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33 Revista Opus 12 - 2006 Introdução Análise é entendida como o processo de decomposição em partes dos elementos que integram um todo. Esse fracionamento tem como objetivo permitir o estudo detido em separado desses elementos constituintes, possibilitando entender quais são, como se articulam e como foram conectados de modo a gerar o todo de que fazem parte. Justifica-se esse procedimento por admitir-se que a explicação do detalhe sobre o conjunto conduz a um melhor entendimento global. No caso da música, o processo pode ser compreendido em duas etapas básicas: identificação dos diversos materiais que compõem a obra em questão e definição (constatação e explicação) da maneira como eles interagem fazendo a obra “funcionar”. Em maior ou menor grau, essa definição de análise musical é encontrada nas grandes obras de referência sobre música. Harvard Dictionary, The New Oxford Companion to Music, Science de La Musique, Dictionnaire de la Musique, Dizionario Enciclopedico Uneversale Della Musica e Dei Musicisti, são alguns exemplos de O SENTIDO DA ANÁLISE MUSICAL Antenor Ferreira Corrêa Resumo: Síntese histórico-crítico a respeito da Análise Musical com objetivo de descrever e refletir sobre os rumos tomados por essa disciplina no século XX. Usada, de início, como suporte para notas de programa, a Análise Musical torna-se, posteriormente, ferramenta do ensino composicional e subsidiária da crítica musical, até consolidar-se enquanto área autônoma do estudo da música. Esse percurso é relatado, interpretado e avaliado permitindo uma melhor compreensão do sentido percorrido pela Análise Musical e dos desdobramentos ocasionados sobre a teoria musical como um todo, sobretudo no século XX. Palavras-chave: Análise musical. Composição musical. Teoria musical Abstract: Historical and critical summary concerning Musical Analysis. My purpose is to describe and to reflect upon the course taken by Musical Analysis in the twentieth century. This historical trajectory is displayed and evaluated in order to make possible a better understanding of the process undergone by Musical Analysis, and of the development that took place throughout whole musical theory, mainly in the twentieth century. Key words: Musical Analysis. Musical composition. Music Theory

O SENTIDO DA ANÁLISE MUSICAL - hugoribeiro.com.br · da música. Os três momentos citados do Grove são sintomáticos ... da obra. Nos dizeres de ... os músicos que lidam com análise

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IntroduçãoAnálise é entendida como o processo de decomposição em partesdos elementos que integram um todo. Esse fracionamento tem comoobjetivo permitir o estudo detido em separado desses elementosconstituintes, possibilitando entender quais são, como se articulame como foram conectados de modo a gerar o todo de que fazemparte. Justifica-se esse procedimento por admitir-se que a explicaçãodo detalhe sobre o conjunto conduz a um melhor entendimentoglobal. No caso da música, o processo pode ser compreendido emduas etapas básicas: identificação dos diversos materiais quecompõem a obra em questão e definição (constatação e explicação)da maneira como eles interagem fazendo a obra “funcionar”.

Em maior ou menor grau, essa definição de análise musical éencontrada nas grandes obras de referência sobre música. Harvard

Dictionary, The New Oxford Companion to Music, Science de La

Musique, Dictionnaire de la Musique, Dizionario Enciclopedico

Uneversale Della Musica e Dei Musicisti, são alguns exemplos de

O SENTIDO DA ANÁLISE MUSICAL

Antenor Ferreira Corrêa

Resumo: Síntese histórico-crítico a respeito da Análise Musical com objetivo de descrever erefletir sobre os rumos tomados por essa disciplina no século XX. Usada, de início, como suportepara notas de programa, a Análise Musical torna-se, posteriormente, ferramenta do ensinocomposicional e subsidiária da crítica musical, até consolidar-se enquanto área autônoma doestudo da música. Esse percurso é relatado, interpretado e avaliado permitindo uma melhorcompreensão do sentido percorrido pela Análise Musical e dos desdobramentos ocasionadossobre a teoria musical como um todo, sobretudo no século XX.

Palavras-chave: Análise musical. Composição musical. Teoria musical

Abstract: Historical and critical summary concerning Musical Analysis. My purpose is to describeand to reflect upon the course taken by Musical Analysis in the twentieth century. This historicaltrajectory is displayed and evaluated in order to make possible a better understanding of theprocess undergone by Musical Analysis, and of the development that took place throughout wholemusical theory, mainly in the twentieth century.

Key words: Musical Analysis. Musical composition. Music Theory

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obras que compartilham dessa idéia. Entendimento semelhantetambém pode ser encontrado em um dos maiores compêndiosexistentes sobre música, o Grove’s Dictionary. Todavia, no Grove

algumas curiosidades podem ser notadas. A primeira publicaçãodo Grove ocorreu em 1878, contudo o verbete sobre análise musicalsó foi incluído na sua sexta edição, em 1980. Até então, a mençãoà análise musical era encontrada no verbete distantementeaparentado “notas de programa”. As notas de programas eramdefinidas como “anotações em programas de concertos sobre amúsica a ser interpretada, também chamadas de notas analíticas”(1954, p.941). A edição de 1980 traz o verbete Análise assinadopor Ian Bent, tópico também presente na versão on line de 2001,mas com ligeiros acréscimos realizados por Anthony Pople.

