201
O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA Por Antônio Carlos Alves da Silva Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro Rio de Janeiro Março de 2010

O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

  • Upload
    lykhanh

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA

Por Antônio Carlos Alves da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro Março de 2010

Page 2: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

ii

O SENTIR COMO LINGUAGEM MITO-RELIGIÃO-CULTURA:

Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Aprovada por: _________________________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro – UFRJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Angélica Maria Santos Soares – UFRJ _________________________________________________________________ Prof. Doutor Antonio José Jardim e Castro – UFRJ _________________________________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Angela Maria Guida – FESJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Martha Alkimim de Araújo Vieira – UFRJ (Suplente) _________________________________________________________________ Profª. Doutora Cláudia Andréa Prata Ferreira – UFRJ (Suplente) Rio de Janeiro Março de 2010

Page 3: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

iii

Silva, Antônio Carlos Alves da. O sentir como linguagem: mito-religião-cultura/ Antônio Carlos Alves da Silva – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010.

x, 201 f.; Orientador: Manuel Antônio de Castro Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2010. Referências bibliográficas: f. 193-201. 1. Mito 2. Religião 3. Cultura 4. Linguagem e Poética 5. Sentido. I. Castro, Manuel Antônio de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

Page 4: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

iv

Para meu pai Admar Soares da Silva ( in memoriam). E para minha mãe Catarina Alves da Silva e para minha irmã Carine Alves da Silva, e por tudo e por mim.

Page 5: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

v

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Manuel Antônio de Castro por participar de minha iniciação no

mundo do pensamento poético e pela confiança, paciência e pela atenção a mim

dedicados.

Ao Professor Doutor Antônio José Jardim e Castro, que me fez acreditar que o mundo

da Faculdade de Letras possuía também outras melodias.

À Professora Doutora Angélica Maria dos Santos Soares, que desde a graduação me viu

como possibilidade de ser e de não-ser.

Ao Professor Doutor Adauri Silva Bastos, que, no início, confiou em mim muito

provavelmente pela vizinhança competente dos meus amigos nessa Universidade.

À Professora Doutora Angela Maria Guida por ser mais uma dentre os que se colocam

diante do pensamento poético com muita destreza, perícia e dedicação e por ter se

disponibilizada para o encontro com esse texto.

Às Professoras Doutoras Claudia Andréa Prata Ferreira e Martha Alkimim de Araújo

Vieira por serem parte indireta desse mesmo humus.

Aos meus amigos de graduação Luciana Salles, Rodrigo Sant’Izabel, Mônica Fagundes,

Luciano Rosa, Patrícia Simões, Michelle Gomes pela oportunidade dos encontros e

desencontros.

À Soraia Santos Sales, na companhia e na angústia do namoro de todos os dias.

Ao meu destino.

Page 6: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

vi

RESUMO O sentir como linguagem: mito-religião-cultura

Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro

Resumo da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). A tese, essa con-junção, é uma reaproximação da intersecção e da referência inaugural, originária, existente entre mito, religião, cultura e linguagem. A releitura tenta trazer à cena as relações fundamentais próprias de todas essas conjecturas da história do ser do ente. Nesse percurso, ora elas são apreciadas pelo vigor de sua própria vigência inaugural e ainda presente, ora são consideradas pelas indisposições que a modernidade a elas conferiu ao longo do percurso do mundo ocidental e o seu pensar metafísico. A tentativa de tal interpretação é de buscar refazer o percurso ontológico que permanece contido em cada uma das quatro referências a partir da dimensão e do vigor do sentir, de modo que o senti(n)do se mostre como o ser sendo e se coloque como também instância originária do pensar e do ser como linguagem, congraçando physis, logos e alétheia no destino histórico da humanidade dessa terra. Palavras-chave: Mito – Religião – Cultura – Linguagem - Sentir Rio de Janeiro Março de 2010

Page 7: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

vii

ABSTRACT The act of feeling as language: myth-religion-culture

Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro

Abstract da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

The thesis, this conjunction, is a reconnection between the intersection and the inaugural original reference that there is among myth, religion, culture and language. The approach tries to bring out the fundamental relations, proper of all the conjectures of the being’s entity’s history. Thus, these relations are either appreciated for the vigor of its own inaugural duration, which is still present or considered for the conflicts that modernity has ascribed to them throughout the history of the western world and its metaphysical thinking. The attempt of such interpretation is to redo the ontological path that remains held in each of the four references from the dimension and the vigor of the act of feeling, so that the meaning-feeling shows itself as the being existing and also puts itself as an original instance of the thinking and the being as language, gathering physis, logos e alétheia in the historical destiny of this land’s humanity. Key words: Myth – Religion – Culture – Language – The act of feeling Rio de Janeiro Março de 2010

Page 8: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

viii

RÉSUMÉ Le sentir comme language: mythe-religion-culture

Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro

Résumé da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

La thèse, cette conjonction, est un rapprochement de l'intersection et de la référence inaugurale, originaire, existante entre mythe, religion, culture et langage. La relecture essaye d'apporter à la scène les relations fondamentales propres de toutes ces conjectures de l'histoire de l'être de l'être. Dans ce parcours, certaines fois elles sont appréciées par la vigueur de leur propre validité inaugurale et encore présente, d’autres sont considérées par indisposition que la modernité lui a conferé au long du parcours du monde occidental et son penser métaphysique. La tentative de telle interprétation est celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des quatre références à partir de la dimension et de la vigueur sentir, de manière que le sens se montre comme l'être en étant et il se place aussi comme instance originaire de la pensée et de l'être comme langage, en combinant physis, logos et alétheia sur le destin historique de l'humanité de cette terre. Palavras-chave: Mythe – Religion – Culture – Langage – Sentir Rio de Janeiro Março de 2010

Page 9: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

ix

De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as desrealizações: pois, de acordo com o vigor da con-signação, elas con-cedem umas às outras articulação e, com isso, também consideração pela des-articulação, de acordo com o estatuto do tempo.

Anaximandro (fragmento), Pensadores Originários, 1999, p. 39.

Page 10: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

x

SUMÁRIO

Introdução..................................................................................................................p. 11

1- O mito no homem: o fabular................................................................................p. 17

1.1. O pensar e o fabular: o vigorar da phýsis.............................................p. 21

1.2. O mito como phýsis.................................................................................p. 25

1.3. Mito: a reunião de lógos e phýsis na casa do ser..................................p. 29

1.4. Na casa do ser: a luz do divino..............................................................p. 36

1.5. O mito: o ex-sistir como sendo...............................................................p. 56

2. A religião: o homem sem a memória do divino..................................................p. 62

2.1. Para uma onto-poética do humano na luz do divino...........................p. 65

2.2. O divino: o homem entre o céu e a terra..............................................p. 69

2.3. A santidade do homem: a onipresença do deus...................................p. 73

2.4. “A morada do homem, o extraordinário”............................................p. 81

2.5. Domínio do racional e domicílio do sentido.........................................p. 85

2.6. A referência homem e deus: o extraordinário.....................................p. 95

2.7. Santo e sagrado: o (re)colher-se na terra para o divino.....................p.102

3- Cultura e indefinição...........................................................................................p.112

3.1. Cultura como distintivo da civilização.................................................p.115

3.2. Cultura e alguns o-cultos.......................................................................p.125

3.3. Cultura, cultivo do culto do ser............................................................p.135

3.4. Cultivar como prece..............................................................................p.146

4. Linguagem e pensamento.: (des)caminhos do sentir.........................................p.153

4.1. A linguagem diz e não fala....................................................................p.162

4.2. Pensamento: linguagem e sentido........................................................p.170

4.3. Linguagem como saga do sentido.........................................................p.176

4.4. Sentindo: o pensamento-linguagem.....................................................p.183

Conclusão..................................................................................................................p.188

Bibliografia................................................................................................................p.193

Page 11: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

Introdução

A questão que se desenvolverá aqui visa observar como mito, religião, cultura e

linguagem se dão no espaço ontológico do homem enquanto sentir. Acredita-se que há

ainda uma oportunidade para a apreciação de como, entre essas quatro questões da

dimensão do existir enquanto sendo, ocorre a referência fundamental e originária que

permeia sempre o modo de o humano acontecer.

A motivação de entrelaçamento dessas cinco questões se deve ao fato de que a

relação existente entre mito e religião, ou entre mito, religião e cultura, ou entre mito,

religião, cultura e linguagem sempre se encontra na dimensão ontológica do ser e na

constituição ôntica do ente. A pergunta que traz à tona tal questionar se dá com base no

por quê. Ou seja: há de se perguntar por que o mito aconteceu na realidade do mundo do

homem, bem como religião, cultura e a própria linguagem. Ou ainda: por que mito

religião e cultura aconteceram como linguagem para o homem? O desdobramento de tal

questionar passa pela apreciação de como phýsis e lógos atuam na dimensão do que hoje

é chamado de humano.

O começo da humanidade do humano é a terra, o nascer dela, o conviver com ela

e o para ela e nela morrer, ou retornar. Isso implica voltar o pensamento para o fato, na

tentativa de apreciar qual a relação que se estabeleceu no percurso histórico do mundo

do homem com mito, religião, cultura e linguagem para marcar a sua presença na

história dos dias.

O homem grego antigo e tantas outras civilizações do mundo arcaico e antigo

no seu começo viveram a dimensão da terra como referência e presença do mito. A

experiência do existir se compunha a partir da e com a presença do mito não como

alegoria e fantasia de uma narrativa que ilustrava como deleite artístico moderno o

pensar e o agir humanos. Tal homem viveu, porque entendeu, a forma de o mito se

Page 12: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

12

corresponder com o mundo. O mito vivia a vida do homem e este a vida do mito,

porque ambos se co-pertenciam dentro de um mesmo espaço onto-poético do existir

fazendo a experiência do mundo junto à terra. Isso era o modo de pertencimento do

homem. Na sua origem, no modo inaugural do entendimento do homem com o mundo,

o homem percebia e entendia a dinâmica da terra dentro do vigor e da vigência da

phýsis falando como lógos pelo e com o mythos. O modo de o homem, o ente enquanto

tal, se entender e dar-se como mundo acontecia pela e com a forma do lógos agindo

como e na dimensão do mito. Entender e estar na dimensão do mito, no entanto, é,

certamente hoje, algo que não participa da constituição do humano. Mas isso não ocorre

mais, porque o homem deixou de lado a referência originária dos antigos tempos.

Ocorre(u) no percurso historiográfico a destituição política e religiosa do que o mito

constituía. Muito provavelmente, isso aconteceu pelo fato de o homem se distanciar de

sua relação e referência originárias com a terra. Ele vive, apenas, sobre a terra e não

com ela, na sua intimidade. Na verdade, parece que se perdeu o afeto, o sentir e o

sentido primordial, para com o mundo.

Contudo, para o homem que ainda vive na sua escuta, o mundo como mito volta

e meia ainda se conserva como conversa junto ao homem. O mito é a fala inaugural do

mundo. Como inauguração, como phýsis, ele iniciou o mundo como lógos para a

experiência com a terra. O mito ensinou e ensina como o mundo se dá e permite a

experiência do real. Mas tal vigor apenas acontece naquilo que o ente consegue mostrar

enquanto ser.

Cabe ainda notar que o modo de o mundo se ensinar enquanto phýsis-lógos é a

referência mesma originária que permite o homem a aproximação com aquilo que é

chamado de religioso. A dimensão do religioso nasce e acontece conjuntamente com a

dimensão de vivência e vigência do mito. Não existe mito sem a dimensão religiosa do

Page 13: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

13

sagrado e vice-versa. A compertinência entre ambos é de uma referência também

originária.

Para longe de qualquer entendimento com a noção religiosa moderna, sobretudo

a judaico-cristã, a relação entre mito e religião é a instância em que o ser acontece como

ente. É uma impossibilidade que o ente consiga fazer a experiência do entendimento do

mundo, do real, sem se deparar mais hora, menos hora, com o impasse, o enigma e o

mistério do existir. Mesmo que tal situação seja renegada pelo modelo “racional”

moderno, a hora da morte, por exemplo, de qualquer ente envolto de uma

correspondência de afetos, coloca todo ente como ser de frente para o mistério sagrado

do existir, justamente quando cada entidade deixa a existência. Nessa hora, parece que o

que se perdeu foi mais que isso. De certo, chega-se perto do entendimento de que algo

maior que o ente se perdeu. Parece que se entende que o ser se perdeu para sempre

dessa existência. Por se chegar a tal aproximação de sentido e entendimento do existir, é

costume moderno, de algum modo, se “exaltar”, se “glorificar”, se “mitificar”, o ente

querido que se foi. Esse gesto talvez sirva para mostrar o traço indicativo de que o mito

e o sagrado se encontram sempre diante do ente de cada ser, mesmo na hora em que o

enigma fundante do existir se aproxima do homem como morte. A morte, contudo, mais

do que representar o infortúnio de uma perda, constitui a originariedade do homem com

a terra.

O mito e o sagrado surgem com a terra e nela sempre estão presentes. Mesmo

que haja o esquecimento por conta da correria da vida moderna, a presença mítico-

sagrada do existir acontece com o deixar de existir na hora da morte. O ente, no seu

retorno para a terra do mundo, é a vigência da phýsis acontecendo como lógos, que é

mito como voz e santo como deus. Assim, o ser-aí de cada ente se reúne na força

originária do mundo.

Page 14: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

14

Esse modo de vigência do ente do ser reunido pela força que reúne o ser como

mito e sagrado é, por sua vez, a maneira pela qual o homem acontece como cultura. Esta

não é apenas a forma de o homem se dar para o mundo como evento sociológico.

Cultura é vista aqui como o vigor do modo de existir do ser enquanto ente. Como ente,

o homem é o que a phýsis, por meio do lógos sempre dizente, deixa ser doado na

referência direta do existir no e com o mundo. A noção de mundo, da qual tanto se quer

compartilhar, pertence à relação que se estabelece pela comunhão da terra para com o

homem. Este não cuida da terra. A terra, nesse percurso, é que cuida do homem. Sob os

cuidados da terra, o homem, enquanto ente, consegue realizar a façanha e o mistério do

existir. Se a terra não se desse como a oferenda do sagrado, ela não se disporia como a

que se presta a receber a semente para semear o fruto para a colheita como vida. O

entendimento do cultivo da terra é a fala do lógos junto à phýsis, mostrando-se como a

alétheia do mundo, num movimento de encobrimento e desencobrimento de toda

reunião das vigências do mundo. O ser, enquanto ente, nesse percurso, deveria ser o

que, primeiro e sempre, pode se colocar na escuta desse movimento que reúne mito,

religião e cultura.

A cultura e o cultivo do ente do ser é o que permanece como verdade do mundo.

Tal verdade se acoberta na história dos tempos e se desencobre na medida em que o real

acontece mediante as realizações de cada entidade, em sua existência. O modo com o

qual o homem acontece como ente, deixando à verdade a revelação de cada ser, é a

forma de cultivo originária do mundo. Nesse sentido, cultura reúne, no lógos sempre

dizente, mito e sagrado. A terra, sendo o mesmo que fecunda e é fecundada, abre-se ao

dispor de cada ente revelando a intervenção sagrada do deus e doando-se como mito

para a grande história do ser e do existir. Pensar-se como cultura é entender não como o

ser se cultiva, mas entender como é cultivado pela terra, que a cada vez se dá como e

Page 15: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

15

para a humanidade do homem. O cultivo de cada cultura é sagrado e mito, porque

ambos se guardam como mistério da terra e do ser, vigendo na verdade do mundo. O

homem quando nasce, e nasce o mesmo a cada minuto, se estabelece como mundo na

mesma dimensão em que o sagrado abençoa a terra e diz, eternizado como mito, a

fortuna e o infortúnio de todo nascimento, guardados, a partir de então e para todo

sempre, na história dos tempos.

O que corresponde ao sentir como linguagem nesse percurso de mito, religião e

cultura é precisamente um deparar-se com o lógos sempre dizente que faz com que o ser

se mostre como sendo e aconteça como mundo. O humano só tem mundo porque a

linguagem nele já habita. Fazendo do humano seu habitat, a linguagem permite o

acontecimento, de todo e sempre, também originário para que a leitura do mundo como

mundo do real e das realizações seja lido. A linguagem enquanto lógos reúne tudo:

mito, religião e cultura. Na verdade, um outro elemento fundamental e originário

também a ele pertence: o sentir. O lógos acontece como linguagem e leitura de uma

escuta sempre freqüente, à medida que o sentir se encontra como lógos. Este é a

linguagem enquanto tal, na referência proveniente da vigência do sentir. A dimensão de

leitura diante da escuta do lógos só acontece enquanto o ser se reconhece como sentido.

Na dimensão do sentir, o homem se dá na e pela escuta do lógos. A escuta, por sua vez,

é uma disposição do sentir. Este não é o que é percebido, mas o que se põe a perceber.

O sentir atua no homem como linguagem. Não conseguimos ir ao encontro do

lógos ou percebê-lo como a fala dizente do mundo, se o sentir não se encontrou como

sentido no pensar do homem. O pensar, a propósito, o mesmo que ser, se dá quando o

sentir atua como lógos na dimensão do existir, realizando a façanha e o gesto

malabarístico de o ser se mostrar enquanto ente. Só assim o ente deixa se entrever como

ser, quando o sentir se coloca no meio de todo pensar. Não há a possibilidade de pensar

Page 16: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

16

sem sentir. Pode-se mesmo entender que o sentir é o movimento do lógos e da phýsis

acontecendo como a alétheia da existência de cada ente. O que se tentará, então,

mostrar aqui é que sentir é o mesmo que ser e pensar, como força de reunião do lógos e

da phýsis.

É assim, pela releitura da relação entre mito, religião, cultura e linguagem como

sentir que se tentou entender a dimensão ontológica do ser na disposição ôntica do ente.

O percurso que se quer mostrar é, sobretudo, o da referência que entre todas essas cinco

questões fundamentais do ser, compõe aquilo que é chamado de mundo, a partir da e

mediante a disposição do sentir.

O projeto formal desse texto é de mostrar mito, religião, cultura e linguagem

numa estruturação em que os capítulos seguem um percurso, no qual se acumulam os

fatos condizentes à natureza de cada questão. Apesar de religião não suceder mito, nem

cultura suceder mito e religião, nem linguagem suceder os três citados, os capítulos

tentam, gradualmente e à medida de cada peculiaridade, agregar as referências dos

argumentos dos capítulos antecedentes. Assim, o sentir, por exemplo, é discutido de

modo mais efetivo, por assim dizer, no capítulo da linguagem, apesar de aparecer

permeando os outros capítulos.

Tal estruturação, gradual e cumulativa entre os capítulos, tem o propósito de

tentar fazer com que cada questão venha a ser discutida a seu tempo e com a devida

atenção, (re)apresentando os aspectos de cada um de seus vigores e tentando localizar,

com maior ou menor intensidade, os pontos, sobretudo, de intersecção e de

compertinência de cada um dos argumentos localizados no corpo da discussão que o

texto se propôs trazer à baila.

Page 17: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

17

1. O mito no homem: o fabular

A história do homem é rica e toda ela pautada no mito – o que cria a sua

constituição de mundo. A realidade nossa existente é a de que não existe mundo sem

mito, bem como não existe homem sem mundo.

O entendimento, no entanto, observado nos parâmetros do mundo ocidental

advém da interpretação de que o mito não corresponde mais à sua realidade de mundo.

