhor sabe o que ele fez esta tarde? Ele desceu
as escadarias e pregou uma placa sobre a porta do corredor próxima a minha,
ela dizia:
“SR. WILDE,
REPARADOR DE REPUTAÇÕES.
Terceira Campainha.
“Você poderia dizer o que um Reparador de Reputações faz?”
“Eu posso,” respondi, suprimindo a raiva dentro de mim.
“Oh,” ele disse novamente.
Louis e Constance vieram passeando e pararam para perguntar se nos
juntaríamos a eles. Hawberk olhou para seu relógio. Ao mesmo tempo, uma
lufada de fumaça saiu das casamatas do Castelo William, e o troar da arma do
pôr-do-sol rolou sobre as águas e reecoou das montanhas em frente.
A bandeira desceu correndo o mastro, os clarins soaram nos convéses brancos
dos navios de guerra, e a primeira luz elétrica brilhou na margem do Jérsei.
Enquanto me dirigia à cidade com Hawberk, ouvi Constance murmurar algo
para Louis que não entendi; mas Louis sussurrou “Minha querida,” em
resposta; e novamente, andando a frente com Hawberk através da praça, ouvi
o murmurar de “meu amor,” e “minha Constance,” e soube então que o tempo
havia quase chegado em que deveria falar de assuntos importantíssimos com
meu sobrinho Louis.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 27
III
Uma manhã no começo de Maio, estava em frente ao cofre de aço no meu
quarto, experimentando a coroa dourada encrustada de jóias. Enquanto virava-
me para o espelho, os diamantes relampejaram chamas, e o ouro batido
pesado queimou como um halo sobre minha cabeça . Recordei-me do grito
agonizante de Camilla e as horrendas palavras ecoando pelas escuras ruas de
Carcosa. Eram as últimas linhas do primeiro ato, e eu não ousava pensar no
que se seguia–não ousava, nem mesmo no sol da primavera, aqui em meu
próprio quarto, rodeado de objetos familiares, reassegurado pelo rumor da rua
e pelas vozes dos empregados lá fora no corredor. Pois aquelas palavras
envenenadas gotejaram lentamente emmeu coração, absorvidas como gotas
de suor de uma febre maligna pelos lençóis da cama.
Tremendo, coloquei a diadema sobre minha cabeça e sequei minha testa, mas
pensava em Hastur e de minha própria legítima ambição, e lembrava-me de
como deixei o Sr. Wilde, com sua face rasgada e ensanguentada pelas garras
daquela criatura diabólica, e o que ele disse–ah, o que ele disse.. O alarme do
cofre começou a zumbir asperamente, e eu soube que meu tempo acabara;
mas não iria acatá-lo, e recolocando a coroa sobre minha cabeça, virei
desafiadoramente para o espelho. Demorei-me longamente absorvido pela
expressão cambiante de meus próprios olhos. O espelho refletia uma face
como que a minha, só que mais branca, e tão magra que dificilmente a
reconheci e o tempo todo eu repetia por entre meus dentes cerrados, “O dia
chegou!
o dia chegou!” enquanto o alarme do cofre zumbia e clamava, e os diamentes
brilhavam e chamejavam sobre minhas sobrancelhas. Ouvi a porta abrir mas
não me importei. Foi então que vi duas faces no espelho:–foi então que outra
face ascendeu sobre meu ombro, e dois outros olhos encontraram os meus.
Virei-me como um relâmpago e tomei de uma faca de minha cabeceira, e o
meu sobrinho saltou para trás, muito pálido, gritando: “Hildred!
pelo amor de Deus!” então, assim que minha mão caiu, ele disse: “Sou eu,
Louis, você não me reconhece?” permaneci silente. Eu não poderia responder
por minha vida. Ele aproximou-se de mim e tomou a faca de minha mão.
“O que é isso tudo?” inquiriu, com uma voz gentil. “Você está doente?”
“Não,” repliquei. Mas duvido que tenha me ouvido.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 28
“Venha, venha, velho amigo,” ele disse, “tire fora essa coroa de latão e venha
até o estúdio. Vocâ vai a algum baile de máscaras Porque toda essa
quinquilharia teatral?”
