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Coleção Para Conhecer O Segundo Sexo Introdução ao livro de Simone de Beauvoir 1949

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Coleção Para Conhecer

O Segundo Sexo

Introdução ao livro deSimone de Beauvoir

1949

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HESITEI muito tempo em escrever um livrosobre a mulher. O tema é irritante,principalmente para as mulheres. E não é novo.A querela do feminismo deu muito que falar:agora está mais ou menos encerrada. Nãotoquemos mais nisso... No entanto, ainda se faladela. E não parece que as volumosas tolices quese disseram neste último século tenhamrealmente esclarecido a questão. Demais, haverárealmente um problema? Em que consiste? Emverdade, haverá mulher? Sem dúvida, a teoria doeterno feminino ainda tem adeptos; cochicham:"Até na Rússia elas permanecem mulheres". Mas

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outras pessoas igualmente bem informadas — epor vezes as mesmas — suspiram: "A mulher seestá perdendo, a mulher está perdida". Nãosabemos mais exatamente se ainda existemmulheres, se existirão sempre, se devemos ounão desejar que existam, que lugar ocupam nomundo ou deveriam ocupar". "Onde estão asmulheres?", indagava há pouco uma revistaintermitente1 . Mas antes de mais nada: que éuma mulher? "Tota mulier in utero: é umamatriz", diz alguém. Entretanto, falando decertas mulheres, os conhecedores declaram:"Não são mulheres", embora tenham um úterocomo as outras. Todo mundo concorda em que há

1 Não se publica mais: chamava-se Franchise.

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fêmeas na espécie humana; constituem, hoje,como outrora, mais ou menos a metade dahumanidade; e contudo dizem-nos que afeminilidade "corre perigo"; e exortam-nos:"Sejam mulheres, permaneçam mulheres,tornem-se mulheres". Todo ser humano do sexofeminino não é, portanto, necessariamentemulher; cumpre-lhe participar dessa realidademisteriosa e ameaçada que é a feminilidade.Será esta secretada pelos ovários? Ou estarácongelada no fundo de um céu platônico? Ebastará uma saia ruge-ruge para fazê-la descer àterra? Embora certas mulheres se esforcem porencarná-lo, o modelo nunca foi registrado.Descreveram-no de bom grado em termos vagose mirabolantes que parecem tirados de

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empréstimo do vocabulário das videntes. Notempo de Sto. Tomás, ela se apresentava comouma essência tão precisamente definida quanto avirtude dormitiva da papoula. Mas oconceitualismo perdeu terreno: as ciênciasbiológicas e sociais não acreditam mais naexistência de entidades imutavelmente fixadas,que definiriam determinados caracteres como osda mulher, do judeu ou do negro; consideram ocaráter como uma reação secundária a umasituação. Se hoje não há mais feminilidade, éporque nunca houve. Significará isso que apalavra "mulher" não tenha nenhum conteúdo? Êo que afirmam vigorosamente os partidários dafilosofia das luzes, do racionalismo, donominalismo: as mulheres, entre os seres

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humanos, seriam apenas os designadosarbitrariamente pela palavra "mulher". Os norte-americanos, em particular, pensam que a mulher,como mulher, não existe mais; se uma retardadaainda se imagina mulher, as amigas aconselham-na a se fazer psicanalisar para livrar-se dessaobsessão. A propósito de uma obra, de restoassaz irritante, intitulada Modern Woman: a lostsex, Dorothy Parker escreveu: "Não posso serjusta em relação aos livros que tratam da mulhercomo mulher... Minha ideia é que todos, homense mulheres, o que quer que sejamos, devemosser considerados seres humanos". Mas onominalismo é uma doutrina um tanto limitada; eos antifeministas não têm dificuldade emdemonstrar que as mulheres não são homens.

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Sem dúvida, a mulher é, como o homem, um serhumano. Mas tal afirmação é abstrata; o fato éque todo ser humano concreto sempre se situade um modo singular. Recusar as noções deeterno feminino, alma negra, caráter judeu, nãoé negar que haja hoje judeus, negros e mulheres;a negação não representa para os interessadosuma libertação e sim uma fuga inautêntica. Éclaro que nenhuma mulher pode pretender semmá-fé situar-se além de seu sexo. Uma escritoraconhecida recusou-se a deixar que saísse seuretrato numa série de fotografias consagradasprecisamente às mulheres escritoras: queria serincluída entre os homens, mas para obter esseprivilégio utilizou a influência do marido. Asmulheres que afirmam que são homens não

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dispensam, contudo, as delicadezas e ashomenagens masculinas. Lembro-me tambémduma jovem trotskista em pé num estrado, nomeio de um comício violento e que se dispunha adar pancadas, apesar de sua evidentefragilidade; negava sua fraqueza feminina; masera por amor a um militante a quem desejava serigual. A atitude de desafio dentro da qual secrispam as norte-americanas prova que sãodominadas pelo sentimento de sua feminilidade.E, em verdade, basta passear de olhos abertospara comprovar que a humanidade se reparte emduas categorias de indivíduos, cujas roupas,rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses,ocupações são manifestamente diferentes: talvezessas diferenças sejam superficiais, talvez se

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destinem a desaparecer. O certo é que porenquanto elas existem com uma evidência total.