O entendimento da análise musical como apresentado anteriormenteé mantido no verbete original de Bent que, dentre outrasconsiderações, apresenta a seguinte definição: “decomposição deuma estrutura musical nos seus elementos constitutivos mais simplese a investigação desses elementos no interior dessa estrutura”(1980, p.340). Contudo, na publicação de 2001 o “peso” desseaspecto da definição é minimizado por meio de uma inversão deparágrafos na estruturação do texto.

Geralmente, os verbetes do Grove obedecem um esquema de iniciarcom um parágrafo introdutório contendo uma definição genéricado termo e depois ampliá-los, realizando um aprofundamento doassunto. Nesse parágrafo introdutório da edição de 1980, Bentcomeça com a definição acima citada e termina dizendo que aanálise musical pode comportar a definição ampla de ser a “partedo estudo da música que tem como ponto de partida a música emsi mesma, desvinculada de fatores externos” (1980, p.341). Naedição de 2001, os parágrafos são invertidos, iniciando com adefinição mais geral (estudo da música em si), o que faz com queessa idéia adquira maior relevância em detrimento da definiçãoanterior da decomposição em partes.

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Embora possa parecer apenas um pormenor, essa referida inversãoaponta (propositadamente ou não) para uma das principaisocorrências presenciadas no campo da análise musical: suaemancipação e cristalização enquanto campo autônomo do estudoda música. Os três momentos citados do Grove são sintomáticosdessa situação: a análise musical, antes simples apêndices em notasde programas, caminha para avaliação da obra por meio dadecomposição de sua estrutura nos seus elementos constituintese, finalmente, adquire autonomia suficiente para poder prescindirdos diversos fatores que compõem o fato musical. Seria essepercurso reflexo de uma atitude positivista que ascenderia a análiseao estatuto de “ciência”? Se o fenômeno musical é um produtocultural, como considerá-lo desvinculado do contexto que o gerou?

Bent deixa claro, pelos desdobramentos observados no seu texto,que está consciente dessas questões, e eu também sou cônscioda quase impossibilidade de realizar uma definição completa eabsoluta do conceito de análise musical. Todavia, objetivo partir dasíntese conceitual lograda por Bent e refletir sobre os fatores quepossibilitaram a elaboração dessa definição. Em que contextohistórico foi formulada? Quanto, atualmente, a análise musicalafastou-se ou não dessa definição? Para tanto, diversos textos derenomados autores sobre análise musical serão confrontados,servindo de base para as discussões e especulações aqui tratadasem busca desse sentido trilhado e comportado pela análise musical.Pretendo assim, um melhor entendimento das ocorrências edesdobramentos que se deram no campo da análise musical noséculo XX, realizado por meio de um acompanhamento mais detidosobre alguns escritos sobre esse assunto; porém, tendo as duasúltimas edições do Grove’s Dictionary como eixo condutor desteartigo.

Três tópicos em destaqueDos três momentos assinalados na Introdução (a passagem do usoda análise como auxílio nos programas de concerto, para

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procedimento de segmentação da música, e sua posterioremancipação) os dois primeiros são indicadores de instânciasespecíficas e podem ser entendidos como provenientes,respectivamente, das atitudes crítica (avaliação ou apreciaçãoestética da música) e pedagógica (ligada ao ensino da composição).O terceiro passo, entretanto, ao colocar relevo na autonomia daanálise musical, possui qual intuito ou proveniência? O que a músicatem a lucrar com isso? Para tentar obter essas respostas retomarei,resumidamente, os dois momentos iniciais.

Análise e CríticaBent situa os primórdios da análise musical na classificação realizadapelo clero Carolíngio, que consistiu na determinação dos diferentesmodos usados na composição das antífonas de seu repertóriolitúrgico. Segundo Bent, os grupos de modos também recebiamuma subclassificação de acordo com sua finalidade – as diferentesaplicações dos tons da salmodia. Michel Huglo, autor do verbeteTonary no próprio Grove, ressalta que a compilação dos tonarius

foi freqüentemente copiada em outros livros litúrgicos, tais comoantifonários, graduais, tropários, etc., residindo ai a base para ovocabulário da teoria modal, na qual a descrição padrão dos modoslitúrgicos se desenvolveu (cf: Huglo, 1980, p.55). Vislumbra-se ai, oprimeiro indício de um procedimento analítico fornecendofundamentos para uma teoria musical (assunto consideradoadiante).

Dunsby e Whittall (1988) entendem, no entanto, que o tratado deAristoxenos (século IV a.C.) já possui características que poderiamser consideradas analíticas. Concordam, porém, que esses marcos(tratado de Aristoxenos e compilação do clero Carolíngio)constituem-se de uma forma muito incipiente da análise musical. Aorigem desta, como a entendemos atualmente, residiria na atitudeestética de meados do século XVIII. Assim admitida, a análiseencontrar-se-ia desde sua origem vinculada à apreciação crítica de

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obras de arte. É fato, também, que qualquer análise traz um certojuízo implícito na atitude do analista. Os detalhes e pontos relevantes,a maneira e a extensão da discussão a estes dedicados e sua ordemde apresentação, são decisões particulares do analista quesubentendem uma atitude crítica.