Acredita-se que a realidade seja transposta para muitos condicionamentos em que as

mais diversas ramificações científicas se encontram e desencontram, aglomeram-se e

desaglomeram-se. O mundo ocidental, sobretudo, vive sob a consideração de que mito é

“fábula, invenção, ficção”. Nesse sentido, o mito não pertenceria à realidade, tal como

hoje se entende e se vivencia.

A nossa cultura, então, acredita que o mundo das alegorias engendra um outro

tipo de realidade que não se coaduna com os anseios da cultura moderna,

eminentemente laica, científica e racional. O pressuposto provável ainda existente é o de

ver o mundo constituído por realidades cabíveis e não cabíveis, realidades que

comportam o procedimento moderno de ser e estar no mundo em face das inúmeras

tecnologias que circundam e povoam o homem atual. As tecnologias são, a propósito, as

forças mais ocupantes do homem e hoje fazem com que ele se mostre como um ser

dizente de si mesmo, a partir de técnicas cada dia mais apuradas. Tal pureza se depura

nos artefatos. O homem é atualmente a realização de uma série de artefatos que o

tecnologizam. O artefato, assim, coloca-se como a própria forma de o homem dizer-se e

de rezar-se. Tanto é assim que o que mais acontece nas sociedades ocidentais, nas

metrópoles que nelas pululam, é o fato de o homem ser tido como bem sucedido na

medida em que ocupa um lugar tecnológico no espaço do mundo.

Page 18: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

18

O espaço do homem é o espaço da máquina. O espaço da máquina é a

conformação do homem na realidade da evolução caminhando para o progresso da

máquina, talvez do próprio homem. O homem, com a máquina e seus artefatos, é a

consolidação da figura do progresso moderno. Os artefatos e as máquinas não são

apenas uma realização do homem-tecnológico na modernidade. As tecnologias vigentes

são também as possibilidades de confecções mais ou menos pragmáticas de uma vida

que abunda midiaticamente em discursos. Tudo isso compete à realidade moderna. E,

nesse sentido, Heidegger já disse que “A vigência da técnica ameaça o desencobrimento

e o ameaça com a possibilidade de todo des-encobrir desaparecer na dis-posição e tudo

se apresentar apenas no des-encobrimento da dis-ponibilidade”1. Assim, a questão da

técnica não se coloca de maneira devida no horizonte como destino do homem.

Dentre outros estranhos comportamentos, científica ou não, a produção de

discursos ainda mostra a competência que se assumiu como o modo legítimo e real de

desbravar as realidades, cultivando-as e dominando-as. A noção de domínio é o que

impera na forma como o mundo se realiza para o homem. Ou melhor, o mundo não

pode mais se realizar. O homem é quem o realiza, porque o dirige e domina o mundo

inestimável das tecnologias.

O sentido de direção adotado por ele é o que dá rumo e sentido à vida. Então,

para que a vida se configure e se afirme como cheia de sentidos e benesses, o homem se

maquinaliza na tecnologização do mundo.

A verdade do homem é que ele organizou, compreendeu e aprendeu a dirigir a

verdade da máquina dentro de uma verdade categorial e de um tempo histórico-

cronológico em que se acredita mais humano e percebe, no melhor dos tempos, a forma

senhorial, de domínio e de relacionamento com seu próprio modo de ser. O mundo

1 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 36.

Page 19: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

19

moderno é, dessa feita, um artefato que permite a recategorização do homem diante das

realidades, de modo a conformá-las em um todo controlável e de alguma maneira auto-

regulamentável. O que importa, no pensamento ocidental moderno, é o domínio e o

controle do real e suas realidades aparentes e creditáveis. O pressuposto do controle,

contudo, se volta e se encontra constantemente como o desencontro do homem.

Aliás, a força do homem na luta do mundo não é uma questão de somenos. A

força da luta é uma constante e, talvez, a briga seja pelo domínio da força que possui o

mais forte. A pergunta que ao tempo tecnológico não costuma ser feita é: até que ponto

a vida-máquina do homem moderno não é mito? Até que ponto não é uma dimensão da

“fábula”, não é uma “invenção”, não é uma “ficção”?

Se o que se entende pelos três vocábulos é apenas o que não corresponde ao real,

a discussão tenderia a determinar uma visão sobre o que é considerado real e irreal, ou o

que do real é participante ou não. Certamente, nessa eleição, o resultado proviria de um

todo arbitrário e desmedido. Mas não é esse o caminho.

Pelo étimo, vale lembrar que fábula2 remete a mu~qoj. Tal remissão aponta para

significados de uma mesma ordem de sentido, e que, para mu~qoj são:

1 palavra; discurso; matéria de um discurso, op. a e2rgon; mu~qon telei~n HOM. cumprir a palavra 2 discurso público 3 narrativa 4 rumor 5 notícia; mensagem e diálogo; conversa; entrevista 7 pl. discussão 8 conselho; ordem; prescrição 9 objeto do discurso ou da conversa 10 resolução; decisão; projeto [...]3

2 Morfologicamente, fábula, con-fabular, con-fabulação são termos correspondentes. Tal correspondência ainda diz que o radical “fab” provém de “fabela”, tendo relação com “falar; emitir sons”, tal é o que consta em HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol II. São Leopoldo: Unisinos, 1984, p. 1647. Além disso, tanto o substantivo latino “fabula,-ae” quanto o respectivo verbo “fabulor, -ãrïs, -ãtus sum” mostram o compromisso com o sentido de “falar”, ver FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar latino-português. Rio de Janeiro: FENAME, 1975, p. 385. 3 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura . Dicionário grego-português (DGP). vol.3. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 185.

Page 20: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

20

Esses sentidos, contudo, pouco esclarecem o percurso que se dará aqui. Partindo

já de muqe9w-w~ ger. méd., podem-se entrever significados como “2 dizer; contar algo,

ac., a alguém, dat. 3 designar, chamar, nomear 4 anunciar um oráculo 5 ordenar, inf. 6

dizer a si mesmo; deliberar por si mesmo, ac. <mu~qoj>”4 – mais interessantes para o

encaminhamento proposto, pois a compreensão de mito como “dizer (e/ou também

falar), contar algo, chamar e nomear, anunciar um oráculo, ordenar” reaproxima,

sobretudo, o sentido de fábula como fala, mas a fala do dizer do mito, tal como se quer

entender. Nenhum parentesco em termos de radical em “fábula” se aproxima do radical

de “mitos”, não havendo por que considerar seu sentido como o habitual, muito menos

pelos significados correntes nos dicionários atuais. Desse modo, fábula, e tudo o que a

ela for co-respondente, será concebida como a fala-dizente onde o mito se mostra e se

coloca. Nesse sentido, há de se entendê-lo pela sua originariedade, “onde mito é o relato

de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes

sobrenaturais”5. Ou ainda, seguindo tal entendimento, considerar-se-á também que

[...] mythos tem o sentido da palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana e que por assim apresentar revela o canto como fonte de conhecimentos relativos ao sentido do ser e às formas divinas do mundo... mythos significa as palavras das ‘Musas Olímpicas’[...]6

4 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura . Dicionário grego-português (DGP). vol.3. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 185. 5 BRANDÃO, Junito de Souza. “Mito, Rito e Religião”. In: Mitologia grega, vol. I. 20ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 35. 6 TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus – o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996. p.26. Ainda que seguindo um outro discurso, de tradição mais historiográfica e, em muitas vezes, tendendo à metafísica, cabe notar que o entendimento de mito em Mircea Eliade é próximo ao de Jaa Torrano no que diz respeito à presença e à operação do divino, chegando inclusive a colocar também presente a questão do mito como um acontecer que pertence ao que se mostra como originário. Mircea Eliade, em O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 84-85, diz o seguinte: “O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gestas constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhes fossem revelados. O mito é, pois, a história do que passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab origine.” Sob certo sentido, Mircea Eliade percebe alguns dos aspectos primordiais do que é da competência do mito.

Page 21: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

21

Assim, a fábula, além de ser a fala-dizente, é o que se coloca como e onde o

dizer do mito falará, sempre no sentido de mostrar o acontecimento de todos os tempos

na sua originariedade. Fábula e mito são, aqui, o mesmo vigor que apela, pelo canto,

contar e re-montar todas as vigências de instalação do homem no mundo. O sentido que

se quer trazer é o de, pela fala-dizente do mito enquanto fábula, incidir sobre a realidade

inaugural do Ser do ente dos homens. Então, entende-se também que o mito participa do

e configura o fabuloso. E dentro de uma perspectiva que não é a habitual, haveria aqui

de se requestionar o que é “fabular”?

Aproveitando algumas correlações do entendimento atual, fabular veio a dar em

português derivados como “confabular”, que modernamente não tem o sentido de

produzir fábulas como evento não-participante do real. Confabular ganhou, dentre

muitos sentidos, o de tramar, o de arquitetar alguma ação que venha a ser favorável ou

desfavorável a algo ou a alguém. A trama da confabulação, portanto, não se dá na

solidão. O con-fabular implica uma comunhão com o outro cuja fabulação se coaduna

no mesmo intuito, na mesma perspectiva de propósitos. Então, con-fabular é criar uma

predisposição do e no real para que, quando se está numa dimensão de propósitos

comunitária, tal realidade aconteça. Se con-fabular é criar uma vida comum, a fábula é a

condição ordinária do homem, porque advém do fato de ser dele a natureza dela A

trama narrativa da fábula é ao mesmo tempo o seu vigor e o seu modo de ser e mesmo

de pensar. O pensar do mito é, nesse sentido, fabuloso, porque é ele o próprio fabular.

1.1. O pensar e o fabular: o vigorar da phýsis

O pensar-apresentante do mito se dá no fabular, porque este se coloca na

dimensão do inventar, do criar, no sentido do fazer nascer originário da phýsis/poiéw. A

Page 22: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

22

necessidade da fábula é, como in-venção, a necessidade de uma escuta e de uma fala

que se coadunam no empreendimento de toda uma trama, de todo um arquitetar que só o

pensar orienta. E o homem é e não é o pensar, porquanto nem sempre o homem se dá

como disponível para o pensamento. A essa altura, poder-se-ia perguntar quando, então,

o homem con-fabula? O homem confabula no momento em que se coloca como o

encontro em que escuta a voz originária do mito, ou seja: encontra a fábula em seu

fabular e ouve o canto das musas dizendo a mensagem do lógos, o divino. Toda vez em

que ocorrem as confabulações o homem vive, ao mesmo tempo, junto ao fabuloso, ao

extraordinário. Neste momento, viver é estar numa disposição do acontecer em que o

antes e o depois do mito, pela e na con-fabulação, apresentam-se como fá(bu)la, como

fala originária. O fabuloso é, então, além de um viver na dimensão do real com o divino,

o que permite e dá acesso, desvelando o velado, à vigência proeminente da fábula

enquanto aquilo que o coloca na ordem do fabuloso, do sagrado, do divino, do

extraordinário. Todos esses aspectos são a presentificação de um vigor de todo

inaugural mediante o vigorar da phýsis. Tudo quanto é do humano é fabuloso. Tudo

quanto é do humano é primeiro da phýsis. Todo o fabuloso está na e provém da phýsis.

Mas só a ela, no seu movimento de se mostrar e não mostrar, cabe o vigorar no qual o

homem desde sempre se ambienta. O fabuloso conduz e condiz ao humano e a ele diz

respeito. Assim, se o homem se dá exatamente na, pela e para a dimensão do mito, tal

abertura sempre o lançará forçosamente para o encontro de sua própria fábula, enquanto

disposição iminente de a fabulação se tornar memorável. O que se pensa é que a fala

vive no sentido do in-ventar originário e só se constitui como tal porque entra pelo

mitós-lógos como uma fabulação moldada em toda a memória e seus ecos.

A melodia que surge a partir da fala-cantante do mito e das musas é própria dos

que podem cantar e repetir como gesto a ser sempre co-memorado: essa melodia é

Page 23: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

23

sempre a da lembrança do mesmo canto. Há quem queira, nessa hora, perguntar: mas

que “mesmo canto” é esse? E por que o “mesmo”? O homem vive na escuta do lógos7,

na melodia que dele emana e que pelas musas no mito en-canta. O homem, nessa

audição, é aquele que não vive na e para a fala e a escuta de si mesmo. E em tal falar-

escutar, o som, a melodia que mais o enobrece é a que dá sempre a oportunidade de um

dizer se (re)dizer. Tal reedição não se apresenta, todavia, como mera repetição ou eco.

O redizer acontece como forma de ser, de se constituir, tal como para a constituição dos

dias existe a possibilidade de repetição dos dias que são sempre o mesmo, mas nunca os

mesmos dias. O falar-escutar do lógos em todo homem permite que ele se faça como

sempre se fez e sempre se fará: fabuloso. Falar-escutar o lógos-mitos é mostrar ao

homem a sua vigência. Falar e escutar são, nesse sentido, não um mero movimento de

produzir e acolher sons a serem pro-fanados ardilosamente, com astúcia e perícia, tal

como se faz nos projetos de exteriorização e exibição intelectuais. Heidegger, a esse

respeito, já fez uma consideração sobre o vigor da saga do dizer (e do escutar):

Conhecemos a fala como verbalização articulada do pensamento por meio dos órgãos da fala. Mas falar é ao mesmo tempo escutar. É hábito contrapor fala e escuta: um fala e o outro escuta. Mas a escuta não apenas acompanha e envolve a fala que tem lugar numa conversa. A simultaneidade de fala e escuta diz muito mais. Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. Essa escuta da linguagem precede de maneira mais insuspeitada todas as demais escutas possíveis. Não falamos simplesmente a linguagem. Falamos a partir da linguagem. Isso só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que é que nela escutamos? Escutamos a fala da linguagem.8

7 Aqui, vale lembrar o fragmento 50 de Heráclito, em Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 71, que diz: “Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um”. Tal consideração lembra a condição da linguagem no homem. Em seu falar-dizer, está sempre presente a necessidade de sua escuta, não a do homem, mas a do lógos. A fala do homem é a escuta do lógos, comportando um diá-logo de todo originário. O homem quando fala está sempre num entre-dizer, que, por isso, não é nunca um fora nem um dentro, mas sempre uma situação limite em que tanto a fala diz como não deixa dizer. Na situação limite, diante da escuta do lógos, o homem vive o mostrar da phýsis no velar-desvelante do lógos e assim experiencia o cumprimento do seu destino, como presença do mito, diante do dizer do sagrado. 8 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 203.

Page 24: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

24

Por isso, há de se entender que falar e escutar são estar numa mesma dimensão,

mas não na de interseção com a exteriorização da voz de outrem. É voltar para a

melodia da voz do pensamento como quem volta para a casa do próprio ser,

considerando sempre a manifestação outorgada pela conformidade de todas as

entidades, a saber, e prioritariamente: a de seu próprio modo de se entificar. Tal melodia

sempre reside na conformidade do ser como possibilidade de articulação da linguagem.

O homem só possui a linguagem porque é da sua natureza o canto. Existe, em toda a

dinâmica da linguagem, uma voz que só fala porque vive na incidência contínua do

cantar. O cantar aqui não é exatamente um cantar de todo e sempre mostrante como as

categorias sentenciais que o mundo ocidental entende e denomina por arte. O canto é o

in-ventar na dimensão de um poiéw, porquanto viabiliza a possibilidade de que, naquele

respectivo canto, as musas podem tornar memorável seu dizer. O homem fala e vive no,

do e a partir do canto, porque é sempre um ente que, na dinâmica do ser, está dis-posto

ao cantar que ocorre em e para todos os cantos. Ainda que mudo, o homem não se

locomove sem uma melodia sequer. Todos os movimentos dos corpos de todos os

homens são cantantes-dançantes. Todos os desenhos dos movimentos humanos são

cantantes-dançantes. O corpo canta-dança quando se movimenta na dimensão da

linguagem. O bailado andante do homem já é por si a movimentação do homem na

disposição da linguagem em seu torno, con-torno e re-torno. O bailado da linguagem,

nessa ocasião, coloca o homem diante de seus muitos tornar-se. O homem só vive no

con-torno e no seu próprio re-torno porque está sempre na linguagem, à espreita da

possibilidade de por ela sempre se dignificar. Estar na linguagem significa aqui o

seguinte: viver sempre no limite de se con-fundir com o que en-torna e estar sempre

num viver à beira do centro do próprio do ente; a saber, na referência do ser.

Page 25: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

25

1.2. O mito como phýsis

Segundo Heidegger, “Com o ente nos deparamos em toda parte. Ele nos rodeia,

nos leva e subjuga, nos satisfaz, nos eleva e decepciona”9. A essa altura, cabe aqui

estender o entendimento acerca do ente, a partir do que implica entificar-se. Para o

homem, entificar-se é estar na disposição de manifestação do ser enquanto ente,

enquanto sendo. Mas, entificar-se é, ainda, pela possibilidade de manifestação, a

mostragem de como o ser se cria, se inventa e se dá na radicalidade do homem. O ser do

homem é notado por meio das entidades reveladas. Na velação e na re-velação dos

entes, o ser do homem se constrói passo a passo nos vieses pelos quais o ser permite

mostrar-se e dar-se, paulatinamente, para e em cada homem. Então, o ser é, na

constituição de cada ente, a possibilidade de manifestação de suas entidades.

O ser das entidades que o homem exibe no seu cotidiano está, há muito, longe de

se mostrar, porque o que o homem mais aprendeu até hoje foi a se esconder. O ser dos

entes não se mostra como ser, porque o homem não se entende na totalidade do seu

próprio ser. O que tem constituído a caracterização do homem diante do mundo é

mostrar-se ao revés dessa totalidade. Há muito, o homem tem, assim, preferido não agir.

O homem ainda não aprendeu a lidar com a totalidade de realidades em função das

possibilidades de manifestação da phýsis. Diz Heidegger que a phýsis é “o surgir e o

elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poi&hsij”10. O homem não soube, ou pouco

soube, até agora, a dimensão da phýsis como totalidade. O que ele conseguiu foi se

relacionar com a phýsis pelas partes, na dimensão de cada ente. Por isso, talvez, o

9 HEIDEGGER, Martin. “A questão fundamental da Metafísica”. In: Introdução à Metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 59. 10 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 16.

Page 26: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

26

homem tenha se mostrado como aquele que se desentende com a realidade do seu

próprio mundo, porque não alcançou, tal como deveria, o diá-logo em que a phýsis se

mostrasse não como parte, mas como o seu próprio falar-escutar. Arrisca-se dizer que,

se um dia o homem se der para tal referência dia-lógica, talvez possa lidar com a phýsis

em sua alétheia (des-encobrimento11), pois, ao mesmo tempo em que até hoje ela vela e

re-vela a dimensão dos entes do mundo para o homem, um dia ela poderá, talvez, ser

apreciada como re-velação constante. Na dinâmica do re-velar, a verdade mais

freqüentemente se des-velará; mas, re-velando, mais encobrirá o des-cobrimento.

Tal encobrir, no entanto, não é um ocultar a se perder no horizonte do homem e

para sempre dele se distanciar, refugiar-se nos limbos da memória do mundo. O

encobrir é um cuidar, um proteger o legítimo, o originário, para que nunca se perca de

vista a vigência do des-cobrir, acalentando a singularidade própria da phýsis. Prestar

atenção aos movimentos de des-coberta é tentar se aproximar, por meio dos e no meio

dos entes, da vigência do ser, a mesma que se dá na experiência do mito.