Se a função da fêmea não basta para definira mulher, se nos recusamos também explicá-lapelo "eterno feminino" e se, no entanto,admitimos, ainda que provisoriamente, que hámulheres na terra, teremos que formular apergunta: que é uma mulher?

O próprio enunciado do problema sugere-me uma primeira resposta. É significativo que eucoloque esse problema. Um homem não teria aidéia de escrever um livro sobre a situaçãosingular que ocupam os machos na humanidade2.

2 O relatório Kinsey, por exemplo, limita-se a definir ascaracterísticas sexuais do homem norte-americano, o que émuito diferente.

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Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente adeclarar: "Sou uma mulher". Essa verdadeconstitui o fundo sobre o qual se ergueráqualquer outra afirmação. Um homem nãocomeça nunca por se apresentar como umindivíduo de determinado sexo: que seja homemé natural. É de maneira formal, nos registros doscartórios ou nas declarações de identidade queas rubricas, masculino, feminino, aparecem comosimétricas. A relação dos dois sexos não é a dasduas eletricidades, de dois polos. O homemrepresenta a um tempo o positivo e o neutro, aponto de dizermos "os homens" para designar osseres humanos, tendo-se assimilado ao sentidosingular do vocábulo vir o sentido geral dapalavra homo. A mulher aparece como o

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negativo, de modo que toda determinação lhe éimputada como limitação, sem reciprocidade.Agastou-me, por vezes, no curso de conversaçõesabstratas, ouvir os homens dizerem-se: "Vocêpensa assim porque é uma mulher". Mas eu sabiaque minha única defesa era responder: "penso-oporque é verdadeiro", eliminando assim minhasubjetividade. Não se tratava, em hipótesealguma, de replicar: "E você pensa o contrárioporque é um homem", pois está subentendidoque o fato de ser um homem não é umasingularidade; um homem está em seu direitosendo homem, é a mulher que está errada.Praticamente, assim como para os Antigos haviauma vertical absoluta em relação à qual sedefinia a oblíqua, há um tipo humano absoluto

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que é o masculino. A mulher tem ovários, umútero; eis as condições singulares que aencerram na sua subjetividade; diz-se de bomgrado que ela pensa com suas glândulas. Ohomem esquece soberbamente que sua anatomiatambém comporta hormônios e testículos. Encarao corpo como uma relação direta e normal com omundo que acredita apreender na suaobjetividade, ao passo que considera o corpo damulher sobrecarregado por tudo o que oespecifica: um obstáculo, uma prisão. "A fêmea éfêmea em virtude de certa carência dequalidades", diz Aristóteles. "Devemosconsiderar o caráter das mulheres comosofrendo de certa deficiência natural". E Sto.Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um

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homem incompleto, um ser "ocasional". É o quesimboliza a história do Gênese em que Evaaparece como extraída, segundo Bossuet, de um"osso supranumerário" de Adão. A humanidade émasculina e o homem define a mulher não em simas relativamente a ele; ela não é consideradaum ser autônomo. "A mulher, o ser relativo...",diz Michelet. E é por isso que Benda afirma emRapport d'Uriel: "O corpo do homem tem umsentido em si, abstração feita do da mulher, aopasso que este parece destituído de significaçãose não se evoca o macho... O homem é pensávelsem a mulher. Ela não, sem o homem". Ela não ésenão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o "sexo" para dizer que ela se apresentadiante do macho como um ser sexuado: para ee,

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a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. Amulher determina-se e diferencia-se em relaçãoao homem e não este em relação a ela; a fêmea éo inessencial perante o essencial. O homem é oSujeito, o Absoluto; ela é o Outro3.

3 Essa idéia foi expressa em sua forma mais explícita por E.Levinas em seu ensaio sobre Le Temps et l'Autre. Assim seexprime ele: "Não haveria uma situação em que a alteridadedefiniria um ser de maneira positiva, como essência? Qual éa alteridade que não entra pura e simplesmente na oposiçãodas duas espécies do mesmo gênero? Penso que o contrárioabsolutamente contrário, cuja contrariedade não é em nadaafetada pela relação que se pode estabelecer entre si e seucorrelativo, a contrariedade que permite ao termopermanecer absolutamente outro, é o feminino. O sexo nãoé uma diferença específica qualquer... A diferença dos sexosnão é tampouco uma contradição... Não é também adualidade de dois termos complementares, porque essesdois termos complementares supõem um todo

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A categoria do Outro é tão original quantoa própria consciência. Nas mais primitivassociedades, nas mais antigas mitologias,encontra-se sempre uma dualidade que é a doMesmo e a do Outro. A divisão não foiestabelecida inicialmente sob o signo da divisãodos sexos, não depende de nenhum dadoempírico: é o que se conclui, entre outros, dos

preexistente... A alteridade realiza-se nc feminino. Termo domesmo quilate mas de sentido oposto à consciência". Suponho que Levinas não esquece que a mulher éigualmente consciência para si. Mas é impressionante queadote deliberadamente um ponto de vista de homem semassinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto. Quandoescreve que a mulher é mistério, subentende que é mistériopara o homem. De modo que essa descrição que seapresenta com intenção objetiva é, na realidade, umaafirmação do privilégio masculino.

