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55 O renascimento do ser humano na arte Os mil anos da Idade Média foram um período de reorganização na Europa depois da queda da grande referência de civilização que havia apare- cido até então: o Império Romano do Ocidente. A Igreja Católica, durante esse período, conseguiu desenvolver um sistema consideravelmente or- ganizado política e estruturalmente. Ela manteve o conhecimento dos clássicos (greco-romanos) adaptando-os aos conceitos cristãos de mundo. Andrew Martindale descreve o fascínio dos europeus pelo berço do Império Romano durante a Idade Média e como a localização estratégica da Itália fez com que ela reassumisse um papel de destaque na economia europeia entre os séculos XII e XVII: A partir do declínio do Império Romano, os habitantes da Itália foram obrigados a suportar a presença de inúmeros estrangeiros, quer fossem membros dos exércitos entregues à pilhagem, quer peregrinos e “turistas” ávidos dos tesouros que a Itália possuía, e que as nações do norte não tinham. Além disso, os italianos sempre haviam acentuado a diferença que os separava dos “bárbaros do outro lado dos Alpes”. [...] é verdade que a Itália se mostrava rica, comparada com o norte da Europa, pois os comercian- tes italianos se encontravam mais perto das fontes orientais dos artigos de luxo, como especiarias e sedas, tão sofregamente procuradas pelo resto da Europa. (MARTINDALE, 1966, p. 8) A descoberta das Américas e das novas rotas marítimas para o Oriente no século XV tiraram o privilégio italiano sobre a economia eu- ropeia, mas os impactos definitivos desse novo movimento econômico só firmaram-se a partir do século XVII. Portanto, ao tratarmos da Arte da Renascença, séculos XV e XVI, falaremos da Renascença italiana e da arte além dos Alpes 1 , usando a terminologia usada por Martindale. 1 Cadeias de montanhas que separam a Itália do resto da Europa. A fantasia e a nossa vida nas artes No século XV as cidades europeias, que desde a segunda metade da Idade Média se desenvolveram com o aumento do comércio e da manufatura, floresceram. A burguesia, nascida dessas atividades, buscava o ideal de civilização que lhes parecia ser o mais bem-sucedido: a Antiguidade Clássica. Assim, a Igreja Católica foi perdendo aos poucos o seu poder para os soberanos que estavam se associando à burgue- sia emergente. Mas a Igreja ainda era a grande detentora de conhecimento, que foi sendo re- passado para a sociedade de maneira filtrada. Dessa maneira, a cultura renascentista vai se caracterizar pela fusão de elementos clássicos e cristãos. Nascimento de Vênus, 1482. Sandro Botticelli. Domínio público. Em O Nascimento de Vênus, do pintor ita- liano Sandro Botticcelli (1445-1510) vemos o retorno às referências greco-romanas (deuses olímpicos, nu) e também o desenvolvimento da técnica de perspectiva (noção de profundidade da pintura). A pintura representa a deusa Vênus Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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O renascimento do ser humano na arte

Os mil anos da Idade Média foram um período de reorganização na Europa depois da queda da grande referência de civilização que havia apare-cido até então: o Império Romano do Ocidente. A Igreja Católica, durante esse período, conseguiu desenvolver um sistema consideravelmente or-ganizado política e estruturalmente. Ela manteve o conhecimento dos clássicos (greco-romanos) adaptando-os aos conceitos cristãos de mundo.