O entendimento de que as coisas, na dimensão da phýsis, velam-se e re-velam-se

merece um aparte. A questão se coloca hoje tal como a entendemos, porque o homem

não vive na dimensão do descobrir-se. O homem, se assim vive, muito vagarosamente

se des-cobre. Muito da phýsis é velado e paulatinamente re-velado, visto que muito do

próprio homem está encoberto. Poucos são os descobrimentos do homem diante de si

mesmo.

Todavia, alega-se que o homem moderno já avançou muito, já descobriu muitas

tecnologias. Mas o problema dessa afirmativa moderna é a utilização da palavra

“muito”. A medição do “muito” se dá sem a menor noção do que seja a compreensão da

totalidade. Assim, o “muito” talvez bem seja o “pouco”. No entanto, esse é um

11 HEIDEGGER, Martin. “Aletheia (Heráclito, fragmento 16)”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 229.

Page 27: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

27

problema do homem diante dos artefatos da técnica. A phýsis, como possibilidade de re-

velação do ser, não é medível. A realidade da phýsis é a de colocar o homem diante de

uma disposição frente à vida em suas conformidades, sendo também a de um mostrar-se

e velar-se. Essa dinâmica mostra que o que deve ser abolido do pensamento é o “muito”

e o “pouco”. E deve, porque o pensamento não pode ser medido, porque o homem não

pode ser medido, nem o pode ser a natureza. Mas, se todo entendimento da medida é um

equívoco, o que há de se considerar até aqui é, face à dinâmica de possibilidades da

phýsis como manifestação do ser, haver sempre o mo(vi)mento do velar-se e do re-

velar-se. O equívoco do homem como o que dá a noção de medida de todas as coisas e,

assim, pressupõe-se, do próprio homem, deve-se à leitura que se fez do dizer de

Protágoras de Abdera, quando em sua obra Sobre a Verdade diz: “O homem é a medida

de todas as coisas (pantw~n xrhma9twn), das que são enquanto são e das que são

enquanto não são”12. Tal dizer não deve ter uma leitura em que o homem ora é o que

mede as coisas, ora o que é medido por todas elas; o homem, adjetivado-

substantivamente em Protágoras como “medida”, é o medíocre, o moderado, o me(d)io,

o medial, o entre13. O homem, diante dos entes do mundo, coloca-se como o que tem

por destino estar entre todas as manifestações da phýsis. Tal medir, como entre-

modificante-moderado, não põe em cena uma avaliação quantitativa ou qualificativa. A

medida é o simples notar que o entre-encontro dos entes, enquanto coisas, dá-se com e

no homem. E quem sempre o homem encontra no entre-meio e no caminho desse

encontro é a phýsis.

12 MORA, J. Ferrater. “Protágoras”. In: Dicionário de filosofia - Tomo III (K/P). São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 2396. 13 Aqui, vale lembrar que “medida”, o predicativo-substantivo da sentença de Protágoras, provém do verbo grego metréw, que significa, além de “medir”, “contar” e “calcular”, “moderar”, “modificar”. Por sua vez, o significado do adjetivo me9trioj, on ou a, on é “moderado”, “mediano”, “medíocre”, “suficiente”, “simples”, “proporcionado”, “justo”, ver ISIDRO PEREIRA, S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Portugal: Livraria A.I., 1998, p. 371.

Page 28: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

28

Cabe aqui, ainda, tentar estender o que já se disse sobre a phýsis e o seu velar e

des-velar. Velar-se é um movimento indicativo de que o homem, na conformidade da

phýsis, está guardado. É um estar guardado em si mesmo; e para si mesmo saber,

também um dia, pela dimensão autóctone da phýsis em si próprio, velar-se, guardar-se,

sabendo de sua guarda. A phýsis, por sua própria dinâmica, vai velando-o e des-

velando-o. Des-velar-se, por sua vez, é o movimento contínuo de sair do velamento de

si mesmo e se dar para a phýsis e para o lógos, que, pelo agir do falar-escutar, vão se

falando-ouvindo e, em tal conferência, dão-se na dimensão do humano. O deixar de

estar encoberto é um acontecer da phýsis. Esse acontecer, no entanto, é a orientação em

que o humano se experiencia durante a vida no esforço de se mostrar enquanto tal. O

contínuo desse acontecer é a dinâmica e a vigência de o humano trilhar os caminhos da

vida e se consagrar na dimensão do mito. A consagração e suas sacralidades são a

disposição que o mito constrói para o homem quando para ele e nele o mito se diz,

mostrando o divino no homem e o homem no divino. Mostrar significa, a essa altura, o

seguinte: dar-se, encontrar-se no espaço em que o que permite se dar seja oferecido e,

como oferenda, sirva-se da possibilidade de viver no espaço do servir, do estar a

serviço. Mas caberia, ainda, certamente, uma pergunta: o que é para o homem o

mostrar-servir da phýsis? Mostrar é o devir da phýsis no e para o ser do homem. O

serviço do devir ocorre na referência entre o homem e a dinâmica da phýsis. A phýsis

com que o homem, contudo, relaciona-se e com que vive as suas experiências se dá

como sendo. Na dinâmica das entidades, o mito acontece e orienta o homem. Por isso,

pode-se entender que o mito é a emergência do ser enquanto ente na dimensão do

humano e do divino, que são o mesmo.

Mas o que a emergência do ser enquanto ente tem a ver com a configuração do

homem enquanto mito? O homem é, na dinâmica da phýsis e na referência com o lógos,

Page 29: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

29

o que se mostra também como fábula, enquanto aquele que, na comunhão com phýsis e

lógos, consegue se dar como fabuloso, porque além do humano participa do divino,

num todo extraordinário. O homem, na vigência do ser, é o fabular e o fabuloso, porque,

na instância do mito, ele é o ente que se mostra na e a partir da linguagem, tal como a

entendemos até então. Por isso, o fabular e o fabuloso pertencem ao ser.

1.3. Mito: a reunião de lógos e phýsis na casa do ser

O que é, contudo, fábula no contexto da phýsis? – isso não foi respondido. A

phýsis da fábula é o modo dos deuses e não-deuses, mortais e não-mortais, diante do

homem, entregarem-se no e para o real. E todo real do homem participa do fabuloso na

fábula, que é o mito. O mito como fábula, no entanto, só se mostra como con-fabulação.

O fabular do mito deve ser questionado a partir do vigorar da phýsis. Mas por

quê? Heidegger tratou da phýsis na dimensão do lógos. Diz ele:

[...] nossa questão sobre a origem da distinção [entre Ser e Pensar] é ao mesmo tempo e antes de tudo a questão sobre a compertinência Essencial do Pensar ao Ser.

Historicamente, pergunta a questão: o que se passa com essa compertinência no princípio normativo da filosofia ocidental? Como nele se sente o pensar? Pode-nos dar um indício o fato de a doutrina grega sobre o pensar ser uma doutrina sobre o lógos, “lógica”. De fato, deparamo-nos com uma conexão originária entre Ser, phýsis, e lógos. Apenas temos de livrar-nos de julgar que lógos e legein originária e propriamente não signifiquem outra coisa do que pensar intelecto e razão. [...]

Vamos logo ao decisivo e investiguemos: o que significa lógos legein, se não significam pensar? Lógos significa a palavra, o discurso e legein significa falar. Diá-logo é o colóquio, monó-logo, o solilóquio. Não obstante, originariamente, lógos não significa discurso nem dizer algum. Essa palavra não possui, em seu significado, nenhuma referência imediata à linguagem. Lego legein, em latim legere, é a mesma palavra como a alemã “lesen” (ler). [...] Lesen significa pôr uma coisa do lado da outra, juntá-las num conjunto, numa síntese; coligir, reunir. Coligindo, colhendo, ao mesmo tempo se seleciona, se distingue e se separa uma coisa da outra. [...] Analogicamente, também os gregos não pensavam, com a palavra lógos, necessariamente em “discurso” e “dizer”.

Page 30: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

30

[...] A alusão ao significado fundamental de lógos só nos poderá dar

um indício, se já tivermos compreendido o que “Ser” diz para os gregos: phýsis. Não apenas, em geral, mas pelas diferenciações imediatamente anteriores do Ser frente ao Vir a ser e à Aparência circunscrevemos de modo sempre mais claro o significado de Ser.

Na suposição de nunca perdermos imediatamente de vista o que ficou dito acima, dizemos que o Ser como phýsis é o vigor imperante, que surge. Em oposição ao vir a ser, mostra-se como a consistência, a presença constante. Em oposição à aparência, se afirma, como o aparecer, como a presença manifesta.14

A fala de Heidegger aponta para o entendimento da phýsis como lógos e na

dimensão de possibilidade de manifestação de o ser se dar. É assim que a questão do

mito aqui se quer notar diante do que ele, mito, numa referência enquanto fábula, a fala-

dizente, isto é, enquanto phýsis-lógos provoca no ser do homem, enquanto sendo. O

reunir do lógos é a questão do mito. O mito é o que reuniu até hoje o homem numa só

concentração. O mito esteve e está diante da realidade, o tempo todo, a guiá-lo no seio

da terra. A força do mito não é, portanto, para se pensar como uma força diferente da

força do lógos na dimensão do ser. Na vigência do lógos em que o mito se articula, o

homem sempre e melhor entendeu a realidade. O mito é para o homem, porque foi e

sempre será a instância em que o homem se depara com o lógos a guiá-lo. Pode-se

perguntar nesse momento: como esse reunir do lógos, que se apresenta no mito,

guia/guiou o homem na aurora do pensamento? A resposta provém de uma sugestão

que diz algo a respeito do reunir. Re-unir é, num primeiro momento, voltar a unir.

Repetidamente o homem se dá na força que volta a se dar como união. Unir diz ainda

que o homem existe, a partir de um separar que tende sempre à junção de todo

experiencial na rotina do seu mundo. Tal movimento diz também outra coisa: unir é

estar sempre prestes a ir de encontro a e ao encontro de um dar-se para a dimensão do

Ser do ente. Nessa união, o dar-se do homem se guia e se orienta. Orientar e guiar são o

14 HEIDEGGER, Martin. “A delimitação do Ser”. In: Introdução à Metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, pp. 148-150.

Page 31: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

31

papel do mito na vida do homem. O mito surge para o homem sempre como guia, está

também na dimensão do unir. Unir é, a saber: estar junto numa só presença; diante do

que se presentifica; tornar todos os tempos e todos os lugares uma só disposição do real;

estar dentro e envolto por todo o real; estar pensando voltado para o mesmo ponto de

encontro, o da presença. Quando se guia pelo mito, o homem se volta para o apelo de

todo um re-unir que o coloca diante, com e no meio de toda a presença. O que traz

presença é linguagem, e o mito é também uma dinâmica da linguagem. A fábula, que é

o mito, não está fora dessa dinâmica. Fabular é estar voltado para todo re-unir. Mas re-

unir deve ser pensado ainda como aquilo que está voltando a unir. O “re-” é um fazer

voltar, é um criar para o homem o re-torno. Unir é estar compelido e fadado a fazer

voltar esse re-torno. Re-tornar não é voltar para um tempo passado em que se projeta

um futuro. O re-tornar, na dinâmica do fabular do mito, é pensar a disposição do mundo

como pertencendo a um todo-presente. Na presença do todo do tempo, o canto que a

musa, pela memória evoca, canta o homem, criando para ele a realidade de todos os

tempos e de todos os homens. O fabular é um presentificar, é criar presença, porque

vivente dessa presença. Por isso, o mito é um reunir, na força da fabulação, todos os

tempos-lugares (história) do homem, colocando-o num onde-temporal em que ele se

encontra num sempre presente-retorno junto ao encanto de todos os deuses no

pensamento da terra, vindo como oferenda, por meio e diante da voz das musas, na fala-

cantada-pensante dos aedos, que são, por legitimidade, todos os poetas, os mithologoi,

os fabulosos, os mito-cantadores. Assim, volta-se ao entendimento de que o pensar do

mito é o fabular, porque, como fala-dizente, cria, in-venta15·, vem receber como

15 Inventar é um verbo que provém do latim “inveniõ, -ĩs, -ĩre, -venĩ, -ventum” e significa “vir em ou sobre”, “encontrar”, “achar”, “receber”, “descobrir”, ver FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar latino-português. Rio de Janeiro: FENAME, 1975, p. 524. Seu radical, entretanto, é proveniente de “venio, ventum, venire” que significa “vir”; “transportar-se de um lugar para outro”; “chegar” , ver Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol IV. São Leopoldo: Unisinos, 1984, pp. 4379-4383. O prefixo “in-” indica: movimento para dentro, um ficar no meio, no entre.

Page 32: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

32

encontro o des-cobrimento do agir, na dinâmica do poiéw. Na dimensão do pensar, o

fabular do mito é de todo-sempre deixar o agir agindo, à mostra, como poiéw tanto do

dizer quanto do falar. Mas qual fala-dizente diz todas as fábulas, no originário dos

mitos? As falas que as pronunciam são as da in-venção, isto é: as falas do encontro com

o des-coberto, o des-velado auto-velante, pois só con-fabulando o ser se des-cobre, se

des-encobre, se dá como verdade (alétheia). O criar, como poiéw, o agir-des-cobridor, é

da natureza do ser do homem na dimensão dos entes. Criar, como poiéw, é, por isso,

também in-ventar. Estar no seio da in-venção é, para o homem, estar no entre-vir, no

entre-des-cobrir; ou seja, estar na sua própria casa. O homem mora sempre onde ele se

in-venta, no entre-des-cobrir. O maior invento, o maior coberto-des-coberto, a saber: o

homem, como mito e fábula, pois na dimensão da fala-dizente da fábula o homem se

cria, se des-cobre. E só se des-cobre, porque sempre en-coberto16. O criadouro: sua

própria casa. A casa onde ele mora: a linguagem. E o falar da fábula é estar como

habitante na linguagem, pois que nela ele, o homem, mora. Heidegger, a esse respeito

disse:

O homem não é apenas um ser vivo, que, entre outras faculdades, possui também a linguagem. Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o homem ec-siste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e guardando-a.17

Mas o que significa habitar a linguagem originariamente? Aqui há de se partir

para o sentido mais usual de estar de posse de um habitar. Quando o homem possui a

certeza de uma habitação, ele possui não só a si mesmo, mas ainda: acredita possuir

agora formas de proteção e vigília que, como sendo, apresenta. A alquimia que se

16 É esse também o sentido do que Heráclito diz, no fragmento 123: “Surgimento já tende ao encobrimento”, ver Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 91. Aqui, o in-ventar é, nesse sentido, também o des-cobrimento/surgimento que tende ao encobrimento. 17 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1967, p. 55.

Page 33: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

33

estabelece entre o sendo e a linguagem é de tal ordem que casa e homem, quando

habitados entre si, colocam-se dentro de uma mesma relação de proteção comum. O

homem comum, aliás, sabe disso. Quando não possui moradia, a sua vida não se

sedimenta ou vive à espreita de ficar mais vulnerável a toda e qualquer tormenta e

cataclismo. O corpo do homem é o corpo da casa, que é o corpo do homem. O homem e

a casa: um, a habitação do outro. O homem e a linguagem: o mesmo.

O habitar nessa vida é estar ciente de que o homem tem a posse da linguagem

não como mero utilitário e recurso retórico. O homem também sabe que não é qualquer

fala tecnocrática que o deixa de posse de seu habitat. A retórica tecnocrática, teorizante,

politizada etc., no máximo, deixa-o vislumbrar as cercanias e as peripécias mil

permitidas pela linguagem como ad-vento, mas não como e-vento consumado de

disposição do ser.

O homem sabe que existe um dizer que por muito quer falar, mas que só fala

legitimamente quando se coloca numa posição de audiência de todo o movimento que

constrói a habitação da sua própria casa. Casar com a sua casa é algo sempre disponível

ao ser do homem. O homem que, no entanto, nela mais sabe saborear os seus aposentos

é o que canta com divina melodia o seu canto. A ele, foi dado o nome de aedo; hoje,

poeta. No entanto, em muito se distingue a figura do poeta moderno e a do aedo. Os

críticos desatentos de hoje, em geral, vivem tal distinção sob a contingência da idéia de

gênero.

Contudo, há de se observar que hoje, quem mais se coloca no papel dos aedos de

outrora é aquele que põe, no seu dizer, a disposição da confidência que vive à margem

de uma profecia. O aedo, o poeta-cantor, apresentava no seu dizer uma dimensão do

lógos que vinha trazer, pelo canto divino das musas, as próprias musas como as

cantantes do que pertencia à morada do homem, num confidenciar tal que a fidenciação

Page 34: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

34

era fiduciária de todo o percurso do mito na face da terra, casa do homem. O cantar que

as musas cantavam-dançavam traziam pelo aedo a mostragem de todos os lugares e

tempos pertencentes ao homem. O canto do aedo era um dar às musas o canto, num dar

que se conformava como a entrega completa para que o canto fosse completo, para que

a divindade se fizesse repleta e para que o homem se fizesse pleno diante do canto que

vinha junto e direto dos deuses para a interseção e a compreensão com o mundo dos

homens, a saber: a sua própria casa, a sua própria linguagem.

Nesse dizer-música, o homem antigo sabia que, tanto quanto divino, era também

o humano, porque era sempre a forma que o homem tinha e tem de entrar em

comunhão, não com o mero mundo dos deuses, mas com o seu próprio mundo. O

mundo dos deuses era também o mundo das divindades de todas as naturezas, e a

primeira delas era a de se mostrar divino para os homens. Os homens sabiam que a

divindade dos deuses era divina na intersecção que todo o lógos, na dimensão da phýsis,

carreou para o próprio homem, no sentido de que era este quem deveria, pelo canto das

musas, e nessa terra morando e habitando, fazer o encontro do mundo com o próprio

homem. O encontro do homem com o mundo só se dá quando o homem constrói o

mundo como e a partir da linguagem. E, originariamente, construir é já um saber da

necessidade do morar habitando a casa do ser, a linguagem.

Mas em “A linguagem é a casa do ser”, não há como perguntar onde a

linguagem habita, nem onde o ser habita, pois um mora na proteção e na guarda do

outro. E, com relação ao homem, não há como responder. A resposta não vem, porque

o homem não vive na casa do ser, mas na do ente. O homem não se coloca à disposição

do ser. O homem, muito timidamente, consegue se disponibilizar para que o ser se

mostre como sendo, como ente. No advento da mostragem, o homem fica diante de uma

perplexidade que não o co-move. A falta de locomoção diante da manifestação do ser

Page 35: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

35

tem sido modernamente a dificuldade de o homem entender-se com e na linguagem,

ainda que ela seja a sua morada. O homem mora sem saber onde dorme e onde acorda.

Os lapsos de vigília são dados amiúde. O fato de o homem ter a linguagem e ela ser sua

casa não tem sido suficiente para mostrar que ele sabe nela habitar. O homem não vive

pré-ocupado com sua proteção, tampouco vive na sua guarda. Como guardião, o homem

tem experimentado apenas as relações exteriores que a casa pode externar. O interior,

mormente é encarado como a mesma faceta do modo como encara o exterior. Mas o que

é viver na casa do ser na dimensão da linguagem, afinal, já que o homem tem se

mostrado inábil? Viver na casa do ser é “proteger e guardar a Verdade do Ser”, assim

foi dito. Proteger e guardar é viver no estabelecimento de compertinência e de convívio

com o que faz o homem se voltar para dentro de, velando de tal modo o que ali está que,

na proteção dada ao que dentro mora, permita toda e qualquer saída da linguagem em

direção às outras moradas onde residem todos os homens. A linguagem só se bem

guarda quando, no seu res-guardo, ela se ensina e se aprende a ser ouvida e ecoada pela

voz do mito na casa do ser – casa de todos os homens – o máximo possível e, enquanto

linguagem, pode-se fazer ecoante e mostrante. O morar é um guardar-protegendo, mas

que só guardado-protegido permite ser, junto e dentro, um morante-residente. “A

linguagem é a casa do ser”, porque é ela quem sabe ser sempre residente e conhece, pela

sua vigência, pelo seu vigor, o interior de todas as residências: o ser.