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trabalhos de Granet sobre o pensamento chinêsde Dumézil sobre as índias e Roma. Nos paresVaruna-Mitra, Urano-Zeus, Sol-Lua, Dia-Noite,nenhum elemento feminino se acha implicado aprincípio; nem tampouco na oposição do Bem aoMal, dos princípios fastos e nefastos, da direita eda esquerda, de Deus e Lúcifer; a alteridade éuma categoria fundamental do pensamentohumano. Nenhuma coletividade se define nuncacomo Uma sem colocar imediatamente a Outradiante de si. Basta três viajantes reunidos poracaso num mesmo compartimento para que todosos demais viajantes se tornem "os outros"vagamente hostis. Para os habitantes de umaaldeia, todas as pessoas que não pertencem aomesmo lugarejo são "outros"' e suspeitos; para

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os habitantes de um país, os habitantes de outropaís são considerados "estrangeiros". Os judeussão "outros" para o antissemita, os negros paraos racistas norte-americanos, os indígenas paraos colonos, os proletários para as classes dosproprietários. Ao fim de um estudo aprofundadodas diversas figuras das sociedades primitivas,Lévi-Strauss pôde concluir: "A passagem doestado natural ao estado cultural define-se pelaaptidão por parte do homem em pensar asrelações biológicas sob a forma de sistemas deoposições: a dualidade, a alternância, a oposiçãoe a simetria, que se apresentam sob formasdefinidas ou formas vagas, constituem menosfenômenos que cumpre explicar que os dados

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fundamentais e imediatos da realidade social4.Tais fenômenos não se compreenderiam se arealidade humana fosse exclusivamente ummitsein baseado na solidariedade e na amizade.Esclarece-se, ao contrário, se, segundo Hegel,descobre-se na própria consciência umahostilidade fundamental em relação a qualqueroutra consciência; o sujeito só se põe em seopondo: êle pretende afirmar-se como essenciale fazer do outro o inessencial, o objeto.

Só que a outra consciência lhe opõe umapretensão recíproca: em viagem, o nativo

4 Ver C. Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de laParenté. Agradeço a Lévi-Strauss a gentileza de me tercomunicado as provas de sua tese que, entre outras,aproveitei amplamente na segunda parte, págs. 86-102.

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percebe com espanto que há, nos paísesvizinhos, nativos que o encaram, eles também,como estrangeiro; entre aldeias, clãs, nações,classes, há guerras, potlatchs, tratados, lutasque tiram o sentido absoluto da ideia do Outro edescobrem-lhe a relatividade; por bem ou pormal os indivíduos e os grupos são obrigados areconhecer a reciprocidade de suas relações.Como se entende, então, que entre os sexos essareciprocidade não tenha sido colocada, que umdos termos se tenha imposto como o únicoessencial, negando toda relatividade em relaçãoa seu correlativo, definindo este como aalteridade pura? Por que as mulheres nãocontestam a soberania do macho? Nenhumsujeito se coloca imediata e espontaneamente

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como inessencial; não é o Outro que definindo-secomo Outro define o Um; êle é posto como Outropelo Um definindo-se como Um. Mas para que oOutro não se transforme no Um é preciso que sesujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vemessa submissão na mulher?

Existem outros casos em que, durante umtempo mais ou menos longo, uma categoriaconseguiu dominar totalmente a outra. É muitasvezes a desigualdade numérica que confere esseprivilégio: a maioria impõe sua lei à minoria ou apersegue. Mas as mulheres não são, como osnegros dos Estados Unidos ou os judeus, umaminoria; há tantos homens quantas mulheres naterra. Não raro, também os dois grupos empresença foram inicialmente independentes;

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ignoravam-se antes ou admitiam cada qual aautonomia do outro; e foi um acontecimentohistórico que subordinou o mais fraco ao maisforte: a diáspora judaica, a introdução daescravidão na América, as conquistas coloniaissão fatos precisos. Nesses casos, para osoprimidos, houve um passo à frente: têm emcomum um passado, uma tradição, por vezesuma religião, uma cultura. Nesse sentido, aaproximação estabelecida por Bebei entre asmulheres e o proletariado seria mais lógica: osproletários tampouco não estão em estado deinferioridade e nunca constituíram umacoletividade separada. Entretanto, na falta deum acontecimento, é um desenvolvimentohistórico que explica sua existência como classe

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e mostra a distribuição desses indivíduos dentrodessa classe. Nem sempre houve proletários,sempre houve mulheres. Elas são mulheres emvirtude de sua estrutura fisiológica; por maislonge que se remonte na história, sempreestiveram subordinadas ao homem: suadependência não é consequência de um eventoou de uma evolução, ela não aconteceu. E, emparte, porque escapa ao caráter acidental do fatohistórico que a alteridade aparece aqui como umabsoluto. Uma situação que se criou através dostempos pode desfazer-se num dado tempo: osnegros do Haiti, entre outros, bem que oprovaram. Parece, ao contrário, que umacondição natural desafia qualquer mudança. Emverdade, a natureza, como a realidade histórica,