No final do século XVIII já é possível observar-se uma pequenaexpansão da análise musical em razão da multiplicação de jornaise periódicos e com a aparição dos programas de concertoscomentados. Um certo pioneirismo pode ser atribuído a J. Fr.Reichardt, um dos fundadores da Sociedade Berlim (1783), cujasnotas sobre os concertos já tratavam de aspectos rítmicos,acompanhamento, melodia, harmonia, modulação, esta, muitasvezes abordada sobre os aspectos técnico e psicológico. No iníciodo período romântico a análise musical continuou a tradição deReichardt, atingindo o apogeu nas críticas escritas por Schumanne Hoffmann. Em seus textos, Hoffmann metodicamente distinguiuentre análise da técnica composicional e interpretação do conteúdomusical, marcando, assim, o fim da doutrina dos afetos. Ele escreveupara a revista AMZ – Allgemeine musikalische Zeitung – de 1809até 1815. Schumann, contemporaneamente a Hoffmann, enumerouos quatro pontos sob os quais uma obra deveria ser considerada:forma (conjunto, partes separadas, período, frase); composiçãomusical (harmonia, melodia, escritura, estilo); de acordo com a idéiaparticular que o artista desejou representar; segundo o espírito quesubjaz à forma, ao material e à idéia. Esses são exemplos querefletem o processo realmente compreendido como analítico, noqual o analista se debruça sobre uma obra específica e estudaseus componentes em separado, almejando atingir melhorcompreensão da sua íntegra. (Essa atitude reside até hoje, emborahaja certas controvérsias com relação à divisão entre procedimentosanalíticos e teóricos, que serão comentados adiante). Também erapropósito dessa empresa analítica determinar que a natureza deum trabalho completo e a relação entre suas partes podem ser

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apreciadas estética e intelectualmente. Transparece, assim, a idéiade organicidade, em voga no período, princípio que preconizavatratar as obras de arte como organismos, cujas partes constituintesseriam absolutamente interdependentes e integradas.

Claro está que este intuito crítico, ao usufruir da análise, começa abuscar elementos objetivos para referendar os julgamentossubjetivos, antecipando a metodologia científica que, em meadosdo século XX, se pretendeu aplicar à música. É mais que adequadoà música o pensamento manifestado por Jorge Coli ao comentar acaracterística presente em apontamentos críticos a respeito dasartes em geral: “os discursos sobre as artes parecem, comfreqüência, ter a nostalgia do rigor científico, a vontade de atingiruma objetividade de análise que lhes garanta as conclusões” (Coli,1984, p.24). Esta atitude analítica também irá revelar a inadequaçãodo entendimento da música em si mesma, pois todo o aparatocultural por ela envolvido é parte preponderante nas apreciaçõesrealizadas. É difícil para um crítico, por exemplo, na análise de umaobra, não compará-la com outras que a antecederam. Nesse casoo conhecimento histórico é primordial. A importância da mediaçãohistórica pode ser atestada simplesmente pelo fato de que os juízosestéticos sempre levam em consideração a tradição ou o desviodesta, avaliando a continuação de um modelo ou a originalidadeda obra. Nos dizeres de Dahlhaus: “quando a música é subtraídado seu contexto, aspectos como novidade, genuinidade,epigonismo, deixam de existir, e tais critérios são bases para umjulgamento estético” (cf: Dahlhaus, 1977, passim).

O teor polêmico da ligação entre análise e crítica se fez sentir, muitasvezes de um modo não muito educado, há pouco tempo atrás, nasrepercussões obtidas pelo artigo de Joseph Kerman: How we got

into analysis, and how to get out (1980). Sobretudo após areimpressão deste artigo em 1994, uma enxurrada de “respostas”e “respostas das respostas” para esse trabalho tomaram conta do

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ambiente acadêmico, principalmente na internet. No seu texto,Kerman tece considerações sobre a crítica musical como um todo(O artigo foi primeiramente publicado em 1979 sob o título The State

of Academic Music Criticism) e conclui que a atividade de análise é,per se, uma atividade crítica. Segundo ele, o que aconteceu é queos músicos que lidam com análise não consideram essa atividadecomo crítica musical por duas razões. A primeira deve-se a umaespécie de preconceito nutrido contra a crítica jornalística, pois estas,na visão dos músicos, carecem de rigor e de profundidadeintelectual, consistindo somente de um apanhado de impressõessubjetivas. Assim, ao permanecerem no plano do juízo de gosto,pouco acrescentam ao leitor. O segundo motivo é que os analistasdeliberadamente evitaram a formulação de juízos de valor (quandoda realização de análises) por buscarem uma atitude de isenção,nos moldes das investigações científicas. Kerman aponta que asanálises de músicas compostas, principalmente, a partir da décadade 50 apresentam-se como “proposições estritamente corrigíveis,equações matemáticas, formulações da teoria dos conjuntos, etc.”(1980, p.312), indicando um esforço para alcançar um estatutocientífico. Exemplificando essa constatação, remete ao livro de AllenForte The Compositional Matrix, no qual o autor dizia termeticulosamente excluído os termos indicativos de quaisquer tiposde valoração, como bom, ruim, legal, etc. Apesar disto, Kermanmantém que a análise traz consigo algum tipo de apreciação evaloração estética.

