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O senso do passado: produção, divulgação e recepção do ... · PDF fileformas de apreensões e usos. A mobilização do passado efetuada ... não deve distanciar-se dos problemas

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O senso do passado: produção, divulgação e recepção do conhecimento histórico

HENRIQUE PINHEIRO COSTA GAIO

A presente comunicação visa sugerir uma breve reflexão sobre questões latentes para o

ensino da história e para o que se convencionou denominar história pública – reflexão esta

que emerge, sobretudo, de indagações provenientes do exercício do magistério e dos usos e

abusos da memória que caracterizam o regime contemporâneo de historicidade. Desse

modo, antes de colocações peremptórias ou conclusivas, pretendo expor considerações que

possam contribuir para o debate relativo ao alcance e aos limites da formação histórica

pretendida em sala de aula, especulações que possam problematizar a eficiência

comunicativa do ensino-aprendizado da história e, consequentemente, o estímulo da

criticidade e a defesa de valores democráticos – tal como formulado nos objetivos gerais

do PCN.

Feita a devida ressalva, quanto à pretensão da presente comunicação, faz-se necessário

mencionar que o passado inexoravelmente apresenta-se como campo aberto para diferentes

formas de apreensões e usos. A mobilização do passado efetuada para legitimação de

discursos e ações políticas do presente remete-nos a um regime de historicidade moderno,

onde a ação do cidadão orienta-se por meio da exemplaridade recolhida em tempos

pretéritos. Mesmo a escrita histórica na antiguidade, enquanto gênero narrativo, ao se

propor fixar os grandes feitos na memória coletiva apresentava-se como eminentemente

política, ocupando-se, sobretudo, do tempo presente. Portanto, antes de uma função

meramente erudita, ou especializada, a história tendeu a revestir-se de uma preocupação

latente com certa orientação ética, servindo para conferir sentido à vida prática e às

intervenções individuais e coletivas no presente (ARAUJO, 2012; ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2012; CEZAR, 2014). Antes do “luxo dispendioso e supérfluo” ou de sua

manifestação excessiva e castradora da individualidade, tal como denunciado por

Nietzsche em sua II Consideração Intempestiva, o conhecimento histórico possui um papel

central para modelar ações que se inserem em temporalidade mais ampla do que o presente

absoluto – o presente que relega o indivíduo a um vazio temporal.

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Desse modo, seguindo a reflexão proposta por Jörn Rüsen, não seria pouco relevante

destacar que os princípios didáticos mantiveram certa centralidade numa percepção

processual da história, o que torna o ensino e o aprendizado questões não menos

importantes que metodologia e pesquisa. No entanto, a institucionalização da disciplina e

todo apelo pela cientificidade do conhecimento histórico, pautado no rigor metodológico,

teria minimizado a preocupação didática, ou seja, teria tornado secundário a questão

referente ao problema da divulgação do conhecimento histórico produzido. Os

procedimentos metodológicos responsáveis pela autonomia da disciplina e por uma

produção cada vez mais especializada, fundamentais para a consolidação do campo, desse

modo, provocaram uma ruptura com a reflexão didático-pedagógica (RÜSEN, 2011). Se a

consolidação da disciplina História permitiu o avanço na questão da produção do

conhecimento, o ensino da história tornou-se, no limite, mera prática de transposição

didática, provocando um incômodo esvaziamento ético e político da disciplina. A

transmissão do conhecimento histórico, portanto, não deve distanciar-se dos problemas e

questões do tempo presente sob o risco de tornar-se um conhecimento ornamental, feito

exercício de erudito antiquário, conhecimento autossuficiente e autorreferente. Em outra

embocadura, a preocupação do historiador não deve restringir-se somente ao processo de

seleção de temas e ao diálogo com certos anseios político-sociais da contemporaneidade,

deve estender-se ao debate premente sobre os meios de divulgação e aos efeitos

provocados pela recepção das narrativas históricas. A pergunta que se desenha aqui é:

como evitar o risco de circunscrever o alcance do conhecimento produzido

academicamente a um número diminuto de leitores, no geral profissionalmente envolvidos

com a disciplina?

A questão remonta menos aos desafios epistemológicos do conhecimento histórico do

que a dimensão retórica da escrita e do ensino da história. Pois se certos procedimentos

metodológicos que possibilitam a narrativa histórica parecem consolidados

academicamente e se a historiografia concede sentido ao conhecimento produzido sobre o

passado, a questão referente à transmissão foi relegada a um plano secundário – não

somente no momento de institucionalização da disciplina, mas também ao longo da

consolidação das universidades brasileiras. A discrepância entre pesquisa e ensino, apesar

de certos avanços verificados nos últimos anos, ainda mostra-se como obstáculo para

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qualquer pretensão de democratização do conhecimento histórico – apontar para a

distância entre ensino e pesquisa não pressupõe a necessidade de uma passagem da

pesquisa para o ensino, tornando o ensino como reprodutor de um conhecimento produzido

academicamente, mas sim, também, a autonomia que cada campo possui.