Fiquei grato por ele pensar que a coroa era feita de latão e cola, porém, não
me agradava nem um pouco mais por assim pensar. Deixei-o tomá-la de minha
mão, sabendo que era melhor agradá-lo. Ele jogou a esplêndida diadema para
o ar, e pegando-a, virou-se para mim sorrindo.
“Seria caro por cinquenta centavos,” disse. “Para que serve?”
Não respondi, mas tomei a tiara de suas mãos e colocando-a no cofre, fechei a
porta massiva de aço. O alarme cessou seu zunido infernal imediatamente. Ele
olhava-me curioso, mas não pareceu notar o súbito cessar do alarme. Contudo,
ele referiu-se ao cofre como uma caixa de biscoitos. Temendo que ele pudesse
examinar a combinação, conduzi-o até meu estúdio. Louis atirou-se ao sofá e
estalava seu eterno relho nas moscas. Ele vestia sua farda com um casaco
trançado e uma boina vistosa, e percebi que suas botas de cavalgar estavam
sujas de lama vermelha.
“Onde tu estavas?” inquiri.
“Saltando riachos de lama em Jersey,” ele disse. “Ainda não tive tempo de me
trocar; estava com pressa em vê-lo. Você não tem algo para beber? Estou
exausto; estive vinte e quatro horas em uma sela.”
Dei-lhe aguardente de minha farmácia, que ele bebeu com uma careta.
“Que coisa danada de ruim,” observou. “Vou dar-lhe um endereço onde eles
vendem aguardente de verdade.”
“É boa o suficiente para minhas necessidades,” disse indiferentemente. “Eu a
uso para massagear meu peito.” Ele fiotu-me e estalou outra mosca.
“Veja bem, velho amigo,” ele começou, “Tenho algo para lhe sugerir.
Já faz quatro anos que você trancou-se aqui como uma coruja, e nunca vai a
lugar nenhum, não faz nenhum exercício saudável, nunca faz nada mais que
manusear aqueles livros em cima da lareira.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 29
Ele passou o olhar pelas estantes. “Napoleão, Napoleão, Napoleão!” ele leu.
“Por deus, você não tem nada mais que Napoleão ali?”
“Desejava que fossem encadernados em ouro,” respondi. “Mas espere, sim,
aqui está um outro livro, _O Rei em Amarelo_.” olhei-o fixamente em seus
olhos.
“Você nunca o leu?” perguntei.
“Eu? Não, graças a Deus! Não quero ficar louco.”
Vi que ele se arrependeu do que disse tão logo as palavras saíram de sua
boca. So há uma palavra que detesto mais do que lunático e essa palavra é
louco.
Porém, controlei-me e perguntei-lhe por que pensava que _O Rei em Amarelo_
era perigoso.
“Oh, eu não seu,” disse, apressadamente. “Somente me lembro da excitação
que causou e das denúncias do púlpito e da Imprensa. Acredito que o autor
atirou em si mesmo após trazer à luz essa monstruosidade, não foi?”
“Que eu saiba ele ainda está vivo,” respondi.
“Isso é provavelmente verdadeiro,” balbuciou; “balas não poderiam matar
semelhante fera.”
“É um livro de grandes verdades,” falei.
“Sim,” ele redarguiu, “de „verdades‟ que põe os homens em frenêsi e terminam
suas vidas. Não me importa se aquela coisa é, como dizem, a suprema
essência da arte. É um crime tê-lo escrito, e eu certamente jamais abrirei suas
páginas.”
“Foi isso que veio me dizer?” perguntei.
“Não,” ele disse, “Vim te dizer que vou me casar.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 30
Acredito que por um instante meu coração cessou de pulsar, mas mantive
meus olhos em sua face.
“Sim,” continuou, sorrindo alegremente, “casarei com a garota mais doce na
Terra.”
“Constance Hawberk,” disse-lhe mecanicamente.
