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O SACERDOTE E A CIDADE Por José de Oliveira Barbalho Programa de Pós-graduação em Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL 2008

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O SACERDOTE E A CIDADE Por José de Oliveira Barbalho

Programa de Pós-graduação em Filosofia

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

2008

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O SACERDOTE E A CIDADE Por José de Oliveira Barbalho Orientador: Dr. Luis A. De Boni Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Filosofia, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor. Área: Filosofia Medieval

Porto Alegre-RS

2008

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Título: O SACERDOTE E A CIDADE Autor: José de Oliveira Barbalho Aprovada por: _______________________________________ Prof. Dr. Luis Alberto De Boni. _______________________________________ Prof. Dr. Nythamar H.F. de Oliveira Jr. _______________________________________ Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann _______________________________________ Prof. Dr. Sérgio R. Strefling _______________________________________ Prof. Dr. José Antônio C. R. Souza.

Porto Alegre

2008

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AGRADECIMENTOS

Ao grande Mestre Dr. De Boni. A sua orientação, dedicação, atenção, generosidade e

amizade foram indispensáveis na elaboração deste trabalho.

Ao Dr. José Antônio C. R. Souza. As suas aulas na Graduação e na Pós-Graduação estão

bem sedimentadas na minha memória. Foi através desse pesquisador de valor inestimável

que iniciei os meus estudos no campo da filosofia medieval.

Aos meus filhos, Gabriel Antônio e Pedro Inácio; à minha esposa, Nely; à minha mãe,

Francisca. Pessoas que guardo no meu coração. A compreensão e estímulo de cada um

deles foram decisivos para a realização deste trabalho.

Aos colegas do Departamento de Filosofia e Teologia da UCG, especialmente as Dras.

Irene Dias e Maria Eliane, pelo incentivo e apoio, e ao prof. Ms. Lorenzo Lago, por ter

trazido da Itália textos sobre Marsílio.

Ao Dr. Floriano César, que enriqueceu a minha bibliografia sobre Marsílio.

À UCG, na pessoa do Dr. José Heck, que proporcionou a concretização do convênio com a

PUCRS.

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RESUMO

BARBALHO, José de Oliveira. O sacerdote e a cidade. Orientador: Dr. Luis A. De Boni.

Porto Alegre: PUCRS/ Programa de Pós-Graduação em Filosofia. 2008. Tese (Doutorado

em Filosofia Medieval).

Escolhemos como objeto de nosso estudo, nesta tese de doutoramento, a relação entre o

sacerdotium e o regnum no Defensor da Paz, com o propósito específico de conhecermos o

lugar do sacerdote na civitas marsiliana. Veremos que esse tema leva-nos a melhor

compreensão da teoria política do paduano. Questões como “O que é o sacerdócio

cristão?”, “Em que consiste, verdadeiramente, a civitas cristã?” e “Qual a relação entre

ambos?” implicam a descoberta do fato de que, na vida presente, só há um poder, o do

Estado. Quando o espiritual se torna uma fonte a mais de poder, na comunidade política,

gera-se o facciosismo ou a guerra civil. Veremos também que as limitações da sua teoria a

respeito da relação entre o sacerdote e a cidade não colocam à sombra a riqueza de seu

pensamento político, no sentido de que este nos impulsiona a pensar diferentemente a

comunidade política. Utilizamos como fonte principal o Defensor da Paz. Em segundo

plano, para esclarecer algumas dúvidas, recorremos ao Defensor Menor. Dentre os estudos

sobre Marsílio, selecionamos aqueles que mais diretamente estão relacionados com o objeto

de nossa investigação. Ao fazermos este trabalho, acreditamos que ele possa ser mais uma

modesta contribuição ao estudo do pensamento político de Marsílio de Pádua, no Brasil.

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ABSTRACT

BARBALHO, José de Oliveira. The priest and the city. Advisor: Dr. Luis A. De Boni.

Porto Alegre: PUCRS / the Postgraduate Program in Philosophy. 2008. Thesis (Doctor in

Medieval Philosophy).

We chose as the object of our study in this doctoral thesis the relationship between the

sacerdotium and the regnum in the Defensor Pacis, with the specific purpose to understand

the place of the priest in Marsilius’ political society (civitas). We will see that this issue

leads us to a better understanding of the political theory of the paduan. Questions such as

"What is Christian priesthood?", "What is the real Christian civitas?" and "What is the

relationship between them?" involves the discovery of the fact that in this life, there is only

one power, the State. When the spiritual becomes a source of one more power in the

political community, it generates the factionalism or the civil war. We will also see that the

limitations of his theory on the relationship between the priest and the city do not put

wealth of its political thought on the shadow, in the sense that this leads us to think

differently about the political community. We used as the principal source the Defensor

Pacis. On the second plan, to clarify some doubts, we have used the Defensor Minor.

Among the studies on Marsilius, we selected those which are most directly related to the

subject of our investigation. Achieving this work, we believe that it can be one more

modest contribution to the study of the political thought of Marsilius of Padua in Brazil.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08-14

I. O CONTEXTO HISTÓRICO

1. A plenitude do poder papal 15-18

2. A questão da pobreza evangélica 19-25

3. Ludovico IV e o Papado 26-31

4. Marsílio e sua obra magna 31-35

II. O SACERDÓCIO VERDADEIRO, SEUS MINISTROS, SUAS ATRIBUIÇÕES

1. Quem instituiu o sacerdócio cristão e por que ele é o verdadeiro 36-38

2. O sacerdote como magister e a doctrina christiana 38-43

3. O julgar do sacerdote 44-53

4. A coerência entre a palavra e a ação 53-55

5. O voto de pobreza do sacerdote 55-69

III. A CIVITAS DE MARSÍLIO

1. A invenção da comunidade perfeita e suas principais partes 70-73

2. A paz na comunidade perfeita e o ordenamento de suas partes 73-75

3. A lei na comunidade política 76-93

4. A parte preponderante da civitas e o melhor regime de governo 93-101

IV. O SACERDOTE NA CIVITAS MARSILIANA

1. O papel do sacerdote no julgamento civil 102-105

2. Os significados de “bispo” e “papa” 106-113

3. A função do sacerdote no Concílio 113-118

4. A submissão do sacerdote ao governante civil 118-124

CONSIDERAÇÕES FINAIS 125-135

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 136-140

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INTRODUÇÃO

Escolhemos como objeto de nosso estudo, nesta tese de doutoramento, a relação

entre o sacerdotium e o regnum no Defensor da Paz (em diante DP), com o propósito

específico de conhecermos o lugar do sacerdote na civitas marsiliana. Esse conhecimento

aponta-nos para uma melhor compreensão da teoria política do paduano. A visão de

Marsílio acerca do Estado é indissociável da sua eclesiologia, em particular, da sua

concepção de sacerdócio.

Acreditamos que a relação entre o espiritual e o temporal, bastante discutida na

Idade Média, é um tema palpitante do pensamento político. Antony Black se pergunta, em

uma de suas obras, se podemos usar o termo “Estado” antes de 1450 ou 16001. Ele afirma

que podemos utilizá-lo se a nossa mente possui os seguintes significados do mencionado

termo. Um dos sentidos é o Estado como político, ou seja, como uma esfera de poder, de

natureza diferente da militar, religiosa, etc. Segundo Black, encontramos esse significado

antes de 1450 nas discussões acerca de qual a autoridade, secular ou espiritual, tem

competência para elaborar e promulgar as leis. Outro significado é o Estado como aparelho

político que possui existência própria, independentemente da pessoa que o controla. Essa

idéia também está presente na mente dos medievais que “(...) concebiam o poder público

como uma categoria diferenciada das relações humanas”2.

Há outros sentidos do termo “Estado” que, segundo o estudioso inglês, são usados

pelos medievais3. Esse fato comprova que o medievo não desconhecia a idéia de Estado,

embora os pensadores da época não tenham tido a clareza e o desenvolvimento que assumiu

no século XVII. Observa Black que, se essa idéia existiu de um modo incipiente, no mundo

medieval, isso não quer dizer evidentemente que ela pertença de modo exclusivo à

modernidade ou ao mundo greco-romano4. Uma maneira de percebê-la entre os medievais é

através das disputas teóricas sobre a distinção entre o poder secular e o espiritual, entre o

11 CCff.. BBLLAACCKK,, 11999966,, pp.. 228899.. 22 ““((......)) ccoonncceebbííaann eell ppooddeerr ppúúbblliiccoo ccoommoo uunnaa ccaatteeggoorrííaa ddiiffeerreenncciiaaddaa ddee llaass rreellaacciioonneess hhuummaannaass”” ((BBLLAACCKK,, 11999966,, pp.. 229922)).. 33 CCff.. BBLLAACCKK,, 11999966,, pp.. 228899:: oorrggaanniissmmoo qquuee eexxeerrccee aa ffuunnççããoo ddee iimmppoorr aa oorrddeemm ee aa lleeii,, ddee ddeeffeennddeerr aa jjuussttiiççaa ee ooss ddiirreeiittooss,, oouu ddee pprroommoovveerr oo bbeemm ccoommuumm;; óórrggããoo qquuee tteemm oo pprriivviillééggiioo ddee uuttiilliizzaarr lleeggiittiimmaammeennttee oo ppooddeerr ccooeerrcciivvoo;; óórrggããoo ddee ppooddeerr qquuee tteemm aa ssuuaa lleeggiittiimmiiddaaddee aallccaannççaaddaa nnoo iinntteerriioorr ddaa cciiddaaddee,, ddaa ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa;; oouu oo eexxeerrccíícciioo ddaa aauuttoorriiddaaddee ssoobbrree ooss mmeemmbbrrooss ddee uummaa ccoommuunniiddaaddee hhuummaannaa ddeeffiinniiddaa.. 44 CCff.. BBLLAACCKK,, 11999966,, pp.. 229911..

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reino e o sacerdócio. Como bem afirmou De Libera, “(...) para um intelectual da Idade

Média tardia, ‘fazer política’ significa escolher entre as duas grandes expressões do poder

medieval: o Papado e o Império”5. O grande intelectual Marsílio de Pádua, autor do DP, fez

opção pela última.

O DP elabora uma eclesiologia, com o propósito de desmantelar o poder do Papa e

impedir que o poder político se submeta ao Bispo de Roma. O DP constrói uma concepção

de Igreja completamente nova, em oposição à visão eclesial dos teólogos que foram, ou

não, favoráveis à teoria da plenitude do poder papal. Essa grande obra propõe um modelo

eclesial que repensa o poder como sendo um só, e não de forma bipartida: espiritual e

temporal. Por causa disso, ela despertou interesse daqueles que se recusavam a aceitar as

determinações de Roma, especialmente em relação a assuntos políticos. Incomodava a

Cúria, portanto, a sua divulgação.

A sua primeira edição só apareceu em 1522 em Basiléia – cidade, à época, de

grande florescimento cultural que demonstrara claramente antipatia por Roma6. Dez

exemplares dessa primeira edição podem ser encontrados nas bibliotecas das Ilhas

Britânicas. Vale observar que as relações entre a Inglaterra e Roma nem sempre foram

amigáveis e que se tem notícia da existência de manuscritos do DP antes mesmo de sua

primeira impressão7. Treze anos depois do aparecimento da primeira edição, em 1535, o DP

é publicado parcialmente na Inglaterra, com o propósito de justificar a posição de Henrique

VIII “(...) como soberano com plenitude de poder no âmbito temporal e no religioso”8.

É verdade que, antes do século XVI, houve uma certa difusão das idéias

marsilianas. A sua circulação entre os intelectuais era mais restrita. Na Inglaterra do século

XIV, o teólogo John Wiclif (1320-1384), preocupado em reformar a Igreja, propaga idéias

muito parecidas com a eclesiologia marsiliana, embora não haja evidências seguras de que

ele tenha lido o DP9. Na França, o conselheiro do rei francês Carlos V e gênio intelectual,

Nicolau Oresme (1323-1382), foi suspeito de ter elaborado uma versão francesa do DP.

Certamente, ele conhecia a principal obra de Marsílio, pois cita-a duas vezes, em uma de

suas obras, Le livre de Politiques d’Aristote, dedicada a Carlos V.

55 DDEE LLIIBBEERRAA,, 11999988,, pp.. 445533.. 66 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 228822--228833.. 77 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp 229999.. 88 ““((......)) ccoommoo ssoobbeerraannoo ccoonn pplleenniittuudd ddee ppooddeerr eenn eell áámmbbiittoo tteemmppoorraall yy eenn rreelliiggiioossoo”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 330033)).. 99 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 227744..

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De acordo com Bernardo Aznar, Oresme não menciona diretamente o autor do DP e

a expressão que ele utiliza antes das duas citações, “un livre intitulé”, é sinal de que o DP

“(...) não era conhecido ou que sua difusão era muito restrita”10. Quando Marsílio ainda

vivia, sob a proteção de Ludovico IV, o DP encontrou resistência na corte imperial e foi

objeto de críticas por parte de Ockham, que também tinha a proteção do Imperador. A fim

de termos uma idéia da discussão envolvendo esses dois pensadores medievais, é suficiente

mencionarmos que estudiosos do pensamento político do Venerabilis Inceptor, como

Souza, têm apontado que a terceira parte do seu Dialogus (1340) contém claramente várias

objeções às teses do DP.

Não só no século XIV ou XVI deparamo-nos com a presença do DP. Na elaboração

do De concordantia catholica (1433), Nicolau de Cusa se utilizou do DP, estando de

acordo com algumas teses marsilianas11. Enquanto sobre o Cusano não temos dúvidas de

que ele leu o DP, a mesma certeza não ocorre em relação ao conhecimento da obra

marsiliana, por parte de um dos grandes pensadores do século XVII: Hobbes. Em todo

caso, é provável que esse filósofo inglês tenha lido o DP12. De acordo com Battaglia,

Passerin d’Entrèves, dentre outros estudiosos da filosofia política marsiliana, há pontos de

semelhanças entre o DP e as duas obras importantes de Hobbes, De cive (1642) e O Leviatã

(1651), principalmente a última. Bernardo Aznar enumera alguns aspectos comuns entre

esses dois grandes filósofos: análise da linguagem, preocupação em descobrir as leis do

poder, o Estado como invenção humana, a tese de que só há um poder, a religião como uma

das principais causas da guerra e o Estado como a única causa da paz na comunidade

política13. Essa presença do DP, desde o século XIV, nas obras de importantes intelectuais

da Europa ocidental, só foi possível conhecê-la graças à grande quantidade de estudos que

apareceram no século passado sobre o pensamento marsiliano.

1100 ““((......)) nnoo eerraa ccoonnoocciiddoo oo qquuee ssuu ddiiffuussiióónn eerraa mmuuyy rreettrriinnggiiddaa”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 226655)).. 1111 LLAAGGAARRDDEE ((11997700,, pp.. 336699)) oobbsseerrvvaa qquuee ““((......)) àà llaa ddiifffféérreennccee ddee WWyycclliiffff,, NNiiccoollaass ddee CCuussee nnoouuss ccoonndduuiitt àà ddeess ccoonncclluussiioonnss ddiiaammééttrraalleemmeenntt ooppppoossééeess àà cceelllleess ddee MMaarrssiillee””.. 1122 HHoobbbbeess ccoommppiilloouu oo ccaattáállooggoo ddaa bbiibblliiootteeccaa ddooss CCaavveennddiisshh,, nnoo qquuaall ccoonnssttaamm ooss vvoolluummeess ddaa MMoonnaarrcchhiiaa RRoommaannii SSaaccrrii IImmppeerriiii,, ssiivvee ttrraaccttaattuuss ddee jjuurriissddiiccttiioonnee iimmppeerriiaallii sseeuu rreeggiiaa eett ppoonnttiiffiicciiaa sseeuu ssaacceerrddoottaallii,, ddee GGoollddaasstt.. OO pprriimmeeiirroo vvoolluummee ccoonnttéémm oo DDPP.. 1133 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 331122--333333.. ““AAuunnqquuee llaass oobbrraass ddee eessttooss ffiillóóssooffooss nnaacceenn ddee uunn iinntteerrééss yy ccoonn uunn pprrooppóóssiittoo ppoollííttiiccoo,, aammbbooss ccoonncceeddeenn,, ssiinn eemmbbaarrggoo,, ttaannttaa iimmppoorrttaanncciiaa aa llaa rreelliiggiióónn yy aa llaa IIgglleessiiaa qquuee lleess ddeeddiiccaann llaa mmaayyoorr ppaarrttee ddee ssuuss ppáággiinnaass:: MMaarrssiilliioo,, llaa ppaarrttee IIIIªª ddeell DDeeffeennssoorr PPaacciiss;; HHoobbbbeess,, llaa úúttiimmaa ddeell DDee cciivvee yy ddooss ddee llaass ccuuaattrroo ppaarrtteess ddee LLeevviiaattáánn”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 331166))..

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A proliferação de estudos sobre o paduano demonstra o interesse que tem

despertado o seu pensamento no campo da história das idéias ou do pensamento político. A

seguir, vamos apontar alguns nomes que se debruçaram sobre esse importante pensador da

Idade Média Tardia. Previté-Orton afirmou, na primeira metade do século XX, que

Marsílio é “o mais radical dos teóricos sobre a Igreja e o Estado na Idade Média”14 e é

digno de estar ao lado de italianos de grande notoriedade do século XIV, como Dante,

Petrarca e Boccaccio. Gewirth publicou uma monografia fundamental sobre o DP, objeto

de várias discussões entre os especialistas do pensador paduano15. Lagarde elaborou uma

obra de referência sobre o DP, na qual ele procura mostrar que o DP tem um lugar

importante no que ele denomina de nascimento do espírito laico16. Mme Quillet não só

escreveu o seu Marsílio, como também traduziu o DP para o francês17.

Souza trouxe para o Brasil as obras do paduano e tem publicado excelentes estudos

sobre os diversos temas do pensamento marsiliano. Antes de Souza, havia poucos trabalhos

em língua portuguesa sobre esse controvertido pensador italiano18. De fato, ele traduziu não

apenas o DP (1997) e o Defensor Menor (1991), mas também Sobre a Translação do

Império (1998) e Sobre a Jurisdição do Imperador em Questões Matrimoniais19. Os seus

trabalhos contribuíram significativamente para a presença definitiva do pensador paduano

na comunidade dos medievalistas brasileiros.

Nos primeiros anos do século XXI, assistimos, no Brasil, à publicação de teses de

doutoramento a respeito das idéias de Marsílio de Pádua. Vale registrar algumas delas.

Cesar em seu trabalho afirma que o traço essencial do pensamento marsiliano consiste na

sua concepção de discurso como valor político20. No caso do discurso papal, este pode ser

usado pelo clero com o objetivo de terem sob seu domínio os cidadãos cristãos. Daí,

1144 ““tthhee mmoosstt rraaddiiccaall ooff tthhee tthheeoorriissttss oonn CChhuurrcchh aanndd SSttaattee iinn tthhee MMiiddddllee AAggeess”” ((PPRREEVVIITTÉÉ--OORRTTOONN,, 11993355,, pp.. 113377)).. 1155 CCff.. GGEEWWIIRRTTHH,, 11995511.. 1166 CCff.. LLAAGGAARRDDEE,, 11997700.. 1177 NNaa ttrraadduuççããoo eemm ffrraannccêêss ddoo DDPP,, ppuubblliiccaaddaa ppeellaa JJ.. VVrriinn,, MMmmee.. QQuuiilllleett ssee eennccaarrrreeggoouu ttaammbbéémm ddee ffaazzeerr aa iinnttrroodduuççããoo ee aass nnoottaass.. AAcceerrccaa ddee sseeuu MMaarrssíílliioo,, ccff.. QQUUIILLLLEETT,, 11997700.. 1188 NNããoo ppooddeemmooss ddeeiixxaarr ddee mmeenncciioonnaarr oo eessttuuddoo ddoo pprrooff.. GGAALLVVÃÃOO DDEE SSOOUUSSAA ((11997722)).. EEssttee eessttuuddiioossoo bbrraassiilleeiirroo ddoo DDiirreeiittoo ddeeffeennddee aa tteessee ddee qquuee oo DDPP aanntteecciippaa aass iiddééiiaass ddoo EEssttaaddoo ttoottaalliittáárriioo,, ppoossttaass eemm pprrááttiiccaa aa ppaarrttiirr ddee 11991177.. SSeegguunnddoo eellee,, eemm úúllttiimmaa aannáálliissee,, eennccoonnttrraammooss nnoo DDPP aa ccaarraacctteerriizzaaççããoo eesssseenncciiaall ddoo ttoottaalliittaarriissmmoo,, qquuaall sseejjaa:: oo eessttaaddoo aassssuummee ““((......)) uumm ccoonnttrroollee ccoommpplleettoo,, ttoottaall,, ddaa aattiivviiddaaddee eexxtteerriioorr ddooss hhoommeennss ee ddaa ssuuaa vviiddaa iinntteerriioorr –– oouu ppeelloo mmeennooss uumm eessffoorrççoo ppaarraa cchheeggaarr aa rreeaalliizzáá--lloo –– ddeessddee oo ppllaannoo eeccoonnôômmiiccoo aattéé oo ccuullttuurraall ee oo rreelliiggiioossoo”” ((11997722,, pp.. 119966)).. 1199 AA rreessppeeiittoo ddeessttaa úúllttiimmaa,, ccff.. EEssttuuddooss ssoobbrree FFiilloossooffiiaa MMeeddiieevvaall.. SSããoo PPaauulloo:: LLeeooppoollddiiaannuumm//LLooyyoollaa,, 11998844.. 2200 CCff.. CCEESSAARR,, 22000000..

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segundo Cesar, o interesse de Marsílio “(...) pelo conflito mundial, do Papado contra o

Império, reinos e cidades”21. Strefling, por sua vez, apresenta-nos a crítica de Marsílio

acerca da plenitude do poder papal22. Em última análise, defende que a subordinação do

sacerdote ao governante civil, propugnada pelo paduano, não é a melhor solução para o

problema da relação entre o espiritual e temporal, uma vez que coloca em risco a liberdade

da instituição eclesiástica. Tôrres estuda especificamente o conceito que o paduano, em

suas obras, formulou sobre o Império, mostrando que a sua tese da mencionada

subordinação, bem como suas afirmações a favor da monarquia régia eletiva, eram

compartilhadas pela corte imperial23.

Como havíamos dito anteriormente, a bibliografia marsiliana em nível internacional

é bastante ampla. Além dos estudiosos que mencionamos anteriormente, há também Piaia,

Grignaschi, Damiata, Nederman, Aznar, dentre tantos outros grandes nomes, que estudaram

nas obras do paduano temas de interesse no campo das pesquisas medievais24. Vale notar

que um desses assuntos diz respeito à relação entre o sacerdotium e regnum. Trata-se de um

tema fundamental na obra magna do paduano. Ao abordá-lo, Marsílio persegue, nas

palavras de Souza, “(...) uma idéia maior que é a independência do Estado face à Igreja”25.

A esse respeito, segundo o medievalista argentino Bertelloni, a sua originalidade consiste

no fato de “(...) ao mesmo tempo em que exclui o sacerdócio do bene vivere temporal da

civitas, Marsilio o inclui sem tornar a incidir nas dificuldades da tradição”26.

Uma leitura atenta do DP mostra-nos que as seguintes questões têm a ver com a

mencionada relação:

(a) Há uma relação de identidade entre Igreja e Estado? (b) Se o sacerdote deve

vivenciar a perfeição cristã, em particular, a pobreza evangélica, todos os cidadãos cristãos

devem fazer o mesmo? (c) A propriedade destinada ao clero é um bem público? (d) A

2211 CCEESSAARR,, 22000000,, pp.. 113344.. 2222 CCff.. SSTTRREEFFLLIINNGG,, 22000022.. 2233 CCff.. TTOORRRREESS,, 22000033.. 2244 CCff.. ppoorr eexxeemmpplloo:: PPIIAAIIAA ((11997755)),, GGRRIIGGNNAASSCCHHII ((11997799)),, DDAAMMIIAATTAA ((11998833)),, NNEEDDEERRMMAANN ((11999944)),, AAZZNNAARR ((22000077)).. 2255 SSOOUUZZAA,, 11998833,, pp.. 116699.. 2266 ““((......)) aall ttiieemmppoo qquuee eexxcclluuyyee aall ssaacceerrddoocciioo ddeell bbeennee vviivveerree tteemmppoorraall ddee llaa cciivviittaass,, MMaarrssiilliioo lloo iinncclluuyyee ssiinn rreeiinncciiddiirr eenn llaass ddiiffiiccuullttaaddeess ddee llaa ttrraaddiicciióónn”” ((BBEERRTTEELLLLOONNII,, 22000044,, pp.. 771188)).. ““AAssíí MMaarrssiilliioo llooggrraa iinntteeggrraarr eell ssaacceerrddoocciioo eenn llaa cciivviittaass ssiinn oottoorrggaarrllee llaa mmááxxiimmaa jjuurriissddiicccciióónn,, ssiinn qquuee llaa rraacciioonnaalliiddaadd ddee llaa cciivviittaass eennttrree eenn ccoonnttrraaddiicccciióónn ccoonn eell ccaarráácctteerr rreevveellaaddoo ddeell ssaacceerrddoocciioo yy,, lloo qquuee eess aaúúnn mmááss iimmppoorrttaannttee,, ccoollooccaannddoo uunnaa ppaarrttee ddeell ssaacceerrddoocciioo ccrriissttiiaannoo ddeennttrroo ddeell eessppeeccttrroo ddeell bbeennee vviivveerree qquuee ccaaee bbaajjoo llaa jjuurriissddiicccciióónn ddeell ggoobbeerrnnaannttee tteemmppoorraall,, ccoonn lloo ccuuaall qquueeddaa rreedduucciiddoo aa uunnaa ppaarrss iinntteerr ppaarrtteess ddee llaa cciivviittaass”” ((BBEERRTTEELLLLOONNII,, 22000044,, pp.. 771199))..

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distinção marsiliana entre atos imanentes e transitivos é-nos útil para o entendimento da

mencionada relação? (e) Que valor prático possui o ofício sacerdotal para o Estado? (f) Os

fiéis que fazem parte do clero estão subordinados à lei civil, como qualquer outro membro

da comunidade política? (g) Por que o Estado deve se preocupar com o número de clérigos?

(h) Há uma diferença essencial entre o bispo e o sacerdote? (i) O que representa o Concílio

para a comunidade política? (j) Se o legislador humano convoca e preside o Concílio, qual

o papel do Bispo de Roma no mesmo? (k) O saber teológico produzido no Concílio está

dissociado da política? (l) O legislador humano pode dissolver o clero e constituir um

outro?

A respeito das questões elencadas acima, procuramos verificar em nosso estudo as

seguintes hipóteses: (a) Igreja e Estado são modos de designar a mesma coisa, qual seja, a

comunidade perfeita dos fiéis; (b) Para se tornar um cidadão cristão, não é necessária a

perfeição evangélica; (c)Torna-se um bem do Estado toda propriedade destinada ao clero;

(d) A diferença que Marsílio estabelece entre ato imanente e transitivo fornece-nos luz para

entendermos a relação que ele fixa entre o espiritual e o material; (e) Quando devidamente

exercido, o ofício sacerdotal é bastante útil para a estabilidade da civitas; (f) Os sacerdotes,

uma vez que pertencem à comunidade política, submetem-se à lei civil; (g) Um número

excessivo de sacerdotes pode ser uma ameaça ao governo civil; (h) A diferença entre bispo,

Papa e sacerdote é acidental; (i) O Concílio tem um valor prático para o Estado na medida

em que soluciona os problemas doutrinários que podem afetar a ordem civil; (j) No

Concílio, o Bispo de Roma exerce o papel de secretário e porta-voz; (k) Uma vez que a

presença do governante civil se impõe no Concílio, a teologia gerada aí tem uma finalidade

política; (l) O clero, ao se transformar em uma ameaça para o Estado, deve ser

reestruturado no sentido de retomar a sua forma original, sem prejuízo para a paz política27.

Para verificarmos essas hipóteses, percorremos o caminho da pesquisa bibliográfica,

leitura e análise de textos referentes ao pensamento do paduano, especialmente no que diz

respeito à relação entre Igreja e Estado. No entanto, a nossa análise se concentrou mais na

sua principal obra, o DP, procurando explorá-la ao máximo em nosso estudo. A nossa

investigação se dirige a um aspecto da teoria política marsiliana tal como apresentado e

desenvolvido no DP, a saber: a relação entre o sacerdote e a cidade. Se recorremos ao

2277 AAss lleettrraass eemm nneeggrriittoo ssããoo aass hhiippóótteesseess ccoorrrreessppoonnddeenntteess ààss qquueessttõõeess iiddeennttiiffiiccaaddaass ccoomm aass lleettrraass eemm nnoorrmmaall..

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Defensor Menor (em diante DM), foi com o objetivo de melhor compreender certos

conceitos que se encontram no DP e estão relacionados com o objeto de nossa pesquisa.

Neste nosso trabalho veremos que, segundo o paduano, a resposta correta para as

questões “O que é o sacerdócio cristão?”, “Em que consiste, verdadeiramente, a civitas

cristã?” e “Qual a relação entre ambos?” implica a descoberta do fato de que, na vida

presente, só há um poder, o temporal, e apenas um governante, o príncipe. Quando o

espiritual se torna uma fonte a mais de poder na comunidade política, gera-se o

facciosismo, a guerra civil, a intranqüilidade. Veremos também que as limitações da sua

teoria a respeito da relação entre o sacerdote e a cidade não colocam à sombra a riqueza de

seu pensamento político, no sentido de que este nos impulsiona a pensar diferentemente a

comunidade política.

Ao fazermos este trabalho, acreditamos que ele possa ser mais uma modesta

contribuição ao estudo do pensamento político de Marsílio de Pádua no Brasil. Ele está

dividido em quatro capítulos. No primeiro, tratamos de alguns aspectos importantes do

contexto histórico que interessam à nossa pesquisa. No segundo, em que, para Marsílio,

consiste o sacerdócio verdadeiro, seus ministros, suas atribuições. No terceiro capitulo,

abordamos a civitas marsiliana, no tocante à sua organização social e política. Por último,

no quarto, procuramos conhecer, na visão do paduano, o papel do sacerdote na comunidade

política organizada, o Estado.

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I. O CONTEXTO HISTÓRICO

O DP, sabemos, insere-se num dado momento histórico marcado por inovações no

campo do conhecimento humano, conflitos sociais, religiosos e políticos. No entanto, há

indiscutivelmente alguns acontecimentos que nos interessam destacar, se pretendemos

compreender a posição de Marsílio a respeito do sacerdócio, da comunidade política e da

relação entre ambos no DP. Ressaltamos os seguintes: a difusão das idéias acerca da

plenitude do poder papal (1); a questão da pobreza evangélica (2); Ludovico IV e o Papado

(3); Marsílio e sua obra magna (4).

1. A plenitude do poder papal

No último capítulo da primeira parte do DP, Marsílio menciona uma causa especial

que perturba a comunidade perfeita dos fiéis. Essa “causa insólita da intranqüilidade”28 é a

plenitude do poder nas mãos dos bispos de Roma. Estes defendem a tese de que eles têm

uma jurisdição coerciva universal sobre o clero, os príncipes, as cidades, os ofícios e cada

pessoa do mundo inteiro29. João XXII é o mais recente dos Papas, segundo o paduano, a

difundir essa tese, “(...) princípio de todos os males que já ocorreram e que poderão vir a

acontecer”30. Antes, porém, de tratar da opinião desse Papa contemporâneo de Marsílio,

vamos discorrer brevemente a respeito de alguns de seus antecessores que, juntamente com

a corporação de seus clérigos, “(...) se empenharam em reivindicar para si o supremo

governo”31. São eles Papas Inocêncio III, Inocêncio IV e Bonifácio VIII. Este último teve a

colaboração de um dos grandes ideólogos do pensamento hierocrata: Egídio Romano.

O Papa Inocêncio III (1198-1216) teve o cuidado de utilizar para si o título de

vigário de Cristo, diferentemente dos seus antecessores que se intitulavam apenas como

vigários de Pedro. O Papa, ao usar um título que até então era exclusivo de Pedro, “(...)

2288 DDPP,, II,, 1199//33,, pp.. 119966.. 2299 CCff.. DDPP,, II,, 1199//88--99,, pppp.. 220000--220011.. 3300 DDPP,, II,, 1199//1133,, pp.. 220044.. 3311 DDPP,, IIIIII,, 11,, pp.. 668899..

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favorece certamente o modelo piramidal da Igreja, segundo o qual o Papado se concebe de

tal forma no ápice da pirâmide a ponto de correr-se o risco de situá-lo sobre e fora dela”32.

De fato, ele reafirmou a idéia de que a Igreja é como o Sol, e o poder civil, como a Lua. Os

dois luminares são criações divinas que exercem na Terra tarefas distintas: o primeiro

clareia o dia, ou seja, a alma; o segundo ilumina a noite, o corpo. Este é inferior àquele, de

modo que o papa é superior, não só dos bispos e cardeais, mas também das autoridades

seculares. O governante civil é uma espécie de oficial ou vigário do supremo governante

espiritual.

Inocêncio IV, Papa de 1243 a 1254, para se opor ao seu grande inimigo, o

Imperador Frederico II, endossou a teoria da plenitudo potestatis papal em seu sentido

amplo33. Esse poder, segundo ele, o Sumo Pontífice o recebeu de Cristo quando este, ao

fundar o sacerdotium, escolheu Pedro dentre os Apóstolos para ser o seu vigário na terra. O

papa pode destituir o governo civil, pois, na condição de Vigário de Deus, herdou de Cristo

a sua potestas plena. De acordo com Weckmann, Inocêncio IV defendeu que “(...) Cristo

desde a eternidade é o Senhor natural e pode por direito natural depor Imperadores e reis

(...)”34. Sendo assim, não há por que o poder papal ser diferente do poder de Deus.

Outro Papa que acirrou o conflito entre o poder civil e a instituição eclesiástica foi

Bonifácio VIII. Este designava Roma como communis omnium Christiani populi nationum

curia35. Em sua Bula Sacrosanctae Ecclesiae, de 1298, e posteriormente na Unam Sanctam,

de 1302, ele defendeu que o Sumo Pontífice possui a plenitude do poder sobre todas as

potências da terra. Do Vigário de Cristo emana a lei. Apenas ele é o intérprete da lei divina.

Afirma a Bula de 1302: “(...) na mesma e única Igreja um só corpo existe e uma só cabeça,

não duas cabeças, como se fosse algum monstro (...) – Cristo e o vigário de Cristo, Pedro, e

o sucessor de Pedro (...)”36. A comunidade dos fiéis é um organismo vivo, cujo corpo é

3322 SSTTRREEFFLLIINNGG,, 22000022,, pp.. 4444.. 3333 AAnntteess ddoo ssééccuulloo XXIIIIII,, ccoommoo bbeemm ddiissssee SSOOUUZZAA ((11998833,, pp.. 113399)):: aa ““((......)) PPlleenniittuuddee ddee PPooddeerr nnooss ddooccuummeennttooss ppaappaaiiss sseerrvviiaa,, aa pprriinnccííppiioo,, ppaarraa ddeessccrreevveerr oo ppooddeerr ccoonnffeerriiddoo ppeellooss ppoonnttííffiicceess rroommaannooss aa sseeuuss lleeggaaddooss jjuunnttoo ààss nnaaççõõeess oouu ààss ddiioocceesseess,, iinnccuummbbiiddooss ddee uummaa aaccttiivviiddaaddee eessppeecciiaall,, ssaalliieennttaannddoo oo aassppeeccttoo iinnffeerriioorr ddooss mmeessmmooss””.. AA ppaarrttiirr ddoo ssééccuulloo XXIIIIII,, oo sseeuu sseennttiiddoo éé aammpplliiaaddoo,, ddee mmooddoo qquuee ppaassssaa aa ssee rreeffeerriirr aaoo ppooddeerr ssuupprreemmoo ddoo PPaappaa nnaass eessffeerraass cciivviill ee eecclleessiiáássttiiccaa.. CCff.. SSOOUUZZAA,, 11998833,, pppp.. 113388--114411,, AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 4455--5522.. 3344 WWEECCKKMMAANNNN,, 11999933,, pp.. 114422:: ““((......)) CCrriissttoo ddeessddee llaa eetteerrnniiddaadd eess eell SSeeññoorr nnaattuurraall,, yy ppuueeddee,, ppoorr ddeerreecchhoo nnaattuurraall,, ddeeppoonneerr eemmppeerraaddoorreess yy rreeyyeess ((......))””.. 3355 AAppuudd CCOONNGGAARR,, 11999999,, pp.. 224444.. 3366 UUnnaamm SSaannccttaamm.. IInn:: RROOMMAANNOO,, 11998899,, pp.. 2266.. DDee EEcccclleessiiaassttiiccaa PPootteessttaattee ““ ((......)) ffuuee eell ffuunnddaammeennttoo tteeóórriiccoo yy ccaassii lliitteerraall ddee llaa UUnnaamm ssaannccttaamm ((......)) ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 5500))””..

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representado pela Igreja com sua estrutura vertical: leigos, sacerdotes, bispos e o Bispo de

Roma.

É evidente a influência de Egídio Romano nas teses doutrinárias da Unam sanctam.

Apesar de Egídio ter Tomás de Aquino como seu mestre, ele publica uma obra, Sobre o

Poder Eclesiástico (em diante EP)37, na qual adota a visão neoplatônica-agostiniana do

mundo, ao invés da aristotélica-tomista – esta, diga-se de passagem, assumida em uma

outra obra sua, De regimine principum, considerada o “Espelho dos Príncipes” mais lido e

citado na Baixa Idade Média38. EP é um manifesto a favor da teocracia Papal. Defende que,

da mesma forma que a alma é superior ao corpo, o poder espiritual é superior ao poder

público. Alma e corpo formam a mesma pessoa humana. Igualmente, os dois poderes da

Cristandade estão unidos numa estrutura hierárquica natural. Em última análise, EP

pretende demonstrar que o poder sacerdotal controla o político, uma vez que a salvação da

alma só é possível através dele39.

Egídio Romano possuía a convicção de que o poder de Deus se manifesta apenas

no sacerdócio e o poder público, porquanto cuida da ordem e da paz do mundo material,

existe para a Igreja exercer melhor a sua atividade. O seu pensamento político-teológico,

assim como a doutrina de Bonifácio VIII, procurou ser coerente com a concepção de

mundo que se construiu no medievo. De fato, a cosmologia medieval é extremamente

hierarquizada. Para os medievais, o mundo segue uma ordem em forma piramidal, em que

o inferior depende do superior e, entre um e outro, há o intermediário. O próprio Bonifácio

VIII, sob a influência de Egídio, compartilhara dessa visão de mundo ao dizer, na

mencionada Bula, que “(...) na ordem do universo, (...) as coisas inferiores ordenam-se às

intermediárias e estas às superiores”40. Uma discussão comum à época consistia em saber

quem ocupa o topo da pirâmide: o Imperador ou o Papa? A Bula, na esteira de EP,

argumenta na direção da segunda alternativa.

3377 CCff.. RROOMMAANNOO,, 11998899;; ccff.. DDEE BBOONNII,, ““EEggííddiioo RRoommaannoo ee oo DDee EEcccclleessiiaassttiiccaa PPootteessttaattee””,, iinnttrroodduuççããoo àà eeddiiççããoo bbrraassiilleeiirraa ddaa oobbrraa mmeenncciioonnaaddaa.. CCoommoo tteemm ddiittoo AAZZNNAARR ((22000077,, pp.. 4499)) aa rreessppeeiittoo ddee EEPP:: ““OObbrraa ddee ccoonntteenniiddoo tteeoollóóggiiccoo,, nnoo ooffrreeccee uunnaa bbaassee ddee ddiiccuussiióónn jjuurrííddiiccaa –– mmuueessttrraa iinncclluussoo cciieerrttoo ddeesspprreecciioo ppoorr llooss jjuurriissttaass –– ssiinnoo uunnaa ddooccttrriinnaa ccuuyyaa vveerrddaadd iinntteemmppoorraall nnaaccee ddee llaa eetteerrnnaa lleeyy ddiivviinnaa yy ssiirrvvee ppaarraa ccuuaallqquuiieerr rreellaacciióónn eennttrree ppooddeerreess.. CCoonnssttiittuuyyee llaa eexxpprreessiióónn mmááss ppuurraa yy ddeessmmeeddiiddaa ddeell ppeennssaammiieennttoo hhiieerrooccrrááttiiccoo ((......))””.. PPaarraa DDEE LLIIBBEERRAA ((11999988,, pp.. 445544)),, EEPP ccoonnssttiittuuii ““((......)) oo hhoorriizzoonnttee eeppiisstteemmoollóóggiiccoo ddee mmeeiioo ssééccuulloo ddee ffiilloossooffiiaa ppoollííttiiccaa””.. 3388 CCff.. KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 9944.. 3399 CCff.. BBAARRBBAALLHHOO,, 11999988.. 4400 UUnnaamm SSaannccttaamm.. IInn:: RROOMMAANNOO,, 11998899,, pp.. 2277..

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Essas idéias hierocratas repercutiram negativamente na comunidade política. Filipe

IV, a quem Egídio tinha dedicado o De regimine principum antes de sua subida ao trono

francês, sentiu-se ameaçado pela doutrina do Papa. Com o apoio conquistado de todas as

classes da França, procurou combatê-la41. O monarca francês tomou uma série de medidas

para enfraquecer o poder papal. Uma delas consistiu em introduzir um maior número de

bispos franceses no Colégio dos Cardeais, o que veio a ser um dos fatores importantes na

transferência da sede papal para Avinhão. Embora nessa cidade francesa o Papado se

mantivesse próximo à coroa francesa, e apesar das tentativas de Filipe IV em combater a

teocracia papal, a administração pontifical continuou sua trajetória de unificação

monárquica supranacional. Essa espécie de centralização monárquica se iniciou, sabemos,

nos séculos XII e XIII, a partir de uma combinação de eventos protagonizados pelo próprio

Papado: a codificação do direito canônico, maior controle sobre os bispos e centralização

das finanças42.

Um dos Papas que trabalhou na centralização da administração pontifical e foi uma

figura importante na disputa entre imperium e sacerdotium, é o francês João XXII (1316-

1334). Com formação em direito e em medicina, Jacques d’Euse veio a se tornar o novo

Papa em 1316. A eleição do novo pontífice, diga-se de passagem, foi realizada sob pressão

de Filipe V, o Alto: o rei francês, segundo filho de Filipe IV, mandou prender numa igreja

de Lyon vinte e três cardeais, a fim de que elegessem o sucessor de Clemente V. A eleição

de João XXII pôs termo a dois anos conturbados de sede vacante e deu início a um Papado

marcado por fortes conflitos internos e externos.

4411 CCff.. AALLLLEENN,, 11992233,, pp.. 116677.. 4422 CCff.. LLEE GGOOFFFF,, 11999944,, pp.. 113355..

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2. A questão da pobreza evangélica

Há dois acontecimentos que merecem ser destacados em nossa investigação, nos

quais se envolveram em lados opostos João XXII e Marsílio. O primeiro está relacionado

com a questão da pobreza evangélica como ideal de perfeição cristã. O segundo, a eleição

de Ludovico da Baviera. Veremos que o paduano, quando aborda a questão da pobreza

evangélica, demonstra interesses diferentes, não só aos de João XXII, mas também aos das

Ordens religiosas e do clero secular43. Ele se ocupou dela, nos capítulos 11, 12, 13 e 14 da

segunda parte do DP44. Antes de compreendermos, porém, a posição de Marsílio e do Papa,

vamos a seguir tratar brevemente da disputa franciscana sobre a pobreza45.

A Ordem fundada por Francisco de Assis suscitou no seu interior e fora dele

discussões acirradas acerca da pobreza religiosa. Um dos fatores desencadeadores

importantes foi a Regra (1210) do fundador da nova comunidade religiosa. São Francisco

exigiu em seu Testamento que ela fosse interpretada em seu sentido literal, sem notas

explicativas. No entanto, em oposição à sua vontade, a Regra sofreu diversas

interpretações, teológicas ou jurídicas, dentro (ad intra) e fora (ad extra) da Ordem dos

Menores.

As disputas ad intra deram origem a duas facções bastante distintas46: de um lado,

os Espirituais, frades franciscanos que se recusavam inexoravelmente a adotar qualquer

alteração na Regra; de outro, os representantes da Comunidade, franciscanos que se

integraram facilmente à estrutura jurídico-administrativa da Igreja e aceitavam sem

dificuldades as glosas à Regra contidas nas Bulas papais Quo Elongati, de Gregório IX 4433 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223333:: ““NNoo ssee ccoommpprreennddee eenn ttooddaa ssuu ddiimmeennssiióónn eell ppeennssaammiieennttoo ddee MMaarrssíílliioo,, ssii ssee pprreesscciinnddee ddeell ppaappeell qquuee llaa ppoobbrreezzaa eevvaannggéélliiccaa jjuueeggaa eenn ssuu eexxiiggeenncciiaa ddee qquuee eell cclleerroo aabbaannddoonnee eell ppooddeerr tteemmppoorraall.. PPootteessttaass yy ppaauuppeerrttaass nnoo ssoonn eenn ééll tteemmaass eexxttrraaññooss eennttrree ssíí.. LLaa ccuueessttiióónn ddee qquuee llooss bbiieenneess mmaatteerriiaalleess aanneejjooss aall ppooddeerr ppoollííttiiccoo ccoonnttrraaddiicceenn llaa ppoobbrreezzaa qquuee pprreeddiiccaa IIgglleessiiaa iimmpprreeggnnaa ttooddaa ssuu oobbrraa yy eess oobbjjeettoo ddee aannáálliissiiss eenn ccuuaattrroo ddee llooss ccaappííttuullooss mmááss llaarrggooss ddee EEll ddeeffeennssoorr ddee llaa ppaazz ((IIII,, XXII--XXIIVV)),, qquuee,, ppeessee aa ssuu eexxtteennssiióónn,, hhaann ssiiddoo pprreetteerriiddooss,, ccuuaannddoo nnoo rreeppuuddiiaaddooss eexxpprreessaammeennttee,, eenn llaa mmaayyoorrííaa ddee llaass iinntteerrpprreettaacciioonneess llaaiicciissttaass ddeell ppeennssaammiieennttoo mmaarrssiilliiaannoo””.. CCff.. OO ccaappííttuulloo 33 ddee nnoossssaa iinnvveessttiiggaaççããoo.. 4444 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944.. 4455 SSoobbrree aa qquueessttããoo ddaa ppoobbrreezzaa eevvaannggéélliiccaa,, bbaasseeaammoo--nnooss ffuunnddaammeennttaallmmeennttee eemm ddooiiss eessttuuddooss:: SSOOUUZZAA ((11999944)) ee AAZZNNAARR ((22000077)).. 4466 AAdd eexxttrraa,, ddeessttaaccaamm--ssee ddooiiss mmeessttrreess ddoo cclleerroo sseeccuullaarr:: GGeerraallddoo ddee AAbbbbeevviillllee ee GGuuiillhheerrmmee ddee SSaannttoo AAmmoorr.. OO pprriimmeeiirroo eessccrreevveeuu CCoonnttrraa aaddvveerrssaarriiuumm ppeerrffeeccttiioonniiss cchhrriissttiiaannaaee ((11226699)),, ccuujjoo ttííttuulloo nnooss ddáá uummaa iiddééiiaa ccllaarraa ddee ssuuaa ppoossiiççããoo.. OO sseegguunnddoo pprroodduuzziiuu DDee ppeerriiccuulliiss nnoovviissssiimmoorruumm tteemmppoorruumm ((11225566)).. EEssssaass oobbrraass ddeesseennccaaddeeaarraamm aa rreeaaççããoo ddee ddooiiss ggrraannddeess iinntteelleeccttuuaaiiss MMeennddiiccaanntteess:: SSããoo BBooaavveennttuurraa ee SSaannttoo TToommááss.. CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 220077;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223355,, nn.. 3322..

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(1223-1239), e Ordinem Vestrum, de Inocêncio IV (1243-1254)47. Evidentemente, os

Espirituais rejeitavam esses documentos pontifícios. Para eles, o fundador dos Menores já

tinha deixado por escrito “(...) todos os preceitos, relativos ao estilo de vida minorita,

particularmente aqueles acerca do uso extremamente limitado dos bens materiais”48. A

título de ilustração, Pedro de João Olivi (1249-1298), um líder dos Espirituais, dizia que é

“(...) um pecado mortal, indesculpável, defender as transgressões da pobreza e os abusos

cometidos contra a Regra”49.

Não nos cabe aqui tratar em detalhes do partido dos Espirituais. A esse respeito

continua atual o excelente estudo de Falbel (1995). As suas idéias gerais apontadas acima

nos permitem, porém, contrastar com o partido oposto, a Comunidade, em particular com a

posição moderada de São Boaventura. O Doutor Seráfico, em sua Apologia Pauperum

(1296), ofereceu uma interpretação conciliadora, com o objetivo de trazer a unidade e, em

conseqüência, o fortalecimento da Ordem50. Para São Boaventura, é considerado perfeito

quem renuncia livremente à riqueza por causa de Cristo. O cristão perfeito, ao não querer as

coisas criadas, abre mão da propriedade dos bens materiais.

Esse tipo de renúncia, segundo São Boaventura, significa que ele tem sobre as

coisas terrenas apenas o simples uso de fato, ou seja, ele pode usá-las, contanto que esse seu

uso tenha como propósito a sua subsistência. Constitui heresia identificar o simples uso de

fato com a proprietas, o poder de reivindicar. É herético, porque Cristo exigiu que os

Apóstolos o imitassem e uma das coisas que devem ser imitadas é a renúncia à

propriedade. A pobreza de Cristo, porém, não é uma opção que condena quem não a

pratica. Ela caracteriza um dos estágios da perfeição cristã (superior ou sublime), que é

diferente do inferior, no qual o cristão faz opção por uma pobreza relativa, isto é, recusa o

poder de reivindicar os bens materiais para si próprio, mas não abre mão da propriedade

4477 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 220099:: ““AAss aalluuddiiddaass gglloossaass pprrooccuurraavvaamm aaddaappttaarr aa OOrrddeemm aaooss pprroojjeettooss aappoossttóólliiccooss ee ppoollííttiiccooss ddaa SSaannttaa SSéé ee àà rreeaalliiddaaddee qquuoottiiddiiaannaa,, ppeerrmmiittiinnddoo aaooss ffrraaddeess tteerr ccoonnvveennttooss ccoomm ddiissppeennssaass ee cceelleeiirrooss bbeemm aabbaasstteecciiddooss,, sseeppuullttaarr mmoorrttooss eemm ssuuaass iiggrreejjaass,, nneessttaass hhaavveerr ccooffrreess ppaarraa rreecceebbeerr aass eessmmoollaass ee tteerr pprrooccuurraaddoorreess qquuee ooss rreepprreesseennttaasssseemm eemm lliittííggiiooss ccoomm tteerrcceeiirrooss oouu aaddmmiinniissttrraasssseemm ooss bbeennss qquuee llhheess ffoosssseemm ooffeerrttaaddooss,, ccoonnqquuaannttoo aa SSéé AAppoossttóólliiccaa ssee rreesseerrvvaassssee oo ddiirreeiittoo ddee pprroopprriieeddaaddee ssoobbrree ooss mmeessmmooss””.. 4488 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 220088.. 4499 FFAALLBBEELL,, 11999955,, pp.. 113311 5500 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223366..

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em comum. Esse tipo de opção não é um pecado, pois “(...) Cristo praticou e aconselhou a

pobreza absoluta, mas não a mandou como obrigação universal”51.

Se a pobreza relativa não é um pecado, a Ordem, ou as instituições religiosas em

geral, podem adotá-la, desde que não percam de vista o ideal da sublime perfeição. É

possível, sem perder a coerência, aceitar o pensamento de São Boaventura acerca da

pobreza e a afirmação segundo a qual cada bem material, que os membros da Ordem

adquirem, é de propriedade da Igreja Romana. Esta última parte da conjunção é uma tese

defendida por Inocêncio IV e retomada pelo Papa Nicolau III (1277-1280) em sua Bula

Exiit qui seminat (1279), na qual pode ser sentida a influência do pensamento do Doutor

Seráfico52.

A Exiit – que, diga-se de passagem, teve a colaboração de Pedro João Olivi e do

canonista Benedito Caetano, futuro Papa Bonifácio VIII – foi incapaz de resolver a disputa.

A Bula papal foi elaborada com a intenção de ser a interpretação autorizada da Regra e

“(...) se teve o efeito de calar momentaneamente os inimigos externos dos franciscanos, não

satisfez a todos os frades da Ordem, muito menos aos Espirituais”53. Os excessos

continuaram, tanto por parte da Comunidade (construção de igrejas suntuosas, celeiros e

adegas) como por parte dos Espirituais (estilo de vida cada vez mais rigoroso e resistência

crescente às ordens dos superiores) 54.

O conflito continuou em pontificados que se sucederam ao de Nicolau III. No

entanto, foi no de João XXII que a disputa chegou a um nível de desacordo nunca antes

alcançado. Um ano após assumir a Sé Romana, em 1317, João XXII condenou os

Espirituais como hereges e, no ano seguinte, mandou quatro deles para a fogueira. Essas

medidas extremas de caráter disciplinar e exemplar só contribuíram para aumentar a

animosidade no partido dos Espirituais, ou fora dele55. Em 1321, um partidário dos

Espirituais, membro da Ordem Terceira dos Menores, afirmou publicamente que Cristo e os

Apóstolos renunciaram à proprietas, seja no seu aspecto individual, seja no coletivo.

Acusado de heresia por um inquisidor dominicano, ele foi defendido sem sucesso pelos

5511 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223366:: ““((......)) CCrriissttoo pprraaccttiiccóó yy aaccoonnsseejjóó llaa ppoobbrreezzaa aabbssoolluuttaa,, ppeerroo nnoo llaa mmaannddóó ccoommoo oobblliiggaacciióónn uunniivveerrssaall”” 5522 AA BBuullaa eennddoossssaa aa iiddééiiaa ddaa nneecceessssiiddaaddee ddee ooss mmeemmbbrrooss ddaa OOrrddeemm tteerreemm aappeennaass ssoobbrree ooss bbeennss mmaatteerriiaaiiss oo ssiimmpplleess uussoo ddee ffaattoo ((ccff.. FFAALLBBEELL,, 11999955,, pppp.. 110099--111100)).. 5533 FFAALLBBEELL,, 11999955,, pp.. 111100.. 5544 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pppp.. 220099--221100;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223377;; FFAALLBBEELL,, 11999955,, pppp.. 111100--111122.. 5555 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221100..

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franciscanos, os quais recorreram aos argumentos de Nicolau III e apelaram a João XXII56.

Esse caso gerou uma disputa entre as duas Ordens Mendicantes.

O Papa se posicionou a favor dos dominicanos e defendeu a tese da revogabilidade

dos decretos papais precedentes. Ao fazer essa defesa, evidentemente, João XXII pensava

na Exiit: esta Bula podia servir de sustentação às idéias dos Menores, contrárias ao seu

pensamento. Foi o que ocorreu no apoio maciço dos franciscanos ao Terciário mencionado

anteriormente, assim como no capítulo geral da Ordem em Perusa (1322), cujos membros

redigiram um manifesto no qual afirmam que Cristo e os Apóstolos “(...) nada possuíram

em particular ou em comum graças ao direito de propriedade e domínio, isto é, por força do

próprio direito (...)”57. O Manifesto irritou João XXII a ponto de ele promulgar a Bula Ad

Conditorem Canonum (1322), dois anos antes da publicação do DP.

Redigido sob a colaboração dos dominicanos, esse documento revogou a Exiit, ao

afirmar basicamente que não se pode separar o uso justo de um bem da sua propriedade, de

modo que constitui uma ficção jurídica e uma injustiça a Igreja Romana ser proprietária de

algo que ela não tem direito de usar. Sendo assim, os bens doados à Ordem não são

propriedade da Igreja, mas da própria instituição que recebeu a doação. Essa idéia se opõe

à Regra: esta, lembremos, proíbe os Menores de serem proprietários das coisas materiais. A

Bula Ad Conditorem, contra a vontade dos Menores, igualou a Ordem às demais

Congregações religiosas, ao dizer que os Frades “(...) possuíam em comum o direito de

propriedade sobre os bens materiais que tinham adquirido ou recebido como esmola”58. Não

é difícil imaginarmos a reação de insatisfação dos Menores. Estes encarregaram o seu

confrade e procurador Bonagrazia de Bérgamo, antigo adversário dos Espirituais, a ter uma

audiência com o Papa. João XXII o recebeu em 23 de março de 1323 e no mesmo dia da

audiência, mandou prendê-lo.