Contudo, não foi somente pela junção da crítica à análise que esseartigo recebeu contestações. Outrossim, pelo fato de ter adjetivadoalguns métodos de análise como “positivistas” e “reducionistas”,Kerman provocou indignação nos schenkerianos de plantão, quepor seu turno, viram-se no direito de rebater essa afronta,promovendo então a dita enxurrada de respostas contra Kerman.Entre as suas objeções, os discípulos de Schenker não queriamque o método analítico de seu mestre fosse tratado como “uma

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dissecação clínica de uma obra de arte viva que emula a metodologiada ciência racionalista” (Kinton, 2004). Segundo eles, a análiseschenkeriana possui o grande mérito de ater-se a questõesestritamente musicais (passando ao largo de abordagens semióticas,sociológicas e metafísicas), característica esta essencial àcompreensão e formulação de uma teoria que demonstre asconexões existentes entre os planos de uma composição. Embatesà parte, Kerman salienta que os métodos são produtos da própriaépoca em que surgem e, consequentemente, passíveis demodificação e atualização no decorrer do tempo.

O acordo ou correspondência entre o artista e seu tempo permiteaos elementos de sua técnica de composição serem interpretadoscomo sinais históricos. A leitura de obras de arte enquanto evidênciashistóricas fez surgir em cena mais uma personagem do julgamentoestético. De um lado apresenta-se o sujeito fruidor, a quem seprescinde a existência de um conhecimento técnico prévio, poisbastam à formulação de juízo estético suas impressões. Na outraponta, o julgamento histórico demanda a existência de umaautoridade competente para a avaliação da obra de arte, na qual oconhecimento técnico é indispensável para a realização dainterpretação dos documentos históricos. Assim, análise e críticaassociam-se. Isso conduziu ao entendimento de que aargumentação racional poderia modificar uma primeira impressãoestética, o que também implicou em admitir que uma análise permitefundamentar um juízo artístico. Apesar do teor altamente técnicotransparecer uma tendência moderna (especialmente séculos XIXe XX), a manifestação do juízo estético baseada em característicasinternas da obra (sua estrutura formal e disposição de elementosestruturantes) remonta à Antigüidade Clássica com a poéticaaristotélica, na qual a poiésis era uma teoria do fazer e do produzir,atenta, portanto, a questões técnicas e alheia, em certo grau, ametáforas metafísicas e transcendentais. Essa idéia de poiésis serárevivida no século XVIII com a associação, viabilizada pela análise,

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entre estética e produção artística. Nesta época os tipos e gênerosserviam tanto como parâmetros formais e estéticos, ou seja, aapreciação e julgamento de uma obra davam-se ao referenciá-la aum tipo específico. Quanto menos a música se afastasse do modelo,maior sua adequabilidade e melhor sua avaliação. Assim, acompreensão desses cânones tornava-se fundamental para oscompositores. Dessa maneira a análise passa a ser uma ferramentapara a prática composicional.

Análise e o ensino da composição“Análise é um procedimento de descoberta (...) é um meio deresponder diretamente à questão ‘como isto funciona’” (Bent, 2001).As afirmações são claras: o analista trabalha com o produto final(composição) e centra atenção na exploração da técnicacomposicional. A análise parte da obra e tenta compreender osartifícios do compositor que permitiram terminar com êxito suaempreitada. Pode-se dizer, então, que a análise caminha doparticular para o geral. Da micro estrutura da obra são deduzidosos procedimentos técnico-composicionais utilizados pelo autor. Épossível também afirmar que a coerência interna da composição édesvelada pela análise.

Curiosamente, esse entendimento simples também pode serinvertido, isto é, compreender a análise por meio da composição.Essa é a proposta de Nicholas Cook no seu Analysis Through

Composition. Cook é enfático em seu objetivo: “neste livro, não sepretende ensinar composição, mas planeja-se ensinar análiseatravés da composição. Em outras palavras, composição é o meioe não o fim dessa proposta de aprendizado” (Cook, 1996, vii). Aintenção didática de Cook baseia-se na sua concepção de que aanálise tem recebido uma abordagem demasiadamente afastadada prática, fazendo com que os “estudantes, cuja vivência musicalpode ser de fato limitada, também adotem uma abordagemsupercerebral para com a análise, tendendo a enxergá-la como um

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tipo de atividade matemática sem vínculos diretos com a experiênciade fazer ou ouvir música” (Cook, 1996, vii). Novamente, é possívelvislumbrar uma inversão de papéis no decurso da história dadisciplina análise musical. A análise, que foi de início utilizada comoferramenta auxiliar da composição, vale-se desta para ser mais bemcompreendida.

A análise consolida-se como estudo disciplinar no momento em queos compositores (professores) foram requisitados a lecionar seuofício. Cook descreve esse momento da seguinte maneira:

Durante o século XIX tornou-se normal que a composição fosseensinada em classes nas escolas de música, ao invés de liçõesparticulares como havia até então. Nesse sentido, o ensino dacomposição significou que professores confiassem cada vez mais aoslivros a tarefa de guiar os estudantes nas suas experiências emcomposição. (Cook, 1987, p.10).

