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reflexões sobre a relação oriente / ocidente com base na leitura de Edward Said
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Filipa I. Albuquerque
Ensaio apresentado à Escola Superior de Teatro e Cinema no âmbito do
Seminário Identidades do Mestrado em Teatro e Comunidade
2009
O ROUXINOL DE H.C. ANDERSEN OU COMO O
ORIENTE É O OCIDENTE AO ESPELHO,
ISTO É, A IMAGEM DO OUTRO LADO DE
ACORDO COM AS TESES DE EDWARD W. SAID
2
“Usam também os chinas de bonifrates, com os quais fazem representações por
engenhos, como em Portugal os trouxeram alguns estrangeiros para ganharem
dinheiro; e para o mesmo fim de ganhar dinheiro os usam os chinas. Criam
rouxinóis e ensinam-nos a fazer representações, com diversas maneiras de vestidos
de homens e de mulheres, e fazem jeitos e trejeitos muito para folgar de ver. Só
este género de pássaros criam em gaiolas mui bem feitas para cantarem, e têm
comummente macho e fêmea em diversas gaiolas. E para cantarem apartam o
macho da fêmea, de maneira que se sintam mas não se vejam; e assim se desfaz o
macho em música, e cantam todo o ano. Eu tive dois, macho e fêmea, e em
Dezembro cantavam como que fora em Abril.”
(Frei Gaspar da Cruz, Tratado das Cousas da China – V)
§1. Breve enquadramento teórico
O Oriente não existe ali, como uma realidade fixa e imutável, “um facto inerte”1,
estabelecido para sempre pela imobilidade do lugar que se situa a oriente. Desde logo
porque os lugares são relativos. Os territórios são o que são em função do lugar que
ocupa o observador. O Oriente é o oriente, porque aqueles que o nomearam auto-
designaram-se como Ocidente. Se os que designamos por orientais se auto-
posicionassem como ponto de referência a partir do qual nomeariam os outros, também
poderiam chamar oriente ao sítio que agora designamos por Ocidente. No entanto, se
nós fossemos os orientais e eles os ocidentais, a substância da coisa não mudaria.
Porque haveria um nós e um eles. E acima de tudo, não iria alterar esta perspectiva
fundamental: é que esses lugares geográficos são construções dos homens, ou de alguns
homens que possuem legitimidade para nomear e justificar essa nomeação. Mais do que
um sítio, “o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, de
1 Edward W. SAID, Orientalismo, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, p. 5.
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imagens, e um vocabulário que lhe deram uma realidade e uma presença no e para o
Ocidente. As duas entidades geográficas, pois, apoiam-se, e até certo ponto reflectem-se
uma na outra”2.
O Oriente é uma invenção do Ocidente, um lugar romanesco e/ou
academicamente construído e legitimado, povoado por seres fantásticos e exóticos, um
lugar que foi sendo inventado pelo Ocidente, como elemento que, por contraposição,
contribui para a construção da identidade do próprio Ocidente. O Oriente surge, assim,
como a imagem que o espelho elaborado pelo Ocidente é devolvido a este, quando se
contempla ao espelho e se deixa levar pela sua imaginação efabuladora. Mas não é
apenas um produto do delírio ocidental; a construção dessa imagem (oriental) também
serviu os interesses coloniais do Ocidente. Este projecto ocidental de domínio socorre-
se dessa construção e esta construção legitima (ou pretende legitimar) essa dominação.
Por um lado, mobiliza o povo ocidental na desconsideração daqueles seres estranhos e
diferentes; por outro lado, constrói um labirinto onde os dominados se enleiam sem se
reconhecerem nessas imagens e, por isso, reduzindo as suas possibilidades de auto-
determinação.
Esta ligação do orientalismo ao projecto colonial do Ocidente não me parece tão
despiciendo. Edward W. Said sublinha que, ao contrário dos americanos, os europeus
(ingleses e franceses, sobretudo) desenvolveram uma longa tradição de orientalismo.
Com efeito, sendo o orientalismo originado a partir das potências ocidentais, o autor
distingue a produção franco-britânica do oriente e do orientalismo e a
produção/participação das outras potências europeias. Haveria ainda a ter em conta a
perspectiva americana distinta das já mencionadas e que sucedeu à dominação franco-
britânica. O argumento de Edward W. Said vai no sentido de que “o orientalismo
provém de uma particular proximidade mantida entre a Grã-Bretanha e a França e o
Oriente que até aos inícios do século XIX tinha significado apenas a Índia e os
2 Ibid.
4
territórios bíblicos”3 . A partir da Segunda Guerra Mundial, a América começou a
dominar o Oriente, substituindo-se à Grã-Bretanha e à França. Nos mesmos moldes?