Quando um mito, por meio das musas, canta o seu canto, o homem se vê diante

de um guardar e de um proteger de todo inaugural. A linguagem casa do ser é a casa-

linguagem do mito. A linguagem é a voz do lógos vindo a confirmar sempre residência

onde já ele mora, o ser do homem. A fala do lógos no mito é sempre um canto que

encanta a casa do ser. O homem, à espreita e à margem de tal encantamento, sabe que,

com o mito, a linguagem fala uma fala não só encantadora como mera fantasia e

Page 36: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

36

disponibilidade para uma dimensão fictícia em que ele não mais se reconhece como

homem, mas fala um encantar pela voz das musas e pela sua presença. As musas trazem

para o homem a linguagem como ponto de encontro em que se orienta conjuntamente a

casa dos homens diante da casa dos deuses a guiarem os homens para a sua morada.

1.4. Na casa do ser: a luz do divino

O encontro dos homens com os deuses é a fala de um lógos que orienta o

homem em direção divino. Só o divino ilumina e não escurece. Por isso, o lumificar da

fala das musas se faz de tal modo operante e fabuloso diante da fala do lógos do

homem. Pelos deuses e não-deuses, pelos mortais e não-mortais, a linguagem é luz na

casa do ser. Viver sob a iluminação dos deuses e não-deuses, face ao canto das musas na

realidade do mito, é estar também não como iluminado, mas como participante da

mesma luz, visto que, por uma concessão outorgada pelos deuses, essa iluminação se

coloca como a (con)vivência do e entre o homem e o divino.

A luz da linguagem dos deuses é luz que reúne, porque só no lógos tudo se

conjunta. A con-junção é a presentificação do destino do homem quando diante do mito.

O homem é um desconjuntado sempre à procura da con-junção. Por ser desconjuntado,

e mesmo assim sendo e se sabendo como tal, o homem sabe também que pela, na e com

a linguagem ele se dirige sempre para o viver em tal comunhão. A con-junção entre o

homem e sua casa, que é também a casa das musas no mito, é um pressentimento

constante na vida do homem. Esse pressentimento faz do homem um ser que, mesmo

orientado pela, na e com a linguagem ainda não achou a sua casa, porque não a entende

como tal. Existe aqui uma dis-junção que sempre advém ao seu destino, tornou-se rotina

e o seu próprio cotidiano. Diante desse dia a dia, o homem perambula pelos des-

Page 37: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

37

caminhos da linguagem querendo qualquer voz que o oriente. Ele vive como quem não

sabe se sai de casa, porque, por pouca freqüência, não distingue mais o que é viver

dentro. Essa é a sua dis-junção. Quem assim o orienta é a linguagem na dimensão da

escrita, a partir da metafísica, de um modo geral. Elas não se orientaram sozinhas; ele

optou por esses descaminhos. Tais descaminhos levaram o homem moderno para o

encontro com a escuridão da casa do ser. Essa escuridão, sendo um sempre, não

ilumina, porque não deixa o homem saber do interior de sua própria casa. O homem,

assim, sem o canto das musas, vive na escuridade do ser. Jaa Torrano refere-se a essa

escuridade, fazendo menção à Noite negra, a que as Musas se opõem. Ele diz:

A irrupção da voz, impondo-se à Noite negra, traz consigo os Deuses senhores da festa cósmica, a ordem cósmica que estes deuses determinam e em si mesmos são, e traz ainda consigo a própria noite circundante dentro de que as Musas surgem como belíssima voz e fazem surgir múltiplo o cosmo divino. Fecham este catálogo a Noite negra (expressão do Não-ser, filha de kháos, a noite circunstante e a solitária geradora de todas as forças que marcam pela privação e não-ser a vida do homem) e a referência à sagrada geração (= ser) dos outros imortais sempre vivos. Assim, enantiologicamente, as potências ontofânicas (Musas) situam-se no meio da potência do não-ser e da privação (Noite) e mais: trazem junto à sua plenitude configuradora da Ordem e da Vida esta Força originária da Negação.

A manifestação das Musas não é apenas um esplendor e diacosmese que se opõem ao reino das trevas e da carência, mas sobretudo tem no antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao esplender em seu fundamento, dá a este mesmo reino antinômico a sua fundamentação.18

Aqui, urge perguntar o que a Noite negra é na dimensão do mito e do homem?

Em tal condição, a Noite negra seria para o homem e para o mito a instância em que o

primeiro se coloca fora da casa do ser, fora da linguagem. Dentro da noite, o homem

não seria, mas espreitaria pela claridade o advento da vigência do ser. O lógos, em sua

vigência, está sempre à beira da manifestação de o ser se dar enquanto ente, sendo. A

claridade de todo homem é também a força de encontro da luz, dia e noite, que o lógos

18 TORRANO, Jaa (tradução). “Musas e Ser”. In: Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 23.

Page 38: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

38

reúne. Como força de reunião plena, sempre vigendo, o homem vive a rogar para que tal

clareira, que é também a força da Noite negra, o ilumine. Rogando, clamando pela força

de todas as divindades que as musas sempre trazem para o seu convívio, o homem, só

nesses momentos, pode se deparar com a fala de todos os mitos, porque em tal rogativa

o homem se encontra com o divino, que são todos os mortais e todos os imortais a

trazerem pela voz o destino sagrado do homem diante de suas clareiras.

A voz do mito, que o canto e a presença de todas as musas anuncia, traz sempre

para o homem a oportunidade de se encontrar em sua casa, pela força de vigência

reunidora do lógos. A fala do lógos, mais que reunir, convoca sempre o homem para o

diá-logo, o monó-logo, o soli-lóquio, o co-lóquio em que todas as vozes do canto se

encontram na escuridão da Noite negra. No entanto, a Noite negra, pelo canto das

musas, acende-se ao homem quando, a partir de então, ele se reconhece como o

participante desse mesmo lógos. Participar é estar dentro e no entorno do conjunto; é

viver a mesma vigência de todos os elementos reunidos e congregados em tal juntar; é

estar disposto a viver dentro das mesmas habilidades e organizações de tudo que, pela

junção de todos os particípios, tornou-se participante. Na participação, o homem é

aquele que não viveu na escuridão da noite negra. E assim, ele vive na clareira que fala

o lógos do mito.

Importa agora tratar da fala do lógos do mito, concebido como o mesmo que

viver na dimensão do fabular. A fala do lógos, do legein – disse Heidegger – está na

evocação de que lógos é:

de-por e pro-por, é puro dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se prostra. O Lógoj vige, pois, no e como o puro legen, o puro de-por e pro-por, que colhe, escolhe e recolhe no recolhimento de uma concentração. O Lógoj é, assim, o recolhimento originário de uma

Page 39: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

39

colheita original a partir de uma postura inaugural. O Lógoj é postura recolhedora e nada mais.19

Tal dizer aponta o lógos como um recolhimento. Tal colher e re-colher é a es-

colha que faz com que o mito um dia tenha falado com todo o seu vigor para o homem.

O vigor na sua es-colha permitiu ao homem conviver na dimensão do mito; vivência

que até hoje se dá, mas que tenderá a viver num disfarce projetado pelo modo moderno

de se colocar diante da realidade no entendimento do Ocidente. O re-colher refere-se

aqui a, diante do lógos, o homem, na dimensão e em conformidade com o mito, pro-

jetar uma disposição da es-colha que, no tempo da colheita, deixa e a-colhe o mundo

que frutificou e que frutificará sempre. Colher significa estar diante da possibilidade do

a-colhimento. No a-colher, o homem se depara com a realidade dentro de si. No interior

de sua humanidade, ele vive na base de todas as colheitas que o lógos, enquanto mito,

permite disponibilizar. O fruto que ele encontra nessa colheita é o ser se dando. Na

dádiva oferecida pelo ser, o homem se vê diante da dis-posição do lógos, na freqüência

do mito. Freqüentar-se no mito coloca-o na mesma compertinência na qual o mito se dá,

na qual o lógos tende e está a se oferecer. Tal oferta não é uma oferta da amostra,

visível, palpável e ponderável, medida por um avaliar moderno. Esse oferecimento

ocorre quando o lógos, como reunião de tudo o que é possível re-colher, a-colhe. O re-

colher também remete a um voltar a colher. O homem, na dimensão do lógos, vive na

busca da colheita, no empenho da colhedura, indo para junto e em direção à terra; terra

que vive à busca de seus frutos. Re-colher fala ainda de um movimento de re-tração. A

retração, conquanto modernamente indique um fechamento, não se distancia do

entendimento de que, no colher, no a-colher e no re-colher, haja a reunião que é sempre

o movimento de tracionar para um dentro, a saber, para dentro do ser, na dimensão do

19 HEIDEGGER, Martin. “Lógos (Heráclito, fragmento 50)”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 190.

Page 40: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

40

lógos, que é o momento em que o mito se coloca dis-traído. A dis-tração do lógos é a

oportunidade de não re-colhimento do mito enquanto tal. Dis-trair é um per-passar pela

vigência do tracionar, con-centrar-se no seu cerne. Distrair nada tem a ver com o fato do

mito acontecer de súbito, repentinamente, sem nenhum planejamento, ou aviso prévio.

Somente porque se coloca como elemento de extremo tracionar, visto que na e pela dis-

tração se aponta para estar no cerne de toda e qualquer possibilidade de centro, e aí é

que o mito se dá na dimensão do humano, enquanto sendo, o “dis” remete a um

“através de”, indo “em direção a”20·; estando na direção, o meio no meio se coloca;

estar no meio é estar na ocupação do todo, por todo o seu alongar-se. Alongar-se é estar

indo na direção em que a tração se demora. Dis-trair é estar no meio, no centrar e no

concentrar, de toda tração. Estar na tração é estar ocupado pelo vigor de todo tracionar.

Concentrar-se no seu cerne diz de uma disposição do mito enquanto fala, mas

apenas na força de reunião que só o lógos evoca. Concentrar-se é ainda, nesse sentido,

estar no e com o centro de uma mesma tração; é estar no meio de um tracionar que, na

colheita, es-colhe o que, como centro, merece e permanece como o fulcro de toda a

questão que o mito colhe para o ser do homem na dimensão do lógos. A reunião que o

lógos reúne dá e sempre deu ao mito a sua dimensão primeira: recolher e en-contrar-se.

En-contrar-se diz que o homem vive em con-tração. Mas o que é essa con-tração do en-

contro? O en-contro é sempre a experiência do dis-trair-se do mito. O “en” fala de um

“dentro”, de um “aí” e um “ali”, fala também de uma “permanência no lugar indicado

por e0n”21. Assim, a con-tração do encontro é o lógos como mito na dinâmica da phýsis.

Todos percebem o movimento de tal con-tração. Volta e meia o homem se pega con-

traído. Na con-tração, o homem vive no en-contro de si mesmo. Isso normalmente se dá

20 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura Dicionário grego-português (DGP) - vol.1. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 212. 21 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura Dicionário grego-português (DGP) - vol.2. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 62.

Page 41: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

41

quando uma questão fundamental a ele se lhe mostra. Toda mostragem, entretanto,

implica uma inquietação que, mesmo demonstrando uma agitação exterior do corpo

pelo comportamento, invoca uma con-centração do interior prestes a promover o en-

contro com o que inquieta o homem. Tal en-contro é a percepção de que o homem tende

ou tenderá a se encontrar com a questão do ser na dimensão do ente, mostrado para o

homem em sua própria história, sua humanidade. Diante do en-contro, o homem, se

com o lógos não fala, certamente dá acesso – porque vive sempre no en-torno – à

dimensão em que o lógos se coloca à espreita da dimensão da fala do mito. Foi dito que

com o lógos o homem não fala. De certo, isso ocorre. O lógos se manifesta, se mostra,

se diz por meio e a partir do homem. Ele sempre se coloca antes do homem se dizer

enquanto linguagem que se executa a partir da dinâmica desse mesmo lógos. O diá-logo

então existente é sempre uma disposição da dinâmica do lógos no ser do homem

enquanto ente. Mas o que fala a fala do lógos? A fala do lógos se dá na in-venção. E

aqui é preciso tentar chegar nas proximidades do sentido de inventar. In-venção: ver

dentro, no e pelo meio desse dentro; é ver o esse (o ser). Mas o que é ver dentro, no e

pelo meio desse dentro? Ver dentro é estar na dimensão daquilo que pela reunião de

uma totalidade se mostra. E o que se mostra sempre: a saga do dizer. A fala do lógos do

mito executa sempre diante dos olhos a saga do dizer: o mostrar.

O mito, quando se fala, (se) mostra como rito. Mas qual rito se mostra sempre?

O homem a cada consagração do dizer. Cada consagração do dizer é o rito de todo mito

que como e por meio do homem se põe a mostrar. O mito, como phýsis em rito, é

sempre mostrador. No entanto, o mostrar do rito de cada mito sempre se dá como algo

revelador. Ser re-velador é colocar-se na dimensão da verdade, como alétheia. Como

verdade, o mito fala o lógos que são os deuses e todos os mortais. O mito reúne pela

força do lógos o mortal e o imortal, condições que são sempre formas de apresentação

Page 42: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

42

do divino. O que é re-velador no lógos do mito é o tornar toda a ordem do mundo como

presença. O homem re-velado vive na instância do se mostrar como presença. Presente,

ele se reconhece e volta pela força do lógos do mito a ouvir o dizer do que é dito, pela

força de presença e de canto das musas. Estar presente é estar no lugar em que o sendo

do ser mais se mostra. Mostrar é sempre o lugar da presença e a saga de todo o dizer.

Estar na presença é estar no desempenho do vigor da linguagem. Quando a linguagem

se coloca como a saga do dizer, ela se põe no e como o destino do homem. O homem

não fala a saga do dizer. Por meio do homem, a linguagem, no cumprimento de seu

destino, cruza a sorte de todos os homens. A sorte de todos os homens é estar no

percurso da linguagem, caminhando pelo lógos no seu conjunto, no seu reunir.

Heidegger já pensou a saga do dizer por outros caminhos:

A saga do dizer é mostrar. Em tudo que nos fala alguma coisa, em tudo que nos aclama, conclama, reclama, em tudo que nos aguarda como o que não foi falado e também na fala que nós cumprimos, em tudo isso vigora o mostrar, que deixa aparecer toda vigência e que tira do brilho toda ausência.22

É nesse sentido que se pode também entender que, a partir do mostrar, saga de

todo o dizer, a fala do lógos se apresenta. O mito não é um mero falante. O mito no rito

é, sobretudo, mostrante. Mostrante é a caracterização de tudo o que consegue – porque

só a ele pertence tal poder – ser mostrador. Mostrar quer dizer, dentre outras coisas, que

o que mostra se coloca às vistas, sempre num adiante da possibilidade de todo olhar e de

todo ver, mas não de um ver qualquer. O ver que está em jogo é o que vive a

experiência dos olhos, sabendo de sua contingência e exercício ainda que diante de

qualquer cegueira fisiológica. A visão do homem está sempre disposta frente à

possibilidade de o dizer se mostrar. O lógos se sobrepõe, interpõe e antepõe diante de

22 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 206.

Page 43: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

43

qualquer olhar. A voz do lógos do mito é, assim, algo sempre visível. O mito sempre

está às claras. Estar na clareira é o como a linguagem se dá como saga, como dizer para

o homem na dimensão de todo e qualquer dito, que é também o do mito. O que a

linguagem faz é sempre, enquanto mostrante, colocar-se como o que, por meio do

homem, como clareira, o ilumina. O lumificar do lógos do mito é um dar na dimensão

da luz, enquanto luz. Mas o que dá a luz não é a luminosidade. E estar luminoso é o

resultado do que sofreu a ação de encher-se, banhar-se e fazer-se da, na e com a luz.

Isso pressupõe a presença da noite negra, da escuridão do homem, mas ela é a

possibilidade da luz lumificar não o escuro, mas aquilo que, como passível de se

iluminar, far-se-á luz e claridade iluminante. O fabuloso do mito é que ele se ilumina e

se dá como luz do mundo.

Desse modo, o in-ventar de uma con-fabulação só se dá como fábula, criada-

criadora, e encontra o espelho do claro e do escuro na fala do mundo, porque confere

afeto aos sentidos a serem resguardados pelos entes de algum modo, em algum tempo,

na dimensão do seu sentir, isto é, na dimensão do ser. A clareza e a escuridão do homem

são, de há muito, o seu feito fabuloso na internação e estadia nessa terra, constituindo o

mundo de seu mundo. Heidegger, pensando o mito e as deidades gregas, trata da

questão da claridade e da escuridão dizendo o seguinte:

O mutoj é a saga, palavra tomada literalmente no sentido da fala essencialmente primordial. “Noite” e “luz” e “terra” são um mutoj, não “imagens” de encobrimento e de desvelamento, “imagens” que um pensar pré-filosófico não transcende. Em vez disso, encobrimento e desencobrimento são previamente experimentados de tal maneira essencial que apenas a simples mudança de noite e dia é suficiente para destacar a emergência de todo essencial contido na palavra mutoj. A simples diferença entre claridade e escuridão, que usualmente ligamos ao dia e à noite, não diz, em si mesma, nada. Já que a diferença assim compreendida “não diz nada” a respeito da essência do encobrimento e do desencobrimento, não tem, também, nenhum caráter de mutoj. A diferença entre claridade e escuridão permanece “não-mítica”, se, previamente e antes de tudo, iluminação e ocultamento não aparecem como essência da luz e da escuridão e,

Page 44: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

44

junto com eles, o que vem à luz e recua para a escuridão aparece de tal maneira que, precisamente, este vir à luz e o retroceder para a escuridão perfazem a essência, em que toda presença e toda a ausência moram. Somente se estivermos atentos a isso, temos uma medida para compreender que o pensador primordial pensa o próprio ser baseado no desencobrimento e encobrimento.23

Heidegger aponta a luz e a escuridão como também local de morada do homem

diante de um essencializar a própria condição de o ser se dar. Ora, nesse caminho, o

morar do homem é sempre o sempre se colocar como o i-luminado, porquanto a

escuridão também o é. O homem e a escuridão são i-luminantes porque não são capazes

de, por si só, luminarem-se, de se fazerem se dando como luz. Na verdade, há de se

dizer mesmo que o homem e a escuridão que o acompanha são na mesma dimensão i-

luminantes e a-lucinados. Não são por si lúcidos. A lucidez só quem dá é a luz, a

mesma de Lúcifer. O homem, no vigor do mito que o lógos dá o tempo todo, vive sob a

égide de todo o projeto de advento de manifestação reflexa da luz. O mito, nesse

sentido, é o que dá a luz ao i-luminado, ao que é a-lucinado. Ambos vivem na escuridão

dos tempos. A cada clareira do lógos do mito, o homem se torna parte do que

compreende ao que hoje chamamos de luz, que no vigor do luminar faz com que toda a

humanidade se dê no e para o homem em sua morada nesta terra. A morada de todo

homem é sempre i-luminada pelo lógos do mito. O homem antigo nunca se permitia

viver fora da proteção luminante do mito porque sempre foi confidente dele (pois que

vivia em sua fidelidade) e, assim, sempre quis fazer parte do luminoso, isto é, do divino

na dimensão presente de toda a realidade que se in-corporava a ele. Ou seja: por dentro

do corpo, a luz do lógos pela voz do mito se construía e o matinha sempre junto a sua

morada, a linguagem. Estar i-luminado e a-lucinado é o modo de ser do homem. A-

lucinado, sem luz, o homem se i-lumina. I-luminado, o homem vive não só à busca da

23 HEIDEGGER, Martin. “A conexão entre mutoj e as deidades gregas”. In: Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, pp. 93-94.