“Como você sabia?” gritou, afetando perplexidade. “Eu mesmo não o sabia até
aquela noite de Abril, quando passeamos até a represa antes do jantar.”
“E quando será?” perguntei.
“Seria em Setembro próximo, porém, há uma hora atrás uma mensagem veio
ordenando que nosso regimento vá até Presidio, em São Francisco. Partiremos
ao meio dia amanhã. Amanhã,” repetiu. “Pense, Hildred, amanhã serei o
homem mais feliz que jamais respirou neste mundo, porque Constance virá
comigo.”
Ofereci-lhe minha mão em congratulações, e ele a tomou e apertou como o tolo
de bom coração que era–ou que fingia ser.
“Vou pegar meu esquadrão como um presente de casamento,” continuou
tagarelando.
“Capitão e Sra. Louis Castaigne, não é, Hildred?”
Então ele me disse onde seria e quem lá estaria, e fez-me prometer que iria
para ser seu padrinho. Apertei os dentes e ouvi para sua tagarelice juvenil sem
mostrar-lhe o que sentia, mas–
Estava chegando ao limite de minha resistência e quando ele saltou e,
trocando suas esporas até que tilintassem, disse-me que devia ir, não o detive.
“Há uma coisa que preciso pedir-lhe,” disse calmamente.
“Deixe disso, já está prometido,” ele riu.
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 31
“Quero encontrá-lo para uma conversa de quinze minutos esta noite”
“Certamente, se você assim deseja,” respondeu, ainda que um pouco intrigado.
“Onde?”
“Em qualquer lugar daquele parque ali em frente.”
“A que horas, Hildred?”
“Meia noite.”
“Por que em nome de–” começou, mas parou a si mesmo e assentiu rindo. Vi-o
descer as escadas e apressar-se para ir embora, seu sabre batendo a cada
passada. Ele virou na Rua Bleecker e eu soube que estava indo ver
Constance. Dei-lhe dez minutos para desaparecer e então segui seus passos,
levando comigo a coroa encrustada de jóias e o robe de seda bordado com o
Símbolo Amarelo. Quando então dobrei na Rua Bleecker e entrei na porta que
mostrava a placa–
SR. WILDE,
REPARADOR DE REPUTAÇÕES.
Terceira Campainha.
Vi o velho Hawberk atarefado em sua loja e imaginei ouvir a voz de Constance
na antesala; mas evitei-os e apressei-me acima da escadaria tremulante até o
apartamento do Sr. Wilde. Bati e entrei sem cerimônias. O Sr. Wilde jazia
gemendo no chão, suas faces cobertas de sangue e suas roupas rasgadas em
trapos. Gotas de sangue espalhavam-se pelo tapete, que também fora cortado
nalguma peleja evidentemente recente.
“Foi aquela gata amaldiçoada,” ele disse, cessando seus gemidos, e tornando
seus olhos sem cor para mim; “atacou-me enquanto dormia. Creio que ela
ainda me matará.”
Aquilo era demais, então fui até a cozinha e, tomando um cutelo da despensa,
passei a procurar a besta infernal para por um fim ao problema de uma vez por
todas. Minha procura não rendeu frutos e, depois de um tempo desisti e voltei
para encontrar o Sr. Wilde agachado em sua cadeira alta em frente à mesa. Ele
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 32
havia lavado o rosto e trocado suas roupas. Os grandes rasgos que as garras
da gata sulcaram em suas faces foram preenchidas com colódio, e uma tira
escondia o ferimento em seu pescoço. Disse-lhe que mataria a gata assim que
a visse, mas ele apenas balançou a cabeça e abriu o bloco de notass a sua
frente. Leu nome após nome das pessoas que vinham procurá-lo a respeito de
suas reputações, e as somas em dinheiro que juntara eram estarrecedoras.
“Cobrei alguns favores aqui e acolá,” explicou.
“Algum dia ou outro uma dessas pessoas virá assassiná-lo,” insisti.
“Você acha?”perguntou, massageando as orelhas mutiladas.
Era inútil discutir com ele, então tomei do manuscrito intitulado Dinastia
Imperial da América, pela derradeira vez que deveria fazê-lo no estúdio do Sr.