No tempo que permaneceu preso, quase um ano, Bonagrazia produziu um escrito

pequeno, De Paupertate Christi et Apostolorum, em defesa da Ordem. Sob a inspiração da

Apologia Pauperum, ele estabelece dois momentos diferentes da vida de Cristo e dos

Apóstolos: o anterior e o posterior à Ressurreição. No primeiro, eles exerciam o seu

ministério na mais estrita pobreza, enquanto no segundo a Igreja Primitiva encarregou os

5566 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221111;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223377.. 5577 AAppuudd SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221122.. 5588 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221155..

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Apóstolos de estarem à frente de uma determinada circunscrição eclesiástica e, por isso, são

administradores dos bens doados, sobre os quais não exercem o direito de propriedade. No

mesmo ano em que mandou prender o Procurador da Ordem, João XXII promulgou a Bula

Cum inter nonnullos e, no ano seguinte, 1324, a Quia quorundam mentes, que condenam

como herética a tese da pobreza absoluta de Cristo e dos Apóstolos59.

Vale notar que a Cum Inter afirma que, de acordo com a Escritura sagrada, Cristo e

os Apóstolos não só possuíram os bens, como também o direito “(...) quanto a vendê-los,

doá-los e inclusive o direito de adquirir outros mais...”60. Essa afirmação retrata o esforço

do Papa em pôr fim ao incômodo debate acerca da pobreza evangélica e em acabar com as

pretensões da Ordem de ser diferente, e num certo sentido encontrar-se acima das demais

congregações religiosas porque se diz seguir a pobreza de Cristo e dos Apóstolos.

Enfraquecida e sem apoio da Cúria, a Ordem atravessou uma crise de indisciplina e

rebelião e alguns Menores, com medo de perseguição por parte da Igreja, refugiaram-se na

Alemanha sob a proteção do Imperador Romano-Germano, Ludovico IV.

Sabemos que o debate sobre a pobreza evangélica à época era bastante intenso.

Contudo, a inserção de Marsílio ocorre por motivos diferentes daqueles que se opuseram ou

apoiaram a Ordem. Se ele dedica o longo capítulo 13 da segunda parte do DP para tratar do

“estado da mencionada pobreza que se costuma denominar de perfeição evangélica”61,

certamente não é com o propósito de ser solidário com os Menores perseguidos. Veremos

que, se demonstra preocupação em recuperar a autenticidade do evangelho e, em particular,

o ideal de pobreza cristã, ele o faz numa perspectiva diferente da do Papa e da Ordem. A

sua perspectiva é política. A exemplo de muitos franciscanos, que discorreram sobre o

assunto, o paduano faz uma interpretação literal das Sagradas Letras, recorre à tradição dos

Santos Padres e, implicitamente, à própria Exiit. Contudo, ao proceder assim, ele procura se

opor a João XXII e, contrariamente à teoria da plenitude do poder papal, sustentar a sua

tese de que apenas o legislador humano cristão possui o poder soberano. A propósito, como

bem afirma Souza, “nos capítulos relacionados à temática da pobreza, ele nunca cita outros

5599 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944.. pppp 221166--221177;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223388.. NNoo mmeessmmoo aannoo ddaa pprroommuullggaaççããoo ddaa QQuuiiaa qquuoorruunnddaamm mmeenntteess,, JJooããoo XXXXIIII ccaannoonniizzoouu TToommááss ddee AAqquuiinnoo,, aa qquueemm oo PPaappaa ffeezz rreeffeerrêênncciiaass eemm ssuuaass BBuullaass qquuee ttrraattaamm ddaa qquueessttããoo ddaa ppoobbrreezzaa.. 6600 AAppuudd SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221166.. 6611 TTííttuulloo ddoo ccaappííttuulloo 1133.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1133,, pp.. 335522..

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textos pontifícios ou dos franciscanos em geral, para contrapô-los aos do Papa João XXII

ou para fundamentar suas teses”62.

O ideal de pobreza que Marsílio define para o clero e o líder dessa corporação, o

Papa, é de uma radicalização que não encontra precedente entre os Espirituais. Segundo ele,

o clero deve livremente renunciar ao direito de propriedade individual e em comum;

recusar o supérfluo e contentar-se com o minimamente necessário para viver. É verdade

que essa atitude espontânea do sacerdote pode ser encontrada no ambiente dos Espirituais.

Entretanto, diferentemente destes, o sacerdote deve se igualar de fato à situação dos pobres:

ele sempre procura “satisfazer às necessidades quase presente”63 e, concomitantemente,

suportar a fome, a sede, o frio e demais adversidades da vida.

É evidente que Marsílio recusa a concepção de pobreza meritória praticada pelas

Ordens monásticas e outras comunidades religiosas que se consideram pobres, porque

abriram mão do direito à propriedade individual. Porém, possuem bens em comum. O que

não tem nada de meritório nesse tipo de pobreza. Pois as pessoas dessas comunidades “(...)

não estão dispostas a suportar as aflições e misérias deste mundo”64. É importante ressaltar

a afirmação de Marsílio segundo a qual “(...) as adversidades deste mundo são meritórias

para aqueles que voluntariamente as suportam”65. Por essa razão, ele também não aceita a

idéia de pobreza praticada pelos Menores que renunciaram ao direito de propriedade

individual e em comum, mas não se importam em morar e comer bem. Esses Frades não

são os verdadeiros pobres por opção.

Tampouco eram meritoriamente pobres os membros da Ordem Terceira

Franciscana, que podiam adotar um voto de pobreza que se conciliasse com suas atividades

costumeiras na sociedade, como foi o caso do rei francês são Luis IX66. Certamente, este

monarca muito piedoso não era aos olhos do paduano o modelo de príncipe cristão. O

governante não precisa ser pobre para seguir a Cristo. Alguém que ama a Deus, ou seja,

possui caridade, não tem o dever de praticar qualquer espécie de pobreza. A riqueza ou o

poder do príncipe cristão não comprometem o seu exercício de caridade.

6622 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221177.. 6633 DDPP,, IIII,, 1133//2277,, pp.. 337700.. 6644 DDPP,, IIII,, 1133//2255,, pp.. 336699.. 6655 DDPP,, IIII,, 1133//2255,, pp.. 336688.. 6666 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 222233;; CCOONNGGAARR,, 11999977,, pppp.. 220077--223311..

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Por outro lado, um clero rico e poderoso representa uma traição ao amor de Deus,

pois Cristo e os Apóstolos foram extremamente pobres, embora tenham tido algum bem

material. O modelo de cristão que vivenciou o estado de perfeição é o próprio Filho de

Deus. Não há, segundo Marsílio, outro ser humano que se iguala a ele em matéria de

perfeição cristã. O modo de viver de Cristo neste mundo foi coerente com o seu ensino a

respeito do homem perfeito. Se não houvesse essa coerência, por que então alguém deveria

imitá-lo? Se, portanto, o sacerdote ensina a perfeição e não a pratica, qual cristão

esclarecido procuraria segui-lo ou sentir-se-ia convencido do seu ensinamento?

É um fato, para Marsílio, que Cristo ensinou e praticou a pobreza meritória, assim

como possuía algumas coisas materiais. Essa posse, porém, não implica afirmar que o

Mestre tinha o direito de propriedade, como haviam defendido vários Mendicantes e o

próprio João XXII. Ela consiste apenas na obtenção necessária de certos bens, a fim de que

Cristo não morresse de fome, sede, ou frio. A ausência desse mínimo é a defesa do suicídio,

pecado que a Nova Lei condena. Se Cristo possuiu dinheiro, este era proveniente de

esmolas com destino certo: ajuda aos indigentes. Em suma, o conjunto das coisas materiais,

embora bastante restrito, doadas ao Mestre e seus Apóstolos, eram reservadas para a

manutenção mínima de suas vidas ou o socorro dos mendigos. Veremos

pormenorizadamente que essa concepção da via perfectionis faz parte da estratégia

marsiliana em redesenhar a estrutura do clero de modo que a comunidade política não seja

mais uma vez ameaçada por ele. A seguir, tratemos de outro tópico importante que

contribuiu também para a elaboração do DP.

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3. Ludovico IV e o Papado

Ludovico IV, que se tornou Imperador sem a confirmação papal, era tido como um

dos grandes adversários do Papa. João XXII mantinha à época relações conflituosas com o

maior poder político da Europa medieval, o imperium. O Bávaro tinha ganhado do seu

concorrente, Frederico de Habsburgo, aliado do pontífice, na discutível eleição imperial de

1314 e, em seguida, na guerra envolvendo os dois príncipes candidatos (1322)67. Antes de

os dois concorrentes decidirem a sucessão imperial pelo uso da força, João XXII

promulgou a Bula Si Fratrum (1317), na qual notamos a influência do Dictatus papae e,

sobretudo, das idéias hierocratas de Inocêncio III.

A Si Fratrum demonstra as pretensões hierocratas de João XXII. A sua tese central

afirma que o Romano Pontífice tem e exerce a plenitude do poder sobre o Império. Ela se

sustenta, de um lado, nas palavras de Cristo em Mt 16, 18-19 “(...) Tu és Pedro...Dar-te-ei

as chaves do Reino dos céus (...)”. A sua interpretação de raiz hierocrata podia induzir a tal

conclusão. De outro lado, a mencionada tese se fundamenta na decretal Venerabilem,

publicada em março de 1202. Esse documento do Papa Inocêncio III, incorporado ao

código canônico, sanciona a teoria relativa à Translatio Imperii dos gregos para os

germanos, efetuada na pessoa de Carlos Magno em 800, mesmo ano em que o Papa Leão

III o proclamou Imperador do Ocidente. Desse modo, João XXII pretendia mostrar na Si

Fratrum que ele tem, de acordo com as Escrituras e o direito canônico, o poder sobre o

Império.

Uma vez que Ludovico se fez indiferente à promulgação da mencionada Bula, João

XXII resolveu atacá-lo de outro modo. O Sumo Pontífice confirmou o rei Roberto de

Nápoles no cargo de vigário papal in temporalibus para a Itália; excomungou os líderes dos

Gibelinos, que eram aliados de Ludovico IV. Em seguida, dois anos depois da Si Fratrum,

em 1319, adotou o método praticado pelos príncipes para resolver determinados conflitos: a

via das armas. Enviou o exército à Itália, sob o comando do cardeal Bertrando de Pouget,

com o objetivo de derrotar os Gibelinos e enfraquecer o poder do Imperador, naquela

região da Europa medieval. Em março de 1324, excomungou o Bávaro e seus partidários.

6677 PPeelloo ffaattoo ddee aa eelleeiiççããoo tteerr--ssee ccoollooccaaddoo eemm ssuussppeeiiççããoo,, ooss ddooiiss pprríínncciippeess ddeecciiddiirraamm rreessoollvveerr oo pprroobblleemmaa ddaa ssuucceessssããoo iimmppeerriiaall ppeellaa vviiaa ddaass aarrmmaass..

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Em resposta a essa excomunhão Ludovico IV, em maio do mesmo ano, sancionou

o Manifesto de Sachsenhausen. Este documento atacava João XXII em dois pontos:

acusava-o de herege por causa de suas Bulas relativas à pobreza de Cristo e dos Apóstolos,

e também de ter cometido o crime de lesa-majestade ao se intrometer nos assuntos do

Império68. Em vista das atitudes heréticas e criminosas do Papa, o Manifesto sugeriu a

realização de um Concílio Geral. No entanto, não ocorreu a instalação da assembléia

conciliar, e o Papa permaneceu no seu cargo. Em 1326, dois anos após a publicação

daquele documento, o cardeal João Orsini, por ordem de João XXII, liderou um poderoso

exército rumo à Itália em apoio aos Guelfos e Roberto de Nápoles, com o objetivo de

liquidar definitivamente os Gibelinos e minar as bases de sustentação de Ludovico IV

naquela região.

O Bávaro também organizou um poderoso exército e marchou em socorro a seus

aliados. A Itália abrigava cidades-estados. As rivalidades entre as cidades italianas eram

grandes. No interior delas e entre elas, não era incomum o conflito evolvendo facções para

assumir o poder público. Além disso, tanto o Papado como o Império procurara exercer

controle sobre as mesmas. A sua região norte encontrava-se sob o poder do Imperador. A

região central era controlada pelo Papado, enquanto que ao sul as cidades eram invadidas

constantemente por potências estrangeiras.

Uma forma de o Papado e o Império exercerem influência naquela porção da

Europa consistiu no apoio a facções que tentavam ocupar o poder na Itália. Havia à época

duas grandes facções rivais: os Gibelinos e os Guelfos. A primeira tinha o apoio de

Ludovico IV e a segunda, de João XXII. Se o Papa apoiasse os Guelfos, ele conseguiria

enfraquecer o poder do Imperador naquela região. O envio, portanto, de uma força militar

imperial em apoio aos Gibelinos fez-se necessário para combater o exército do Papa.

Bem-sucedido nos combates que travou, logo Ludovico chegou a Milão e aí recebeu

das mãos do bispo Guido Tarletti a coroa de ferro, símbolo da realeza romano-lombarda.

Em seguida, acompanhado pelo conselheiro político, Marsílio de Pádua, Ludovico marchou

6688 VVaallee nnoottaarr aa sseegguuiinnttee ppaassssaaggeemm ddoo MMaanniiffeessttoo:: ““((JJooããoo XXXXIIII)) ddeeffeennddeeuu uummaa ddoouuttrriinnaa ddee aasssseerrççõõeess vveenneennoossaass ee hheerrééttiiccaass aaffiirrmmaannddoo qquuee CCrriissttoo ee ooss AAppóóssttoollooss ppoossssuuíírraamm bbeennss mmaatteerriiaaiiss eemm ccoommuumm,, ddaa mmeessmmaa ffoorrmmaa qquuee oouuttrroo ggrruuppoo qquuaallqquueerr ooss ppoossssuuííaa.. TTaall aaffiirrmmaaççããoo éé nnoottoorriiaammeennttee hheerrééttiiccaa,, pprrooffaannaa ee ccoonnttrráárriiaa aaoo ssaaggrraaddoo tteexxttoo ddoo EEvvaannggeellhhoo ((......)) ee nneessttee iimmuuttáávveell ffuunnddaammeennttoo,, oo aallmmoo ppaaii FFrraanncciissccoo,, tteesstteemmuunnhhaa ddee CCrriissttoo,, ffuunnddoouu aa ssuuaa OOrrddeemm ee aa ssaannttaa mmããee IIggrreejjaa aapprroovvoouu ee ccoonnffiirrmmoouu aa RReeggrraa qquuee CCrriissttoo llhhee rreevveelloouu ee eellee aa ccoommppôôss aattrraavvééss ddaa ddeetteerrmmiinnaaççããoo ddee iinnúúmmeerrooss PPoonnttííffiicceess RRoommaannooss:: HHoonnóórriioo,, GGrreeggóórriioo IIXX,, AAlleexxaannddrree IIVV,, IInnooccêênncciioo IIVV,, IInnooccêênncciioo VV ee NNiiccoollaauu IIIIII ee IIVV ((......))”” ((aappuudd SSOOUUZZAA,, 11998866,, pp.. 226600))..

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em direção a Roma, sendo coroado nessa cidade Imperador do Sacro Império. No mesmo

ano da sua coroação, em 1328, o Imperador instalou um tribunal, com o apoio de muitos

clérigos seculares e religiosos de diversas Congregações religiosas, para julgar João XXII.

A sentença condenatória saiu rápido contra o Papa. Nicolau Fabriano, frade agostiniano,

perguntou aos participantes do julgamento qual deles poderia ser o advogado de defesa do

réu. Todos responderam negativamente e demonstraram ser contrários à permanência do

sacerdote francês no trono petrino. A acusação foi a mesma propugnada pelo Manifesto de

Sachsenhausen: o Papa é herético, porque possui uma concepção de pobreza evangélica

que se opõe à Verdade; e ele é um criminoso, porquanto ofende a autoridade suprema do

Império.

Uma vez condenado por heresia, João XXII passou a ser considerado por seus

inimigos como falso Papa e, por isso, devia ser destituído de seu cargo. O Bávaro cuidou de

realizar uma nova eleição papal. Treze pessoas designadas pelo Bávaro elegeram o

franciscano Pedro Corvara como o novo ocupante da cátedra de Pedro na cidade romana,

recebendo o nome de Nicolau V. Evidentemente, a eleição do antipapa não ficou

indiferente ao Papado sediado em Avinhão. O que Ludovico IV fez em Roma, nos

primeiros meses de 1328, ordenando que se procedesse a uma nova eleição papal e, com

essa medida, reafirmando o seu poder de Imperador do Sacro Império, representou uma

grave provocação a João XXII. Este mandou a Roma uma poderosa força militar composta

por homens do exército pontifício, guelfo e napolitano, obrigando o Imperador, juntamente

com seus aliados, a fugir para Pisa, ao norte da Itália. No entanto, a permanência de

Ludovico IV nessa cidade italiana não durou muito, pois a ofensiva dos aliados do papa

prosseguiu em sua direção.

Nessa altura, o Imperador, acolhendo os conselhos de Miguel de Cesena, Geral dos

franciscanos, acabou reformulando o documento de deposição de João XXII, dando mais

ênfase ao aspecto relativo às heresias cometidas pelo Papa, e igualmente reparando o erro

de ter investido Pedro Corvara como Bispo de Roma, um franciscano de reputação

duvidosa. Miguel de Cesena, juntamente com Ockham e Ubertino de Casale, fez parte do

séqüito imperial em maio de 1328. A contribuição do Geral dos franciscanos não impediu o

avanço das tropas papais. Ludovico IV se viu forçado a retornar à Alemanha em dezembro

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de 1329, depois de uma breve estada em Trento69. Nesse seu regresso levou consigo os três

franciscanos perseguidos pelo Papa e o próprio Marsílio.

Sentindo-se vitorioso no conflito com o Bávaro, João XXII assumiu uma atitude

mais firme a respeito de suas discutíveis idéias teológico-políticas. Até ao final de seu

pontificado, manteve-se em disputa com o imperium. Ludovico IV, após ter fracassado em

sua expedição a Roma, tentou restabelecer sem sucesso as suas relações com o Papado. Um

dos grandes empecilhos era Marsílio, que continuara sustentando suas posições radicais. Na

correspondência entre o Imperador e João XXII, o paduano foi colocado como uma barreira

nas negociações diplomáticas.

Ludovico IV exigia como condição para o restabelecimento da paz pouca coisa, se

nos defrontamos com o DP, mas muito para o Papa: este tinha apenas que reconhecê-lo

Imperador de direito e de fato. João XXII recusou essa exigência até a sua morte. Com o

seu sucessor, também de origem francesa, Bento XII, Papa de 1334 a 1342, Ludovico IV

retomou as negociações diplomáticas. Bento XII prontificou-se em aceitar a reconciliação,

desde que o Imperador assumisse algumas condições impostas pela Cúria, dentre as quais a

retirada de Marsílio da corte imperial70. O Bávaro manifestou-se favorável. No entanto, o

Papa tinha dúvidas acerca das reais intenções do Imperador. A sua desconfiança aumentou

em 1337, quando Ludovico IV nomeou o monarca inglês Eduardo III vigário “para a

recuperação dos direitos do Império”71. Filipe VI, rei francês, não gostou muito da idéia e

interferiu nas negociações de paz, obrigando Avinhão a pôr fim à tarefa de reconciliação.

Os príncipes e bispos alemães uniram-se a Ludovico IV. Bento XII endureceu a sua

posição em março de 1338, depois da tentativa do clero alemão em convencê-lo a

reconhecer Ludovico IV como Imperador de fato e de direito. O Papa mandou dizer ao

Bávaro que seria perdoado somente se abrisse mão de “todo poder, título e honra”72. Em

julho de 1338, o Bávaro e os príncipes eleitores, com exceção do rei da Boêmia, reuniram-

se na cidade de Rhens e declararam que o Imperador eleito exerce plenamente o seu ofício

sem a confirmação do Papa. Em agosto daquele ano, Ludovico IV promulgou o decreto

Licet iuris, no qual reconhece a origem divina do poder, mas afirma que a ocupação do

6699 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3399.. 7700 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 4411.. 7711 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 4411.. 7722 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 4411..

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cargo imperial segue um antigo costume, cujas características básicas são as seguintes: o

processo eleitoral se encarrega de eleger o ocupante do cargo; o candidato eleito torna-se

legitimamente o soberano do imperium; e a confirmação da Santa Sé é dispensável.

Esses fatos contribuíram para fechar definitivamente o canal de negociação com a

Cúria. Ludovico IV tentou inutilmente uma nova reaproximação no ano seguinte,

estabelecendo um acordo com os franceses e impedindo que Eduardo III continuasse com o

título de vigário imperial, depois que o monarca inglês invadiu a França com a ajuda do

próprio filho do Imperador e dos príncipes renanos. As tentativas do Bávaro de selar a paz

com o Papado pela via diplomática, demonstravam, ao contrário do que pensava Marsílio,

que o Império tomava por legítimo um certo poder de julgar nas mãos do Papa.

A impossibilidade em que o Imperador se viu de retomar as negociações foi a

oportunidade que o paduano esperava para recuperar o seu prestígio na corte imperial, até

então perdido por causa da influência do grupo franciscano dissidente de Munique, liderado

por Miguel de Cesena (Bonagrazia de Bergamo, Guilherme de Ockham). Associada a esse

fato está a questão matrimonial envolvendo Margarida Maultasch e o filho do Imperador,

Ludovico de Brandemburgo. A condessa austríaca era casada com o filho do rei João da

Boêmia. Quando ela se casou com Henrique de Luxemburgo-Morávia, os dois tinham

respectivamente 12 e 10 anos. Dez anos após o casamento sem filhos, em 1340, a condessa

de Tirol pediu a Bento XII a sua anulação. O Papa recusou o seu pedido e, em 1341, ela

decidiu se separar sem o consentimento da Cúria. Ela teve o apoio do Imperador, que

desejava vê-la casada com o seu filho, a fim de ter o domínio sobre o Tirol. No entanto, o

problema se agravou com o fato de que a avó paterna de Margarida era irmã do avô de

Ludovico de Brandemburgo. O casamento, portanto, entre os dois envolvia laços de

consangüinidade. Em razão disso, o Imperador teve que pedir ao Papa a sua aprovação,

pedido que Bento XII recusou sem hesitação. Contrariando o veto da Cúria, o Imperador

decidiu, em fevereiro de 1342, casar o seu filho com a condessa. A propósito, nesse mesmo

ano, Marsílio concluiu provavelmente a sua obra O Defensor Menor, na qual ele sintetiza as

principais idéias do DP, responde às críticas dos seus adversários, dentro e fora da corte

imperial, e procura dar uma solução para o mencionado problema matrimonial73.

7733 NNoo úúllttiimmoo ccaappííttuulloo ddoo DDMM,, MMaarrssíílliioo pprrooccuurraa rreessppoonnddeerr ààss sseegguuiinntteess qquueessttõõeess:: ““PPoorr aaccaassoo uumm ggrraauu ddee aaffiinniiddaaddee qquuaallqquueerr,, aappóóss aa pprriimmeeiirraa ggeerraaççããoo,, iimmppeeddee aass ppeessssooaass ddee ccoonnttrraaíírreemm uumm ccaassaammeennttoo llíícciittoo?? TTaall iimmppeeddiimmeennttoo eessttaarriiaa ddeetteerrmmiinnaaddoo ppeellaa lleeii ddiivviinnaa oouu ssoommeennttee ppeellaa lleeii oouu ppeelloo lleeggiissllaaddoorr hhuummaannoo?? EEnnffiimm,, aa

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O sucessor de Bento XII, o Papa francês Clemente VI, inconformado com ter no

cargo imperial alguém insubmisso ao Papado, tomou medidas severas para combater

Ludovico IV: por exemplo, intensificou o apoio aos Guelfos e promulgou a Bula Prolixa

Retro, na qual exigia a retratação e a deposição do Imperador. Clemente VI conquistou

antigos aliados de Ludovico IV e armou uma nova eleição imperial. O Bávaro, em resposta,

procurou organizar uma força militar contra Avinhão. No entanto, morreu de apoplexia,

durante uma caçada de ursos em 1347, quatro anos depois da morte de seu conselheiro

político Marsílio de Pádua, e cinco anos antes do fim do pontificado de Clemente VI.

4. Marsílio e sua obra magna

Não há dúvidas de que Marsílio foi um adversário de Clemente VI, este Papa que o

considerava como o maior herege que ele já conhecera74. No entanto, a sua obra magna, O

DP, foi concluída no pontificado de João XXII, precisamente em 132475. Em sua

divulgação guardou anonimato. No entanto, após a Cúria tomar conhecimento da autoria,

Marsílio refugiou-se na Corte imperial. O paduano não só se tornou conselheiro político,

mas também médico pessoal do Imperador, uma vez que tinha adquirido formação e

experiência em medicina antes do exílio.

A trajetória intelectual de Marsílio inicia-se em Pádua, cidade onde nasceu entre os

anos 1275 e 128076. Pertencia à família dos Mainardini, da classe administrativa local.

Tinha um irmão juiz, e o seu pai era notário. Apenas uma pequena parcela privilegiada de

qquueemm oouu aa qquuaaiiss ppeessssooaass ccoommppeettee rreemmoovveerr eessssee iimmppeeddiimmeennttoo ee ccoonncceeddeerr uummaa ddiissppeennssaa ààss ppeessssooaass qquuee,, tteennddoo eessssee ggrraauu ddee ccoonnssaannggüüiinniiddaaddee,, ddeesseejjaamm ccoonnttrraaiirr mmaattrriimmôônniioo,, ee aaiinnddaa lliibbeerráá--llaass ddooss ccaassttiiggooss eemm qquuee iinnccoorrrreerriiaamm,, ssee vviieerreemm aa ffaazzeerr iissssoo??”” ((DDMM,, 11999911,, 1166,, pppp.. 110066--111100)).. OO ppaadduuaannoo rreeddiiggiiuu ttaammbbéémm oo DDee IIuurriissddiiccttiioonnee IImmppeerraattoorriiss iinn CCaauussiiss MMaattrriimmoonniiaalliibbuuss,, ppaarraa ttrraattaarr ddeessssee pprroobblleemmaa mmaattrriimmoonniiaall,, ee oo TTrraaccttaattuuss ddee TTrraannssllaattiioonnee IImmppeerriiii.. 7744 AA mmoorrttee ddee MMaarrssíílliioo ffooii mmoottiivvoo ddee aalleeggrriiaa ppoorr ppaarrttee ddaa CCúúrriiaa.. CClleemmeennttee VVII aannuunncciiaa eemm 11334433 oo ffaalleecciimmeennttoo ddoo ppaadduuaannoo nnooss sseegguuiinntteess tteerrmmooss:: ““LLuuiiss ddee BBaavviieerraa aappooyyóó aa llooss hheerreejjeess JJuuaann ddee JJaannddúúnn yy MMaarrssiilliioo ddee PPaadduuaa,, ccoonnddeennaaddooss ppoorr hheerreejjííaa,, yy llooss mmaannttuuvvoo jjuunnttoo aa ééll hhaassttaa qquuee mmuurriieerroonn.. NNooss aattrreevveemmooss aa ddeecciirr qquuee nnoo ssee hhaa ccoonnoocciiddoo jjaammááss mmaayyoorr hheerreejjee qquuee eessee MMaarrssiilliioo.. PPoorr mmaannddaattoo ddee nnuueessttrroo pprreeddeecceessoorr,, BBeenneeddiiccttoo XXIIII,, hheemmooss eexxttrraaííddoo mmááss ddee ddoosscciieennttooss ccuuaarreennttaa aarrttííccuullooss hheerrééttiiccooss ddee uunn lliibbeelloo ssuuyyoo”” (( aappuudd AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 4433)).. 7755 CCoonnttiinnuuaa iinncceerrttoo oo iinníícciioo ddee ssuuaa ccoommppoossiiççããoo.. EEssppeeccuullaa--ssee qquuee oo DDPP tteennhhaa ssiiddoo iinniicciiaaddoo eennttrree aa mmoorrttee ddee HHeennrriiqquuee VVIIII ((11331133)) ee aa ddee FFiilliippee IIVV ((11331144)) ((ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3366)).. 7766 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp 2299--3366..

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leigos paduanos ocupava a função de juiz ou de notário77. Quando Marsílio nasceu, Pádua

já possuía Universidade (criada em 1222) e, portanto, possuía uma cultura universitária que

se alimentara da contribuição de seus mestres, geralmente franciscanos e dominicanos.

Conheceu o humanismo nascente em sua cidade natal e se interessou pela cultura latina

bastante difundida em Pádua. Conquistou a amizade de Mussato (1261-1329), poeta

respeitado pelos cidadãos paduanos e discípulo do humanista Lovato Lovati (1241-1309).

Teve como mestre na Universidade de Pádua o médico, filósofo e astrólogo Pedro de

Abano, que publicou um trabalho de grande repercussão à época, Conciliator

differentiarum, no qual ele procurou harmonizar a medicina árabe, o saber médico de

Galeno e a filosofia peripatética.

Pedro de Abano o incentivou a continuar seus estudos de filosofia na Universidade

de Paris, de onde conheceu João de Jandun, filósofo averroísta que se refugiou juntamente

com ele na Corte imperial. O paduano participou ativamente do ambiente intelectual

parisiense e chegou a ser reitor da Universidade de Paris. Seu reitorado durou pouco (entre

dezembro de 1312 e março de1313). Ensinou nessa Universidade Lógica e Metafísica de

Aristóteles78. Em 1316 foi nomeado por João XXII cônego. Em 1318 o mesmo Papa lhe

concedeu o primeiro canonicato da Igreja de Pádua79.

Se até então o paduano demonstrara simpatia pelo partido imperial, ele o fez de

forma bastante discreta. O fato é que há evidências de sua participação política no ano

seguinte, 1319, a favor do Imperador. Numa carta de João XXII, datada de 29 de abril

daquele ano, o Papa afirma que Marsílio dirigiu-se a Carlos de la Marcha como emissário

de Cangrande della Scalla e Mateus Visconte –vigários imperiais, respectivamente de

Verona e Milão – com o propósito de convencer o irmão do monarca francês a assumir a

direção da Liga dos Gibelinos ao Norte da Itália80. No DP, o médico paduano acusa “o atual

pseudo-Papa de Roma”, João XXII, de ter perseguido, dentre outros príncipes, Mateus

Visconte, morto em 1322, “(...) de ilustre memória, pessoa generosa, católico fervoroso,

7777 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3300:: ““LLooss EEssttaattuuttooss ddee PPaadduuaa cceerrttiiffiiccaann qquuee ssoolloo ppooddííaann eejjeerrcceerr eell ooffiicciioo ddee nnoottaarriioo ppeerrssoonnaass ccuullttaass yy ddee ffeehhaacciieenntteess ccuuaalliiddaaddeess mmoorraalleess ee iinntteelleeccttuuaalleess yy qquuee hhaabbííaa qquuee sseerr ppaadduuaannoo ddee nnaacciimmiieennttoo,, rreessiiddiirr ddee ccoonnttiinnuuoo eenn llaa cciiuuddaadd,, hhaabbeerr ppaaggaaddoo uunnaa eessttiimmaabbllee ccaannttiiddaadd mmeennssuuaall ddee iimmppuueessttooss yy ppoosseeeerr bbiieenneess iinnmmuueebblleess eenn eell ddiissttrriittoo ppoorr uunn ssiiggnniiffiiccaattiivvoo vvaalloorr eenn eell mmoommeennttoo ddee llaa eelleecccciióónn””.. 7788 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3366.. 7799 CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3344.. 8800 CCff.. PPIINNCCIINN,, 11996677,, pp.. 3355;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 3344..

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nobre, respeitado, sério, e de boa reputação (...)”81. Vale notar nessa passagem do DP a

antipatia que Marsílio demonstra claramente ter para com João XXII. O que o levou a

contrair essa aversão e tomar a decisão de militar no partido dos Gibelinos? Há várias

hipóteses até o presente momento, mas nenhuma delas é conclusiva82.

O fato é que o paduano repelira João XXII e o DP deixa isso bem claro. A sua obra

magna se apresenta como adversária ao que ele denomina de “pseudo-Papa” ou, em termos

gerais, à plenitude do poder papal. Marsílio estrutura o DP no sentido de mostrar que há

uma ciência política, de base aristotélica, que é coerente com a Verdade ao tratar da relação

entre sacerdócio e cidade, religião e política. Ela não pode furtar-se da tarefa de responder à

seguinte pergunta, de grande importância para a tranqüilidade social e a organização

racional da convivência: que lugar ocupa o sacerdote na comunidade perfeita dos fiéis?

Essa questão possui alguns termos – sacerdote, comunidade dos fiéis, comunidade perfeita

– que precisam ser esclarecidos na perspectiva do paduano, caso queiramos dar-lhe uma

resposta clara. Após o seu esclarecimento, veremos as conseqüências que podemos tirar

dessa análise.

Para analisar esses conceitos, recorremos ao DP em sua totalidade. Também

lançamos mão do DM e de intérpretes do pensamento marsiliano com o propósito de

iluminar determinados pontos de vista ou passagens do DP. Inicialmente, tomemos a

seguinte premissa de Marsílio a respeito da importância da lógica dos termos: se não

conhecemos claramente o que o termo significa, corremos o risco de errar em nosso

raciocínio ou de sermos enganados com os argumentos incorretos dos outros83. Uma coisa é

alguém afirmar que o termo x tem o significado P, porque estabeleceu P para x. Outra coisa

é porque P descreve o que de fato x denota. Se escolhemos o primeiro procedimento, de

nada adianta racionarmos a favor da verdade, pois podemos dizer o que significa x e cada

um considerar que está com a razão. No entanto, se optamos pelo segundo, ganhamos com

o debate, uma vez que, ao dizermos o que de fato x designa, não temos como recusar a

perspectiva correta, a não ser que não estejamos interessados em encontrar a verdade.

8811 DDPP,, IIII,, 2266//1177,, pp.. 559955.. 8822 AAllgguummaass hhiippóótteesseess:: aa ssuuaa eessttaaddaa eemm PPaarriiss;; aa iinnfflluuêênncciiaa ddee ggrruuppooss rreelliiggiioossooss aannttiicclleerriiccaaiiss oouu ppoossssiivveellmmeennttee aass ssuuaass aammbbiiççõõeess ppeessssooaaiiss ((ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 3355--3366)).. 8833 AA eessssee rreessppeeiittoo,, MMaarrssíílliioo mmeenncciioonnaa aa sseegguuiinnttee ppaassssaaggeemm ddaass RReeffuuttaaççõõeess:: ““OOss qquuee iiggnnoorraamm rreeaallmmeennttee oo qquuee ooss tteerrmmooss ssiiggnniiffiiccaamm ffaazzeemm ppaarraallooggiissmmooss nnããoo aappeennaass qquuaannddoo eellaabboorraamm sseeuuss pprróópprriiooss rraacciiooccíínniiooss,, mmaass ttaammbbéémm,, qquuaannddoo oouuvveemm ooss ffoorrmmuullaaddooss ppoorr oouuttrreemm”” ((ccff.. DDPP,, IIII,, 22//11,, pp.. 221155))..

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Marsílio fica com a última opção. Ele se apresenta como o amigo da verdade – não

só referente aos fatos ou ao significado próprio das coisas, mas também no que diz respeito

ao Cristo, à Palavra. Um dos obstáculos, segundo o paduano, que impede a sua clara

compreensão e transmissão está no fato de seus opositores, além de várias autoridades

eclesiásticas e seus partidários, cometerem erros de raciocínio em seus sermões e textos

escritos. Usam termos vagos para tratar de assuntos de difícil entendimento. Elaboram

idéias fantasiosas a respeito do saber divino, do Verbo. Muitos fiéis as aceitam, ou por

ignorância ou por medo da condenação divina. Ignorância, uma vez que “(...) não são

versados em Filosofia nem estão familiarizados com os textos da Sagrada Escritura”84.

Medo, porque imaginam que, se não aceitarem as declarações dos sacerdotes, Deus pode

castigá-los. É como se essas pessoas estivessem numa caverna, sem contato com a luz da

razão e da Revelação.

A respeito da Revelação, vale notar que o seu conhecimento se assenta nas Sagradas

Letras ou nos textos que corroboram as declarações bíblicas. Esta é uma premissa que

Marsílio assume no DP85. O crente, ao conhecer a sua fé, só deve aceitar como verdadeiras

as palavras que estão nos textos que “(...) designamos por canônicos, isto é, os que estão

contidos na Bíblia, e aqueles outros que deles necessariamente decorrem (grifo nosso)”86.

Se há uma afirmação sobre a fé sem ter sido conseqüência necessária das sentenças

canônicas, deve-se descartá-la, por mais que o seu autor tenha vivido uma vida de perfeição

e santidade. Existem, porém, passagens nas Escrituras de difícil interpretação. Essa

dificuldade se resolve apenas no Concílio Geral, o qual impede os fiéis de terem

divergências sobre o verdadeiro Deus. Ele constitui o único espaço em que os congregados

resolvem, sob a inspiração do Espírito Santo, as dúvidas e os erros de interpretação

doutrinária. E, o mais importante, assegura “uma crença comum nas interpretações

bíblicas”87. Veremos detalhadamente o pensamento marsiliano acerca do Concílio.

Com relação à razão, o paduano a opõe aos maus hábitos e às paixões. Ele dá valor

ao conhecimento da lógica e da observação, em que se baseia a sua ciência política. A sua

8844 DDPP,, IIII,, 11//11,, pp.. 221100 8855 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 221111:: ““LLaa ddooccttrriinnee mmaarrssiilliieennnnee ddeess ssoouurrcceess ddee llaa ffooii eesstt,, oonn llee vvooiitt,, uullttrraa ssoommmmaaiirree.. LLee ddééppôôtt ddee llaa vvéérriittéé rréévvééllééee eesstt ffiixxéé ddaannss uunn ddooccuummeenntt iinnccoonntteessttaabbllee eett iimmmmuuttaabbllee àà llaa ppoorrttééee ddee ttoouuss.. IIll ddooiitt êêttrree ccoommpprriiss ddaannss ssoonn sseennss lliittttéérraall’’.. OOnn nnee ffaaiitt aauuccuunn eeffffoorrtt ppoouurr cceerrnneerr llee ccoonnttoouurr eexxaacctt ddee ccee ddooccuummeenntt nnii ppoouurr aapppprrooffoonnddiirr llaa ppoorrttééee ddee ccee ‘‘sseennss lliittttéérraall’’,, aauuqquueell MMaarrssiillee lluuii--mmêêmmee nn’’eesstt ppaass ttoouujjoouurrss ffiiddèèllee””.. 8866 DDPP,, IIII,, 2288//11,, pp.. 661122.. 8877 DDPP,, IIII,, 1199//22,, pp.. 446699..

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outra premissa é que a clara compreensão da comunidade perfeita dos humanos só é

possível, se a investigação for racional, ou seja, se ela se fundamentar em proposições

evidentes e recorrer a métodos corretos de análise88.

A comunidade perfeita não constitui, porém, a única grande descoberta da

humanidade. Os seres humanos encontraram a expressão maior e acabada da fé: Cristo.

Uma premissa que Marsílio adota pode ser expressa na seguinte frase do Apóstolo: “Há um

só Senhor e uma só fé”89. A Verdade – termo que ele usa para se referir ao fundador do

cristianismo – é uma só. Os membros da comunidade perfeita, ao conhecê-la, unem-se num

só corpo. Unidos numa única fé, os cristãos conhecem o caminho da salvação, voltam-se

para a prática do bem e, principalmente, vivem sob o regime da Nova Lei.

Cristo instituiu uma nova lei, a Lei Evangélica, para dar à humanidade a graça de se

libertar do pecado original e conquistar a salvação eterna. Podemos interpretar essa

sentença como premissa importante no DP. Veremos as conseqüências que Marsílio tira da

afirmação de que o indivíduo, ao aceitar a Verdade, assume o propósito de observar a Lei

de Cristo, caso pretenda fortalecer a sua alma contra o pecado e prepará-la para receber as

bem-aventuranças no outro mundo. “A Lei Evangélica, diz Marsílio, é assim denominada

porque, se a observarmos e recebermos os sacramentos que nela e por ela foram instituídos,

obteremos a graça divina que nos fortalece”90. Constitui o remédio perfeito das almas

abatidas e revela o valor do perdão divino, já que ela “contém os preceitos referentes ao que

se deve crer, fazer e evitar, bem como alguns outros conselhos”91. Voltaremos adiante a

dizer mais coisas a respeito da mencionada lei. A seguir vamos tratar do ofício encarregado

de transmiti-la e ensiná-la na comunidade perfeita.

8888 CCff.. DDPP,, II,, 11//88,, pp.. 7733.. 8899 EEff 44,, 55.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 1188//88,, pp.. 446666.. 9900 DDPP,, II,, 66//44,, pp.. 9988.. 9911 DDPP,, II,, 66//44,, pp.. 9977..

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IIII.. OO SSAACCEERRDDÓÓCCIIOO VVEERRDDAADDEEIIRROO,, SSEEUUSS MMIINNIISSTTRROOSS,, SSUUAASS

AATTRRIIBBUUIIÇÇÕÕEESS

O sacerdócio cristão, na opinião de Marsílio, possui uma natureza própria, diferente

do que é praticado pelo clero. Veremos quais são as suas características efetivas; por que o

sacerdócio cristão é o verdadeiro e quem o instituiu (1); a sua condição de magister e a

doctrina christiana (2); o seu julgar (3); a coerência entre a palavra e a ação no exercício de

seu ofício (4); e, por fim, não menos importante, o seu voto de pobreza (5). Antes, contudo,

a seguinte observação se faz necessária: ao referirmo-nos ao “sacerdote”, não excluímos o

“Bispo” ou o “Papa”, pois o paduano emprega esses termos como expressões equivalentes

(cf. IV.2).

1. Quem instituiu o sacerdócio cristão e por que ele é o verdadeiro

No último capítulo da segunda parte do DP, no qual Marsílio expõe uma “causa

insólita da intranqüilidade” (cf. I.1), encontramos de forma resumida o que tinha dito no

sexto capítulo da referida parte a respeito de quem instituiu o sacerdócio cristão e por que

ele é o verdadeiro. Afirma o paduano que o verdadeiro Deus se fez homem “(...) muito

tempo depois da época em que Aristóteles viveu”92. Por que uma das Três Pessoas divinas

assumiu a natureza humana? Esta questão tem resposta apenas através da Revelação

imediata de Deus. É ineficaz, portanto, qualquer esforço da razão em procurar respondê-la.

Isso posto, qual é então a resposta da Revelação? É a seguinte: os primeiros pais

transgrediram a ordem divina e, a fim de reparar o erro que eles cometeram, Deus enviou o

seu Filho93.

Vale ressaltar que o erro que os primeiros pais cometeram e transmitiram a todo

gênero humano deixou enferma a alma de cada ser humano. O remédio para curar essa

enfermidade tornou-se conhecido com o ensinamento revelado por Cristo “(...) acerca do

9922 DDPP,, II,, 1199//44,, pp.. 119966.. 9933 CCff.. DDPP,, II,, 1199//44,, pppp.. 119966--119977;; ttaammbbéémm DDPP,, II,, 66//22,, pppp.. 9955--9966..

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que os seres humanos devem acreditar, fazer e evitar com o propósito de alcançar a vida

eterna e fugir da condenação futura”94. Ainda em vida, o Filho de Deus escolheu pessoas

dispostas a serem verdadeiros sacerdotes, ou seja, a exercerem o ministério do ensino da

verdade. Esses companheiros de Jesus são os Apóstolos, “(...) cujos nomes são por demais

conhecidos entre os cristãos e até mesmo pelos não-crentes (...)”95. Através do Espírito

Santo, eles receberam a autoridade de exercer o novo ministério ou ofício sacerdotal

fundado pelo Filho de Deus.

Não há na história da humanidade, segundo Marsílio, uma espécie de sacerdócio

idêntico ao de Cristo. Ao contrário deste, os outros foram instituídos pelos homens. Uma

vez que o ofício sacerdotal cristão é uma instituição divina, ele é superior. Ele ensina a

verdadeira religião. Os ensinamentos dos Apóstolos e demais sucessores legítimos são os

mesmos deixados pelo Mestre fundador. Resumem-se num conjunto de preceitos e

conselhos, bem como de alguns sacramentos, com o propósito de curar e salvar a alma

humana. Eles estão contidos na Nova Lei ou Lei Evangélica que os Apóstolos escreveram

de acordo com a vontade de Cristo.

Os verdadeiros sacerdotes são, portanto, ministros dos sacramentos e doutores da

Lei Evangélica. No início do sexto capítulo da primeira parte do DP, Marsílio afirma em

outros termos qual é a finalidade desse ministério sacerdotal. O verdadeiro sacerdócio tem

por objetivo “(...) moderar os atos humanos imanentes e transitivos, dirigidos pela

inteligência e vontade, através dos quais as pessoas se preparam para viver melhor no outro

mundo”96. Veremos em que consistem esses atos e qual a sua relação com a vida presente e

futura. No entanto, atemo-nos por agora à expressão “moderação” (moderatio) que

encontramos nessa passagem do DP. Um de seus significados é o “afastamento do

excesso”. O crente afasta o que é excessivo em seus atos à medida que os submete à Nova

Lei, ou seja, à doctrina christiana. Então, o verdadeiro oficio sacerdotal preocupa-se em

ensinar como dirigir os atos imanentes e transitivos em conformidade com a Lei

Evangélica, a fim de que o fiel conquiste a vida eterna. Se assim for, podemos dizer que a

pessoa escolhida para exercer esse sublime ministério é um mestre (magister) que ensina a

9944 DDPP,, II,, 1199//44,, pp.. 119977.. 9955 DDPP,, II,, 1199//44,, pp.. 119977.. 9966 DDPP,, II,, 66//11,, pp.. 9955..

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doctrina christiana àqueles que desejam regular os seus atos e salvar as suas almas.

Vejamos a seguir em detalhes o sacerdote como magister e a doctrina christiana.

2. O sacerdote como magister e a doctrina christiana

Foi dito que há na comunidade perfeita cristã alguns indivíduos encarregados de

ensinar a Lei Evangélica. Essas pessoas, além de abraçarem a nova fé, devem ser cidadãos

com domínio de si e reconhecimento por parte de seus pares. Fiéis que não se deixaram

vencer por sentimentos egoístas ou que dedicaram suas vidas a alguma atividade de notável

interesse público. Esse comportamento cívico e racional está presente entre aqueles que

formavam a corporação dos prelados na comunidade política pré-cristã. Para o sacerdócio,

exigia-se que os candidatos tivessem um domínio sobre as paixões egoístas e que, de

preferência, fossem “(...) cidadãos zelosos e estimados por todos que haviam exercido antes

os ofícios militar, judiciário ou no conselho, e tinham deixado de exercê-los por causa de

sua idade provecta”97. São critérios, segundo o paduano, ainda válidos no sacerdócio

perfeito98.

Com essas qualidades, os doutores da Lei Evangélica e ministros dos sacramentos

cristãos – como são chamados os novos sacerdotes – seguem o exemplo dos antigos, à

medida que cultivam nos cidadãos a expectativa de receber um prêmio futuro, para quem

pratica o bem, e a de um castigo futuro, para quem age mal. “Por esse motivo, afirma o

paduano, muitos conflitos e violências não ocorreram nas comunidades, havendo, pois, no

seu interior a paz ou tranqüilidade, bem como a vida suficiente almejadas pelos seres

humanos enquanto vivem neste mundo”99. Portanto, o sacerdote é de grande utilidade, um

cittadino prezioso100 que não pode desaparecer na vida dos cidadãos.

9977 DDPP,, II,, 55//1133,, pp.. 9933.. 9988 OObbsseerrvvaa DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 4433:: ““MMeennttrree ppeerr llaa pprreecceeddeennttee ppaarrtteecciippaazziioonnee aallllaa vviittaa cciivviillee rriicchhiiaammaa aallllaa mmeennttee ccoossttuummaannzzee ddeeggllii aannttiicchhii ggrreeccii ee rroommaannii,, ppeerr llaa ssaaggggeezzzzaa ee ppeerr llaa cceessssaazziioonnee dd’’ooggnnii aattttiivviittàà pprrooffaannaa iill ssaacceerrddoottee ddii MMaarrssiilliioo pprreeaannnnuunnzziiaa ee ggiiuussttiiffiiccaa llaa ppoossiizziioonnee cchhee iill pprreellaattoo ccrriissttiiaannoo ddoovvrràà tteenneerree nneellllaa cciivviittaass cchhee iill PPaaddoovvaannoo pprrooggeettttaa””.. 9999 DDPP,, II,, 55//1111,, pp.. 9922.. 110000 EExxpprreessssããoo ddee DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 4433..

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Embora as comunidades pré-cristãs não tivessem um conhecimento sobre a Lei

Evangélica, elas orientavam os seus sacerdotes, cidadãos de boa reputação, a buscarem a

tranqüilidade. Marsílio reconhece que o novo sacerdócio é superior ao antigo, por ter sido

instituído por Deus, na pessoa de seu Filho101. No entanto, para ele, isso não nos impede de

vermos semelhanças significativas entre os dois, o cristão e o pagão. Ambos, por exemplo,

aproximam-se em relação ao interesse nesta vida pela ordem e pela paz. São devotados

cidadãos cumpridores da lei. No caso do sacerdócio cristão, o seu ministério se volta

especificadamente para a Nova Lei: a Evangélica.

Se a Lei Evangélica revela a felicidade eterna, tornando-se a expressão perfeita da

fé, que valor ela possui para o bem viver neste mundo, na comunidade política? Sabemos

que ela, na visão de Marsílio, é transmitida aos fiéis através do ofício sacerdotal. Por ser

uma doctrina, a exemplo das instruções que se originam da criatividade humana, o seu

valor para a comunidade política reside em educar os seres humanos, não só para se

preparar para ter uma vida melhor no outro mundo, mas também a viver bem neste

mundo102. Assim, o sacerdócio tem o duplo papel de educar o ser humano para a vida futura

(a felicidade eterna) e para a presente (fazer o bem e evitar o mal)103.

O sacerdote é um educador ou formador da fé. Em relação à vida dos humanos neste

mundo, quando ele afirma que a Lei Evangélica ordena “faze o bem e evita o mal”, o fiel

deve interpretar esse imperativo no sentido de que o bom cristão, neste mundo, domina suas

paixões, assume atitudes moralmente corretas e obedece as regras coercivas ou as

110011 NNoottaa ccoomm rraazzããoo LLAAGGAARRDDEE ((11997700,, pp.. 118899)) qquuee eemm DDPP ““((……)) MMaarrssiillee aa ccoonnssaaccrréé ddee lloonngguueess ppaaggeess àà nnoouuss mmoonnttrreerr qquuee llee ssaacceerrddooccee cchhrrééttiieenn,, àà llaa ddiifffféérreennccee dduu ssaacceerrddooccee ppaaiieenn,, nn’’ééttaaiitt ppaass dd’’iinnvveennttiioonn hhuummaaiinnee,, mmaaiiss dd’’iinnssttiittuuttiioonn ddiivviinnee””.. 110022 CCff.. DDPP,, II,, 66//99,, pp..9999:: ““NNeessttee ooffíícciioo [[oo ssaacceerrddoottaall]] ssee eennqquuaaddrraamm ccoorrrreettaammeennttee ttooddaass aass ddoouuttrriinnaass pprroovveenniieenntteess ddaa ccrriiaattiivviiddaaddee hhuummaannaa ((......)).. TTaaiiss ddoouuttrriinnaass,, eemm ffuunnççããoo ddaa aallmmaa,, pprreeppaarraamm bbeemm oo hhoommeemm,, ttaannttoo ppaarraa aa vviiddaa nneessttee mmuunnddoo ccoommoo ppaarraa nnoo oouuttrroo””.. VVaallee nnoottaarr qquuee,, eemmbboorraa MMaarrssíílliioo nnããoo ddiiggaa ccllaarraammeennttee qquuaaiiss ssããoo eessssaass ddooccttrriinnaa qquuee,, sseegguunnddoo eellee,, ffoorraamm ttrraannssmmiittiiddaass ppoorr AArriissttóótteelleess ee oouuttrrooss ssáábbiiooss,, eellaass eessttããoo ppeerrffeeiittaammeennttee aassssoocciiaaddaass nnaa PPoollííttiiccaa aaoo ccaarráátteerr ppúúbblliiccoo ee uunniivveerrssaall ddaa ffoorrmmaaççããoo ddaass ppeessssooaass.. AAffiirrmmaa oo EEssttaaggiirriittaa((PPoolliittiiccaa VVIIIIII,, 11,, 11333377aa 1188--2277)):: ““TTeennddoo ttooddaa aa cciiddaaddee uumm úúnniiccoo ffiimm,, éé eevviiddeennttee qquuee aa eedduuccaaççããoo ddeevvee nneecceessssaarriiaammeennttee sseerr uummaa ee aa mmeessmmaa ppaarraa ttooddooss,, ee qquuee oo ccuuiiddaaddoo ppoossttoo nneellaa ddeevvee sseerr ttaarreeffaa ccoommuumm ee nnããoo ddoo ffoorroo pprriivvaaddoo,, ccoommoo ssee ttoorrnnoouu pprrááttiiccaa ccoorrrreennttee ((......)).. OO eexxeerrccíícciioo ddaaqquuiilloo qquuee éé ccoommuumm ddeevvee sseerr ttaammbbéémm rreeaalliizzaaddoo eemm ccoommuumm.. TTããoo ppoouuccoo nneennhhuumm cciiddaaddããoo ddeevvee jjuullggaarr--ssee úúttiill ppoorr ssii pprróópprriioo,, mmaass ssiimm eemm ffuunnççããoo ddaa cciiddaaddee,, vviissttoo qquuee ccaaddaa uumm éé uummaa ppaarrttee ddeellaa,, ee oo ccuuiiddaaddoo ddee ccaaddaa ppaarrttee ddeevvee,, ppoorr nnaattuurreezzaa,, rreefflleeccttiirr--ssee nnaa pprreeooccuuppaaççããoo ppeelloo ttooddoo””.. AA eedduuccaaççããoo ppúúbblliiccaa ee uunniivveerrssaall ddáá aatteennççããoo àà rreellaaççããoo eennttrree aass ppaarrtteess ee oo ttooddoo.. SSoobbrree oo ttooddoo ee aa ppaarrttee nnoo DDPP,, ccff.. OOLLIIVVIIEERRII,, 11998822.. 110033 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 4444:: ““NNaattuurraallmmeennttee ll’’aattttiivviittàà ssqquuiissiittaammeennttee ssppiirriittuuaallee ddeell ssaacceerrddoottee ssaarràà ffeeccoonnddaa aanncchhee ppeerr llaa vviittaa tteerrrreennaa,, ppeerrcchhéé iinnccuullccaannddoo eeggllii vveerriittàà ee ddiisscciipplliinnaannddoo aappppeettiittii ccoonnttrraarrii aalllloo ssppiirriittoo,, ssoossppiinnggee aa sseennttiirree,, ppeennssaarree eedd aaggiirree ddeeccoorroossaammeennttee qquueeii cciittttaaddiinnii,, cchhee ppeerr nnaattuurraa ddooppoo iill ppeeccccaattoo oorriiggiinnaarriioo ssaarreebbbbeerroo ppoorrttaattii aadd ooggnnii ssffrreennaatteezzzzaa””..

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prescrições legais da comunidade política. A lei divina não transmite apenas valores da

outra vida, a eterna104. Ela se coloca também na posição de “fonte e regra da moralidade”105.

Como regra neste mundo, não assume um caráter coercivo. Para o paduano, Cristo, o

legislador da Nova Lei, declarou que os preceitos da vida presente, que dispõem sobre

potestas coactiva,“(...) fossem ou deveriam ser determinados pelas leis humanas, e

prescreveu a cada homem observá-los e obedecer aos príncipes que governam segundo tais

leis, na medida em que não se oponham à lei de salvação eterna”106.

Foi-se o tempo em que a lei divina se confundia com a humana. A Lei Evangélica

superou a Antiga Lei. No Velho Testamento havia determinadas regras coercivas,

semelhantes “(...) à lei humana, ou ao menos a uma parte da mesma”107, dadas por Deus a

Moisés para resolver as questões de litígio. Moisés tornou-se o primeiro príncipe dos

judeus, o qual obrigou os seus súditos a observar os preceitos e os advertiu que quem

violasse um deles seria punido. No entanto, aquelas normas religiosas identificadas com

algumas leis civis não podem ser consideradas leis divinas, nem ser razão para os

sacerdotes assumirem para si uma jurisdição coerciva. Moisés não foi um sacerdote, ao

contrário de Cristo que proclamou o Novo Testamento108.