Andrew Martindale descreve o fascínio dos europeus pelo berço do Império Romano durante a Idade Média e como a localização estratégica da Itália fez com que ela reassumisse um papel de destaque na economia europeia entre os séculos XII e XVII:

A partir do declínio do Império Romano, os habitantes da Itália foram obrigados a suportar a presença de inúmeros estrangeiros, quer fossem membros dos exércitos entregues à pilhagem, quer peregrinos e “turistas” ávidos dos tesouros que a Itália possuía, e que as nações do norte não tinham. Além disso, os italianos sempre haviam acentuado a diferença que os separava dos “bárbaros do outro lado dos Alpes”. [...] é verdade que a Itália se mostrava rica, comparada com o norte da Europa, pois os comercian-tes italianos se encontravam mais perto das fontes orientais dos artigos de luxo, como especiarias e sedas, tão sofregamente procuradas pelo resto da Europa. (MARTINDALE, 1966, p. 8)

A descoberta das Américas e das novas rotas marítimas para o Oriente no século XV tiraram o privilégio italiano sobre a economia eu-ropeia, mas os impactos definitivos desse novo movimento econômico só firmaram-se a partir do século XVII. Portanto, ao tratarmos da Arte da Renascença, séculos XV e XVI, falaremos da Renascença italiana e da arte além dos Alpes1, usando a terminologia usada por Martindale.

1 Cadeias de montanhas que separam a Itália do resto da Europa.

A fantasia e a nossa vida nas artes

No século XV as cidades europeias, que desde a segunda metade da Idade Média se desenvolveram com o aumento do comércio e da manufatura, floresceram. A burguesia, nascida dessas atividades, buscava o ideal de civilização que lhes parecia ser o mais bem-sucedido: a Antiguidade Clássica. Assim, a Igreja Católica foi perdendo aos poucos o seu poder para os soberanos que estavam se associando à burgue-sia emergente. Mas a Igreja ainda era a grande detentora de conhecimento, que foi sendo re-passado para a sociedade de maneira filtrada. Dessa maneira, a cultura renascentista vai se caracterizar pela fusão de elementos clássicos e cristãos.

Nascimento de Vênus, 1482. Sandro Botticelli.

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Em O Nascimento de Vênus, do pintor ita-liano Sandro Botticcelli (1445-1510) vemos o retorno às referências greco-romanas (deuses olímpicos, nu) e também o desenvolvimento da técnica de perspectiva (noção de profundidade da pintura). A pintura representa a deusa Vênus

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emergindo do mar, conforme descrito na mito-logia romana. Desse retorno à cultura clássica, os artistas italianos encontraram no retrato do nu uma relação profunda com o corpo humano e suas origens, conforme texto abaixo:

Botticelli pinta duas famosas telas inspiradas em temas mitológicos: A Primavera e O Nascimento de Vênus. Ambas nascem num ambiente profundamente marcado pelo neoplatonismo, que identifica o amor ao desejo de beleza. Não se trata do enaltecimento da mulher amada, de seus dotes físicos e espirituais, como acontecia nos romances de cavalaria, mas do amor como um exercício, que, através dos prazeres sensíveis, eleva a alma até a visão absoluta do Bem e da Verdade. É, pois, sintomático que o nu passe a ocupar o lugar de honra, até então destinado à Virgem. (ARTE NOS SÉCULOS, 1969, p. 584)

No entanto, os temas cristãos ainda con-tinuariam presentes na arte italiana. É interes-sante observar a diferença da arte com temas religiosos da Renascença e da Idade Média. Na Idade Média, a representação do corpo era desprezada. Na Renascença, temos o nu e, mesmo nos casos em que os personagens ti-nham roupas pesadas, o corpo se faz presente. A seguir, observamos como o grande escultor da Renascença italiana, Michelangelo (1475-1564), retratou personagens bíblicos aproveitando a presença do corpo de forma idealizada, típica dos greco-romanos.

Davi, 1501. Michelangelo. Florença, Galleria dell´Accademia.

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Davi é retratado de uma forma original, não após a batalha contra Golias, mas momentos antes dela, quando se preparava para enfrentar uma força que todos julgavam invencível. Por isso Michelangelo retratou o realismo do corpo nu e o predomínio das linhas curvas. Proença (2007, p. 105) destaca ainda as mãos esculpi-das por Michelangelo:

A mão é colossal, mesmo na proporção da es-tátua. É a mão de um homem do povo, forte e acostumado ao trabalho. Mas é na cabeça que se encontram os traços mais reveladores. O Davi de Michelangelo é heroico. Possui um tipo de hu-manismo idealizado pelos gregos. Possui um tipo de consciência que surge com o Renascimento em sua plenitude a capacidade de enfrentar os desafios da existência.