Wilde. Li-o do começo ao fim, excitado e tremendo de prazer. Quando terminei,
o Sr. Wilde pegou o manuscrito e, adentrando a passagem escura que leva de
seu estúdio até seu quarto, chamou em uma voz alta, “Vance.” Então, pela
primeira vez, percebi um homem lá agachado na escuridão. Como não o vira
quando de minha busca pela gata, não consigo imaginar.
“Vance, venha cá,” gritou o Sr. Wilde.
A figura levantou-se e descolocou-se vagarosamente até nós e jamais
esquecerei a face que apresentou a mi, assim que a luz da janela a iluminou.
“Vance, este é o Sr. Castaigne,” disse o Sr. Wilde. Antes que ele terminasse de
falar, o homem atirou-se ao chão diante da mesa, chorando e agarrando, “Oh,
Deus! Oh, meu Deus! Ajude-me! Perdoe-me! Oh, Sr.
Castaigne, afaste esse homem de mim. Você não pode, não pode estar
querendo isso! Você é diferente, salve-me! Estou arruinado–estava no
sanatório e agora–quando tudo estava voltando ao normal–quando já havia
esquecido do Rei–do Rei em Amarelo e–mas estou enlouquecendo
novamente–enlouquecerei–”
Sua voz morreu em um balbuciar sufocado, pois o Sr. Wilde saltara nele e com
sua mão direita segurara o pescoço do homem. Quando Vance foi ao chão, o
Sr. Wilde subiu agilmente em sua cadeira, e esfregando o toco de suas orelhas
mutiladas, voltou-se a mim e pediu-me o caderno de notas. Tomei dele na
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estante e ele o abriu. Depois de procurar por alguns momentos nas páginas
belamente escritas, ele tossiu complacentemente e apontou para o nome
Vance.
“Vance,” leu em voz alta, “Osgood Oswald Vance.” Ao som de seu nome, o
homem no chão ergueu sua cabeça e voltou sua face contorcida para o Sr.
Wilde. Seus olhos estavam injetados de sangue, seus lábios entumescidos.
“Chamou em 28 de Abril,” continuou o Sr. Wilde. “Ocupação, caixa do Banco
Nacional de Seaforth; serviu um termo por falsificação em Sing Sing, de onde
foi transferido para o Asilo dos Criminalmente Insanos. Perdoado pelo
Governador de Nova York, e com alta do Asilo em 19 de Janeiro de 1918.
Reputação manchada na Baía de Sheepshead. Rumores de que vive melhor
do que seu salário permite. Reparação a ser reparada urgentemente.
Honorários de $1,500.
“Nota.–Desviou quantias que montam $30,000 desde 20 de Março de 1919,
família excelente, assegurou sua posição atual pela influência de seu tio.
Pai, o Presidente do Banco Seaforth.”
Olhei para o homem no chão.
“Levante-se, Vance,” disse o Sr. Wilde com uma voz gentil. Vance levantou-se
como se estivesse hipnotizado. “Agora ele fará como nos mandarmos,”
observou o Sr. Wilde, e abrindo o manuscrito leu toda a história da Dinastia
Imperial da América. Então, em um murmúrio bondoso e consolador passou os
pontos importantes para Vance, que tudo ouvia como alguém atordoado. Seus
olhos estavam tão brancos e vazios que imaginei que ele tornara-se um
imbecil, o que mencionei para o Sr. Wilde, que replicou que aquilo não tinha
importância alguma. Muito pacientemente ele apontou para Vance qual seria
sua participação nos eventos que se sucederiam, e ele pareceu entender
depois de um tempo. O Sr. Wilde explicou o manuscrito, usando vários
volumes de Heráldica, para substanciar os resultados de suas pesquisas.