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não é um dado imutável. Se a mulher se enxergacomo o inessencial que nunca retorna aoessencial é porque não opera, ela própria, esseretorno. Os proletários dizem "nós". Os negrostambém. Apresentando-se como sujeitos, elestransformam em "outros" os burgueses, osbrancos. As mulheres — salvo em certoscongressos que permanecem manifestaçõesabstratas — não dizem "nós". Os homens dizem"as mulheres" e elas usam essas palavras para sedesignarem a si mesmas: mas não se põemautenticamente como Sujeito. Os proletáriosfizeram a revolução na Rússia, os negros noHaiti, os indo-chineses bateram-se na Indo-China: a ação das mulheres nunca passou deuma agitação simbólica; só ganharam o que os

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homens concordaram em lhes conceder; elasnada tomaram; elas receberam (Cf. SegundaParte, § 5). Isso porque não têm os meiosconcretos de se reunir em uma unidade que seafirmaria em se opondo. Não têm passado, nãotêm história, nem religião própria; não têm,como os proletários, uma solidariedade detrabalho e interesses; não há sequer entre elasessa promiscuidade espacial que faz dos negrosdos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operáriosde Saint-Denis ou das fábricas Renault umacomunidade. Vivem dispersas entre os homens,ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelosinteresses econômicos, pela condição social acertos homens — pai ou marido — maisestreitamente do que as outras mulheres.

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Burguesas, são solidárias dos burgueses e nãodas mulheres proletárias; brancas, dos homensbrancos e não das mulheres pretas. Oproletariado poderia propor-se o trucidamentoda classe dirigente; um judeu, um negro fanáticopoderiam sonhar com possuir o segredo dabomba atômica e constituir uma humanidadeinteiramente judaica ou inteiramente negra: masmesmo em sonho a mulher não pode exterminaros homens. O laço que a une a seus opressoresnão é comparável a nenhum outro. A divisão dossexos é, com efeito, um dado biológico e não ummomento da história humana. É no seio de ummitsein original que sua oposição se formou e elanão a destruiu. O casal é uma unidadefundamental cujas metades se acham presas

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indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte épossível na sociedade por sexos. Isso é quecaracteriza fundamentalmente a mulher: ela é oOutro dentro de uma totalidade cujos doistermos são necessários um ao outro.

Poder-se-ia imaginar que essareciprocidade teria facilitado a libertação;quando Hércules fia a lã aos pés de Onfale, odesejo amarra-o: por que Ônfale não conseguiuadquirir um poder durável? Para vingar-se deJasão, Medéia mata os filhos: essa lendaselvagem sugere que, do laço que a liga àcriança, a mulher teria podido tirar umaascendência temível. Aristófanes imaginoucomplacentemente, em Lisístrata, umaassembleia de mulheres em que estas tentam

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explorar em comum, e para fins sociais, anecessidade que os homens têm delas, mas trata-se apenas de uma comédia. A lenda que afirmaque as sabinas raptadas opuseram a seusraptores uma esterilidade obstinada, contatambém que, fustigando-as com chicotes decouro, os homens quebraram magicamente essaresistência. A necessidade biológica — desejosexual e desejo de posteridade — que coloca omacho sob a dependência da fêmea não libertousocialmente a mulher. O senhor e o escravo estãounidos por uma necessidade econômicarecíproca que não liberta o escravo. É que, narelação do senhor com o escravo, o primeiro nãopõe a necessidade que tem do outro; ele detém opoder de satisfazer essa necessidade e não a

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mediatiza; ao contrário, o escravo, nadependência, esperança ou medo, interioriza anecessidade que tem do senhor; a urgência danecessidade, ainda que igual em ambos, semprefavorece o opressor contra o oprimido: é o queexplica que a libertação da classe proletária, porexemplo, tenha sido tão lenta. Ora, a mulhersempre foi, senão a escrava do homem ao menossua vassala; os dois sexos nunca partilharam omundo em igualdade de condições; e ainda hoje,embora sua condição esteja evoluindo, a mulherarca com um pesado handicap. Em quasenenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao dohomem e muitas vezes este último a prejudicaconsideravelmente. Mesmo quando os direitoslhe são abstratamente reconhecidos, um longo

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hábito impede que encontrem nos costumes suaexpressão concreta. Economicamente, homens emulheres constituem como que duas castas; emigualdade de condições, os primeiros têmsituações mais vantajosas, salários mais altos,maiores possibilidades de êxito que suasconcorrentes recém-chegadas. Ocupam naindústria, na política etc, maior número delugares e os postos mais importantes. Além dospoderes concretos que possuem, revestem-se deum prestígio cuja tradição a educação da criançamantém: o presente envolve o passado e nopassado toda a história foi feita pelos homens.No momento em que as mulheres começam atomar parte na elaboração do mundo, essemundo é ainda um mundo que pertence aos

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homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam.Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade como homem seria para elas renunciar a todas asvantagens que a aliança com a casta superiorpode conferir-lhes. O homem suserano protegerámaterialmente a mulher vassala e se encarregaráde lhe justificar a existência: com o riscoeconômico, ela esquiva o risco metafísico de umaliberdade que deve inventar seus fins semauxílios. Efetivamente, ao lado da pretensão detodo indivíduo de se afirmar como sujeito, que éuma pretensão ética, há também a tentação defugir de sua liberdade e de constituir-se emcoisa. É um caminho nefasto porque passivo,alienado, perdido, e então esse indivíduo é presade vontades estranhas, cortado de sua

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transcendência, frustrado de todo valor. Mas éum caminho fácil: evitam-se com ele a angústia ea tensão da existência autenticamente assumida.O homem que constitui a mulher como um Outroencontrará, nela, profundas cumplicidades.Assim, a mulher não se reivindica como sujeito,porque não possui os meios concretos paratanto, porque sente o laço necessário que aprende ao homem sem reclamar a reciprocidadedele, e porque, muitas vezes, se compraz no seupapel de Outro.