Page 45: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

45

luz, mas sempre se colocando como disponível para ela. Isso ocorre numa disposição tal

que sempre para ela vive numa distância que é sempre a da proximidade. Viver o tempo

todo na casa da linguagem é estar in-serido na dinâmica do mito, enquanto este é

sempre o diá-logo que se coloca como fala na vida do homem. O homem, nesse sentido,

é o diálogo da luz com a escuridão. Nunca se colocando fora desse caminho. Na

dinâmica dos eventos que o humanizam, o homem é a conversa e o lugar em que dia e

noite se encontram para fazer nascer em todos os dias seguintes a voz do mito no ser de

todo homem. Dia e noite são a voz dialógica do lógos diante de sua história. A história

acontece no homem como presente e na presença da luz do dia com a escuridão da

noite. Neles, dia e noite, o homem se dá para toda a clareira advinda da luz de todos os

lógos. Quando, por essa conversa, o ente se dá a ouvir pela voz de todos os tempos, o

ser se presentifica como, para e na história do mundo. E o homem grego antigo sabia

que o vilarejo e a sua comunidade vivente, bem como a casa do ser e suas múltiplas

entidades, eram a voz da história se mostrando na verdade do mundo. Isso era o modo

de viver e dia-logar como o mito. O mito, quando fabula o homem, assegura a

compertinência de mostrar a luz da noite e a escuridão do dia como sua essência. Hoje,

o dia mata a noite que assim mata o dia. E o diálogo acontece, inclusive, na dimensão

das trevas. Na morte da luz e da escuridão, a con-versa não se dá. E as vozes não-

ouvidas são o emudecimento do mundo. Por isso, o mito não mais foi visto como

outrora. Perdeu importância tal dialogia. Con-versar, no entanto, com o dia e com a

noite, juntos numa mesma luz e sombra, é sempre se manter no mesmo verso. Versar é

estar no mesmo caminho, pois se destina para a mesma casa, a da linguagem. Versar,

dessa forma, é pôr-se no caminho que anda sempre dentro da casa do ser na qual o lógos

vive como um fogo a clarear. O mito, então, pela luz e pela noite, está sempre se

colocando como verso e re-verso. Como verso está sempre a cantar o canto das musas

Page 46: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

46

como lógos e mostra sempre o dentro onde mora; como re-verso está como re-torno

para o advento da luz que tende a luminar sua casa. É bom dizer a essa altura que luz

não i-lumina. Luz i-luminando está sempre na ausência de um vigor que é impossível de

se conformar como tal. Luz só consegue luminar. Por isso, o mito, a voz das musas que

são deusas dos cantos e dos diálógos dos dias e das noites do sendo do homem, é a

presença do divino, de toda a luz trazida aos olhos como vidência, previdência e

providência para os humanos na história que se dá como mundo. Como vidência, o mito

mostra o que é visto; como pré-vidência, o mito vê, anunciando num antes, o dia e a

noite; como pro-vidência, o mito ajuda o homem a ver o dia e a noite na casa do ser. E

ajuda, porque a luz, quando muita, cega.

Muita luz acontece quando há a presença de muitos i-luminados. A vigência de

luz se dá na necessidade de um luminar freqüente que encontra no lógos uma de suas

entificações como força de reunião. Diante do i-luminado, faz-se necessária a luz.

Diante da luz, coloca-se o i-luminado, porquanto a-lucinado. Estar a-lucinado é

condição de todo homem na vigência do Ser enquanto ente, enquanto sendo. O homem

enquanto ente é um a-lucinado. A-lucinado significa: viver na tormenta busca da luz, da

lumificação. A tormenta do ente entra em calmaria quando o lógos, no seu re-

colhimento, se faz como possibilidade de clareira do ser. Diante dela, aquieta-se; o ente

vive nas suas cercanias. Na tentativa de cercar a clareira, vive à margem da luz. Viver à

margem é estar ainda fora da luz, mas sempre na espera da oportunidade de viver

dentro. Estando dentro, o homem se entende como aquele que tem na linguagem a sua

própria casa. Essa mesma casa, a da linguagem, que é a do ser, o cerca e o faz nela

morar. A questão que se coloca para o ente é que ele nem sempre se reconhece junto à

luz, à clareira, à linguagem, à sua casa, ao mito. E, para o ente, nessa ignorância, ele não

sabe se ficou de fora e, portanto, se pode ou se consegue retornar ao vigor do lógos.

Page 47: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

47

Mas essa dúvida é uma herança dos tempos que o homem antigo, e, assim, o moderno,

mantém dentro de sua casa, sustentando a surdez diante da voz que fala o dizer do lógos

pelo mito. Heráclito, fragmento 34, disse o seguinte, a respeito da negação da escuta:

“Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta: presentes estão

ausentes”24 . Tal falta de compreensão mostra que, mesmo diante de qualquer fala, não

se tem a escuta que faria com que o homem sempre se apresentasse como presença

diante da fala do lógos, que fala na fala do mito. O mito é, para o homem, a vigência de

um lógos sempre a requisitar uma escuta tanto da fala dos deuses pela fala-canto-

rítmico-melódica das musas, como da fala do encanto do lógos, como linguagem,

reconfigurando o homem diante do ser. Por isso, o mito se coloca para o homem, por

tanto con-fabular, como a vigência do fabuloso.

Até agora o que se conseguiu, então, foi entender que o homem vive na fábula e,

con-fabulando, coloca-se no meio, dentro e entre. Isso ocorre porque con-fabular é criar

na fala o com; ele é o próprio falar. E, quando fala, o homem mitifica. Não está sendo

dito que toda fala é mito. Mas nela reside a possibilidade do mitificar. O homem é assim

mito do e no próprio homem. Sendo mito, não se quer dizer nem pensar que o homem é

ficção ou produto de um aparato ficcional, no sentido de sua não produção no real. O

que se afirma com tal sentença é que o homem, o único capaz de mitificar e de tornar

algo digno de permanecer na história do mundo como mito, é a via para o ser de todos

os mitos, haja vista o fato de todas as narrativas míticas, assim entendidas até hoje,

apontarem para algo próprio da dimensão do humano. Só no e para o homem, o mito é

mito, porque só o que pertence ao humano é mitificável e mitificante.

Não existe uma narrativa mítica sequer, clássica ou moderna, que não traga à

tona a dimensão do ser diante da apresentação dos entes que nelas vivem. Mas por que

24 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 67.

Page 48: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

48

acontece tal trazer? A resposta: o homem não consegue ser senão na dimensão do mito.

A dimensão do mito, no entanto, é a do fabular. O homem está na dimensão do mito

pelo e no con-fabular. Fabulando com, falando com, o homem faz de si o advento

iminente do mito. O primeiro ser, a saber, com quem o homem con-fabula é ele mesmo,

o mesmo.

O homem se mitifica num contínuo temporal que só para o homem converge.

Aqui se observa outro fato: o mito é de um tempo-todo-homem. O tempo do homem é o

do mito. A homidade do con-fabular mítico só se projeta como fábula quando

direcionado no encontro que visa o homem na vigência de um mýthos-lógos dado entre

a phýsis e o lógos.

Mas o que significa dizer que o tempo do homem é o tempo do mito? Aqui, urge

uma necessidade: a de entender tempo. Tempo é também cronos. Mas não só isso.

Tempo é, sobretudo, o lugar do encontro. E encontrar quer dizer que o momento está

guardado diante de e localizado todo para o homem no seu retorno. O contorno que

envolve o homem é, nesse sentido, o de volver-se para e com o seu tempo, não o tempo

demarcado pelos limites exteriores impostos pela cronologia, mas por uma história-

tempo-plenitude, a que o grego antigo chamou de kairós. Independente do que motiva

como força originária o sentido do kairós, importa aqui pensar, como desdobramento, a

dobra em que o homem se encontra. A questão do encontro acontece sempre e somente

para o homem. O homem é, antes, o que vive em desencontro. Por viver não se

encontrando, existe uma procura constante pelo encontrar-se. Um dos encontros do

homem consigo, mesmo na dinâmica da história, foi chamado de mito. O mito é o local

do encontro, porque reside como apelo de vida no tempo do homem. O tempo que vive

em apelo para o homem é o do momento que a qualquer instante a vida permite

desencadear. O homem diante e dentro do seu tempo está diante da posse de sua casa.

Page 49: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

49

Possuindo a casa, encontra-se no seu próprio tempo, que é o do mito. Seguindo esse

caminho, o contratempo é a instância em que o mito, diante do cotidiano ordinário,

distanciado do rito, mostra que o homem vive em desencontro. O mito, o tempo e o

homem pertencem a uma mesma dinâmica de tal modo imbricada, que um não se

realiza sem o outro. Todo mito é a presença sagrada do rito no corpo do homem. É

apresentar ao homem o encontro e o retorno à sua casa; a saber, seu próprio corpo, a

linguagem. O corpo que encontra o homem é o tempo como mito. O mito só se realiza e

se realizou na Antigüidade do homem porque foi para ser o encontro do homem.

No transcurso historiográfico moderno, no entanto, as sociedades letradas

providenciaram outras formas de simulação de encontros e, por isso, afastaram-se da

dimensão pregressa do mito, acreditando que os encontros se dão de muitas maneiras.

De fato, as maneiras são muitas e de ordens variadas. Entretanto, caberia considerar se

todo e qualquer artifício criado no transcorrer da história é o que comporta ao homem a

possibilidade do encontro. Por essa ocasião, vale lembrar que, ainda do mundo grego e

de outras sociedades, não só da Antigüidade remota, o homem viveu numa relação de

encontro do mito no corpo do tempo. Isso se dava porque a conformidade do mito,

porquanto advinda e ordenada pelo comportamento dos deuses em suas vivências

olímpicas e extra-olímpicas, era sempre a de atingir e a de dizer algo que, para o próprio

homem, fazia-se na e para a dimensão do humano. Tal experiência era o dar-se da vida

entre os mortais.

A fábula-mítica é discurso, fala. O homem, enquanto possibilidade de

manifestação das entidades do ser, coloca-se como aquele que, na con-fabulação, na

fabulação dos deuses, diz-se. Se fabular permite, pela fabulação, projetar o homem

também na dimensão do mito, o con-fabular é um discurso que, falando com, diz da

natureza do homem. O mitificar é a própria linguagem, pois mito é lógos. O rito-mito se

Page 50: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

50

faz constantemente na instância de possibilidades em que o ser se dá. Assim é que os

mythologoi, os contadores de mito, os mito-cantantes, os aedos, são a expressão que

mais representa o próprio condicionamento originário do lógos na dimensão do ser. O

homem, na vigência do lógos, é o rito-mito do ser na dimensão do ente, de um sendo e

num projeto que corre a despeito das forças de seu destino no seio da terra, pois o ser,

na dimensão do mito, sempre se diz num desvelar auto-velante. A propósito, sobre o

dizer e a fala, Heidegger pondera que:

Enquanto dizer, a fala pertence à rasgadura do vigor da linguagem, rasgadura perpasssada pelos modos de dizer e do dito, onde vigência e ausência se assentem, se consentem e dissentem, mostram-se ou se retraem. O dizer de múltiplas configurações e diferentes proveniências é o corrente na rasgadura do vigor da linguagem.25

Mas o que o pensamento de Heidegger sinaliza quando diz que a “fala pertence à

rasgadura do vigor da linguagem”? No caso do projeto do ser, enquanto inerente à

instância do mito, poder-se-ia considerar a fala do con-fabular também como o local

onde o homem se faz proprietário, numa reunião de identidade de todas as diferenças. A

linguagem detém como pertencimento a fala e todo e qualquer fabular, apontando

mesmo para o fabular que coloca o mito na condição de invenção, como poiéw.

O que se inventa é o que se dá a partir da linguagem. Só a linguagem é a

condição de pertencimento do dizer. Todo dizer pertence à linguagem, ao lógos,

enquanto manifestação da phýsis. O sentido que o dizer-mito con-fabula é talvez uma

das dimensões em que o ente ainda não tenha se dado conta com propriedade. Todo

dizer e fala do ser se mitifica com o e pelo rito-mito. As rotinas criadas na dimensão do

humano se dão na dimensão em que a crença em tais rotinas e a sustentação de todas

elas, enquanto se suportam como assentes, são rotinas na dimensão do mito.

25 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 202.

Page 51: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

51

Ainda que não se considere mais que os pensamentos e as articulações do

cotidiano estejam desvinculados pela dimensão temporal e cultural do sentido originário

das narrativas míticas, o homem, na fomentação discursiva de sustentação de suas

crenças, vive a realidade numa esfera que não é diferente da esfera mítica. E por que de

tal esfera não consegue se desvincular? A resposta decorre do fato de que o ser do ente é

o mesmo, porque o projeto de operacionalização na dimensão do mundo ainda é e será o

de estar inserido e vivente no âmbito da linguagem; e, sendo o ente, está na dinâmica

constante do lógos sempre vigente.

O mundo do ser é, desse modo, o lógos; e este é estar à disposição de todo

mitificar possível. A propósito, o homem não vive na dimensão do impossível enquanto

vive no desempenho de um lógos. O que o homem não diz é sempre uma possibilidade

e não uma impossibilidade da linguagem. O lógos, como vigor, é sempre o que permite

o dizer na linguagem do ser. Mas a permissão é sempre subserviente à disposição do

homem diante do real e suas realidades. Por isso, não se diz o que se quer. O querer

existente em todos os modos de dizer o dito depende sempre do que o ser consegue

dizer. A relação entre o que se quer dizer e o que se consegue é ainda subalterna ao

lógos diante das possibilidades de manifestação do ser enquanto ente. As entidades que

categorizam o homem no modo de ser ocidental geram inúmeras dificuldades nesse

sentido. Mas é também no e pelo sentido que a phýsis pressente e se ressente da força

do lógos como vigor da linguagem. É nesse ponto que Heidegger também coloca a

questão da “rasgadura do vigor da linguagem”. Conceituou-se o mundo ocidental. A

conceituação, entretanto, esmorece tal vigor. Nesse instante, a “rasgadura” se mostra

não como algo determinável, mas como aquilo que se coloca como a força de onde o

lógos se ressente.

Page 52: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

52

A pergunta agora poderia ser a seguinte: onde o lógos tem ressentimentos?

Como pode ele ressentir-se? Ressentir-se aponta para dois caminhos: um é o de se

retrair; o outro, decorrente desse, é o de se sentir dentro de si mesmo. O re-trair-se é um

viver em tração constante voltado para si mesmo, no mesmo; e é também viver na

tentativa de vasculhar os sentidos e caminhos velados da e na linguagem de toda e

qualquer fabulação dos mythologoi, dos mito-cantadores, dos aedos. O aedo é, assim, o

que sente e se re-sente, pois que o lógos assim se orienta na dimensão do ser, na

disposição dos entes, enquanto sendo. Por isso, não houve até então momento em que o

ser não existisse e se orientasse fora dessa tensão do sentir e do re-sentir. Sentir, no

entanto, diz: aquilo que faz e dá sentido; o que dá e serve sentido e vive disposto à

percepção de uma orientação; o que orienta é o que pertence a e dá oriente. O re-sentir

é, a princípio, e nesse sentido, o que vive do se re-orientar, na busca constante de uma

re-orientação. O que se mostra agora é que o ser, na dimensão da re-orientação, já

possui um modo de se conduzir, mas vive à disposição de modos outros que podem, se

puderem, dar outra con-dução. A con-duta, na dimensão do ser, sob essa perspectiva, é

o que coloca o lógos diante do homem. Estar na con-dução é estar orientado para, com e

na trilha do duto, na companhia do caminho, no caminho que é o do fabular: na reunião

do lógos, num sempre a dois.

O que se pode considerar agora é qual a importância da con-duta na construção

do mito? A possível resposta é: todo mythós-lógos é a mostragem de uma con-dução.

Não de uma condução qualquer, tampouco de uma mostragem aleatória. Mostra-se o

que de mais oportuno e condizente à manifestação de um ser-aí se pode deixar mostrar,

em função do modo como diz o que deve e pode ser dito. O dizer especial do mito não

faz a mesma in-vocação da linguagem ordinária, cotidiana. A sua especialidade consiste

em dizer para o homem algo que é de seu interesse.

Page 53: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

53

Certamente, dependendo do prisma moderno sob o qual seja encarada a

linguagem, ela se mostra, como sempre, sendo oportuna para o homem pelo fato de que

a ela é dado articular a engrenagem da vida cotidiana. Ela faz a roda da vida ordinária

girar em torno do eixo das ações imediatas, pragmáticas do dia a dia. Assim, ela atende

a uma determinada especialidade, cada qual a seu turno e modos de proceder. Mas essa

é uma configuração não pertencente à ordem originária da linguagem.

Nessa ordinária modernidade, as linguagens se articulam para obedecer e

desobedecer a ordens das mais variadas contingências, e são todas passíveis de uma

mensurabilidade e uma efemeridade constantes, próprias da emergência que cada

situação indica. Diante de tal postura moderna, como se poderia olhar para a linguagem

na condição do dizer dito por mýthos-lógos? Quando é que o homem articularia, então,

tal dizer? Diante do modo de ser ocidental moderno, a linguagem coloca o homem

diante do ordinário e produz um lógos que não vige na “rasgadura do vigor da

linguagem”. Há momentos, no entanto, dos mais estranhos, nos quais o homem se

espanta com o próprio dizer. Na sentença “Não é para se falar e agir dormindo”26·,

Heráclito aponta, a priori, para um inofensivo cotidiano e dos mais freqüentes.

Entretanto, se se perguntar o que está por trás de uma afirmativa de tal natureza, há de

se parar e de se adentrar pelos caminhos que ela conduz.

A fala na qual o ente se mostra como entidade e pela qual caminha expõe, dentre

outras leituras, que o homem costuma, em muitas ocasiões, falar e agir durante o sono.

Mas que fala e que sono são esses de que fala Heráclito? Se, por um lado, poder-se-ia

cogitar o fato de ocorrerem atividades humanas no estágio de latência do corpo, por

outro, ela faz pensar que o comportamento do homem costuma ser o de executar sua

existência como que em estado de dormência. Dormente, o homem vive na ausência do

26 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 79.

Page 54: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

54

ser, como que distante da vigência do lógos. O dormir de Heráclito aponta para muitos

caminhos, certamente. A dormência de tal dormir não é oposta ao fato de o homem se

falar e se agir dormindo, mas é a postura com que o homem moderno mais se orienta

diante da linguagem. Isso talvez traga alguma coisa acerca de como o homem até hoje

se mostra: ele se fala e se age dormindo. Mas o que é o falar-dormindo? O que é o agir-

dormindo? Heráclito não diz. Tentar responder a essas perguntas é tarefa que pode

servir de aventura.