Mencionou o estabelecimento da Dinastia em Carcosa, os lagos que
conectavam Hastur, Aldebaran e o mistério das Híades. Discorreu sobre
Cassilda e Camilla, e percorreu as profundezas enevoadas de Demhe e o Lago
de Hali. “Os trapos rotos do Rei em Amarelo devem esconder Ythill para
sempre,” murmurou, mas não creio que Vance o tenha escutado. Então,
gradualmente, ele conduziu Vance pelas ramificações da família Imperial, de
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 34
Uoth e Thale, de Naotalba e o Fantasma da Verdade, até Aldones, e então
atirando para o lado seu manuscrito e as notas, ele começou a
maravilhosa história do Último Rei. Eu o ouvia fascinado e excitado. Ele olhou
para cima, seus longos braços abertos em um magnífico gesto de orgulho e
poder, seus olhos brilhavam no fundo de suas órbitas como duas esmeraldas.
Vance escutava estupefato. Enquanto eu, quando por fim, o Sr. Wilde
terminara, e apontando-me, gritou, “O sobrinho do Rei!” minha cabeça
mergulhou em excitação.
Controlando-me com um esforço sobre-humano, expliquei a Vance porque
somente eu era digno da coroa e porque meu sobrinho devia ser exilado ou
morrer.
Fi-lo entender que meu sobrinho jamais poderia casar, mesmo após renunciar
a toda sua herança, e mais ainda o porque ele jamais deveria casar-se com a
filha do Marquês de Avonshire e trazer a Inglaterra para o caso em tela.
Mostrei-lhe a lista de milhares de nomes que o Sr. Wilde alistara; todo homem
cujo nome lá constava recebera o Símbolo Amarelo que nenhum ser humano
ousava ignorar. A cidade, o estado, toda a terra, estava preparada para
levantar-se e tremer perante a Máscara Lívida.
O tempo chegara, as pessoas deveriam conhecer o filho de Hastur, e todo o
mundo ajoelhar-se perante as estrelas negras que pendiam nos céus sobre
Carcosa.
Vance curvou-se à mesa, sua cabeça enterrada em suas mãos. O Sr. Wilde
rabiscou um esquema tosco nas margens do _Herald_ do dia anterior com um
pedaço de lápis de chumbo. Era uma planta da casa de Hawberk. Então, ele
escreveu a ordem e afixou o selo, e tremendo como um homem paralítico
assinei meu primeiro mandado de execução com meu nome de Hildred-Rex.
O Sr. Wilde desceu ao chão e destrancando o armário, pegou uma longa caixa
retangular na primeira prateleira. Trouxe-a até a mesa e abriu.
Dentro, uma faca nova deitava-se sobre papel de seda. Tomei dela e a passei
a Vance, juntamente com o mandado e a planta do apartamento de Hawberk.
Então o Sr. Wilde disse a Vance que ele podia ir; e ele foi, arrastando-se como
uma marginal das favelas.
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Sentei-me por um momento vendo a luz do dia apagar-se atrás da torre
quadrada da Igreja Memorial Judson, e finalmente, pegando o manuscrito e as
nota, tomei do meu chapéu e dirige-me à porta.
O Sr. Wilde olhava-me em silêncio. Quando pisei no corredor, olhei para trás.
Os pequenos olhos do Sr. Wilde ainda fixos em mim. Atrás deles as sombras
reuniam-se à luz moribunda. Então fechei a porta atrás de mim e fui às ruas
escurecidas.
Não comera nada desde o café da manhã, mas não sentia fome. Uma criatura
desgraçada e meio morta de fome, que postava-se olhando a Câmara Letal
através da rua, percebeu-me e veio me contar uma história de miséria. Não sei
porque, dei-lhe dinheiro, e ela foi-se sem me agradecer. Uma hora depois outro
marginal aproximou-se e ganiu sua história. Possuía um pedaço de papel em
meu bolso, no qual estava traçado o Símbolo Amarelo e eu deu-lho. Ele olhou
estupidamente para o papel por alguns momentos, e depois com um olhar
incerto para mim, dobrou-o com o que parecia ser um cuidado exagerado e
guardou-o junto a sua barriga.