Cook assinala, também, que os modelos formais clássicos estavamcontidos nesses livros, o que faz com que a origem desses modelosformais não pertença primordialmente ao orbe da análise musical,mas sim à história do ensino da composição. Com base nos livros,os alunos eram direcionados a compor de acordo com algum padrãoformal. Da mesma maneira que um estudante de pintura aprendiacopiando os mestres do passado, o aluno de música também deveriatentar reproduzir uma obra musical similar à de um grandecompositor. Este sentido eminentemente aplicado da análise aserviço da composição é conservado até hoje, pois a metodologiade muitos cursos de composição tem por base a análise ereprodução de estilos de outros períodos.

Analisar uma obra musical consistia em abordar seus aspectos microe macroscópico. O primeiro centrava-se na observação do conteúdomusical: melodia, harmonia, ritmo, etc. O segundo enfatizava a formaglobal da obra. A questão da forma revestiu-se como núcleo principalda investigação analítica, pois os teóricos partiam do princípio que

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uma obra musical podia ser segmentada em partes, e que essasdivisões se articulariam no todo segundo certas característicascomuns. Assim, uma peça musical conteria certos padrões deconstrução similares que, depois de descobertos, podiam sercopiados. A idéia de que a verificação da ocorrência de padrõescomuns de artifícios composicionais teria impulsionado a atividadeanalítica sobrevive atualmente, embora autores como Dunsby eWhittall ponderem que a emergência da análise enquanto disciplinaremonta ao gradual desenvolvimento da composição criada por umindivíduo, emancipada dos padrões de gêneros e tipos, ou seja,possuidora de caracteres particulares.

A partir do momento em que as técnicas dos compositoresestivessem reveladas, não haveria necessidade de continuaranalisando, bastaria reproduzi-las como na aplicação de uma receitade bolo. Porém, o fato das peças apresentarem qualidadespeculiares exige a continuidade da tarefa analítica, pois toda novaobra conteria novas informações a serem descobertas. Ao encontrodesse entendimento junta-se a opinião de Kerman, ao parafrasearo verbete Analysis do Havard Dictionary, dizendo que o “verdadeirofoco da análise é o elemento sintético e a significação funcional dodetalhe musical” (1980, p.313). Essa particularidade, em médioprazo, levou à criação de diversos métodos de trabalho.

Assim, o início de nossa discussão neste tópico pode ser retomado:a inversão de papéis preconizada no método de Cook. É possívelpensar, inicialmente, na análise como ferramenta do ensino da teoriacomposicional. A metodologia dos professores era comparativa, ouseja, era solicitado aos alunos que analisassem as obras para que,a partir delas, pudessem desvendar e reproduzir as técnicasutilizadas pelos compositores. Com o passar do tempo, devido aoforte caráter pessoal das obras, mas, também, ao constante aumentoda especificidade técnica contida nos textos sobre música, aempresa analítica perde esse conteúdo pedagógico, adquire um

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caráter especializado e desvincula-se da teoria, tornando-se umramo autônomo de estudos.

A autonomia da análise musicalPrincipalmente no século XX, diversas maneiras de se estudar aestrutura musical foram propostas, originando então várias técnicasde análise. Dentre as especificadas por Bent, em 1980, estão asanálises: schenkeriana, temática, formal, funcional, da estruturafraseológica, de categoria, característica, distributiva e teoria dainformação. Certamente, o método de Schenker foi o mais influenteentre os analistas, sobretudo nos Estados Unidos. Inicialmenteintencionado para tratar de obras da prática comum, encontroudesdobramentos na música contemporânea. Griffiths assinala que“o pensamento de Schenker afetou até mesmo os compositores damúsica atonal nos EUA, e Babbitt buscou precisa e conscientementeimplantar o modelo dos níveis schenkerianos em suas obras, demodo que, em seu caso, a análise antecede a composição” (Griffiths,1995, p.5). No entanto, o tematicismo de Rudolph Réti e a Teoriados Conjuntos de Allen Forte também se tornaram importantesferramentas analíticas para a música tonal e pós-tonal.

Dessa proliferação de modelos de análise musical resultaram duasconseqüências: a ascensão da primazia da técnica sobre a própriaobra e o definitivo, embora confuso, distanciamento entre teoria eanálise.