Pietá, 1498. Michelangelo. Vaticano, Basílica de São Pedro. Mármore.

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Pietá, por outro lado, retrata a dor de Maria sobre o corpo morto do filho, mas Michelangelo abandonou o realismo cruel típico desse tema em favor de uma visão idealizada, em que os detalhes do corpo geram uma delicada drama-ticidade.

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A pintura renascentista acompanha essa revolução técnica e estilística. Observe a seguir os trabalhos de dois pintores contemporâneos de Michelangelo.

Madona de Pescoço Longo, 1535. Parmigiano. Florença, Palácio Pitti. Óleo sobre tela.

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Visitação, 1503. Mariotto Albertinelli. Florença, Gallerie Degli Uffizi. Óleo sobre tela.

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Na Madona de Pescoço Longo de Parmigia-

no (1503-1540), mesmo recorrendo a algumas distorções de proporção, o pintor surpreende pelo uso sofisticado da luz e pela sensualidade da Madona (Maria) retratada, com sua forma sinuosa justapondo-se à rigidez das colunas ao fundo. Críticos condenam a frieza da mãe em relação ao seu filho, mas a justa medida da expressão das emoções era valorizada na Renas-cença. Isso pode ser observado na obra-prima de Albertinelli (1472-1515), A Visitação, em que a dramaticidade da situação é expressa na medida exata através da postura, dos pequenos gestos e do contato visual das personagens retratadas, sem o expressionismo medieval ou o extravasa-mento emotivo que vai marcar o Barroco.

Mas o grande nome da pintura italiana na Renascença foi o cientista, inventor e artista Leonardo da Vinci (1452-1519), que tratava a pintura como outra das suas ferramentas de investigação da natureza das coisas e do ser humano. E nenhuma outra obra demonstra isso de forma tão contundente quanto a Mona Lisa.

Mona Lisa, 1503. Leonardo da Vinci. Paris, Museu do Louvre. Óleo sobre tela.

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Mona Lisa: detalhe.

O efeito produzido pelo uso da técnica do sfumato (que cria a ilusão de luz e sombra) inventada por Da Vinci aliado à extraordinária expressão da jovem captada nessa obra tornam esse o quadro mais famoso de todos os tem-pos. Alguns dos motivos da popularidade desse quadro encontram-se no texto abaixo:

No entanto, a fama da Mona Lisa não provém apenas dessa sutileza pictórica: mais intrigante ainda é o fascínio psicológico que exerce. Por que, entre todos os rostos sorridentes que já foram pintados, esse aqui foi especialmente considerado “misterioso”? Talvez porque, enquanto um retrato, a pintura não satisfaça as nossas expectativas. [...] o sorriso, também, pode ser lido de duas formas: como eco de um temperamento e como expressão simbólica, intemporal. (JANSON, 1996, p. 211)

Muitos estudiosos consideram que a Mona Lisa foi determinante para o padrão da arte retratística posterior. Nesse famoso retrato, Leonardo usou a composição piramidal fazendo com que a modelo ocupasse o centro da imagem e a luz difusa se concentrasse no colo, pescoço e na face. Esse recurso usado pelo pintor pos-sibilita que o enigmático sorriso da Monalisa se destaque e o torne tão enigmático. Sigmund Freud interpretou esse sorriso como uma atração erótica que Leonardo pudesse ter por sua mãe, outros o interpretam como inocente, triste ou até mesmo lascivo.

A capacidade de Da Vinci captar os limites de várias emoções na expressão da retratada abre essa grande variedade de interpretações,

tornando essa obra uma viagem pessoal, de cada observador, pelo universo contido no olhar de uma dama que viveu no século XVI. Isso foi possível graças à técnica e ao olhar de Da Vinci, mas tam-bém ao contexto artístico em que ele viveu.