As luzes elétricas brilhavam entre as árvores, e a lua nova reluzia no céu sobre
a Câmara Letal. Era cansativo esperar na praça; perambulei do Arco de
Mármore até os estábulos da artilharia e de volta para a fonte de lótus. As
flores e a grama exalavam uma fragrância que me perturbava. O jato da lua
brincava ao luar, e o respingar musical das gotas cadentes relembravam-me do
tilintar das cotas de malha da loja de Hawberk. Mas não era tão fascinante, e o
reflexo apagado da luz da lua na água não traziam as sensações de prazer
elegante, tais como os da luz do sol sobre o aço polido de um corselete nos
joelhos de Hawberk. Observei morcegos dardejando e revoando sobre as
plantas aquáticas na bacia da fonte, mas seu voo rápido e corcoveante deixava
meus nervos à flor da pele e pus-me novamente a andar sem destino por entre
as árvores.
Os estábulos da artilharia estavam escuros, mas as janelas dos oficiais nas
casernas da cavalaria estavam brilhantemente iluminadas e as saídas estavam
constantemente prenchidas com tropas de uniforme, carregando palha e
arreios e cestos carregados de louça feita de latão.
Por duas vezes a sentinela montada nos portões foi trocada enquanto eu anda
para cima e para baixo no passeio de asfalto. Olhei o relógio. Era quase a hora.
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As luzes nas casernas apagaram-se uma a uma, o portão engradado foi
fechado e a cada minuto ou dois um oficial passava pela entrada lateral,
deixando um choacoalhar de adornos militares e um tilintar de esporas no ar
noturno.
A praça tornou-se muito silenciosa. O último vagabundo sem teto fora
espantado pelo policial de jaqueta cinza do parque, os caminhos para carros ao
longo da Rua Wooster estavam desertos e o único som que quebrava o
silêncio era o cavalgar do cavalo do sentinela e o retinir de seu sabre contra a
sela. Nas casernas, os alojamentos dos oficiais ainda estavam acesos, e
servidores militares passavam e repassavam pelas janelas. Meia noite em
ponto soou da nova torre de S. Francisco Xavier e ao último e triste badalar
uma figura passou pela cancela ao lado de uma portinhola e cruzando a rua
adentrou a praça, avançando em direção a casa de apartamentos da Benedick.
“Louis,” chamei.
O homem girou em suas botas esporadas e veio direto em minha direção.
“É você, Hildred?”
“Sim, você chegou na hora.”
Tomei de sua mão e descemos em direção à Câmara Letal.
Ele tagarelou sobre seu casamento e as graças de Constance, e seus
prospectos futuros, chamando-me a atenção para as tiras de capitão em seus
ombros e o triplo arabesco dourado em suas mangas e chapéu do uniforme.
Creio que ouvi tanto a música de suas esporas e de seu sabre como seu
balbuciar infantil, e quando por fim nos postamos sob os elmos na esquina da
Rua Quarta da praça em frente à Câmara Letal. Então ele riu e perguntou-me o
que queria dele. Fiz-lhe um gesto para sentar em um banco sob a luz elétrica e
sentei ao seu lado. Ele perscrutou-me curiosamente, com aquele mesmo olhar
inquiridor que tanto odeio e temo nos médicos. Senti o insulto de seu olhar,
mas ele não percebeu e eu cuidadosamente escondi meus sentimentos.
“Então, meu velho amigo,” ele inquiriu, “o que posso fazer por você?”
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Tirei de meu bolso o manuscrito e as notas sobre a Dinastia Imperial da
América e olhando-o nos olhos, disse:
“Eu te direi. Com sua palavra de soldado, prometa-me ler este manuscrito do
início ao fim, sem perguntar-me nenhuma questão. Prometa ler estas notas da
mesma maneira, e prometa ainda ouvir o que tenho a lhe dizer depois.”
“Eu prometo, se assim deseja,” disse gentilmente. “Dê-me o papel,
Hildred.”
Ele começou a ler, erguendo as sobrancelhas com um ar de desdém e
confusão, que me fez tremer com raiva contida. Enquanto avançava, suas
sobrancelhas contraíram-se e seus lábios pareceram formar a palavra
“besteiras.”