Falar e agir não são atividades incompatíveis. Todo o agir, como poiéw, é o

dizer. Todo dizer, como poiéw, é agir. Não existe no homem a possibilidade de um se

dar sem a realização do outro. Ambos são intimamente ligados, visto que articulam o

mesmo, a saber: o mythos-lógos, o canto cantante no gesto memorável e divino dos

aedos. Quando o homem se encontra no mythos-lógos, agir e falar-dizendo se reúnem

no mesmo, como manifestação do ser, na dinâmica dos entes, enquanto sendo. Porém,

enquanto ser, apenas ficam, para o mundo moderno, as entidades com as quais o homem

se depara e as quais consegue entificar, em uma sina que persiste em acontecer diante de

seu próprio con-fabular.

Falou-se, até aqui, do agir e do falar, mas e o dormir? Quando, todavia, o

homem dorme? Ele dorme a todo instante, haja vista que, por muitas ocasiões, ele

mesmo permanece na dis-tração. Existe um tracionar, um vigor, típico da linguagem.

Heidegger a chamou de “rasgadura do vigor da linguagem”. Heráclito, de vigília. Só na

vigília da linguagem, do lógos como manifestação do ser, é que o homem se coloca

agindo e falando o dizer do lógos; só então ocorreu e ocorre na história do homem a

possibilidade vigente de ele mitologar. Aliás, o homem sempre esteve e está na

dimensão do mito. Estando ou não em vigília, o mito se manifesta e se dá de muitas

formas, ainda que a modernidade viva na recusa da idéia de que o homem de hoje

Page 55: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

55

acredita em mitologias. De certo, a natureza narrativa do mito não se mostra mais a

mesma, mas ainda se fundamenta no mesmo; ou seja, na linguagem.

Heidegger rememora esse mesmo quando, ao tratar do lógos, expõe:

Os gregos conheciam ainda uma outra [experiência] mais

antiga: a linguagem e a palavra como mu=qoj. Todavia, como mu=qoj, a palavra não tem força de recolhimento, para, por assim dizer, contrapor-se ao sendo e resistir-lhe; como mu=qoj, a palavra que vem sobre o homem, é aquilo em que se indicam e se interpretam dados e fatos de toda sua presença; não é a palavra em que o homem fala de si mesmo, mas a palavra que lhe anuncia o destino.

Como mu=qoj, a palavra dá a indicação e interpreta; como lógoj, a palavra intervém, esclarece a si mesma e ao homem. Lógoj, a linguagem, só se faz através e com a filosofia, isto é, no momento em que, ligado e pendente do sendo, o homem se levanta contra o sendo como tal, e de si o interpela, a saber, sobre o que ele, sendo, é. Entretanto, o lógoj originário da filosofia fica sempre ligado e articulado com o mu=qoj; a separação de ambos só se dá e se cumpre na língua das ciências.27

O que importa do texto de Heidegger é a dimensão de encontro entre mito e

lógos. Heidegger também acena para o fato de que o mito não possui força de

recolhimento. Mas por que tal afirmativa e o que ela quer dizer a respeito do mito? O

mito não se mostra como recolhimento, porque a tarefa a que ele se pro-põe é a de

indicar e inter-pretar, disse ele. No entanto, também disse que o lógos originário é

sempre articulado com o mito. Afinal, o que isso implica? Isso gera o entendimento,

então, de que o lógos é ainda e sempre a articulação de todos os mitos. Os mithologoi

são, nesse sentido, aqueles que vivem a articulação vigente de todo lógos, de toda

linguagem, tida no fabular de todas as fábulas para que, do encontro con-vivente do

mito com o lógos, o homem se coloque como o e diante do fabuloso. Viver em tal

vigência é estar no vigor da rasgadura, é estar em vigília. Mas que vigília é essa que

estava desde antes na fala de Heráclito? Pode-se entender que é um estar acordado,

27 HEIDEGGER, Martin. "A linguagem como lógoj e como mu[qoj”. In: Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; a essência da verdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 128.

Page 56: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

56

lúcido. A lucidez é estar diante e dentro da luz que a fala do mito clareia. O que ele

torna claro é uma das formas de, na dimensão de vigência dos entes, o homem acordar.

O acordar dos homens na disposição do ser é a possibilidade dos acordos da

fala-fabulante do mito. O acordar é estar desperto, é trazer para junto de si e, num estar

consigo, ser a lembrança da vivência na clareira do dia de todo o homem. Mas des-

pertar diz ainda de um chamar à espertidão, tornar e trazer à esperteza de toda

luminosidade da escuridão que a noite, sempre na hora oportuna, presta-se a dar pela

manhã, como aurora, a continuidade para que o turno da noite não se perca na e da

dimensão do dia do homem na vida do mundo. Assim, sempre que o homem desperta, o

que se abre é todo um lógos que confere as condições de acesso ao retorno da escuridão

do dia como noite e da noite como dia, trazendo à clareira da linguagem a forma como o

mito ainda se manifesta.

O mito se manifesta. O mito, o homem, a linguagem, o criar, tudo se manifesta

porque se dá. Toda essa disposição é algo que percorre as possibilidades de o mundo ser

mundo; e de o homem ex-sistir. O existir como se dá? Ex-sistir é estar disposto na

irrupção de possibilidade de o ser se dar.

1.5. O mito: o ex-sistir como sendo

O existir é o mundo do homem. O mundo do mito é o mundo sempre diante de

todo existir. Quando Hesíodo canta a sua Teogonia, ele não canta o canto do mundo dos

deuses. Mas o mundo do canto das musas canta, musicante, o mundo do homem gerido

e guiado pelos deuses. Assim, como Homero, que evoca tanto na Ilíada como nos Hinos

Homéricos a Hermes e a Afrodite28·, Hesíodo evoca as musas. Por que tal e-vocar? O

28 GRAMACHO, Jair. Hinos homéricos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 51 e 85.

Page 57: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

57

que se e-voca? A voz que canta é a das musas. Mas as musas cantam para que, sob o

apelo de Mnemosyne, sua Mãe, seja preservada a memória dos deuses e não só para que

haja a mera representação modelar dos homens sobre a Terra, mas para que, na

vidência, como culto na escuridão do ser, preserve-se a vida dos deuses do céu e da terra

e, de tudo que há dentro e fora-circundante a ela, preserve-se no seu entorno. A vida do

mundo é a própria maneira com que os homens se põem e se mostram, diante do

mundo, dos deuses, dos semideuses e de outros homens, como viventes na sociedade

em que habitam.

O homem, grego ou não, diante do divino, é sempre um homem a considerar,

pelos seus modos, o destino de todo homem, quiçá de toda a humanidade. A grande

batalha que se traçou no começo dos tempos históricos do homem antigo não foi

exatamente uma empreitada diante apenas de riquezas que faziam parte de ser mundo

exterior, mundo concidadão. O que era para ser levado adiante e, por isso, preservado,

era o modo como as culturas originárias de outrora se com-portavam diante de seus

próprios mitos e ritos, porque, a propósito, estes ainda não foram discutidos como tal.

Somente a posteriori, sobretudo a partir dos letramentos, de toda uma intervenção da

tecnologia da escrita, as sociedades passaram a encarar tais narrativas como mitologias

e acervos literário-ficcionais.

O homem grego antigo foi a vigência do mito nas sociedades que se sustentavam

diretamente por poderes, bênçãos e maldições advindas dos deuses. Deuses esses, hoje,

divididos em pagãos e não-pagãos. O mundo grego antigo teve essa dinâmica na

Antigüidade pré-letrada. O comportamento que se assumiu depois do maquinário do

alfabeto é que caracterizou o pensamento do mundo diante da realidade do mito, como

não-verdade, como falsidade, tal qual se entende hoje.

Page 58: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

58

No entanto, do comportamento moderno assumido, restará também uma

observação: o de que as realidades são vivenciadas a partir da instância sorrateira do

mito. O pensamento como mito vive na dimensão do fabuloso. É dessa fala que o

destino do homem não consegue escapar. Sempre e de maneira a sair de um rompante, o

fabuloso se mostra com ou sem rosto ao homem. Com rosto, o homem se dis-põe a dia-

logar; sem rosto, ele cai na perplexidade diante das peripécias da linguagem.

No malabarismo que a linguagem metafísica disponibiliza, o homem atual pensa

que não vai mais se deparar com a linguagem ainda se articulando na dimensão do mito.

Procedimento semelhante talvez tivesse sido o dos homens antigos que viviam na

dimensão mítica, por assim dizer. Mas não o foi de certo, haja vista eles nem sequer

entenderem a realidade como distinta da convivência com os deuses e com as deusas

que povoavam não só o mundo divino, como também o mundo humano. Vale dizer que

os deuses eram a realidade dos homens e também o seu contrário.

Na realidade do homem moderno, poder-se-ia indagar em que medida existe a

certeza de que suas disposições diante do real não apresentam um caráter de crença, que

poderia ser vindouramente encarada como mítica. Lida-se com a ciência atual como

quem rege o pensar moderno, mesmo sendo um artifício precário de estruturação do

mundo. Vale lembrar que quem mais se autoriza hoje a ser encarado como

mi(s)tificador é o estatuto científico, tido como a coisa/causa mais racional e objetiva do

mundo moderno, ainda que a cultura ocidental o tenha permitido. É claro que o método

científico não é constituído pelos mesmos motivos que montaram a pré-história do

letramento no ocidente. Os deuses eram a realidade do homem e não configuravam,

como num projeto de engenharia, o mundo divino sobre a terra. Articulavam realidade

no vigor de sua vigência, mas não maquinavam o modo como a crença nessa realidade

deveria se dar.

Page 59: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

59

No entanto, sob outras conformidades, o texto, tido como científico e ainda

todos os demais discursos que pelo mesmo intuito se inter-assinalam, coloca-se como

uma forma de mi(s)tificação metafísica da realidade. Pode-se, nesse caso, alegar, a

pretexto de preservação da racionalidade e do estatuto de cientificidade, haver muitas

diferenças no modo como o velho e o novo mítico-pensamento se apresentam.

As diferenças são, no entanto, e sobretudo, demarcadas pelo objeto que as move:

a possibilidade de diálogo com o sagrado do divino. No homem moderno, reza-se a

ciência no domínio da metafísica. No homem grego antigo, rezava-se o cotidiano junto

ao convívio com os deuses. Por isso, o que ocorre, todavia, e se coloca, talvez,

disfarçadamente, é o fato de o diálogo, que agora é permitido, dar-se com os caminhos

dos métodos científicos. Talvez se tenham modernamente substituído os caminhos dos

deuses pelos caminhos dos métodos. De qualquer forma, o homem continua a caminhar,

mais por dentro do que por fora da metafísica. O que se poderia perguntar é: existe

maior ou menor racionalidade e convicções no pensamento que se conformou como

mítico, ficcional, fabulesco, fabuloso do que no pensamento que se conforma como não-

mítico, não-ficcional, anti-fabulesco, ou não-fabuloso? Certamente dirão: cada homem

há de acreditar no seu tempo. Por isso, no que se crê, cada um se mantém, cada um

permanece, na ignorância do vigor da origem.

Mas, mais do que acreditar no tempo, é acreditar na sua própria crença. Porém,

crer na sua crença deveria ser sempre saber entender que o homem não consegue viver e

respirar um fôlego sequer fora da dinâmica da sua própria fé; pois na, com a e dentro da

fé, todos os homens se acreditam, todos os homens acreditam que acreditam e, na

própria dinâmica de entendimento comum a todos que se colocam em comunidade,

fazem-se diante de si a própria noção de humanidade. Mas a noção atual de humanidade

não se con-forma a partir do próprio homem e, em geral, o homem moderno tem

Page 60: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

60

formulado muito mal a sua própria fala, posto que não acredita desde há muito no poder

das palavras (o mesmo que o poder do mito). De modo que, não crer nas palavras é não

crer mais no próprio homem, e talvez não crer em si mesmo.

Arrisca-se a dizer que o homem é um des-crente perpétuo na modernidade. Mas

o que é estar na des-crença? É estar fora da dinâmica da crença. O raciocínio é

propositalmente tautológico, pode-se alegar. Mas essa tautologia diz que o homem saiu

de dentro da crença, porque não se coloca mais nela, porque não está mais na dimensão

da crença. E, se saiu, é porque, há muito e sempre, esteve sempre dentro. E hoje,

perdido, talvez, não saiba conviver (des)crendo efetivamente em algo. Com isso, há um

receio: o de ficar à disposição de qualquer artefato colocado na dimensão dos outrora

deuses; tenha, tal dimensão, o nome de ciência ou não, de objetividade ou não, de

metafísica ou não, de filosofia ou não, de fatos ou não, de real ou não.

O homem de há muito e sempre tem crido e não consegue ser sem crer. Aliás, o

homem também só fala, e fala que crê e que não crê, porque acredita no dizer que

através de si mesmo vem à tona e traz à baila o homem como música e memória de uma

instância que até então se nomeou crença. A voz que fala na fala do homem é a escuta

de uma voz que não mais tem sabido fazer o homem se apoiar ao longo dos séculos.

Mas existe uma procura sempre proveniente dessa mesma voz.

Há também quem acredite na fala do homem, hoje, como consolidada a partir de

outro parâmetro que não só o da crença e o da descrença: é o não-crente. Quase que

mortificando a história, pode-se aqui dizer que o homem ocidental fez o seguinte, como

escolha de percurso: na Antigüidade, o mito eram os deuses; na Idade Média, o mito era

o cristianismo em suas múltiplas conformidades; da Renascença até então, o mito é o

gênio científico.

Page 61: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

61

Há sempre, nesse momento, quem queira refutar tal idéia, alegando ser tal

divisão um absurdo: ora por rebaixar os deuses à realidade de outras épocas sequer

comparáveis, pois sequer não-existidas; ora por condicionar tanto a religião quanto a

ciência às insanidades mítico-primitivas e involuídas da Antigüidade. Isso é um

descalabro. De fato, é. Considerar os três tempos como um só é realmente descabido e

mesmo fora de propósito. O descalabro, contudo, é não entender que, por trás dessas

três dinâmicas históricas, mostra-se, cada vez mais patente, o mesmo. O mesmo homem

diante de sempre uma mesma realidade. O tempo do homem continua sendo o mesmo

tempo, a sua história – que se faz um contínuo, mas não continuada; todavia, mesmo

diante dos revezes, o tempo do homem é o do mito.

Page 62: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

62

2. A religião: o homem sem a memória do divino

O tempo do homem é o do mito, que é o tempo da phýsis. Essa sentença

demarca o modo como o homem antigo esteve sempre lidando com o religioso. Vale

notar que o assunto agora trazido não será apreciado tão somente pelo conceito

ortodoxo, vigente no mundo ocidental, acerca do que se entende por religião. O que se

quer é localizar o homem e sua relação com o divino, o sagrado e a religiosidade

existentes na dinâmica do humano, que é a do mito e a da linguagem.

Dizer que o tempo do homem é o tempo do mito não é proferir uma sentença

simbólica qualquer. A dinâmica do mito é a da religiosidade sempre presente na forma

como o homem grego antigo esteve lidando com o sagrado, pois o tempo do mito é o

momento em que se depara ao homem a construção do real diante da relação

experiencial com o sagrado.

O homem sempre acreditou no divino. Mesmo numa sociedade em que a cultura

ocidental institucionalizou a religião, há ainda resquícios de que o homem não consegue

se desgarrar, conquanto as instituições religiosas ocidentais criem o conflito para que

esse apartar se dê por completo. Muitos crentes atuais, judaico-cristãos, meio que num

conflito a se instaurar entre a vida tida como profana e a religiosa, deparam-se com a

vivência junto ao extraordinário, mesmo pelas chamadas crendices, assim denominadas

por terem menor valor de culto ou menor representatividade religiosa frente à

mentalidade ortodoxa ocidental.

Mas, independente disso, o que importa notar é o caráter da presença do sagrado

na ordem do mundo junto à realidade do homem. O homem é um ser iluminado, já se

disse isso aqui. Na antiguidade homérica e pré-homérica, o homem esteve, talvez com

uma freqüência maior, diante da experienciação com o sagrado. De acordo com Walter

Page 63: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

63

Otto, há uma dificuldade atual em se entender tal realidade e disposição. Ele argumenta

dizendo o seguinte:

Só temos que esclarecer o que significam esse antropomorfismo

e seu triunfo sobre todas as outras formas. Ele não é propriamente uma novidade, pois sem dúvida era comum em priscas eras, junto com as representações teriomórficas; mas tornou-se, então, única e exclusiva. Com isso, a nova fé se destaca decididamente da antiga.

[...] A filosofia religiosa de nosso tempo prefere ignorar essa

concepção do divino. Sobre a influência de uma religião totalmente orientada para o transcendental, estriba-se no sentimento de aflição da alma e no exemplo de religiões orientais voltadas, acima de tudo, para o salvífico; por isso, só espera esclarecimentos válidos a respeito do que é sagrado de comoções de ânimo e de arroubos extáticos.29

O entendimento do mundo religioso moderno sente dificuldades para entender a

dinâmica da sua própria religiosidade. De tal modo isso ocorre, que ela se faz valer de

imagens simbólicas que as mais das vezes não conseguem sequer viver a experiência

com o próprio sagrado, fato totalmente contrário ao que se deu com o homem homérico

e, sobretudo, pré-homérico. Nesse momento da vida, o sagrado e o homem eram uma e

mesma coisa. Não havia uma distinção entre a vida religiosa e a vida “profana”, isto é, a

vida humana. A vida humana era a vida divina e a vida divina era a humana. O homem

e o divino viviam em contato contínuo sempre na dinâmica da experiência vivencial e

da construção das realidades do real. A vida do homem era rezada pelos deuses

porquanto, a cada ação humana, o homem estava sob a invocação do deus que iria

reger-lhe os passos, orientando-o para o fortúnio e o infortúnio das suas ações. Não

existia o sentido de que para algumas ações da vida cotidiana era necessária a invocação

do divino. Nas suas ações, o divino era freqüentemente invocado porque o homem sabia

do entrelaçamento de sua vida com o destino que a divindade deveria dar aos caminhos

do mundo. O curso do homem era rezar a reza dos deuses para que, numa aliança sem

29 OTTO, Walter Frederic. “IV. A essência dos deuses”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 149.

Page 64: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

64

igual em sua história religiosa sobre a Terra, esse mesmo homem estivesse a crescer e a

se engrandecer sob a luz do divino e fizesse com que o divino se divinificasse ainda

mais na história dos tempos, que é a história originária do religioso.

A experiência com o divino é algo que desde muito tempo ocupou o

entendimento do homem nesse mundo. Acredita-se haver equívocos consideráveis até

agora. Criaram-se apartes entre o homem e o divino de tal modo que não se conseguiu

mais fazer com que ambos se reencontrassem e fizessem desse encontro a forma de

convivência que pudesse se mostrar não como a conveniente, mas como a que talvez

deveria ter se dado até os dias em que a humanidade, ocidental ou não, vive hoje.