Parece-nos que não. A razão dessa diferença de perspectivar o Oriente pode ter a ver
com um facto interessante: é que a América já foi o Oriente do Ocidente, no momento
em que Colombo julgou ter chegado à Índia. Por outro lado, a América constituiu-se a
partir duma situação de colónia explorada pelas potências europeias, nomeadamente
franco-britânicas. Assim sendo, a América deverá olhar o Oriente doutra maneira que os
países europeus, pois a América foi, durante alguns séculos, o Outro da Europa, o
Ocidente do Ocidente, logo, o Oriente, a Índia (ocidental). Poderia, assim, haver uma
solidariedade inconsciente para com o oriente, uma secreta afinidade.
Esta perspectiva dum Oriente construído segundo o Ocidente está bem patente,
entre nós, nas descrições que se vão fazendo no âmbito da vastíssima literatura de
viagens a partir do século XVI4. Estas descrições traduzem sobretudo a visão de nós
próprios, porque feitas a partir dos quadros mentais e culturais dos que viajavam e
relatavam. A sua interpretação do desconhecido que as viagens defrontavam era melhor
interpretado a partir do que a comunidade de leitores já sabia, segundo o seu horizonte
de recepção e o seu repertório, segundo as suas expectativas, mais aptas a conferir o que
era semelhante que a distanciar-se perante o que era diferente. Marco Pólo, o paradigma
do viajante aventureiro em terras do Oriente, também não fugiria a essa fatalidade pois
“não consegue libertar-se completamente da sua formação cultural e introduz nas suas
descrições reminiscências da literatura e da iconografia relativa às maravilhas
3 Edward W. SAID, op. cit., p. 4. 4 Como são o caso de a Verdadeira Informação do Preste João das Índias (1540), do Pe. Francisco Álvares, o Tratado das Cousas da China (1570), de Frei Gaspar da Cruz, o Itinerário da Terra Santa (1593), de Frei Pantaleão de Aveiro, a Etiópia Oriental (1609), de Frei João dos Santos, ou o Itinerário da Índia por Terra (1611), de Frei Gaspar de São Bernardino.
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orientais.”5 Desse modo fica explicada a visão dos Europeus sobre o Oriente: “eles
descobriram o novo com olhos antigos e contavam-no respeitando as convenções”6.
§2. Os rouxinóis do imperador chinês
Num dos seus contos intitulado O Rouxinol, H. C. Andersen fala-nos dum
rouxinol cujo canto impressionou um imperador chinês, deixando toda a gente
maravilhada. A impressão que deixou no imperador é medida pelo efeito que causou: o
rouxinol cantou tão bem que vieram as lágrimas aos olhos do imperador, pois o seu
canto foi-lhe direito ao coração. O chefe máximo do grande Império do Meio, apesar de
habituado às mais frias e violentas deliberações políticas que muitas vezes deve ter
envolvido a eliminação implacável dos seus inimigos internos e externos, deixou-se
comover pelo canto dum simples e frágil pássaro. A própria ave reconhece esse facto,
ao sentir-se recompensada pelas lágrimas dum homem tão poderoso. Por outro lado, a
humanidade do político vai ser importante para se compreender o sentido da decisão
que na parte final da história irá tomar em relação ao rouxinol. De qualquer modo,
quando o imperador ouve pela primeira vez o rouxinol no seu palácio, cuja decoração
corresponde ao imaginário ocidental e nada tem a ver com as instalações reais dos
imperadores chineses, opta por ficar com o rouxinol. Este passaria a ter a sua própria
gaiola, bem como a liberdade de passear cá fora duas vezes por dia e uma vez de noite.
Para isso, o rouxinol, recebeu doze criados que o prendiam com uma fita de seda à volta
das pernas, segurando-o bem firme. Porém, não era nenhum prazer esse passeio! No
entanto, o rouxinol vai transformar-se rapidamente numa celebridade, dentro e fora do
palácio. Até que o imperador recebe uma encomenda enviada pelo imperador do Japão:
um rouxinol artificial, guarnecido com diamantes, rubis e safiras. Dando-se-lhe corda,
ele cantava cada uma das peças que o outro rouxinol cantava. Depois de cantarem em
5 Rafaella d’INTINO, Enformação das Cousas da China: Textos do Século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional‐Casa da Moeda, 1989, pp. XVI‐XVII. 6 Ibid.