Hauser resume a atmosfera fascinante do Renascimento italiano no período chamado Quattrocento (século XV):

A mais impressionante característica da arte do Quattrocento é, em contraste com a da Idade Média e a da Europa setentrional, a extraordinária liberda-de e ausência de esforço de expressão, a graça e elegância, o peso estatuesco e a grande, impetuosa linha de suas formas. Tudo é aí brilhante e sereno, rítmico e melodioso. (HAUSER, 1998, p. 279)

A região da Holanda e de Flandres (atual Bélgica) foi outro grande centro da pintura re-nascentista. Amsterdã e Antuérpia tornaram-se, na época, grandes centros comerciais gerando uma burguesia forte e enriquecida que financiou as obras de alguns grandes artistas.

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O Cambista e sua Esposa, 1514. Quentin Metsys. Paris, Museu do Louvre. Óleo sobre madeira.

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Detalhe de O Cambista e sua Esposa. Quentin Metsys.

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Cruz às Costas, 1490. Hieronymus Bosch. Bélgica, Ghent. Museu de Belas-Artes.

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Casamento Camponês, 1568. Pieter Bruegel, o Velho França, Saint-Germain-en Laye, Museu Municipal.

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Paisagem com Forcas, 1568. Peter Bruegel, o Velho Darmstadt, Hessiches Landesmuseum.

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Bruegel foi um pintor de multidões e de ce-nas populares. Ele também tinha predileção por paisagens, mas pintou quadros que realçavam

O Cambista e sua Esposa de Quentin Metsys (1465-1530) mostra algumas carac-terísticas dos pintores flamengos: retratos da burguesia, descrição dos detalhes e referência sutil à paisagem. O exterior do aposento em que foi pintada a cena é mostrado de forma minuciosa, original e inusitada no reflexo distor-cido do espelho colocado sobre a mesa, como destacado no detalhe.

Por outro lado, o intenso capitalismo da região gera uma desigualdade social intensa. As classes excluídas buscam maneiras de se entreter e aplacar o sofrimento e a falta de perspectivas. Dois grandes pintores retratam o universo desse povo simples: Hieronymus Bosch (1450-1516) e Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569).

Em O Prestidigitador, Bosch retrata uma cena da vida urbana da época. E aí percebemos o olhar aguçado do pintor para os tipos humanos e comportamentos, que ele desenvolveu de forma caricatural, chegando ao grotesco.

O Prestidigitador, 1475. Hieronymus Bosch. França, Saint-Germain-en Laye. Museu Municipal.

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Em Cruz às Costas, o tema da Via Crucis é tradicional, mas a forma como a cena é re-tratada é revolucionária: Jesus aparece sere-namente sendo fustigado por figuras grotescas do povo. Bosch abre mão da perspectiva, que dominava muito bem, para acentuar o mosaico das expressões do grotesco.

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o absurdo na vulgaridade, expondo as fraquezas humanas, o que lhe trouxe fama. Isso pode ser observado nos detalhes do Casamento Cam-ponês. O mesmo acontece em Paisagem com Forcas, mas de forma mais enigmática: a beleza da paisagem e a inocência das brincadeiras das crianças contrastam com a forma desolada das forcas vazias.

A pintura de Bosch e Bruegel não seguia os padrões estéticos da arte de sua época, chegando a não ser muito bem vista nos cír-culos de apreciadores mais “sofisticados” até meados do século XX. Mesmo assim, ela trouxe um elemento importante de parte da arte da Renascença: o retrato do homem com seus defeitos, suas fraquezas. É um dos aspectos da corrente Humanista do pensamento renas-centista: a retomada do ser humano como o centro das atenções, a observação e aceitação de seus aspectos biológicos, morais, sociais e comportamentais como princípio para a busca da melhoria desses mesmos aspectos.