O certo é que, mesmo com todos os desacertos com deus, o homem sempre

tende a considerá-lo como presente em muitas instâncias e circunstâncias de seu

cotidiano, seja por uma cultura religiosa judaico-cristã, muçulmana, budista, espírita,

umbandista, candomblecista etc. Há momentos em que o homem sempre se coloca a

espreitar a necessidade do divino. O problema nesse aspecto é que o homem passou a

lidar com o divino a partir de instâncias em que haja uma necessidade de proteção da

divindade da qual ele carece em alguns momentos de sua vida. A auto-suficiência no

homem não o coloca mais na dimensão legítima do divino. O homem atual o trata como

instrumento de serventia para que algumas realizações pessoais sejam efetivadas, ainda

que por apelo do miraculoso diante de dificuldades tidas como reais. O divino não mais

dignifica o homem, mas empresaria e/ou patrocina alguns de seus raros momentos

cotidianos. Dessa maneira, o divino não participa mais do homem, mas de suas

realizações. O homem não convive no meio do divino em relação constante com toda a

divindade. As divindades atendem o homem em tal ou tal atividade, dependendo do

apelo do qual ele se sinta debilitado. Assim, não existe relação entre os homens e o

divino, mas sim uma relação comercial em que as preces, as súplicas e invocações, os

Page 65: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

65

transes são costumeiramente vivenciados como numa relação comercial qualquer. Só

que nessa relação, o divino “atende o seu humano cliente” com a ventura de ter –

quando se tem – o pedido do milagre atendido divinamente. Esse é o comportamento

que, via de regra, o homem ocidental assumiu, sobretudo, desde o advento da religião

como instituição. Os pedidos são feitos ao Deus ou aos deuses, aos santos, aos exus e

aos orixás e outras entidades espirituais transcendentais quaisquer para que alguma

benesse seja operada na rotina do cotidiano, ou mesmo como promessa de uma bem-

aventurança post mortem. No entanto, a realidade do divino parece ser bem outra, ainda

que se tenha esquecido como o homem é divino em sua essência.

O esquecimento se firmou a partir, principalmente, do momento em que o

homem deixou de fazer a experiência da vida como a experiência pertencente a toda

divindade que se coloca como presença. O divino é toda e qualquer manifestação do

homem sobre a terra. Existe uma interdependência entre o homem e o divino já

esquecida. É interdependência, mas não subserviência. No entre-depender, homem e

divindade são o mesmo. O mesmo que se quer aqui não esquecer.

2.1. Para uma onto-poética do humano na luz do divino

O curso do homem é o percurso da terra. O homo sapiens, assim designado, diz

que sua origem é a terra (do latim humus). O homem é aquele que se levanta da terra.

Mas se levanta em direção a quê? A direção é o destino do homem. O que a terra faz é

dar-se para o nascer do humano. Ele, assim, nasceu dela, vive o pisar sobre ela e depois,

no fim da vida, para ela retorna. O homem é o que vive o entorno e no contorno da terra.

A princípio, dela nunca deveria se perder. Mas, como nasce da terra e sobre ela se

conduz pelo caminho, o homem engendra sua saga sobre o solo deste mundo. A direção

Page 66: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

66

que ele toma é a de, ao sair da terra, encontrar com os céus, no encontro com o sagrado.

O céu é seu horizonte desde o seu nascimento. Saído da terra e protegido pela graça dos

céus, o homem vive sob a proteção do divino. Ao sair da terra, encontra-se com o

sagrado. Modernamente, poder-se-ia dizer que essa é a sua religião. No âmbito de tal

religiosidade, o homem segue o seu destino.

É bem verdade que o termo religião, tal como se entende hoje, não existiu

durante muito tempo na Antigüidade. Apenas a partir do advento do cristianismo, é que

se pode pensar na existência desse termo com a interpretação que a ele hodiernamente é

dada. Benveniste esclarece:

Não existe – é uma constatação imediata – um termo indo-europeu comum para “religião”. Ainda, historicamente, diversas línguas indo-européias são desprovidas desse termo, o que não é de surpreender; é a própria natureza dessa noção que não se presta a uma denominação única.30

Assim, é oportuno caminhar pela trilha da religiosidade do homem sem pensar o

termo religião tal como hoje é concebido. Mas a idéia do religioso, do sagrado, do santo

nunca foi distante da realidade do homem; ao contrário, sempre esteve muito mais no

seu cotidiano do que depois do advento da religião como instituição. Não havia a

distinção entre o sagrado e o profano. Inicialmente, o sagrado era o homem, nunca

apartado a priori do divino.

Sobre o termo religião, há entendimento de que seja proveniente do verbo latino

(re)ligare; o que é um equívoco. Na verdade, religião está comprometido historicamente

com o verbo latino (re)legere, ao qual pertencem também derivados como religious e

lego. O mesmo Benveniste é quem diz que “Cícero que...liga religio a legere, ‘colher,

congregrar’, a outra (definição) por Lactâncio e Tertuliano, que explicam religio por

30 BENVENISTE, Émile. “Religião e superstição”. In: O vocabulário das instituições indo-européias (Vol. 2). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 268.

Page 67: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

67

ligare ‘ligar’”31. O que religio designa realmente é a preocupação de Benveniste. A

preocupação aqui é já atentar para o fato de sua implicação na dimensão do ser do

homem. Se religare/religio é o ponto de partida, é preciso notar o que ele já pode dizer

sobre a essência do homem. Vindo de legere, “colher, congregar”, pode-se pensar que o

homem, como o que vive da terra e sobre a terra, vive a colher os caminhos de sua

escolha. Mas essa interpretação pode ser por demais apressada e não diz muita coisa. O

que se quer pensar é a necessidade do homem em estar sempre em busca do e no

encontro com o divino, de tal modo que é ele mesmo, o próprio homem, que se

consagra com o divino, por causa da urgência vigente de todo o sagrado sobre a terra.

Aliás, falou-se da terra, que o homem dela surge. Nesse sentido, o homem não realiza o

seu nascimento. O homem não nasce, nunca nasceu, nunca nascerá, tampouco morrerá.

Não existe morte e vida, tal como hoje se entende. O homem é nascido pela terra e para

ela volta. O que se percebe é a correspondência do homem ao movimento da phýsis.

Ela, pelo seu mostrar-surgente, como acontecimento primordial, que dá da terra a

semente para a planta plantar nova semente, faz o mesmo com o homem, já que, no

acolher-se como terra, semeia a planta e todas as vegetações. A terra, pela phýsis, planta

o homem para o seu destino, que é voltar para a terra. A terra é, na verdade, quem colhe,

re-colhe, es-colhe o homem para os desígnios do mundo, do divino.

Quando a terra es-colhe o homem para dar testemunho do nascimento, ela se

mostra como terra-mundo. Ser terra-mundo do e para o homem é fazer com que ele se

mostre para o divino. Essa escolha da terra, quando colhe o homem para seu plantio,

mostra que o homem, tal como vegetação, viverá sob a proteção e os desígnios do

sagrado, do(s) deus(es), do divino. A planta, quando da terra nasceu no seu nascimento

inaugural, não foi plantada pelo homem. O homem também não se plantou como tal. A

31 BENVENISTE, Émile. “Religião e superstição”. In: O vocabulário das instituições indo-européias (Vol. 2). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 270.

Page 68: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

68

terra o semeou. A terra deu o homem para a luz. O encontro desse nascimento foi fazer

com que o homem se desencobrisse, em sua alétheia, e se visse com o divino, num

encontro sem igual. Deixá-lo na luz do mundo foi já o mostrar para o homem que fora

do divino não há como viver, não há como morrer. O es-colher da terra, no entanto, tem

um desígnio. Ela, desde que fez nascer o homem, deixou-o sempre em seu território,

para que do humus permanecesse em sua humildade, em sua humanidade, que é a de um

dia ser re-colhido pela própria terra. O destino da terra é tomar conta do homem, tarefa

que executa junto à proteção dos deuses. Durante a vida, o homem é a-colhido pelo

divino e, durante a morte, re-colhido na es-colha da terra. O movimento da terra é o

movimento do divino que ora colhe, es-colhe, re-colhe, a-colhe, en-colhe o homem em

seu seio. Por isso, o homem é um ser terrestre, pois não vive nem sob, nem sobre a terra,

mas vive todos os destinos da terra em seus caminhos. O homem é num só corpo o

terrestre e o terreno. Pelas vias e veias do solo, segue os sinais da terra, perfaz o terreno.

O homem nasceu do meio da terra e no meio dela vive, entre ela e o divino. O homem é,

então, o lugar do meio, o entre. Mas no meio da terra, fica justo no meio do divino.

Todo seu conteúdo está contido no corpo da terra e do divino.

Outro aspecto que vale notar é o nascer da terra. Poder-se-ia perguntar quem dá

para a terra a sua disposição para o nascimento do homem. A terra é o próprio nascer

enquanto phýsis. A terra executa sempre a disposição do emergir. Mas, na emergência,

sempre deixa algo ainda a ser emerso e requisita o homem na morte como imergir. A

submergência do homem nunca está além da terra. Nesse sentido, ele nunca pode, nem

deve, porque não é da sua natureza, transcender. A submergência do homem não é

voltar para a terra, para debaixo dela. Voltar para debaixo da terra significa voltar para a

terra, na sua imergência, mas no limiar de novas emergências. Morrer, voltar para a

terra, então, diz outra coisa, talvez a mais clara: morrer é voltar para a humanidade do

Page 69: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

69

homem enquanto humus, colhido e re-colhido na es-colha de sua humildade. Morrer é

ainda continuar no seio da terra, nunca distante do mundo dos deuses. Sobre a terra,

sempre surge o divino como amparo e luz do mundo dos homens. A conhecida frase “a

mãe deu à luz o menino” significa, neste entendimento, então, o seguinte: a mãe-terra

deu o homem para a luz, para o divino. Isso indica mais uma vez que o homem é

nascido para o encontro com o seio de deus, na luz deste deus, luz que ilumina o homem

desde o seu primeiro contato/encontro com o mundo.

2.2. O divino: o homem entre o céu e a terra

No começo, Caos reinou sozinho. Depois, como começo do mundo surgiu Gaia,

a terra: “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também / Terra de amplo seio, de todos

sede irresvalável sempre, / dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, / e Tártaro

nevoento no fundo do chão de amplas vias”32 Esse é o começo do mundo. É terra, Gaia,

quem o inaugura. Depois dela, é que tudo surge no seio do mundo. O homem inclusive.

O homem é inaugurado pela terra. No seio dela, nasce, cresce, vive os adventos do

mundo e morre, retornando para o seu meio, a própria terra. Isso diz a fala-mito da

história para o grego pré-homérico. Já a narrativa judaico-cristã diz: “No princípio,

Deus criou o céu e a terra”33. Há diferenças entre elas. Mas importa notar que a terra

aparece logo no primeiro instante da criação. No mito grego, nasce do Caos e dá origem

à Terra, ao mundo; no mito judaico-cristão, faz parte do primeiro dia da criação, junto

com o céu. Só depois, então, os demais entes do mundo surgem.

Terra é a mãe que deu luz ao mundo. O mundo, todo em luz, iluminou tudo que

nascesse do ventre de sua grande-mãe, a terra. Sabe-se que “Sem concurso de macho, 32 HESÍODO. “Os Deuses primordiais”. In: Teogonia: a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003. 33 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora PAULUS, 2002, p. 33.

Page 70: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

70

isto é, por partenogênese, Gaia deu à luz Urano (o céu), Montes e Pontos,

personificação do mar.”34. O homem quando nasce da terra e sobre a terra já está sob o

céu. Isso possibilita a leitura de que o homem, ao nascer, já está sob a proteção de céu e

terra. Aliás, sabe-se também que terra e céu (Gaia e Urano) se unem e, em seguida,

tornam-se os geradores dos Titãs. Isso mostra que tudo se reúne no vigorar da phýsis. O

homem, então, nascido da mãe-terra, Gaia, se encontra junto ao sagrado céu. Sob a

proteção também do céu, o homem estava destinado na sua terra.

É possível daí entender que a vida do homem é organizada pela terra, mas vivida

sob a proteção do céu, na sua guarda, no seu cuidado. Quando, então, vão surgindo

todas as divindades, o homem já está sob a terra. Desse modo, o homem não é o filho de

deus algum, mas o filho da terra, que nela e por ela cresce. Os deuses são filhos de

entidades orgânicas originárias. Os deuses são gerados por deuses para cuidar do mundo

do homem e seus afazeres.

O homem, nesse sentido, não é o divino, mas faz com que o divino exerça sua

divindade sacrossanta na relação de proteção e orientação dos destinos do homem.

Neste aspecto, ele é aquele que participa do divino, na medida em que executa as

atribuições e as organizações do mundo sob a vigília dos deuses. Muitos são os relatos

homéricos e não-homéricos, de Hesíodo e poetas pós-homéricos, que narram a relação

dos deuses com os homens, diante das interferências constantes no mundo dos mortais.

Tanto a Ilíada quando a Odisséia estão repletas desses relatos. A intervenção divina é

sempre a marca da presença do divino na vida do homem. O imortal rege o mortal35. O

imortal vive o mortal e vice-versa. Nessa convivência, o homem participa da 34 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p. 461. 35 OTTO, Walter Friedrich. “Ser e acontecer à luz da revelação divina”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 156. O texto diz: “A divindade não influi do além no íntimo do homem, em misteriosa conexão com a sua alma. Ela é idêntica ao mundo, e nas coisas do mundo vem ao homem quando este vai a seu encontro e participa da sua vida emocionada. Este não a experimenta por via de introspecção, mas lançando-se ao mundo, captando, agindo”.

Page 71: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

71

imortalidade dos deuses quando adere a seus vigores e suas ordenações. O mundo dos

deuses só se completa na possibilidade de execução e vivência do homem junto à

experiência do divino. Nessa época, o homem, sobretudo o grego antigo homérico e pré-

homérico, sabia, porque vivia, a experiência do deus, sempre requisitado à presença

diante de alguma necessidade emergencial frente às grandes tribulações da vida. Aliás,

aqui vai uma correção. A vida do homem sempre foi entendida como a sua maior

tribulação. Tudo que dela participava se dava como de extrema importância, de modo

que o divino sempre viveu junto ao homem diante de suas, aparentemente mínimas,

necessidades. Fato curioso, que talvez não tenha sido notado com tal ocupação, é a

constância de orientações com que os deuses orientam os heróis e não-heróis homéricos,

fossem eles Aquiles, Heitor, Pátroclo, Ulisses etc. Em muitos casos, o que se vê são os

deuses sendo os articuladores de muitas das diretrizes que o homem deveria tomar

naquele momento. E, as mais das vezes, segundo a visão moderna, poder-se-ia entender

o evento em que o herói recebe auxílio por demasiado banal. Talvez pareça ser isso,

quando se olha para a distância em que tal intervenção existiu. Mas não é esse o tom das

mediações divinas. O homem, assim mediado pelos deuses, coloca-se na realidade

fazendo a experiência do divino, experiência sempre a lhe impulsionar e a provocar a

expectativa de que, junto à divindade, sua realidade se mostra como o real se dando em

sua sacralidade e sacralização.

Vale notar que os homens, sofrendo a intervenção dos deuses, não são

marionetes36 à mercê de um destino que eles mesmos não podem traçar. De fato, o

36 OTTO, Walter Friedrich. “Ser e acontecer à luz da revelação divina”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005.p. 156. Walter Otto fala o seguinte acerca do fato de os homens não serem marionetes os deuses: “O homem não é mero instrumento dos deuses, nem a existência humana se reduz a palco de atuação dos divinos. É um ser que se impõe agir por si mesmo. A vivacidade do homem responde ao milagre do mundo encantado que também o encanta. A pergunta sobre onde acaba o homem e onde começa a divindade não pode ser respondida porque a fé tem raiz na experiência de que ambos se tocam e se conformam um ao outro.”

Page 72: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

72

homem não pode traçar o destino sozinho37. Mas o que importa observar, além das

impossibilidades diante de rumar contra o destino, é que, vivendo na intervenção dos

deuses, o homem faz a experiência de suas decisões e de toda a sua vida junto à

realidade deles, o divino. É nesse aspecto que o homem é divino na Antigüidade grega e

em outros modos e conformidades de experiência com o divino. O homem divino é

aquele que conhece o divino, que faz junto a ele a sua própria experiência – tal como o

“homem amistoso é o que ‘conhece o amigável’”38. Isso tudo se perdeu quando o

sagrado se institucionalizou como religião. Todas as vivências são dadas a partir do

divino. O homem precisa do canto e do encanto do sagrado para que o segredo da vida

se faça como e com o divino, a partir de realidades e realizações que mostram ao

homem o que é ser divino. A experiência do divino é a do homem; a do homem é,

então, divina. Nunca antes e depois no mundo, o homem entendeu tão veementemente a

presença do divino na realidade do mundo. Nesse sentido, pode-se compreender um dos

sentidos sobre os quais se diz: o homem é sagrado; o homem é divino.

Experiência completamente adversa é a que ocorreu, infelizmente, para o

homem moderno, a partir da leitura judaico-cristã acerca do divino junto ao homem. O

homem se separou da divindade. Ela foi colocada como o transcendente, o inatingível.

A experiência grega antiga do divino era a do aparente, a da aparência, porquanto o

deus aparecia na vida do homem e o homem na vida do deus que viesse a colaborar ou a

impor empecilhos na vida humana. O aparecimento de um ao outro era a forma de o

homem fazer e entender a experiência do real, tornando a realidade em múltiplas

realizações. Nessa experiência da intervenção, em que um freqüenta o outro, o homem

fazia a vivência de sua essência dentro do real, configurando a sua realidade. Diante das

37 Idem, p. 237-260. Nesse último capítulo, “Destino”, bem como em anteriores, Walter Otto elenca uma série de passagens, sobretudo, homéricas nas quais se mostra o registro de como os deuses atuavam junto aos homens orientando-os para o seu destino. 38 Idem, p. 161.

Page 73: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

73

escolhas e dilemas preparados e sugeridos pelos deuses no cotidiano do mundo, ele ia

percorrendo os seus caminhos sobre a terra, para que um dia a ela retornasse. Nesse

percurso, sobre a terra, junto à intervenção dos deuses, o homem vive o aprendizado do

real, fato comum a todos que entenderam o que era estar sob a proteção do divino. Os

deuses, nesse sentido, fizeram com que o homem entendesse, porque vivendo, a

realidade do mundo. Nesse entendimento vivido da realidade, o homem grego foi o que

até hoje se fez modelar para toda a humanidade porque, pelo modo de conjugação com

o divino, conseguiu interpretar e apreender a realidade, norteando todo o mundo

ocidental. Mesmo que com reservas e ponderações da parte de alguns, são Homero,

Hesíodo, Euclides, Heródoto, Pitágoras, Parmênides, Heráclito, Anaximandro,

Xenofonte, Ptolomeu, Sócrates, Platão, Aristóteles, Sófocles e tantos outros que o

mundo moderno tem como referência e reverência. Assim, evidencia-se que as

tecnologias modernas ainda não fizeram, nem realizaram, nem rezaram a experiência do

real tal como a fizeram esses gregos, cada qual a seu modo e dentro de suas diferenças.

2.3. A santidade do homem: a onipresença do deus

Walter Otto explica que, com a experiência do homem junto ao sagrado,

“Estamos diante de um protofenômeno da atitude religiosa. Seja como gesto, ato ou

palavra, ela corresponde ao desvelar-se do ser sacrossanto da divindade.”39 O

protofenômeno que está diante dos olhos de qualquer um é o fato de que o religioso, o

sagrado, o divino, circunda a vida do homem no mundo. Se decorrente do mito ou não,

as manifestações do divino são patentes. O homem nunca deixou de estar com deus.

Essa sentença é antiga e se lê de muitas maneiras. Uma delas é a de se pensar que o

39 OTTO, Walter Friedrich. “A manifestação originária do mito”. In: Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 42.