Mas uma questão imediatamente seapresenta: como tudo isso começou?Compreende-se que a dualidade dos sexos, comotoda dualidade, tenha sido traduzida por umconflito. Compreende-se que, se um dos dois

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conseguisse impor sua superioridade, estadeveria estabelecer-se como absoluta. Restaexplicar por que o homem venceu desde o início.Parece que as mulheres deveriam ter sidovitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tidosolução. Por que este mundo sempre pertenceuaos homens e só hoje as coisas começam amudar? Será um bem essa mudança? Trará ounão uma partilha igual do mundo entre homens emulheres?

Essas questões estão longe de ser novas; jálhes foram dadas numerosas respostas, mas osimples fato de ser a mulher o Outro contestatodas as justificações que os homens lhepuderam dar: eram-lhes evidentemente ditadaspelo interesse. "Tudo o que os homens

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escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito,porque eles são, a um tempo, juiz e parte",escreveu, no século XVII, Poulain de Ia Barre,feminista pouco conhecido. Em toda parte e emqualquer época, os homens exibiram a satisfaçãoque tiveram de se sentirem os reis da criação."Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor detodos os mundos por não me ter feito mulher",dizem os judeus nas suas preces matinais,enquanto suas esposas murmuram comresignação: "Bendito seja o Senhor que me criousegundo a sua vontade". Entre as mercês quePlatão agradecia aos deuses, a maior se lheafigurava o fato de ter sido criado livre e nãoescravo e, a seguir, o de ser homem e nãomulher. Mas os homens não poderiam gozar

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plenamente esse privilégio, se não o houvessemconsiderado alicerçado no absoluto e naeternidade: de sua supremacia procuraram fazerum direito. "Os que fizeram e compilaram as leis,por serem homens, favoreceram seu própriosexo, e os jurisconsultos transformaram as leisem princípios", diz ainda Poulain de Ia Barre.Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores esábios empenharam-se em demonstrar que acondição subordinada da mulher era desejada nocéu e proveitosa à terra. As religiões forjadaspelos homens refletem essa vontade de domínio:buscaram argumentos nas lendas de Eva, dePandora, puseram a filosofia e a teologia aserviço de seus desígnios, como vimos pelasfrases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde

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a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas.Conhecem-se os violentos requisitórios quecontra elas se escreveram através de toda aliteratura francesa: Montherlant reata, commenor brilho, a tradição de Jean de Meung. Essahostilidade parece, algumas vezes, justificável,mas na maior parte dos casos é gratuita. Narealidade, recobre uma vontade deautojustificação mais ou menos habilmentemascarada. "E mais fácil acusar um sexo do quedesculpar o outro", diz Montaigne. Em certoscasos, o processo é evidente. E impressionante,por exemplo, que o código romano, a fim derestringir os direitos das mulheres, invoque "aimbecilidade, a fragilidade do sexo" no momento

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em que, pelo enfraquecimento da família, ela setorna um perigo para os herdeiros masculinos. Éimpressionante que no século XVI, a fim demanter a mulher casada sob tutela, apele-se paraa autoridade de Santo Agostinho, declarando que"a mulher é um animal que não é nem firme nemestável", enquanto à celibatária se reconhece odireito de gerir seus bens. Montaignecompreendeu muito bem a arbitrariedade e ainjustiça do destino imposto à mulher: "Nãocarecem de razão as mulheres quando recusamas regras que se introduziram no mundo, tantomais quando foram os homens que as fizeramsem elas. Há, naturalmente, desentendimentos edisputas entre elas e nós"; mas ele não chega adefendê-las verdadeiramente. É somente no

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século XVIII que homens profundamentedemocratas encaram a questão com objetividade.Diderot, entre outros, esforça-se por demonstrarque a mulher é, como o homem, um ser humano.Um pouco mais tarde, Stuart Mill defende-a comardor. Mas esses filósofos são de umaimparcialidade excepcional. No século XIX, aquerela do feminismo torna-se novamente umaquerela de sectários; uma das consequências darevolução industrial é a participação da mulherno trabalho produtor: nesse momento asreivindicações feministas saem do terrenoteórico, encontram fundamentos econômicos;seus adversários fazem-se mais agressivos.Embora os bens de raiz se achem em parteabalados, a burguesia apega-se à velha moral

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que vê, na solidez da família, a garantia dapropriedade privada: exige a presença da mulherno lar tanto mais vigorosamente quanto suaemancipação torna-se uma verdadeira ameaça;mesmo dentro da classe operária os homenstentaram frear essa libertação, porque asmulheres são encaradas como perigosasconcorrentes, habituadas que estavam atrabalhar por salários mais baixos5. A fim deprovar a inferioridade da mulher, osantifeministas apelaram não somente para areligião, a filosofia e a teologia, como nopassado, mas ainda para a ciência: biologia,psicologia experimental etc. Quando muito,