De acordo com o Novo Testamento, os sucessores de Cristo possuem um ofício

inferior ao do governo civil109. Essa conduta do novo ministério sacerdotal, segundo

Marsílio, tinha sido também apontada por Aristóteles, em sua Política: os sacerdotes, assim

como os coregas e os arautos, são pessoas que não devem ser escolhidas como governantes

da comunidade política, pois, no caso do primeiro,“o sacerdócio está mais acima dos

110044 VVaallee oobbsseerrvvaarr aa ddeeffiinniiççããoo ddee lleeii ddiivviinnaa eemm DDMM,, mmaaiiss ccllaarraa qquuee eemm DDPP:: eellaa éé uumm ““pprreecceeiittoo iimmeeddiiaattoo ddee DDeeuuss””;; aa ssuuaa ccaauussaa eeffiicciieennttee iimmeeddiiaattaa éé CCrriissttoo,, oo pprróópprriioo DDeeuuss;; eellaa nnããoo ssuurrggiiuu ppoorr oobbrraa ee ddeecciissããoo ddooss AAppóóssttoollooss ee EEvvaannggeelliissttaass,, eesstteess ssããoo aappeennaass iinnssttrruummeennttooss ddaa VVeerrddaaddee;; eellaa ““ccoonnttéémm uumm pprreecceeiittoo ccooaattiivvoo aa sseerr iinnfflliiggiiddoo ààqquueelleess qquuee aa ttrraannssggrriiddeemm nneessttee mmuunnddoo,, ssoobb aa ffoorrmmaa ddee uummaa ppeennaa oouu ccaassttiiggoo aa sseerr aapplliiccaaddoo nnaa oouuttrraa vviiddaa,, nnããoo nneessttaa”” ((DDMM,, 11//22,, pp.. 3355)).. 110055 ““ffoonnttee ee rreeggoollaa ddeellllaa mmoorraalliittàà uummaannaa””110055 ((DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 8800)).. 110066 DDPP,, IIII,, 99//99,, pp.. 331133.. 110077 DDPP,, IIII,, 99//99,, pp..331133.. 110088 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 8833:: ““SSii ssaarràà nnoottaattoo ccoommee MMaarrssiilliioo rriidduuccaa llaa lleeggggee ddiivviinnaa iinn ddeeffiinniittiivvaa aallllaa ssoollaa lleeggee eevvaannggeelliiccaa.. LLaa lleeggggee mmoossaaiiccaa –– iinntteennddeennddoo ggeenneerriiccaammeennttee ppeerr eessssaa iill ccoommpplleessssoo ddeeii pprreecceettttii cchhee ssii ttrraammaannddaannoo nneell VVeecccchhiioo TTeessttaammeennttoo –– aattttiirraa ppooccoo llaa ssuuaa aatttteennzziioonnee ee iill ssuuoo ccoonnsseennssoo.. TTaalloorraa nnee ppaarrllaa ccoommee ssee ssii rriidduucceessssee ttuuttttaa aa pprreessccrriizziioonnii rriittuuaallii,, oorrmmaaii oobbssoolleettee ccoomm llaa pprrooccllaammaazziioonnee ddeell NNuuoovvoo TTeessttaammeennttoo;; aallccuunnee ssuuee pprreessccrriizziioonnii aannzzii vveennggoonnoo eesspprreessssaammeennttee pprrooiibbiittee ddaallllaa nnuuoovvaa ffeeddee;; rreessttaannoo iinn vviiggoorree ssoolloo qquueellllee rreellaattiivvee aallllee ooffffeerrttee,, mmaa iinn qquuaannttoo nnoorrmmee rreelliiggiioossee vvaallggoonnoo ssoolloo iinn rriiffeerriimmeennttoo aallll””aallttrraa vviittaa””.. 110099 CCff.. DDPP,, IIII,, 99//88,, pppp.. 331111--331122.. CCff.. ttaammbbéémm MMtt 1199,, 2288,, oo qquuaall ssee eennccoonnttrraa eemm DDPP,, IIII,, 99//77,, pppp.. 331111..

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principados políticos”110. O que se encontra, para o paduano, “mais acima” é precisamente o

mundo escatológico anunciado por Cristo, no qual a alma conquistou a sua salvação.

Diferentemente deste mundo em que os cidadãos conquistam a vida suficiente. Neste

último caso, ocorre toda sorte de disputas entre os homens. Compete ao governo civil

cuidar desses assuntos, referentes ao viver suficiente, estabelecendo regras coercivas para

assegurar a ordem social.

Os “educadores” da Lei Evangélica não atuam como Moisés na Antiga Lei. Eles são

bons súditos do governo civil. Uma das coisas que eles ensinam é a caducidade de muitos

preceitos da Lei de Moisés, como os que tratam das cerimônias e dos ritos: a sua

observância, “aparente ou convictamente”111, atrai sobre si o suplício eterno. Ensina, porém,

que há validade em certos preceitos da lei mosaica que se identificam com as leis humanas

e, por isso, os fiéis devem observá-los, caso não queiram ser castigados no outro mundo. “É

por esse motivo que o transgressor da lei humana quase sempre peca contra a lei divina

(...)”112. Como se Cristo afirmasse aos membros de sua comunidade: “Uma condição

necessária para você ter seu lugar nos céus é ser um bom cidadão, isto é, seguir fielmente as

leis da civitas”. 111100 AAppuudd DDPP,, IIII,, 99//88,, pp.. 331122.. CCff.. AARRIISSTTÓÓTTEELLEESS.. PPoollttiiccaa IIVV,, 1155,, 11229999aa 1133--2233:: ““OOrraa,, nneemm sseeqquueerr éé ffáácciill ddeeffiinniirr aa qquuee ssee ddeevvee ddaarr oo nnoommee ddee mmaaggiissttrraattuurraass.. CCoomm eeffeeiittoo,, ssee éé vveerrddaaddee qquuee aa ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa nneecceessssiittaa ddee uummaa ggrraannddee vvaarriieeddaaddee ddee ggeennttee hhaabbiilliittaaddaa,, iissssoo nnããoo oobbrriiggaa aa pprreessuummiirr qquuee ssããoo mmaaggiissttrraaddooss ttooddooss ooss eelleeiittooss oouu ssoorrtteeaaddooss ppaarraa ooccuuppaarr ooss ccaarrggooss ppúúbblliiccooss,, ccoommoo,, ppoorr eexxeemmpplloo,, ssuucceeddee llooggoo àà ppaarrttiiddaa ccoomm ooss ssaacceerrddootteess:: éé oouuttrroo oo ttiippoo ddee ffuunnççããoo qquuee ooss ddiissttiinngguuee ddaass mmaaggiissttrraattuurraass ppoollííttiiccaass.. OO eexxeemmpplloo éé eexxtteessíívveell aaooss cchheeffeess ddee ccoorroo ee eemmiissssáárriiooss.. TTaammbbéémm ooss eemmbbaaiixxaaddoorreess aacceeddeemm aaoo ccaarrggoo ppoorr eelleeiiççããoo.. OOrraa,, nnoo qquuee ssee rreeffeerree aaooss ttiittuullaarreess ddee ccaarrggooss ppoollííttiiccooss,, eennqquuaannttoo uunnss ssããoo eelleeiittooss ddee eennttrree ttooddooss ooss cciiddaaddããooss ppaarraa ddeesseemmppeennhhaarr uummaa ttaarreeffaa ppúúbblliiccaa ((ccoommoo ppoorr eexxeemmpplloo ooss cchheeffeess mmiilliittaarreess)),, oouuttrrooss ssããoo eelleeiittooss ddee eennttrree uummaa ppaarrttee ddooss cciiddaaddããooss ((ccoommoo ppoorr eexxeemmpplloo ooss iinnssppeeccttoorreess ddaass mmuullhheerreess ee ooss pprreecceeppttoorreess ddee iinnffâânncciiaa)).. OOuuttrraass ffuunnççõõeess ssããoo ppuurraammeennttee aaddmmiinniissttrraattiivvaass ((ccoomm eeffeeiittoo,, mmuuiittaass vveezzeess aaccoonntteeccee tteerr qquuee ssee eelleeggeerr iinnssppeeccttoorreess ddaass mmeeddiiççõõeess ddee ttrriiggoo))””.. SSee oo ffaattoo ddee hhaavveerr eelleeiiççããoo ee uumm ccaarráátteerr ppúúbblliiccoo eemm mmuuiittooss ooffíícciiooss ffoosssseemm aa ccoonnddiiççããoo ssuuffiicciieennttee ppaarraa aa ddiirreeççããoo ddaa ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa,, aa qquuaannttiiddaaddee ddee ssoobbeerraannoo ((rruulleerr)) sseerriiaa ddiirreettaammeennttee pprrooppoorrcciioonnaall aaoo nnúúmmeerroo ddeesssseess ooffíícciiooss.. AA ppaassssaaggeemm ddaa PPoollííttiiccaa,, àà qquuaall MMaarrssíílliioo ssee rreeffeerree,, mmoossttrraa qquuee iissssoo nnããoo éé vveerrddaaddee.. 111111 DDPP,, IIII,, 99//1100,, pp.. 331144.. 111122 DDPP,, IIII,, 99//1111,, pp.. 331155.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 115555--115566:: ““((......)) hhaayy pprreecceeppttooss ccoommuunneess aa aammbbaass lleeyyeess,, ppoorrqquuee llaa lleeyy ddiivviinnaa iinncclluuyyee ttaammbbiiéénn mmaannddaattooss ssoobbrree aaccttooss rreeffeerriiddooss aa rreellaacciioonneess iinntteerrppeerrssoonnaalleess,, ccoommoo llaa pprroohhiibbiicciióónn ddee mmaattaarr oo rroobbaarr.. EEnn eessee ccaassoo,, uunn ssoolloo aaccttoo ppuueeddee vvuullnneerraarr aa llaa vveezz llaass ddooss lleeyyeess yy ppuueeddee sseerr jjuuzzggaaddoo eenn eessttaa vviiddaa ppoorr llooss ttrriibbuunnaalleess tteemmppoorraalleess yy ppoorr DDiiooss eenn eell jjuuiicciioo ffiinnaall;; yy sseerr ccaassttiiggaaddoo ccoonn ppeennaass ddiissttiinnttaass eenn ccaaddaa vviiddaa,, ddee ssuueerrttee qquuee DDiiooss ccoonnddeennee aa ssuu aauuttoorr ppaarraa llaa eetteerrnniiddaadd,, aappaarrttee ddeell ccaassttiiggoo qquuee ssee llee hhaayyaa iinnfflliiggiiddoo eenn llaa ttiieerrrraa.. MMaarrssiilliioo ssoossttiieennee,, aaddeemmááss,, qquuee DDiiooss ccaassttiiggaarráá eenn eell jjuuiicciioo ffiinnaall llaass iinnffrraacccciioonneess ddee llaa lleeyy hhuummaannaa,, ppoorrqquuee llaa lleeyy ddiivviinnaa oorrddeennaa oobbeeddeecceerr llaa lleeyy hhuummaannaa bbaajjoo ppeennaa eenn eell oottrroo mmuunnddoo,, aauunnqquuee lloo oorrddeennaaddoo ppoorr eellllaa nnoo lloo eessttuuvviieerraa ppoorr llaa lleeyy ddiivviinnaa””.. AAoo ssee rreeffeerriirr aaooss pprreecceeiittooss aapprroovvaaddooss ppeelloo CCoonnccíílliioo GGeerraall oouu ppeellaa IIggrreejjaa UUnniivveerrssaall,, oo ppaadduuaannoo eemm DDMM ((55//2200,, pp.. 5577)) aaffiirrmmaa:: ““((......)) ooss ccrriissttããooss ttêêmm aa oobbrriiggaaççããoo ddee oobbsseerrvvaarr ttaaiiss pprreecceeiittooss ee eessttaattuuttooss hhuummaannooss dduurraannttee ttooddoo oo tteemmppoo ddee ssuuaa vviiggêênncciiaa,, ccoonnssiiddeerraannddoo--ssee qquuee ooss mmeessmmooss ssããoo lleeiiss hhuummaannaass eessttaabbeelleecciiddaass ssiimmpplleessmmeennttee ppaarraa aa uuttiilliiddaaddee ccoommuumm ddaass ccrriiaattuurraass ppaarraa ddeetteerrmmiinnaaddaa ééppooccaa,, ee nneennhhuumm ccrriissttããoo,, ssoobb ppeennaa ddee vviirr aa ppeeccaarr mmoorrttaallmmeennttee,, ppooddeerráá aaggiirr oouu iirr ccoonnttrraa aass mmeessmmaass.. ÉÉ ppoorr eessssee mmoottiivvoo qquuee aaffiirrmmaammooss qquuee ttaaiiss pprreecceeiittooss ddeevveemm sseerr oobbsseerrvvaaddooss ccoommoo nneecceessssáárriiooss àà ssaallvvaaççããoo eetteerrnnaa””..

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Quando o sacerdote diz “Faze o bem e evita o mal” significa, neste caso: “segue os

preceitos válidos da Antiga Lei e abandona os demais, os que não têm valor para a Nova

Lei ou para o governo civil”. Se esses preceitos válidos são algumas leis civis, então estas

não são hostis à “lei de salvação eterna”. A sua observância apenas não garante, porém, que

o fiel tenha garantido definitivamente o seu lugar no céu. Esse bom cidadão, ensina o

verdadeiro sacerdote, pode, porém, cometer atos que se opõem à lei divina, sem que se

torne um transgressor das leis humanas. São os atos imanentes que ficam despercebidos aos

olhos dos homens. Eles são conhecidos apenas pelo seu agente e por Deus. Não atrapalham

a boa disposição da civitas, embora distanciem o fiel de Deus. Então, a Lei Evangélica é

imperfeita? Não, pois é a Verdade. Ela é neste mundo uma simples orientação do que fazer

ou evitar para conquistar a vida eterna. De fato, afirma Marsílio, “se por causa disso fosse

considerada imperfeita, poderíamos dizer que ela igualmente o é porque não nos oferece

informações a respeito das ciências que tratam ou das doenças do corpo, ou medem as

magnitudes ou ensinam a navegar no oceano”113.

Se a Lei da Graça diz alguma coisa sobre a vida presente é em relação à futura, à

riqueza de seus dons espirituais, às coisas celestes114. Ela não diz, porém, como a

comunidade deve regular aqueles atos imanentes ou as questões de litígio ou os conflitos

envolvendo a partilha de bens, nem proíbe os seus membros de tratar desses assuntos e de

outros referentes à vida suficiente115. Com sarcasmo, o paduano demonstra que, se ela

tratasse dessas questões, também teria que ser capaz de ensinar a medicina, a matemática, a

ciência da navegação e as demais ciências.

Ela aponta para “as coisas de cima” ou “as coisas interiores”. Aqueles que foram

encarregados de ensiná-la, os sacerdotes, devem deixar o saber das “coisas exteriores” ou

das “coisas inferiores” para os “menos considerados da Igreja”. Esta expressão, segundo

Marsílio, nunca foi atribuída aos mestres da Palavra116. O fato de estes serem os mais

estimados por conhecerem as “coisas elevadas” não implica que sejam os melhores, por

exemplo, para governar. Veremos que, para o paduano, a comunidade política ficou

111133 DDPP,, IIII,, 99//1133,, pppp.. 331166--331177.. 111144 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 115555:: ““llooss aaccttooss hhuummaannooss pprreessccrriittooss ppoorr llaa lleeyy ddiivviinnaa ((mmaannddaammiieennttooss yy pprroohhiibbiicciioonneess,, cceelleebbrraacciióónn ddee llooss ssaaccrraammeennttooss yy pprriinncciippiiooss mmoorraalleess qquuee ddeebbeenn gguuaarrddaarr llooss ffiieelleess ccrriissttiiaannooss)) ssoonn ddee íínnddoollee eessppiirriittuuaall””.. 111155 CCff.. DDPP,, IIII,, 99//1122,, pppp.. 331155--331166.. 111166 CCff.. DDPP,, IIII,, 99//1133,, pp..331177..

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prejudicada nas ocasiões em que tentaram exercer essa função. Se a lei divina trata de

questões espirituais, isso não é razão para atribuir-lhe um valor coercivo nesta vida117. Ao

contrário, o seu valor é “pedagógico” no mundo presente: ela educa o fiel a trilhar o

caminho do bem; não o pune nesta vida, se ele se desviar para o mal, embora,

paradoxalmente, o ameace de receber punição no juízo final, onde ela tem valor coercivo.

O papel do mestre da Lei Evangélica – também denominado de pastor, presbítero ou bispo

– é o de ser o “pedagogo” da Verdade, o de estudar e aplicar a arte de educar à doctrina

christiana. Ele se ocupa na civitas em “(...) ensinar, repreender e convencer o pecador de

sua culpa, exortá-lo para que se arrependa e incutir-lhe na mente o temor face ao

julgamento ou sentença acerca de sua glória futura ou de sua condenação eterna, mas

absolutamente não deverá constrangê-lo a fazer isso (...)”111188.

Como esse “pedagogo” educa, sem imposição, um ensinamento em que há

infundido o temor do juízo final? Vamos supor que um fiel se torne um herege. O pastor

não o obriga a abandonar a heresia, impondo penitência ou exigindo dele a doação de seus

bens materiais. Ao contrário, o mestre da Palavra se esforça em convencê-lo, através da sua

sabedoria e de seu testemunho, acerca das implicações futuras do seu comportamento

herético. Recorre aos ensinamentos dos santos e de outros estudiosos da Escritura para lhe

mostrar que Cristo, na outra vida, pode lhe sentenciar uma pena eterna, caso persista na

heresia. Depois de ouvir o conselho ou a repreensão, ou ambos, a pessoa que professou a

heresia decide se continua ou não no mesmo caminho. A sua decisão, porém, é livre em

relação ao sacerdote, mas não o é em relação à Lei Evangélica. O pastor pode ficar com a

consciência tranqüila, quando se esforçou em convencê-lo sem constrangimento. Por outro

lado, o crente pode ficar com a consciência “pesada” depois de ter entendido e recusado o

seu ensinamento, uma vez que a lei divina o ameaça de punição no futuro.

111177 CCoommoo jjáá ssee oobbsseerrvvoouu eemm MMaarrssíílliioo,, ““llaa lleeggggee eevvaannggeelliiccaa,, nnaass ppaallaavvrraass ddee PPiinncciinn,, èè qquuiinnddii uunn iinnsseeggnnaammeennttoo nneellllaa vviittaa mmoonnddaannaa,, èè lleeggggee iinn sseennssoo pprroopprriioo nneellll’’aall ddii llàà”” ((PPIINNCCIINN,, 11996677,, pp.. 9944)).. 111188 DDPP,, IIII,, 1100//22,, pp.. 332200..

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3. O julgar do sacerdote

Vamos supor que um determinado fiel não violou apenas a lei divina, ao falsificar

moedas, mas também a civil. O príncipe convoca os especialistas em cunhagem de moeda

para analisarem o dinheiro falso. Depois de ter percorrido as etapas da investigação

judicial, julga o réu culpado. Aplica a lei e o priva de seus bens. O espólio fica em poder do

príncipe. Ele não é repartido entre os especialistas em assuntos monetários ou em questões

espirituais, porque a sua apropriação pertence por direito a quem tem o dever de fazer

justiça na terra, ou seja, ao governante civil (cf. IV.1).

O paduano diz ser um sonho fantasioso do sacerdote pretender ocupar um cargo que

não lhe pertence de direito. Tão fantasioso quanto o desejo de um especialista em

cunhagem de moeda possuir os bens espoliados do herege falsário119, mas é realista se ele se

considera um médico das almas120. Esta expressão aponta para um dos aspectos importantes

de sua atividade: ele mostra a causa das doenças da alma – o pecado; e dá o remédio para a

sua cura – Cristo. Revela que a alma “doente”, ao não admitir a enfermidade, ou seja, o fiel

pecador, ao não reconhecer a culpa, tem grandes chances de receber uma punição na outra

vida e de, neste mundo, ser excluída da comunidade dos fiéis.

No entanto, se a pobre alma se penitencia, isto é, toma consciência de seu pecado e,

em seguida, caso seja possível, confessa-o abertamente ao sacerdote, então acumula

benefícios, tais como: a sua reaproximação com Deus e a sua reintegração à comunidade

dos fiéis. Com o sacramento da penitência a alma recebe o perdão de seus pecados, pesados

ou leves, e nela se restabelece a graça divina, sem a qual “(...) as ações humanas não seriam

meritórias para a vida eterna”121. O médico das almas diz aos seus pacientes como

administrar o remédio, através do sacramento do perdão: só ocorre a “cura”, se houver, por

parte da alma,

111199 CCff.. DDPP,, IIII,, 1100//1133,, pp.. 332299.. 112200 AA iiddééiiaa ddoo ssaacceerrddoottee ccoommoo mmééddiiccoo ddaass aallmmaass rreeffeerree--ssee eexxcclluussiivvaammeennttee aaoo ssaaccrraammeennttoo ddaa ppeenniittêênncciiaa.. NNoo DDPP,, oo sseeuu aauuttoorr ccoommppoorrttaa--ssee rreesseerrvvaaddaammeennttee eemm rreellaaççããoo aaooss oouuttrrooss ssaaccrraammeennttooss.. NNããoo ffaazz uumm ccoommeennttáárriioo ssoobbrree oo mmaattrriimmôônniioo,, aa ccoonnffiirrmmaaççããoo ee aa eexxttrreemmaa--uunnççããoo;; ppoouuccoo ddiizz ssoobbrree aa oorrddeennaaççããoo;; nnããoo ttrraattaa aa eeuuccaarriissttiiaa ccoommoo oo mmiissttéérriioo ffuunnddaammeennttaall ddooss ddeemmaaiiss ssaaccrraammeennttooss.. SSoobbrree oo bbaattiissmmoo,, nnoottaa LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 220044:: ““((......)) eesstt iinnddiissppeennssaabbllee ppoouurr llee ssaalluutt,, eett cceellaa jjuussttiiffiiee qquuee llee llééggiissllaatteeuurr oouu llee pprriinnccee hhuummaaiinn ccoonnttrraaiiggnneenntt llee pprrêêttrree qquuii ss’’yy rreeffuusseerraaiitt,, àà aaddmmiinniissttrreerr ccee ssaaccrreemmeenntt eesssseennttiieell””.. 112211 DDPP,, IIII,, 66//22,, pp.. 227733..

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“(...) em primeiro lugar, contrição interior ou arrependimento do ato ou delito cometido, em segundo lugar, o propósito ou o ato de confessá-lo, revelando-o através dum sinal ou verbalmente a um sacerdote, desde que seja possível encontrá-lo [grifo nosso]. Caso isto não aconteça, basta que o pecador assim contrito e penitente tenha o firme propósito de confessar a sua falta a um sacerdote na primeira ocasião em que surgir a oportunidade de o fazer”122.

A primeira condição é um ato interior, individual. O pecador pode simplesmente

fazer uma oração na qual pede a Deus perdão e se compromete a não mais cometer a falta

arrependida. Ele não precisa se dirigir inicialmente ao sacerdote para confessar o seu

pecado. A confissão é postergada para a ocasião em que a alma penitente puder encontrar o

seu “médico”. Para o fiel receber o sacramento do perdão, exige-se dele apenas o

arrependimento e o propósito de confessá-lo123.

Vale notar que o sacerdote não perdoa os pecados. Apenas Deus tem esse poder e

ele o exerce antes da intervenção do ministério sacerdotal. Para Marsílio, quem melhor

mostra essa verdade é Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças. Este, segundo ele, prova a

seguinte verdade: “(...) só Deus por si próprio perdoa os pecados”124, com a condição de

que, para o Senhor fazer isso, o fiel arrependido tenha a firme intenção de comunicar

pessoalmente ao sacerdote o seu pecado em ocasião adequada. De fato, o presbítero tem um

poder, o das chaves, que não é o de cura. O seu significado, Marsílio o dá nas seguintes

palavras de Pedro Lombardo: o poder de ligar e desligar consiste em “(...) manifestar aos

homens quem está ligado ou desligado”125.

O “estar ligado” significa basicamente a (re)aproximação do crente com Deus;

enquanto o “estar desligado” significa a separação do pecador da “unidade da fé”. Esta

expressão é cara a Marsílio, que a toma emprestada do Mestre das Sentenças126 para dizer

que qualquer membro da comunidade de fé pode ser excluído do reino dos céus. O

112222 DDPP,, IIII,, 66//55,, pp.. 227755.. DDPPaacciiss,, IIII,, 66//55,, pp..116622:: ““((……)) pprriimmuumm iinntteerriioorr ppeeccccaattoorriiss ccoonnttrriittiioo sseeuu ttrriissttiittiiaa ddee ccoommmmiissssoo ssiivvee ddeelliiccttoo.. SSeeccuunnddoo vveerroo ((......)) pprrooppoossiittuumm eett aaccttuuss ccoonnffiitteennddii ddeelliiccttuumm,, iippssuumm ppeerr sseerrmmoonneemm eexxpprriimmeennddoo sseeuu ssiiggnniiffiiccaannddoo ssaacceerrddoottii,, ssii ssaacceerrddoottiiss ffaaccuullttaass aaffffuueerriitt;; qquuoodd ssii nnoonn aaddeesssseett,, iinn ssiicc ppooeenniitteennttee sseeuu ccoonnttrriittoo ssuuffffiicciitt ffiirrmmuumm pprrooppoossiittuumm ccoonnffiitteennddii ddeelliiccttuumm ssaacceerrddoottii ccuumm iippssiiuuss pprriimmuumm ffaaccuullttaass aaffffuueerriitt””.. UUttiilliizzaammooss ““DDPPaacciiss”” ppaarraa ssee rreeffeerriirr aaoo tteexxttoo eemm llaattiimm ddoo DDPP,, ddaa eeddiiççããoo ddee PPrreevviittéé--OOrrttoonn.. 112233 DDMM,, 55//88,, pppp.. 4499--5500:: ““((......)) DDee aaccoorrddoo ccoomm aa EEssccrriittuurraa,, nnããoo ssee ppooddee ccoommpprroovvaarr aabbssoolluuttaammeennttee qquuee ssee ddeevveemm ccoonnffeessssaarr ooss ppeeccaaddooss aaooss ssaacceerrddootteess,, ppoorrqquuee ttaall aaççããoo éé nneecceessssáárriiaa àà ssaallvvaaççããoo eetteerrnnaa.. CCeerrttaammeennttee,, aa ccoonnffiissssããoo éé úúttiill ee pprroovveeiittoossaa eennqquuaannttoo uumm ccoonnsseellhhoo ddaa EEssccrriittuurraa SSaaggrraaddaa,, nnããoo ccoommoo uumm pprreecceeiittoo””.. 112244 AAppuudd DDPP,, IIII,, 66//66,, pp.. 227777.. 112255 AAppuudd DDPP,, IIII,, 66//77,, pp.. 227788.. 112266 CCff.. DDPP,, IIII,, 66//33,, pp.. 227744..

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significado de “unidade da fé” é diferente de “unidade com Pedro ou com o Bispo de

Roma”. Segundo o paduano, esta última expressão, ao contrário da primeira, não tem

fundamento nos textos canônicos. Ela pode significar erroneamente que Pedro e seus

sucessores são os responsáveis pela unidade da comunidade dos fiéis, a exemplo do

príncipe127.

Marsílio refere-se ao comentário de Santo Agostinho sobre Jo 18, 34 para

comprovar que Cristo, se carrega algum título de rei, então possui um sentido inteiramente

oposto daquele que governa a comunidade política: ser rei é guiar os fiéis para a vida eterna

a partir de seu ensinamento e testemunho. Este sentido de “rei” é figurado. Ele nos dá,

segundo o paduano, uma idéia oposta à do governo civil. Ao contrário deste, ele se volta

para a vida futura, ao reino dos céus. Há várias comparações que Cristo faz com esse reino

espiritual e, afirma o paduano, “(...) raramente nos deparamos com alguma passagem em

que Ele [Cristo] alude ao reino deste mundo, senão para nos ensinar a desprezá-lo”128.

De fato, o reino dos céus congrega os justos, os crentes que praticaram o bem e

evitaram o mal. A escolha desses fiéis merecedores obedece a um julgamento que ocorre

fora do âmbito do governo civil. Esse julgamento é escatológico, onde se faz necessário um

juiz, o qual não é o Papa ou algum outro sacerdote. É Cristo quem castiga ou recompensa

os fiéis na vida futura. Nenhum crente tem a certeza na vida presente de que será um

agraciado. Um fiel pode ser considerado justo diante de Deus e injusto perante o governo

civil, e vice-versa.

Deus pode permitir ao crente passar pela experiência do sofrimento. Vamos supor

que a provação consista em receber uma condenação injusta do príncipe. Por causa disso,

112277 AAnntteess qquuee ooccoorrrraa eessssaa sseeppaarraaççããoo ddaa ““uunniiddaaddee ddaa fféé”” oouu ccaassoo oo ppeeccaaddoorr ppeerrssiissttaa eemm sseeuu ppeeccaaddoo,, oo ssaacceerrddoottee ppooddee eennttrreeggáá--lloo aa SSaattaannááss.. EEssssaa aattiittuuddee,, ddiiffeerreenntteemmeennttee ddaa eexxccoommuunnhhããoo,, eessppiirriittuuaall oouu cciivviill,, ““((......)) ccoonnssiissttee,, sseegguunnddoo MMaarrssíílliioo,, eemm ssuupplliiccaarr ee oorraarr aa DDeeuuss,, ppoorr iinntteerrmmééddiioo ddooss ssaacceerrddootteess ee ddoo ccoonnjjuunnttoo ddooss ffiiééiiss,, aa ffiimm ddee qquuee oo ppeeccaaddoorr qquuee sseemmeeoouu mmuuiittooss ddeessmmeerreecciimmeennttooss sseejjaa,, ccoomm aa aauuttoorriizzaaççããoo ddoo ppooddeerr ddiivviinnoo,, aattoorrmmeennttaaddoo eemm ssuuaa ccaarrnnee,, nnããoo eemm sseeuu eessppíírriittoo,, ppoorr SSaattaannááss”” ((DDMM,, 1100//22,, pp.. 7711)).. OO ttoorrmmeennttoo ccaarrnnaall ddoo ppeeccaaddoorr ssiiggnniiffiiccaa aa pprriivvaaççããoo,, ppoorr vvoonnttaaddee ddiivviinnaa,, ddee bbeennss,, ffiillhhooss oouu oouuttrraa ccooiissaa mmaatteerriiaall qquuee llhhee pprroovvooqquuee ssooffrriimmeennttoo,, ccoomm oo pprrooppóóssiittoo ddee eellee ppeerrcceebbeerr oo sseeuu ppeeccaaddoo,, aa eexxeemmpplloo ddee JJóó ((ccff.. DDMM,, 1100//22,, pp.. 7722)).. PPooddeemmooss ssuuppoorr aa sseegguuiinnttee oorraaççããoo,, aa ttííttuulloo ddee iilluussttrraaççããoo:: ““SSeennhhoorr,, nnoossssoo DDeeuuss,, nnóóss ttee ppeeddiimmooss,, ssee ffoorr ddaa ssuuaa vvoonnttaaddee,, qquuee oo ffiieell ppeerrcceebbaa ccoomm aa ssuuaa ddooeennççaa ‘‘ooss mmuuiittooss ddeessmmeerreecciimmeennttooss qquuee sseemmeeoouu’’ ee ssee aarrrreeppeennddaa””.. PPaarraa oo ppaadduuaannoo,, ooss ssuuppllíícciiooss mmaatteerriiaaiiss ssããoo mmaaiiss eeffiiccaazzeess ppaarraa aa ccoonnvveerrssããoo ddoo qquuee ooss eessppiirriittuuaaiiss,, ee aa eexxccoommuunnhhããoo éé uumm rreeccuurrssoo qquuee oo pprríínncciippee ddeevvee ssaabbeerr uussaarr ccoomm pprruuddêênncciiaa.. VVaallee nnoottaarr qquuee aa ccoonnvveerrssããoo iimmpplliiccaa rreeiinntteeggrraaççããoo.. UUmm ppeeccaaddoorr pprriivvaaddoo,, ppoorr eexxeemmpplloo,, ddee bbeennss mmaatteerriiaaiiss éé ssiinnaall ddee qquuee nnããoo ssee ccoonnvveerrtteeuu.. OOss ccrreenntteess oouu cciiddaaddããooss nnããoo oo oollhhaamm ccoommoo uumm bboomm ccrriissttããoo.. LLooggoo,, ssee eellee pprreetteennddee ssee rreeiinntteeggrraarr àà cciivviittaass cchhrriissttiiaannaa,, ddeevvee rreeccoonnhheecceerr qquuee ppeeccoouu.. MMaass,, ssee ddeeppooiiss ddiissssoo,, eellee ccoonnttiinnuuaarr ccoomm aa pprriivvaaççããoo?? DDeemmoonnssttrraa qquuee oo sseeuu rreeccoonnhheecciimmeennttoo nnããoo vveeiioo ddoo ccoorraaççããoo,, oouu sseejjaa,, nnããoo ffooii ssiinncceerroo?? 112288 DDPP,, IIII,, 44//66,, pppp.. 223366--223377..

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ele não pode considerar que tem garantida a sua entrada no reino dos céus. Nem pode

esperar que o sacerdote se dirija ao príncipe e o ameace da seguinte maneira: “Se você não

agir assim, não participará do reino dos céus”.

Nesta vida, só quem pode julgar coercitivamente o próximo é o governante civil, de

acordo com as leis humanas. Para Marsílio, Cristo não pensou em estabelecer um novo

governo dirigido por ele e seus ministros, ao descer da montanha com a intenção de educar

os seus discípulos no caminho oposto aos prazeres deste mundo. A esse respeito o paduano

menciona a seguinte declaração de Santo Agostinho: “Imaginar que Cristo tinha vindo a

este mundo para reinar desde aquele momento como a multidão pensava, era como que

arrebatá-lo, isto é, levá-lo indevidamente à força, e ter uma opinião errônea a seu

respeito”129. Para Marsílio, isso é muito evidente em Lc 12, 13-14: esta passagem dispensa

as glosas dos santos. Cristo pergunta “quem me estabeleceu juiz ou árbitro da vossa

partilha?”130. Mas se a sua evidência aparece turva para os olhos de alguns cristãos, então

que se recorra, observa o paduano, a Santo Ambrósio. O qual, ao comentar aquela

passagem do Evangelho, mostra o verdadeiro ofício de Cristo, voltado exclusivamente para

os bens espirituais do reino celeste.

Deus não deu ao sacerdote o governo civil. O que ele deu aos seus ministros, através

de seu Filho, foi o poder para ministrar os sacramentos necessários para a salvação eterna,

como do batismo e o da penitência. Este último sacramento nos chama a atenção, já que,

para Marsílio, a alma recebe por meio dele o perdão dos pecados, pesados ou leves, e se

restabelece a graça divina, sem a qual “as ações humanas não seriam meritórias para a vida

eterna”131. Sem o auxílio divino, o fiel é incapaz de realizar ações favoráveis à salvação de

sua alma. Quando o crente peca, o seu pecado impede que Deus derrame sobre ele a sua

graça. O perdão vem para quebrar essa barreira.

Após a ascensão de Cristo aos céus, os seus sucessores, os sacerdotes, foram

encarregados de ministrar esse sacramento, conhecido como poder das chaves. O poder de

libertar o pecador do pecado pertence apenas a Deus – o único ser que não erra em suas

sentenças. O sacerdote fica incumbido de sugerir ao pecador arrependido algumas

penitências com a intenção de juntá-lo aos “fiéis em comunhão”. No entanto, ao contrário

112299 DDPP,, IIII,, 44//66,, pp.. 223388.. 113300 LLcc 1122,, 1144.. CCff.. DDPP,, IIII,, 44//66,, pp.. 223388.. 113311 DDPP,, IIII,, 66//22,, pp.. 227733..

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do Senhor, ele pode tomar essas sentenças eclesiásticas motivado por sentimentos perversos

ou por um discernimento de valor questionável.

Ao invés de examinar as sentenças eclesiásticas atribuídas ao pecador para perdoar

os seus pecados, Deus o acompanha intimamente e o deixa livre para fazer o exame de

consciência. Para Marsílio, a relação de Deus com o pecador é direta, sem intermediários.

A promessa de Cristo – a de premiar os bons e castigar os maus – seria inútil se Deus

confiasse aos sacerdotes o poder da cura. O Sagrado Canon e o testemunho dos santos e

doutores, que interpretaram corretamente o texto canônico, mostram claramente que só

Deus tira a mancha do pecado na alma humana e a absolvição divina contrasta, não poucas

vezes, com as sentenças eclesiásticas condenatórias132.

Exemplo desse descompasso é quando, em certas ocasiões, o sacerdote que ocupa o

posto de Bispo de Roma, ao acreditar erroneamente que possui o poder da cura e preocupa-

se com “a unidade da fé”, dirige-se aos crentes para comunicar que o seu governante não é

um bom cristão e não se arrepende de seus erros. Segundo o paduano, ele faz isso para

desestabilizar a comunidade política. Mente, com o propósito de impor a sua vontade

pessoal, pois os fatos apontam ser a vítima uma pessoa correta que luta para impedir que

aquela autoridade religiosa interfira no governo civil.

Marsílio lamenta que haja crentes com a falsa convicção de que o Papa e o seu clero

têm, não só o poder de cura, mas também o de expulsar qualquer membro da comunidade

dos fiéis. Isso porque essas pessoas desconhecem a natureza da função sacerdotal de “ligar

e desligar” 133. “O ofício do sacerdote, afirma o paduano, é requerido no tocante ao penitente

(...) para que, por seu intermédio, se mostre perante a Igreja a quem Deus absolveu ou

reteve os pecados”134. Portanto, o médico da alma não expulsa o “doente” da convivência

dos fiéis. Como vimos acima, ele dá o seu diagnóstico e indica o remédio.

113322 CCff.. DDPP,, IIII,, 66,, pppp.. 228800--228811.. 113333 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 220055:: ““EEnn ffaaiitt,, cc’’eesstt llee ssaaccrreemmeenntt ddee ppéénniitteennccee qquuii [[MMaarrssíílliioo]] aa rreetteennuu ssuurrttoouutt ssoonn aatttteennttiioonn,, ppaarrccee qquuee cc’’eesstt lluuii qquuii ppeeuutt êêttrree llaa ssoouurrccee dd’’uunnee ffaauussssee jjuurriiddiiccttiioonn.. MMaarrssiillee ccoonnssiiddèèrree llee ppoouuvvooiirr ddeess ccllééss ccoommmmee llaa bbooîîttee àà PPaannddoorree,, ddoonntt ssoonntt ssoorrttiiss llaa pplluuppaarrtt ddeess aabbuuss qquu’’iill rreepprroocchhee àà ll’’EEgglliissee ddee ssoonn tteemmppss:: llaa pplleenniittuuddee ddee ppuuiissssaannccee,, ll’’aabbuussiiff uussaaggee ddee ll’’eexxccoommmmuunniioonn,, llaa ccoonnffuussiioonn dduu ppoouuvvooiirr ssaacceerrddoottaall aavveecc ll’’aauuttoorriittéé ccooaaccttiivvee ddeess pprriinncceess eett jjuuggeess ddee ccee ssiièèccllee,, ll’’eexxtteennssiioonn iinnccoonnssiiddéérrééee dduu ppoouuvvooiirr ppoonnttiiffiiccaall ssee rréésseerrvvaanntt llee jjuuggeemmeenntt ddee cceerrttaaiinneess ffaauutteess””.. 113344 DDPP,, IIII,, 66//77,, pp.. 227799..

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Vamos supor que o crente cometeu um ato herético reprovável perante a lei civil135.

Caso fique comprovado o seu delito e ele venha a merecer uma punição na vida presente, o

infrator é conduzido à justiça humana, na qual o juiz se encarrega de “(...) citar em juízo,

conduzir a instrução do processo, julgar o acusado, absolvê-lo ou condená-lo a ser desse

modo publicamente difamado e excluído da comunidade dos fiéis”136. A indicação desse

juiz não é da responsabilidade da corporação dos ministros eclesiásticos, o clero. Ela é da

própria totalidade dos fiéis, a civitas cristã, ou do governante ou do Concílio Geral. Como

funciona a escolha em uma dessas três instâncias, não importa saber no momento. O que

vale observar é que o clero não exerce esse papel.

É verdade que alguns sacerdotes são convocados, mas, como teólogos, apenas com

o propósito de auxiliar na atividade de investigação no que diz respeito à análise, baseada

na Lei Evangélica, das infrações que merecem a excomunhão e das implicações da

permanência do réu na civitas cristã. A atitude desses presbíteros é semelhante a do médico

que, ao ser chamado, detecta a doença – por exemplo, a lepra – e as suas conseqüências

para o indivíduo e a sociedade. Os ministros da Palavra são simples peritos da lei divina

que conhecem muito bem as suas implicações teológico-políticas, mas, por força de seu

ofício, não possuem a palavra final na investigação judicial contra o crente infrator. Como

diz Marsílio:

“(...) do mesmo modo como não compete a um médico em particular ou somente a uma corporação dos mesmos instalar um julgamento ou instituir um juiz com poder coercivo para expulsar os leprosos, mas sim a totalidade dos próprios cidadãos ou à sua parte preponderante fazer isso (...), assim também, na comunidade dos fiéis, não compete a nenhum padre ou à corporação dos mesmos, instalar um julgamento ou nomear um juiz com poder coercivo para expulsar tais pessoas da comunidade, por causa de uma doença da alma, como seria o caso de um crime notório (...)”137.

113355 TTOOSSCCAANNOO,, 11998811,, pp.. 113355:: ““MMaarrssiilliioo aacccceettttaa llaa ppuunniizziioonnee ddeellll’’eerreettiiccoo qquuaannddoo eessssoo pprroovvooccaa uunn ddaannnnoo ssoocciiaallee.. ((......)) IIll lleeggiissllaattoorree nnoonn ppuunniissccee ((......)) uunn iinnddiivviidduuoo ppeerrcchhéé ppeeccccaa ccoonnttrroo llaa lleeggggee ddiivviinnaa ssee iill ffaattttoo nnoonn èè ccoonntteemmppllaattoo ddaallllaa lleeggggee ppoossiittiivvaa””.. 113366 DDPP,, IIII,, 66//1122,, pp.. 228833.. 113377 DDPP,, IIII,, 66//1122,, pp..228844.. DDPPaacciiss,, IIII,, 66//1122,, pp.. 117700:: ““((……)) SSiiccuutt nnoonn aadd mmeeddiiccuumm qquueemmqquuaamm,, aauutt iippssoorruumm ttaannttuummmmooddoo ccoolllleeggiiuumm,, iiuuddiicciiuumm sseeuu iiuuddiicceemm,, ccuuiiuuss eesstt ccooaaccttiivvaa ppootteessttaass eexxppeelllleennddii lleepprroossooss,, ssttaattuueerree ppeerrttiinneett,, sseedd aadd cciivviiuumm ffiiddeelliiuumm uunniivveerrssiittaatteemm aauutt iippssoorruumm ppaarrtteemm vvaalleennttiioorreemm ((……)),, ssiicc qquuooqquuee pprroopptteerr aanniimmaaee mmoorrbbuumm,, uutt ccrriimmeenn nnoottoorriiuumm,, eexxppeelllleennddoorruumm aa ccoommmmuunnii ccoonnssoorrttiioo iiuuddiicciiuumm aauutt iiuuddiicceemm,, ccuuiiuuss ssiitt hhoorruumm ccooaaccttiivvaa ppootteessttaass,, aadd nnuulllluumm ssaacceerrddootteemm ssoolluumm aauutt iippssoorruumm ttaannttuummmmooddoo ccoolllleeggiiuumm ssttaattuueerree ppeerrttiinneett iinn ccoommmmuunniittaattee ffiiddeelliiuumm””..

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Após ouvir os teólogos e ter provas suficientes que incriminam o réu, o juiz

determina a sua excomunhão. O sentenciado não é mais um dos “fiéis em comunhão”. O

sacerdote endossa a sentença condenatória para que ela possa repercutir na vida futura do

acusado. Se ele a comunica aos seus fiéis, é porque antes ela já foi dada pela instância

competente. O anátema do sentenciado implica, entre outras coisas, que o seu nome está

excluído da oração da Igreja em favor da salvação das almas e ele pode vir a ser, muito

provavelmente, punido no outro mundo com um suplício ou castigo138.

Vale notar a legitimidade da sentença, pois tem o reconhecimento da totalidade dos

fiéis, da qual se instituiu o juiz competente para esse tipo de julgamento. Esse modo de

fazer justiça fundamenta-se, segundo Marsílio, nos textos canônicos. É o que prova Mateus

18, 15-17. Quando Cristo, nesta passagem da Lei Evangélica, usa a expressão “dize-o à

Igreja”, ele não a utilizou no sentido de a pessoa se dirigir a um determinado membro da

corporação dos presbíteros. Para o paduano, a sua mensagem aí é clara: se o termo “Igreja”

significa a comunidade dos crentes, então é dela que deve partir o juiz139. É o que prova

também o Apóstolo em sua primeira Epístola aos Coríntios [5, 3-5] e Santo Agostinho em

seu comentário à mencionada carta: o denunciador encaminha a denúncia à assembléia dos

fiéis reunidos sem dissensão, a qual, por sua vez, pode indicar o juiz para julgar o caso140.

O fato de certas acusações merecerem julgamento não implica necessariamente que

todas tenham que passar pelo mesmo processo. É possível que a totalidade dos crentes

conviva com certos tipos de infratores da Lei Evangélica, sem causar escândalo ou risco de

influência negativa. Uma prova da falta de necessidade de submetê-los ao tribunal são as

divergências sobre o assunto. Se os fiéis ficam divididos e toma-se a decisão arbitrária de

julgá-los, a boa disposição da comunidade política fica ameaçada. Vamos supor que o clero

resolva julgar por conta própria o príncipe. Se aquela corporação decide excomungar o

governante, os súditos deste também são anatematizados. “E assim sendo, afirma Marsílio,

o poder do príncipe, não importa quem seja, seria destruído”141.

113388 CCff.. DDPP,, IIII,, 66//1133,, pp.. 228877;; IIII,, 99//33,, pp..330077.. 113399 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 226644:: ““LL’’ÉÉgglliissee mmaarrssiilliieennnnee ccooiinncciiddéérraaiitt ddoonncc aavveecc ttoouuttee cciittéé oouu ttoouutt rrooyyaauummee cchhrrééttiieenn ccoonnvveennaabblleemmeenntt uunniiffiiéé ssoouuss uunn oorrggaannee ddee ggoouuvveerrnneemmeenntt””.. 114400 CCff.. DDPP,, IIII,, 66//1133,, pppp..228855--228866.. 114411 DDPP,, IIII,, 66//1133,, pp..228888..

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Essa atuação do clero não reflete a verdadeira natureza da Igreja como comunidade

perfeita cristã142. Ele não tem o poder de excomungar. O poder que ele possui é o de

celebrar a Eucaristia143; o das chaves, pelo qual mostra o que Deus julga ser a sua graça e o

pecado dos seres humanos; o de substituir uma parte ou toda a pena que uma alma pecadora

venha receber no purgatório, no futuro, por uma ação reparadora no mundo presente; o de

privar dos sacramentos os fiéis infratores da Lei Evangélica e de receber de volta os crentes

arrependidos. Em todos esses casos em que o presbítero atua legitimamente há uma

preocupação com a salvação da alma. Em nenhum deles o sacerdote condena o pecador.

Marsílio compara a função do poder das chaves do sacerdote com a do clavígero.

Este “portador das chaves do príncipe” exerce o seguinte ofício: o governo civil julga os

seus cidadãos que infligiram as leis civis. Mas a sentença é cumprida, quando as portas da

prisão se abrem ou fecham para o sentenciado. O clavígero realiza esse ato de abrir e fechar

o cárcere após a justiça civil ter decretado a sentença de absolvição ou condenação. Ele é

quem traz a chave, uma espécie de oficial de justiça. Mas, se ele resolve, por conta própria,

soltar o condenado, este não tem a sua sentença anulada. Por outro lado, se ele tranca por

vontade própria uma pessoa inocente, tal indivíduo foi vítima de uma injustiça, pois não foi

julgado pela autoridade competente.

De modo análogo, apenas Deus, o Juiz Celeste, condena ou absolve o pecador. A

ação do sacerdote de admitir, ou não, o fiel à comunhão dos sacramentos revela a todos os

crentes “quem há de ser considerado como absolvido ou condenado por Deus”144. O

presbítero é um clavígero de Deus. Porém, se admite ou recusa quem não merece, ele o faz

contra a vontade da justiça divina. Do mesmo modo que o “portador das chaves do

príncipe”, ele é um ser humano sujeito a contrair sentimentos perversos ou enganosos.

“Esta é, pois, declara o paduano, a razão pela qual o padre não exerce os direitos de algum

114422 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 226622:: ““((……)) llee bbuutt eesssseennttiieell dduu DDeeffeennssoorr ppaacciiss eesstt dd’’oorrggaanniisseerr llaa ppaaiixx aauu sseeiinn ddee llaa ‘‘ccoommmmuunnaauuttéé ppaarrffaaiittee’’ eenn yy aassssuurraanntt llaa ssoouummiissssiioonn dduu ssaacceerrddooccee aauu llééggiissllaatteeuurr.. LLaa ccoommmmuunnaauuttéé eesstt ppaarrffaaiittee àà ppaarrttiirr dduu mmoommeenntt ooùù iill yy aa ccoonnccoorrddaannccee eennttrree ll’’eennsseemmbbllee ddeess ffiiddèèlleess eett ll’’eennsseemmbbllee ddeess cciittooyyeennss,, ddoonntt oonn ffaaiitt llee llééggiissllaatteeuurr,, ccaarr,, àà ccee mmoommeenntt,, ddiissppaarraaiisssseenntt ttoouutteess lleess rraaiissoonnss qquuii ppeeuuvveenntt ss’’ooppppoosseerr àà llaa ssuubboorrddiinnaattiioonn ttoottaall dduu ssaacceerrddooccee aauu llééggiissllaatteeuurr eett ppaarr ccoonnssééqquueenntt àà ssoonn iinnttééggrraattiioonn ddaannss llaa cciittéé.. BBiieenn pplluuss,, cceerrttaaiinneess ffoonnccttiioonnss eeccccllééssiiaalleess,, qquuii rreevviieennnneenntt llooggiiqquueemmeenntt àà ‘‘ll’’eennsseemmbbllee ddeess ffiiddèèlleess’’,, ssee ttrroouuvveenntt dduu mmêêmmee ccoouupp ttrraannssfféérrééeess aauu llééggiissllaatteeuurr hhuummaaiinn,, ppuuiissqquuee cceelluuii--ccii eesstt ppaarr ddééffiinniittiioonn ‘‘ll’’eennsseemmbbllee ddeess cciittooyyeennss’’””.. 114433 CCff.. DDPP,, IIII,, 66//1144,, pp.. 228888.. 114444 DDPP,, IIII,, 77//33,, pp.. 229911..

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poder, pois, se não fosse dessa maneira, a justiça e a promessa divinas às vezes poderiam

malograr”145.

Faz parte da justiça divina o ofício do ministério sacerdotal, à medida que ele se

identifica à sua real condição, qual seja, a de zelador da saúde da alma. O presbítero, como

já dissemos, é comparado ao médico. Compete a ele apenas fazer um prognóstico das

“doenças” da alma, isto é, dar a sua opinião fundamentada na Lei Evangélica a respeito da

conduta do fiel. Ao ouvir o parecer do ministro da Palavra, o crente pode ter medo do

castigo divino e vir a praticar o bem. Igualmente, o médico, que trata da saúde do corpo, ao

dominar a ciência médica, diz ao enfermo o que ele deve fazer para se livrar da doença. Ele

não o obriga a tomar as medidas que considera necessárias para restabelecer a sua saúde.

Apenas o aconselha, suscitando nele o sentimento de medo diante da enfermidade.

O “médico das almas”, como conhecedor da Lei Evangélica, esforça-se em

convencer aos fiéis que há “(...) certos procedimentos que, se observados, conduzem a alma

à vida ou à morte eterna, ou a uma pena temporal relativa à vida futura”146. Ao agir assim, o

sacerdote segue a Cristo. Segundo o paduano, no Evangelho de Lucas [5, 31], a atividade

de Cristo neste mundo se compara à do médico. O que não ocorre no outro mundo onde

Deus é o Juiz. Na vida futura, o Senhor então “(...) imporá, mediante um julgamento

coercivo, as penas àqueles que neste mundo tiverem violado a Lei estabelecida diretamente

por Ele”147. Porém, um dos fatores perturbadores da ordem da civitas é o fato de o sacerdote

se considerar juiz assim como Cristo o será na vida futura. O que não é verdade, segundo

Marsílio, pois apenas Cristo é considerado juiz da lei divina, embora o seja na vida eterna.

Neste mundo, ao utilizar inadequadamente o significado de “juiz”, tal como é usado

pelo príncipe, o sacerdote se afasta da natureza de seu ministério. O presbítero tem

imprimido em sua alma a disposição para o sacerdotium, exercendo o poder de consagrar o

corpo de Cristo e o de perdoar os pecados148. O perdão dos pecados não implica o

julgamento coercivo dos atos humanos. Se o mestre da Palavra pretende ser chamado de

“juiz”, que o seja a exemplo do médico, como vimos acima. O seu dever consiste em

aplicar a Lei Evangélica nesta vida, não como uma regra coerciva, mas como uma

114455 DDPP,, IIII,, 77//33,, pp.. 229922.. 114466 DDPP,, IIII,, 77//44,, pp.. 229933.. 114477 DDPP,, IIII,, 77//55,, pp.. 229944.. 114488 CCff.. LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 119955..

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“doutrina especulativa ou prática, ou ambas”149. Nesta vida, a lei divina é uma doutrina e o

sacerdote o seu intérprete competente que usa o amor, e não qualquer recurso intimidador,

para ensiná-la. Já no outro mundo, porém, é uma regra coerciva, e Cristo o único juiz que

vai punir os seus transgressores com algum tipo de castigo.

4. A coerência entre a palavra e a ação

De acordo com o paduano, muitos santos – como São João Crisóstomo, Santo

Hilário e Santo Ambrósio – deram testemunho do verdadeiro “julgamento” do sacerdote.

Refere-se a Crisóstomo para mostrar que o presbítero é uma pessoa hábil na sua atividade

de corrigir e educar os fiéis; o seu modo de aconselhar e repreender são decisivos para

acolher o crente infrator; e se este decide permanecer no erro, o “médico das almas”, o

mestre da Lei Evangélica, deve ter uma virtude muito importante para o seu ofício, a saber,

a paciência150. A propósito, Marsílio tira de Santo Hilário a seguinte lição: ser paciente é

uma qualidade que só vem a tornar mais eficaz o ministério sacerdotal, pois, em se tratando

da fé em Cristo, é da vontade divina que ela seja confessada e admirada livremente, sem

pressão ou violência151.

Recorre, por sua vez, a Santo Ambrósio para sustentar a idéia de que a única arma

legítima a ser usada pelo mestre da Palavra contra o pecador são suas lágrimas. Não é com

prisões, torturas, ameaças ou qualquer outro instrumento secular intimidador que o ministro

da Lei Evangélica conduz os crentes em direção à graça divina. É a sua dor, o seu

sofrimento, os únicos meios de defesa de que ele dispõe para impedir o avanço do

pecado152.

Enquanto os instrumentos de intimidação são sinais de arrogância, as lágrimas

consistem num sinal de humildade. Esta virtude é imprescindível no ministério sacerdotal.

Ela se enquadra no estado de perfeição que deve praticar. Vejamos a seguir como Marsílio

descreve esse estado de vida evangélica. Inicialmente, vale observar que ele o fundamenta

114499 EExxpprreessssããoo ddee MMaarrssíílliioo.. CCff.. DDPP,, IIII,, 99//33,, pp.. 330066.. 115500 CCff.. DDPP,, IIII,, 99//44,, pp..330088,, nnoo qquuaall MMaarrssíílliioo cciittaa CCrriissóóssttoommoo.. 115511 DDiizz SSaannttoo HHiilláárriioo:: ““DDeeuuss nnããoo eexxiiggee uummaa fféé ssoobb ccooaaççããoo””.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 99//55,, pp.. 330099.. 115522 CCff.. DDPP,, IIII,, 99//66,, pp.. 331100..