Schenker já havia reclamado, quando tratando da dissociação entreprática e teoria, que a teoria da harmonia tornara-se tão sem efeitoque era ensinada com exemplos criados especialmente paraadequar sua proposta. Os analistas, na intenção de desvendar ossegredos da estrutura da obra, não raro centraram mais interesseno modelo de análise que na própria realidade musical. Ocorrênciasdesta espécie levaram Cook a lamentar que “o analista vem aacreditar que o propósito de uma peça musical é provar a validez

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do método analítico que aplica, ao invés de crer que a função dométodo é esclarecer a música; em outras palavras, quando ele torna-se mais interessado na teoria do que na aplicação prática”. (Cook,1987, p.2). Em outra passagem confirmará: “basta dar uma olhadanos jornais atuais especializados em análise para descobrir que agrande relevância é posta sobre a formulação de modelos analíticoscada vez mais precisos e incrivelmente sofisticados, mais ou menoscomo um fim em si mesmos” (idem, p.3). Ainda com relação àproliferação de modelos analíticos, Kerman menciona o discursode Wallace Berry em sua posse na Sociedade para Teoria Musical(1980), no qual reclamava uma mudança de postura por parte dosautores de artigos sobre teoria musical, cujo teor havia se convertidoem uma verdadeira torre de babel, além de assumirem um caráterobscuro e dogmático. Esse estado de coisas ainda é notórioatualmente, pois se pode perceber uma persistência entre setoresda vanguarda em dedicar maior ênfase no discurso sobre o métodoenvolvido na composição do que no próprio produto final. Não rarome parece que, após ter explanado sobre seu projeto composicional,o autor dispensa a própria audição da peça.

A referida separação de domínios entre teoria e análise pode servista como o último passo na cristalização da análise como campoautônomo dos estudos musicais. Análise seria uma parte da teoriamusical? Ou são os procedimentos analíticos viabilizadores daedificação de uma teoria? A bem da verdade, as duas coisasocorreram durante a história da música, embora essa nomenclaturanão seja estritamente correta. Por teoria entende-se, strictu senso,uma proposição para organização de dados observados, cujainterpretação permitiria a formulação das leis que regeriam estesmesmos fatos. Observa-se que em se tratando da música não há oestabelecimento de leis, no máximo os estudos revestem-se decaráter descritivo dos fenômenos observados, de modo que adefinição rigorosa de teoria não se aplicaria neste caso. MesmoClaude Palisca, no seu verbete para o Grove, ressaltaria que a

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teoria musical constitui-se como o estudo das estruturas da música,o que denota o aspecto não científico da realidade musical. Todavia,o uso desta terminologia encontra-se por demais arraigado tantoao senso comum quanto em setores acadêmicos, de modo quecontinuarei a empregá-la, ressalvando que teoria não subentendeexplicação, mas apenas compreensão dos fenômenos musicais.

No ano de 1967, Edward Cone publicou na Perspectives of New

Music um artigo intitulado Beyond Analysis. Embora o teor principaldo seu texto versasse sobre as impossibilidades inerentes aosmodelos de análise, passagens referentes a concepções sobre anatureza da análise e da teoria musical incomodaram algunsteóricos, especialmente David Lewin, que em 1969 publicaria, namesma revista, uma resposta ao artigo de Cone, sob o título deBehind the Beyond. Neste trabalho, Lewin ofereceu uma boadiferenciação entre os conceitos de análise, teoria e crítica musicais,delimitando o campo de estudo de cada uma destas áreas, bemcomo, seus pontos de interseção; além de reafirmar o papelfundamental que teoria e análise têm na didática composicional.Para Lewin, a análise não pode fundamentar uma apreciação críticaem um sentido quantitativo, mas apenas ampliá-la qualitativamente.Com relação à diferenciação entre análise e teoria, Lewin atestaque a teoria musical examina, a princípio, abstrações musicais decaráter geral. As estruturas consideradas pela teoria são anterioresàs obras, existem a priori, independentes até da própriamaterialização na obra consumada. A análise, por sua vez, trabalhacom composições específicas, com o produto final, investigandoseus componentes e suas articulações. O interesse de um teóricoestá direcionado, sobretudo, a conceitualizações genéricas; oanalista, por sua vez, tende ao particular e pontual, ou seja,compreende as especificidades de cada peça em questão.

Embora toda definição seja passível de correções, o embate entreesses dois autores conduziu ao estabelecimento dos domínios

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relativos a cada um desses campos de estudo, além de atestar oque Cook chamaria de profissionalização da análise musical aosentenciar que “nos últimos vinte anos a análise musical tornou-seprofissionalizada” (Cook, 1987, p.3). Essa profissionalização podeser entendida, segundo Kerman, como tendo seu ponto de partidadesde a década de 50, com os avanços da indústria eletrônica.Esses avanços facilitaram o acesso à música de concerto pela suadisponibilização em discos, com isso, houve um aumento geral dointeresse por informações musicais, incentivando o aumento depublicações especializadas no assunto. Kerman refere-se a uma“explosão de artigos analíticos” a partir da década de 60. Esseincremento pode ser constatado na bibliografia utilizada por Bentno seu verbete para o Grove. Como notado por Duprat (1996), onúmero de publicações contendo a palavra análise, na referidabibliografia de Bent, contém 18 entradas na década de 50 e 80entradas na década de 60; um acréscimo, de fato, relevante.