5 Ver segunda parte, págs. 151-152.

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consentia-se em conceder ao outro sexo "aigualdade dentro da diferença". Essa fórmula,que fez fortuna, é muito significativa: éexatamente a que utilizam em relação aos negrosdos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essasegregação, pretensamente igualitária, só serviupara intro duzir as mais extremasdiscriminações. Esse encontro nada tem deocasional: quer se trate de uma raça, de umacasta, de uma classe, de um sexo reduzidos auma condição inferior, o processo de justificaçãoé o mesmo. O "eterno feminino" é o homólogo da"alma negra" e do "caráter judeu". O problemajudaico é, de resto, em conjunto, muito diferentedos dois outros: o judeu para o antissemita émenos um inferior do que um inimigo e não se

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lhe reconhece neste mundo nenhum lugarpróprio: o que se deseja é aniquilá-lo. Mas háprofundas analogias entre a situação dasmulheres e a dos negros: umas e outrosemancipam-se hoje de um mesmo paternalismo ea casta anteriormente dominadora quer mantê-los "em seu lugar", isto é, no lugar que escolheupara eles; em ambos os casos, ela se expande emelogios mais ou menos sinceros às virtudes do"bom negro", de alma inconsciente, infantil ealegre, do negro resignado, da mulher"realmente mulher", isto é, frívola, pueril,irresponsável, submetida ao homem. Em ambosos casos, tira seus argumentos do estado de fatoque ela criou. Conhece-se o dito de BernardShaw: "O americano branco relega o negro ao

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nível do engraxate; e concluí daí que só podeservir para engraxar sapatos". Encontra-se essecírculo vicioso em todas as circunstânciasanálogas: quando um indivíduo ou um grupo deindivíduos é mantido numa situação deinferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobreo alcance da palavra ser que precisamosentender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe umvalor substancial quando tem o sentido dinâmicohegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido feitotal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seuconjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é,sua situação oferece-lhes possibilidadesmenores: o problema consiste em saber se esseestado de coisas deve perpetuar-se.

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Muitos homens o desejam: nem todos sedesarmaram ainda. A burguesia conservadoracontinua a ver na emancipação da mulher umperigo que lhe ameaça a moral e os interesses.Certos homens temem a concorrência feminina.No Hebdo-Latin um estudante declarava há dias:"Toda estudante que consegue uma posição demédico ou de advogado rouba-nos um lugar".Esse rapaz não duvidava, um só instante, de seuspróprios direitos sobre o mundo. Não sãosomente os interesses econômicos que importam.Um dos benefícios que a opressão assegura aosopressores é de o mais humilde destes se sentirsuperior: um "pobre branco" do sul dos E.U.A.tem o consolo de dizer que não é "um negroimundo" e os brancos mais ricos exploram

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habilmente esse orgulho. Assim também, o maismedíocre dos homens julga-se um semideusdiante das mulheres. Era muito mais fácil aMontherlant julgar-se um herói quando seconfrontava com mulheres (escolhidas, de resto,a dedo) do que quando teve de desempenhar seupapel de homem entre os homens: papel quemuitas mulheres desempenharam melhor do queele. É assim que, em setembro de 1948, em umde seus artigos do Vigoro Littéraire, o Sr. ClaudeMauriac — cuja forte originalidade todosadmiram — pôde escrever6 : "Nós ouvimos numaatitude (sic!) de indiferença cortês... a maisbrilhante dentre elas, sabendo muito bem que

6 Acreditou poder, pelo menos.

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seu espírito reflete, de maneira mais ou menosbrilhante, idéias que vêm de nós". Não sãoevidentemente as ideias do próprio Sr. C.Mauriac que sua interlocutora reflete, dado queele não tem nenhuma; que ela reflita ideias quevêm dos homens é possível: entre os homensmais de um considera suas muitas opiniões quenão inventou; pode-se indagar se o Sr. ClaudeMauriac não teria interesse em entreter-se comum bom reflexo de Descartes, de Marx, de Gide,de preferência a entreter-se consigo próprio. Oque é notável é que mediante o equívoco do nósidentifica-se ele com São Paulo, Hegel, Lenin,Nietzsche e do alto da grandeza deles consideracom desdém o rebanho de mulheres que ousamfalar-lhe em pé de igualdade. Para dizer a

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verdade, conheço muitas que não teriam apaciência de conceder ao Sr. Mauriac "umaatitude de indiferença cortês".

Insisti nesse exemplo porque nele aingenuidade masculina é desarmante. Há muitasoutras maneiras mais sutis mediante as quais oshomens tiram proveito da alteridade da mulher.Para todos os que sofrem de complexo deinferioridade, há nisso um linimento milagroso:ninguém é mais arrogante em relação àsmulheres, mais agressivo ou desdenhoso do queo homem que duvida de sua virilidade. Os quenão se intimidam com seus semelhantesmostram-se também muito mais dispostos areconhecer na mulher um semelhante. Mesmo aesses, entretanto, o mito da Mulher, o Outro, é

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caro por muitas razões7; não há como censurá-los por não sacrificarem de bom grado todas asvantagens que tiram disso; sabem o que perdem,renunciando à mulher tal qual a sonham,ignoram o que lhe trará a mulher tal qual elaserá amanhã. É preciso muita abnegação para se

7 O artigo de Michel Carrouges sobre esse tema, no número292 do Cahiers du Sud, é significativo. Escreve comindignação: "Gostaríamos que não houvesse o mito damulher, mas tão-somente uma coorte de cozinheiras, dematronas, de meretrizes, de pedantes com funções deprazer e de utilidade". O que significa que, a seu ver, amulher não tem existência para-si; ele considera apenas suafunção dentro do mundo masculino. Sua finalidadeencontra-se no homem; então, com efeito, pode-se preferirsua "função" poética a qualquer outra. A questão está,precisamente, em saber por que se deveria defini-la emrelação ao homem.