A fantasia e a nossa vida nos livros

O Humanismo tornou-se a grande marca da Literatura e do Teatro na Renascença. Durante a Idade Média, a literatura dita “séria” (Bíblia, obras filosóficas) era toda produzida em latim, a língua que a Igreja Católica adotou dos romanos. Nem na Itália o latim era usado no dia a dia, mas acreditava-se que era a única língua capaz de transmitir as “grandes ideias”.

No ano de 1300, um italiano chamado Dante Alighieri (1265-1321) escreveu A Divina Comédia, uma obra que tem estrutura de poema épico, é dividida em Inferno, Purgatório e Paraíso e possui três personagens principais: Dante, que representa o homem; Beatriz, que representa a fé e, por fim, Virgílio, que personifica a razão.

Ilustração de Gustave Doré para edição da Divina Comé-dia, de Dante Alighieri, de 1857.

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Além da força do texto e do alcance mítico da história, a obra trouxe a novidade de ter sido escrita em italiano, e não em latim. Essa novidade adianta uma tendência da Renascença, quando os autores de vários países vão adotar a língua falada para composição de suas obras e a partir de então nasceram as grandes obras que se tornaram refe-rência para a língua de seus respectivos países.

Ainda na Itália, Giovanni Boccaccio (1313-1375) escreveu a obra Decameron, em que dez jovens se reúnem durante dez dias numa mansão campestre para contar histórias picantes e para fugir da Peste Negra. Ao todo são 100 contos que incluem sexo, trapaças e pequenas vinganças. O historiador Edward Burns descreve com entusias-mo as melhores características de Boccaccio:

Boccaccio não inventou de modo algum as 100 histórias, mas mesmo ao basear seus contos em fontes anteriores, renarrou-os em seu próprio estilo caracteristicamente exuberante, seguro e de extremo humor. São muitos os motivos pelos quais o Decame-rão deve ser considerado marcante do ponto de vista histórico. O primeiro é que foi a mais recuada obra ambiciosa e bem-sucedida composta em vernáculo, na Europa Ocidental e em prosa narrativa. (BURNS, 2000, p. 531)

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Portugal, outro destacado país na arte lite-rária era, antes e depois da descoberta do Brasil (1500), o país das aventuras marítimas. Mais da metade das tripulações das grandes navegações não voltavam de suas viagens e os que voltavam traziam histórias de heroísmo e conquistas. Em 1572, Luís Vaz de Camões lançou Os Lusíadas, que conta a aventura de vários navegadores portugueses. Camões contou suas histórias com autoridade: ele mesmo foi marinheiro, combateu em várias batalhas (em uma delas perdeu um olho), chegou a naufragar uma vez e se salvou nadando até a costa do Camboja.

Na Espanha, Miguel de Cervantes (1547-1616) lança em 1605 Dom Quixote. A figura do cavaleiro louco, magro, montado em um cavalo capenga, que usa uma bacia na cabeça imagi-nando ser o elmo de uma armadura linda, ao lado do seu fiel criado Sancho Pança, tornou-se uma figura emblemática no imaginário ocidental.

Ilustração de Gustave Doré para edição de Dom Quixote, de Cervantes, de 1863.

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A fantasia e a nossa vida no teatro

Além da Commedia dell’Arte italiana, que desde o final da Idade Média agitava a cultura popular na Europa, outros movimentos nacionais de teatro se destacavam em diferentes países.

Na França, um ator e autor de comédias que se inspirou na Commedia dell’Arte para escrever textos divertidíssimos, que são montados até hoje, foi Molière (1622-1673). Entre seus textos mais conhecidos estão: “O avarento”, “Escola de mulhe-res”, “Escola de maridos”, “O doente imaginário”, “Tartufo”, “O burguês fidalgo”, entre outros.

Na Espanha, o teatro também prosperou muito. As companhias, para cobrar ingresso, improvisavam a montagem de palcos dentro de currais cercados. Eram os chamados currales. Ali aconteciam apresentações muito populares e grandes textos foram escritos e encenados nes-se que é chamado o Século de Ouro do Teatro Espanhol (século XVII). O maior autor de peças desse período foi Calderón de la Barca (1601-1681) e seu texto de maior destaque chama-se “A vida é sonho”.