Então ele pareceu ligeiramente entediado, mas aparentemente por minha
causa leu, com uma tentativa de interesse, que parou de ser um esforço
quando ele deparou-se com seu próprio nome nas páginas escritas
minudemente, e quando viu o mei quando desceu a página, e olhou
agudamente para mim por um momento. Mas ele manteve sua palavra e
terminou de ler e eu deixei a questão meio formada em seus lábios morrer sem
resposta. Quando chegou ao fim e leu a assinatura do Sr. Wilde, ele dobrou
cuidadosamente o papel e o devolveu a mim. Entreguei-lhe as anotações e ele
acomodou-se, empurrando o chapéu para sua testa, com um gesto infantil, que
eu lembrava-me tão bem na escola. Observava sua face enquanto lia, e
quando terminou tomei das notas e do manuscrito e os coloquei em meu bolso.
Então desenrolei um pergaminho marcado com o Símbolo Amarelo. Ele viu o
sinal, mas não o reconheceu, e eu chamei-lhe a atenção para o símbolo um
tanto quanto rispidamente.
“Bem,” ele disse, “Estou vendo. O que é?”
“É o Símbolo Amarelo,” respondi raivosamente.
“Oh, então é isso, não?” disse Louis, naquela voz bajulante, que o Doutor
Arched habitualmente empregara comigo, e que provavelmente empregaria
novamente, caso não tivesse acertado minhas contas com ele.
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Controlei minha raiva e respondi tão firmemente quanto possível, “Escute, você
não me deu sua palavra?”
“Estou ouvindo, velho amigo,” respondeu tentando acalmar-me.
Comecei a falar calmamente.
“O Dr. Archer, tendo de algum modo encontrado o segredo da Sucessão
Imperial, tentou deprivar-me de meu direito, alegando que por causa de uma
queda de cavalo quatro anos atrás, tornara-me mentalmente deficiente. Ele
pretendeu colocar-me sob detenção em sua própria casa, na esperança de
levar-me à loucura ou envenenar-me. Eu não esqueci disso. Visitei-o na noite
passada e a nossa entrevista foi a última.”
Louis empalideceu, mas não se moveu. Continuei triunfalmente, “Há ainda três
pessoas a entrevistar no interesse do Sr. Wilde e no meu próprio. São eles o
meu sobrinho Louis, o Sr. Hawberk e sua filha Constance.”
Louis pôs-se subitamente em pé e também levantei-me, atirando ao chão o
papel marcado com o Símbolo Amarelo.
“Oh, eu não preciso daquilo para dizer-lhe o que tenho a dizer,” gritei, com um
riso de triunfo. “Você deve renunciar a coroa para mim, está escutando? Para
_mim_.”
Louis olhou-me com um ar assustado, mas recobrando o controle disse
afavelmente “Claro eu renuncio a–ao que mesmo devo renunciar?”
“A coroa,” falei com raiva.
“Certamente,” respondeu, “Eu a renuncio. Venha, meu velho, vou acompanhá-
lo de volta até seu quarto.”
“Não tente nenhum dos truques dos médicos comigo,” gritei, tremendo de fúria.
“Não haja como se eu estivesse louco.”
“Que absurdo,” ele replicou. “Vamos, está ficando tarde, Hildred.”
O Rei em Amarelo – O Reparador de Reputações Página 39
“Não,” gritei, “você tem que me ouvir. Você não pode casar, eu o proíbo. Está
ouvindo? Eu o proíbo. Você renunciará à coroa, e em recompensa eu te
concedo o exílio, mas se me recusar deverá morrer.”
Ele tentou acalmar-me, mas eu havia despertado enfim, e puxando minha
longa faca barrei-lhe o caminho.
Então lhe disse como encontrariam o Dr. Archer em seu porão com a garganta
aberta, e ri de sua cara quando imaginei Vance e sua faca e a ordem assinada
por mim.
“Ah, você é o Rei,” chorei, “mas eu devo tornar-me o Rei. Quem é você para
afastar-me do Império sobre toda a terra habitada! Eu nasci o sobrinho de um
rei, mas tornar-me-ei o Rei!”