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na história de Jesus, descrita no Novo Testamento: Cristo nasceu, viveu e morreu pobre153.

Nasceu numa manjedoura, “(...) isto é, onde ficam o gado e a forragem”154. Já adulto,

declarou que não tinha onde reclinar a sua cabeça, como demonstram Mateus [8, 20] e

Lucas [9, 58]. Se nesta vida assumiu a condição de extrema humildade e de recusa às

riquezas materiais, pretendeu demonstrar que a pobreza é um sinal de despojamento dos

bens materiais; o exemplo e imitação da Verdade é o melhor modo de propagar o

Evangelho155.

O paduano reconhece que o valor da imitação no ensino é uma idéia antiga.

Crisóstomo e Aristóteles compartilham do pensamento de que as palavras e as ações têm

força quando se unem para revelar a verdade156. É o que também diz Jesus quando

aconselha aos Apóstolos seguir o seu exemplo: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante

dos homens”157. Sêneca é outro sábio que concilia o ensino da sabedoria à vida. Ele afirma

que “o que deve ser feito, deve-se aprender a fazê-lo com quem o faz”158. No caso da Lei

Evangélica, a eficácia de seu ensino pressupõe a sua vivência.

O distanciamento entre a pregação e a ação, principalmente se for praticado por

aqueles que foram escolhidos como líderes da corporação dos perfeitos, é motivo para os

fiéis levantarem dúvidas acerca do juízo final ou da crença do outro mundo. O crente

poderia se perguntar: se o sacerdote é o médico das almas, que vive uma vida despojada e,

portanto, distribui tudo que recebe ou possui aos pobres, então por que a realidade mostra o

contrário? Isto é: por que há ministros da Palavra que oferecem dinheiro a quem não

precisa, ficam com os bens dos fiéis que foram ofertados, adquirem inúmeros bens

supérfluos, fazem banquetes? Enfim, por que existem sacerdotes que procuram viver uma

115533 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 6666:: ““LLaa ppoovveerrttàà aassssoolluuttaa –– ccii llaasscciiaa ccaappiirree MMaarrssiilliioo –– nnoonn èè uunn ffaattttoo iissoollaattoo nneellllaa vviittaa ddii CCrriissttoo;; nnéé qquuaallccoossaa ddii aalleeaattoorriioo oo ddii pprreeccaarriioo,, mmaa uunn aatttteeggggiiaammeennttoo cchhee ssii ccoonnnneettttee iinnttrriinnsseeccaammeennttee ee ssaallddaammeennttee aallllaa ssuuaa mmiissssiioonnee ddii uuoommoo--DDiioo””.. 115544 DDPP,, IIII,, 1111//22,, pp..333311.. 115555 MMmmee.. QQuuiilllleett cchhaammaa--nnooss aa aatteennççããoo ppaarraa oo ffaattoo ddee qquuee MMaarrssíílliioo ““((......)) vvaa eemmpprruunntteerr àà ll’’iimmaaggee,, sseemmii--uuttooppiiqquuee,, sseemmii--rrééeellllee dduu CChhrriisstt eett ddee ssaa vviiee llee ppaarraaddiiggmmee ddee ll’’ééttaatt dduu pprrêêttrree eenn ccee mmoonnddee,, ffiiddèèllee àà ccee mmoouuvveemmeenntt qquuii aanniimmee ll’’eennsseemmbbllee ddee ssoonn eeccccllééssiioollooggiiee:: llaa rreessttaauurraattiioonn dduu mmeessssaaggee éévvaannggéélliiqquuee ddaannss ssaa ppuurreettéé pprriimmiittiivvee.. CCee rreeccoouurrss aa qquueellqquuee cchhoossee dd’’aauuddaacciieeuuxx àà ssoonn ééppooqquuee,, ooùù ll’’iimmaaggee pprrééddoommiinnaannttee dduu CChhrriisstt eesstt cceellllee ddee ssaa rrooyyaauuttéé:: llooiinn qquu’’iill ss’’aaggiissssee dd’’uunn CChhrriisstt eenn ggllooiirree oouu eenn mmaajjeessttéé,, ddiissttrriibbuuaanntt ppuunniittiioonnss eett rrééccoommppeennsseess aauu JJuuggeemmeenntt ddeerrnniieerr,, nnoouuss rreettrroouuvvoonnss uunn ppeerrssoonnnnaaggee ffaammiilliieerr,, hhuummbbllee eett ppaauuvvrree ((......))”” ((QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp.. 220000)).. VVeerreemmooss,, ppoorréémm,, qquuee eessssaa iimmaaggeemm ddee DDeeuuss ppoobbrree ee hhuummiillddee nnããoo éé ppaarraa sseerr aaddoottaaddaa ppeelloo ggoovveerrnnaannttee cciivviill.. 115566 CCff.. DDPP,, IIII,, 1111//33,, pppp.. 333322--333333.. 115577 MMtt.. 55,, 1166.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1111//33,, pp..333333.. 115588 AAppuudd DDPP,, IIII,, 1111//22,, pp..333311..

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vida de prazeres e vaidades se, como fiéis perfeitos, “(...) deviam se contentar em receber

apenas a alimentação e o vestuário, ao exercerem o ministério da Palavra”159?

Jesus mostrou que o estado perfeito é o da pobreza. Ele declarou, se alguém deseja

ser perfeito, que venda seus bens e dê o seu valor aos pobres160. Essa recomendação de

Cristo torna-se uma condição necessária para o exercício do ministério pastoral: se o seu

discípulo não é pobre, ele não consegue cativar mais pessoas a abraçar a verdadeira

religião. Segundo Marsílio, “se a pessoa possuir riqueza e aspirar ao poder, ensinando aos

outros desprezá-los, seus atos contradirão explicitamente as suas palavras”161. A coerência

de vida é, portanto, um requisito indispensável para a eficácia do sacerdócio.

Os sacerdotes coerentes não processam os seus agressores; confiam na misericórdia

divina; entregam ao ladrão os bens mais preciosos; doam todos os bens supérfluos, enfim,

imitam a vida de Jesus. Marsílio, baseando-se numa obra de São Bernardo, afirma que, no

sacerdócio, ao contrário do governo civil, não há pedras preciosas, vestes de seda bordadas

com ouro, pessoas escoltadas por uma força militar e cercadas por serviçais162.

5. O voto de pobreza do sacerdote

A corporação de presbíteros tem o seu valor reconhecido somente se for pobre. O

que significa o ministro da Palavra ser pobre? Esta questão, segundo o paduano, é

respondida claramente através da definição de “pessoa rica” e “pessoa pobre”. Rico é um

indivíduo que possui licitamente fortuna, em quantidade elevada ou suficiente, que esteja

garantida no presente e no futuro. Pobre é uma pessoa desprovida de bens suficientes ou

supérfluos para viver163. A pessoa rica enquadra-se no seguinte conjunto de atributos: tem

um poder de direito ou tem propriedade ou possessão de bens, “designados por riquezas”164.

Para entendermos o sentido de pobreza e de riqueza, precisamos, na opinião de

Marsílio, analisar principalmente os termos “direito”, “propriedade” e “possessão”. A partir

115599 DDPP,, IIII,, 1111//44,, pp.. 333344--333355.. 116600 CCff.. DDPP,, IIII,, 1111//22,, pp.. 333322,, eemm qquuee hháá uummaa lloonnggaa cciittaaççããoo ddoo EEvvaannggeellhhoo ddee LLuuccaass [[1188,, 1188--2233]].. 116611 DDPP,, IIII,, 1111//33,, pp..333322.. 116622 SSããoo BBeerrnnaarrddoo,, DDee CCoonnssiiddeerraattiioonnee.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 1111//88,, pp..333388.. 116633 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//2266--3311,, pp.. 334499--335500.. 116644 DDPP,, IIII,, 1122//22,, pp.. 334400..

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da análise correta do termo “direito”, a sentença “o rico tem um poder de direito sobre sua

fortuna” equivale a dizer que “ele possui licitamente a sua fortuna”. Pode significar

também: “ele tem a sua riqueza sob o amparo da lei civil”. Ele faz o que quiser com seus

bens de acordo com as normas coercivas da comunidade política. A propósito, para o

paduano, a riqueza é necessária na civitas. O governo civil, ao abrir mão dela, torna-se

fraco, gera insegurança e perda de autoridade165.

A respeito dos termos “propriedade” e “possessão”, a sua análise correta mostra que

os dois se equivalem quando afirmamos que “O rico tem a possessão de riquezas”. Esta

sentença pode ser enunciada da seguinte forma: “o rico é proprietário de riquezas”. Pode

significar também: “Ele possui poder (de direito) sobre sua fortuna” ou “ele tem a

capacidade de reivindicar os bens que lhe pertencem (por direito)”. Vale notar, contudo,

duas conseqüências importantes que Marsílio extrai da análise desses termos:

a) A pessoa que adquiriu seus bens de acordo com a lei pode usá-los da maneira que

quiser, contanto que não viole as leis humanas. Por exemplo, o indivíduo, por livre vontade,

pode renunciar a seus bens materiais, em parte ou na totalidade. Nem a lei civil nem a

divina o obrigam a ficar com aquilo que ele não quer para si166.

b) Se a pessoa renuncia à “capacidade de reivindicar” determinado objeto e proíbe

qualquer outro indivíduo de exercê-la, tal objeto “(...) pode muito bem não fazer parte do

patrimônio de ninguém. Portanto, pode-se usá-lo licitamente”167. Veremos, a seguir, que

essa renúncia é uma característica essencial do voto de pobreza de Cristo e de seus

Apóstolos, bem como dos demais ministros da Lei Evangélica que os sucederam.

A renúncia ou o desprezo às coisas materiais encontra-se em declarações de Cristo,

como a de “deixar sua casa e suas terras por causa do Senhor”, ou a de “se alguém toma de

você o manto, dar-lhe também a túnica”168. Para o paduano, esta última declaração é

entendida com mais clareza se lemos, a seu respeito, o comentário de Agostinho e do

Apóstolo. O Bispo de Hipona chama a atenção para o seguinte aspecto: se Cristo ordena 116655 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pppp.. 6677--6688:: ““((……)) llaa rriicccchheezzzzaa èè ccoonnssiiddeerraattaa iinnddiissppeennssaabbiillee ppeerr lloo SSttaattoo ee ppeerr ll’’uuoommoo ddii SSttaattoo aalllloo ssccooppoo ddii oorrggaanniizzzzaarree llaa ddiiffeessaa ee ddii rreepprriimmeerree ggllii iinnqquuiieettii cchhee nnoonn rriissppeettttaannoo llaa lleeggggee cchhee ll’’uunniivveerrssiittaass cciivviiuumm ssii èè ddaattaa.. SSee aall pprriinncciippee vveenniissssee mmeennoo llaa ppoossssbbiibbiilliittàà dd’’iimmppoorrssii –– ee qquuiinnddii mmaannccaasssseerroo llee rriissoorrssee eeccoonnoommiicchhee cchhee gglliieellaa ffoorrnniissccoonnoo –– eeggllii aassssiisstteerreebbbbee aallllaa ddeeggrraaddaazziioonnee ddeellllaa ssuuaa ccaarriiccaa,, oollttrree cchhee aallllaa rroovviinnaa ddeelllloo SSttaattoo:: nnoonn ssaarreebbbbee ppiiùù uunn uuoommoo cchhee ssaa ffaarrssii vvaalleerree eessiiggeennddoo iill rriissppeettttoo ddeellllaa lleeggggee,, mmaa uunn pprreeddiiccaattoorree,, llaa ccuuii uunniiccaa aarrmmaa èè llaa ppaarroollaa””.. 116666 CCff.. DDPP,, IIII,, 1133//33,, pp.. 335544.. 116677 DDPP,, IIII,, 1133//44,, pp..335555.. 116688 MMtt.. 1199,, 2299;; 55,, 4400.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1133//55,, pp.. 335566..

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que seus discípulos não processem aquele que lhe tirou o necessário, então não faz sentido

que também entrem em litígio com aquele que lhe tirou o supérfluo. São Paulo diz que, em

nome de Cristo, é melhor para os seus discípulos padecerem uma injustiça, serem vítima da

fraude, do que brigarem na justiça civil. Esse conselho do Senhor, segundo Marsílio,

levanta a seguinte questão: “do que [adianta] processar alguém, mesmo tendo direito, com

vista a reivindicar um bem temporal”169?

Quem guarda o voto de pobreza, e, portanto, aplica aquela declaração de Cristo,

abre mão do “poder de reivindicar”170. O que não implica, porém, a renúncia ao “(...) direito

de licitamente possuir um bem ou ao seu uso ou ao uso de fato de um bem ofertado”171. Ele

não está proibido de ter o mínimo de bens para, por exemplo, proteger-se do frio, não

morrer de fome ou de sede. Se ele abre mão desses bens, procura se matar. Ora, a rejeição

de coisas desse gênero invalida o imperativo cristão “Não matarás”. Ao se recusar a tê-los,

ele procura se matar. Logo, ele deve aceitar as mínimas coisas materiais para viver. Mas, o

uso legítimo desses bens não implica que ele se tornou “proprietário”, ou seja, possuiu o

“poder de reivindicar”.

Segundo Marsílio, o preceito de Cristo – para o qual é possível renunciar ao “poder

de reivindicar”, mas não ao direito de uso – é perfeitamente praticável. Quem afirma o

contrário comete uma heresia absurda172. Certamente, o alvo do paduano é João XXII e seus

aliados. O Papa, em sua Bula Ad Conditorem Canonum, promulgada dois anos antes da

publicação do DP, afirmara que alguém é perfeito na medida em que cresce na caridade.

Ele não precisa renunciar à propriedade para alcançar a perfeição cristã. Se um fiel decide,

porém, abrir mão dela, renuncia também ao seu direito de uso. De acordo com a Ad

Conditorem, não é possível a pessoa separar o direito de uso do de propriedade, “(...) a

menos que no futuro o usufruto possa subsistir em benefício do proprietário”173. Essa

inseparabilidade se aplica também aos bens fungíveis: a comida, a bebida e o vestuário. O

crente tem o direito de usar o vinho do qual ele é proprietário. E ao fazer isso, ele não 116699 DDPP,, IIII,, 1133//55,, pp.. 335566.. AA rreessppeeiittoo ddooss ccoommeennttáárriiooss ddee AAggoossttiinnhhoo ee ddoo AAppóóssttoolloo,, ccff.. ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 1133//55,, pp..335566.. 117700 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 222211:: ““QQuueemm pprrooffeessssaa oo vvoottoo ddee ppoobbrreezzaa nneessssee ggrraauu éé ddeessiiggnnaaddoo ppeelloo SSeennhhoorr ccoommoo ppeerrffeeccttuuss,, ddee aaccoorrddoo ccoomm ssuuaass ppaallaavvrraass,, eennccoonnttrraaddaass nnoo EEvvaannggeellhhoo ddee MMaatteeuuss [[1199,, 2211]]:: SSii vviiss ppeerrffeeccttuuss eessssee,, vvaaddee,, vveennddee eett ddaa ppaauuppeerriibbuuss””.. 117711 DDPP,, IIII,, 1133//55,, pp..335577.. 117722 PPIINNCCIINN,, 11996633,, pp.. 9977:: ““AAffffeerrmmaarree cchhee nnoonn ssii ppuuòò aavveerr uummaa ccoossaa ee iill ssuuoo uussoo sseennzzaa aavveerrnnee iill ddoommiinniiuumm ssiiggnniiffiiccaa nneeggaarree cchhee iill ccoonnssiigglliioo eevvaannggeelliiccoo ssii ppoossssaa sseegguuiirree;; cciiòò èè ffaallssoo eedd eerreettiiccoo””.. 117733 SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 221144..

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acrescentará ou retirará nada à sua vida de perfeição cristã. Logo, a instituição religiosa

possui o poder de reivindicar as coisas que ela tem o direito de usar. Sendo assim, ela tem

poder coercivo.

Contudo, Marsílio percebe nessa doutrina de João XXII uma das grandes mentiras

do Papado. Ela se opõe ao sentido autêntico do voto de pobreza de Cristo, fundamento da

perfeição cristã. O cristão – em particular, o presbítero – que o adota em sua vida renuncia

ao julgamento coercivo. Não basta o perfeito dizer: “Não quero ter propriedade” ou “Não

quero fazer isso, porque vou acabar tendo propriedade”. Ele deve abrir mão de qualquer

possibilidade de recorrer à justiça civil, quando alguém lhe toma um objeto. Igualmente,

quando um indivíduo “(...) faz um voto de castidade ou de obediência, através desse ato,

não apenas renuncia à prática de determinadas ações, mas também ao poder lícito de

realizar aqueles atos (...)”174.

Para Marsílio, constitui uma contradição imaginar uma pessoa que pratica a pobreza

– ou a castidade ou a obediência – poder fazer licitamente o que é ilícito para esses votos.

Depois de proferir o voto, ela não pode realizar licitamente determinados atos que, antes da

profissão, eram considerados lícitos. No caso do voto de pobreza, após proferi-lo, o

sacerdote passa a ter uma relação com a propriedade diferente da que existia anteriormente.

Quando ele renuncia aos bens temporais, através da profissão daquele voto, ele pode

utilizá-los licitamente somente se houver o consentimento de seus proprietários175. Jamais

pode licitamente ter o bem na condição de dono ou de alguém que tem o poder de

reivindicar. De fato, observa o paduano, “(...) a lei permite às pessoas usar uma coisa

alheia, mesmo que esta venha a se consumir, desde que tenham a anuência expressa do

proprietário para fazer isso” 176. Em oposição à Ad Conditorem Canonum, de João XXII,

Marsílio afirma que quem professa o voto de pobreza pode usar algo sem ser seu

proprietário. O sacerdote, ao aceitar voluntariamente a pobreza de Cristo, não renuncia

apenas a propriedade individual (tese de João XXII). Ele abre mão também da coletiva.

Sem o direto de posse particular e em comum, o mestre da Palavra domina o seu

desejo imoderado de riqueza. A sublime pobreza consiste numa virtude que vem para

117744 DDPP,, IIII,, 1133//77,, pp..335588.. 117755LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 224433:: ““PPuuiissqquuee llee ddrrooiitt ddee ccoollllaattiioonn ddee bbéénnééffiicceess ssuuiitt llee ddrrooiitt ddee ddééssiiggnnaattiioonn [[aa uumm ooffíícciioo]],, MMaarrssiillee ddeevvrraaiitt ccoonncclluurree qquuee sseeuull llee llééggiissllaatteeuurr oouu llee pprriinnccee eesstt mmaaîîttrree ddee cceess ccoollllaattiioonnss””.. 117766 DDPP,, IIII,, 1133//88,, pp.. 335599..

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combater a ambição e o poder. E, por ser um ato voluntário em favor de uma causa nobre, é

uma virtude meritória. Marsílio lembra São Basílio que, ao comentar a passagem “Bem-

aventurados vós, os pobres, etc.”, do Evangelho de Lucas (6, 20), declara que a salvação

não está necessariamente na privação dos bens materiais, mas no cultivo da mencionada

virtude, pois muitos indivíduos que são vítimas desse tipo de carência “(...) são também

extremamente ambiciosos em seus espíritos”177. O caráter voluntário em si, porém, não é

suficiente para tornar a sublime pobreza uma virtude meritória. É preciso que o fiel tome a

decisão em cultivar esse hábito interior por amor a Cristo. Os crentes que assumem

voluntariamente a pobreza por amor à Verdade e – nas palavras que Marsílio toma

emprestadas de Jerônimo – “(...) com o propósito de poder anunciar o Evangelho, receberão

o cêntuplo e possuirão a vida eterna”178.

Essa espécie de pobreza, a meritória, que os sacerdotes pregam e vivenciam, jamais

se identifica corretamente com um ato de caridade. O amor a Cristo, a caridade cristã, é o

ato pelo qual o crente se volta para o Senhor, em oposição ao ato do infiel, o qual se afasta

de Deus. Ele é um mandamento, e não um voto, que ordena ao crente aproximar-se do

Senhor. Essa aproximação não implica necessariamente o afastamento dos bens temporais.

A caridade tem a força de afastar a pessoa de um objetivo r e direcioná-la para o seu

contrário, não-r. Ou seja, ela afasta o fiel do mal e o direciona ao bem supremo, o Cristo.

Todo cristão deve tê-la. Já a pobreza virtuosa, diferente da caridade, consiste num voto,

através do qual o crente decide voluntariamente distanciar-se, por amor a Cristo, de tudo

que implica apego aos bens materiais para se acumular de bens espirituais. Porém, nem

todo cristão a possui179. Uma vez que a perfeição cristã baseia-se essencialmente na summa

paupertas – e não na caridade, como preconizara João XXII na Ad Conditorem180 –, poucos

são os cristãos perfeitos.

Os poucos fiéis, em particular os sacerdotes, que professam a pobreza de Cristo

assumem um novo modo de vida. O sacerdote pobre demonstra concretamente algumas

atitudes coerentes com o ideal cristão de perfeição. Ele é uma pessoa desprendida dos bens

117777 SSããoo BBaassíílliioo.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 1133//1144,, pp.. 336622.. 117788 JJeerrôônniimmoo.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 1133//1144,, pp.. 336633.. 117799 PPIINNCCIINN,, 11996677,, pp.. 9988:: ““EEggllii [[MMaarrssiilliioo]] ddiissttiinngguuee aaccccuurraattaammeennttee llaa ppoovveerrttàà ddaallllaa ccaarriittàà,, cchhee èè aallttrraa ccoossaa.. AAffffeerrmmaa cchhee llaa ffoorrmmaa ppiiùù aallttaa ddii qquueessttaa vviirrttùù ccoonnssiissttee nneell vvoottoo ddii rriinnuunnzziiaa aa ooggnnii ddoommiinniiuumm ppeerr aammoorree ddii CCrriissttoo.. CChhii ffaa ccoossìì ssii aavvvviicciinnaa aallllaa ccaarriittàà ddiivviinnaa,, ssii eessppoonnee aa ssooffffeerreennzzee ee uummiilliiaazziioonnii mmoonnddaannee,, ssii mmeettttee iinn ccoonnddiizziioonnee ddii oosssseerrvvaarree ii ccoonnssiiggllii ddii CCrriissttoo””.. 118800 CCff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pppp.. 221133--221144..

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materiais; tem disposição para enfrentar qualquer espécie de adversidade da vida presente;

abre mão, sem constrangimento, dos prazeres e de tudo o que representa vaidade. A sua

relação com os bens materiais lhe permite transitar na fronteira entre “o que é ilícito ter

menos” e “o que é ilícito ter mais”. Se ficar no primeiro, é um suicida em potencial e não

há preceito cristão que aprove esse seu comportamento. Se ele cai para o outro lado, é um

avarento; e a caridade, da qual deveria ser exemplo, torna-se impraticável. Portanto,

nenhum dos dois extremos lhe dá a perfeição cristã: nem “o que é ilícito ter menos”, nem o

“que é ilícito ter mais”.

O modo pelo qual Cristo vivenciou a pobreza não implica, porém, que ele não tenha

usado licitamente bens materiais. Ele possuía o que comer e vestir, como narram os

Evangelhos181. Certamente, precisava se alimentar e vestir-se para exercer o seu ministério.

Foi um ser humano e, nessa condição, necessitava de coisas materiais. Cristo, afirma o

paduano, “se não os [alimentos] tivesse comido, podendo fazê-lo, teria pecado gravemente,

expondo-se conscientemente ao perigo de morrer de fome”182. Por outro lado, os bens

terrenos que ele possuía eram comuns, não só aos Apóstolos, mas também a todos os

carentes sujeitos a perecer por indigência. Se ele os tivesse compartilhado apenas com os

Apóstolos, não teria seguido integralmente o seu próprio conselho acerca da “perfeição do

mérito”. Depois da sua ressurreição, os Apóstolos seguiram fielmente os seus passos no

caminho da pobreza sublime: eles “(...) possuíram bens em comum, entre si e com os outros

pobres”183.

No entanto, o fato de Cristo ter possuído certos bens temporais não implica que ele

tinha de certo modo alguma “propriedade”, isto é, o que para Marsílio os Evangelhos

designam por “possessão”184. O paduano não tem dúvidas de que Deus se fez homem. Mas,

para ele, o fato de Cristo ter-se tornado humano não implica que essa sua condescendência

seja ampla o suficiente para justificar a necessidade de ele ter alguma posse de bens

materiais. “Marsilio, afirma Bernardo Aznar, não toma parte dessa concessão e insiste em

que os Evangelhos apresentam Cristo sempre pobre (...)”185. A leitura atenta dos Evangelhos

118811 CCff.. DDPP,, IIII,, 1133//3344,, pp.. 337755.. 118822 DDPP,, IIII,, 1133//3344,, pp.. 337755.. 118833 DDPP,, IIII,, 1133//3355,, pp.. 337766.. 118844 CCff.. LLcc 1155,, 3333 ee MMtt 1100,, 99.. CCff.. ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 1133//3366,, pp.. 337766.. 118855 ““((......)) nnoo ccoommppaarrttee eessttaa ccoonncceessiióónn ee iinnssiissttee eemm qquuee llooss EEvvaannggeelliiooss pprreesseennttaann aa CCrriissttoo ssiieemmpprree ppoobbrree ((......))”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 224422)).. SSoobbrree uumm bbrreevvee rreessuummoo ddaa ddoouuttrriinnaa ddaa ccoonnddeesscceennddêênncciiaa,, ddaa qquuaall ccoommppaarrttiillhhaa SSããoo

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nos mostra que o Verbo rejeitou a retenção de alguma coisa, direito ou rendimentos. Ora,

conseguem fazer esse tipo de renúncia apenas os perfeitos – em particular, os sacerdotes.

Nem todos conseguem abrir mão da sua propriedade, assim como nem todos são capazes

de renunciar ao casamento. A recusa à riqueza ou ao casamento são preceitos da vida cristã

perfeita. Mas se preceitos não são proibições, então o fiel em geral, que não pretende ser

perfeito, não está proibido de ser rico ou de se casar. A esse respeito, o paduano afirma:

“Não se deve igualmente inferir que, pelo fato de Cristo não ter casado, parece que teria condenado o estado matrimonial, e que semelhante argumento se aplicasse também a outras situações análogas, pois o próprio Senhor demonstrou muito bem a diferença que há entre os preceitos e as proibições que devem ser observados com vista a alcançar a salvação eterna. Mostrou também claramente o que é dispensável de ser cumprido, com igual finalidade, atos esses chamados pelos santos de preceitos e proibições relativos à sobrerrogação”186.

Existem, pois, regras para alcançar a vida futura, que todo crente deve seguir. Há

outras que são dispensáveis, aplicadas apenas aos perfeitos, especialmente aos sacerdotes.

Essas últimas estão compreendidas no âmbito da “sobrerrogação”187. De acordo com o

paduano, os Evangelhos mostram que as regras indispensáveis para o fiel salvar a sua alma

são os mandamentos. Basta o crente observá-los para conquistar a vida eterna188. Se ele

pretende ser perfeito, os mandamentos não são suficientes; são necessárias mais regras,

como a da sublime pobreza, entre outras sobrerrogações. Constituem preceitos evangélicos

que Cristo deixou àqueles que procuram imitá-lo. Se o mestre da Palavra os segue, ele não

age com a intenção de obrigar os demais a fazer o mesmo ou de condenar outros modos de

vida diferentes. Se o sacerdote decidiu livremente ser pobre, os fiéis e a comunidade

política não são obrigados a tomar a mesma decisão.

BBooaavveennttuurraa,, ccff.. SSOOUUZZAA,, 11999944,, pp.. 222255;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 224422.. DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 6666:: ““AA MMaarrssiilliioo nnoonn ppiiaaccee ttrrooppppoo ll’’iiddeeaa ddii CCrriissttoo cchhee ssii ccoonnffoorrmmaa aallllaa nnoossttrraa iinnffeerrmmiittàà ccoonn iill rriisscchhiioo ddii ffaarrssii pprroopprriieettaarriioo.. NNeessssuunn dduubbbbiioo cchhee eeggllii ffoossssee ccoonnddeesscceennddeennss,, mmaa ppeerr aammmmiirraarree ee cceelleebbrraarree llaa ssuuaa mmiisseerriiccoorrddiiaa nnoonn ddoobbbbiiaammoo ddiissccoossttaarrccii ddaall VVaannggeelloo,, cchhee ccee lloo pprreesseennttaa sseemmpprree ppoovveerroo””.. 118866 DDPP,, IIII,, 1133//3377,, pp.. 337777.. DDPPaacciiss,, IIII,, 1133//3377,, pp.. 224411:: ““QQuuoonniiaamm nnoonn sseeqquuiittuurr:: CChhrriissttuuss nnoonn ffuuiitt ccoonniiuuggaattuuss;; eerrggoo ssttaattuumm ccoonniiuuggaattoorruumm vviissuuss ffuuiitt ddaammnnaarree;; ssiimmiilliitteerr eett iinn rreelliiqquuiiss.. NNaamm iippssee ssuuffffffiicciieenntteerr eexxpprreessssiitt ddiiffffeerreennttiiaamm iinntteerr eeaa qquuaaee ssuunntt ddee nneecceessssiittaattee ssaalluuttiiss ffiieennddaa vveell oommiitttteennddaa,, pprraaeecceeppttaa vveell pprroohhiibbiittaa,, eett eeaa qquuaaee nnoonn ssuunntt ddee nneecceessssiittaattee ssaalluuttiiss,, aappuudd ssaannccttooss vvooccaattaa ssuuppeerreerrooggaattiioonniiss””.. 118877 CCff.. DDPP,, IIII,, 1133//3377,, pp.. 337788.. 118888 CCff.. eessppeecciiaallmmeennttee MMtt 1199,, 1177--2211.. CCff.. ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 1133//3377,, pp.. 337788..

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Os verdadeiros sacerdotes não estabelecem regras para a sua corporação que sejam

também aplicadas na comunidade perfeita dos crentes. Ser perfeito não é ser legislador.

Para Marsílio, se alguém deseja livremente fazer parte dessa corporação, siga as suas

regras, mas não as transforme em obrigação para os fiéis que não pretendem ser perfeitos.

De fato, tais regras estabelecem um caminho íngreme e estreito para se alcançar a

perfeição. Por causa disso, poucos escolhem percorrê-lo. “Dizei-me, pergunta Marsílio, vos

pedimos: quantos são atualmente os mártires por opção, quantas são as pessoas heróicas,

quem procede como Catão, Cipião ou Fabrício?”189

Vale notar a inclusão desses três aristocratas romanos na comunidade seleta dos

“mártires por opção”. Catão (234-149 a.C), o Censor, era conhecido como uma pessoa

austera e moralista; combateu o luxo de Roma e mostrou o perigo que a prosperidade de

Cartago representava para a República. Cipião (236-183 a.C), o Africano, general romano,

homem das letras e das armas, admirado por Cícero, derrotou Aníbal, general cartaginês, na

famosa batalha de Zama em 202 a.C; ajudou a construir o Império e, acusado injustamente

de ter aceitado suborno de Antíoco III, exilou-se na Espanha onde veio a falecer. Fabrício

Luscino morreu aproximadamente em 278 a.C, era um cônsul romano conhecido por sua

simplicidade e integridade. Três modelos da República, segundo o paduano, que deram

exemplo de cidadãos corretos, austeros e patriotas. Viveram antes da manifestação da

Verdade e sacrificaram suas vidas em favor da comunidade perfeita. Assim como poucos

decidem fazer esse tipo de sacrifício, nem todos os crentes dispõem de seus bens materiais

a fim de viver a perfeição cristã.

No caso da república cristã, vários fiéis são tidos como sucessores de Cristo, mas

não são simples, nem íntegros, nem cidadãos leais. Para Marsílio, muitos ministros do

Evangelho, os bispos ou presbíteros, que se dizem imitadores do seu Mestre e formam,

portanto, a comunidade dos perfeitos, alegam que “é lícito aos perfeitos guardar bens

temporais para suprir suas necessidades futuras”190. Recorrem às Sagradas Letras para

afirmar que Cristo e os Apóstolos eram pessoas prevenidas que guardavam dinheiro e

118899 DDPP,, IIII,, 1133//3399,, pp.. 337799.. PPIINNCCIINN,, 11996677,, pp.. 9988:: ““SSee mmii cchhiieeddeerraannnnoo cchhii ppuuòò eesssseerree ccoossìì ppeerrffeettttoo ddaa oosssseerrvvaarree uunnaa ttaallee ppoovveerrttàà –– ccoonncclluuddee ll’’aauuttoorree [[MMaarrssiilliioo]] ––,, iioo ddiiccoo cchhee qquueessttaa hhaannnnoo vvoolluuttaa CCrriissttoo ee ppoocchhii aallttrrii:: llaa vviiaa aarrttaa eesstt eett aanngguussttaa ee ppoocchhii eennttrraannoo ppeerr qquueessttaa.. EE ssuubbiittoo,, ppoorrttaannddoo eesseemmppii ddii ‘‘ssuuooii’’ eerrooii:: ddeell rreessttoo ddiimmmmii ttuu qquuaannttii ssiiaannoo iinn qquueessttii tteemmppii ii mmaarrttiirrii vvoolloonnttaarrii,, qquuaannttii ggllii uuoommiinnii eerrooiiccii,, qquuaannttii ii CCaattoonnii,, ggllii SScciippiioonnii ee FFaabbrriizzii””.. 119900 DDPP,, IIII,, 1144//11,, pp.. 338800..

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possuíam a propriedade sobre esses bens. Sem a “possessão”, alegam, poderiam ficar

desimpedidos de cumprir um de seus deveres: a hospitalidade. Como poderiam,

questionam, hospedar as pessoas, se não tivessem residências? Como lhes ofereceriam

comida, se prescindissem da terra e da despensa? Se vivessem na austeridade, como

garantiriam o futuro da pregação da Palavra? Quem os sucederia no ministério, se

deixassem de ser proprietários?

Apresentam outros argumentos a seu favor. Afirmam que se uma pessoa livra a

outra da morte, ela é o seu senhor e, por isso, fica com os seus bens. Igualmente, Cristo

resgatou todos os homens da morte; portanto, todas as suas coisas pertencem ao Senhor.

Argumentam também que o Apocalipse [19, 16] refere-se a Cristo como “Rei dos reis e

Senhor dos senhores”. O rei ou o senhor é a pessoa que tem a propriedade sobre os bens

materiais. Cristo, pois, foi proprietário e, por conseguinte, devem sê-lo também os seus

ministros191.

Esses argumentos podem ser estruturados numa forma logicamente válida, mas não

são sólidos. Possuem premissas falsas – como é o caso da tese de que Cristo, ao resgatar a

pessoa da morte, fica com seus bens192. Os seus formuladores também desconhecem, ou não

querem conhecer o verdadeiro significado do voto de pobreza e as suas efetivas

implicações. Marsílio também recorre às Sagradas Letras e textos dos Santos para provar

que a opção pela pobreza virtuosa traz, inevitavelmente, muitos desafios. A Epístola aos

Romanos [8, 18] fala do sofrimento devido às privações a que o fiel perfeito está sujeito.

Santo Ambrósio diz o mesmo: “Uma glória semelhante às vossas tribulações vos será dada

119911 CCff.. eessppeecciiaallmmeennttee DDPP,, IIII,, 1144//55,, pp.. 338844.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 224444:: ““EEmm eeffeeccttoo,, llaa iiddeeaa ddee ddoommiinniiuumm ssoobbrree bbiieenneess tteemmppoorraalleess eerraa uunn aarrgguummeennttoo ffuunnddaammeennttaall eenn eell pprrooggrraammaa qquuee llaa CCuurriiaa pprreetteennddííaa jjuussttiiffiiccaarr eenn llooss ddeerreecchhooss ddee CCrriissttoo ddeerriivvaaddooss ddee llaa rreeddeenncciióónn ddee llaa hhuummaanniiddaadd ((......))””.. AA sseegguunnddaa ppaarrttee ddoo SSoobbrree oo PPooddeerr EEcclleessiiáássttiiccoo,, ddee EEggííddiioo RRoommaannoo,, ttrraattaa ddoo ““ppooddeerr ddaa IIggrreejjaa eemm rreellaaççããoo ààss ccooiissaass ccoorrppoorraaiiss””.. EEggííddiioo ffoorrmmuullaa oo aarrgguummeennttoo ddaa rreeddeennççããoo ddaa sseegguuiinnttee ffoorrmmaa:: ““aassssiimm ccoommoo ttooddaass aass ppoosssseess ddeevveemm sseerr ttrriibbuuttáárriiaass àà IIggrreejjaa,, aassssiimm ttooddooss ooss ppoossssuuiiddoorreess ddeevveemm ssêê--lloo.. CCoommoo ooss ffiiééiiss ppeellaa IIggrreejjaa ffoorraamm rreemmiiddooss ddoo ppooddeerr ddoo ddiiaabboo,, ddeevveemm rreeccoonnhheecceerr qquuee ssããoo sseerrvvooss ppeerrtteenncceenntteess àà IIggrreejjaa;; ee ppoorrqquuee oo sseerrvvoo lluuccrraa eemm bbeenneeffíícciioo ddoo sseeuu sseennhhoorr,, ddeevveemm rreeccoonnhheecceerr qquuee aa ssaannttaa MMããee IIggrreejjaa éé sseennhhoorraa ddeelleess,, ddaass ccooiissaass qquuee ttêêmm ee ddaass qquuee lluuccrraamm,, ssããoo rreemmiiddooss ppeellooss ssaaccrraammeennttooss ee iisseennttooss ddaa sseerrvviiddããoo ddoo ddiiaabboo”” ((RROOMMAANNOO,, 11998899,, pp.. 112299)).. 119922 CCoonnttrraa eessssaa tteessee nnoottaa DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 7744:: ““MMaarrssiilliioo ffaa oosssseerrvvaarree cchhee ll’’aasssseerrzziioonnee,, aassssoolluuttaammeennttee ppaarrllaannddoo,, nnoonn ccoorrrriissppoonnddee aall vveerroo nneeppppuurree sseeccoonnddoo llee lleeggggii cciivviillii.. CChhii rreeddiimmee uunnoo,, nnoonn ddiivviieennee aauuttoommaattiiccaammeennttee ssuuoo ppaaddrroonnee:: ppuuòò iinnffaattttii rriinnuunncciiaarree aadd eesssseerrlloo.. ÈÈ iill ccaassoo ddii CCrriissttoo,, cchhee aappppuunnttoo –– ccoommee ssaappppiiaammoo –– rriiffiiuuttòò ooggnnii ppoosssseessssoo tteerrrreennoo,, ssiiaa iinn rriiffeerriimmeennttoo aallllee ppeerrssoonnee ssiiaa iinn rriiffeerriimmeennttoo aallllee ccoossee cchhee qquueessttee hhaannnnoo.. PPiiùù pprreecciissaammeennttee ee rraaddiiccaallmmeennttee aannccoorraa:: llaa rreeddeennzziioonnee ooppeerraattaa ddaa CCrriissttoo hhaa uunn ssuuoo ssiiggnniiffiiccaattoo ssppiirrttuuaallee;; llaa ssii ddiissttoorreeccee eedd aavvvviilliissccee,, aalllloorrcchhéé llaa ssii aabbbbaassssaa aadd uunn lliivveelllloo eeccoonnoommiiccoo--ppoolliittiiccoo””..

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em recompensa”193. Provérbios [19, 4] alerta para o distanciamento dos amigos que a

pessoa, antes da profissão do mencionado voto, tinha conquistado194.

Sabemos que, para Marsílio, as pessoas que observam a perfeição cristã, qualquer

fiel investido de uma ordem sacra, “(...) devem se contentar apenas com o sustento

quotidiano e com as roupas necessárias (...)”195. Adquirem esses pouquíssimos recursos

através das doações dos fiéis, desde que estes tenham condições materiais. Os ministros do

Evangelho vivem como mendicantes: pedem com deferência, àqueles que recebem a

Palavra, o alimento quotidiano e o vestuário. Quando defende a mendicância virtuosa para

os sacerdotes, o paduano não demonstra interesse em participar da disputa franciscana

acerca da pobreza. Embora suas idéias sobre a “sublime pobreza” sejam próximas ao “uso

pobre” dos Espirituais, ele não levanta a bandeira dos partidos envolvidos na querela.

O DP não faz menção, direta ou indiretamente, à Regra, de São Francisco,

referência obrigatória nos escritos franciscanos sobre a pobreza religiosa196. Não fica do

lado dos Espirituais, pois não se importa com a eclesiologia do joaquimismo e a questão do

usus pauper abordada por Olivi, assuntos que eles valorizavam197. Nem se posiciona a favor

da facção moderada da Comunidade, já que esta sustenta teses que, para ele, são falsas: a

Igreja tem um único chefe, o Bispo de Roma e ela tem o direito de propriedade (quando

afirma que ela é a “proprietária” dos bens doados aos Frades Menores).

Portanto, a mendicância virtuosa a qual atribui Marsílio aos sacerdotes não

encontra eco nas facções franciscanas que debatiam a questão da pobreza absoluta. A

sublime pobreza no DP, “(...) não é a bandeira de uma Ordem ou de uma vanguarda

espiritual, mas um princípio necessário para eliminar a pressão temporal da Igreja e obter o

correto funcionamento das partes da civitas”198. Quando Marsílio diz que a única lei que

determina os fiéis de fazerem a doação é a divina, ele visa atacar o clero e o Papa que

fazem exigências infundadas aos crentes.

119933 AAppuudd DDPP,, IIII,, 1133//2255,, pp.. 336688.. AA rreessppeeiittoo ddaa ppaassssaaggeemm ddee RRmm 88,, 88,, ccff.. DDPP,, IIII,, 1133//2255,, pp..336688.. 119944 CCff.. DDPP,, IIII,, 1133//2255,, pp.. 336688.. 119955 DDPP,, IIII,, 1144//66,, pp.. 338855.. 119966 CCff.. LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 333333;; AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 223399.. 119977 SSoobbrree aa iinnfflluuêênncciiaa ddoo eessppiirriittuuaalliissmmoo eexxaallttaaddoo ddoo aabbaaddee cciisstteerrcciieennssee JJooaaqquuiimm ddee FFiioorree nnaa ffaaccççããoo ddooss EEssppiirriittuuaaiiss ee aa qquueessttããoo ddoo uussuuss ppaauuppeerr nnoo ppeennssaammeennttoo ddee OOlliivvii,, uumm llííddeerr eessppiirriittuuaall rreessppeeiittaaddoo,, ccff.. FFAALLBBEELL,, 11999955,, rreessppeeccttiivvaammeennttee pppp.. 4499--7777 ee 112255--114455.. 119988 ““((......)) nnoo eess llaa bbaannddeerraa ddee uunnaa OOrrddeenn oo ddee uunnaa vvaanngguuaarrddiiaa eessppiirriittuuaall,, ssiinnoo uunn pprriinncciippiioo nneecceessaarriioo ppaarraa eelliimmiinnaarr llaa pprreessiióónn tteemmppoorraall ddee llaa IIgglleessiiaa yy llooggrraarr eell ccoorrrreeccttoo ffuunncciioonnaammiieennttoo ddee llaass ppaarrtteess ddee llaa cciivviittaass”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 224433))..

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Segundo o paduano, a Nova Lei é clara: os próprios fiéis encarregam-se

espontaneamente de lhes oferecer a alimentação e o vestuário decente, “(...) visto que é

oportuno que determinado povo tenha um ministério específico do Evangelho e dos

sacramentos”199. A lei civil não os obriga, afirma Marsílio, de doar “(...) aos pregadores do

Evangelho parte alguma de seus rendimentos, seja o dízimo ou outra qualquer”200.

Igualmente, a lei divina não declara que os crentes devem contribuir no sustento dos

ministros, caso contrário sofrerão sanções penais na vida futura. A esse respeito, o paduano

lembra as seguintes palavras do Apóstolo: “cada um dê como dispôs em seu coração, sem

pena nem constrangimento”201.

Caso o Pregador exerça o seu ofício entre os pobres, onde não há recursos materiais,

ele deve buscar uma maneira, honesta e coerente com o seu estado, de conseguir o seu

sustento. Se tiver formação intelectual ou em outro ofício, pode, por exemplo, exercer o

magistério ou alguma atividade artesanal. Para Marsílio, os primeiros pregadores, como o

Apóstolo, procuraram trabalhar para não ser um peso entre os pobres. Com o tempo, porém,

os ministros da Palavra passaram a receber alguma fonte de renda, em bens móveis e

imóveis, podendo “(...) se sustentar suficientemente, ou melhor, muito bem”202.

De fato, receberam muitos bens materiais, com o propósito de lhes garantir o

sustento. Porém, devem ser perfeitos. Como resolver esse problema? O paduano o

soluciona da seguinte maneira: se almejam a perfeição evangélica, devem abrir mão da

propriedade sobre esses bens que os fiéis, no passado, lhes doaram. Quem assume a

propriedade sobre os bens materiais eclesiásticos é o legislador ou alguns delegados

escolhidos por ele ou os particulares que fizeram a doação. Esses indivíduos são os

“patronos das igrejas” 203.

São esses proprietários dos bens imóveis eclesiásticos que se encarregam da sua

administração para fins de “(...) interesses públicos ou comuns e para a defesa da

comunidade”204. Se decidem reivindicá-los, aliená-los ou utilizá-los em benefício próprio,

violam, não só a lei divina, mas também a civil, uma vez que esta os incumbiu de proteger

119999 DDPP,, IIII,, 1144//99,, pp.. 338899.. 220000 DDPP,, IIII,, 1144//77,, pp.. 338866.. 220011 22CCoorr 99,, 77.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1144//1100,, pp.. 339900.. 220022 DDPP,, IIII,, 1144//77,, pp.. 338866.. 220033 CCff.. DDPP,, IIII,, 1144//88,, pp.. 338877.. 220044 DDPP,, IIIIII,, 22//2277,, pp.. 669966..

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o patrimônio eclesiástico contra a ação de gananciosos, defraudadores, vândalos e ladrões.

Portanto, esses patronos podem licitamente utilizar os bens eclesiásticos para ajudar os

pobres, sustentar e defender o Estado, sem a interferência do clero e sob o comando

coercivo do legislador humano205.

Há, porém, um caso excepcional em que os ministros do Evangelho podem guardar

uma determinada quantidade de bens básicos para o futuro: quando eles e o seu rebanho, a

comunidade de fiéis, estiverem dominados pela intranqüilidade. A guerra impossibilita a

atividade da pregação. Não há condições de os pastores exercerem o seu ministério na

instabilidade. Nesse sentido, eles precisam poupar as suas vidas para, depois de ter cessado

o conflito, voltar às suas atividades normais. A partir do momento em que a ordem se

restabelece na comunidade dos fiéis, os pregadores do Evangelho voltam a seguir a regra

comum da sua corporação “Não leves nada contigo”. Esta se aplica aos momentos de paz.

Nos casos de perseguição, onde faltam as condições satisfatórias para o funcionamento do

oficio ministerial, a utilização da regra geral implica a morte desnecessária dos mestres da

Verdade206.

Se Cristo conservara alguns bens, afirma Marsílio, era “(...) porque as condições do

momento e do lugar e outras mais assim o exigiam, ou ainda para ter com que ajudar os

pobres (...)”207. Em nenhum momento de seu ministério, Cristo pretendeu se tornar

proprietário de algum bem que tenha eventualmente guardado. Quando ele recebia um

objeto, não se tornava o seu proprietário. Igualmente, os perfeitos, os seus imitadores: eles

não têm propriedade sobre os bens que guardam para doação. Ao receberem de alguém um

objeto, eles não passam a ter a sua posse. O Estado se encarrega de administrá-lo e

controlá-lo.

Se os perfeitos, com o consentimento do príncipe, vendem o objeto doado com a

intenção de adquirir dinheiro para ser distribuído aos pobres, o seu comprador passa a ser

seu proprietário, embora os vendedores não o tenham sido. Alguém pode concluir que é um

absurdo acontecer que o comprador torne-se “proprietário” de algo que foi vendido pelos

perfeitos, uma vez que estes indivíduos não têm a “propriedade” sobre aquele bem. O

220055 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 224444:: ““LLeess ddrrooiittss ddeess ‘‘ppaattrroonnss ddeess éégglliisseess’’ ssoonntt ddoonncc rreeccoonnnnuuss,, ssoouuss rreesseerrvvee dduu ccoonnttrrôôllee dduu llééggiissllaatteeuurr eett dduu pprriinnccee,, qquuii vvéérriiffiieerraa qquuee lleess bbiieennss ssoonntt uuttiilliissééss ppoouurr ll’’eennttrreettiieenn ddeess mmiinniissttrreess eett llaa ssuusstteennttaattiioonn ddeess ppaauuvvrreess””.. 220066 CCff.. DDPP,, IIII,, 1144//1155,, pp.. 339933.. 220077 DDPP,, IIII,, 1144//1166,, pp.. 339944..

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paduano não vê absurdo aí. De fato, o bem vendido não tem dono privado, já que está nas

mãos de pessoas que, em função do estado de perfeição que almejam, não têm patrimônio.

Ocorre que a lei se encarrega de conceder o direito de propriedade sobre essas “coisas de

ninguém” aos indivíduos que possuem ou desejam ter patrimônio.

Por outro lado, se os perfeitos – em particular, os mestres da Palavra – compram

coisas, podem usá-las sem precisarem se tornar seus proprietários e sem violarem a lei civil

ou divina. Adquiriram legalmente o direito de utilizá-los. Contudo, não é impossível

imaginar uma situação em que a lei humana permite-lhes o “direito de propriedade”. Nada

impede que uma lei civil contrarie a divina. O direito civil, ao contrário do divino, não

considera ilícito o sexo fora do casamento. Em todo caso, se acontecer que o perfeito tenha

legalmente patrimônio, ele “(...) comete um pecado mortal, ao transgredir uma coisa

proibida pela lei divina, incorrendo também na condenação eterna”208.

Não esqueçamos que o perfeito não é proprietário das coisas materiais. Alguém

pode, porém, consumir um objeto sem ter sido seu dono? Marsílio, ao contrário de João

XXII, responde essa questão afirmativamente. Não há dúvida de que o perfeito, para comer

o peixe, precisa tê-lo em suas mãos. No entanto, a sua relação sobre o animal aquático, ou

sobre qualquer coisa material, distingue-se dos demais cidadãos no sentido de que ele fez

“(...) um voto explícito de nunca reivindicar nada perante um juiz investido com o poder

coercivo”209. Se alguém toma o peixe de suas mãos, ele não pode reivindicá-lo perante a

justiça civil. E se ele tem o peixe para comer, é porque o obteve sem coagir os fiéis.

Vamos supor a seguinte situação que mostra a relação do perfeito com a coisa

material fungível. O crente benevolente deu ao sacerdote o objeto consumível sem,

contudo, renunciar à propriedade. O imitador de Cristo, o seu ministro, pode usá-lo sem

causar violação à lei, civil ou divina. Ocorre que, a qualquer momento, ou o proprietário

pode exigir a sua devolução ou o príncipe pode licitamente se apropriar dele, contanto que

o presbítero não o tenha utilizado. Em todo caso, é evidente que o objeto fungível não faz

mais parte dos bens do fiel benevolente, nem do Estado, à medida que é consumido com o

seu uso, pois observa Marsílio, alguém não é proprietário de um bem material que, ao ser

usado por ele, “(...) deixa de existir, gradual ou progressivamente”210.

220088 DDPP,, IIII,, 1144//1199,, pp.. 339988.. 220099 DDPP,, IIII,, 1144//2200,, pp.. 440000.. 221100 DDPP,, IIII,, 1144//2200,, pp.. 440022..

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Não é verdade, portanto, que o “o uso de bens fungíveis sem propriedade é

impossível”211. Marsílio não tem dúvidas de que Cristo e os Apóstolos consumiram essas

espécies de objeto, já que precisaram ter o mínimo necessário para viverem e exercerem o

apostolado. Porém, não tinham a propriedade sobre essas coisas. Praticaram, pois, a

sublime pobreza. Igualmente, os sacerdotes, que têm o dever de serem perfeitos, fazem uso

das coisas fungíveis na condição de seu Mestre. Se eles precisam comer e se vestir, que não

morram de forme ou de frio! Se, na busca da perfeição, o Apóstolo recomenda-lhes o

cultivo da hospitalidade212, que não fiquem desanimados na falta de meios adequados!

Esse último imperativo merece um esclarecimento. Alguém pode equivocadamente

interpretá-lo no sentido de que o perfeito deve possuir residências para cultivar a

hospitalidade. No entanto, nada consta nos textos canônicos, segundo o paduano, que

Cristo tenha se cumulado de bens para manifestar o seu firme propósito de ser hospitaleiro.

Quando ele afirma “Apascenta minhas ovelhas” [João 21, 17], não recomenda aos seus

ministros que é necessário fazerem reservas para o futuro, com a finalidade de acolherem

os fiéis213. Ocorre que vários presbíteros argumentam que se eles devem ser hospitaleiros,

então é justificável a “propriedade” em seu ofício.

Mas, segundo Marsílio, os sacerdotes não possuem de direito os bens materiais que

dizem ter, embora devam cultivar a hospitalidade. O patrimônio que alegam possuir, na

verdade, é do governante civil. Se ele gera renda, é porque foi da vontade do príncipe ou do

Imperador ou de outro legislador civil, com a finalidade de custear as despesas de

conservação do templo, garantir a celebração do culto divino e sustentar minimamente os

ministros do Evangelho. As residências em que moram podem servir para hospedar os fiéis,

especialmente os indigentes, ou para outro propósito segundo a vontade do Estado. O fato é

que os membros do clero são simplesmente usuários desses bens e, porquanto não são seus

proprietários, não têm poder sobre eles.

Na visão do paduano, os falsos sacerdotes e bispos corrompem e ameaçam o destino

da civitas. Não se comportam efetivamente como mestres da Palavra; são incoerentes; não

guardam de fato o voto de pobreza; competem com o príncipe no julgamento dos fiéis; são

221111 ““uussee ooff ccoonnssuummaabbllee wwiitthhoouutt oowwnneerrsshhiipp iiss iimmppoossssiibbllee [[44]]”” ((PPaappaa JJooããoo XXXXIIII,, AAdd CCoonnddiittoorreemm,, 11999988)).. OO nnúúmmeerroo eennttrree ccoollcchheetteess rreeffeerree--ssee àà eeddiiççããoo ddee LLyyoonn ((11667711)) ddoo CCoorrppuuss iiuurriiss ccaannoonniiccii,, ddaa qquuaall KKiillccuulllleenn ee SSccootttt ssee sseerrvviirraamm,, jjuunnttaammeennttee ccoomm aa eeddiiççããoo ddee FFrriieeddbbeerrgg ((LLeeiippzziigg,, 11887799)),, ppaarraa aa ttrraadduuççããoo ddaa BBuullaa AAdd CCoonnddiittoorreemm.. 221122 CCff.. DDPP,, IIII,, 1144//2211,, pp.. 440022.. 221133 CCff.. DDPP,, IIII,, 1144//2211,, pp.. 440033..

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insubmissos ao governo civil; manipulam os fiéis com suas falsas doutrinas. Eles se

distanciaram da Verdade e ficaram cegos. Fecharam os olhos para a Revelação e a ciência

política. Veremos a seguir, segundo Marsílio, o que esta ciência nos tem a dizer acerca da

natureza da civitas.

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IIIIII.. AA CCIIVVIITTAASS DDEE MMAARRSSÍÍLLIIOO

Depois de conhecermos a concepção de Marsílio acerca do sacerdócio cristão,

vamos neste capítulo conhecer o seu pensamento a respeito da política, da comunidade

perfeita, a sua invenção e seus principais grupos sociais (1); da paz política e o

ordenamento dos ofícios (2); da lei na civitas (3); da sua parte preponderante e o melhor

regime de governo (4).

1. A invenção da comunidade perfeita e suas principais partes

Um dos capítulos do DP está voltado para as origens da comunidade política214.

Antes de tratar da invenção da civitas, da comunidade perfeita215, Marsílio analisa as formas

de associação pré-políticas que chegaram ao conhecimento humano através de Aristóteles,

“o mais ilustre dos filósofos”216. Inicialmente, a união entre o homem e a mulher constitui a

primeira associação de humanos, a partir da qual a espécie humana pôde se expandir. A sua

multiplicação permitiu que houvesse a construção de diversas habitações para as famílias.

O que ocasionou a formação da primeira comunidade, conhecida como aldeia ou povoado.