Ao lado desses aspectos teóricos, a referida autonomia adquiridapela análise musical é também notada no que diz respeito àdesvinculação do ato analítico para com os aspectos críticos,composicionais e interpretativos (pois se admitia, e ainda admite-se, que a análise é uma importante ferramenta auxiliar daperformance). Pode-se observar que cada vez mais as análisesapontam aspectos diversos das composições sem preocupar-secom a sua aplicabilidade pragmática. Não estou afirmando que oestudo de qualquer objeto deva ter obrigatoriamente uma utilidadeprática. Todo conhecimento é válido em si mesmo. Todavia, é fácilobservar (sobretudo em dissertações na área da performance

musical) que algumas análises apenas descrevem osacontecimentos, como se fora uma narrativa futebolística (saiu datônica, passou pelo segundo grau, cruzou pela tonalidade relativae chegou à região da dominante), sem apresentar posterioresconclusões a respeito de como aquela análise afetou ou influiu namaneira de tocar a peça. Ao que parece, faz-se uma análise tendo

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a intenção de descobrir a coerência interna de uma obra que já sesabia coerente. Este aspecto é comentado por Dahlhaus quandoele trata de análises do tipo descritiva, ou seja, análisestaxionômicas. Apontando para a inutilidade destas tautologias,argumenta que estas revelam muito acerca da teoria e quase nadaa respeito da obra. Segundo ele, não basta apenas isolar (abstrairde elementos rítmicos, por exemplo) e enumerar os acordes,outrossim, é preciso que o caráter individual da estrutura harmônicae suas relações seja “expressamente demonstrado e articulado poruma interpretação da análise: uma análise de segunda ordem”(1983, p. 9. Grifo meu).

Entretanto, o outro lado da moeda pode ser representado pelavontade dos músicos em aterem-se a questões musicais, ou seja,tratar a música primordialmente em seus próprios termos, ao invésde relevar abordagens paralelas. Kinton resume esse estado decoisas da seguinte maneira: “nós temos uma crítica musicalideológica, uma crítica musical feminista, uma crítica musicalhermenêutica, porém, não temos uma crítica musical musical”(Kinton, 2004). Mas mesmo esse afã em “falar da música na música”conduziria à sobrevalorização das ferramentas analíticas, pois “aanálise parece muito ocupada com suas próprias técnicas internas,muito fascinada pela sua lógica peculiar e extremamente tentadapor seus próprios pedantismos privados para confrontar a obra dearte sob seus próprios termos estéticos” (Kerman, 1980, p. 312). Eesta constatação pode explicar a citada independência adquiridapela disciplina análise musical.

Existe a música em si mesma?A música considerada em si mesma refere-se à análise doselementos que integram sua estrutura, como motivos, frases,períodos, seções, escalas, tonalidade, modulações, regiões,aspectos melódicos, harmônicos, polifônicos, texturais, rítmicos,entre uma série de outros componentes que poderiam também ser

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mencionados. Vale lembrar que nem todos os elementos podemser percebidos apenas com a escuta, pois se assim fosse, nãohaveria necessidade da análise. É exatamente a existência departicularidades ocultas na música e não reveladas durante suaaudição que propicia e origina as várias abordagens analíticas. Emrazão disto, a análise não pode tratar-se de um processo intuitivo.O analista deve basear-se em técnicas ou métodos que o permitamdecidir seguramente sobre os parâmetros musicais postos em jogo,bem como, as funções que estes adquirem no discurso musical.Deste modo, a análise apresenta-se como uma atividadeessencialmente intelectual, possibilitando ao analista abster-se depreocupações de sentimento ou expressão em termosextramusicais.

No entanto, considerações sobre música em si mesma necessitamde um agente externo para interpretar o fenômeno, o analista. Estaexigência aumenta o problema da restrição do processo analítico àmúsica nela mesma, já que a música age no intelecto do ser humanoque a recebe. Essa característica possibilita a quem interpreta ofenômeno confrontá-lo de duas maneiras: psico-sensória efuncionalmente. O aspecto psico-sensório tratará de como a músicaé percebida pela mente humana, remetendo a questões cognitivas,psicológicas, neurológicas, estéticas, entre outras. O funcionaltenderá a tratar de sua utilidade e/ou finalidade, o que implicariaem acolher estudos ligados à sociologia, história, antropologia,filosofia, etc. Assim, valeria a questão: a música em si é aquelaouvida por um sujeito ou trata-se daquela fabricada pelo compositore impressa no papel? Consciente dessas implicações, Bent admiteque “a análise musical engloba um amplo número de atividadesdiversas, que representam diferentes visões da natureza da música,dificultando uma definição dentro de seus próprios limites” (2001,p. 1). Essa situação aponta para o paradoxo da análise musical:pretender analisar racional e objetivamente um fenômeno emocionale subjetivo.

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Ao lado destas colocações, vale ressaltar que a música enquantomanifestação artística está envolta em um grande aparato cultural,compreendendo sua matéria prima, seus meios de produção edivulgação, sua linguagem própria, seus locais de transmissão e/ou representação, etc. Essa arte é constituída, portanto, porelementos culturais tão imprescindíveis quanto os próprioselementos materiais. Nas palavras de Jorge Coli “não há dúvidaque o trabalho sobre a matéria, a habilidade artesanal, o domíniosobre o fazer são elementos constitutivos essenciais da arte, maseles repousam sobre um pressuposto anterior: o da transformaçãoda matéria numa expressão cultural específica” (Coli, 1984, p.118).Some-se a isso o fato de que uma análise será influenciada pelaprópria característica do analista, quer seja este um musicólogo,compositor, crítico, intérprete ou historiador, que podem enfatizarou minimizar aspectos da obra de acordo com seus própriosinteresses. Estas considerações refletem a fragilidade da tentativade abordar o fenômeno musical desvinculado de fatores externos.