Como tentativa de romper esse círculo restrito de produção e consumo do

conhecimento histórico, que tende a criar uma falsa oposição entre ensino e pesquisa, o

campo da história pública tem crescido na academia e proporcionado uma ampliação do

debate referente à democratização do acesso ao conhecimento acadêmico e a cultura

histórica de maneira mais geral. Desse modo, mais importante do que descrever a trajetória

de fundação do campo, como, por exemplo, sua perspectiva norte-americana bastante

atrelada ao problema da empregabilidade de profissionais da história, ou sua relação com o

patrimônio e a memória nacional, como no caso britânico, cumpre destacar aqui o aspecto

central sugerido pela história pública, a saber: o debate sobre estratégias de divulgação que

possibilitem a ampliação do público. A referência ao problema da divulgação anuncia,

como corolário, outra questão: como fazer uso dos novos meios de comunicação,

sobretudo os inúmeros recursos audiovisuais, proporcionando uma síntese competente, que

possua como lastro a pesquisa produzida nas academias, e que faça uso de uma linguagem

razoavelmente eficiente?

Reduzir o debate relativo à necessidade de divulgação do conhecimento histórico a

utilização de novos suportes ou a utilização de recursos audiovisual para o ensino, me

parece equivocado pois implica uma percepção instrumental das diferentes possibilidades

de narrativa histórica, além disso parece reforçar a autoridade metodológica em detrimento

do esforço de comunicação que mostra-se nevrálgico na própria historicidade da disciplina

e no fortalecimento de valores constitutivos da cidadania. Dito com outras palavras, o

papel do historiador não se assenta na chancela da cultura histórica que é engendrada pelos

seus contemporâneos, feito um guardião ou profeta do passado que preza em última

instância sempre o rigor metodológico, sua atuação mostra-se fundamental para a

desnaturalização do cotidiano, para a desconstrução de imagens engessadas e na

proposição de um olhar perspectivado diante do passado que ainda se faz presente, olhar

esse que seja capaz de trazer para o primeiro plano a alteridade que resulta da articulação

narrativa do pretérito. A diferença como elemento capaz de costurar experiências e

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expectativas e de intervir no processo de formação (Bildung) dos indivíduos, articulando

ser e devir.

Todavia, não se trata de debater a noção de transposição didática, ou qualquer tipo de

simplificação metodológica ou retórica, mas sim de apontar para a função comunicativa

que funda a própria disciplina histórica. A primeira forma de divulgação sistemática da

pesquisa histórica seja o ensino formal, lugar privilegiado para a fundação do ensino-

aprendizado histórico e, talvez, para uma parcela significativa de indivíduos o único

momento de construção de um senso do passado. Digo senso do passado como forma de

enfatizar o caráter movediço dessa experiência, para chamar a atenção para a existência de

outros estímulos que extrapolam o ensino formal, mas que, no entanto, constituem também

a cultura histórica dos indivíduos em sua contemporaneidade – a noção de capital cultural

apontada por Pierre Bourdieu ao se referir à relação entre desempenho escolar e origem

social pode comportar também a cultura histórica adquirida ao longo do processo

formativo (BOURDIEU, 2014). Desse modo, cabe ao ensino, em primeira instância mas

não exclusivamente, conferir sentido ao passado, alargando a experiência do presente em

um tempo mais amplo e mais denso.

A pedagogia tem chamado a atenção para a necessidade de um esforço de adequação

da prática escolar ao contexto cultural do aluno, ressaltando, sobretudo, a necessidade de

novas estratégias no âmbito do ensino-aprendizado. Tal adequação ou reconhecimento de

uma bagagem cultural prévia de uma dada audiência já sinaliza para a necessidade de estar

disponível para a compreensão do universo de referências do público ao qual se dirige e

para a mobilização de uma cultura que extrapola o ambiente escolar – algo já sinalizado

nas reflexões de Paulo Freire (FREIRE, 2014).

Talvez o lugar por excelência para se efetuar tal intercessão entre o conhecido e o ainda

não assimilado seja a narrativa, a apresentação como lugar de efetivação do conhecimento.

Ainda pautado pela reflexão proposta por Jörn Rüsen, pode-se destacar que a competência

narrativa teria papel fulcral para o aprendizado da história e, consequentemente para a

orientação ética e moral do indivíduo, pois permitiria uma perspectiva temporal ampla,

transformando o passado em experiência. Desse modo, o aprendizado histórico seria um

processo de digestão de experiências do tempo em formas de competências narrativas e

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que possibilitaria a atribuição de significados e de sentido ao tempo (RÜSEN, 2011: 51-

77).