221144 CCff.. DDPP,, II,, 33,, pppp.. 7788--8811.. 221155 OO tteerrmmoo ““ccoommuunniiddaaddee ppeerrffeeiittaa”” ppooddee sseerr ssuubbssttiittuuííddoo ppoorr ““cciivviittaass””.. DDeeppooiiss qquuee GGuuiillhheerrmmee ddee MMooeerrbbeecckkee ttrraadduuzziiuu aa ppoolliiss aarriissttoottéélliiccaa ppoorr cciivviittaass,, ooss iinntteelleeccttuuaaiiss mmeeddiieevvaaiiss uuttiilliizzaarraamm--ssee ccoommuummeennttee ddeessssaa ttrraadduuççããoo.. MMaarrssíílliioo nnããoo éé uummaa eexxcceeççããoo aaoo ccoossttuummee ddee uussaarr aa vveerrssããoo llaattiinnaa ppaarraa ppoolliiss.. NNoo eennttaannttoo,, oo ppaadduuaannoo rreeccoorrrriiaa ggeerraallmmeennttee aa oouuttrraass eexxpprreessssõõeess ccoomm sseennttiiddoo iiddêênnttiiccoo,, ccoommoo ccoommmmuunniittaass ffiiddeelliiuumm oouu rreeggnnuumm.. NNeessssee ttiippoo ddee ccoommuunniiddaaddee ssóó hháá uumm ppooddeerr,, oo ddoo lleeggiissllaaddoorr hhuummaannoo.. BBeerrttii ccoonnccoorrddaa ccoomm GGeewwiirrtthh qquuaannddoo eessttee ““((......)) oosssseerrvvaa cchhee MMaarrssíílliioo uussaa iill tteerrmmiinnee rreeggnnuumm iinn sseennssoo ccoommpplleettaammeennttee nnuuoovvoo rriissppeettttoo aa ttuuttttii ii ssuuooii pprreeddeecceessssoorrii.. QQuueessttii,, iinnffaattttii,, iinntteennddoonnoo ssoolloo iill rreeggiimmee mmoonnaarrcchhiiccoo,, mmeennttrree MMaarrssíílliioo iinntteennddee qquuaallssiiaassii rreeggiimmee,, ppeerrcciiòò iill ssuuoo rreeggnnuumm,, sseeccoonnddoo iill GGeewwiirrtthh,, ddeevvee eesssseerree ttrraaddoottttoo ccooll tteerrmmiinnee mmooddeerrnnoo ddee ‘‘SSttaattoo’’”” ((BBEERRTTII,, 11997799,, pp.. 117700)).. AAllgguunnss eessttuuddiioossooss ddoo ppaadduuaannoo ttêêmm ddaaddoo ddiivveerrssaass ttrraadduuççõõeess ppaarraa ““cciivviittaass””:: ““eessttaaddoo””,, ““cciiddaaddee”” oouu ““ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa””.. HHáá qquueessttõõeess eennvvoollvveennddoo oo uussoo ddeesssseess tteerrmmooss nnoo DDPP qquuee nnããoo nnooss ccoommppeettee aaqquuii ddiissccuuttiirr.. AA eessssee rreessppeeiittoo,, ccff.. oo iinntteerreessssaannttee ccoommeennttáárriioo ddee AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 9900--9999.. 216 DP, I, 3/3, p. 79. Cf ARISTÓTELES. Política I, 2, 1252a 24 – 1253a 37; 12, 1259a 36 – 1260b 24, cuja parte trata da cidade e da família (cf. também WOLFF, 1999). Vale notar o significativo papel que Aristóteles exerce na Dictio I do DP. Como bem afirma C.W. Previté-Orton a esse respeito: “For Marsilius, Aristotle is almost infallible, as he was indeed to most students of the day. A quotation from Aristotle serves as the strongest of arguments; he is the supereminent of the philosophers; Marsilius never thinks of contradicting him. The Politics especially forms the foudation of the first book of the Defensor Pacis. (…) Marsilius takes Aristotle as the ‘master of those who know’, as the most perspicacious and encyclopedic of observers and the surest of reasoners, not as an utterer of revelations from behind the veil” (PREVITÉ-ORTON, 1935, p. 147).

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Enquanto na casa o mais velho exercia a autoridade, na aldeia a justiça como princípio de

equidade seria o regulador do coletivo.

O princípio da autoridade do mais velho não conseguiu resolver os conflitos e a

violência. A adoção da regra da equidade, por outro lado, pode ser considerada como um

fato decisivo para a permanência do indivíduo em sociedade e a conservação da espécie

humana. De fato, na casa, o chefe da família julgava segundo a sua vontade pessoal. Na

aldeia, um só indivíduo encarregava-se do julgamento de seus pares, porém o sentimento

pessoal não guiava essa sua ação, pois, a justiça política, consubstanciada no princípio de

equidade, fornecia-lhe a direção de seu governo.

Embora houvesse descoberto esse princípio norteador, as primeiras comunidades

careciam de uma estrutura social hierarquizada e regras fundamentais para o bom

desempenho da vida social. Um indivíduo exercia a função de governante e de pastor de

ovelhas217. Posteriormente, a experiência e a razão mostraram que, se alguém ocupava o

cargo político, não podia exercer outra função na civitas. A diferenciação e hierarquização

tornam-se uma característica da comunidade perfeita, do regnum que almeja o viver bem218.

Na cidade, os indivíduos procuram exercer alguma atividade que lhes proporciona

viver bem. Vemos aqui e acolá pessoas que se entregam a diversas ocupações em busca da

felicidade, constituindo grupos sociais, conjuntos de indivíduos diferenciados por sua

função e condição. Para Marsílio, é uma verdade a afirmação de que o fundamento da

cidade é o viver bem. Este pode se manifestar na realidade terrena ou na esfera espiritual.

Porém, por ser de discutível comprovação, a vida sobrenatural não mereceu importância

para os filósofos219. Dedicaram-se, então, a estudar o viver bem na vida terrena e

descobriram a sua relação intrínseca com a comunidade perfeita.

217 Influenciado pela cultura cristã da qual fazia parte, Marsílio menciona como exemplo Abraão. Interessante pensar que essa figura bíblica tenha representado o exercício do poder político e religioso, bem como se encontra situada na fase rudimentar da comunidade política. Ele, portanto, é considerado um modelo superado. 221188 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp..9999:: ““EEssttaa iiddeeaa ddee cciivviittaass rreeccttiiffiiccaa eell nnaattuurraalliissmmoo aarriissttoottéélliiccoo,, ppuueess nnoo eennttiieennddee eell ppaassoo ddee llaass ccoommuunniiddaaddeess pprriimmiittiivvaass oo pprree--ppoollííttiiccaass aa llaa cciivviittaass ccoommoo uunn pprroocceessoo nnaattuurraall,, ssiinnoo ccoommoo uunn ddeessccuubbrriimmiieennttoo hhuummaannoo,, pprroodduuccttoo ddee llaa eexxppeerriieenncciiaa yy ddeell eejjeerrcciicciioo ddee llaa rraazzóónn””.. OO nnaattuurraalliissmmoo aarriissttoottéélliiccoo ppooddee sseerr eenntteennddiiddoo aattrraavvééss ddoo sseegguuiinnttee rraacciiooccíínniioo:: aa nnaattuurreezzaa hhuummaannaa iimmppuullssiioonnaa ooss hhuummaannooss ppaarraa oo aapprriimmoorraammeennttoo ddee ssuuaass ffaaccuullddaaddeess;; oo aapprriimmoorraammeennttoo ddaass ffaaccuullddaaddeess hhuummaannaass ooccoorrrree aappeennaass nnaa ppoollííttiiccaa;; llooggoo,, aa nnaattuurreezzaa hhuummaannaa iimmppuullssiioonnaa ooss hhuummaannooss ppaarraa aa ppoollííttiiccaa.. 221199 EEssssaa éé aa ooppiinniiããoo ddoo pprróópprriioo ppaadduuaannoo.. AA eessssee rreessppeeiittoo,, ccff.. DDPP,, II,, 44//33,, pp.. 8833;; DDPPaacciiss,, II,, 44//33,, pp.. 1122..

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Igualmente, o paduano está convencido de que os seres humanos só conseguem

neste mundo viver de modo suficiente através da política. De fato, os seres humanos

criaram a comunidade perfeita para adquirir melhor os bens indispensáveis à sua existência.

No entanto, essa criação não ocorreu de forma instantânea. As suas partes foram surgindo e

se aperfeiçoando na medida em que a complexidade da vida social foi se tornando maior.

Elas passaram a ter funções definidas e a manter crescentemente comunicação entre si. As

suas funções, portanto, não são exercidas isoladamente. Elas se integram num único corpo,

o político.

As partes do corpo político adquirem a sua própria identidade a partir das funções

que exercem. Destacam-se a agricultura, o artesanato, as finanças, a força militar, o

sacerdócio e o principatus220. As três últimas constituem as partes mais nobres da cidade. O

governo, com todo o seu aparato, cuida do que é útil e justo ao bem comum. Ele regula as

ações humanas decorrentes das paixões egoístas. Estas, sem um poder regulador, trazem

conseqüências desastrosas para a comunidade política, na seguinte cadeia de seqüências:

discórdia, divisão e o desaparecimento da comunidade política. A força militar cuida do

cumprimento da lei e da segurança: impede a atuação de inimigos externos ou internos que

podem sujeitar os cidadãos à servidão, cuja condição opõe-se à natureza mesma da

comunidade política.

Quanto ao sacerdócio, a sua importância encontra-se no fato de que a religião – em

particular, a Nova Lei – cultiva o sentimento de benevolência, a esperança da vida eterna

para quem praticar o bem, e o medo do castigo divino para quem agir mal. Ora, segundo

Marsílio, esses aspectos são positivos, uma vez que favorecem o ordenamento da

comunidade política. “Por esse motivo, afirma o paduano, muitos conflitos e violências não

ocorreram nas comunidades, havendo, pois, no seu interior, a paz ou tranqüilidade, bem

como a vida suficiente almejada pelos seres humanos enquanto vivem neste mundo”221.

Portanto, o sacerdócio é um ofício de grande utilidade que não pode desaparecer na vida

dos cidadãos. Embora as religiões pré-cristãs não tivessem um conhecimento verdadeiro

222200 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 110044:: ““PPaarraa rreeffeerriirrssee aall ggoobbiieerrnnoo MMaarrssiilliioo eemmpplleeaa iinnddiissttiinnttaammeennttee ppaarrss pprriinncciippaannss yy pprriinncciippaattuuss eenn llaa ppaarrttee 11aa.. ddee EEll ddeeffeennssoorr ddee llaa ppaazz;; ppeerroo llaa eexxpprreessiióónn ppaarrss pprriinncciippaannss iirráá cceeddiieennddoo eell ppaassoo aa pprriinncceeppss,, ttéérrmmiinnoo qquuee ddeessiiggnnaa aall ggoobbeerrnnaannttee ddee mmooddoo ppeerrssoonnaall yy sseerráá mmááss ffrreeccuueennttee eenn EEll ddeeffeennssoorr mmeennoorr,, ddoonnddee ssee aapplliiccaa aall EEmmppeerraaddoorr””.. 221 DP, I, 5/10, p. 92.

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sobre Deus, elas orientavam os seus sacerdotes, cidadãos de boa reputação, a buscarem a

tranqüilidade222.

2. A paz da comunidade perfeita e o ordenamento de seus ofícios

Através da paz, os cidadãos conquistam a vida feliz e a liberdade. Com as

contendas, eles tendem a cair na servidão e transformam-se em humanos infelizes. Marsílio

compara a dissensão a uma terrível moléstia que contamina todo o organismo da

comunidade política. Na ausência de cura, a doença pode levá-lo à morte. Para combatê-la

devemos conhecer as suas causas. Em Aristóteles, segundo o paduano, podemos encontrar

a descrição das razões comuns da violência que ameaça a tranqüilidade social. No entanto,

veremos que, para Marsílio, nenhuma delas compara-se a uma causa desconhecida pelo

próprio autor da Política.

A respeito do significado de paz política, a partir de uma analogia com o estado de

saúde do corpo humano, Marsílio afirma que ela consiste no arranjo harmonioso das partes

do organismo político. Um corpo saudável possui seus órgãos em perfeito estado de

conservação e funcionamento. Cada qual exerce regularmente as suas funções vitais. O

contrário da felicidade social assemelha-se a um corpo doente cujo mau funcionamento de

suas partes interfere na boa disposição do conjunto. Ghisalberti tem razão quando diz que,

para o paduano, “a discórdia, como situação de não-paz, é assimilada à doença, como

disposição viciada, desequilibrada das partes do organismo animal”223. Um membro, ou

parte, danificado prejudica todo o corpo.

Cada grupo social exerce a sua atividade em benefício do corpo, da comunidade

política e, por isso, ela está submetida às leis civis. Se os membros de um grupo atuam

contrariamente às suas funções habituais e públicas, eles colocam em risco a estabilidade da

civitas. Os seus membros devem, pois, ser bem escolhidos. No caso do sacerdócio pré-

cristão, a seleção obedecia aos seguintes critérios: candidatos tinham que ter uma

222222 AA rreessppeeiittoo ddaa ooppiinniiããoo ddee MMaarrssíílliioo,, sseegguunnddoo aa qquuaall aass rreelliiggiiõõeess pprréé--ccrriissttããss ccaarreenncciiaamm ddoo ccoonnhheecciimmeennttoo vveerrddaaddeeiirroo ssoobbrree DDeeuuss,, ccff.. DDPP,, II,, 55//1144,, pppp.. 9933--9944;; DDPPaacciiss,, II,, 55//1133,, pp..2211.. PPaarraa oo ppaadduuaannoo,, ooss aaddeeppttooss ddeessssaass rreelliiggiiõõeess sseegguuiirraamm oo iinnggeenniiuumm hhuummaannuumm oouu ooss ffaallssooss pprroopphheettaass oouu ooss ddooccttoorreess eerrrroorruumm.. 222233 ““LLaa ddiissccoorrddiiaa,, ccoommee ssiittuuaazziioonnee ddii nnoonn--ppaaccee,, èè aassssiimmiillaattaa aallllaa mmaallaattttiiaa,, ccoommee ddiissppoossiizziioonnee vviizziiaattaa,, ssqquuiilliibbrraattaa ddeellllee ppaarrttii ddeellll’’oorrggaanniissmmoo aanniimmaallee”” ((GGHHIISSAALLBBEERRTTII,, 11999900,, pp.. 7700))..

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disposição para dominar as paixões egoístas e, de preferência, fossem “(...) cidadãos

zelosos e estimados por todos que haviam exercido antes os ofícios militar, judiciário ou no

conselho, e tinham deixado de exercê-los por causa de sua idade provecta”224.

Mas, coloca-se a questão: esses critérios continuam válidos após o advento do

cristianismo, o qual instituiu o verdadeiro sacerdócio? Marsílio responde afirmativamente,

pois, na verdadeira religião, deve haver indivíduos encarregados de ensinar os preceitos da

lei cristã evangélica. Ora, apenas cidadãos com autodomínio e reconhecimento da

comunidade política estão em condições de instruir e educar os seus pares acerca da vida

futura, revelada pelo verdadeiro Deus. São indivíduos que não se deixaram vencer por

sentimentos egoístas ou que dedicaram suas vidas em alguma atividade de notável interesse

público, como a segurança e as ocupações do governo civil.

Os verdadeiros sacerdotes não apenas observam exemplarmente a lei divina em

vista da bem-aventurança no outro mundo. Eles são doutores da Lei Evangélica e ministros

dos sacramentos cristãos. A Lei de Cristo, conhecida também como Lei da Graça, mostra

aos humanos, que buscam sentido para as suas vidas, como podem obter a salvação eterna.

Coube ao Filho de Deus a tarefa de instituí-la para dar-lhes a oportunidade de se libertarem

do pecado original. “A Lei Evangélica, diz Marsílio, é assim denominada, porque, se a

observarmos e recebermos os sacramentos que nela e por ela foram instituídos, obteremos a

graça divina que nos fortalece”225. É a expressão maior e acabada da fé que se manifestou

no momento oportuno, muito tempo depois da queda da humanidade. Constitui o remédio

perfeito que revela o valor do perdão divino. Merecem a felicidade eterna tanto os crentes

que a observam quanto aqueles que a precederam e seguiram os primeiros preceitos.

A Lei Evangélica revela a felicidade eterna, tornando-se a expressão perfeita da fé.

Nem por isso deixa de ter valor para o bem viver neste mundo, na comunidade política.

Sabemos que ela, na visão de Marsílio, constitui o núcleo do ofício sacerdotal de instruir e

educar os fiéis (cf. II.2). O seu valor para a comunidade política reside, porém, em acolher

“todas as doutrinas moderadoras dos atos humanos”226, cujo principal instrutor ou educador

foi Aristóteles. Vale notar o seu duplo papel de educar o humano para a vida futura (a

eternidade) e para a atual (a comunidade política).

224 DP, I, 5/13, p. 93. 225 DP, I, 6/4, p. 98. 226 DP, I, 6/9, p.99.

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Por outro lado, essa dupla função não sobrepuja a do guardião da constituição das

leis da comunidade política. Marsílio o denomina de governante ou conselho. Encontra-se

acima dos demais ofícios e forma o governo temperado quando a sua atividade se volta

para a vida suficiente, segundo a vontade dos cidadãos. Quando toma a direção contrária –

o egoísmo –, ele torna-se um governo corrompido. O paduano descreve os dois gêneros e,

na esteira de Aristóteles, estabelece sua classificação227. Ele mostra uma característica

comum a todas as espécies de governo temperado: a vontade ou consenso dos súditos

ocupam o primeiro plano nas decisões do governante. Este elemento deu origem a cada

uma delas.

No caso específico da monarquia real, tenha o monarca ocupado o trono através da

eleição ou não, ela se fundamenta na vontade e consenso dos súditos, e estabelece leis civis

favoráveis ao bem comum dos cidadãos. Porém, entre a monarquia real eletiva ou a não-

eletiva, qual é a melhor? Marsílio faz opção pela primeira. Segundo ele, na eletiva, os

cidadãos têm mais consciência de seus direitos e o monarca governa com atenção maior ao

bem público228. O que nos chama a atenção não é o fato de ele ter defendido a monarquia

eletiva, mas por ter apresentado um aspecto na sua argumentação a favor desse regime que

será retomado em suas reflexões sobre a lei na comunidade política, com o propósito de

atacar a plenitude do poder papal: a valoração da vontade dos súditos. Veremos a seguir

que Marsílio faz da vontade do conjunto dos cidadãos um elemento fundamental da lei229.

227 A respeito dos diferentes regimes políticos, cf. DP, I, 8, pp. 104-106; ARISTÓTELES. Política III e IV, 1274b 29 – 1301a 14. 228 Apesar de Marsílio se declarar abertamente a favor da monarquia real eletiva, essa sua preferência não é convincente o suficiente para descartar a possibilidade de a república ser a melhor opção, uma vez que passagens do DP podem nos levar a concluir que essa espécie de governo temperado é a melhor alternativa – como, por exemplo, aquela em que o paduano afirma que, na república, cada cidadão, a seu modo, participa do governo, diferentemente dos outros regimes temperados (cf. DP, I, 8, pp. 104-106; I,.09, pp. 111-114). 222299 AA eessssee rreessppeeiittoo,, ppooddeemmooss lleerr eemm DDMM,, 11//44,, pp.. 3366:: ““AA lleeii hhuummaannaa éé uumm pprreecceeiittoo eessttaattuuííddoo ppeelloo ccoonnjjuunnttoo ddooss cciiddaaddããooss oouu ppoorr ssuuaa ppaarrttee mmaaiiss rreelleevvaannttee””.. CCff.. ttaammbbéémm DDPP,, IIIIII,, 33,, pp.. 770000:: ““CCoomm eeffeeiittoo,, qquuee oo pprriimmeeiirroo cciiddaaddããoo,, oouu aa ppaarrttee pprriimmeeiirraa ddoo rreeggiimmee cciivviill,, iissttoo éé,, oo pprríínncciippee,, ppoouuccoo iimmppoorrttaa ssee ffoorr aappeennaass uumm oouu ssee ffoorreemm mmuuiittooss,, ccoommpprreeeennddaa ((......)) qquuee ssoommeennttee aa eellee ccoommppeettee aa aauuttoorriiddaaddee ppaarraa ddiirriiggiirr ((......)) aa mmuullttiiddããoo ddooss ssúúddiittooss,, ppaarraa ccaassttiiggaarr aa ttooddooss,, ssee iissttoo ffoorr nneecceessssáárriioo,, mmaass eemm ccoonnssoonnâânncciiaa ccoomm aass lleeiiss eessttaabbeelleecciiddaass,, ee qquuee nnããoo ppooddee ffaazzeerr nnaaddaa ddiiffeerreennttee ddoo qquuee aass mmeessmmaass pprreecceeiittuuaamm,, eessppeecciiaallmmeennttee eemm ssee ttrraattaannddoo ddee aallggoo iimmppoorrttaannttee,, ee sseemm aa aannuuêênncciiaa ddoo lleeggiissllaaddoorr ee ddaa mmuullttiiddããoo qquuee llhhee eessttáá ssuubboorrddiinnaaddaa,, nneemm pprroovvooccaarr aa aammbbooss,, ppoorrqquuee éé nnaa vvoonnttaaddee eexxpprreessssaa ddoo lleeggiissllaaddoorr qquuee ssee eessttrriibbaamm aa aauuttoorriiddaaddee ee aa ffoorrççaa ddoo pprriinncciippaaddoo””..

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3. A lei na comunidade política

Posto que a comunidade política é uma sociedade humana legalmente organizada, o

estudo da lei é indispensável à sua compreensão. As leis humanas são fundamentais na

estruturação da civitas. Elas tratam do justo ou do útil, e do injusto ou do nocivo à

comunidade dos cidadãos. A partir dela, efetua-se o julgamento dos atos humanos. Se o

cidadão age corretamente neste mundo, é porque ele não se opôs às leis da vida presente, da

civitas. O bom cidadão, igualmente o governante, “(...) não pode agir arbitrariamente e à

margem das leis ao julgar ou fazer outras coisas”230.

As obrigações e costumes religiosos que ele assume para conquistar a vida depois

da morte não definem o que é justo para comunidade perfeita. Ele pode pensar

equivocadamente que o indivíduo correto é aquele que segue os mandamentos de Deus,

mas a verdade é que no interior do corpo político o justo é aquele que, distanciando-se de

seus sentimentos egoístas, segue as determinações da comunidade política referente ao

viver bem neste mundo. Essas determinações ordenam ou proíbem fazer certas coisas. Se

alguém não as obedece é punido. Constituem um tipo de regra que “(...) deve estar isenta de

qualquer motivo perverso, pois não é elaborada para favorecer a um amigo ou prejudicar a

um inimigo, mas para ter uma aplicação universal, quer dizer, a todo cidadão que age bem

ou mal”231.

A universalidade é, pois, um caráter determinante das leis que regulam a vida da

comunidade política. Se alguém se considera virtuoso por causa de sua religião e prescinde

da lei civil para viver é perigoso tanto quanto outra pessoa não-virtuosa que age também

por capricho próprio. Em nome da virtude moral, o indivíduo pode fazer justiça com as

próprias mãos e, com isso, trazer conseqüências negativas para a civitas, tais como:

inutilidade da lei, conflitos passionais, guerras e enfraquecimento da segurança. Ao

contrário, o julgamento de acordo com a lei distancia-se das paixões humanas, do amor e

do ódio. Se um juiz comete injustiça em sua atividade, a falha pode estar nele, e não na lei

justa. Ele pode ter agido por amor ou ódio, ou por ignorância. Essa falta, porém,

223300 DDPP,, IIIIII,, 33,, pp.. 770011.. 231 DP, I, 11/1, p. 120.

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desaparece, “(...) se reparada pela lei, porque nela está quase perfeitamente determinado o

que é justo ou injusto, útil ou pernicioso, no que se refere a todas as ações dos cidadãos”232.

Essa determinação da lei, porém, tem a sua marca no tempo. Não se fundamenta no

mundo supra-sensível. O contexto histórico dos cidadãos tem um papel decisivo na

formação do corpo legislativo. Toscano tem razão quando diz que, para o paduano, “uma

lei é válida apenas historicamente, devendo num certo momento ser alterada ou revogada

segundo a circunstância histórica”233. Esse processo de modificação ou anulação da lei é

gradual, constitui-se de etapas. Se o cidadão virtuoso, por exemplo, um religioso, afirmar

que a lei x é injusta, precisamos mostrar-lhe que a injustiça, caso seja comprovada pelos

fatos, é conseqüência da própria ação dos humanos. Deve-se, então, recorrer novamente à

experiência para dar a x o devido aprimoramento.

Nessa etapa encontra-se refletido todo aprendizado anteriormente adquirido a

respeito da justiça civil. Segundo o paduano, salienta Toscano, “(...) não é possível definir

uma lei de uma vez por todas. São necessárias várias gerações de homens para que o

conteúdo da lei se aperfeiçoe” 234. O aperfeiçoamento do corpo jurídico, em que o divino e

as paixões dão lugar à observação e contribuição dos cidadãos, proporciona à comunidade

política ter uma vida digna e segura. Quanto maior é a observação e a contribuição dos

indivíduos interessados, o saber aproxima-se cada vez mais da verdade. Esse é um fato que

leva qualquer crente esclarecido a concluir que “(...) se quisermos que as sociedades civis

estejam bem organizadas quanto ao que é justo e útil à cidade, é necessário legislar. Por

intermédio da lei, os julgamentos civis estão isentos da ignorância e da intenção escusa

daqueles que julgam”235.

Tomemos um caso comum na comunidade dos fiéis (cristãos). Sabemos que o

infrator da lei civil, o que cometeu alguma injustiça ou desordem, está sob uma única

jurisdição legítima para a qual se deve dirigir para ser julgado, com a finalidade de se fazer

justiça e restabelecer a ordem. Para Marsílio, o mestre da Palavra de Deus, o sacerdote, não

é melhor que o arquiteto ou músico quando comete algum crime. Ele é pior. Um presbítero

232 DP, I, 11/1, p. 121. 223333 ““UUnnaa lleeggggee èè vvaalliiddaa ssoolloo ssttoorriiccaammeennttee,, ddoovveennddoo pprreessttoo oo ttaarrddii eesssseerree aalltteerraattaa oo aabboolliittaa sseeccoonnddoo llee cciirrccoossttaannzzee ssttoorriicchhee”” ((TTOOSSCCAANNOO,, 11998811,, pp.. 9933)).. 223344 ““((......)) nnoonn èè ppoossssiibbiillee ddeeffiinniirree uunnaa lleeggggee uunnaa vvoollttaa ppeerr ttuuttttee.. SSoonnoo nneecceessssaarriiee ppiiùù ggeenneerraazziioonnii ddii uuoommiinnii ppeerrcchhéé iill ccoonntteennuuttoo ddeellllaa lleeggggee ssii ppeerrffeezziioonnii”” ((TTOOSSCCAANNOO,, 11998811,, pp.. 9922)).. 235 DP, I, 11/3, p. 124.

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infrator erra mais que qualquer leigo que viola a lei humana, pois o primeiro conhece

melhor o caminho do bem e, por isso, encontra-se em condição privilegiada para fazer boas

escolhas. A infração de um e de outro podem ser a mesma, mas o último recebe um castigo

menor em relação ao primeiro.

O paduano nos dá alguns casos de violação da lei humana, que podem envolver, não

só o leigo, mas também qualquer membro do clero: o adultério, a fraude, a heresia, o

insulto, a calúnia, a traição e o homicídio236. Todos eles são carnais e temporais, como

afirma o Apóstolo na 1ª. Carta aos Coríntios [3 e 9] e na Carta aos Romanos [15]. Mas são

muito mais, diz Marsílio, quando são cometidos pelos sucessores de Cristo, uma vez que o

sacerdote, através do “(...) seu mau exemplo, oferece [aos leigos] uma ocasião e uma boa

justificativa para agir mal”237. Essa influência negativa ocorre em todos os fiéis?

Certamente, não. Há fiéis inteligentes e maduros que não se iludem com o mau exemplo do

padre. Existem, porém, situações contrárias, em que as pessoas agem incorretamente,

porque são atraídas por paixões ou sentimentos enganadores. Nada impede, portanto, que

um fiel tome decisões irracionais e siga a atitude reprovável do sacerdote.

O cuidado com os atos que a pessoa realiza na assembléia de indivíduos legalmente

organizada é uma orientação importante para evitar a condenação futura, se eles violam a

Lei Evangélica; ou para impedir a pena presente, se transgridem alguma lei ou costume da

comunidade política. Mas qual é, de fato, a natureza desses atos? Marsílio estabelece

algumas classificações dos atos humanos. Inicialmente, divide-os em duas classes: a

primeira corresponde às ações controladas pela mente humana; e a segunda, às ações que

escapam desse controle. Nem todas as situações da vida humana demonstram que os seres

humanos têm controle sobre os seus atos, desejos ou sentimentos. Os lapsos que as pessoas

cometem são um exemplo (ao invés de alguém falar “Oi”, diz “Tchau”, etc). Não há como

impedi-los. Ao contrário, no primeiro agrupamento das ações humanas o indivíduo pode

impedir que determinados desejos ou sentimentos sejam atendidos. Ou seja, em relação aos

atos controlados, ele pode “(..) dispor a alma de tal modo que ela facilmente não execute ou

não receba ações (...)”238.

223366 CCff.. DDPP,, IIII,, 88//88,, pp.. 330000.. 223377 DDPP,, IIII,, 88//88,, pp.. 330011.. 238 DP, II, 7/3, p. 296.

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Os atos controlados são de dois tipos: ou podem ser executados no próprio agente

ou têm seu efeito produzido fora dele. O primeiro é conhecido por atos imanentes, como é o

caso dos sentimentos e pensamentos pessoais; o segundo, por transitivos, dos quais há

aqueles, de um lado, que prejudicam um ou mais indivíduos e, de outro, os que não causam

dano. Ao contrário da perseguição e do furto, as doações e as peregrinações são exemplos

de ações transitivas inofensivas239. Marsílio observa, porém, que esses atos controlados

submetem-se a um conjunto de hábitos e regras, “(...) segundo os quais eles são realizados

de maneira conveniente e apropriada, de modo que por seu intermédio são proveitosos tanto

para a obtenção da vida suficiente neste mundo, como para a consecução da outra, na

futura”240.

Ora, das regras que regulam os atos humanos, merecem atenção as que estabelecem

punição aos agentes que as transgridem. Esses fiéis são punidos ou no presente ou no

futuro. É o caso das leis civis que castigam os que praticaram atos transitivos danosos ao

viver bem; e da lei divina, dada por Cristo, que penaliza no outro mundo os atos

controlados dos fiéis praticados indevidamente na vida presente. Observa Nederman que,

para Marsílio, os atos transitivos são “o próprio objeto de regulamentação por parte das leis

e dos governantes da comunidade política”241; enquanto os atos imanentes, por serem

essencialmente internos, (...) não são suscetíveis de inspeção pública e controle; eles são

espirituais, no sentido de que não ultrapassam os limites da alma, por esse motivo são

invisíveis à observação humana e são conhecidos apenas por Deus 242.

Embora a lei divina trate de certos atos transitivos, como aqueles que envolvem o

pecado da luxúria, cabe à lei civil cuidar da sua regulamentação. Ambas as leis possuem

um princípio ativo que as anima, um sujeito que ativa o seu funcionamento. No que diz

respeito à lei divina, esse princípio ou sujeito é o juiz divino; e em relação à lei civil, é o

juiz humano. O primeiro julga os atos praticados contra o bem futuro, na vida eterna;

enquanto o segundo julga os atos humanos praticados contra a utilidade comum das

criaturas humanas nesta vida. Se, por exemplo, o sacerdote pratica um ato transitivo que

239 Cf. DP, II, 8/4, p.297. 240 DP, II, 8/4, p. 297. 224411 ““((......)) tthhee pprrooppeerr oobbjjeecctt ooff rreegguullaattiioonn bbyy tthhee llaawwss aanndd rruulleerrss ooff tthhee ppoolliittiiccaall ccoommmmuunniittyy”” ((NNEEDDEERRMMAANN,, 11999944,, pp.. 990077)).. 224422 ““((......)) aarree nnoott ssuusscceeppttiibbllee ttoo ppuubblliicc iinnssppeeccttiioonn aanndd ccoonnttrrooll;; tthheeyy aarree ssppiirriittuuaall iinn tthhee sseennssee tthhaatt tthheeyy ddoo nnoott ttrraannssggrreessss tthhee bboouunnddaarriieess ooff tthhee ssoouull,, hheennccee aarree iinnvviissiibbllee ttoo hhuummaann oobbsseerrvvaattiioonn aanndd aarree kknnoowwnn oonnllyy ttoo GGoodd”” ((NNEEDDEERRMMAANN,, 11999944,, pp.. 990077))..

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causa a intranqüilidade social e cria obstáculos para o desenvolvimento da vida suficiente,

ele torna-se um transgressor da lei humana.

Sabemos que, para Marsílio, o fato de o padre ser um ministro de Deus não lhe dá

imunidade para violar as regras coercivas da comunidade política. Para o paduano, se

tomamos como referência a Teologia, os textos da fé [cristã], o presbítero é uma criatura de

Deus que, como os demais seres humanos na civitas, submete-se ao governo civil. Se nos

baseamos na Filosofia – ou seja, em Aristóteles – é entendido como a matéria ou o sujeito,

o “paciente”, sobre o qual atua o seu agente apropriado, o príncipe, que foi instituído “(...)

para fazer justiça, com vista a restaurar a igualdade ou proporção necessária para manter a

paz ou tranqüilidade e a convivência ou associação comum dos homens, e finalmente para

alcançar a suficiência para a vida humana”243.

Não há, portanto, prerrogativa que livra os sacerdotes infratores do julgamento civil,

apesar de alguns se tornarem juiz sem o consentimento do legislador humano. Esses casos

de exceção, porém, ao invés de implicarem numa possível isenção jurídica, trazem

conseqüências desastrosas para o governo civil. A respeito de seus efeitos negativos,

vejamos a seguir um exemplo concreto que o paduano nos dá. O Papa Bonifácio VII toma

algumas medidas para governar a civitas, privando o príncipe, ao contrário do que a Lei

Evangélica ensina, de exercer o seu ofício. Duas dessas medidas consistem em desobrigar

dos deveres civis, como o pagamento de impostos, determinados grupos religiosos, e

incentivar muitos fiéis a receberem a tonsura244.

Ora, o aumento excessivo de clérigos e de privilégios a grupos religiosos pode

motivar o ingresso de muitos membros da comunidade política nas Ordens religiosas, com

a intenção de se verem livres, por exemplo, dos tributos. Se isso vir a ocorrer, poucos

pagariam os impostos necessários para garantir “(...) os benefícios e vantagens da vida

civil, como a paz e a proteção do legislador humano (...)”245. Mas, o que fazer para evitar

esse possível desastre do governo civil? O legislador, inicialmente, deve ser o superior de

todos os membros do clero; em seguida, deve controlar o número de ordenações sacerdotais

e de postulantes das Ordens religiosas, bem como as atividades concernentes ao seu ofício.

Medidas como essas impedem a realização de certos atos transitivos prejudiciais à

243 DP, II, 8/7, p. 299. 244 Cf. DP, II, 8/9, pp. 301-304. 245 DP, II, 8/9, p. 303.

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comunidade política; ou seja, conseguem evitar que grupos religiosos sejam capazes de

“(...) vir a se rebelar contra o seu poder coercivo, ou introduzir na vida pública de outra

maneira elementos perturbadores, ou ainda, por sua preguiça ou insolência, privar a cidade

ou o reino dos benefícios daquelas obras que se fizerem necessárias (...)”246.

Os tributos são necessários para garantir muitos benefícios à comunidade. Cristo

não pregou a sonegação. Exigiu, pois, de seus ministros que pagassem ao governo civil a

tributação devida. Essa exigência deve ser assumida, porém, não como algo feito sob

coação, mas como algo para o qual se mostra a “reverência devida”. Este termo Marsílio

tomou emprestado de São Bernardo para revelar a dignidade com que a tributação deve ser

aceita pelos membros da comunidade política. Cristo, afirma o paduano, “(...) quis pagar o

tributo, associando-se a Pedro dum modo especial, dentre os demais Apóstolos, ele que (...) ia ser o

principal mestre e pastor da Igreja, a fim de que, apoiando-se nesse exemplo, nenhum dos outros

pastores, mais tarde, se recusasse a pagar o tributo”247.

Em todo caso, independentemente do testemunho do Verbo encarnado, o fato é que

ser sacerdote, ou bispo, não desobriga o cidadão de pagar os seus empréstimos ou impostos

ou de ficar à margem da lei civil. O príncipe deve punir, por exemplo, a autoridade

religiosa que não devolve o que pediu emprestado, embora, para Marsílio, nada conste na

lei divina que Deus irá puni-la na outra vida porque ela deixou de honrar as suas dívidas248.

Não importa o motivo do calote: esquecimento, doença, ou outro obstáculo, não eliminam o

débito para com a justiça civil.

“Governar segundo a lei” equivale a “governar segundo a razão”. Essa equivalência

é de vital importância na constituição perfeita da comunidade política. A lei, afirma

Marsílio na esteira de Aristóteles, “(...) é a razão ou conhecimento sem a influência do

apetite, isto é, desprovida de qualquer sentimento”249. O governante justo baseia as suas

ações na lei e, ao fazer isso, age racionalmente. Ele não se apóia na fé, em sentimentos

religiosos, nem em interesses pessoais. A ordem jurídica, da qual toma como referência

para as suas decisões e ações racionais, está desvencilhada da ética subjetiva. Nem se

fundamenta no modelo idealizado de homem que nunca se abateu ante suas paixões. 246 DP, II, 8/9, p. 303. 247 DP, II, 4/10, p. 242. 248 Cf. DP, II, 10/7, p. 324. 249 DP, I, 11/4, p. 125. Nesse parágrafo 4, Marsílio menciona explicita e abundantemente Aristóteles. Por exemplo, a seguinte passagem da Política III, 16, 1287a 32: “A lei é, pois, a razão liberta de desejo” [p. 259 da ed. portuguesa].

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Para Marsílio, é falsa a idéia do governante que sempre resiste aos maus

sentimentos. Os seres humanos cometem atos transitivos incorretos, como é o caso

daqueles motivados pelo ódio e a avareza. O que não ocorre com a lei. Esta, como afirmou

Damiata em seu estudo sobre Marsílio, “não conhece paixões nem interesses, exceto os do

bem comum. Ignora simpatia e antipatia; inspira-se num critério geral que transcende o

facciosismo das discussões e a cegueira que encobre um juiz desprovido de controle”250.

Não faz sentido, portanto, para a razão, o ideal do homem virtuoso, irredutível às investidas

da paixão. Se o sacerdote é visto como a encarnação desse ideal, a comunidade política –

especialmente a que acolheu a Verdade – deve ter guardados em sua memória exemplos de

personagens bíblicos que eram considerados virtuosos, como os sacerdotes anciões em

Daniel 13, 28, mas que se renderam à paixão. A esse respeito questiona o paduano: “Por

isso, se os anciões e sacerdotes, de quem jamais se esperaria tal comportamento,

sucumbiram aos desejos da concupiscência, o que então pode acontecer com as outras

pessoas em geral, considerando-se, por exemplo, a cobiça e outras más inclinações a que se

está sujeito?”251.

De fato, Marsílio está convencido do destino trágico da comunidade política que

possui em seu governo um príncipe considerado bom, o qual se põe no lugar da lei252. Nessa

situação, não há como possa se realizar satisfatoriamente um bom governo. A comunidade

política que prescinde da lei (civil), não deposita confiança nela, torna-se insegura. A

experiência nos mostra, segundo o paduano, que o governante que exerce o seu poder à

revelia das leis constitutivas da comunidade política, tem pouca duração. Ao invés de ser

um defensor da paz, torna-se causador de discórdias e guerras253.

Exemplo de defensor da paz, longe de serem os personagens virtuosos das Sagradas

Escrituras, é Teopompo, que soube usar a prudência em consonância com a lei e, em

225500 ““((......)) nnoonn ccoonnoossccee ppaassssiioonnii nnéé iinntteerreessssii,, ssee nnoonn qquueelllloo ddeell bbeennee ccoommuunnee.. IIggnnoorraa ssiimmppaattiiee ee aannttiippaattiiee;; ssii iissppiirraa aadd uunn ccrriitteerriioo ggeenneerraallee cchhee ttrraasscceennddee llaa ffaazziioossiittàà ddeeii ccoonntteennddeennttii ee llaa cceecciittàà iinntteerreessssaattaa ddii uunn ggiiuuddiiccee pprriivvoo ddii ccoonnttrroollllii”” ((DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 9922)).. 225511 DDPP,, II,, 1111//66,, pp..112266.. 225522 MMaarrssíílliioo rreejjeeiittaa aa mmááxxiimmaa,, ddeeffeennddiiddaa ppoorr mmuuiittooss jjuurriissttaass,, ““MMeelliiuuss eesstt bboonnuuss rreexx qquuaamm bboonnaa lleexx”” ((AAppuudd KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 9955)).. CCoommoo ssaalliieennttoouu KKaannttoorroowwiicczz,, eellaa ““((......)) éé uummaa iinnvveerrssããoo ttoottaall ddoo qquuee AArriissttóótteelleess hhaavviiaa ddiittoo ee pprreetteennddiiddoo ddiizzeerr”” ((KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 9955)).. 225533 VVaallee nnoottaarr aa ddeessiiggnnaaççããoo qquuee EEggííddiioo RRoommaannoo aattrriibbuuii aaoo pprríínncciippee:: ““GGuuaarrddiiããoo ddaa JJuussttiiççaa””.. EEssttaa eexxpprreessssããoo ssee eennccoonnttrraa eemm ssuuaa iimmppoorrttaannttee oobbrraa DDee rreeggiimmiinnee pprriinncciippuumm,, ““eessppeellhhoo ddooss pprríínncciippeess”” ddee ggrraannddee cciirrccuullaaççããoo àà ééppooccaa ((ccff.. KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 9944)).. EEllaa aacceennttuuaa oo aassppeeccttoo mmaatteerriiaall ddaa lleeii,, eennqquuaannttoo oo DDPP ddáá êênnffaassee aaoo sseeuu aassppeeccttoo ffoorrmmaall..

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conseqüência, aumentou o tempo de seu governo254. A criação do corpo legislativo,

portanto, é inevitável, se a comunidade política pretende alcançar a tranqüilidade. Mas o

que gera esse corpo? Se este estabelece a medida reguladora das ações civis, dos atos

transitivos na civitas, os sacerdotes não são obviamente os responsáveis pela sua criação,

ou seja, eles não são os legisladores. Qual é a sua causa, ou quem é o legislador, então?

Marsílio, seguindo o Estagirita, responde:

“(...) é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte preponderante, por meio de sua escolha ou vontade externada verbalmente no seio de sua assembléia geral, prescrevendo ou determinando que algo deve ser feito ou não, quanto aos atos civis, sob pena de castigo ou punição tempora”255.

Passagem significativa que merece nossa atenção. Nela, encontramos formulado o

princípio da soberania popular: o povo é o alicerce do poder legislativo, ou seja, nas

palavras de García Cue, “o povo em seu conjunto é o legislator humanus, o qual não

representa uma parte da civitas, mas se identifica com ela mesma”256. Pilant afirma que “a

doutrina de Marsílio acerca do legislador humano é uma das mais centrais, se não a central

do ensinamento do Defensor Pacis”257. O povo ou o conjunto dos cidadãos é o legislador258.

225544 CCff.. DDPP,, II,, 1111//88,, pp.. 112288.. EEssssaa mmeennççããoo ddee TTeeooppoommppoo ppoorr MMaarrssíílliioo éé eexxttrraaííddaa ddee AARRIISSTTÓÓTTEELLEESS.. PPoolliittiiccaa VV,, 1111,, 11331133aa 2200--3300:: ““PPoorr ccoonnsseegguuiinnttee,, qquuaannttoo mmaaiiss rreessttrriittaa éé aa aauuttoorriiddaaddee ddoo rreeii,, ttaannttoo mmaaiiss tteemmppoo ddeevvee ppeerrmmaanneecceerr ffoorrççoossaammeennttee iinnttaaccttoo ttaall ccaarrggoo.. DDee ffaaccttoo,, eemm ttaall ccaassoo,, ooss rreeiiss ttoorrnnaamm--ssee mmeennooss ddeessppóóttiiccooss,, ccoomm hháábbiittooss mmaaiiss iiddêênnttiiccooss aaooss rreessttaanntteess cciiddaaddããooss ee mmeennooss ccaauussaaddoorreess ddee iinnvveejjaa aaooss ssúúbbddiittooss.. PPoorr eessssee mmoottiivvoo vviiggoorroouu aa rreeaalleezzaa dduurraannttee mmuuiittoo tteemmppoo eennttrree ooss MMoolloossssooss,, ee ddee iigguuaall ffoorrmmaa eennttrree ooss EEssppaarrttaannooss oonnddee oo ppooddeerr rrééggiioo ffooii iinniicciiaallmmeennttee ppaarrttiillhhaaddoo ppoorr ddooiiss cciiddaaddããooss.. MMaaiiss ttaarrddee TTeeooppoommppoo ttoommoouu mmeeddiiddaass ppaarraa aattrriibbuuiirr eessssaa aauuttoorriiddaaddee aa uumm ggrruuppoo ddee ééffoorrooss.. AAppeessaarr ddee pprriivvaarr aa rreeaalleezzaa ddoo sseeuu ppooddeerr,, aauummeennttoouu--llhhee aa dduurraaççããoo ddee mmooddoo qquuee,, eemm vveezz ddee llhhee ddiimmiinnuuiirr aa iimmppoorrttâânncciiaa,, ccoonnttrriibbuuiiuu ppaarraa aauummeennttáá--llaa””.. 225555 DDPP,, II,, 1122//33,, pp.. 113300.. DDPPaacciiss,, II,, 1122//33,, pp.. 113300:: ““((......)) eessssee ppooppuulluumm sseeuu cciivviiuumm uunniivveerrssiittaatteemm,, aauutt eeiiuuss vvaalleennttiioorreemm ppaarrtteemm ppeerr ssuuaamm eelleeccttiioonneemm sseeuu vvoolluunnttaatteemm iinn ggeenneerraallii cciivviiuumm ccoonnggrreeggaattiioonnee ppeerr sseerrmmoonneemm eexxpprreessssaamm,, pprraaeecciippiieenntteemm sseeuu ddeetteerrmmiinnaanntteemm aalliiqquuiidd ffiieerrii vveell oommiittttii cciirrccaa cciivviilleess aaccttuuss hhuummaannooss ssuubb ppooeennaa vveell ssuupppplliicciioo tteemmppoorraallii””.. CCff.. AARRIISSTTÓÓTTEELLEESS.. PPoollttiiccaa IIIIII,, 11,, 11227744BB 3388:: ““((......)) uummaa cciiddaaddee éé,, ppoorr aassssiimm ddiizzeerr,, uumm ccoommppoossttoo ddee cciiddaaddããooss”” [[pp.. 118855 ddaa eedd.. ppoorrttuugguueessaa]].. AARRIISSTTÓÓTTEELLEESS.. PPoollííttiiccaa IIIIII,, 22,, 11227766aa 44--55:: ““ddiisssseemmooss qquuee cciiddaaddããoo eerraa ttooddoo oo qquuee ppaarrttiicciippaa nnuummaa mmaaggiissttrraattuurraa iinnddeeffiinniiddaa [[pp.. 119911 ddaa eedd.. ppoorrttuugguueessaa]]””.. 225566 ““EEll ppuueebblloo eenn ssuu ccoonnjjuunnttoo eess eell lleeggiissllaattoorr hhuummaannuuss,, qquuee nnoo rreepprreesseennttaa aa uunnaa ppaarrttee ddee llaa cciivviittaass,, ssiinnoo qquuee ssee iiddeennttiiffiiccaa ccoonn eellllaa mmiissmmaa”” ((GGAARRCCÍÍAA CCUUEE,, 11998855,, pp.. 113300)).. NNaa mmeessmmaa ppaassssaaggeemm ddoo DDPP,, eennccoonnttrraammooss aa lliimmiittaaççããoo ddoo mmeenncciioonnaaddoo pprriinnccííppiioo:: oo ppooddeerr ssee aappóóiiaa nnoo ppoovvoo,, mmaass eellee éé eexxeerrcciiddoo ppeellaa vvaalleennttiioorr ppaarrss.. EEssttaa eexxpprreessssããoo ssuusscciittaa qquueessttõõeess iinntteerreessssaanntteess ccoommoo,, ppoorr eexxeemmpplloo,, ssaabbeerr ssee eellaa ssee rreeffeerree àà mmaaiioorriiaa qquuaannttiittaattiivvaa oouu qquuaalliittaattiivvaa.. AA eessssee rreessppeeiittoo,, ccff.. QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pppp.. 8833--9911;; GGAARRCCÍÍAA CCUUEE,, 11998855,, pppp.. 113300--113311;; AAZZNNAARR,, 22000077,,117777--118833.. 225577 ““MMaarrssiilliiuuss’’ ddooccttrriinnee ooff tthhee hhuummaann lleeggiissllaattoorr iiss oonnee ooff tthhee cceennttrraall,, iiff nnoott tthhee cceennttrraall tteeaacchhiinngg ooff DDeeffeennssoorr PPaacciiss”” ((PPIILLAANNTT,, 11999900,, pp.. 44448811)).. 225588 PPaarraa MMaarrssíílliioo,, oo ppoovvoo,, ppooppuulluuss,, ccoommpprreeeennddee ppoobbrreess ee rriiccooss,, mmééddiiccooss,, aarrtteessããooss ee ssaacceerrddootteess,, eennttrree oouuttrrooss ooffíícciiooss.. AAoo iinncclluuiirr oo cclleerroo nnaa ddeeffiinniiççããoo ddee ppoovvoo,, oobbsseerrvvaa PPiillaanntt,, ““((......)) MMaarrssiilliiuuss ddeessttrrooyyss tthhee aarrgguummeenntt tthhaatt cclleerrggyy aarree eennttiittlleedd ttoo aa sseeppaarraattee aanndd pprriivviilleeggeedd ttrreeaattmmeenntt”” ((PPIILLAANNTT,, 11999900,, pp.. 44449900))..

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Contudo, o poder legislativo é exercido pela parte ativa da comunidade perfeita, da qual

são escolhidas as pessoas mais prudentes e inteligentes para tratar das questões complexas

da legislação civil259. O fato de o povo ser menos preparado não implica que esteja excluído

do processo de elaboração do corpo de leis que são úteis à comunidade política. Ao

contrário, diz o paduano, as regras formuladas pelo grupo de cidadãos designados

transformam-se em lei civil depois de serem “(...) apresentadas à totalidade dos cidadãos

reunidos, os quais terão a incumbência de aprová-las ou recusá-las, e se lhes parecer que

algo deva ser acrescentado ou suprimido ou modificado ou ainda rejeitado totalmente,

poderão externar isso claramente (...)”260.

Tanto a assembléia geral quanto o grupo de cidadãos encarregados de formular a lei

procuram responder à seguinte pergunta: qual é a melhor constituição ou governo?261 Por

outro lado, na monarquia eletiva, a totalidade dos cidadãos transmite ao príncipe em forma

de “concessio limitada e revogável” o poder262. O príncipe deve ser eleito, mas a sua eleição

é realizada pela “parte ativa” da sociedade, a mesma que exerce a função legislativa263. Não

é verdade, portanto, que o Bispo de Roma, por mais que aparente a bondade e o cuidado

habituais em relação ao povo, tem autoridade para confirmar ou aprovar a eleição do

príncipe de Roma264. “Sobre a eleição, observa García Cue, Marsílio não encontra obstáculo

em apresentar como equivalentes os termos ‘legislador’ e ‘príncipe’, já que este recebe seu

título da vontade do povo” 265.

Não há, portanto, equivalência entre legislador humano e sacerdócio. O clero, e em

particular, o Papa, quando assume o papel da parte ativa ou do legislador, desestabiliza a

225599 EEssssaa ““ppaarrttee aattiivvaa”” nnããoo éé uummaa ppaarrttee aa mmaaiiss,, ssuuppeerriioorr,, ddaa ssoocciieeddaaddee,, mmaass ssee ccaarraacctteerriizzaa ppoorr sseerr uumm ccoonnjjuunnttoo ddee cciiddaaddããooss ddee ppaarrtteess ddiiffeerreenntteess qquuee vvaallee ttaannttoo qquuaannttoo aa cciivviittaass.. MMaarrssíílliioo,, ppoorréémm,, nnããoo nnooss mmoossttrraa ccllaarraammeennttee qquuaall éé aa rreellaaççããoo ddee pprrooppoorrççããoo eennttrree aa qquuaannttiiddaaddee ee aa qquuaalliiddaaddee ddooss eelleemmeennttooss ddeessssee ccoonnjjuunnttoo ((ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 117788--117799)).. 226600 DDPP,, II,, 1133//88,, pppp.. 114433--114444.. NNaa vveerrddaaddee,, ppoorr mmaaiiss qquuee sseejjaamm iinntteelliiggeenntteess ee pprruuddeenntteess,, aass ppeessssooaass eessccoollhhiiddaass nnããoo eessttããoo sseeppaarraaddaass ddoo ppooddeerr eeccoonnôômmiiccoo ee ssoocciiaall.. VVaallee oobbsseerrvvaarr ttaammbbéémm qquuee aa ffuunnççããoo ddee rreepprreesseennttaannttee ccoonnssiissttee bbaassiiccaammeennttee eemm sseerr aa rreevveellaaççããoo ddoo rreepprreesseennttaaddoo oouu aa rreeaalliizzaaççããoo ddoo qquuee eessttáá ccoollooccaaddoo vviirrttuuaallmmeennttee ppeellaa ppoollííttiiccaa,, mmaass nnããoo ccoonnssttaa ddee ttrraabbaallhhaarr eemm ffaavvoorr ddoo rreepprreesseennttaaddoo ((ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 117766--117777)).. 226611 CCff.. PPIILLAANNTT ((11999900)),, pp.. 44448877.. 226622 CCff.. GGAARRCCÍÍAA CCUUEE,, 11998855,, pp.. 113333;; KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pppp.. 7777--9999.. 226633 SSoobbrree aa eelleeiiççããoo ddoo mmoonnaarrccaa ee,, eemm ppaarrttiiccuullaarr,, ddoo pprríínncciippee ddee RRoommaa oouu IImmppeerraaddoorr,, ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp..119933--119999.. 226644 CCff.. DDPP,, IIII,, 2266//99,, pp.. 558811.. 226655 ““TTrraass llaa eelleecccciióónn,, oobbsseerrvvaa GGaarrccííaa CCuuee,, MMaarrssiilliioo nnoo eennccuueennttrraa iimmppeeddiimmeennttoo eenn pprreesseennttaarr ccoommoo eeqquuiivvaalleenntteess llooss ttéérrmmiinnooss ddee lleeggiissllaaddoorr yy pprríínncciippee,, yyaa qquuee ééssttee rreecciibbee ssuu ttííttuulloo ddee llaa vvoolluunnddaadd ddeell ppuueebblloo”” ((GGAARRCCÍÍAA CCUUEE,, 11998855,, pp.. 113344)).. OOuuttrrooss tteerrmmooss eeqquuiivvaalleenntteess aa ““lleeggiissllaaddoorr hhuummaannoo”” ccoomm ooss qquuaaiiss nnooss ddeeppaarraammooss nnoo DDPP:: uunniivveerrssiittaass cciivviiuumm,, lleeggiissllaattoorr hhuummaannuuss ffiiddeelliiss ssuupprreemmuuss ee IImmppeerraattoorr ((ccff.. QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp.. 8855))..

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comunidade política. Nessa inversão de papéis, quando os presbíteros discutem, formulam

e promulgam indevidamente as leis, pensam nos benefícios de sua corporação. O que não

ocorre quando a lei civil é promulgada apenas pelo legislador civil. Este, ao impô-la para si

mesmo, não se dirige a uma pessoa em particular ou a uma parte específica da sociedade,

mas satisfaz a totalidade dos cidadãos. Se os mestres da Palavra tornam-se a parte

preponderante e impõem ao conjunto dos cidadãos crentes o que deve ser considerado justo

nesta vida, a maior parte aceitaria de má vontade ou rejeitaria de algum modo. Se eles

criam leis, a sua formulação é distorcida.

A lei bem-formulada está vinculada ao sentimento comum dos indivíduos em pensar

os benefícios sociais que ela pode trazer ao corpo político como um todo. Quando esse

vínculo ocorre, dizemos que a totalidade dos cidadãos legisla para si mesma266. Neste caso,

o todo é maior que a parte. Não é uma simples parte da comunidade política, como a do

clero, mas “aquilo a que o conjunto global dos cidadãos aspira por meio da inteligência e

do sentimento pode seguramente mostrar sua veracidade e salientar sua utilidade de modo

mais preciso”267.