Louis estava pálido e rígido diante de mim. Subitamente um homem veio
correndo pela Rua Quarta, adentrou o portão do Templo Letal, atravessou
velozmente o caminho que conduzia às portas de bronze, e mergulhou na
câmara da morte com o grito de um demente, e eu ri até que derramei
lágrimas, pois eu reconhecera Vanc e soube que Hawberk e sua filha não
estavam mais em meu caminho.
“Vá,” gritei para Louis, “você não é mais uma ameaça. Você nunca casará com
Constance agora e se casar com qualquer outra pessoa no exílio, eu te visitarei
como fiz com meu médico ontem. O Sr. Wild cuidará de você amanhã.” Então
virei-me e corri pela Quinta Avenida Sul, e com um grito de horror Louis
derrubou seu cinto e sabre e me seguiu como o vento. Ouvi-o aproximar-se de
mim na esquina da Rua Bleecker, e corri para dentro da porta sob a placa de
Hawberk. Ele gritou, “Alto, ou eu atiro!” mas quando viu que eu subia as
escadas, deixando a loja de Hawberk para trás, ele deixou-me e ouvi-o batendo
e gritando à porta como se fora possível acordar aos mortos.
A porta do Sr. Wilde estava aberta, e entrei chorando, “Está feito, está feito!
Deixe as nações se levantarem e contemplar o seu Rei!” mas não pude
encontrar o Sr.
Wilde, então fui até a gaveta e tomei da diadema esplêndida de dentro de sua
caixa. Então vesti o robe de seda branca, bordado com o Símbolo Amarelo e
pus a coroa sobre minha fronte. Por fim eu era Rei, Rei por meu direito em
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Hastur, Rei pois conhecia o mistério das Híades e minha mente penetrara nas
profundezas do Lago de Hali. Era Rei! As primeiras pinceladas cinzentas do
amanhecer levantariam uma tempestade que faria tremer dois hemisférios.
Então enquanto permanecia parado, cada nervo tensionado ao máximo,
desfalecendo com a alegria e o esplendor de meus pensamentos, na
passagem escura, um homem gemeu.
Tomei da lâmpada de sebo e saltei para a porta. A gata passou-me como um
demônio e a lâmpada apagou-se, mas minha faca longa voou mais rápida do
que ela e ouvi seu guinchar e soube que a faca a encontrara. Por um momento
ouvia rolando e batendo-se na escuridão e quando seu frenêsi cessou, acendi
a lâmpada e levantei-a. O Sr. Wilde jazia no chão com sua garganta aberta. De
início pensei que estivesse morto, mas enquanto olhava, um lampejo verde
veio a seus olhos afundados, sua mão mutilada tremeu e então um espasmo
esticou sua boca de orelha a orelha. Por um momento meu terror e desespero
cederam lugar à esperança, mas enquanto curvava-me sobre ele, suas órbitas
rolaram para dentro de sua cabeça e ele morreu. Então, enquanto esperava,
transfixado com ódio e desespero, vendo minha coroa, meu império, cada
esperança e cada ambição, minha própria vida, jazendo ali prostrada com o
mestre morto, _eles_vieram, apoderaram-se de mim pelas costas, amarraram-
me até que minhas veias saltaram como cordas, e minha voz falhou com os
paroxismos de meus gritos frenéticos. Mas eu ainda lutava, sangrando e
furioso e mais de um policial sentiu meus dentes afiados. Foi então que,
quando já não mais podia me mover, eles se aproximaram; vi o velho Hawberk
e atrás dele a face fantasmagórica de meu sobrinho Louis e ainda mais
adiante, no canto, uma mulher, Constance, chorando suavemente.
“Ah! Agora eu vejo!” berrei. “Você tomou o trono e o império. Desgraça!
desgraça para aquele que é coroado com a coroa do Rei em Amarelo!”
[NOTA DO EDITOR.--O Sr. Castaigne morreu ontem no Asilo para os
Criminalmente Insanos.]