Insistir no papel da competência narrativa no aprendizado da história ou no estímulo a

certo senso histórico mostra-se como ponto central para uma compreensão retórico-política

das questões envolvidas na divulgação do conhecimento histórico. Ilmar Rohlof de Mattos,

ao refletir sobre a questão do ensino-aprendizado de história, compara a aula com um

texto, apontando para o trabalho prévio da leitura como arcabouço que permite erigir uma

aula e, além disso, as escolhas que definem ênfases e omissões no momento da

apresentação. A analogia criativa parece corroborar as indicações de Rüsen ao se referir ao

processo de seleção e síntese que envolve a feitura de uma aula-texto. Pois o autor-

professor apresenta-se primeiro como um leitor capaz de conferir sentido ao tema estudado

e mobilizar uma bibliografia de acordo com critérios de relevância ao público e aos

objetivos traçados em planejamento prévio, sugerindo não somente a reprodução, mas,

sobretudo, a produção do conhecimento. A condição prévia do professor-autor como leitor

permite destacar o aprendizado inerente ao ato da leitura, porém, pode-se inferir também a

noção de recepção que envolve a leitura-aprendizagem, ou seja, a possibilidade de

construção de novos significados de imputar novos sentidos à matéria previamente

selecionada. A aula, vista como momento de construção do conhecimento e não de mera

reprodução, permite imputar seu caráter necessariamente aberto, sujeito às ressignificações

da memória e as rasuras de identidade proveniente da recepção – a aula como texto e o

texto como obra aberta coincide com as orientações legais para a construção da cidadania e

para o fortalecimento dos valores democráticos.

As demandas por memórias que visam rasurar as narrativas oficiais ou hegemônicas e

auxiliam no reconhecimento da alteridade e, por conseguinte, na construção de identidades

coletivas, assim como valor da história oral na consideração de vozes silenciadas pela

historiografia e os usos e desusos do passado, nos remetem ao papel desempenhado pela

história no debate político-social contemporâneo. O senso do passado pode ser produzido

por diversos estímulos, sendo assim a construção de uma cultura histórica coletiva

extrapola o ambiente acadêmico. A verificação de uma tendência ao espraiamento desse

senso histórico, em diferentes regimes de historicidade, faz com que a história pública,

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como afirma Jill Liddington, apresente-se como um novo nome para designar algo bem

velho, a saber, a dimensão contemporânea e o fundo didático quase que inexoravelmente

presente na manifestação da competência de narrar eventos pretéritos (LIDDINGTON,

2011). A premissa que fundamenta todo anseio de organizar o passado através de uma

narrativa é a função de orientação dos indivíduos no tempo, fazendo com que a da

audiência ganhe centralidade em ambiente de memórias inflacionadas, daí a expansão da

denominada história pública como campo específico. Pois se a memória possui a função e

o dever fundamental de conceder voz aos grupos antes silenciados por uma historiografia

tradicional, a história, em suas diferentes manifestações, precisa tomar parte no debate. Por

outro lado, o debate sobre os novos suportes para a produção do conhecimento histórico

não justifica a fundação de um campo específico da disciplina, pois seria inevitável

derivação da inserção e diálogo com a contemporaneidade – algo já verificado em outros

saltos metodológicos da disciplina.

Em outras palavras, porém fortalecendo essa dimensão retórica da história – essa busca

pela comunicação eficiente e que exprime não somente uma transposição didática, mas a

própria construção do conhecimento –, Rüsen busca em sua reflexão reaproximar a história

e didática, não como momentos isolados e consecutivos, mas como produtores de um

conhecimento que tem como função construir a consciência histórica, situar temporalmente

indivíduos e coletividades para que as ações no presente sejam orientadas criticamente.

Trata-se de enfatizar a história pra vida, tal como defendida por Nietzsche, ou, em outro

diapasão, a agoridade indicada por Walter Benjamin. Desalienar o indivíduo por meio de

sua inserção em conjuntura mais ampla, espacial e temporalmente, parece ser fundamental

para a noção de Bildung, para a formação em seu sentido mais denso almejado pelo ensino

da história. A ampliação do público através de um cuidado didático-retórico e da

apropriação de novas plataformas parece relembrar uma função formadora da história, seu

aspecto ético e político. Ao realçar o objetivo de gerar sentido para o processo histórico e

para as questões do presente, parece indicar a necessidade da audiência, pressupor sempre

o leitor que reverbera o outro e faz presente a alteridade.

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Janeiro: Editora FGV, 2012.

ARAUJO, Valdei Lopes de. A aula como desafio à experiência da história. In:

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BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani

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uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: SCHMIDT, Maria

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