Se há alguma parte que procura ser maior que o todo, ela se distancia da verdadeira

finalidade da comunidade política. Esta, como já sabemos, é o único modo pelo qual os

humanos podem alcançar a vida suficiente e se afastar do seu oposto. Há indivíduos que

não desejam a comunidade política, e isso põe em risco o destino da espécie humana se as

pessoas desfavoráveis se tornam dominantes. No entanto, a maioria é favorável e sobrepõe-

se à minoria não-propensa. Isso é possível graças ao fato de que a natureza comumente se

encarrega de gerar um maior número de indivíduos em favor de sua associação. Portanto,

afirma Marsílio, “se a multidão preponderante dos seres humanos (...) quer a permanência

da sociedade política, então deseja igualmente tudo aquilo de que ela necessita para se

manter, isto é, precisamente a regra sobre o que é justo e útil, estabelecida mediante um

preceito denominado lei (...)”268.

226666 NNeemm ttooddooss ppeerrtteenncceemm aaoo ccoonnjjuunnttoo ddooss cciiddaaddããooss.. EEssttããoo eexxcclluuííddooss ooss eessccrraavvooss,, aass mmuullhheerreess ee,, oobbvviiaammeennttee,, aass ccrriiaannççaass.. AA rreessppeeiittoo ddoo ffaattoo ddee MMaarrssíílliioo eexxcclluuiirr aass mmuullhheerreess,, PPiillaanntt aappoonnttaa aa sseegguuiinnttee rraazzããoo:: ““PPrroobbaabbllyy iitt iiss ssiimmppllyy aa ssiiggnn ooff tthhee ttiimmeess iinn wwhhiicchh hhee wwrroottee,, aass wweellll aass aann eemmuullaattiioonn ooff AArriissttoottllee wwhhoo rreeggaarrddeedd wwoommeenn aass iinn ssoommee sseennssee bbiioollooggiiccaallllyy ddeeffiicciieenntt”” ((PPIILLAANNTT,, 11999900,, pp.. 44448899)).. NNoo qquuee ddiizz rreessppeeiittoo aaooss eessccrraavvooss,, eesstteess ssããoo ooss iinnddiivvíídduuooss qquuee rreeccuussaamm aa eexxiissttêênncciiaa ddaa ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa ((ccff.. DDPP,, II,, 1133//22,, pp.. 113377)) oouu ooss qquuee ppoossssuueemm uummaa ““((......)) íínnddoollee bbáárrbbaarraa ee sseerrvviill,, aassssiimm aaggiinnddoo ppoorr ffoorrççaa ddoo hháábbiittoo”” ((DDPP,, II,, 99//33,, pp..110099)).. 226677 DDPP,, II,, 1122//55,, pp.. 113322.. 226688 DDPP,, II,, 1133//22,, pp.. 113388..

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A mesma “multidão preponderante” que deseja a formação de uma sociedade

legalmente organizada nesta vida tem capacidade de compreender as leis estabelecidas ou

propostas, sugerir alterações ou a sua possível eliminação. Para exercer essa sua atividade,

não precisa dominar o conhecimento jurídico. Igualmente, ela consegue compreender a

construção de um imóvel ou de um navio sem possuir, no entanto, o conhecimento

especializado da engenharia. A esse respeito, o paduano afirma que Aristóteles menciona

“(...) inúmeras obras artísticas, dando a entender que tais exemplos se aplicam aos demais

casos” 269.

O fato de ela dar importância às leis e aos demais assuntos de interesse da civitas

não impede de ser enganada ou manipulada. Marsílio vê no clero e, em especial, na Cúria

romana, uma força perigosa de manipulação à medida que se afasta de seus verdadeiros

propósitos e de sua origem. Esse afastamento comumente ocorre quando os seus membros

se interessam em obter poder público. Motivados pela vontade de poder, eles podem

afirmar que a multidão preponderante não tem papel significativo na política e o poder

público fica nas mãos de poucas pessoas – portanto, a parte é maior que o todo –, utilizando

como argumento a seguinte passagem do capítulo 1 de Eclesiastes: “O número de

insensatos é infinito”270.

Neste caso, segundo Marsílio, o esclarecimento do termo “insensato” faz-se

necessário: ou pode significar a pessoa que não dispõe de tempo para se dedicar à formação

intelectual, mas é capaz de compreender os problemas ético-políticos da sociedade humana;

ou pode se referir ao pagão que, apesar de ser considerado sábio, não abraçou a fé cristã,

como mostra a seguinte declaração do Apóstolo em 1Cor [13, 19]: “A sabedoria deste

mundo é loucura perante Deus”. Em nenhum desses significados torna justificável a idéia

de a parte é maior que o todo, isto é, a de que há um seleto grupo que dispensa os demais na

condução dos negócios públicos.

226699 DDPP,, II,, 1133//33,, pp..113399.. 227700 CCff.. DDPP,, II,, 1133//44,, pp.. 114411..

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“Portanto, aquelas pessoas que julgam que a multidão menos esclarecida prejudica a escolha e a aprovação do bem comum verdadeiro não dizem a verdade, porque, ao contrário, ela contribui para isto, se estiver unida aos doutos e aos mais experientes. (...) Uma pessoa não só compreende determinadas coisas, após ouvir a explicação de um semelhante, mas também pode completá-la em muitos pontos, o que por si mesmo jamais teria descoberto ou percebido”271.

A união entre a multidão dos cidadãos e os sábios competentes na legislação civil é

coerente com o princípio de que o todo é maior que a parte272, ao contrário do fato de o

clero assumir o papel daqueles sábios e pretender ser maior que a totalidade dos cidadãos.

A corporação dos presbíteros, encabeçada pelo Bispo de Roma, dispensa os fiéis e elabora

para si as regras que regulam as relações de posse, com o propósito de terem direito sobre

os bens materiais. Os sábios e a multidão dos cidadãos não foram consultados. Os

sacerdotes, portanto, agem contra a vontade do legislador civil e as suas regras não têm

valor coercivo.

A propósito dos termos “direito” e “regra”, o paduano faz as seguintes observações.

O primeiro equivale à “lei”, no sentido de ser uma regra necessária ou obrigatória273. Nesse

caso, Marsílio reconhece que há o direito humano e o divino. Um ponto de semelhança

entre os dois é a coercividade da regra. Uma diferença significativa é o seu âmbito de

atuação: as penalidades da lei humana ocorrem nesta vida, enquanto as da lei divina são

impostas no outro mundo. Isso significa, nas palavras de Strefling, que “a lei divina não

pode ser considerada propriamente lei, uma vez que não está acompanhada de sanção

terrena”274. As regras que os presbíteros criaram, portanto, não se enquadram em nenhum

desses dois tipos de direitos. O termo “regra” pode ser sinônimo de “preceito”. Esta

expressão, por sua vez, possui dois significados distintos: “preceito” pode significar ora

como a vontade de seu instituidor, ora como a realização daquela sua vontade.

227711 DDPP,, II,, 1133//77,, pp.. 114422.. DDPPaacciiss,, II,, 1133//77,, pp.. 5599:: ““UUnnddee nnoonn vveerruumm eennuunncciiaanntt,, ddiicceenntteess mmiinnuuss ddooccttaamm mmuullttiittuuddiinneemm iimmppeeddiirree vveerrii aauutt ccoommmmuunniiss bboonnii eelleeccttiioonneemm eett aapppprroobbaattiioonneemm;; qquuiinniimmoo aaddiiuuvvaatt iinn hhoocc iiuunnccttaa ddooccttiioorriibbuuss eett mmaaggiiss eexxppeerrttiiss.. ((......)) MMuullttaa nnaammqquuee ccoommpprreehheennddiitt hhoommoo ppoosstt aalltteerriiuuss ddiiccttiioonneemm eett aadd mmuullttoorruumm ccoommpplleemmeennttuumm aaggeerree ppootteesstt,, aadd qquuoorruumm iinniittiiaa sseeuu iinnvveennttiioonneemm ppeerr sseeiippssuumm ppeerrvveenniirree nneeqquuiisssseett””.. 227722 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 111155:: ““DDee eessttee pprriinncciippiioo ssee ddeedduuccee qquuee llaa ttoottaalliiddaadd cciiuuddaaddaannaa eess aaccttiivvaa,, aaccttúúaa ccoonnjjuunnttaammeennttee yy ssaabbee ddiisscceerrnniirr qquuéé hhaayy qquuee hhaacceerr mmeejjoorr qquuee uunn ggrruuppoo ppaarrttiiccuullaarr ddee cciiuuddaaddaannooss””.. LLeewwiiss aassssiinnaallaa qquuee ““tthhee rreellaattiioonnss bbeettwweeeenn vvaarriioouuss kkiinnddss ooff wwhhoolleess aanndd tthheeiirr ppaarrttss wweerree aallssoo aa ffrreeqquueenntt tthheemmee ooff mmeeddiiaaeevvaall pphhiilloossoopphhiiccaall ddiissccuussiioonn”” ((LLEEWWIISS,, 11996633,, pp.. 556677,, nn..110011)).. 227733 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//33,, pp..334400.. DDMM,,11//44,, pp.. 3355:: ““oo ddiirreeiittoo éé,, ppoorréémm,, aa mmeessmmaa ccooiissaa qquuee aa lleeii””.. 227744 SSTTRREEFFLLIINNGG,, 22000044.. pp.. 662255..

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Em relação à “pessoa” que estabelece a regra (o legislador), preceito é a ação de

ordenar, a ação do governo civil. Em relação à pessoa que deve segui-la, ele é a ação do

súdito em atender à vontade do legislador275. Quanto ao primeiro sentido, a regra é a ordem

civil para fazer algo, acompanhada de uma punição para quem a desobedece.276. Não há

preceito, mas, sim, uma proibição, quando o legislador ordena não fazer algo, acompanhada

também de um castigo para quem não a obedece277. De acordo com Marsílio, os teólogos

têm o costume de usar o termo “proibição” para significar também os mandamentos, ou

seja, a lei divina, ao afirmarem que os mandamentos “(...) devem ser cumpridos à risca para

se alcançar a salvação”278.

O fato é que, na civitas, tanto os imperativos do “preceito” como os da “proibição”

vêm acompanhados com alguma espécie de punição. Contudo, é fato também que o castigo

não consta em todas as sentenças imperativas: “(...) por exemplo, fazer ou não um ato de

liberalidade, e semelhantemente outros inúmeros casos”279. Os agentes humanos cumprem

determinados imperativos sem se sentirem pressionados por algum tipo de punição.

Marsílio classifica esses atos, que eles realizam, em dois grupos: de um lado, são meritórios

na perspectiva da lei divina, compreendidos como conselhos, ao invés de imposição; de

outro, são permitidos na perspectiva do legislador humano, compreendidos como

permissões que foram dadas através de uma ordem do legislador. Para Marsílio, observa

Tierney, “(...) a lei permissiva não obriga ou proíbe qualquer ação humana; melhor dito, ela

é definida como uma área de livre escolha onde o indivíduo pode licitamente seguir a sua

própria vontade”280.

Em resumo, o termo “direito”, “lícito”281, pode ser substituído por: “preceito”,

quando o legislador ordena fazer algo e pune quem não obedecer; por “proibição”, quando

o legislador ordena não fazer algo e pune também quem desobedecer; por “permissão”,

quando o legislador ordena fazer algo, ou não, sem coagir. “Lícito” pode também ser

227755 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//33,, pp.. 334411.. 227766 TTeemmooss aaíí,, ppaarraa MMaarrssíílliioo,, uumm pprreecceeiittoo qquuee ppooddee sseerr eenntteennddiiddoo ttaammbbéémm ccoommoo ““ddeeccrreettoo ppoossiittiivvoo””.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//33,, pp.. 334411.. 227777 OO mmeessmmoo qquuee ““ddeeccrreettoo nneeggaattiivvoo””,, sseegguunnddoo MMaarrssíílliioo.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//33,, pp.. 334411.. 227788 DDPP,, IIII,, 1122//33,, pp.. 334422.. 227799 DDPP,, IIII,, 1122//44,, pp.. 334422.. 228800 ““((......)) ppeerrmmiissssiivvee llaaww ddiidd nnoott ccoommppeell oorr pprroohhiibbiitt aannyy hhuummaann aaccttiioonn;; rraatthheerr iitt ddeeffiinneedd aann aarreeaa ooff ffrreeee cchhooiiccee wwhheerree tthhee iinnddiivviidduuaall ccoouulldd lliicciittllyy ffoollllooww hhiiss oowwnn wwiillll”” ((TTIIEERRNNEEYY,, 11999911,, pp.. 99)).. 228811 DDPP,, IIII,, 1122//55,, pp.. 334433..

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substituído por “legítimo”282. Este termo, porém, carrega um outro sentido importante, qual

seja: algo proibido que o legislador, em certas circunstâncias, torna permitido. A lei, por

exemplo, proíbe que alguém utilize o bem de outra pessoa; acontece, porém, ser permitido,

legítimo, que alguém use o bem que não é seu, desde que “(...) o proprietário consinta

nisso, embora não o tenha expressamente autorizado”283.

Sabemos que o direito se divide em divino e humano. Em relação a este último, o

paduano se detém na sua classificação em natural e civil. Analisa dois significados de

direito natural. O primeiro foi definido por Aristóteles, em sua Ética284. Designa o “decreto

do legislador” sobre aquilo que os homens, em sua quase totalidade, consideram bom e

deve ser praticado, o qual se encontra nas diferentes comunidades humanas. Marsílio

enumera alguns exemplos que os defensores dessa definição usam para se referir ao direito

natural: cultuar a Deus, honrar os pais, educar os filhos até certa idade, fazer o bem e

reparar corretamente as injustiças285.

Outra definição de direito natural é o “decreto da reta razão em acordo com a lei

divina” sobre o agir humano. Nesse sentido, a lei natural é uma mediação entre a divina e a

humana. A lei civil segue uma ordem natural que, por sua vez, decorre de Deus. Ora,

segundo Marsílio, nem todo ditame da reta razão é reconhecido nas diversas comunidades

humanas. E nem todo ato humano considerado correto pela lei divina possui o mesmo valor

para a lei humana, e vice-versa. Marsílio não nos dá exemplos desses dois casos, pois os

considera como questões bastante conhecidas286. Entretanto, ele os conduz à seguinte

conclusão: para os crentes que endossam a lei natural, quando alguém analisa os atos a

partir do direito divino e humano, principalmente quando eles colocam em divergência

essas duas leis, “(...) sempre se deve considerar antes (...)”287 o direito divino.

228822 DDPP,, IIII,, 1122//66,, pp.. 334433 228833 DDPP,, IIII,, 1122//66,, pp.. 334433.. 228844 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//77,, pp.. 334444.. 228855 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//77,, pp.. 334444.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 115588--115599:: ““((……)) ddeerreecchhoo eess lloo qquuee eell lleeggiissllaaddoorr pprreessccrriibbee yy eessttaabblleeccee eenn ffoorrmmaa ddee lleeyy ppaarraa llaa ccoommuunniiddaadd.. EEll llllaammaaddoo iiuuss nnaattuurraallee sseerrííaa ssóólloo eell ddeerreecchhoo uunniivveerrssaall eenn ccuuaannttoo ccoonntteenniiddoo aacceeppttaaddoo yy pprraaccttiiccaaddoo ppoorr ttooddooss llooss hhoommbbrreess yy nnaacciioonneess;; eess ddeecciirr,, llaass rreeggllaass ddee ccoonndduuccttaa eenn qquuee hhaann ccooiinncciiddiiddoo llooss ddiiffeerreenntteess ppuueebbllooss yy nnaacciioonneess aa llaarrggoo ddee llaa hhiissttoorriiaa yy qquuee nnoo ssoonn nnaattuurraalleess eenn eell sseennttiiddoo qquuee lloo ssoonn llaass lleeyyeess ffííssiiccaass qquuee rriiggeenn llaa nnaattuurraalleezzaa,, ssiinnoo qquuee ccoonnssttiittuuyyeenn uunn ccuueerrppoo ddee nnoorrmmaass ppúúbblliiccaass yy aannaalliizzaabblleess jjuurrííddiiccaammeennttee,, ccoossaa iimmppoossiibbllee ddee hhaacceerr ccoonn llaa ggeennéérriiccaa lleeyy nnaattuurraall””.. 228866 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//88,, pp.. 334444.. 228877 DDPP,, IIII,, 1122//99,, pp..334455..

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Vamos supor que um ato x coloca em divergência as duas legislações, porque x não

está de acordo com a lei natural. Esta é definida, segundo Marsílio, como os “ditames da

reta razão que se inscrevem no âmbito da lei natural”288. Há sacerdotes que assumiram por

si mesmos a posição de intérpretes autorizados do que eles denominam de “lei natural”,

porquanto eles não vêem alguma diferença essencial entre lei divina e natural. Então,

estabeleceram preceitos e proibições que impedem a realização de x por parte dos fiéis. Se

a lei natural está acima da humana, então a posição que eles ocupam é superior a do

legislador civil. Segundo o paduano, “esse modo de proceder suscita a discórdia na

comunidade política e acarreta a guerra civil, porque não é possível que haja paz onde o

clero se intromete no exercício da autoridade e do poder público”289.

Para o paduano, a denominação de lei natural ora corresponde à lei positiva humana,

ora à lei positiva divina. Na comunidade política, o fato é que, sob o aspecto formal, só há

um único tipo de lei neste mundo: a civil, que trata dos atos transitivos, como é o caso do

uso ou do usufruto de um objeto. Ela consiste de preceitos, proibições ou permissões. O seu

conhecimento se dá através da ciência dos atos civis. Essa ciência ensina o que é lícito e

ilícito nesta vida290. O governo civil a utiliza para fazer justiça. É o caso de alguém –

digamos, o príncipe – que reivindica para si um objeto que sabe que é seu de direito, mas

outra pessoa – o Papa – o usufrui sem a sua autorização. O príncipe é o proprietário do

objeto usado ilicitamente pelo Papa. A propriedade, nessa situação, consiste no “poder

principal” do reclamante em exigir para si o objeto reclamado ou transferi-lo a outra pessoa

mediante a sua autorização291. O príncipe, portanto, possui poder sobre o objeto ou tem o

direito de possuí-lo.

288 Vale lembrar a opinião que Marsílio tem acerca do significado de lei natural: esta, nas palavras de Tierney, refere-se a “(...) those parts of human law that were common to all nations or alternatively the dictates of right reason that came under divine law” (TIERNEY, 1991, p. 9). 228899 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 115599:: ““EEssee mmooddoo ddee pprroocceeddeerr ssuusscciittaa llaa ddiissccoorrddiiaa eenn llaa ccoommuunniiddaadd ppoollííttiiccaa yy aaccaarrrreeaa llaa gguueerrrraa cciivviill,, ppoorrqquuee nnoo eess ppoossiibbllee qquuee hhaayyaa ppaazz ddoonnddee eell cclleerroo ssee iinnmmiissccuuyyee eenn eell eejjeerrcciicciioo ddee llaa aauuttoorriiddaadd yy ddeell ppooddeerr ppúúbblliiccoo””.. 229900 OO tteerrrreennoo ddaass ccooiissaass llíícciittaass nnããoo ccoommpprreeeennddee aappeennaass oo iiuuss nnoo sseennttiiddoo oobbjjeettiivvoo.. IInncclluuii ttaammbbéémm oo iiuuss ssuubbjjeettiivvoo,, oo qquuaall ttrraattaa ddee aaççõõeess iimmaanneenntteess oouu ttrraannssiittiivvaass rreeaalliizzaaddaass ppoorr vvoonnttaaddee lliivvrree,, ccoonnttaannttoo qquuee sseejjaamm rreeccoonnhheecciiddaass ppeellaa lleeii oobbjjeettiivvaa ((ccff.. DDPP,, IIII,, 1122//1100,, pp.. 334455)).. AA eessssee rreessppeeiittoo eessccllaarreeccee TTiieerrnneeyy:: oo ddiirreeiittoo ssuubbjjeettiivvoo,, ppaarraa MMaarrssíílliioo,, ccoorrrreessppoonnddee ““((......)) aa vvoolluunnttaarryy aacctt,, ppoowweerr,, oorr hhaabbiitt iinn ccoonnffoorrmmiittyy wwiitthh oobbjjeeccttiivvee llaaww.. SSuucchh aa rriigghhtt ccoouulldd bbee iimmmmaanneenntt iinn tthhee ppeerrssoonn ooff rriigghhtt--hhoollddeerr oorr iitt ccoouulldd bbee ‘‘ttrraannssiieenntt’’,, rreellaatteedd ttoo ssoommee eexxtteerrnnaall oobbjjeecctt;; aanndd tthheenn iitt ccoouulldd rreeffeerr ttoo aa tthhiinngg iittsseellff oorr ssoommeetthhiinngg ppeerrttaaiinniinngg ttoo tthhee tthhiinngg lliikkee uussee,, uussuuffrruucctt,, aaccqquuiissiittiioonn,, rreetteennttiioonn,, eexxcchhaannggee”” ((TTIIEERRNNEEYY,, 11999911,, pp.. 99)).. 229911CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//1133,, pp.. 334466..

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Marsílio chama a atenção para o fato de uma pessoa, y, ser “proprietária” de um

bem, z, no sentido de que y tem o poder de reivindicar z e, no entanto, z é usado por

terceiros. Estes utilizam z, ou porque y deu permissão ou porque y desconhece o seu “poder

principal” sobre z. Nesses casos, y continua dona de z e pode licitamente retomá-lo quando

desejar. Uma pessoa rica, por exemplo, renuncia a uma parte da sua terra para que outros

indivíduos possam utilizá-la. Embora ela demonstre que não é da sua vontade usar a terra, a

lei civil garante esse seu direito de renúncia e lhe dá o poder de reivindicar aquela área

quando alguém, sem a sua autorização, apropria-se dela. Igualmente, um príncipe muito

generoso que pretende abrir mão de parte de seus bens: ele exerce um controle sobre os

mesmos, apesar da sua disposição em “(...) renunciar a um direito que lhe tinha sido

reconhecido como seu (...)”292.

Há, porém, uma outra forma de poder, de “propriedade”, que as pessoas exercem

em função da própria natureza humana. Identifica-se, segundo o paduano, com o “(...)

poder orgânico de agir e de movimentar os órgãos sem nenhum impedimento”293. Nesse

caso, “propriedade” se refere ao poder que o ser humano tem sobre seus atos. Ele tem, por

exemplo, a capacidade de se locomover de um lugar a outro. Essa é a única propriedade que

os ministros da Lei Evangélica possuem, pois as outras estão descartadas devido ao voto de

pobreza que eles se comprometeram seguir.

“Propriedade” pode significar também “possessão”, quando se afirma que alguém

tem o poder sobre um objeto ou o poder de reivindicá-lo. Marsílio nos dá um exemplo das

Sagradas Letras: “(Abraão) era rico porque possuía ouro e prata” (Gn 12, 2) ou na

expressão em que Deus diz a Abraão que lhe dará, assim como aos seus descendentes,

“toda terra de Canaã em possessão eterna” (Gn 17, 8)294. O termo “possessão” refere-se

também à utilização lícita de um objeto alheio quando, por exemplo, afirma-se em At (4,

32) que “ninguém considerava como seu um bem que possuía; mas tudo era comum entre

eles”295. Nesse sentido, podemos afirmar que os sacerdotes possuem certos bens, ou seja,

utilizam-os sem o poder de reivindicá-los; o que “possessão” não pode significar, embora

seja usado especialmente pelo clero incoerente, é a apropriação indevida do objeto, “no

229922 DDPP,, IIII,, 1122//1155,, pp.. 334477.. 229933 DDPP,, IIII,, 1122//1166,, pp.. 334477.. 229944 CCff.. DDPP,, IIII,, 1122//1177,, pppp.. 334477--334488.. 229955 AAppuudd DDPP,, IIII,, 1122//1199,, pp.. 334488..

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presente ou no passado, não importa se esse objeto é utilizado por quem se apropriou dele

ou por outrem”296. Se os sacerdotes afirmam que possuem, em relação a esse último

significado, o objeto, eles usam algo ilicitamente.

O paduano reconhece que os termos analisados possuem um campo de significação

muito amplo. Podemos perceber a variação de sentido a partir de quem os utiliza ou através

das circunstâncias em que são usados. Porém, podemos nos deter, afirma Marsílio, nos

significados mais conhecidos “(...) e que mais diretamente se relacionam com nosso

assunto”297. Essa análise é feita, evidentemente, não só com os termos “direito”,

“propriedade” e “possessão”. Em todo caso, ela nos dá uma idéia de como ocorre de fato a

relação de posse na comunidade política. O direito civil é fundamental aí, mas há situações

sobre as quais a lei não se aplica. Isso exige do príncipe prudência. Um governante

prudente não se posiciona acima do ius. A ordem jurídica não deixa de estar a seu favor

quando realiza ações prudentes que revertem em bem para a civitas. Ao realizar essas

ações, o príncipe demonstra também estar interessado em implantar a justiça.

A esse respeito, Marsílio nos dá um curioso exemplo, o caso da prisão Tuliana,

extraído da Catilinária, de Salústio. Cícero, ao não punir segundo a lei os conspiradores

populares da República, evitou o derramamento de sangue e restabeleceu a ordem civil.

Demonstrou prudência quando entregou “(...) os acusados aos carrascos, ordenando-lhes

que os matassem no cárcere (...)”298. Essa mesma prudência o governo civil deve ter,

quando líderes populares, como o Papa ou outro ministro da Palavra, pregam e praticam a

desobediência civil. Como afirma o paduano, a razão de se ter essa área de indeterminação

“é que as leis humanas, segundo as quais o governante deve regular os atos humanos civis, na sua maior parte vinculam-se à esfera do agir, e, ao que parece, não é possível sempre determinar por seu intermédio todas as coisas, suas modalidades ou ainda as circunstâncias com as quais estão associadas, face à sua variação e diversidade, conforme os momentos e os lugares (...)”299.

229966 DDPP,, IIII,, 1122//2200,, pp.. 334488.. 229977 DDPP,, IIII,, 1122//3333,, pp.. 335500.. 229988 DDPP,, II,, 1144//33,, pp.. 114466.. 229999 DDPP,, II,, 1144//44,, pppp.. 114466--114477.. DDPPaacciiss,, II,, 1144//44,, pp.. 6622:: ““((……)) eesstt,, qquuoonniiaamm aaggiibbiilliiaa ssuunntt,, cciirrccaa qquuaaee eett ddee qquuiibbuuss pplluurriimmiiss ssuunntt hhuummaannaaee lleeggeess sseeccuunndduumm qquuaass ddeebbeett pprriinncciippaannss ddiissppoonneerree cciivviilleess aaccttuuss hhuummaannooss;; qquuooddqquuee nnoonn oommnneess aauutt iippssoorruumm mmooddooss sseeuu cciirrccuummssttaannttiiaass,, qquuiibbuuss iinnvvoollvvuunnttuurr,, ppoossssiibbiillee vviiddeettuurr sseemmppeerr ssiimmuull lleeggee ddeetteerrmmiinnaarree pprroopptteerr iippssoorruumm vvaarriieettaatteemm eett ddiiffffeerreennttiiaamm sseeccuunndduumm rreeggiioonneess eett tteemmppoorraa ((……))””..

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Além da prudência, o governante necessita de um outro instrumento importante: o

aparelho militar. Na falta desse serviço público, declara Marsílio, “(...) as sentenças e as leis

civis seriam inócuas, porque não seriam cumpridas”300. O número de indivíduos

incorporados naquele aparelho consiste num contingente que seja capaz de garantir a

segurança. A sua quantidade, porém, não pode exceder ao poder da coletividade ou de sua

parte preponderante. Caso aconteça esse excesso, os cidadãos ficam enfraquecidos e correm

o risco de haver um governante déspota, “(...) que pode ou violar as leis, ou governar à sua

margem ou ir contra as mesmas (...)”301.

4. A parte preponderante da civitas e o melhor regime de governo.

Sabemos que as leis humanas são fundamentais na comunidade política. Elas

mantêm uma relação significativa com o governante. Um modo de esclarecer essa relação

pode ser encontrado na análise da seguinte proposição de Marsílio: “(...) o ser capaz de

gerar uma forma qualquer também o é para determinar-lhe o sujeito”302. Em outros termos,

cada ser criado ou produzido se constitui de elemento formal e material, ambos tendo o

mesmo fundamento. No caso da legislação da civitas, a forma é regra coerciva; e a matéria,

não é o seu conteúdo, mas o governo que põe em ordem os atos transitivos de acordo com a

forma da lei. Ambos têm suas raízes no conjunto dos cidadãos. Este é o ser que produziu a

forma e o sujeito da lei. Na relação favorável entre o governo e a lei há o consentimento

dos cidadãos. Tomemos como exemplo a regulação dos ofícios públicos. O governo pode

regulá-los segundo a lei vigente. No entanto, pode revogar uma determinada lei com o

propósito de melhor ordená-los, desde que tenha a aprovação dos cidadãos. Leis e ofícios

inadequados que prejudicam a civitas são como partes impróprias num organismo que lhe

causam dano.

Leis e ofícios inconvenientes constituem fatos escandalosos. Marsílio acredita que,

“(...) segundo o que está escrito no Evangelho de Mateus [XVIII, 7], é necessário que haja

330000 DDPP,, II,, 1144//88,, pp.. 114499.. 330011 DDPP,, II,, 1144//88,, pp.. 114499.. 330022 DDPP,, II,, 1155//22,, pp.. 115533.. CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 113344--113355..

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escândalos”303. No entanto, o fato de eles serem inevitáveis não implica que a comunidade

política se renda aos seus ataques, por mais que sejam considerados um tipo de provação

para purificar a alma do fiel. Há escândalos que atingem o poder público. Devem ser

contidos, pois prejudicam o desempenho das partes da civitas e o conjunto dos cidadãos. É

o caso de um eventual excesso de presbíteros, a ponto de o ofício sacerdotal vir a ser a parte

preponderante304. Se isso acontecer, a comunidade política se vê impedida de se aperfeiçoar.

A imprevisibilidade do surgimento de escândalos envolvendo os ofícios públicos e os seus

efeitos danosos ao conjunto dos cidadãos impõem vigilância à instituição política.

“É por tais motivos que a atuação do príncipe no interior da cidade, à semelhança da atividade cardíaca no organismo vivo, jamais deverá ser interrompida. De certa forma, os grupos sociais, durante algum tempo, poderiam até mesmo interromper suas tarefas sem causar grande prejuízo às pessoas, aos demais grupos ou a toda comunidade. Tal é o caso dos soldados em época de paz e a mesmíssima coisa ocorre também com os demais”305.

O governante civil é o soberano, constitui o órgão central da comunidade política.

É o coração que não pode ter a sua atividade interrompida. Outras partes, certas classes,

podem até parar de funcionar. Mas ele, não. Deve-se conservar intacto e saudável. Um líder

religioso, juntamente com seus seguidores, pode cessar de existir, sem causar problemas ao

funcionamento do organismo político306. Mas o desaparecimento daquele órgão vital

constitui a morte da civitas. Ele é único e não admite outro que seja capaz de fazer a mesma

função.

De fato, a comunidade política se desestabiliza com mais de uma parte

preponderante ou princípio ativo. Cada uma delas teria seus aliados e procurariam guerrear

330033 DDPP,, II,, 1155//77,, pp..115577.. 330044 CCff.. DDPP,, II,, 1155//1100,, pp.. 115599.. MMaarrssíílliioo ssee ssuurrpprreeeennddee ccoomm aa ggrraannddee qquuaannttiiddaaddee ddee ssaacceerrddootteess eemm sseeuu tteemmppoo.. OO ffaattoo ddee oo ooffíícciioo ssaacceerrddoottaall sseerr nneecceessssáárriioo nnããoo iimmpplliiccaa,, eennttrreettaannttoo,, qquuee eellee tteennhhaa oo pprriivviillééggiioo ddee ccoonntteerr eemm sseeuu qquuaaddrroo uumm ccoonnttiinnggeennttee eelleevvaaddoo ddee mmiinniissttrrooss ddaa PPaallaavvrraa.. 330055 DDPP,, II,, 1155//1133,, pp.. 116600.. DDPPaacciiss,, II,, 1155//1133,, pp.. 7744:: ““ PPrroopptteerreeaa nnuummqquuaamm ddeebbeett aaccttiioo pprriinncciippaannttiiss iinn cciivviittaattee cceessssaarree,, qquueemmaaddmmoodduumm nneecc aaccttiioo ccoorrddiiss iinn aanniimmaallii,, nnaamm lliicceett aaccttiioonneess aalliiaarruumm ppaarrttiiuumm cciivviittaattiiss aalliiqquuoo tteemmppoorree cceessssaarree ppoossssiinntt aabbssqquuee nnooccuummeennttoo ssiinngguullaarriiss ppeerrssoonnaaee,, ccoolllleeggiiii,, vveell ccoommmmuunniittaattiiss,, uutt aaccttiioo mmiilliittaarriiss tteemmppoorree ppaacciiss,, ssiimmiilliitteerr qquuooqquuee rreelliiqquuaarruumm ppaarrttiiuumm””.. 330066 OO ffiimm ddee uummaa iinnssttiittuuiiççããoo rreelliiggiioossaa nnããoo aaccaarrrreettaa,, eevviiddeenntteemmeennttee,, oo ddeessaappaarreecciimmeennttoo ddoo ooffíícciioo ssaacceerrddoottaall.. SSaabbeemmooss qquuee,, nnaa vviissããoo ddee MMaarrssíílliioo,, eessttee éé uummaa ppaarrttee iinnddiissppeennssáávveell ddoo ttooddoo.. CCoommoo aaffiirrmmaa NNeeddeerrmmaann,, ppaarraa oo ppaadduuaannoo,, ““aa ppeerrffeecctt hhuummaann ccoommmmuunniittyy rreeqquuiirreess pprriieessttss ttoo mmiinniisstteerr ttoo tthhee ssoouullss ooff iittss mmeemmbbeerrss,, jjuusstt aass iitt rreeqquuiirreess ffaarrmmeerrss ttoo ffeeeedd iitt aanndd ssoollddiieerrss ddoo ddeeffeenndd iitt”” (( NNEEDDEERRMMAANN,, 11999944,, pp.. 990088))..

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entre si para assumir a direção. Os cidadãos, por sua vez, rebelar-se-iam contra essa

situação. Ficariam impedidos de buscarem o que lhes é comumente útil, ou de formarem

organizações sólidas. Os efeitos negativos dessa deformidade seriam a revolta, divisão,

guerra e, em conseqüência, o fim eminente da civitas307. Assim como, afirma o paduano,

“(...) nos organismos vivos a multiplicidade de princípios é não somente inútil mas também

nociva, igualmente temos de admitir que, paralelamente, a pluralidade governamental

também o é à cidade”308.

Não só nos organismos vivos há apenas um princípio ativo que gera as suas partes e

controla o seu funcionamento. Para o paduano, o Filósofo nos mostra as associações

humanas agrupadas em torno de um princípio unificador que favorece a organização de

suas partes, enquanto aquelas que se sustentam a partir de vários governantes têm

dificuldade de se constituírem num todo orgânico. Há, perguntemo-nos, a possibilidade de

os humanos do mundo todo agruparem-se em torno de um único governante? Cada

associação humana, identificada por sua posição geográfica e sua cultura, com governo

próprio, precisa estar separada uma da outra ou se reunir numa única comunidade política

com um governante supremo? Essas questões, nota Marsílio, merecem “(...) uma reflexão

profunda, à parte do que está sendo agora examinado”309. Marsílio não descarta a sua

importância. Porém, não é uma de suas grandes preocupações. A sua atenção é para com a

autonomia política da civitas que se encontra ameaçada pelo Papado310.

Importa perceber, neste momento, que, quando as partes se unem para viver bem, na

tranqüilidade social, a comunidade política se constitui num todo orgânico. Não se trata de

um conjunto indiviso de unidades fragmentadas. Marsílio se utiliza da imagem do animal

para mostrar como se dá a unidade de seus elementos. Mas ele não nos esclarece acerca das

tensões que podem ocorrer entre as partes e o todo, ou com as partes entre si, já que uma

delas assume a primazia sobre as demais. Em todo caso, para o paduano, a comunidade

330077 DDPP,, II,, 1177//55,, pp.. 118855.. 330088 DDPP,, II,, 1177//88,, pp.. 118866.. 330099 DDPP,, II,, 1177//1100,, pp.. 118877.. 331100 MMmmee.. QQuuiilllleett tteemm rraazzããoo qquuaannddoo aaffiirrmmaa qquuee oo ppaadduuaannoo ““((......)) eesstt llee tthhééoorriicciieenn ddee llaa cciivviittaass hhuummaannaa ppeerrffeeccttaa,, ppaarrttiiccuullaarriissttee eett rreepplliiééee ssuurr eellllee--mmêêmmee,, jjaalloouussee ddee ssoonn iinnddiivviidduuaalliittéé eett ttoouutt eennttiièèrree ttoouurrnnééee vveerrss ll’’aaccccoommpplliisssseemmeenntt ddee ssoonn bbiieenn ccoommmmuunn”” (( QQUUIILLLLEETT,, 11996644,, pp..118866))..

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perfeita é uma, à medida que seus membros reconhecem como soberano o governo civil,

assim como o mundo tem sua unidade garantida a partir do Ser Supremo311.

Qual é o melhor regime de governo? É uma questão que a assembléia dos cidadãos,

juntamente com seus notáveis, decide. Se Marsílio fosse um dos cidadãos consultados, ele

defenderia a monarquia eletiva. Agora, se o príncipe deve ser escolhido através de uma

eleição ou deve ser alguém determinado pela sucessão hereditária, são duas modalidades de

escolha que ele reconhece serem bastante discutidas. O paduano fica com a segunda, a

eletiva. Para ele, a experiência de governos monárquicos nos mostra que o dever de agir em

favor do bem comum não passa necessariamente de um governante para outro. Em muitas

comunidades políticas, que adotam a sucessão hereditária, um príncipe faz um bom

governo, não porque sabe que o seu trono será deixado para seus herdeiros, mas devido ao

fato de ele ter-se tornado sujeito da lei, homem virtuoso e preocupado em deixar à

posteridade a imagem de um governante que se dedicou a zelar pela coisa pública. Ora,

essas qualidades não se transmitem de pai para filho, de um sucessor para outro. E na

monarquia hereditária acontece freqüentemente o príncipe se acomodar, já que não tem

medo de ser repreendido ou substituído por seus súditos.

Os defensores da sucessão hereditária alegam, porém, que um príncipe eleito tende

a se comportar como um rico emergente, podendo adquirir todos os vícios que a riqueza

carrega consigo. Ele não possui domínio de si. Por isso, é suscetível de contrair para o seu

governo várias “doenças” – como, por exemplo, a corrupção e a tirania. Já o príncipe

herdeiro, ao contrário do eleito, recebe por herança de seus antecessores a preocupação com

a coisa pública e a experiência do poder.

Na opinião de Marsílio, eles recorrem a Aristóteles para defender o seu argumento.

Apóiam-se erroneamente na Política para afirmarem coisas que não foram ditas pelo

Filósofo. Por exemplo, a afirmação de que a maioria dos indivíduos não se interessa em

zelar pelo bem comum, mas se preocupa apenas com os seus bens pessoais312. Recorrem a

outras obras do Estagirita– tais como a Retórica e a Metafísica – para justificar o

comportamento descontrolado das pessoas pobres que se enriquecem ou as conseqüências

331111 CCff.. DDPP,, II,, 1177//1111,, pppp..118888--118899.. 331122 CCff.. DDPP,, II,, 1166//11,, pppp.. 116622--116633..

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perigosas com a mudança de governantes nos governos eleitos. São trechos persuasivos,

reconhece o paduano, já que encontram acolhida no senso comum.

Quem duvida de que nem todos se importam com o bem público? Ou que

indivíduos, ao se tornarem ricos, gastam mal o seu dinheiro? Ou que governos eleitos,

quando são vulneráveis à mudança freqüente de governantes, ficam bastante debilitados?

Ou que nem todo governante eleito cultiva o senso de justiça e a prudência? Daí, porém,

não se pode concluir que apenas o regime hereditário garante a estabilidade do governo e a

transmissão segura, de um príncipe a outro, do cuidado com a coisa pública, bem como da

experiência política.

Conclusão falaciosa, adverte o paduano. De fato, monarcas eleitos não têm

experiência política, mas a observação nos mostra que muitos se esforçaram em possuí-la e

se tornaram prudentes e bons. Ao contrário de monarcas sucedidos por herança que,

acreditando em ter os atributos do bom governante, fizeram um péssimo governo.

Monarcas transformaram-se em déspotas, quando não aprenderam a adquirir a prudência ou

os demais conhecimentos necessários para o exercício de seu ofício.

Se os eleitos realizam um mau governo e são tratados como imprudentes ricos,

emergentes, precisamos ver em que ocasião isso ocorre. O próprio Aristóteles, afirma

Marsílio, dá-nos uma compreensão do verdadeiro sentido da riqueza: a sua maior finalidade

é a promoção do bem comum313. Então, se eles assumiram o poder, devem fazer com que

ele se volte para a coisa pública. E ao fazerem isso, são considerados prudentes. Caso

contrário, comportam-se, sim, como novos ricos diante da abundância de riqueza: ficam

obcecados pelo poder e menosprezam a coisa pública.

É verdade, por outro lado, que a eleição implica mudança. Esta, por sua vez, pode

gerar questionamentos entre os cidadãos: será que o novo governante será prudente e bom?

Ele vai criar benefícios à coletividade? As suas ações são boas ou ruins? Uma das

características do mau governo é o nível elevado de descontentamento em relação à lei ou

ao governante. Como a comunidade política reconhece que a obediência é tolerável?

Curiosamente, Marsílio nos dá a seguinte resposta:

331133 CCff.. DDPP,, II,, 1166//1155,, pp..117700..

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“O indicativo de que a obediência às leis e ao governo está satisfatória [grifo nosso], vemo-lo na administração eclesiástica em relação ao Papa Romano. De fato, os fiéis, na maioria das vezes, prestam-lhe uma obediência devida, até certo ponto excessiva [grifo nosso]”314.

Para o paduano, a própria administração eclesiástica nos dá uma idéia do nível de

aceitabilidade da obediência dos cidadãos para com o governo civil. Mas, claramente, em

que consiste essa “obediência satisfatória”? Quando Marsílio expõe as razões da obediência

excessiva ao Papado, talvez podemos encontrar a resposta para aquela pergunta. As causas

de insatisfação por parte dos crentes em relação ao líder espiritual são basicamente quatro:

Perseguição, medo, manipulação e “poder violento” 315. Então o nível de satisfação da

obediência está na direção oposta. No caso da comunidade política, os cidadãos aceitam

obedecer satisfatoriamente ao seu governante somente quando este não os persegue, nem

lhes impõe medo, nem procura manipulá-los e nem exerce sobre eles um poder violento.

No entanto, se o governo faz o contrário, a direção da civitas está na mão de um déspota. A

esse respeito, Marsílio recorre novamente à experiência eclesiástica para, dessa vez, indicar

claramente o aparecimento do tirano: “O príncipe, com freqüência, torna-se um déspota

face à obediência irrestrita dos súditos, porque julga que ficará impune. Tal é o que vem

acontecendo com alguns bispos que agem dessa maneira”316.

A obediência sem limites e a impunidade formam o círculo vicioso do despotismo:

se o tirano não é julgado, os cidadãos lhe prestam obediência incondicionalmente; se eles

não reagem contra essa obediência excessiva, o déspota continua a agir impunemente.

Como evitar o surgimento desse círculo difícil de ser quebrado? Certamente, uma das

medidas para Marsílio é a criação de um sistema de eleição eficiente pelo qual seja possível

a escolha do príncipe que irá, por exemplo, ficar à frente do Império. O paduano a esse

respeito defende a instituição da eleição imperial sem a imposição do Papa. Os eleitores

devem analisar detalhadamente cada candidato. Às vezes, um príncipe demonstra

preocupação para com a coisa pública, mas, após uma análise crítica, esse seu

comportamento é aparente. Há situações em que o príncipe descende de bons antecessores. 331144 DDPP,, II,, 1166//1166,, pppp.. 117711--117722.. DDPPaacciiss,, II,, 1166//1166,, pppp.. 8822--8833:: ““SSiiggnnuumm aauutteemm ssuuffffiicceerree oobbeeddiieennttiiaamm qquuaaee aadd pprriinncciippaattuumm eett lleeggeess,, eesstt qquuoodd iinn eecccclleessiiaassttiiccaa iiccoonnoommiiaa ddee RRoommaannoo ppaappaa vviiddeemmuuss.. IIppssii nnaammqquuee ssuubbiieeccttaa mmuullttiittuuddoo qquuaassii sseemmppeerr oobbeeddiieennttiiaamm ddeebbiittaamm,, eett aammpplliiuuss ddeebbiittaa pprraaeessttaatt””.. 331155 CCff.. DDPP,, IIII,, 11//11,, pppp.. 220099--221100.. 331166 DDPP,, II,, 1166//1166,, pp.. 117722..

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No entanto, percebe-se que se trata apenas de uma questão de parentesco sem implicações

na vida pública. Pode ser alguém que recebe ordens do Bispo de Roma. Se for o caso, ele

tende a seguir as orientações do clero e da Cúria. Essas e outras possíveis circunstâncias

devem ser observadas, sempre com a perspectiva de risco mínimo. Pois, por mais que a

escolha seja criteriosa, há a probabilidade, embora pequena, de o futuro eleito se

transformar num tirano.

Caso aconteça que a escolha tenha sido judiciosa, mas o príncipe eleito

posteriormente decide transgredir as leis civis e submeter-se às determinações da Cúria

romana, ele deve ser julgado e punido? Vimos que, quando exerce sua função a favor do

conjunto dos cidadãos, o governo civil se comporta como coração saudável que garante a

vida do corpo político. Sabemos, porém, que o governante é humano, com inteligência e

vontade própria. Pode ser influenciado por uma opinião enganosa – por exemplo, a do clero

intrometido na política – ou ser dominado por sentimentos egoístas, assim como aquele

órgão humano pode contrair alguma doença, prejudicando o seu funcionamento e o das

demais partes que integram o organismo. O paduano nos lembra que o “(...) príncipe pode

cometer uma falta grave ou leve, ocasional ou freqüentemente, e tal falta poderá estar ou

não regulamentada pela lei”317.

O paduano não aponta um caso concreto de falta leve. Afirma, porém, que a punição

só deve existir em situações freqüentes desse tipo de infração. Se o príncipe for julgado nas

poucas infrações leves que porventura possa cometer, não só a confiança dos cidadãos

tende a diminuir para com ele, mas também podem surgir os seguintes efeitos negativos:

ingovernabilidade, desordem, violência e o possível fim da comunidade política. Por outro

lado, para as situações regulares de transgressão leve, a inevitável punição deve estar

regulamentada em lei. A justificativa para a sua implantação encontra-se numa analogia

que o paduano pede emprestada a Aristóteles, a saber: a falta leve regular é como a adição

de dívidas pequenas. Estas são como partes de um todo, que é a riqueza. Se a mencionada

soma não for contida, a fortuna, que representa o todo, tende a desaparecer. Igualmente, se

as infrações leves não-ocasionais não forem refreadas, pode ocorrer o aniquilamento da

comunidade política318.

331177 DDPP,, II,, 1188//44,, pp.. 119922..

331188 CCff.. DDPP,, II,, 1188//66,, pp.. 119933..

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A atenção deve ser dada também às faltas graves, por mais que sejam ocasionais.

Em relação às situações de violação grave, podemos mencionar o seguinte exemplo

fornecido pelo próprio Marsílio: a tentativa do príncipe em desestabilizar a civitas.

Sabemos que à época o Papa tinha aliados poderosos, inimigos de Ludovico IV e, portanto,

segundo o paduano, da comunidade perfeita cristã. Dentre esses aliados havia príncipes.

Sobre eles o castigo pode ser dado de acordo com a lei, caso estejam regulamentadas; ou

pode ser dado através da sentença do legislador humano, ou seja, do Imperador, caso não

estejam regulamentadas319. Mas essas medidas punitivas se efetivam, segundo Marsílio,

quando há ao menos um indivíduo responsável pela sua execução. Quem indica essa(s)

pessoa(s) é o legítimo príncipe de Roma: Ludovico IV. Este também pode, ao invés de

escolher as pessoas responsáveis pelo julgamento da autoridade política subversiva, julgá-

lo diretamente. Em todo o caso, de modo indireto, ou não, ele deve, antes de julgar o

transgressor, afastá-lo do seu cargo, “(...) a fim de que, na hipótese de haver muitos

governantes, não sobrevenha consecutivamente uma revolta, um cisma e uma guerra

intestina causadora de grandes males à comunidade. Ademais, o príncipe não está sendo

corrigido enquanto tal, mas na condição de transgressor da lei”320.

Não pode existir mais de um legislador civil do imperium. Então, é inevitável o

afastamento do príncipe ilegítimo. O uso da força às vezes é necessário para preservar ou

restabelecer a tranqüilidade da comunidade política, o funcionamento correto do organismo

político. E o principal sintoma de que ele está com “saúde” é a paz política. A respeito da

tranqüilidade social, Marsílio dedica o último capítulo da primeira parte da sua obra magna

para mostrar os seus efeitos benéficos. Sabemos que, através dela, os indivíduos podem

trocar mercadorias, exercer suas tarefas, criar um sistema de convivência e assistência

sociais, entre outras coisas úteis da vida suficiente. Ora, compete ao governo cuidar para

que esses benefícios estejam protegidos e garantidos na comunidade política. E porquanto

eles se relacionam com a boa disposição da civitas, o governante torna-se “a causa eficiente

da tranqüilidade”321.

Gera-se a tranquillitas a partir do “coração” da comunidade política. Curiosamente,

Marsílio afirma que essa opinião é compartilhada não só pelo Filósofo, mas também pelo

331199 CCff.. DDPP,, II,, 1188//44,, pp.. 119922.. 332200 DDPP,, II,, 1188//33,, pp.. 119911.. 332211 DDPP,, II,, 1199//11,, pp.. 119944..

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próprio Apóstolo em sua 1ª. Epístola a Timóteo [1-2]322. De modo que podemos ver aí dois

testemunhos como que se dirigindo ao cidadão com a seguinte recomendação: “se você é

cristão, ou não, então ouça o que tem a dizer, de um lado, o grande propagador do

cristianismo e, de outro, o fundador da ciência política. Sem o primeiro, muitos não

abraçariam a verdadeira fé; e sem o segundo, ninguém saberia como encontrar a paz na

civitas. Ambos, porém, declaram que, se você for um empecilho ao governo justo, também

o será para a paz”.

Ora, a causa da discórdia, da má disposição, que preocupa o paduano, é o exercício

indevido do ofício sacerdotal. Os bispos e demais ministros da Palavra estão sujeitos a

contrair vícios. Podem deixar de dar assistência espiritual aos seus fiéis, ou cometer outras

ações incorretas. Se o príncipe subversivo é julgado, por que poupar o Papa herético do

julgamento? É preciso conhecer claramente o papel do sacerdote na comunidade política, a

sua relação com a cidade; caso contrário, ele continuará a fazer coisas que prejudicam a

ordem e a paz.

332222 CCff.. DDPP,, II,, 1199//33,, pppp.. 119955--119966..

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IV. O SACERDOTE NA CIVITAS MARSILIANA

Neste capítulo vamos conhecer claramente o papel dos mestres da Palavra no

julgamento civil (1); o significado de “bispo” e “Papa”, o qual constitui uma verdade

incontestável e, por isso, deve ser aplicado na comunidade perfeita dos fiéis (2); que função

o sacerdote ocupa em uma das assembléias mais importantes da civitas cristã, o Concílio

(3); e a submissão de todos os sucessores de Cristo ao governante civil (4).

1. O papel do sacerdote no julgamento civil

Apesar de carregar na sua consciência o temor do juízo final, o fiel pode viver neste

mundo transgredindo a lei divina323, já que o julgamento desse tipo de transgressão ocorrerá

apenas na outra vida. Pouco importa, para o governo civil, se ele terá a sua alma salva na

eternidade. Se ele se encontra numa determinada comunidade que proíbe a permanência de

hereges em seu interior, ele pode se dirigir a outra em que há permissão. O que não pode

acontecer é ele violar, tanto numa como noutra comunidade, a lei civil. Neste caso, ele

passa a ser réu, e não apenas um discípulo rebelde ou uma ovelha desgarrada que necessita

de mais cuidados de seu pastor.

Se alguém é acusado de ter quebrado uma das regras coercivas da comunidade,

antes de receber a sua sentença tem o direito de defesa. Constitui-se um processo em três

etapas: na primeira, procura-se conhecer melhor o assunto tratado na denúncia; na segunda,

saber se a lei humana impede de realizar o ato denunciado; na terceira, investigar o nível de

envolvimento do réu na realização do ato denunciado. Essas etapas se aplicam, não só a

indivíduos acusados, por exemplo, de falsificar vasos de ouro; mas também aos casos de

heresia regulamentados pela civitas cristã.

Inicialmente, o governante civil vai consultar os especialistas do assunto em

questão, isto é, as pessoas que têm licença para exercer determinado ofício: no caso dos

vasos de ouro, o ourives, o qual tem a obrigação de conhecer os metais; na questão da

332233 EExxcceettoo aaqquueellaass qquuee ccooiinncciiddeemm ccoomm aa lleeii cciivviill..

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heresia, o sacerdote, o qual “(...) deve saber qual é a proposição ou doutrina herética para

distingui-la da católica”324. Em seguida, ele consultará as leis civis para ver se há que proíbe

o ato cometido. Finalmente, no último procedimento, ele vai atrás de testemunhas que

comprovam a acusação, ou a inocência, do réu na falsificação dos vasos de ouro ou na

imputação de heresia325.

O herege é processado se ficar provado que a lei civil proíbe a realização do ato que

praticou. Ele será certamente punido nesta vida e, possivelmente, na outra. Portanto, pode

vir a receber dois castigos326. Se, porém, ele realizou um ato que, para Deus, é um pecado

mortal – mas, para o governo civil, é tolerável – esse seu ato não assume as características

de um delito civil. A fornicação é um exemplo que Marsílio nos dá para ilustrar esse tipo de

situação. O legislador humano não proíbe que as pessoas tenham relações sexuais, embora

a atração pelos prazeres carnais não seja um sinal da graça divina. Nem por isso o ministro

sacerdotal pode deixar de ensinar que o fornicador terá sua sentença garantida no outro

mundo, caso persista em permanecer no pecado da luxúria. O castigo eterno perderá sua

validade, se ele parar de fornicar, pois, nas palavras do paduano, “(...) removida a causa, o

efeito também cessará”327.