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recusar a apresentar-se como o Sujeito único eabsoluto. Aliás, a grande maioria dos homensnão assume explicitamente essa pretensão. Elesnão colocam a mulher como uma inferior; estãohoje demasiado compenetrados do idealdemocrático para não reconhecer todos os sereshumanos como iguais. No seio da família, amulher apresenta-se à criança e ao jovemrevestida da mesma dignidade social dos adultosmasculinos; mais tarde ele sente no desejo e noamor a resistência, a independência, da mulherdesejada e amada; casado, ele respeita namulher a esposa, a mãe, e na experiênciaconcreta da vida conjugai ela se afirma em facedele como uma liberdade. O homem pode, pois,persuadir-se de que não existe mais hierarquia

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social entre os sexos e de que, grosso modo,através das diferenças, a mulher é sua igual.Como observa, entretanto, algumasinferioridades — das quais a mais importante é aincapacidade profissional — ele as atribui ànatureza. Quando tem para com a mulher umaatitude de colaboração e benevolência, eletematiza o princípio da igualdade abstrata; e adesigualdade concreta que verifica, não a põe.Mas, logo que entra em conflito com a mulher, asituação se inverte: ele tematiza a desigualdadeconcreta e dela tira autoridade para negar aigualdade abstrata8 . Assim é que muitos homens

8 O homem declara, por exemplo, que não vê sua mulherdiminuída pelo fato de não ter profissão: a tarefa do lar étão nobre quanto etc. Entretanto, na primeira disputa,

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afirmam quase com boa-fé que as mulheres sãoiguais aos homens e nada têm a reivindicar, e, aomesmo tempo, que as mulheres nunca poderãoser iguais aos homens e que suas reivindicaçõessão vãs. É que é difícil para o homem medir aextrema importância de discriminações sociaisque parecem insignificantes de fora e cujasrepercussões morais e intelectuais são tãoprofundas na mulher que podem parecer ter suasraízes numa natureza original9. Mesmo o homemmais simpático à mulher nunca lhe conhece bema situação concreta. Por isso não há como

exclama: "Sereis totalmente incapaz de ganhar tua vida semmim".

9 Descrever esse processo será precisamente o objeto dosegundo volume.

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acreditar nos homens quando se esforçam pordefender privilégios cujo alcance não medem.Não nos deixaremos, portanto, intimidar pelonúmero e pela violência dos ataques dirigidoscontra a mulher, nem nos impressionar com oselogios interesseiros que se fazem à "verdadeiramulher"; nem nos contaminar pelo entusiasmoque seu destino suscita entre os homens que pornada no mundo desejariam compartilhá-lo.

Entretanto, não devemos ponderar commenos desconfiança os argumentos dosfeministas: muitas vezes, a preocupaçãopolêmica tira-lhes todo valor. Se a "questãofeminina" é tão absurda é porque a arrogânciamasculina fez dela uma "querela" e quando aspessoas querelam não raciocinam bem. O que se

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procurou infatigavelmente provar foi que amulher é superior, inferior ou igual ao homem.Criada depois de Adão, é evidentemente um sersecundário, dizem uns; ao contrário, dizemoutros, Adão era apenas um esboço e Deusalcançou a perfeição do ser humano quandocriou Eva; seu cérebro é o menor, mas érelativamente o maior; e se Cristo se fez homemfoi possivelmente por humildade. Cadaargumento sugere imediatamente seu contrário enão raro ambos são falhos... Se quisermos vercom clareza devemos sair desses trilhos;precisamos recusar as noções vagas desuperioridade, inferioridade, igualdade quedesvirtuam todas as discussões e reiniciar docomeço.

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Como poremos então a questão? E, antes demais nada, quem somos nós para apresentá-la?Os homens são parte e juiz; as mulherestambém. Onde encontrar um anjo? Em verdade,um anjo seria mal indicado para falar, ignorariatodos os dados do problema; quanto aohermafrodita, é um caso demasiado singular: nãoé homem e mulher ao mesmo tempo, mas antesnem homem nem mulher. Creio que para elucidara situação da mulher são ainda certas mulheresas mais indicadas. É um sofisma encerrarEpimênides no conceito de cretense e oscretenses no de mentiroso: não é uma essênciamisteriosa que determina a boa ou a má-fé noshomens e nas mulheres; é a situação deles queos predispõem mais ou menos à procura da