6
dueto sem sucesso, o rouxinol artificial vai acabar por cantar sozinho e ter grande
sucesso, pois além de cantar como outro, era agradável à vista, com o brilho intenso de
todas as pedras preciosas que o revestiam. Até que o rouxinol que viera da floresta
acaba por fugir. Mas ninguém o lamenta: o rouxinol artificial apresenta muitas
vantagens: canta sem se cansar e, além disso, não é imprevisível como o outro. Até que
um dia, o mecanismo do rouxinol artificial avaria. Nem o médico, nem o relojoeiro
conseguirão consertá-lo, pelo que, com grande pena de todos, o rouxinol apenas poderá
cantar uma vez por ano. Passaram alguns anos e o imperador adoeceu gravemente.
Rígido e pálido, o imperador jazia no seu leito doirado quando a Morte lhe apareceu
sobre o peito, com quem começará a prestar contas. Esta fase moribunda só será
interrompida pelo maravilhoso canto do rouxinol verdadeiro que, com a sua presença e
o seu canto, inverterá o processo, proporcionando a recuperação do imperador. Este
pedirá ao rouxinol para, definitivamente, ficar no palácio, mas em vão: o rouxinol gosta
mais do coração do imperador do que da sua coroa e prefere voar para junto da floresta
e das pessoas humildes. O rouxinol prefere voltar apenas quando disso tiver vontade.
Neste original conto, Andersen confronta dois planos distintos: dois rouxinóis, o
animal e a máquina, um oriundo do Japão e o outro originário da China; mas também
coloca em paralelo a vida no palácio e a vida na floresta, cantar juntos das cortesãs e
cortesãos ou cantar para o pescador e para o camponês, a prisão e a liberdade, o
maquinismo e a vontade. Deste confronto, fica clara a posição de Andersen identificada
com o Oriente, enquanto lugar da realização de todos os desejos que compensam as
insuficiências da realidade inamovível do Ocidente. Assim, a vitória do rouxinol sobre o
seu simulacro mecânico anda ao arrepio do que se assistira após a revolução industrial e
a vitória do maquinismo: o triunfo do mundo mecânico sobre a Natureza e a
desvalorização do trabalho humano. Mas a vitória sobre o rouxinol mecânico, depois de
terem sido reconhecidas as suas virtudes, corresponde ao sentimento de que a sociedade
europeia saída da revolução industrial também já começa a tornar visíveis as suas
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contradições, a sua irracionalidade, as suas crises. A crise da sociedade ocidental e as
primeiras manifestações operárias contra a sociedade capitalista são aqui projectadas na
superação pacífica da dualidade natureza/máquina. A vitória derradeira da natureza
acontece pacificamente num mundo da abundância e da concórdia: o palácio ricamente
decorado, uma floresta acolhedora (onde o canto do rouxinol soaria melhor, como ele
avisa), um passarinho que canta sobre a gente feliz e sobre aqueles que sofrem. Um
mundo desejável: este mundo do imperador chinês amado pelo seu povo é o ocidente
desejado por aqueles que temem a revolução social. O mundo do imperador chinês
representa, afinal, o ocidente desejado, um mundo bucólico, harmónico e puro,
vencendo a morte com a ajuda do canto simples dum passarinho desinteressado e
generoso.
Ao que tudo indica, Andersen, ao escrever este conto sobre um rouxinol
maravilhoso, estaria a pensar na cantora lírica sueca Jenny Lind, conhecida como o
rouxinol, por quem estaria apaixonado. Do mesmo modo, em Andersen, como os
orientalistas, as suas descrições teriam menos a ver com o império chinês e o oriente em
geral do que com o nosso mundo. Só que dessa maneira, ocultando, damos melhor a ver
o que se oculta nos nossos desejos.
Lisboa, Março de 2009
Filipa Albuquerque
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Bibliografia
• SAID, Edward, 1978, Orientalismo, Lisboa: Cotovia, 2004
• ANDERSEN, Hans Christian, Histórias e Contos Completos de Hans Christian Andersen,
2005 Trad. Silva Duarte, Gaia: Edições Gailivro, 2005, [O Rouxinol]
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ANEXOS
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