O mestre da Palavra que se volta para o saber das coisas de Deus, no entanto, não

preside o processo judicial contra o infrator da lei. Quem o preside é “(...) aquela pessoa a

quem foi confiada a custódia da lei humana coerciva, isto é, o príncipe”328. Este, e não o

presbítero, tem competência para exercer a justiça na terra, isto é, fazer com que os atos

humanos não contrariem a lei humana. Para ele é encaminhado o herege que violou uma lei

332244 DDPP,, IIII,, 1100//55,, pp.. 332222.. 332255 CCff.. DDPP,, IIII,, 1100//66,, pppp.. 332222--332233.. 332266 SSee ppoorr lliibbeerrddaaddee rreelliiggiioossaa eenntteennddeemmooss aa ppeerrmmiissssããoo ddee oo ffiieell eennssiinnaarr oo qquuee qquuiisseerr aa rreessppeeiittoo ddaa ssuuaa fféé,, MMaarrssíílliioo ffooii uumm ddee sseeuuss ggrraannddeess ooppoossiittoorreess.. OO ppaadduuaannoo sseegguuee aa ttrraaddiiççããoo mmeeddiieevvaall qquuaannddoo ssee ppoossiicciioonnaa aa ffaavvoorr ddee rreeppeelliirr aass ddoouuttrriinnaass eerrrrôônneeaass.. MMmmee.. QQuuiilllleett tteemm rraazzããoo aaoo ccrriittiiccaarr aaqquueelleess qquuee vvêêeemm nneellee uumm ppeennssaaddoorr ddaa lliibbeerrddaaddee rreelliiggiioossaa:: eessttaa,, sseegguunnddoo oo ppaadduuaannoo,, éé ““((......)) ssyynnoonnyymmee dd’’aannaarrcchhiiee eett ddee ttrroouubbllee”” ((QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp..114444)).. AA ccoommuunniiddaaddee ddooss ffiiééiiss,, aassssiimm ccoommoo aa VVeerrddaaddee,, éé uunniivveerrssaall.. DDee ffaattoo,, aa ssoocciieeddaaddee mmaarrssiilliiaannaa ““((......)) èè uunnaa ssoocciieettàà ccrriissttiiaannaa,, cchhee nnoonn ttoolllleerraa llaa pprreesseennzzaa ddii eerreettiiccii ((......))”” ((DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 221166)):: hháá ooss eerrrrooss ddee fféé iinnttoolleerráávveeiiss eemm rreellaaççããoo àà cciivviittaass,, qquuee ssee ooppõõeemm àà lleeii cciivviill,, ee ddeevveemm sseerr jjuullggaaddooss ppeelloo ttrriibbuunnaall cciivviill;; eexxiisstteemm,, ppoorr ssuuaa vveezz,, aaqquueelleess eerrrrooss iinnssuuppoorrttáávveeiiss ppaarraa aa fféé,, mmaass qquuee nnããoo ssee ooppõõeemm ààss lleeiiss hhuummaannaass,, ee ddeevveemm sseerr jjuullggaaddooss ppeellaa ccoonnsscciiêênncciiaa ddee ccaaddaa ffiieell.. NNeessttee úúllttiimmoo ccaassoo,, oo ssaacceerrddoottee tteemm uumm ppaappeell iimmppoorrttaannttee,, nnããoo nnoo sseennttiiddoo ddee iimmppoorr uumm jjuullggaammeennttoo ccooeerrcciivvoo,, mmaass nnoo sseennttiiddoo ddee eedduuccaarr oo ffiieell,, aa eexxeemmpplloo ddoo eedduuccaaddoorr qquuee ssee ddiirriiggee ààqquueelleess qquuee ccaarreecceemm ddee eedduuccaaççããoo.. OO ddeesseemmppeennhhoo ddee ssuuaa aattuuaaççããoo éé uummaa qquueessttããoo ddee aarrttee,, ee nnããoo ddee ppooddeerr.. OO vveerrddaaddeeiirroo ssaacceerrddoottee nnããoo ffiiccaa ccoonnffoorrmmaaddoo ccoomm aa ppoossiiççããoo eeqquuiivvooccaaddaa ddoo hheerreeggee,, mmaass,, ppoorr oouuttrroo llaaddoo,, nnããoo uussaa aa ffoorrççaa ppaarraa eennccaammiinnhháá--lloo àà ddiirreeççããoo ccoorrrreettaa ddaa fféé.. 332277 DDPP,, IIII,, 1100//77,, pp.. 332244.. 332288 DDPP,, IIII,, 1100//99,, pp.. 332255..

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civil, o cidadão que falsificou o vaso de ouro, o sacerdote caloteiro, o cidadão que praticou

ilegalmente o exercício da medicina e demais indivíduos que cometeram atos ilícitos

tipificados em lei (da comunidade política)329.

Se o sacerdote fosse julgar coercitivamente os fiéis que violaram as leis de Deus ou

as leis humanas, cada ofício criaria o seu próprio governo e, em conseqüência, “teria de

haver um grande número de governantes proporcional à quantidade de ofícios existentes na

cidade, contra os quais poderiam se cometer delitos”330. Para entendermos melhor a

participação do sacerdote no julgamento civil, apresentaremos a seguir três situações

concretas que exigem a participação do teólogo ou doutor da Lei Evangélica, do ourives e

do médico numa comunidade perfeita cristã, onde eles são convocados nos casos em que a

lei não é perfeita ou é omissa.

Nesses casos, quando ocorre uma heresia ou falsificação de vasos de ouro, o

príncipe prudente consulta, respectivamente, os mestres da Palavra (os teólogos) e os

especialistas em vasos de metal. Os teólogos tratam de informar claramente as diferenças

entre as proposições ou atos heréticos e as proposições ou atos não-heréticos. Já os ourives

lhe mostram as características fundamentais de um vaso de ouro genuíno. Igualmente, o

governo civil fará o mesmo quando os leprosos resolvem viver juntos com as pessoas

normais, mas são impedidos por uma lei humana que proíbe essa convivência social.

Depois de constatar as limitações da lei que trata da questão, o sábio príncipe convoca o

médico para se informar se a lepra é ou não uma doença, para depois dar a sua sentença.

O julgamento do médico consiste apenas em emitir uma opinião especializada sobre

determinado assunto, no caso, a doença da lepra331. Assim como o médico não possui

332299 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 221177:: ““ÈÈ iill pprriinncciippaannss –– sseegguueennddoo nnaattuurraallmmeennttee llee ddiissppoossiizziioonnii ddeell lleeggiissllaattoorr –– cchhee pprroonnuunnzziiaa llaa sseenntteennzzaa ee iinnfflliiggggee llaa ppeennaa.. NNoonn cceerrttoo aarrbbiittrraarriiaammeennttee,, ssiiaa ppeerrcchhéé ggiiuuddiiccaa sseeccoonnddoo llaa nnoorrmmaa cchhee hhaa rriicceevvuuttoo ddaallllaa uunniivveerrssiittaass cciivviiuumm,, ssiiaa ppeerrcchhéé pprriimmaa ddii eemmeetttteerree iill vveerrddeettttoo ddeevvee aassccoollttaarree iill ppaarreerree ddeell ssaacceerrddoottee,, cchhee iinn qquuaannttoo eessppeerrttoo ddii lleexx eevvaannggeelliiccaa eesspprriimmee llaa ssuuaa ooppiinniioonnee ssuullll’’iimmppuuttaattoo””.. 333300 DDPP,, IIII,, 1100//88.. pp.. 332255.. 333311 EEmm DDMM,, MMaarrssíílliioo rreeccoorrrree vváárriiaass vveezzeess àà aannaallooggiiaa ddoo mmééddiiccoo ppaarraa mmoossttrraarr aa vveerrddaaddeeiirraa nnaattuurreezzaa ddoo ooffíícciioo ssaacceerrddoottaall.. PPoorr eexxeemmpplloo,, DDMM,, 55//1177,, pppp.. 5555--5566:: ““((......)) oo mmééddiiccoo ddoo ccoorrppoo,, eemm rraazzããoo ddee ssuuaa aarrttee,, ddeesseemmppeennhhaa uumm ppaappeell aannáállooggoo aaoo ddoo eexxeerrcciiddoo ppeelloo ssaacceerrddoottee.. ((......)) EEmmbboorraa,, eeffeettiivvaammeennttee,, aallgguuéémm ppoossssaa ddeetteerr oo hháábbiittoo ppeelloo qquuaall sseejjaa ccaappaazz ddee eennssiinnaarr ee ooppiinnaarr aa rreessppeeiittoo ddooss ssããooss ee ddooss ddooeenntteess ee iigguuaallmmeennttee aaggiirr eemm rreellaaççããoo aaooss mmeessmmooss,, ccoonnttuuddoo,, ssee llhhee ffaallttaarr aa lliicceennççaa oouu oo ppooddeerr ddee eennssiinnaarr ee ddee aaggiirr ppoorr nnããoo llhhee hhaavveerr ssiiddoo ccoonnffeerriiddaa ppeelloo lleeggiissllaaddoorr hhuummaannoo oouu pprríínncciippee,, nnããoo llhhee éé ppeerrmmiittiiddoo eennssiinnaarr ee ttaammppoouuccoo eexxeerrcceerr aa mmeeddiicciinnaa eemm rreellaaççããoo aaooss ddooeenntteess ee ssããooss””.. EEssttaa ppaassssaaggeemm éé uummaa ddaass eevviiddêênncciiaass qquuee pprroovvaa aa sseegguuiinnttee tteessee mmaarrssiilliiaannaa:: ““LLeess pprrêêttrreess ssoonntt uunnee ppaarrttiiee ddee llaa ccoommmmuunnaauuttéé ppoolliittiiqquuee,, aassssuujjeettttiiee,, ccoommmmee tteellllee,, eett ccoommmmee ttoouutteess lleess aauuttrreess ppaarrttiieess ddee cceettttee ccoommmmuunnaauuttéé,, àà ll’’aauuttoorriittéé jjuurriiddiiccttiioonnnneellllee dduu pprriinnccee”” ((QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp.. 119988)).. CCff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 221166--221199..

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competência para determinar legalmente a inclusão social do leproso, o sacerdote não tem a

atribuição de sentenciar a exclusão, ou não, do herege da sociedade332. O governante civil

decide se os leprosos podem conviver normalmente com os cidadãos ou se o herege deve se

retirar da convivência social ou dispor de seus bens ou sofrer outro castigo estabelecido em

lei333. Na verdade, segundo Marsílio, o mestre da Palavra é o médico das almas que julga,

ou seja, dá sua opinião acerca das questões de sua competência, no caso, a cura e a salvação

da alma. Recomenda a seus pacientes, os fiéis que infringiram a Lei Evangélica, o uso do

tratamento adequado para se livrarem da doença da heresia334.

Se ele pretende com isso ter o título de “juiz”, que o possua; contanto que a

expressão tenha o significado de “pessoa que opina sobre um assunto relacionado com sua

área de competência”. Nesse sentido, se o herege o ofende, ele não tem poder de prendê-lo,

despojar os seus bens ou dar outro castigo, porquanto o sacerdote não é o guardião da lei,

seja a humana, seja a divina. Os ministros da Verdade são fiéis cidadãos sem competência

para punir. Eles têm razão quando afirmam que o herege é um infrator da lei divina, mas

erram quando assumem o papel de guardião dessa lei e decidem fazer o que é da atribuição

exclusiva de Cristo em outro mundo, a saber: castigar ou recompensar os fiéis. Se esse

mesmo infrator da lei divina torna-se também da lei civil, ele atentou contra o seu guardião,

o príncipe. Nesse caso, afirma Marsílio, cabe somente ao governo civil “(...) punir o

delinqüente ou impor-lhe um castigo e, caso este incida sobre seus bens, terá de ser

aplicado por quem o legislador estabeleceu que viesse a fazer, e na forma da lei”335.

333322 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 222299:: ““DDuu ffaaiitt qquuee llaa tthhééoollooggiiee eesstt pplluuss ddiiggnnee qquuee ll’’aassttrroollooggiiee oouu llaa mmééddeecciinnee,, vvaa--tt--oonn ssoouummeettttrree aassttrroolloogguueess eett mmééddeecciinnss àà ll’’aauuttoorriittéé ccooaaccttiivvee ddeess pprrêêttrreess?? UUnn pprrêêttrree sseerraaiitt--iill cceenntt ffooiiss ssuuppéérriieeuurr aauuxx aauuttrreess,, ppaarr llaa ddiiggnniittéé ddee ssaa vvooccaattiioonn eett llaa vveerrttuu qquu’’iill yy aapppplliiqquuee,, iill nn’’eenn ppoouurrrraaiitt ttiirreerr aauuccuunnee jjuussttiiffiiccaattiioonn dd’’uunn ddrrooiitt àà uunnee ssuuppéérriioorriittéé ddee jjuurriiddiiccttiioonn””.. 333333 CCff.. DDPP,, IIII,, 1100//99..1100,, pppp.. 332255--332266.. 333344 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 221188:: ““LL’’uuoommoo ddii CChhiieessaa èè ccoommee uunn mmeeddiiccoo,, cchhee vveeddee llaa ggrraavviittàà ddeell mmaallee ee ccoonnssiigglliiaa ll’’aammppuuttaazziioonnee ddeell mmeemmbbrroo mmaallaattoo,, ttuuttttaavviiaa nnoonn ppuuòò ccoossttrriinnggeerree nneessssuunnoo aa ssuubbiirrllaa””.. 333355 DDPP,, IIII,, 1100//1111,, pp.. 332288.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 225522--225533:: ““EEll ddeelliittoo nnoo eess llaa ddiissccrreeppaanncciiaa eenn eell ddooggmmaa,, ssiinnoo llaa sseeddiicciióónn eenn qquuee iinnccuurrrree eell hheerreejjee qquuee ssee oobbssttiinnaa eenn hhaacceerr pprroosseelliittiissmmoo ccoonnttrraa llaa ddooccttrriinnaa ooffiicciiaall.. LLaa ccoonnttrriibbuucciióónn ddee MMaarrssiilliioo aall iiddeeaall mmooddeerrnnoo ddee ttoolleerraanncciiaa eess mmááss bbiieenn eessccaassaa,, ppuueess aaddmmiittee llaa rreepprreessiióónn ppoorr ppaarrttee ddeell EEssttaaddoo,, iinncclluussoo eenn mmaatteerriiaa ddee rreelliiggiióónn,, ssii eess nneecceessaarriiaa ppaarraa ddeeffeennddeerr llaa ppaazz””..

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2. Os significados de “Bispo” e “Papa”

A renúncia ao poder não ocorre apenas sobre as coisas temporais, mas também

sobre as pessoas. A esse respeito, precisamos entender claramente a afirmação teológica de

que, de fato, Cristo é o redentor dos homens. O Filho de Deus os regatou da morte para o

estado da vida futura, eterna. Não foi para o estado da vida presente. Daí por que,

argumenta o paduano, “(...) a sua Redenção não lhe proporcionou o direito de exercer uma

dominação sobre os homens e seus bens temporais aqui na terra”336. São dois estados

bastante distintos.

A redenção de Cristo o torna Senhor, Juiz, na vida futura. É em vista do seu reino

que o Verbo divino tornou-se carne, ou seja, assumiu a natureza humana e salvou as

pessoas da morte. Nesse contexto teológico, pode-se ver Cristo como “Rei dos reis”. O

maior de todos os pontífices é “rei” no sentido de que ele, mais do que qualquer outro

santo, assumiu livremente o estado da mui excelsa pobreza ou de perfeição com o propósito

de resgatar os fiéis para o reino eterno. A sua realeza não tem relação com o governo civil,

ou seja, o Verbo divino não se comportou como um legislador humano ou príncipe.

Com efeito, Cristo não se tornou idêntico ao legislador ao criar um novo ofício, o

ministério da Palavra, cuja instituição difere dos ofícios que se originaram a partir do

governo civil e que têm em comum a função de “(...) obter a suficiência decorrente de suas

atividades”337. O sacerdócio é diferente, no sentido de que Deus criou uma qualidade da

alma em seu Filho, que se encarregou de transmiti-la aos seus Apóstolos, os quais, por sua

vez, através da imposição de suas mãos, transferiram a nova inclinação da alma às pessoas

que quisessem livremente dar continuidade à missão do Mestre338. Sabemos em que

consiste esse novo caráter da alma que os mestres da Palavra adquirem por meio de uma

convenção litúrgica que inclui a imposição das mãos, cantos e orações: trata-se do poder,

333366 DDPP,, IIII,, 1144//2233,, pp.. 440055.. 333377 DDPP,, IIII,, 1155//22,, pp.. 440088.. AA ssuuffiicciiêênncciiaa ddeeccoorrrreennttee ddaa aattiivviiddaaddee ssaacceerrddoottaall,, ddaa rreelliiggiiããoo eemm ggeerraall,, ccoommpprreeeennddee aa ssuuaa nnaattuurreezzaa iinnssttrruummeennttaall,, oo sseeuu eemmpprreeggoo ppaarraa ““ccoonnssoolliiddaarr eell oorrddeennaammiieennttoo ssoocciiaall,, ppoorrqquuee ppuueeddee ggoobbeerrnnaarr eell ffuueerroo iinntteerrnnoo vveeddaaddoo aa llaa lleeyy ppoossiittiivvaa ee iinnffuunnddiirr ccoonn mmaayyoorr eeffiiccaacciiaa eell tteemmoorr aa llaa ddeessoobbeeddiieenncciiaa”” ((AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 110022)).. 333388 PPIINNCCIINN,,11996677,, pppp.. 9988--9999:: ““OOggnnii uuffffiicciioo hhaa uunnaa ccaauussaa iinn qquuaannttoo hhaabbiittuuss ee uunnaa iinn qquuaannttoo ppaarrttee ddeellllaa cciivviittaass.. LL’’hhaabbiittuuss ddeell ssaacceerrddoottee,, ddeettttoo ccaarraacctteerr,, vviieennee ddaa DDiioo aattttrraavveerrssoo uunn mmiinniisstteerroo cchhee nneell NNuuoovvoo TTeessttaammeennttoo eebbbbee oorriiggiinnee ddaa CCrriissttoo:: èè iill ppootteerree ddii aammmmiinniissttrraarree ll’’eeuuccaarreessttiiaa ee ggllii aallttrrii ssaaccrraammeennttii ee ddii lleeggaarree ee sscciioogglliieerree ddaaii ppeeccccaattii;; qquueessttaa èè ll’’aauuttoorriittàà ‘‘iinnsseeppaarraabbiillee’’ oo ‘‘eesssseennzziiaallee’’.. EEssssaa aappppaarrttiieennee nneellllaa sstteessssaa mmiissuurraa aa ooggnnii ssaacceerrddoottee””..

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ou capacidade, de ministrar os sacramentos eclesiásticos, como é o caso da Eucaristia e de

“ligar ou desligar”339.

Marsílio não tem dúvidas de que essa disposição da alma no sacerdote foi instituída

por Cristo e transmitida aos seus sucessores. Nesse sentido, ela não torna o bispo superior

ao sacerdote340. Então, por que alguém é chamado de bispo? A resposta está nas primeiras

comunidades cristãs. Nas cartas paulinas e nos Atos dos Apóstolos, segundo o paduano, o

seu autor não faz uma distinção essencial entre os dois termos. Quando Paulo se dirigia aos

presbíteros, ele usava a palavra “bispo” para “(...) lembrar-lhes a preocupação e a solicitude

que deviam ter para com os fiéis”341.

O Apóstolo prega que o sacerdote que deseja ser bispo, deve realizar ações

louváveis342. O sacerdote é bispo, no sentido de ser um pastor exemplar que cuida das

necessidades espirituais de seu rebanho. Na Era Apostólica, o seu número era reduzido e,

portanto, não havia preocupação em eleger um principal para cuidar dos assuntos pastorais

e também da organização e direção dos co-sacerdotes. Posteriormente, com o aumento de

presbíteros, o termo “bispo” passou a designar o sacerdote que supervisiona, não só os seus

fiéis, tal como ocorria na Igreja Primitiva, mas também os seus pares343. Perdeu-se,

portanto, o sentido originário do termo “bispo”.

De fato, em algum momento da história, ocorreu a hierarquização entre o bispo e o

sacerdote344. O primeiro era escolhido dentre os presbíteros para ser o “superintendente” da

comunidade dos fieis, leigos ou não. Ao exercer essa função, o bispo não recebeu um poder

idêntico ao do príncipe. Se supervisiona os leigos, ele o faz como os primeiros bispos da era

apostólica, ou seja, como um pastor solícito a serviço de suas ovelhas. Por outro lado, se

inspeciona os seus pares, ele o faz como um pai que zela por sua família, um pai espiritual

que ensina a Palavra e dá exemplo de autenticidade e fidelidade: ele cuida “(...) dos outros

333399 CCff.. DDPP,, IIII,, 1155//22,, pp.. 440088.. 334400 AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 222200:: ““PPoorr ttaannttoo,, [[MMaarrssíílliioo]] ssoossttiieennee qquuee llooss oobbiissppooss nnoo ttiieenneenn ppooddeerr ssoobbrree llooss ssaacceerrddootteess yy qquuee eell ooBBiissppoo ddee RRoommaa ttaammppooccoo lloo ttiieennee,, eenn vviirrttuudd ddeell ssaacceerrddoocciioo,, ssoobbrree llooss ddeemmááss oobbiissppooss,, aall ccoonnttrraarriioo ddee lloo qquuee pprreetteennddeenn ssuuss aaccttuuaalleess ssuucceessoorreess””.. 334411 DDPP,, IIII,, 1155//55,, pp.. 441122.. 334422 CCff.. DDPP,, IIII,, 1155//55,, pp.. 441122 334433 CCff.. DDPP,, IIII,, 1155//66,, pp.. 441133.. 334444 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 119977:: ““DD’’uunnee mmaanniièèrree oouu dd’’uunnee aauuttrree,, ss’’ééttaabblliitt aaiinnssii uunnee hhiiéérraarrcchhiiee eennttrree lleess pprrêêttrreess.. EEllllee eesstt iinnddiissppeennssaabbllee aauu bboonn oorrddrree.. OOnn ffaaiitt mmêêmmee ggrriieeff aauu ssoouuvveerraaiinn ppoonnttiiffee ddee ll’’aavvooiirr bboouulleevveerrssééee,, eenn ddoonnnnaanntt aauuxx ccaarrddiinnaauuxx oouu àà cceerrttaaiinnss éévvêêqquueess llee ppaass ssuurr lleess ppaattrriiaarrcchheess.. MMaaiiss cceettttee hhiiéérraarrcchhiiee eesstt dd’’oorriiggiinnee ssttrriicctteemmeenntt hhuummaaiinnee””..

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padres, diáconos e demais ministros, do mesmo modo que, atualmente, o superior de um

mosteiro exerce uma certa autoridade sobre os monges”345.

Ao presbítero ou bispo foram dadas funções que não formam parte dos atributos

essenciais do sacerdócio. Estar à frente, por exemplo, da organização dos rituais do templo

é uma tarefa que se impôs em decorrência da relação entre os sucessores dos Apóstolos. A

propósito, Marsílio toma emprestada a seguinte frase de São Jerônimo: “Ora, além das

tarefas relativas à organização eclesiástica, o que faz um bispo que um presbítero não possa

fazer?”346. Com efeito, os sacerdotes e os seus superiores, os bispos, mantêm uma relação

de igualdade no que diz respeito ao que é essencial ao seu ofício, a saber: o poder de

ensinar a Palavra e ministrar os sacramentos da Nova Lei.

Marsílio recorre aos Evangelhos e às epístolas paulinas para provar que o ofício

sacerdotal é idêntico em Pedro e nos demais Apóstolos. As palavras que expressam o poder

de ministrar o sacramento da Eucaristia, “Fazei isto em memória de mim...”, são dirigidas a

todos os Apóstolos, sem distinção. Igualmente, o poder das chaves e o de ensinar a Palavra.

Nesse sentido, Paulo não é diferente de Pedro. O Apóstolo recebeu diretamente de Deus a

sua missão, sem recorrer àqueles que eram considerados Apóstolos antes dele. Ele, antes de

conhecer Pedro, recebeu de Deus o seu Espírito, do mesmo modo que os outros Apóstolos,

para pregar a Nova Lei347. Nas Sagradas Escrituras, as evidências, segundo o paduano, são

claras em mostrar que apenas Cristo, e não mais outra pessoa, escolheu determinados fiéis

como Apóstolos. Elas demonstram, pois, que

“Pedro não recebeu imediatamente de Deus um poder maior que o dos outros Apóstolos,

poder esse que lhe assegurava uma preeminência sobre eles, e muito menos a jurisdição

coerciva para estabelecê-los no ofício sacerdotal, para separá-los ou destiná-los ao

ministério da pregação”348.

Para Marsílio, o fiel que ama a Verdade, ao conhecer a Nova Lei e ao compreender

o significado verdadeiro de suas palavras, notará que nenhum pregador exerceu poder sobre

seus pares. Quando havia problemas de interpretação da doutrina, os Apóstolos e fiéis mais

sábios se reuniam e debatiam sem que a última palavra fosse dada a Pedro ou a outro

334455 DDPP,, IIII,, 1155//77,, pp.. 441133.. 334466 AAppuudd DDPP,, IIII,, 1155//88,, pp..441155.. 334477 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//22--33,, pppp.. 442200--442211.. 334488 DDPP,, IIII,, 1166//44,, pp.. 442233..

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pregador. A solução e a decisão eram tomadas em conjunto. O “colégio apostólico, afirma

o paduano, tinha muito mais autoridade do que Pedro sozinho ou do que qualquer outro

Apóstolo”349. O colégio apostólico não resolvia apenas os problemas doutrinários. Era

responsável também pela distribuição das ofertas. Pedro não se encarregava, portanto, de

repartir os bens doados e não tinha o poder de delegar algumas pessoas para realizar essa

tarefa.

Pedro ficou à frente de sua comunidade de fiéis: a de Antioquia, mas não a de

Roma. Os outros Apóstolos também se tornaram bispos, mas cada qual na condição de líder

espiritual de seus fiéis, sem a interferência do Bispo de Antioquia na sua eleição e no seu

episcopado. Pedro não os designou, nem os consagrou para ficarem à frente de uma

determinada comunidade de fiéis. Muito menos tinha conhecimento dessas eleições

episcopais350. A esse respeito, o paduano utiliza uma passagem da Epístola aos Gálatas que,

segundo ele, é de uma clareza que dispensa as glosas: afirma que Tiago, Pedro e João

deram as mãos a Paulo e Barnabé em sinal de comunhão, ou seja, em sinal de igualdade351.

Marsílio reconhece que Pedro passou a ser chamado por alguns santos de “príncipe

dos Apóstolos”. Mas o que eles queriam dizer com essa expressão? A resposta marsiliana

para tal questão aponta para duas direções. Na primeira, se utilizaram o termo em sentido

estrito, então eles estão contra os ensinamentos de Cristo. Na segunda, se eles o usaram em

seu sentido amplo – o que é mais provável, segundo o paduano –, então estão em sintonia

com a doutrina evangélica. Neste caso, o termo pode ter sido utilizado por Pedro ser o mais

velho ou por receber conselhos e deliberações importantes do Mestre ou devido à sua fé.

Vale notar que Marsílio compara essa relação entre os Apóstolos com a que ocorre entre os

condes de seu tempo. Um conde não tem um poder maior que o outro no reino. No entanto,

eles reverenciam os mais virtuosos dentre seus pares e nem por isso recusavam-se a ser

súditos de seu monarca. De modo semelhante, entre os Apóstolos, o “rei” a quem eles

deviam obediência era o seu Mestre, a Verdade352.

Se o verdadeiro conhecimento da Era Apostólica causa estranheza a muitos fiéis, é

porque, acredita o paduano, a tradição de textos não-canônicos ofuscou os seus olhos.

334499 DDPP,, IIII,, 1166//66,, pp.. 442244.. 335500 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//88--99,, pp.. 442277.. 335511 CCff.. GGll 22,, 99;; ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 1166//99,, pp.. 442288.. 335522 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//1100,, pp.. 442299..

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Pouco importa se seus autores são considerados santos. O fato é que ela está bem

representada nas decretais humanas, onde se encontram declarações sem fundamento,

como a do Papa Anacleto: este afirma que os Apóstolos manifestaram desejo de tornar

Pedro o seu chefe por ser o mais virtuoso353. Para ver a sua inconsistência, Marsílio nos

pede que aceitemos essa afirmação como verdadeira e, com um pouco de lógica,

analisemos as suas conseqüências.

Se o critério é a perfeição cristã, então houve injustiça, pois nem todos os sucessores

de Pedro foram mais virtuosos do que alguns sacerdotes que sucederam aos outros

Apóstolos. Nesse sentido, os sucessores de Pedro não são melhores que os dos demais

Apóstolos354. Se o critério é a cidade romana, da qual Pedro teria sido bispo, então há uma

falsa interpretação da Lei Evangélica. De acordo com Marsílio, na capital do antigo

Império Romano, já existia um bispo antes de Pedro. Paulo, que permaneceu por dois anos

em Roma, tornou-se o principal pregador do Evangelho entre os gentios. Esta afirmação se

sustenta na Sagrada Escritura355. Aí consta também que, na Urbe, o Apóstolo tenha se

dirigido primeiramente aos judeus.

São lendas as afirmações que sustentam que Pedro tenha sido o primeiro bispo

daquela cidade. Marsílio descreve uma lenda popular de que Pedro chegou antes de Paulo

em Roma; os dois tiveram conflitos com Simão, o Mago; uniram-se para propagar e

defender a fé cristã e, por causa disso, morreram juntos como mártires356. Segundo o

paduano, essa história é de fonte apócrifa, pois Atos não faz uma menção à convivência

entre os dois Apóstolos em Roma; e nem Paulo, em suas cartas, toca nesse assunto.

Marsílio reconhece que Pedro foi bispo em Roma, assim como o foi na Antioquia.

Reconhece a validade da sucessão do trono petrino. Admite que os seus ocupantes eram

respeitados, mas relaciona esse respeito ao prestígio da Urbe. Não aceita, porém, a

afirmação de que Pedro tenha chegado naquela cidade antes de Paulo (a tese da

precedência) ou a de que os outros Apóstolos, assim como os seus sucessores, estão

subordinados à Sé romana (a tese da preeminência). Os cristãos “(...) podem muito bem

salvar-se sem precisar crer que S. Pedro é o chefe da Igreja ou que a Igreja romana foi

335533 DDPP,, IIII,, 1166//1122,, pp.. 443311.. 335544 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//1144,, pp.. 443322.. 335555 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//1155,, pp.. 443344,, eemm qquuee MMaarrssíílliioo mmeenncciioonnaa vváárriiaass ppaassssaaggeennss ddaass ccaarrttaass ppaauulliinnaass aa eessssee rreessppeeiittoo.. 335566 CCff.. DDPP,, IIII,, 1166//1166,, pp.. 443355..

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colocada à frente das outras Igrejas”357. Para o paduano, não há evidências nas Sagradas

Letras de que o Bispo de Roma tenha recebido o poder para “(...) instituir ou depor uma

pessoa, nem muito menos quanto a atribuir [aos Apóstolos] um lugar ou um povo e enviá-los a

anunciar a Palavra, nem quanto a interpretar a Escritura ou a doutrina católica, nem ainda a exercer

a jurisdição coerciva sobre qualquer pessoa neste mundo (...)”358.

Se Pedro e seus sucessores não têm competência para nomear ministros

eclesiásticos fora da esfera romana, então como ocorre a sucessão dos mestres da Palavra

na comunidade dos fiéis em geral? Para responder a essa questão, vamos a seguir mostrar o

que Marsílio compreende por eleição e missão sacerdotais na Era Apostólica. Em primeiro

lugar, ele chama a atenção para o fato de que a pedra que sustenta a ecclesia catholica é a

Palavra. O seu fundador deu a cada Apóstolo o sacerdócio, cujo ministério pode ser

exercido em qualquer lugar do mundo. O fiel, ao receber o sacerdócio, tem a liberdade de

escolher o lugar em que pretende realizar o seu apostolado.

O paduano observa que há casos excepcionais apontados pela Nova Lei, nos quais a

Revelação divina encarrega o sacerdote de exercer suas funções num determinado povo.

Cristo, por exemplo, revelou-se a Paulo e lhe pediu que fosse pregar o seu Evangelho aos

pagãos. Mas na maioria dos casos, o envio se dá através de uma disposição humana. O

Apóstolo também recebeu a sua missão através de uma decisão humana, quando, sobre ele

e Barnabé, alguns Apóstolos estenderam as mãos359. Por Revelação divina, Paulo e os

outros sacerdotes “(...) não receberam do Espírito Santo mais nenhuma graça além da que

antes já haviam obtido”360.

Os Apóstolos são iguais em relação ao seu próprio ofício. Um deles era suficiente, e

necessário, para indicar os seus sucessores nos casos em que os cristãos demonstravam

incapacidade para escolherem o mais apto para o ministério episcopal, nas situações que

apresentavam um número reduzido de fiéis ou um conjunto de crentes incultos361. Este é um

aspecto importante para o paduano: nas comunidades iniciantes, os crentes em geral não

escolhiam os seus guardiães da fé. Se eles ficassem encarregados das eleições episcopais,

muitos fiéis incultos poderiam se tornar sacerdotes. Marsílio se utiliza curiosamente de uma

335577 DDMM,, 1111//33,, pp.. 8800.. 335588 DDPP,, IIII,, 1166//1199,, pp.. 443377.. 335599 CCff.. AAtt 2222,, 1177--1188,, 2211;; GGll 22,, 99;; ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 1177//33,, pp.. 444411.. 336600 DDPP,, IIII,, 1177//33,, pp.. 444411.. 336611 CCff.. DDPP,, IIII,, 1177//66,, pp.. 444455..

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passagem da Primeira Epístola aos Coríntios [3, 1-3], para afirmar que, na Era Apostólica,

havia vários incultos que eram facilmente manipulados. Essas pessoas representam, para

ele, os “homens carnais” mencionados naquela passagem bíblica. Portanto, não era apenas

suficiente, mas também era necessário um Apóstolo no comando das nomeações

eclesiásticas.

O fato de existirem crentes incultos, contudo, não implica que o conjunto dos fiéis

não tenha importância nas ordenações eclesiásticas. Os Apóstolos, munidos de grande

sabedoria e virtude, recorriam aos fiéis para “(...) consultá-los acerca dos hábitos da pessoa

que havia de liderá-los”362 espiritualmente. Um critério fundamental para um cristão ocupar

um desses cargos é a sua conduta diante da lei – tanto a divina como a civil. Com o fim da

Era Apostólica, ele não perdeu o seu valor, nem os crentes tiveram o seu papel diminuído

nas eleições eclesiásticas.

Pelo contrário, o mencionado critério continua válido. A comunidade dos fiéis passa

a ter um papel mais decisivo à medida que se aperfeiçoa, seja através da razão, seja através

da Revelação. O depoimento da comunidade bem-organizada sobre os possíveis indicados

tem muito mais benefício do que o de uma pessoa apenas. Para Marsílio, se na Igreja

Primitiva o testemunho isolado de Pedro não tinha validade, muito menos terá o de um fiel

– leigo ou sacerdote – perante o de uma comunidade com maior capacidade de

discernimento363. Mas essa mesma comunidade de fiéis bem-organizada constitui também o

conjunto de cidadãos que instituíram o príncipe e as leis humanas. Marsílio afirma que o

legislador humano tem o poder de decidir se ordena ou não o fiel que lhe foi apresentado

para o ministério episcopal.

O legislador humano sabe que o ministro da Palavra exerce uma função pública.

Um sacerdote despreparado influencia negativamente, levando muitos fiéis a

desrespeitarem as leis civis. O paduano aponta casos de sacerdotes que utilizam o

confessionário para seduzir as mulheres mais jovens, virgens ou casadas. “Esse fato,

afirma, é um prejuízo civil de enorme gravidade aos que refletirem cuidadosamente acerca

do que poderá resultar de inconveniente”364.

336622 DDPP,, IIII,, 1177//77,, pp.. 444466.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1177//77,, pp.. 444455.. 336633 CCff.. DDPP,, IIII,, 1177//1100..1111,, pppp.. 444488--444499.. 336644 DDPP,, IIII,, 1177//1122,, pp.. 445522..

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Mas, segundo o paduano, o dano maior ocorre em relação à lei divina. Nesse

sentido, os prejuízos causados por um mau príncipe não são tão graves quanto os de um

pastor incompetente. Este, por não saber conduzir corretamente o seu rebanho no

verdadeiro caminho da salvação, leva-o para a morte eterna. Para o bem da comunidade dos

fiéis, é correto que o legislador humano, sendo cristão, destitua essas pessoas de seus

cargos, bem como seja o principal responsável pelas ordenações eclesiásticas. “Sem a sua

autorização, afirma Marsílio, não é lícito a nenhum bispo ou presbítero designar

ninguém”365 para os cargos eclesiásticos.

3. A função do sacerdote no Concílio

Vimos as atribuições que Marsílio dá ao legislador humano na comunidade perfeita

dos fiéis. Vale destacar aqui o fato de que ele tem não só o poder de confirmar ou de

destituir o ocupante do cargo eclesiástico, mas também o de administrar os bens

eclesiásticos. Assim, ele tem a liberdade de designar pessoas para fazerem a sua

distribuição entre os pobres. Ele se encarrega de cuidar para que os bens ofertados cheguem

ao destino desejado pelo doador. Compete-lhe também, além de vendê-los, transferi-los,

desapropriá-los em favor de uma boa causa; dar permissão para a construção do templo

cristão, aceitar ou rejeitar a indicação de um sacerdote para assumir uma determinada

Igreja; e possui competência para taxar as propriedades e as rendas eclesiásticas366.

Além dessas atribuições, há uma outra, não menos importante: o legislador humano

cristão, somente ele, convoca o Concílio Geral, escolhe os seus participantes, preside às

suas reuniões, bem como pune as pessoas que violarem as determinações conciliares367. Na

estrutura hierárquica do Concílio, o legislador cristão é superior aos sacerdotes

participantes. A unidade da fé não é um assunto reservado ao clero. O poder público não

336655 DDPP,, IIIIII,, 22//2211,, pp.. 669944.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pp.. 225555:: ““SSii llaa lleeyy ddiivviinnaa nnoo ddeeffiinnee ccóómmoo ssee ddeebbee eelleeggiirr aa uunn oobbiissppoo,, eell aassuunnttoo ddeebbee rreessoollvveerrssee rraacciioonnaallmmeennttee.. LLaa eelleecccciióónn ddeell oobbiissppoo ddee RRoommaa eess uunnaa iinnssttiittuucciióónn hhuummaannaa,, ccoommoo eell nnoommbbrraammiieennttoo ddee ccuuaallqquuiieerr oottrroo oobbiissppoo,, qquuee iinnccuummbbee aall pprríínncciippee ccoonn llaa aauuttoorriiddaadd ccoonncceeddiiddaa ppoorr eell lleeggiissllaaddoorr hhuummaannoo,, ccoonn aarrrreegglloo aa llaa ffoorrmmaa ddeetteerrmmiinnaaddaa ppoorr llaa lleeyy””.. 336666 CCff.. DDPP,, IIII,, 1177//1166..1177,, pppp.. 445555--445588.. 336677 DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pp.. 222244:: ““LLaa ccoollllaabboorraazziioonnee ttrraa ppootteerree ssppiirriittuuaallee ee ppootteerree cciivviillee nneellllaa ccoommmmuunniittaass ppeerrffeeccttaa ddeeii ccrriissttiiaannii ccuullmmiinnaa nneell CCoonncciilliioo ggeenneerraallee,, cchhee hhaa iill ccoommppiittoo ddii rriissoollvveerree llee iimmmmaannccaabbiillii ccoonnttrroovveerrssiiee cchhee ssoorrggoonnoo nneellllaa ssoocciieettàà ccrriissttiiaannaa,, sseennzzaa ttuuttttaavviiaa ppoosssseeddeerree llaa ffoorrzzaa ppeerr iimmppoorrrree llee ddeecciissiioonnii ddaa eessssoo pprreessee,, ppeerr ccuuii èè ggiiooccooffoorrzzaa iill rriiccoorrssoo aall lleeggiissllaattoorr ffiiddeelliiss ppeerr mmeetttteerrllee iinn aattttoo””..

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deve ser omisso, nem se sentir inferior quando o conjunto dos fiéis encontra-se em conflito

por questões de fé. Para os crentes, é evidente a seguinte sentença do Apóstolo: “Há um só

Senhor e uma só fé”368. Sendo assim, as disputas doutrinárias precisam ser resolvidas no

Concílio.

Não é o Bispo de Roma, ou seja, o sacerdote, a autoridade que comanda o Concílio.

Nem ele pune os hereges que desobedecem às determinações conciliares. Mas o legislador

civil, que se encarrega também de estabelecer as regras para a eleição da Sé Apostólica. Ele

ou o Concílio Geral sob sua direção é responsável pela nomeação dos ocupantes aos cargos

eclesiásticos em todo o mundo369.

O sacerdote se torna legitimamente chefe das Igrejas e dos prelados por vontade do

legislador cristão370. O paduano não tem dúvidas de que “(...) a única cabeça efetiva da

Igreja e o fundamento exclusivo da fé (...) é o próprio Cristo”371. No entanto, se a Igreja

possui um único sacerdote na liderança do ministério pastoral, fica mais fácil e digno

manter a unidade da fé372. Por isso deve ser feita com cuidado a escolha desse líder que irá

ocupar a Santa Sé e participará do Concílio Geral dos cristãos. O legislador deve então

adotar alguns critérios de seleção. Marsílio aponta os seguintes: a pessoa que se destaca no

Concílio, o testemunho de vida e o conhecimento da doutrina373.

O sacerdote escolhido como chefe dos demais deve exercer as suas funções em

Roma pelas seguintes razões. É a cidade, segundo o paduano, que se distingue das outras

por ter acolhido São Pedro e São Paulo; por ser admirada pelos outros Apóstolos; por sua

Igreja ter estado à frente das outras há muito tempo; por ter abrigado santos e doutores da fé

cristã; pela atenção que muitos de seus bispos deram às outras Igrejas; por ter um povo

piedoso; por causa do hábito dos fiéis em reverenciar mais o seu bispo do que os outros; e

336688 EEff 44,, 55.. CCff.. DDPP,, IIII,, 1188//88,, pp.. 446666.. 336699 CCff.. DDPP,, IIII,, 2211//1111,, pp.. 449999.. 337700 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 119977:: ““PPuuiissqquuii’’iill [[oo ssaacceerrddoottee]] ss’’aaggiitt ddee ppoouuiissssaannccee ddee ggoouuvveerrnneerr,, ‘‘dd’’oorriieenntteerr eett ddee ddiirriiggeerr’’ ccoommmmee llee pprriieeuurr ddiirriiggee sseess mmooiinneess,, oouu llee ccaappiittaaiinnee ddiirriiggee sseess ssoollddaattss ((oonn ppaarrllee mmêêmmee ddee ll’’iimmppeerraattoorr)),, iill ss’’aaggiitt bbiieenn dd’’uunnee jjuurriiddiiccttiioonn,, qquuii ppeeuutt êêttrree ccooaaccttiivvee ssii llee llééggiissllaatteeuurr hhuummaaiinn llee ddeecciiddee aaiinnssii.. AAuuccuunn pprrêêttrree nn’’aa qquuaalliittéé ppoouurr ss’’aarrrrooggeerr llee ddrrooiitt ddee rrééggeenntteerr lleess aauuttrreess.. IIll ddooiitt aatttteennddrree qquuee llee llééggiissllaatteeuurr hhuummaaiinn llee cchhaarrggee ddee cceettttee mmiissssiioonn””.. 337711 DDPP,, IIII,, 2222//55,, pp.. 550088.. 337722 CCff.. DDPP,, IIII,, 2222//66,, pp.. 551111.. 337733 CCff.. DDPP,, IIII,, 2222//88,, pp.. 551122..

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devido “(..) à autoridade coerciva que seu povo e seu Príncipe exerceram sobre todos os

outros monarcas e nações do mundo (...)”374.

O Bispo de Roma tem seu lugar e função no Concílio. Compete-lhe propor a pauta

da reunião; elaborar os seus relatórios e apresentá-los aos participantes; esclarecer às

Igrejas os temas discutidos. Se pode punir aqueles que se recusam a aceitar as

determinações conciliares, ele o faz por ser uma decisão conciliar, do legislador humano

“(...) e não pelo fato de tal bispo possuir um poder coercivo para infligir um castigo pessoal

e concreto em qualquer pessoa neste mundo”375. O Concílio prescreve aquilo que não foi

determinado nem proibido pelas Escrituras. Esses preceitos humanos provenientes da

assembléia conciliar devem ser observados por todos os fiéis cristãos “(...) durante todo o

tempo de sua vigência, considerando-se que os mesmos são leis humanas estabelecidas

simplesmente para a utilidade comum das criaturas para a determinada época (...)”376.

O Concílio é uma espécie de conselho dos notáveis em assuntos da fé cristã. Ele tem

a função de resolver os problemas de interpretação do Livro Sagrado, esclarecer questões

controversas a respeito da fé cristã, buscar a unificação da liturgia, apontar e rejeitar as

doutrinas errôneas, comunicar a verdadeira doutrina, debater matérias de interesse comum

dos fiéis e estabelecer determinações a serem seguidas por todos os crentes. O Concílio dá a

interpretação correta de muitas passagens controversas da Bíblia. A sua ausência facilita a

propagação de idéias falsas acerca da Verdade; as quais, por sua vez, colocam em risco a

unidade da comunidade dos fiéis. A sua existência impede também que determinado

“grupelho de homens de negócios”377 escolha o Bispo de Roma.

Quem participa dessa reunião, além do Papa e do legislador cristão, que trata de

assuntos que atingem não apenas a vida futura, mas também a presente? Sacerdotes, que

são os mestres da Palavra e estão encarregados de ensiná-la às pessoas; os conhecedores da

lei divina; os leigos sábios e virtuosos. Representantes da Igreja latina e da grega são

convocados pelo príncipe do povo romano378. Foi o que fez, segundo Marsílio, o Imperador

Constantino I no Concílio de Nicéia; os Imperadores Valentiniano e Marcião no Concílio

dos 630 bispos, o rei Receswinth no VII Concílio de Toledo, entre outros casos de

337744 DDPP,, IIII,, 2222//88,, pp.. 551133.. 337755 DDPP,, IIII,, 2222//66,, pp.. 551100.. 337766 DDMM,, 55//2200,, pp.. 5577.. 337777 EExxpprreessssããoo ddee MMaarrssíílliioo.. CCff.. DDPP,, IIII,, 2244//99,, pp.. 554433.. 337788 CCff.. DDPP,, IIII,, 2200,, pppp.. 447788--448877;; ttaammbbéémm DDMM,, 1122//44,, pppp.. 8833--8844..

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convocação379. Desses governantes, destaca-se Constantino I por ter sido o primeiro

Imperador do Império Romano a aceitar publicamente a Verdade e a dar à Igreja de Roma e

ao seu Bispo a autoridade sobre as demais Igrejas. Ele foi ainda, afirma o paduano, “(...) o

primeiro Imperador a autorizar os cristãos a se reunirem publicamente e a construírem

igrejas ou templos (...)”380.

Contudo, caso os fiéis não possuam um “legislador cristão que os reconduza à

ordem e mantenha sua unidade de crença”381, quem convocará o Concílio Geral de todos os

fiéis cristãos para tratar das questões doutrinárias e da sucessão do Bispo de Roma? Esta

questão, o paduano a responde apoiando-se nas Escrituras. Para ele, os livros canônicos não

provam que havia dentre os Apóstolos um que recebeu de Cristo uma autoridade maior para

convocar as assembléias conciliares. Mostram, porém, em que condições legítimas

poderiam fazer a convocação. A primeira delas é o crente ter sido eleito por seus pares; a

segunda, destacar-se nas qualidades virtuosas. Na hipótese de Pedro ser o responsável pela

convocação, ele conseguiu fazê-la ou porque foi escolhido pelos outros Apóstolos ou

porque o seu comportamento virtuoso os influenciou382. Marsílio fica com a última

alternativa:

“Como nas assembléias civis, os seus participantes muitas vezes concedem aos mais zelosos, estimados e aos mais idosos, um lugar especial ou o uso da palavra ou o direito a debate, e ainda outras honrarias, não porque seus concidadãos estejam subordinados à sua autoridade, mas exclusivamente por causa da reverência que aparenta ser devida às pessoas mais velhas e virtuosas, assim também, é muito provável, e de conformidade com o que diz a Escritura, que os demais Apóstolos tenham concedido essa honra a São Pedro”383.

337799 CCff.. DDPP,, IIII,, 2211//22,, pppp.. 449900--449911.. 338800 DDPP,, IIII,, 1188//77,, pp.. 446666.. DDAAMMIIAATTAA,, 11998833,, pppp.. 222255--222266:: ““((......)) iill DDeeffeennssoorr ppaacciiss aaffffeerrmmaa cchhee uumm CCoonncciilliioo iinn ttaannttoo èè ggeenneerraallee iinn qquuaannttoo ccooiinnvvoollggee ttuuttttii:: iinn pprriimmoo lluuooggoo cceerrttaammeennttee ii cchhiieerriiccii,, ddoovveennddoovviissii ddiissccuutteerree pprroobblleemmii ddii ffeeddee ee ddii ccuullttoo,, ddii ccuuii eessssii ssoonnoo ppeerr pprrooffeessssiioonnee mmaaeessttrrii;; ppooii ii pprriinncciippii eedd ii ggoovveerrnnaannttii iinn ggeenneerree,, aaii qquuaallii iinnccoommbbee ll’’oobbbblliiggoo ddii pprrooccuurraarree llee pprroovvvviissttee ssuuffffiicciieennttii aa ttaannttee ppeerrssoonnee rriiuunniittee,, ddeessiiggnnaarree aallccuunnii rraapppprreesseennttaannttii ddeeii lloorroo ppaaeessii,, ccoossttrriinnggeerree aa pprreesseennttaarrssii ggllii eevveennttuuaallii rreenniitteennttii;; iinnffiinnee ii llaaiiccii sseennzzaa ccaarriicchhee ppuubbbblliicchhee,, ccoommee tteessttiimmoonniiaa iill ffaattttoo cchhee aaii pprriimmii ccoonncciillii ddeellllaa CChhiieessaa pprreennddeevvaannoo ppaarrttee aanncchhee ggllii iimmppeerraattoorrii ccoomm ii lloorroo ffuunnzziioonnaarrii ee llee lloorroo ccoonnssoorrttii ee ccoommee lloo eessiiggee llaa nnoottaa iimmpprreeppaarraazziioonnee ddoottttrriinnaallee ddii ttaannttii cchhiieerriiccii””.. 338811 DDPP,, IIII,, 2222//1166,, pp.. 552211.. EEmm DDMM nnoottaammooss ccllaarraammeennttee qquuee eessssee lleeggiissllaaddoorr ccrriissttããoo aa qquueemm MMaarrssíílliioo ffaazz rreeffeerrêênncciiaa éé oo pprríínncciippee ddoo ppoovvoo rroommaannoo:: ssee oo ccoonnjjuunnttoo ddaass pprroovvíínncciiaass oouu ssuuaa ppaarrttee pprreeppoonnddeerraannttee ttrraannssffeerriiuu oo ppooddeerr ddee lleeggiissllaarr aaoo ppoovvoo rroommaannoo ee eessttee,, ppoorr ssuuaa vveezz,, aaoo sseeuu pprríínncciippee,, eennttããoo oo ppooddeerr ddee lleeggiissllaarr ffiiccaarráá nnaass mmããooss ddoo pprríínncciippee ddoo ppoovvoo rroommaannoo aattéé oo mmoommeennttoo eemm qquuee ““((......)) oo ccoonnjjuunnttoo ddaass pprroovvíínncciiaass nnããoo rreevvooggaarr ttaall ccoonncceessssããoo ffeeiittaa aaoo ppoovvoo rroommaannoo ee eessttee nnããoo ffiizzeerr aa mmeessmmaa ccooiissaa eemm rreellaaççããoo aaoo sseeuu PPrríínncciippee”” ((DDMM,, 1122//11,, pp.. 8811)).. 338822 CCff.. DDPP,, IIII,, 2222//1133,, pp.. 551177.. 338833 DDPP,, IIII,, 2222//1144,, pp.. 551188.. DDPPaacciiss,, IIII,, 2222//1144,, pppp..335522--335533:: ““SSiiccuutt qquuaannddooqquuee iinn cciivviillii ccoonnggrreeggaattiioonnee ssttuuddiioossiioorriibbuuss,, aannttiiqquuiioorriibbuuss,, eett mmaaggiiss aapppprroobbaattiiss vviirriiss aa ssuuiiss ccoonncciivviibbuuss,, nnuullllaa ssiibbii ttaammeemm aauuccttoorriittaattee ssuubbiieeccttiiss,, sseedd pprroopptteerr ssoollaamm rreevveerreennttiiaamm qquuaaee aammpplliioorrii vviirrttuuttii eett aaeettaattii ddeebbeerrii vviiddeettuurr pprraaeerrooggaattiivvaa sseeddeennddii,,

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Na falta do legislador cristão, o Concílio não fica impedido de ser convocado, pois,

entre os fiéis há ao menos um que consegue – devido ao seu zelo, sua prudência, sua

sabedoria e seu testemunho de fé – reunir outros crentes ilustres, clérigos e leigos, gregos e

latinos, numa assembléia conciliar, sem se impor, contudo, como príncipe do povo romano.

Esse caso excepcional aponta para o fato da necessidade da sua convocação nos momentos

em que a doctrina christiana é ameaçada por falsas interpretações.

De fato, em relação ao problema das interpretações tendenciosas da doutrina cristã,

Marsílio está convencido de que ele é resolvido, não pelo Papa ou por um teólogo

eminente, mas através do Concílio Geral, pois os indivíduos isolados ou separados são

incapazes de chegar à verdade384. Do mesmo modo que uma porção de pessoas em

conjunto, e não um homem isoladamente, consegue soltar o navio de suas amarras, uma

porção de fiéis cristãos reunidos em assembléia são capazes de “(...) esclarecer e definir

alguma dificuldade quanto ao texto da Escritura (...)”385. A própria Escritura, segundo o

paduano, mostra claramente que os Apóstolos e anciãos se reuniam com toda a Igreja, sob a

inspiração do Espírito, com o propósito de dirimir as dúvidas referentes à doutrina386.

Por mais que o Bispo de Roma seja bem preparado espiritual e teologicamente e

possua uma boa equipe de consultores, ele tem grandes chances de errar na solução dos

problemas doutrinários. Diferentemente do Papa, o Concílio é infalível e o seu

pronunciamento é o do Filho de Deus, não porque os seus participantes foram incumbidos

de atender a vontade da Igreja local que representam, mas porque nele, a exemplo das

primeiras assembléias conciliares, há efetivamente a assistência do Espírito de Deus387. Ele

possui, portanto, o que Mme. Quillet denomina de “a chave da ciência”388.

O Concílio é a personificação da Igreja Universal. O Papa está abaixo dele. Apesar

de congregar fiéis discípulos de Cristo, o clero não tem a chave da ciência, nem a chave do

llooqquueennddii,, eett ddeelliibbeerraannddii ccoonncceeddiittuurr,, eett iinn aalliiiiss hhoonnoorraattiioonniibbuuss ddeeffeerrttuurr qquuaammpplluurriibbuuss;; ssiicc vveerriissiimmiillee vvaallddee aacc iiuuxxttaa SSccrriippttuurraaee sseerriieemm pprroopptteerr iiaamm ddiiccttaass ccaauussaass cceetteerrii aappoollttoollii PPeettrroo ddeeffeerreebbaanntt””.. 338844 CCff.. DDMM,, 1122//55,, pp.. 8844.. 338855 DDMM,, 1122//55,, pp.. 8844.. 338866 CCff.. DDMM,, 1122//55,, pp.. 8855.. 338877 DDPP,, IIII,, 1199//22,, pp.. 447700:: ““OOrraa,, ccoommoo aa ccoonnggrreeggaaççããoo ddooss ffiiééiiss oouu oo CCoonnccíílliioo rreepprreesseennttaa vveerrddaaddeeiirraammeennttee ppoorr ssuucceessssããoo,, nnooss ddiiaass aattuuaaiiss,, aa ccoonnggrreeggaaççããoo ddooss AAppóóssttoollooss,, ddooss aanncciiããooss ee ddoo ccoonnjjuunnttoo ddooss ffiiééiiss,, éé vveerrddaaddee,, ee bbeemm mmaaiiss sseegguurroo,, qquuee,, nnaass ddeeffiinniiççõõeess aacceerrccaa ddooss ssiiggnniiffiiccaaddooss dduuvviiddoossooss ddee ppaassssaaggeennss ddaa EEssccrriittuurraa ((......)),, aa ggrraaççaa ddoo EEssppíírriittoo SSaannttoo,, gguuiiaa ee rreevveellaaddoorraa,, eessttáá pprreesseennttee dduurraannttee aass ddeelliibbeerraaççõõeess ddoo CCoonnccíílliioo GGeerraall””.. CCff.. ttaammbbéémm DDPP,, IIII,, 2288//2211,, pp.. 664400.. 338888 CCff.. QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pppp.. 117799--118800;; ccff.. ttaammbbéémm AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 223311--223322..

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poder (pertencente ao legislador humano). Mas o que acontece na realidade, segundo

Marsílio, é justamente o contrário: o Bispo de Roma está acima do Concílio e o clero

acredita que possui ambas as chaves. Imbuídos dessa falsa crença, tomam decisões

equivocadas e heréticas: ao invés de nomearem os doutores da Sagrada Escritura para

estarem à frente do rebanho, escolhem fiéis ignorantes, imaturos, indivíduos despreparados

e, em alguns casos, criminosos. “Os bispos, afirma Marsílio, nossos contemporâneos, não

sabem pregar a Palavra de Deus ao povo, nem combater as doutrinas eivadas de erros,

propagadas pelos hereges”389.

Se essas pessoas possuem algum conhecimento, este se refere aos negócios –

especialmente aos ilícitos. Ameaçam com a excomunhão os fiéis que não cumprem as suas

determinações ou fazem oposição às suas decretais. O que é, para o paduano, uma heresia.