ConclusãoA partir das primeiras décadas do século XX já pode ser vislumbradouma espécie de “fechamento de foco” na objetiva teórica, pois osestudiosos gradativamente afastam-se dos assuntos globais ecentram-se em questões direcionadas aos atributos específicos dedeterminada composição musical, impondo um elevado grau deespecialização em seus estudos em detrimento da redução daabrangência do campo teórico. Conseqüentemente, vê-se aascensão da análise face ao eclipse das teorias globais, apontando,a princípio, para um maior interesse em assuntos composicionais,ou seja, no que diz respeito à produção artística. Uma frasesintomática de Kerman sintetiza este estado de coisas: “quandochegamos a nos interessar pela arte moderna é necessário oenvolvimento com os problemas ligados à sua criação” (1987). Ainserção de novas propostas de reflexão e de especulação acercada sintaxe musical, em última instância, conduziu à discussão sobre

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os processos norteadores da produção musical, seu modus

operandi. A reformulação ou reorganização da sintaxe musicalreivindicou por parte dos teóricos e críticos o domínio dosprocedimentos técnicos que se cristalizaram ao longo do século,fato que além de projetar a necessidade do conhecimento deprocessos de análise ampliou o leque de possibilidades depesquisas sobre a linguagem musical. Vislumbra-se, assim, comesta passagem do macro para o microscópico, a gradual primaziaobtida pelas ferramentas de análise.

Não obstante, como apontado por Duprat, em meados da décadade 70 o número de publicações sobre análise decresceu, fatoconstatado na observação do número de entradas com a palavraanálise no verbete homônimo do Grove. Contudo, é preciso lembrarque no seu artigo Duprat desconsidera as reedições e publicaçõesrevisadas da literatura anterior. O fato de haver publicaçõesrevisitadas de trabalhos anteriores indica a manutenção de interessepelo assunto. Essa condição pode ser facilmente constatadaatualmente. Em uma simples consulta à internet, no sítio da livrariavirtual Amazon (www.amazon.com), realizada dia 22 de abril de 2006às 19:00 horas, indicou a existência de 349 títulos de música coma palavra análise; destes, mais de 200 foram publicados a partir de1990. Essa série de novas bibliografias sobre o assunto demonstraque este mercado continua em alta.

Nesse decurso, várias vezes teoria e análise musicais confundiram-se e misturaram seus limites. Kerman, por exemplo, afirma: “teoriaconsiste na investigação daquilo que faz a música funcionar” (1987,p.3). Bent irá contrapor: “análise é o meio de responder diretamenteà questão ‘como isto funciona?’” (2001, p.5). Sobre composiçãoKerman irá dizer: “o alinhamento mais fundamental da teoria musicalé com a composição musical” (1987, p.5). E como pode serconstatado nos expostos anteriores, a composição é aprendida einvestigada principalmente por meio da análise.

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Por fim, é uma espécie de opinião comum o fato da análise musicalter se revestido de um teor positivista, funcionando como espéciede comprobatório das pesquisas realizadas no campo musical. Essedomínio analítico foi visto, por muitos, como uma tentativa detransferência de um modelo científico para um campo cultural.Entretanto, vale ressaltar que ao denominar a análise musical comoo lado positivista da música, Kerman referia-se a uma atitude

positivista, ao processo de condução de uma apreciação musical.Isto pode ser inferido, por exemplo, quando ele (argumentando sobrea separação existente entre análise e crítica musical) rebate aobjeção de que a análise musical lida com metodologias objetivas,enquanto a crítica opera somente com juízos subjetivos, pois naliteratura é possível perceber que os críticos de música (Schenkere Tovey são por ele mencionados) valeram-se da análise enquantocritério de valoração da obra. O que aconteceu é que recentementeos analistas conscientemente evitaram a emissão de juízos de valorcom a intenção de lograrem uma análise o mais isenta possível;consequentemente, o foco principal foi projetado sobre a própriatécnica. Cook, por sua vez, comenta: “pessoalmente eu desaprecioa tendência da análise converter-se em uma disciplina quasecientífica em seu direito próprio, essencialmente independente deinteresses práticos da performance, composição ou educaçãomusicais” (Cook, 1987, p.3). Este estado de coisas pode serfacilmente verificado observando-se artigos e trabalhos de mestradoe/ou doutorado na área de música. É raro o trabalho acadêmico,sobretudo nas áreas de performance e composição, que nãodedique várias páginas a considerações analíticas, e mesmotrabalhos teóricos, estéticos e históricos por vezes apresentam essacaracterística.

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________________Antenor Ferreira - É Mestre em Música (Unesp), autor de Estruturações Harmônicas Pós-tonais (Edunesp-2006); Bacharel em Composição e Regência (Unesp); Percussionista daOrquestra Sinfônica de Santos. Sob orientação do Prof. Dr. Amílcar Zani, desenvolve projeto deDoutorado na ECA-USP, tendo por objetivo a criação de um modelo para a composição pós-tonalpor meio da integração de técnicas analíticas.

e-mail: [email protected]

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