Mas foi na Inglaterra, ainda na Renascença, que o teatro viveu um período de glória como poucos. Esse período de intensa produção e de autoria de grandes textos teatrais ficou conhecido como o Teatro Elizabetano, por ter acontecido durante o reinado da rainha Elizabeth I (1558-1603). Alguns grandes autores dessa época são Christopher Marlowe (1564-1593) e Ben Jonson (1572-1637). Mas o maior deles foi William Shakespeare (1564-1616).

O teatro nessa época era muito popular, apreciado inclusive pelas pessoas mais simples e pouco letradas. Os teatros eram circulares,

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sem teto, para aproveitar a luz do dia para ilu-minar as apresentações. As pessoas sentavam--se nas galerias, mas a maioria ficava de pé na plateia ao longo das apresentações que tinham de duas a quatro horas de duração. De tradição puritana, o teatro inglês só admitia atores ho-mens, inclusive para interpretar os papéis femi-ninos. Não havia cenários diferentes para cada peça, então o mais importante era o trabalho dos atores e o texto.

Shakespeare traduziu esse espírito em suas obras e via o mundo com os olhos de um cidadão de seu tempo, mesmo que muitas vezes desilu-dido e com ideias radicais de direitos humanos. Muitos percebem em seus personagens uma crítica aos abusos de poder e da opressão na qual a vítima é o cidadão comum. Entretanto, não há concordância quanto às intenções do escritor:

Os críticos conservadores concordam usualmente em que Shakespeare despreza a gente comum e detesta a “ralé” das ruas, enquanto alguns socialistas, que gostariam de contá-lo como a um dos seus, pensam em estar fora de questão, a esse respeito, a existên-cia nele de aversão e desprezo, e acham que ninguém tem o direito de esperar de um poeta do século XVI que tomasse partido ao lado do proletariado, como o entendemos hoje, e ainda mais quando essa espécie de proletariado era inexistente na época. (HAUSER, 1998, p. 433)

Hauser afirma também que a grandeza de Shakespeare não pode ser explicada por meio da Sociologia e o que se pode admitir para qualificá--lo é a qualidade artística de sua trajetória pelo mundo da literatura, como podemos observar nas 38 peças e 134 sonetos que chegaram até nossos dias.

Shakespeare escreveu as tragédias Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth, entre outras. Escreveu também dramas históricos, como Ricardo III, Henrique V e Júlio César, além de comédias, como A Comédia dos Erros, Noite de Reis, Sonhos de uma Noite de Verão, Como você Gosta, Muito Barulho por Nada e outras.

Por fim, é importante salientar que o Renas-cimento foi muito mais do que um simples reviver da cultura da Antiguidade, pois nesse período aconteceu a mais significativa explosão criativa num espaço tão curto de tempo. No campo das Artes, da Literatura, da Ciência, da Arquitetura e da Filosofia as realizações foram enormes e expressaram o ideal humanista de colocar o homem como o centro do universo. Num senti-do amplo, o homem e a natureza puderam ser considerados no Renascimento como expressão de racionalidade e de dignidade.

Para saber mais

Quem pagava as contas?

(STRICKLAND, 2004, p. 36)

Antes de existirem os museus e as galerias de arte, os artistas dependiam do sistema de mecenato, não só para se sustentarem mas para comprar o material de trabalho, que era caro. O inspirado gosto de Lourenço, o Magnífico, aliado a prédios e obras generosamente patrocinados por ricos governantes fez uma cidade inteira – Florença – uma obra de arte. No entanto, é interessante notar que a palavra “patrono” (protetor, mecenas), ou patron, significa patrão, tanto em italiano como em francês. Em artistas irascíveis como Michelangelo, a tensão entre espírito criador e a necessidade de seguir ins-

truções na criação resultava em feiura. O melhor exemplo do sucesso e do fracasso do sistema de mecenato foi a difícil relação de Michelangelo e os Médici.