Pois Cristo “(...) não desejou que os pecadores fossem excluídos da comunidade dos fiéis,

exceto quando tivessem praticado crimes graves (...)”390. Preocupam-se mais em administrar

os bens materiais do que em cuidar da saúde da alma de seus fiéis. Por isso, “(...)

consideram os Doutores em Teologia como inúteis, porque eles são simples e permitiriam

que a Igreja fosse dilapidada (...)”391.

4. A submissão do sacerdote ao governante civil

Se os bens espirituais são mais elevados que os materiais, nem por isso colocam

Cristo ou seus ministros acima da lei civil. O próprio Cristo, segundo Marsílio, deixou isso

claro em sua declaração “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 17,

20-21): os cristãos, como membros da civitas, devem estar subordinados a César e, como

seguidores da Verdade, respeitar o culto e os mandamentos divinos.

Os mestres da Verdade prestam um serviço de grande valor à comunidade ao

divulgarem as coisas do reino celeste. Nem por isso devem exigir dinheiro em troca ou a

isenção tributária. Cristo não permitiu que seus ministros deixassem de cumprir os seus

338899 DDPP,, IIII,, 2244//55,, pp.. 554400.. 339900 DDPP,, IIII,, 2233//1100,, pp.. 553344.. 339911 DDPP,, IIII,, 2244//77,, pp.. 554411..

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deveres para com o governo civil392. Para Marsílio, a Verdade ensina que esses deveres

devem ser assumidos por seus mestres, não como uma coação, mas como algo para o qual

se mostra a “reverência devida”. Este termo, Marsílio o tomou emprestado de São Bernardo

para revelar o valor dos impostos na comunidade polítia393. Cristo, afirma o paduano, “(...)

quis pagar o tributo associando-se a Pedro dum modo especial dentre os demais Apóstolos,

ele que (...) ia ser o principal mestre e pastor da Igreja, a fim de que, apoiando-se nesse

exemplo, nenhum dos outros pastores mais tarde, se recusasse a pagar o tributo”394.

Segundo Marsílio, a isenção tributária só ocorre, no regime monárquico, apenas

entre os filhos do príncipe. Uma vez que o Verbo se encarnou na condição de súdito e,

portanto, não pertencia à realeza deste mundo, não faz sentido que seus ministros tenham os

privilégios dos filhos do príncipe. É verdade que Cristo usa em sua pregação o termo

“filhos”, mas o seu conceito designa, observa o paduano, “(...) os naturais dos reinos, (...)

não os filhos dos reis, pois, caso contrário, suas palavras não fariam sentido, dado que as

proferiu no plural, se referindo tanto a Ele próprio quanto a Pedro, que, como é evidente,

não eram filhos de tais reis”395. De fato, Cristo viveu neste mundo, sob o domínio do

Império Romano. É evidente que ele ou Pedro não foram filhos do Imperador, quer

entendamos a filiação no seu sentido biológico ou no seu sentido figurado. Filho de Deus e

filho de César são termos que não mantém uma relação de identidade. Eles não designam a

mesma pessoa. Para Marsílio, a pretensão de muitos adversários da Verdade em interpretá-

los como tendo a mesma referência, demonstra o desconhecimento acerca da história de

Cristo.

Cristo, por exemplo, não questionou a autoridade de Pilatos, que era à época o

vigário do Imperador Romano. Ao contrário, deu testemunho de submissão ao governo

civil. No tribunal, quando Pilatos lhe pergunta “De onde és tu?”, o Filho de Deus cala-se. O

339922 QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp..220011:: ““MMêêmmee ss’’iill [[CCrriissttoo]] aa ppaayyéé iinnjjuusstteemmeenntt llee ttrriibbuutt,, cc’’eesstt ppoouurr bbiieenn ssiiggnniiffiieerr llee ccaarraaccttèèrree vvoolloonnttaaiirree ddee ssaa ssoouummiissssiioonn àà ll’’aauuttoorriittéé tteemmppoorreellllee,, qquueellllee qquu’’eellllee ssooiitt,, mmêêmmee iinnjjuussttee””.. 339933 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 223311:: ““LLee bboonn sseennss nn’’iinnddiiqquuee--tt--iill ppaass qquuee ll’’oonn nnee ppeeuutt aacccceepptteerr lleess bbiieennffaaiittss ddee llaa pprrootteeccttiioonn ssééccuulliièèrree,, ssaannss eenn aassssuummeerr lleess cchhaarrggeess?? TToouutt cciittooyyeenn ddooiitt êêttrree pprrêêtt àà ddeeffeennddüü llaa ppaattrriiee.. IIll ddooiitt ddee mmêêmmee êêttrree pprrêêtt àà ppaayyeerr lleess ttrriibbuuttss qquuii lluuii ssoonntt ddeemmaannddééss.. DDuu rreessttee,, lleess bbiieennss dduu cclleerrggéé ssoonntt ttoouuss dd’’aanncciieennnneess pprroopprriiééttééss llääiiqquueess.. OOrr iillss oonntt ééttéé ttrraannssfféérrééss aavveecc lleess cchhaarrggeess qquu’’iillss ccoommppoorrttaaiieenntt.. EEnn vveennddaanntt oouu eenn ddoonnnnaanntt uunn ddoommaaiinnee aauu cclleerrggéé,, oonn nnee ppeeuutt llee ssoouussttrraaiirree àà ll’’oobblliiggaattiioonn ffiissccaallee.. AAjjoouuttoonnss qquuee ll’’iimmmmuunniittéé ddeess cclleerrccss aa ffaavvoorriisséé lleess pprraattiiqquueess ssiimmoonniiaaqquueess.. LLaa ppaappaauuttéé aappppââttee lleess ccaannddiiddaattss aauu ssaacceerrddooccee oouu lleess ppoossttuullaannttss aauuxx ccoommmmuunnaauuttééss rreelliiggiieeuusseess ppaarr llaa pprroommeessssee dd’’uunnee eexxeemmppttiioonn ffiissccaallee aauussssii ssoorrddiiddee qquuee ssccaannddaalleeuussee””.. 339944 DDPP,, IIII,, 44//1100,, pp.. 224422.. 339955 DDPP,, IIII,, 44//1111,, pp.. 224433..

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vigário de César, então, lhe declara que tem poder para mandar crucificá-lo ou libertá-lo.

Em seguida, Cristo afirma que esse poder vem do alto396. Ora, esse relato do Evangelho [Jo

19, 9-11] não só prova que o vigário do Imperador possuía o poder de julgá-lo, como

também determina a origem divina do governo civil. Se este pode ser usado incorretamente

é uma questão que não compete aos sacerdotes resolver. Para Marsílio, Santo Agostinho,

pede ao crente que escute o que dizem Cristo e o Apóstolo: este também ensina que o

governo civil é de origem divina; Bernardo declara o mesmo: o Filho de Deus reconhece

que o poder de Pilatos vem de cima397.

Os Evangelhos de Mateus [20, 25-28] e de Lucas [22, 24-27] mostram um caso em

que os Apóstolos discutem entre si sobre quem será o maior. Cristo intervém e afirma que o

maior será o menor, ou seja, aquele que se propõe viver como servo: “(...) servir na esfera

temporal, não para dominar ou para estar à frente da mesma”398, mas para ensinar e

testemunhar a Verdade. Este serviço não necessita da força militar. Não há nada que

proteger ou impor na atividade apostólica, no ensino da Palavra. A expressão “não será

assim entre vós!” constitui uma regra fundamental para o exercício dessa atividade. Ela

determina o seguinte: “Não imite o príncipe”; ou: “afaste-se dos negócios seculares”. O

sacerdote, portanto, imita o seu Mestre quando não se envolve na mais secular das

atividades, qual seja, “(...) o governo ou o julgamento coercivo dos atos contenciosos, visto

ordenar e regular todos os negócios do mundo”399.

A verdadeira Tradição, segundo o paduano, ensina que os presbíteros, enriquecidos

com os dons espirituais e motivados a distribuí-los livremente aos fiéis, dispõem-se a

apartar-se das coisas materiais. As chaves do reino dos céus fecham as portas aos fiéis que

faltam ao cumprimento do dever cristão. Se eles afirmam que elas representam o poder de

339966 SSeegguunnddoo MMaarrssíílliioo,, CCrriissttoo,, aaoo ddiizzeerr aa PPiillaattooss qquuee oo sseeuu ppooddeerr éé ddiivviinnoo,, nnããoo pprreetteennddeeuu qquueessttiioonnaarr oo ppooddeerr ppoollííttiiccoo,, mmaass ddeemmoonnssttrroouu qquuee aaccaattaa aass ddeecciissõõeess ddoo ggoovveerrnnoo cciivviill ee qquuee eessttee dduurraa oouu vviivvee sseemmpprree ee nnããoo mmoorrrreerráá jjaammaaiiss.. KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 118811 cchhaammaa--nnooss aa aatteennççããoo ppaarraa oo ffaattoo ddee qquuee eerraa ccoommuumm nnaa IIddaaddee MMééddiiaa ““aa ccrreennççaa nnaa ccoonnttiinnuuiiddaaddee ddoo iimmppéérriioo iinn ffiinneemm ssaaeeccuullii””.. AA pprrooppóóssiittoo,, CCiinnoo ddee PPiissttóóiiaa ((11227700--11333377)) –– aassssiimm ccoommoo oo ppaadduuaannoo,, ffaavvoorráávveell aaoo ppaarrttiiddoo ddooss GGiibbeelliinnooss –– ddeeccllaarraa:: ““TTaammppoouuccoo éé aabbssuurrddoo qquuee oo iimmppéérriioo ddeevveessssee sseerr ddeerriivvaaddoo ddee DDeeuuss ee ddoo ppoovvoo:: oo IImmppeerraaddoorr vveemm ddoo ppoovvoo,, mmaass oo iimmppéérriioo éé cchhaammaaddoo ddiivviinnoo aa ppaarrttiirr ddee DDeeuuss”” ((AAppuudd KKAANNTTOORROOWWIICCZZ,, 11999988,, pp.. 118833)).. DDoo DDeeuuss eetteerrnnoo pprroovvéémm oo aassppeeccttoo ssuupprraappeessssooaall ddoo ggoovveerrnnoo cciivviill,, eennqquuaannttoo ddoo ppoovvoo sseemmppiitteerrnnoo oorriiggiinnaa--ssee oo sseeuu aassppeeccttoo ppeessssooaall ((oo ggoovveerrnnaannttee)).. OOrraa,, aassssiinnaallaa KKaannttoorroowwiicczz ((11999988,, pp.. 118833)),, ssee sseegguuiimmooss oo rraacciiooccíínniioo ddee CCiinnoo ddee PPiissttóóiiaa,, ppooddeemmooss nnooss ppeerrgguunnttaarr qquuaall aa iimmppoorrttâânncciiaa ddaa ccooooppeerraaççããoo ddaa IIggrreejjaa,, jjáá qquuee aattuuaamm jjuunnttooss sseemm oo sseeuu aauuxxíílliioo,, ddee uumm llaaddoo,, oo DDeeuuss eetteerrnnoo,, ee,, ddee oouuttrroo,, oo ppoovvoo sseemmppiitteerrnnoo.. 339977 CCff.. DDPP,, IIII,, 44//1122,, pp.. 224466.. 339988 DDPP,, IIII,, 44//1133,, pp.. 224477.. 339999 DDPP,, IIII,, 55//11,, pp.. 225511..

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julgar os atos temporais, então os ministros da Palavra “metem a foice em seara alheia”400.

Os deveres cristãos consistem no conjunto de preceitos morais que se fundamentam na Lei

Evangélica e se voltam para os atos que os fiéis devem realizar para conquistar a vida

futura. Não são objetos do direito civil. Se os crentes são cumpridores dos deveres civis, é

uma questão que compete ao legislador humano decidir. O Apóstolo, nas palavras de

Marsílio, “(...) não disse a um presbítero ou bispo: ‘institui’, como tinha feito no caso dos

padres, muito menos ordenou que os atos civis fossem julgados pelos presbíteros ou bispos,

antes, pelo contrário, ele os proibiu de fazer isso”401.

Marsílio transcreve no DP um longo trecho do De Consideratione – cujo autor, São

Bernardo, recorre às cartas paulinas – para dizer que os sacerdotes foram encarregados de

exercer uma função eminente e sublime e, por isso, não se envolvem em questões

temporais, as quais não possuem valor espiritual e ficam a cargo, numa expressão de São

Bernardo, de “pessoas menos consideradas”402.

Apesar de o cargo eclesiástico ser maior em dignidade, observa o paduano, os seus

ocupantes devem se submeter ao governo civil. Para ele, o Apóstolo é claro a esse respeito.

De fato, não existe poder que não tenha origem divina403. Se alguém se lhe opõe, torna-se

inimigo de Deus404. A sua recusa implica a condenação divina. O governo civil, nas

palavras de São Paulo que Marsílio toma emprestadas, “(...) é instrumento de Deus para

fazer justiça e punir quem pratica o mal”405.

Para o paduano, o significado lógico de “todo” na expressão paulina “toda alma se

submeta às autoridades constituídas”, significa as pessoas sem exceção. Uma proposição

equivalente é a seguinte: “Cada pessoa dedica-se inteiramente a obedecer o legislador

440000 SSããoo BBeerrnnaarrddoo.. AAppuudd DDPP,, IIII,, 55//22,, pp.. 225533.. 440011 DDPP,, IIII,, 55//33,, pp.. 225544.. 440022 CCff.. DDPP,, IIII,, 55//33,, pppp.. 225544--225555.. 440033 AA pprrooppóóssiittoo TToossccaannoo nnoottaa qquuee,, aaoo ccoonnttrráárriioo ddaa pprriimmeeiirraa ppaarrttee ddoo DDPP,, nnaa sseegguunnddaa MMaarrssíílliioo ““((......)) aaffffeerrmmaa cchhee ooggnnii ppootteerree ddeerreevvaa ddaa DDiioo.. CCiiòò sseemmbbrreerreebbbbee iinn ccoonnttrraaddddiizziioonnee ccooll ppootteerree aassssoolluuttoo rriiccoonnoosscciiuuttoo aall ppooppoolloo nneell pprriimmoo ddiissccoorrssoo ddeell DDeeffeennssoorr,, ee ccoomm qquueelllloo ddeeii ffeeddeellii nneell sseeccoonnddoo.. PPeerr ddiissssiippaarree ttaallee ccoonnttrraaddddiizziioonnee èè ssuuffffiicciieennttee tteenneerr pprreesseennttee iill ccoommppiittoo cchhee iill MMaaiinnaarrddiinnii ssii pprrooppoonnee,, cciiooèè vvuuoollee ddiimmoonnssttrraarree cchhee llaa CChhiieessaa nnoonn ppuuòò aavveerree aallccuunn ppootteerree ccooeerrcciittiivvoo”” ((TTOOSSCCAANNOO,, 11998811,, pp.. 113322)) 440044 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 225500:: ““LLeess pprriinncceess ssoonntt eennvvooyyééss ppaarr DDiieeuu ppoouurr llaa ppuunniittiioonn ddeess mmaallffaaiitteeuurrss.. CCeettttee qquuaalliittéé eesstt rraappppeellééee ssppéécciiaalleemmeenntt lloorrssqquu’’iill ss’’aaggiitt ddee ccoonnffiieerr aauu pprriinnccee ddeess ttââcchheess pprroopprreemmeenntt ssppiirriittuueelllleess,, tteellllee cceellllee ddee ddeeffiinniirr lleess ccoonnddiittiioonnss ddaannss lleessqquueelllleess uumm ppoonnttiiffee ddooiitt êêttrree ddééssiiggnnéé.. CC’’eesstt llaa llooii ddiivviinnee qquuii ffaaiitt uunnee oobblliiggaattiioonn aauuxx rrooiiss ddee rreettiirreerr aauuxx éévvêêqquueess rroommaaiinnss llee ppoouuvvooiirr aabbuussiiff qquu’’iillss ssee ssoonntt aarrrrooggéé ssuurr lleess ccoosseess ssaaccrrééeess.. CC’’eesstt ppaarr ll’’oorrddoonnnnaannccee ddee DDiieeuu ((bbiieenn qquuee ppaarr ddeecciissiióónn dduu lliibbrree aarrbbiittrree hhuummaaiinn)) qquuee llee jjuuggee ccooaaccttiiff eexxeerrccee ssaa jjuussttiiccee ssuurr ttoouuss lleess cclleerrccss””.. 440055 AAppuudd DDPP,, IIII,, 55//44,, pp.. 225566..

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humano”. Se alguém é perfeito no corpo de Cristo, a perfeição cristã está longe de torná-lo

a parte preponderante. No caso do sacerdote, que pratica a perfeição cristã, se ele serve a

um príncipe solícito, este deve ser tratado como um pai adotivo; se ele serve a um príncipe

severo, este deve ser considerado como o tentador. Se ele prega e pratica a desobediência

civil, coloca em perigo a ordem estabelecida por Deus. A esse respeito, o paduano afirma:

“Isso, porém, é tão grave que as pessoas que se revoltam atraem sobre si a própria

condenação”406.

Há um caso de desobediência civil tão grave quanto os outros. Vamos supor um

príncipe que, ao contrário da ordem estabelecida por Deus, afirma que o seu poder é de

origem divina, mas lhe é transmitido pelo Papa. Determina que os seus sucessores sejam

confirmados pelo Bispo de Roma. Este caso, Marsílio o relaciona à seguinte declaração de

Santo Agostinho: “(...) se o Imperador determina algo e Deus manda fazer uma coisa, é

preciso antes obedecer a Deus e desprezar o primeiro”407. Temos aí um conflito entre a lei

humana e a divina408. A quem obedecer quando a ordem divina é violada: a Deus ou ao

príncipe que desobedeceu a uma obrigação divina409? Vale notar que essa questão não é

colocada em termos de “autoridade religiosa ou temporal”. Marsílio trata-a no sentido de

mostrar que, em tal situação, a submissão ao príncipe implica sujeição à corporação do

clero, cujo chefe é o Bispo de Roma. Ela se caracteriza como rebelião contra Deus e, em

conseqüência, como transgressão da ordem civil.

De fato, segundo o paduano, a ordem social implica a existência de um legislador

humano que não se submete à instituição clerical. Ao contrário, o clero submete-se à 440066 DDPP,, IIII,, 55//44,, pp.. 225588.. 440077 AAppuudd DDPP,, IIII,, 55//44,, pp.. 225599.. 440088 VVaallee oobbsseerrvvaarr qquuee MMaarrssíílliioo ddeeffeennddee aa ssuuppeerriioorriiddaaddee ddaa lleeii ddiivviinnaa eemm rreellaaççããoo àà hhuummaannaa.. AA pprriimmeeiirraa,, ddiiffeerreennttee ddaa sseegguunnddaa,, ccoonnttéémm aa vveerrddaaddee iinnffaallíívveell ((ccff.. DDMM,, 1133//66,, pp.. 9900)).. QQUUIILLLLEETT,, 11997700,, pp.. 114455:: ““DDaannss llee ccaass,, ppaarr ccoonnssééqquueenntt,, ooùù lleess ddeeuuxx llooiiss ssoonntt eenn ccoonnfflliitt,, cc’’eesstt ttoouujjoouurrss llaa llooii ddiivviinnee qquuii ll’’eemmppoorrttee.. LLaa llooii ddiivviinnee eenngglloobbee llaa llooii hhuummaaiinnee eett llaa ddééppaassssee,, ppuuiissqquu’’oonn nnee ppeeuutt oobbsseerrvveerr llaa llooii hhuummaaiinnee qquuee ddaannss lleess lliimmiitteess ooùù eellllee nn’’eesstt ppaass ooppppoossééee àà llaa llooii ddiivviinnee.. LLaa llooii ddiivviinnee ccaauuttiioonnnnee aauussssii lleess aacctteess hhuummaaiinnss eett llaa llooii hhuummaaiinnee qquuii lleess rrééggiitt;; eellllee eenn ggaarraannttiitt ll’’aauuttoorriittéé ddaannss ssoonn ddoommaaiinnee dd’’aapppplliiccaattiioonn pprroopprree.. DD’’uunnee cceerrttaaiinnee ffaaççoonn,, llaa llooii ddiivviinnee ffoonnddee llaa llooii hhuummaaiinnee:: eellllee eenn eesstt,, eenn ttoouutt ééttaatt ddee ccaauussee,, llaa ccaauussaa rreemmoottaa,, ddee llaa mmêêmmee ffaaççoonn qquu’’eellllee ffoonnddee ddee mmaanniièèrree mmééddiiaattee ll’’aauuttoorriittéé dduu pprriinnccee””.. OO ccaarráátteerr aabbssoolluuttoo ddaa lleeii ddiivviinnaa nnããoo iimmpplliiccaa aa eexxiissttêênncciiaa ddee dduuaass aauuttoorriiddaaddeess,, aa rreelliiggiioossaa ee aa tteemmppoorraall.. PPeelloo ccoonnttrráárriioo,, eellaa rreeffoorrççaa aa tteessee ddee qquuee ssóó hháá uummaa úúnniiccaa aauuttoorriiddaaddee nnaa ccoommuunniiddaaddee hhuummaannaa,, aa aauuttoorriiddaaddee cciivviill,, ppooiiss:: oo CCoonnccíílliioo,, ssoobb oo ccoommaannddoo ddoo PPrríínncciippee,, eennccaarrrreeggaa--ssee ddee ddaarr aa iinntteerrpprreettaaççããoo aauuttoorriizzaaddaa ddaa lleeii ddiivviinnaa;; aass ddeeccrreettaaiiss ppaappaaiiss ee oo ddiirreeiittoo ccaannôônniiccoo ssããoo lleeiiss hhuummaannaass qquuee ppooddeemm ssee ooppoorr ààss lleeiiss ddiivviinnaass ee,, ppoorrttaannttoo,, ddeessrreessppeeiittaarr aa aauuttoorriiddaaddee cciivviill,, jjáá qquuee ppooddeemm ccoonnttrraarriiaarr aa iinntteerrpprreettaaççããoo ddoo CCoonnccíílliioo;; oo PPrríínncciippee ccoommoo ddeeffeennssoorr ddaa ppaazz ttiirraa ddaa lleeii ddiivviinnaa oo qquuee éé úúttiill ppaarraa aa mmeellhhoorr ddiissppoossiiççããoo ddaa ccoommuunniiddaaddee ppoollííttiiccaa ((ccff.. AAZZNNAARR,, 22000077,, pppp.. 115566--115577)).. 440099 NNeessttee ccaassoo,, aa ddeetteerrmmiinnaaççããoo ddiivviinnaa ddee oo pprríínncciippee ffiiccaarr eennccaarrrreeggaaddoo ddee rreettiirraarr ttooddaa aa ccooeerrcciivviiddaaddee ddaa aauuttoorriiddaaddee rreelliiggiioossaa..

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vontade do príncipe. Se ele recusa obedecer ao governante, bom ou mau, essa sua

desobediência acarreta penalidade. Se o presbítero é bom, não há o que temer diante do

príncipe mau. Este é um instrumento de Deus. É sinal de sacrifício, para que o sacerdote

possa aperfeiçoar o seu ministério. A esse respeito, Marsílio menciona a seguinte passagem

da Glosa: “(...) se o príncipe é bom, não castiga o que procede bem, mas o ama, se é mau

não prejudica o homem de bem, mas o purifica”410.

O Papa, como homem de bem, ao testemunhar o seu sacrifício em obedecer ao

governante mau, torna-se modelo de imitação para todos os fiéis; em especial, para os

sacerdotes. Não porque essa sua fidelidade é um mal necessário, mas, ao contrário, por ela

ser um bem indispensável. O Bispo de Roma, assim como todo o clero, é um súdito fiel a

Deus e ao seu príncipe. E o é, por exemplo, no pagamento de impostos. O dinheiro

arrecadado é usado para o aperfeiçoamento da civitas. Se o sacerdote paga o seu tributo,

serve ao príncipe; se serve ao governo, serve a Deus. A esse respeito, Marsílio argumenta

que o Apóstolo não sonegou, nem matou, não roubou ou não cometeu outro tipo de

infração. São Paulo admitiu um único tribunal, o de César, no qual aceita ser julgado. Esse

ministro exemplar de Cristo suportou com coragem a sentença do governante. Ele não

cometeu o grave delito de recusar aquilo que foi dado ao príncipe “através da suprema

ordenação de Deus”411.

Os mestres da Palavra, a exemplo do Apóstolo, possuem apenas as lágrimas como

arma contra o mau governante412. Não quebram o juramento de obediência ao príncipe.

Segundo o paduano, ao invés de eles terem o poder armado, guardam palavras de sabedoria

acerca da Lei Evangélica. O príncipe, ou os fiéis em geral, se desejar, ouve do doutor ou

pastor eclesiástico o que este tem a dizer sobre as coisas de Deus. Escuta apenas o que lhe

proporciona alegria, sinal da graça divina, para que possa livremente se distanciar do

pecado413.

Sabemos que, para Marsílio, o príncipe não tem obrigação em ouvir o sacerdote.

Mas é o inverso. Um argumento que ele usa para sustentar essa sua tese é a sua referência à

Primeira Epístola de Pedro para afirmar que é da vontade de Deus a sujeição de todos os

441100 AAppuudd DDPP,, IIII,, 55//44,, pp.. 225599.. 441111 DDPP,, IIII,, 55//99,, pp.. 227700.. 441122 CCff.. DDPP,, IIII,, 55//44,, pp.. 226622.. 441133 CCff.. DDPP,, IIII,, 55//66,, pppp.. 226644--226655..

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fiéis ao príncipe, enviado por Ele para punir os malfeitores e louvar os benfeitores414. Ora,

afirma o paduano, “dado que esses malfeitores podem ser sacerdotes e leigos cometendo

toda espécie de transgressões (...), resulta necessariamente que todos devem estar

submissos ao julgamento coercivo dos reis, duques e dos demais governantes seculares (...)

que foram investidos com autoridade para tal mister, pelo legislador humano”415.

É transgressão o Papa desvincular-se das obrigações civis, desobedecer ao príncipe

e não admitir ser julgado. É um equívoco, segundo Marsílio, o clero defender que o seu

líder espiritual, o Papa, possui o poder civil que lhe foi dado, direta ou indiretamente, por

Deus. Se algum bispo ou sacerdote governa uma comunidade, é porque o legislador

humano lhe concedeu por tempo determinado. Trata-se, pois, de uma concessão política,

que não sofre a ingerência da corporação eclesiástica416. O legislador humano, observa o

paduano, “sempre conserva o direito de revogá-la, ocorrendo motivos razoáveis, cuja

avaliação plena é da competência do mencionado legislador, especialmente nas

comunidades cristãs [grifo nosso]”417.

441144 CCff.. DDPP,, IIII,, 55//88,, pp.. 226688;; 441155 DDPP,, IIII,, 55//88,, pp.. 226699.. 441166 LLAAGGAARRDDEE,, 11997700,, pp.. 119944:: ““((......)) MMaarrssiillee,, aapprrèèss aavvooiirr pprrooccllaamméé qquuee llee CChhrriisstt iinntteerrddiissaaiitt àà sseess mmiinniissttrreess ttoouutt ppoouuvvooiirr ccooaaccttiiff,, aaddmmeett qquuee llee pprrêêttrree ppuuiissssee eexxeerrcceerr ddee tteellss ppoouuvvooiirrss,, ss’’iill lleess ttiieenntt dd’’uunnee ddééllééggaattiioonn dduu llééggiissllaatteeuurr hhuummaaiinn.. CCee nn’’eesstt ddoonncc ppaass ll’’aauuttoorriittéé qquuii eesstt iinnccoommppaattiibbllee aavveecc llee ssaacceerrddooccee.. MMaaiiss ttoouuttee aauuttoorriittéé ddooiitt lluuii vveenniirr dduu pprriinnccee tteerrrreessttrree””.. 441177 DDPP,, IIII,, 55//1100,, pp.. 227711..

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como temos observado, à medida que Marsílio estabelece em que, para ele, consiste

o sacerdotium, qual a sua proporção e a sua relação com o regnum, o poder público adquire

de fato uma feição secular, anticlerical, mas ele não se encontra acima da Verdade. Este

termo, com sua letra inicial maiúscula, era bem conhecido na Europa medieval: Deus

plenamente revelado em Cristo. Afirmar que o Estado encontra-se sob o abrigo do Deus

revelado não implica que o clero – em particular, o Bispo de Roma – assuma a direção da

comunidade política. O paduano delimita o campo de atuação do sacerdócio o suficiente

para caracterizar um ofício público que – apesar de ser uma simples corporação de

ministros da Verdade, válida e eminente – é perigoso se não exerce verdadeiramente o seu

papel na civitas.

Sabemos que o sacerdócio, para Marsílio, não é um ofício a ser desprezado no

ordenamento dos serviços públicos essenciais à comunidade política, especialmente quando

esta reconhece o evento Cristo. A civitas que acolhe a Palavra deve inevitavelmente aceitar

o fato de que o Filho de Deus deixou sucessores para dar continuidade à sua atividade nesta

vida. Uma questão que se impõe a respeito do mencionado ofício público consiste em saber

quem são considerados os sucessores de Cristo e como eles exercem a sua atividade.

Vimos que o paduano valoriza o comportamento racional do sacerdote. Fazer

prevalecer o sentimento sobre a razão constitui uma ação que ofusca o entendimento da

função do cargo público. O homem público passional não consegue pensar claramente

acerca de seu papel na civitas. O sacerdote é um servidor do Estado. Ele procura servir à

ecclesia, à cidade perfeita dos fiéis. De acordo com Marsílio, o ministro da Verdade é um

servidor público que demonstra sabedoria acerca das coisas divinas e dedicação à sua

cidade. A esse respeito, a procedência dos candidatos ao sacerdócio não pode ser

menosprezada. Eles devem ser oriundos de grupos sociais que tenham dado prova de

fidelidade à comunidade perfeita dos fiéis. O seu amor à Igreja, entendemos, ao Estado,

bem como a sua conduta racional, orientam-lhes a ensinar melhor o preceito evangélico

“Faze o bem e evita o mal”. Conhecemos a preocupação de Marsílio em dar um significado

claro para essa expressão. Significa “obedeça à lei, civil ou divina, e ao seu governante”.

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Em relação às leis do Antigo Testamento, são levadas em conta apenas aquelas que são

válidas como preceito civil; o restante é descartado.

O ministro da Palavra, “súdito fiel” de seu príncipe, aplica em sua vida, e influencia

na dos outros, o sentido daquele preceito. Se considera o governante mau, o sacerdote deve

continuar com o mesmo nível de obediência. Porque, de acordo com o que explanamos,

uma das coisas que ele imita da vida de Cristo é a sua humildade. Vale notar que, nesse

caso, governante ruim não é sinônimo de regime de governo ruim. Pode se ter um bom

regime com um dirigente que, ao seguir as leis da sua cidade, confisca os bens materiais do

clero. Os membros dessa corporação podem vê-lo como agressor. Nesse caso, o que os

sacerdotes têm que fazer não é incitar a multidão a combater o governo civil, nem

reivindicar a restituição dos bens confiscados. Simplesmente deixam levá-los e continuam a

obedecer-lhe, pois essas atitudes aprimoram o estado de perfeição que almejam.

A humildade de Cristo e a sua pobreza são qualidades necessárias do sacerdócio

cristão. Conforme vimos, o paduano classifica os atributos cristãos em dois níveis: de um

lado, aqueles necessários aos sacerdotes e dispensáveis aos fiéis em geral; de outro, aqueles

necessários a todos os fiéis, inclusive aos sacerdotes. Para ser cristão, basta amar a Deus e

obedecer à lei divina – como seguir o imperativo “Faze o bem e evita o mal”. Para

Marsílio, esse amor a Deus é a caridade divina, a aproximação do crente à Palavra. Ter

caridade, portanto, não significa adotar a pobreza virtuosa. O fiel rico pode perfeitamente

ser “caridoso”. O poder do príncipe não o impede de ter caridade. O governante não deve

assumir a sublime pobreza. Se ele a adota em sua vida, os súditos não o respeitariam.

Riqueza e poder político são, portanto, inseparáveis.

Ao contrário, a sublime pobreza que o ministro da Palavra deve livremente tomar

para si impõe-lhe respeito, aproxima o Verbo dos fiéis. A pobreza evangélica implica uma

nova relação com a propriedade, que é de interesse da cidade. Ela não desmerece o valor da

riqueza, nem se torna uma exigência para alcançar a vida futura. Ela é inútil, assim como

nociva, para a vida presente, se for uma oposição para acabar com a riqueza. A ausência

desta coloca em risco a tranqüilidade e o bem viver da cidade.

Diferente da riqueza, a pobreza de Cristo não é um valor universal para o Estado.

Ela não tem valor para o “insensato”, no sentido que Marsílio dá a este termo: pessoas que

não abraçaram ainda a Verdade. É impensável o não-cristão assumir o modo de ser pobre

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propagado por uma religião que não é a sua. Se ele resolve imitar Cristo em sua pobreza, é

porque já foi antes batizado. Se ele recebeu o batismo – ou seja, tornou-se cristão –, não

precisa ser pobre como Cristo. Entre os pagãos isso não é sinal de sabedoria, mas de

loucura. E entre os cristãos comuns, pobres e sem formação intelectual, a decisão de eles

ficarem mais pobres não tem a mesma repercussão de um cristão rico e sábio que resolveu

abraçar a pobreza evangélica.

Não podemos ver o “sublime” da pobreza vivenciada pelos perfeitos apenas na

perspectiva teológica. Ou seja, apenas como algo acima da capacidade humana que só foi

possível de ser alcançado por vontade de imitar a humanidade de Cristo neste mundo. Mas,

também na perspectiva política: “sublime” pode significar algo excelente para o legislador

civil na medida em que concentra poder e consegue captar recursos para a cidade. Uma vez

que o cristão rico e sábio encarregou o governo civil de administrar os bens materiais, o seu

ato de viver a pobreza de Cristo não é só meritório, mas também lícito. O Estado só tem a

ganhar com esse gesto, pois os bens doados não são divididos com o clero, mas destinados

aos cofres públicos.

Para Marsílio, se Cristo valorizou os atos transitivos, foi porque eles são

necessariamente úteis na vida presente e seguem regras estabelecidas pela cidade. O fato de

certos atos exteriores serem tratados no Antigo Testamento não implica que o sacerdote

deva assumir o lugar do governo civil. A Nova Lei superou a Antiga. Essa superação

iluminou a questão dos atos a que o sacerdote deve dar atenção. O Verbo demonstrou,

através de seu testemunho, que nem todo ato exterior é computado como ponto a favor da

salvação da alma.

Não há, para o paduano, atos bons em si mesmos. Quando o fiel realiza um ato

interior ruim para Deus, o sacerdote não tem o poder de julgá-lo, de atribuir-lhe uma

punição. Esse julgamento quem o faz é o próprio Deus na outra vida. Se alguém afirma que

há ato bom em si mesmo, é porque ele acredita que são bons independentemente da lei.

Porém, o seu valor é relativo ou ao direito divino ou civil. Com relação ao primeiro, há atos

imanentes que violam regras consignadas nas Sagradas Letras e geram conseqüências

apenas para o agente infrator. O seu julgamento só ocorrerá como foi prometido no Livro

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Santo, ou seja, no Juízo Final, cujo tribunal é presidido por Deus. Esses atos não fazem mal

à cidade, pois o único prejudicado é o seu agente.

Se o seu agente, porém, resolve ocultá-los, torna-se impossível a sua revelação. Um

desejo proibido oculto, evidentemente, não será conhecido, a não ser que a pessoa o

confesse. Uma vez que o sacerdote é servidor público leal e pode receber a confissão, esta

consiste num instrumento eficaz de vigilância e controle da ecclesia fidelium. Se o ministro

do Verbo ouve a confissão, a sua única função é de servir de escuta para, em seguida,

comunicar aos demais fiéis que o pecador arrependido se reaproximou de Deus. A nosso

ver, posto que o príncipe pode perfeitamente fazer parte dos crentes, a saber, da “boa

notícia” e o sacerdote foi escolhido entre aqueles que demonstraram possuir qualidades

cívicas, podemos suspeitar que, na civitas marsiliana, ele vigia sutilmente o comportamento

dos crentes para saber se há uma conduta repreensível para a cidade.

Se na civitas marsiliana levarmos em conta as condições do príncipe e do sacerdote,

podemos perceber que não é fácil, como o é para o presbítero, o julgamento do governante

infrator. No caso do sacerdote infrator, o seu julgamento difere do príncipe e dos demais

cidadãos. Conforme vimos, o próprio Deus constitui o princípio ativo das leis que regulam

os atos imanentes e os transitivos que comprometem a vida futura. Ora, posto que Cristo

reaparecerá depois, na eternidade, o julgamento desses atos fica postergado. E já que os

seus ministros não têm tal princípio, eles não se igualam ao príncipe sob esse aspecto. São,

portanto, cidadãos comuns que podem também desejar mal ao próximo, furtar, matar, ser

avarento, imaginar ou sentir coisas que se opõem ao bem comum da cidade.

Para Marsílio, não só Deus, mas também o governante da comunidade perfeita dos

fiéis julgará com mais severidade o padre infrator. Quando o sacerdote herético realizou

ações transitivas de natureza herética, que estão regulamentadas pelas leis da cidade,

submete-se à justiça civil. Se for condenado, a sua pena no presente não pode ser menos

severa que a de um leigo que cometeu o mesmo ato. Lembremos, porém, que uma cidade

perfeita, segundo o paduano, é aquela que acredita na Verdade e confia no seu governo

civil. Podem ocorrer casos de heresia em que não se pode julgar o réu de acordo com a lei.

Isso acontece quando a lei deixa de dizer alguma coisa sobre essas questões heréticas.

Marsílio não nos dá claramente um exemplo a esse respeito. No entanto, insiste na tese de

que o príncipe convoca o sacerdote, afinado com o pensamento do Estado, para

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acompanhar o caso como uma espécie de consultor teológico. A diferença agora é que, ao

invés de usar a lei, o governo civil se serve fundamentalmente da prudência no julgamento.

Uma vez que a virtude da prudência dá ao governante um saber que o faz prever ou

evitar os possíveis perigos da cidade, os ministros da Verdade são ouvidos para esclarecer o

problema teológico levantado pela heresia, contanto que esse “problema” tenha implicações

políticas. Ora, o que faz com que um príncipe se interesse por uma heresia que escapa à lei?

Acreditamos que o motivo está no fato de que ela se volta para a vida presente, referente à

vida pública, aos atos transitivos prejudiciais à cidade. Se a heresia estivesse relacionada

com a eternidade, o governante estaria olhando para o alto, dedicando-se às coisas de cima.

Esse tipo de coisa Deus resolve no Juízo Final.

Para Marsílio, o príncipe deve usar a prudência ao condenar alguém influente, por

exemplo, o Papa. Se o príncipe dá uma sentença que repercute negativamente na civitas, no

sentido de acirrar ainda mais o conflito, o seu governo pode ficar ameaçado com uma

possível guerra civil. Portanto, a sentença deve ser pesada, mas deve ser dada de modo que

repercuta positivamente, no sentido de desarmar e desalojar sutilmente os opositores da paz

civil. É bom o príncipe que não causa escândalos. Se por “causar escândalos” entendemos

como sendo “gerar instabilidade social”, então o bom príncipe produz a ordem da cidade.

Onde há “escândalos” para o Estado deve existir lei e força militar para coibi-los.

O fato de o Papa ser essa pessoa que ameaça a ordem social não implica que ele

deva ser isentado do julgamento civil. O que o distingue do sacerdote é a sua capacidade de

liderança e a sua conduta moral. No entanto, há um aspecto da conduta moral e da liderança

do bispo em geral que nos chama a atenção. O fato de ele ser exemplar está relacionado

também com o seu comportamento diante do governo civil. Sabemos que, para Marsílio,

Cristo deu testemunho a esse respeito. Não é diferente para os seus imitadores. Se o

legislador civil realiza um ato transitivo lícito que magoa o bispo, este não pega nas armas

ou mobiliza os crentes contra o soberano. A sua reação deve ser em nível interior.

Entristecer-se, por exemplo.

Podemos ver aí uma razão para o sacerdote possuir o domínio de si. Este, sabemos,

é um critério válido na escolha do ministro da Verdade. Mas não o único. Há também: a

caridade, a pobreza evangélica, a castidade, o “patriotismo”. E um componente não menos

importante: a inteligência. Este critério não pode ser menosprezado. O presbítero é um

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educador ou um pregador da Palavra. Isso implica que ele deve conhecê-la muito bem, ser

um teólogo competente. O seu conhecimento teológico, porém, é limitado. Ele não pode

sozinho resolver os problemas de interpretação doutrinária. Há o colégio apostólico ao qual

ele deve recorrer nessas situações.

Segundo Marsílio, o Concílio trata basicamente das seguintes questões: os

problemas de interpretação bíblica, assuntos litúrgicos, a distribuição das ofertas e a

sucessão do Bispo de Roma. Ele é composto pelo legislador cristão e outros fiéis, como o

Bispo de Roma, alguns sacerdotes e leigos sábios. Vimos que o legislador cristão não só

convoca os membros do Colégio, mas também supervisiona as regras das eleições

episcopais. Agora, vale notar o papel do Bispo de Roma no Colégio. Ele exerce a função de

secretário e de porta-voz. O paduano não diz claramente por que o Bispo de Roma, e não

outro participante, deve exercer essas funções.

Pensamos que a justificativa é política e pragmática, mas não teológica. Certamente,

o motivo está no fato de a Sé romana ter conquistado prestígio e admiração. Ela tem um

valor prático que, segundo Marsílio, não pode ser negligenciado: a cidade romana tem

abrigado fiéis ilustres (por exemplo: São Paulo e São Pedro), possui um povo que mais

demonstra reverência ao seu bispo, é solícita com as outras cidades cristãs e, não menos

importante, o seu legislador exerce uma influência decisiva no mundo civilizado. Sendo

assim, é prudente ter o seu bispo como porta-voz do Colégio que comunica a todos os fiéis

as decisões conciliares. Em outras palavras, o legislador seria imprudente, se não atribuísse

ao Bispo de Roma uma posição estrategicamente relevante no Colégio.

O sacerdote escolhido para ocupar o cargo episcopal na cidade romana deve ser

alguém de confiança do legislador: um teólogo de boa reputação, que tenha demonstrado

claramente não só fidelidade à Verdade, mas também ao governo civil. Acreditamos que o

Concílio, presidido pelo legislador, ao eleger o Bispo de Roma, valoriza um modo de

pensar Deus em detrimento de outros. A teologia que o eleito defende não é circunscrita a

um pequeno número de crentes. Por ser a do Colégio, ela deve ser tomada como a

“verdadeira” e, portanto, aceita por todos os fiéis, não importa a cidade em que eles

estejam. Uma vez que o sacerdote eleito é “um homem de fé e da cidade”, a comunicação

que ele estabelece constitui uma via de acesso pela qual o legislador exerce a sua influência

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sobre os seus súditos. O ensino teológico correto é aquele que se fundamenta, não só nas

Sagradas Letras, mas também nos documentos conciliares.

Uma determinada doutrina teológica pode ser considerada errônea, não porque

contrariou o pensamento do Bispo de Roma, mas o do Colégio, em conseqüência, o do

Estado. O Colégio tem na sua presidência alguém que tem o poder de prender, o único que

possui a força militar. Não é fácil, pois, o participante se opor às suas opiniões ou resistir às

suas influências. Para que isso não ocorra, devemos pressupor uma condição ideal: o

legislador é uma pessoa que não se deixa dominar pelas emoções. O que nem sempre

ocorre: se um participante apresenta um ponto de vista defensável e, no entanto, acirra os

ânimos do legislador, este dificilmente o levará em consideração nas suas decisões. Então,

qualquer assunto tratado no Colégio deve ser feito de modo que não afronte o legislador.

Acreditamos, portanto, que não há liberdade de pensamento na civitas marsiliana.

Como exercer o pensamento livre diante de alguém que tem o “poder de julgar”?

Vale lembrar que a única arma do sacerdote são as lágrimas. A tendência nessas situações é

acatar as decisões do mais forte. Se assim for, os resultados do Concílio são conquistados

menos por saber teológico em si do que por política. O legislador quer resolver os conflitos.

A melhor solução para ele é aquela que soluciona as disputas subjacentes ao problema

teológico, ou seja, aquela que atrai os amigos e afasta os inimigos418.

O saber teológico comunicado é inseparável da política. O que a unidade da fé

representa senão o pensamento do legislador? Se o Bispo de Roma assegura a unidade dos

crentes devido ao mencionado valor prático da cidade romana, então o Colégio deve ter

cuidado ao escolher o sucessor da Sé Romana. Deve ser alguém que não gere “inimizade”,

isto é, não crie inimigos para o legislador. Por isso, este precisa estar à frente da eleição

episcopal. Se os critérios de seleção aprovados beneficiam o legislador cristão é porque eles

favorecem a união dos súditos crentes em torno dele, ou seja, têm a força de dirimir os

possíveis conflitos e a de fortalecer os laços de amizade entre governante e governados.

441188 AA pprrooppóóssiittoo,, vvaallee oobbsseerrvvaarr aa sseegguuiinnttee sseenntteennççaa ddee AArriissttóótteelleess aa rreessppeeiittoo ddaa aammiizzaaddee,, aa qquuaall éé ccooeerreennttee ccoomm aa ppoossiiççããoo ddoo DDPP:: ““AA aammiizzaaddee,, aaffiirrmmaa oo EEssttaaggiirriittaa,, ppaarreeccee ttaammbbéémm mmaanntteerr aass cciiddaaddeess uunniiddaass,, ee ppaarreeccee qquuee ooss lleeggiissllaaddoorreess ssee pprreeooccuuppaamm mmaaiiss ccoomm eellaa ddoo qquuee ccoomm aa jjuussttiiççaa;; eeffeettiivvaammeennttee,, aa ccoonnccóórrddiiaa ppaarreeccee aasssseemmeellhhaarr--ssee àà aammiizzaaddee,, ee eelleess pprrooccuurraamm aasssseegguurráá--llaa mmaaiiss qquuee ttuuddoo,, aaoo mmeessmmoo tteemmppoo qquuee rreeppeelleemm ttaannttoo qquuaannttoo ppoossssíívveell oo ffaacccciioossiissmmoo [[ggrriiffoo nnoossssoo]],, qquuee éé aa iinniimmiizzaaddee nnaass cciiddaaddeess (( ÉÉttiiccaa aa NNiiccôômmaaccooss.. BBrraassíílliiaa:: eedd.. UUNNBB,, 11999922,, LLiivvrroo VVIIIIII,, 11115555aa,, pp.. 115533))””.. MMaarrssíílliioo nnããoo tteemm ddúúvviiddaass ddaa iimmppoorrttâânncciiaa ddeessssaa aammiizzaaddee nnaa vviiddaa ppúúbblliiccaa.. AA aammiizzaaddee ppeellaa qquuaall oo ppaadduuaannoo ssee iinntteerreessssaa éé aa qquuee uunnee ooss cciiddaaddããooss eemm ttoorrnnoo ddoo ggoovveerrnnoo cciivviill..

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Pode ocorrer o caso de o legislador não ser cristão, embora a cidade da unidade da

fé continue sendo Roma. Então, quem preside o Concílio? O DP não mostra claramente as

situações concretas que caracterizam a ausência de um legislador cristão. Em todo caso, o

DP nos permite admitir a seguinte suposição: antes do legislador não-cristão pode ter

existido ao menos um que foi batizado e que governou da forma como deveria fazer, como

governante que se espelhou no DP. De modo que o modus operandi do Concílio ficou

sedimentado. Sendo assim, o critério para alguém presidir é o seu comportamento virtuoso.

Esse “comportamento virtuoso” ocorre especialmente entre as pessoas idosas, nas quais

podemos geralmente encontrar com mais facilidade os seguintes atributos: persistência,

domínio de si, prudência, sabedoria e o “florescimento” da amizade política.

No entanto, não podemos esquecer que o verdadeiro sacerdote almeja o ideal de

perfeição. Este implica o cumprimento do voto de pobreza. Ao aceitar a sublime pobreza,

ele desenvolve o hábito de agir com humildade, de ver as coisas materiais sem desejar

possuí-las, de estar motivado em agir a partir da imitação do Cristo. Ora, se esses hábitos se

fortalecem na personalidade do presbítero, este não tem condições de assumir o

mencionado cargo. Sabemos que a humildade e a sublime pobreza, para Marsílio, são um

desastre no poder. O perfeito não tem direito de reivindicar qualquer coisa que alguém

possa lhe tirar e, insistimos, a sua única arma são as suas lágrimas. Então, não é esse

sacerdote que ocupará aquele caso excepcional.

Por outro lado, se os mencionados hábitos não se fortalecem nele, mas outros de

interesse da cidade, o seu ideal de perfeição fracassa, a autenticidade de seu sacerdócio fica

questionada e os fiéis tendem a desanimar diante de um sacerdócio que não é verdadeiro.

Alguém assim na presidência do Colégio é um perigo, o povo não lhe depositaria confiança

e a ordem da cidade poderia ficar ameaçada. Portanto, em situações onde não é possível o

legislador, deve presidir um leigo bem preparado, intelectual e politicamente, alguém que

demonstre dedicação à coisa pública, sabedoria, riqueza e “caridade” cristã.

Existe um aspecto da concepção marsiliana do herege semelhante ao que

encontramos no modelo eclesial que o paduano ataca. Neste, o herege escandaliza a Igreja,

enquanto, na visão de Marsílio, ele procura desestabilizar a comunidade perfeita dos fiéis, o

Estado. Se alguém toma, por exemplo, a sentença “todo poder vem de Deus”, esta precisa

ser compreendida nos seus devidos termos. A sua interpretação nem sempre é clara. Logo,

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ela é uma das expressões canônicas que exige a intervenção do Concílio, isto é, do Estado,

no sentido de dar uma interpretação aceitável universalmente, coerente com os

ensinamentos do Verbo. Entendemos, porém, que a compreensão do Colégio é da vontade

soberana do dirigente da cidade. Esse seu valor é incutido no coração dos fiéis pobres por

parte dos mestres da Verdade. Nesse sentido, o presbítero é uma espécie de emissário, um

cidadão encarregado da missão pública de fazer escutar, não só a voz de Deus, mas também

a do governante da civitas.

Esse emissário, sabemos, almeja a vida perfeita cristã. O estado de perfeição

concebido por Marsílio é uma forma de impedir que o sacerdote, num mundo medieval

marcadamente religioso, adquira bens temporais. Marsílio sabe que poder e propriedade são

inseparáveis. Se a civitas dá oportunidade ao clero de ter posse, a tendência, segundo o

paduano, é ele possuir cada vez mais coisas materiais, a ponto de competir com o príncipe.

O DP não pretende mudar radicalmente apenas a estrutura do clero, mas também a do

Estado. Ocorre, porém, essa reforma somente se os fiéis em geral compartilharem do

mesmo ponto de vista a respeito da civitas cristã, da Nova Lei e do sacerdócio cristão,

preconizado pelo paduano. O governante cristão precisa então investir na educação

religiosa, não só de seus sacerdotes, mas de toda a comunidade política.

A nosso ver, o pensamento marsiliano se depara nesse ponto de reflexão com um

problema prático decisivo que questiona a viabilidade de seu ideal de civitas: como

reeducar a multidão de fiéis que se acostumaram com uma espécie de ensinamento

religioso oposto ao que ele entende por Verdade? Essa nova formação do fiel não ocorreu

no mundo medieval profundamente religioso. É muito improvável que isso aconteça no

nosso, em que a pluralidade religiosa é um fato incontestável.

Contudo, somos da opinião de que há um aspecto desse novo ensinamento religioso

que não difere do convencional, seja à época de Marsílio, seja em nossos dias, a saber: a

verdadeira fé é uma só e a sociedade deve zelar por ela. Esse suposto zelo serviu e ainda

serve de motivo para o clero ou leigos intervirem na política de um modo bastante suspeito.

Em nome da verdadeira fé ou de Deus, pessoas inocentes são perseguidas, presas ou

assassinadas, o avanço das pesquisas científicas é interrompido e países são invadidos. É

verdade que o paduano demonstra no DP indignação ante o fato de pessoas serem

perseguidas por um clero que ele considera avarento e corrompido. Porém, na suposição de

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existir um clero moralmente correto e formado nos moldes do DP, permanece o suposto

pensamento único a respeito da Verdade. Pensar diferentemente na civitas marsiliana é tão

perigoso quanto no Papado de João XXII. Vimos que se o fiel possuir o desejo de dizer o

que pensa e o seu pensamento for oposição ao da civitas, ele muito provavelmente teria a

sua vida prejudicada. Acreditamos que, porquanto o fiel realizou esse seu desejo, o

governante civil poderia prendê-lo, alegando razões de segurança. Contra a ordem social

seria qualquer oposição ao modo dominante de pensar a Verdade.

Segundo Marsílio, o governo civil deve se preocupar com a disseminação de seitas

ou de movimentos “sectários” que podem influenciar negativamente os membros da civitas.

“Negativamente” significa “o modo de agir contra o bom ordenamento da comunidade

política”. Essas tentativas revelam não só o afastamento do clero de sua origem (a

Verdade), mas também apontam para o fato de que ele recebeu “má formação”. Nesse caso,

na opinião do paduano, o legislador cristão pode dissolvê-lo e constituir um outro que seja

autêntico, que corresponda à Verdade. Ele não só pode fazer esse tipo de intervenção, como

também pode impedir a ordenação do presbítero ou a nomeação do bispo. Na civitas, como

já dissemos, só há um princípio. A admissão de dois implica a assunção de uma dualidade

geradora de confusão, de conflito. Uma vez que a comunidade política tem o seu princípio

ativo – sendo este, ao mesmo tempo, legislador e cristão – a formação do clero e a sua

composição devem dar-se de modo que, de seus quadros, não saiam sacerdotes a

reivindicar o poder, a ser mais um príncipe.

A dualidade poder espiritual-poder temporal é perigosa para a comunidade política.

É por isso que, pensamos, o paduano rejeita a dualidade lei natural-lei positiva. A

justificativa da lei civil está sustentada no seu legislador e no propósito de alcançar o bem

comum dos cidadãos. Uma vez promulgada, ela tem valor coercivo. Há toda uma discussão

acerca do legislador marsiliano. Mas há consenso de que ele não é representado pelo clero,

assim como não se espelha na lei natural. Se “natural” for compreendido como “algo

intrínseco, pertencente à coisa mesma, cuja revelação se dá através da razão”, então não há

lei natural419. Pois, para Marsílio, a civitas, ao elaborar as suas leis, se pergunta se elas são

úteis à vida suficiente ou à comunidade perfeita dos fiéis. Não há uma lei imutável em si

441199 SSee ““nnaattuurraall”” ffoorr ccoommpprreeeennddiiddoo ccoommoo ““aass rreeggrraass ccooeerrcciivvaass ccoommuunnss ààss ccoommuunniiddaaddeess ppoollííttiiccaass””,, eennttããoo MMaarrssíílliioo aaddmmiittee aa eexxiissttêênncciiaa ddaa lleeii nnaattuurraall ee aa dduuaalliiddaaddee ““lleeii nnaattuurraall ee lleeii ppoossiittiivvaa”” nnããoo ccoonnssttiittuuii uumm pprroobblleemmaa ppoollííttiiccoo..

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mesma. Existem leis promulgadas que devem ser obedecidas. “Faça o bem e evite o mal”

não é uma lei natural, mas uma das revelações que Cristo mostrou aos seus fiéis.

Portanto, vimos o esforço de Marsílio em apresentar vários argumentos que,

segundo ele, comprovam que o suposto poder espiritual é injustificável, gerador de

intranqüilidade. Os inimigos da verdade, segundo o paduano, sustentam erroneamente a

tese de que há dois governos, o espiritual e o temporal, quando existe de fato apenas um, o

poder civil. Governo espiritual e temporal são expressões que confundem os fiéis,

encobrem a visão deles, a ponto de não perceberem o poder efetivo, qual seja, o do

soberano, do príncipe.

Esse esforço de Marsílio, porém, tem o seu preço. Igreja e Estado tornam-se uma

coisa só. O pecado não consiste apenas em fazer oposição à Palavra, mas também à

comunidade política. O conhecimento de Deus se dá a partir da “unidade da fé”. Esta, por

sua vez, mistura-se à “união cívica”, já que ecclesia se confunde com a civitas. Tal

limitação do seu pensamento político, assim como outras que conhecemos, não ofusca o

fato de ele suscitar modos diferentes de pensar a política, embora, paradoxalmente, na sua

concepção de cidade, o pensar diferente seja considerado suspeito.

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