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verdade. Muitas mulheres de hoje, que tiveram asorte de ver-lhes restituídos todos os privilégiosdo ser humano, podem dar-se ao luxo daimparcialidade; sentimos até a necessidadedesse luxo. Não somos mais como nossaspredecessoras: combatentes. De maneira globalganhamos a partida. Nas últimas discussõesacerca do estatuto da mulher, a O.N.U. nãocessou de exigir que a igualdade dos sexos serealizasse completamente e muitas de nós já nãoveem em sua feminilidade um embaraço ou umobstáculo; muitos outros problemas nos parecemmais essenciais do que os que nos dizemparticularmente respeito; e esse própriodesinteresse permite-nos esperar que nossaatitude será objetiva. Entretanto, conhecemos

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mais intimamente do que os homens o mundofeminino, porque nele temos nossas raízes;apreendemos mais imediatamente o que significapara um ser humano o fato de pertencer ao sexofeminino e preocupamo-nos mais com o saber.Disse que havia problemas mais essenciais, oque não impede que esse conserve a nossosolhos alguma importância: em que o fato desermos mulheres terá afetado a nossa vida? Quepossibilidades nos foram oferecidas, exatamente,e quais nos foram recusadas? Que destino podemesperar nossas irmãs mais jovens e em quesentido convém orientá-las? E impressionanteque em seu conjunto a literatura feminina sejamenos animada em nossos dias por uma vontadede reivindicação do que por um esforço de

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lucidez; ao sair de uma era de polêmicasdesordenadas, este livro é uma tentativa, entreoutros, de verificar em que pé se encontra a questão.

Mas é sem dúvida impossível tratarqualquer problema humano sem preconceito: aprópria maneira de pôr as questões, asperspectivas adotadas pressupõem umahierarquia de interesses: toda qualidade envolvevalores. Não há descrição, dita objetiva, que nãose erga sobre um fundo ético. Ao invés de tentardissimular os princípios que se subentendemmais ou menos explicitamente, cumpre examiná-los. Desse modo, não somos obrigadas a precisarem cada página que sentido se dá às palavrassuperior, inferior, melhor, pior, progresso,

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retrocesso etc. Se passamos em revista algumasdessas obras consagradas à mulher, vemos queum dos pontos de vista mais amiúde adotados é odo bem público, do interesse geral; em verdade,cada um entende, com isso, o interesse dasociedade tal qual deseja manter ou estabelecer.Quanto a nós, estimamos que não há outro bempúblico senão o que assegura o bem individualdos cidadãos. É do ponto de vista dasoportunidades concretas dadas aos indivíduosque julgamos as instituições. Mas nãoconfundimos tampouco a ideia de interesseprivado com a de felicidade, ponto de vista quese encontra frequentemente. As mulheres deharém não são mais felizes do que uma eleitora?Não é a dona de casa mais feliz do que a

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operária? Não se sabe muito precisamente o quesignifica a palavra felicidade, nem que valoresautênticos ela envolve. Não há nenhumapossibilidade de medir a felicidade de outrem e ésempre fácil declarar feliz a situação que se lhequer impor. Os que condenamos à estagnação,nós os declaramos felizes sob o pretexto de que afelicidade é a imobilidade. É, portanto, umanoção a que não nos referimos. A perspectivaque adotamos é a da moral existencialista. Todosujeito coloca-se concretamente através deprojetos como uma transcendência; só alcançasua liberdade pela sua constante superação emvista de outras liberdades; não há outrajustificação da existência presente senão suaexpansão para um futuro indefinidamente aberto.

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Cada vez que a transcendência cai na imanência,há degradação da existência em "em si", daliberdade em facticidade; essa queda é uma falhamoral, se consentida pelo sujeito. Se lhe éinfligida, assume o aspecto de frustração ouopressão. Em ambos os casos, é um mal absoluto.Todo indivíduo que se preocupa em justificar suaexistência, sente-a como uma necessidadeindefinida de se transcender. Ora, o que definede maneira singular a situação da mulher é que,sendo, como todo ser humano, uma liberdadeautônoma, descobre-se e escolhe-se num mundoem que os homens lhe impõem a condição doOutro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la àimanência, porquanto sua transcendência seráperpetuamente transcendida por outra

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consciência essencial e soberana. O drama damulher é esse conflito entre a reivindicaçãofundamental de todo sujeito que se põe semprecomo o essencial e as exigências de uma situaçãoque a constitui como inessencial. Como poderealizar-se um ser humano dentro da condiçãofeminina? Que caminhos lhe são abertos? Quaisconduzem a um beco sem saída? Como encontrara independência no seio da dependência? Quecircunstâncias restringem a liberdade da mulher,e quais pode ela superar? São essas algumasquestões fundamentais que desejaríamoselucidar. Isso quer dizer que, interessando-nospelas oportunidades dos indivíduos, não asdefiniremos em termos de felicidade e sim emtermos de liberdade.

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É evidente que esse problema não terianenhum sentido se supuséssemos que pesa sobrea mulher um destino fisiológico, psicológico oueconômico. Por isso, começaremos por discutiros pontos de vista da biologia, da psicanálise edo materialismo histórico acerca da mulher.Tentaremos mostrar, em seguida, que a mulherfoi definida como o Outro e quais foram asconsequências do ponto de vista masculino.Descreveremos então, do ponto de vista dasmulheres, o mundo que lhes é proposto10; epoderemos compreender contra que dificuldadesse chocam no momento em que, procurandoevadir-se da esfera que lhes foi assinalada até o

10 Isso constitui o objeto do segundo volume.

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presente, elas pretendem participar do mitseinhumano.

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