Michelangelo devia seu aprendizado a Lourenço de Médici, mas o insensível filho de Lourenço certa vez ordenou que o artista esculpisse uma estátua de neve no centro do pátio do palácio. Anos mais tarde, os Papas Leão X e Clemente VII, da família Médici (o escultor trabalhou para sete dos 13 papas que viveram em seu tempo), fizeram com que Michelangelo deixasse de lado outros traba-lhos para esculpir estátuas para os túmulos da família. Os rostos de pedra, porém, não mostravam semelhança com os falecidos,

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Dicas de estudoPara conhecer a obra de Shakespeare, há

várias adaptações de obras suas para o cinema, mas vale a pena começar com Shakespeare Apaixonado (direção de John Madden) uma co-média romântica que, embora narre uma situa-ção ficcional (a paixão de Shakespeare por uma nobre inglesa) sobre a criação da peça Romeu e Julieta, também mostra uma boa pesquisa sobre o Teatro Elizabetano, ilustrando bem o que estudamos neste capítulo.

Há também a comédia Muito Barulho por Nada (direção de Kenneth Branagh), o drama histórico Ricardo III (direção de Richard Loncrai-ne) e a tragédia Hamlet (direção de Kenneth Branagh). Perceba como o Teatro Elizabetano gerou uma tradição de interpretação e textos estimulantes que movem o teatro e o cinema até a atualidade.

Exercícios de aplicação

A pintura a seguir é obra de um dos gran-1. des pintores da Renascença, um pintor de Flandres (atual norte da Bélgica), que tinha predileção por paisagens e tipos humanos simples. Quem foi esse pintor e quais são as principais características de sua obra?

A Colheita do Milho. 1565. Nova York, Metropolitan Museum of Art.

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como se pretendia. Mas Michelangelo não permitiu interferência em suas concepções, dizendo que dali a cem anos ninguém se importaria com a aparência que os defuntos haviam tido em vida. Infelizmente, esses tra-balhos acabaram ficando inacabados, pois seus volúveis protetores mudavam de ideia a cada momento e cancelavam, sem maiores explicações e muitas vezes sem pagamento, projetos em que Michelangelo passara anos trabalhando.

A pior encomenda que Michelangelo rece-beu foi do Papa Julio II, o “papa guerreiro”, que

estava decidido a restaurar o poder temporal do papado. Julio tinha um projeto ambicioso para seu próprio túmulo e ambicionava construí-lo no centro da Basílica de São Pedro, depois de restaurada. Para isso encomendou quarenta estátuas de mármore em tamanho natural para decorar uma imensa estrutura de dois andares. O projeto atormentou Michelangelo durante quarenta anos, pois Julio e seus parentes redu-ziam o projeto e interrompiam seu andamento com outras encomendas. Quando falava sobre a comissão, Michelangelo referia-se a esse trabalho como a “Tragédia do Túmulo”.

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A escultura a seguir, 2. Moisés, é uma das principais obras de um artista renascentista italiano. Conta-se que após terminar de es-culpir a estátua de Moisés, o artista teve um momento de alucinação diante da beleza da escultura, bateu com um martelo na estátua e disse: “Porque não falas?” Quem foi esse escultor e qual é a principal característica de suas grandes obras?

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Moisés, 1515. Roma, Igreja de San Pietro in Vincoli.

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Gabarito

Exercícios de aplicação

Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569) foi um 1. pintor de multidões e de cenas populares. Também tinha predileção por paisagens, mas pintou quadros que realçavam o ab-surdo na vulgaridade, expondo as fraquezas humanas, o que lhe trouxe fama.

O escultor italiano Michelangelo (1475-2. 1564), criador também de Davi e Pietá, retratou personagens bíblicos aproveitando a presença do corpo de forma idealizada, típica dos greco-romanos.

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