Page 74: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

74

homem está sempre sob a proteção do divino. Talvez essa seja a mais comum. Com

isso, o que se nota mais uma vez é a presença do divino no homem. A pergunta que

poderia surgir desde sempre é: por que o homem sempre esteve em busca do divino? E

mais: por que o divino sempre se coloca como uma necessidade imperativa na vida do

homem? A resposta, das mais imediatas, tenta mostrar que a realidade desse mundo não

é suficiente para dar conta do mundo no cenário da vida. Daí, é comum pensar que o

mundo só se completa quando o homem, por alguma infelicidade ou fraqueza, não se

realiza com os elementos presentes no mundo e busca explicações onde não deve, pois

que nessa hora tenta responder às suas necessidades materiais e concretas com

figurações abstratas, razão pela qual recorre à imagem de santos, de santas, de exus, de

orixás, de Cristo, de Deus, de espíritos benfeitores e malfeitores etc.

No entanto, observando essa busca e essa mesma explicação para tal

questionamento, poderia ser observado o fato de haver sempre um encontro que, se não

é sempre gratuito, é, ao menos, fortuito. Se a realidade de fato não se coloca como

suficiente, a ponto de ser explicada pelas suas entidades divinas, sagradas, o que se

poderia entender é que o mundo dos homens não se dá por completo somente com o

humano. Ele precisa do divino para completá-lo. Mas não é um completar que parece

representar a coisa faltante. É um completar no âmbito do pertencer. Pertence ao mundo

o divino, e ao divino o mundo. Existe sempre na presença do mundo a onipresença do

sagrado. Os homens gregos antigos a vivenciaram como ninguém. Na presença do

homem, está a onipresença dos deuses. Para cada homem, um único deus se coloca

como o que vai contribuir para a ação no real, conferindo ao mundo as suas realidades e

realizações.

No mundo judaico-cristão, Deus, o único, é onipresente. Na sua univocidade e

na sua unidade, Ele reúne todo o real do mundo. A leitura judaico-cristã não é essa, mas

Page 75: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

75

não impede que haja aqui a provocação de uma releitura. O homem não entendeu a idéia

de onipresença que também se coloca como possível para esse Deus único. A

onipresença confere também a possibilidade de o divino estar sempre no homem,

porquanto sua presença envolve todos os humanos, os que são da terra. Se está em todos

os lugares, não precisaria a princípio ser evocado. Está sempre na presença do homem

como força inspiradora de todo o seu agir, que se dá como poiéw. O homem continua

envolto a um agir humano-divino. O problema que parece se impor não é o

distanciamento do divino na vida do homem moderno, mas um distanciamento que se

mostra cada vez mais distante. A experiência com o divino bem poderia se dar até hoje

como se deu para o homem grego. Mas não se dá. E não se dá mais, não pelo motivo de

uma mera troca de uma mentalidade monoteísta que passou a viger aniquilando a

mentalidade politeísta grega. Aliás, o que menos interessa aqui é a discussão sobre a

existência de uma religiosidade monoteísta ou politeísta. O que importa é a experiência

com o sagrado. Assim, o que há de se observar é que o homem moderno não faz mais é

a experiência com o sagrado, sobretudo quando institucionalizado e regulamentado com

pró-formas e liturgias que cada vez mais não correspondem ao convívio com o sagrado.

O que falta é a experiência do convívio, tal como o homem poderia, talvez, experienciá-

la. Na falta dessa experiência, falta tudo ao homem. Como reflexo dessa falta na

modernidade, falta o humano e o divino. O homem vive na procura do divino sempre

que ele vive em desencontro com o humano, com a terra. No desencontro com a terra, o

homem vive na falta. Falta que não é o pecado, mas é a dessacralização típica do

homem moderno. O homem dessacralizado é o homem com falta de sua terra, de seu

terreno, de seu encontro com o humus, a humildade, a humanidade. É o homem com

falta de homem que o afasta do divino. O afastamento do homem junto a si mesmo é o

acontecimento que fez com que, no percurso de sua história deixasse de acompanhar o

Page 76: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

76

seu destino histórico. Chegou-se, então, no momento em que ele, não sabendo viver e

lidar com a experiência da presença do divino, não soube viver e lidar com ele mesmo.

Isso é também o que quer dizer o pensamento de Heráclito no fragmento 72: “Do Lógos

com que sempre lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem

estranhas”40. Essa distinção, entre ele e o divino, representa o maior desvio do homem

sobre a terra. A dessacralização do divino dessacralizou o homem em sua humanidade.

O destino conformado foi o de um desvio histórico, que para voltar a se conformar, a

tomar a forma da companhia e do acompanhamento com o divino, requisitaria a simples

inspeção de experiência com o deus, fato que hoje não mais se dá com a mesma

vivência.

Essa falta do homem, que é a falta do sagrado junto ao homem, acarreta algumas

dificuldades na releitura da onipresença, mesmo diante do Deus judaico-cristão. Disse-

se que a onipresença aponta para uma convivência junto ao homem em todos os lugares

onde o homem esteja nessa terra. Desde o seu nascimento até a sua morte, esse Deus

está junto ao homem para que também este faça de sua vida a vivência da travessia no

período de vigor do corpo trabalhando, cultivando e agindo sobre a terra.

A onipresença dos deuses gregos, diz Walter Otto, implicava um distanciamento,

porquanto são mortais, e não imortais. No entanto, ele diz: “A serena distância dos

deuses não exclui o que nos é mais familiar: sua onipresença, na verdade uma presença

tão imediatamente sensível como em nenhuma outra religião antiga podemos encontrar”

41. E ainda complementa mais adiante o raciocínio: “os remotos bem-aventurados são os

sempre próximos, em tudo operantes; os sempre próximos são os remotos bem-

aventurados. Não se dá uma coisa sem a outra. A inatingível lonjura faz ser o que é a

40 Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 79. 41 OTTO, Walter Friedrich. “A onipresença dos deuses”. In: Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 64.

Page 77: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

77

proximidade.” 42 Aqui se observa a união originária que faz do homem um ser divino. A

proximidade dos deuses junto aos homens, tornando-os, pelo agir, divinos, provém

justamente do distanciamento enquanto deuses. Assim, pelo distante que vive na

proximidade da experiência, o homem grego antigo sempre realizou o seu agir junto aos

deuses. Walter Otto, sobre o agir humano, diz mais: “Também em situações de outra

natureza (Otto se refere à atuação dos deuses no agir do homem e cita a luta decisiva

entre Aquiles e Heitor) o fazer humano é propriamente um ato divino. Precisamente

onde nós enfatizamos a decisão autônoma do homem, atribuindo-lhe o máximo de

valor, Homero vê a manifestação de um deus” 43. Sendo o agir humano executado pelos

deuses, o agir humano é divino. Isso é diferente de entender que o agir dos homens é o

agir dos deuses. O agir dos deuses é que atua no agir humano fazendo deste agir divino.

Ora, se é possível entender isso com relação ao homem grego antigo no que diz respeito

a sua religiosidade, não é de todo inconveniente a releitura do distanciamento que gera

cada vez mais distância entre o homem moderno e o Deus único.

Atualmente, já foi dito, o que acontece diante da dessacralização do homem é

que esse mesmo homem não deixa mais deus agir. Fora de atuação, deus se encontra

fora do homem. Fora do homem, tem-se a falta do divino. A falta do divino é a falta do

homem que faz da distância entre o homem e Deus cada vez mais distanciamento. A

esse movimento que provocou o afastamento de Deus, a modernidade deu um nome

bem conhecido, chamou-o subjetividade. Na subjetividade, pensa-se o homem como

cada vez mais senhor dos seus destinos. No entanto, ocorre que na subjetividade o

homem está cada vez mais distante do ser, porque mais próximo do eu, e, com isso, o

próprio homem não se deixa na proximidade do agir do divino. A distância sempre mais

aumenta entre o homem e o sagrado.

42 Idem, p.64 43 Idem, p. 66.

Page 78: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

78

Há de se considerar, todavia, que a experiência com o divino não se dá, mesmo

atualmente, somente a partir da instituição religiosa. O divino como instituição não se

aproxima do homem, não faz a fronteira com o caminho da travessia pertencente a cada

passo dado no seio da terra, local de onde nasce e, durante toda a vida, nutre-se,

amamenta-se. O homem, não se deve esquecer, da terra nasce, dela se alimenta e para

ela retorna.

Sabe-se que há homens, em raros casos, ainda hoje fazendo a experiência com o

sagrado. Algumas tribos nômades da África, alguns indianos, andinos, e outros povos

não viventes no âmbito da instituição permanecem de alguma maneira próximos da

experiência do homem grego antigo junto ao divino. Percebe-se o divino sendo não

disciplinado aos moldes da instituição religiosa tal como se tem hoje. Isso parece

apontar para o aviso que mostra o divino, que está para se apresentar como tal em sua

sacralidade e sacrossantidade, sempre a vivenciar o humano na distância de sua

proximidade. Não é que a instituição, os templos e as liturgias sejam o impedimento de

percepção da presença do divino. O divino não se nega aos templos, às liturgias e aos

seus rituais. Ocorre que o homem não vive sequer a sacralidade religiosa dos templos e

suas religiosidades, mas sim a forma estereotipada de relacionamento com aquilo que

poderia fazer o divino se aproximar novamente do humano, tal como se deu com o

homem grego. Hoje, vive-se o agir da fé; não é mais o divino que vive o agir do

homem. Houve uma diferença significativa de atitude diante da experiência do real.

Essa mesma experiência não percebe que a onipresença do divino não é vivida como a

entrega do homem para que o divino atue no seu agir, fazendo o agir humano divino,

como se deu no mundo grego antigo.

A onipresença do Deus único não é mais experienciada porque ele está fora do

homem. O divino fora do homem é o homem fora da terra e da sua humanidade. A sua

Page 79: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

79

humanidade é o divino agindo e realizando as realizações da realidade. A onipresença

diz ainda que Deus é presença única; que Deus é uno em sua apresentação; que o

apresentar é sempre o mesmo e sempre único para cada homem, atuando em várias

realizações no agir de cada ente; que a presença é um agir no homem e para o homem

fazer a experiência do real, sabendo-se antes, ou melhor, desde sempre, a vida divina.

Quando o homem se mostra como o que está sempre a buscar a experiência do

divino, requisitando a presença do seu agir, isso significa que o mundo do homem não

está completo. É o divino quem o completa como experiência do agir no homem. O

divino não age por meio do, mas no homem. Agindo assim, o homem pode experienciar

o real, em suas realidades e em suas realizações. O agir humano é divino e, nessa

atuação, lida o homem com a onipresença de Deus. Esse agir divino no homem é a

onipresença de todo o sagrado, o vivido pelo homem grego antigo e o não vivido pelo

homem moderno.

Por isso, entende-se o homem moderno como o homem faltante, o da falta. Não

está presente o divino-agir. Raras vezes, se é que ainda isso ocorre, o divino faz a

experiência do real. Para tal, o homem precisa estar disposto ao convívio com o divino,

deixando o homem não agindo por si só. O homem agindo no homem é a subjetividade

moderna. O homem, quando se abandona enquanto entidade-homem, quando se

desencontra de sua subjetividade e vive na entrega dos seus agires, sempre se aproxima

do divino e faz a experiência do real.

É bastante comum dizer que um artista ou que um trabalhador qualquer executou

um belíssimo trabalho, chegando mesmo a se diferenciar esse ou aquele trabalho de

todos os outros já feitos. Quando isso ocorre, explicam, o artista e/ou trabalhador, que

se entregaram de corpo e alma naquela tarefa. O que isso significa: se entregar de corpo

e alma? Entende-se que é se entregar por inteiro. Mas isso não responde à pergunta.

Page 80: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

80

Apenas a reedita como resposta. Isso significa, no entanto, o seguinte: que o homem se

deu de tal modo para aquela tarefa que o inteiro, o divino, agiu sobre ele iluminando

aquele trabalho. Simploriamente, é esse o entendimento que está em jogo. É comum

também a confissão do artista/trabalhador dizendo: daquela vez as condições

instrumentais, de tintas, pincéis, ferramentas operacionais de tal ou tal tarefa, não eram

nem das melhores, nem tão adequadas, mas de algum modo ela saiu diferenciada. A

diferença é a identidade que há entre o homem e o divino. A entrega do homem

permitiu o divino agir nele. O homem quando se entrega para cada agir permite que a

ação e a atuação dos deuses orientem a tarefa de modo a torná-la também sagrada,

também divina. No momento em que o divino age no homem, ele entra na dinâmica

originária do poiéw, ele vive no mundo como poesia, como um ser da poiésis. Esse é o

encontro do homem com a essência do ser a vigorar em cada sendo, a vigorar na

conformação de cada realização, compondo a realidade, integrando-se e integrada como

de hábito ao real.

O agir poético é o agir do divino no homem. Essa conformidade é de todo

originária. Todo agir humano está comprometido com uma poiésis que o homem

consegue no seu agir-divino experienciar como poético. Nessa compertinência, do

poiéw como o agir primordial, o homem faz a vivência do sagrado, vive no encontro

com o divino, na sua onipresença. A onipresença de deus é, então, o agir divino no

homem. Como presença que nunca se deixa ausente, o deus encontra sempre o homem

em todo e qualquer agir, desde que este entenda que a realidade de cada momento é o

encontro sempre inesperado com o extraordinário do divino.

Page 81: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

81

2.4. “A morada do homem, o extraordinário”44

Desde sempre, o homem procura o divino. O homem, no entanto, mora no

divino. A moradia dos homens se encontra no mundo do divino. Interessa notar que os

deuses, mesmo nas lutas por vezes travadas entre si, visavam ao homem como aquele

que estava, pela experiência do sagrado, a entender e a lidar com o divino presente na

construção do mundo humano.

Aliás, é oportuno observar que, se o mundo do homem é o dos deuses, o mundo

é também divino. Não é dos deuses, mas é divino. O mundo é o lugar de moradia dos

deuses. O mundo dos deuses é o mundo dos homens. O extraordinário, como morada do

homem, aponta para o divino como sempre presente. O extraordinário se coloca para

além de qualquer ordem, de qualquer ordenação. Por extraordinário, não se deve

entender o que não está em ordem, mas sim que a organização do mundo se dá,

sobretudo, diante da manifestação e da presença do que se coloca para além da ordem

habitual das entidades do mundo. Se a morada do homem é o extraordinário, tal como

disse Heráclito no fragmento supracitado, pode-se pensar que o homem, se não o

conhece, está sempre na sua vizinhança, pois está sempre como habitante-habitado do

que não pertence às conformidades ordinárias do mundo. O extraordinário como morada

é o lugar onde o homem nasce, cresce e morre, acorda e dorme, alimenta-se e repousa,

ou seja, é o lugar sempre do encontro com o divino. O divino é o extraordinário, porque,

na dinâmica própria de seu poiéw originário, realiza junto ao homem a experiência

diária do divino.

Aqui vale retomar o já citado pensamento de Heidegger: “a linguagem é a casa

do Ser”45. A ser mora na linguagem, o homem mora no extraordinário. Qual é a

44 HERÁCLITO. “Fragmento 119”. In: Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 91.

Page 82: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

82

implicação possível entre ambos? A princípio, não há implicação, visto que Heráclito

fala do homem e Heidegger fala do ser. Mas ambos falam do morar, do habitar. Onde

eles se encontram é dentro de casa. A linguagem, como casa do Ser, e o extraordinário,

como casa do homem, não estão de todo distante. Na distância, um se encontra na

vizinhança do outro, na vigência do lógos, enquanto divino e enquanto extraordinário. A

linguagem é o extraordinário na casa do ser. A linguagem é, nesse sentido, o divino

enquanto presença na morada do homem. Como linguagem, o divino se nomeia e

desencadeia as realizações do mundo de realidades no mundo do homem. Tal nomear e

desencadear são dados pela disposição do divino. O divino e toda experiência com o

real criam o mundo, e tal criação é a manifestação constante do extraordinário no seio

da terra. Mundo para o homem não é o lugar onde ele constrói as suas relações sociais e

se desenvolve para o longo da vida como habitualmente se pensa. A instância a se

colocar em tal momento é a de tentar entender que a dinâmica de convívio e intersecção

com a linguagem é o mesmo que estar no âmbito do extraordinário. Ele vive no homem

e com o homem. É da phýsis a existência tanto do que pertence à tida ordem natural das

coisas, como a do sobrenatural.

Aliás, a rigor, é comum se entender a realidade como constituída de elementos

ordinários e extraordinários, estes chamados de sobrenaturais. Porém, tal consideração

se mostra arbitrária na medida em que não há como determinar por nenhum critério

pressupostamente científico, objetivo, a dimensão das realizações das realidades do real

na dinâmica pertencente a esse mesmo real. As medições nesse sentido são desmedidas,

fora de propósito, pois colocam o homem aferindo uma conformidade não pertencente

ao seu domínio de mundo. Além disso, o sobrenatural se mostra comprometido como

algo de menor valor, sendo, na verdade, costumeiramente lido como um subnatural.

45 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 55.

Page 83: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

83

Depois de instar-se nesses três âmbitos – o natural, o sobrenatural e o subnatural – o

mundo religioso ocidental, montado a partir, sobretudo, do advento da cristandade e

seus aparelhamentos metafísicos, catalogou, com vária distinção de valor, o modo de

lidar com as realizações das realidades do real. E isso representa atualmente uma

impossibilidade de se experienciar o mundo e a própria dinâmica de existência do

divino. Na divisão de valores, um deles foi o escolhido, o natural; mas nenhum deles

vivenciado.

2.5. Domínio do racional e domicílio do sentido

Outra coisa vale aqui ponderar sobre o conhecimento que o homem faz do

mundo: a noção de domínio. Domínio pertence ao regimento de um domus. Mas o

mundo se domina; não é dominado pelo homem. Os limites e os controles dos territórios

mundanos não são da ingerência do humano. Mundo não escolhe território, não se

limita ao entendimento de um conjunto de terras em que os passos são a medida. Mundo

não é um espaço físico medido. As construções de mundo permanecem na mudança do

mundo. Inclusive sob o aspecto geológico, mundo é o permanente e a mudança. Desde o

começo do espaço físico universal, as galáxias e sistemas solares vivem sob o que

permanece: a mudança. Mudar e permanecer são contrários que não vivem um à revelia

do outro, mas cooperam no mesmo: o extraordinário. Mudar e permanecer é o

comportamento do divino, no sentido de que toda permanente mudança traz à cena o

sentido do existir: o convívio no e do extraordinário. O natural e o sobrenatural, então,

sempre coincidem. Na co-incidência, são a junção, a companhia e o testemunho de um

no outro e pelo outro sobre o mesmo na vigência do divino. Iluminado pela luz do deus,

o homem é partícipe da escuridão do mundo, sempre sob a clareira do extraordinário.

Page 84: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

84

Mundo é o lugar vigente do divino, do extraordinário e do próprio homem. Ao

homem, a propósito, caberia a pergunta: ele é o ordinário ou o extraordinário? Esta

pergunta o próprio homem moderno não se faz. E não faz porque se pressupõe como o

que ordena, o ordenador. Com isso, a pergunta não é feita nunca. Ele já está, segundo

sua crença e (cons)ciência, dentro da ordem do mundo. De tal modo, elege as coisas

ordinárias das extraordinárias, desprezando estas últimas. Mas a pergunta fica ao

abandono do homem na dimensão da competência do ser. A resposta talvez de fato não

exista por meio da escolha de um dos dois aspectos. A classificação é precária e não dá

luz a nenhum entendimento. Não se pensa aqui numa impossibilidade de classificação;

mas a pergunta não se orienta para um clarear acerca do que é o homem na dinâmica do

ser. Tal obscurecer é decorrente dos próprios conceitos que perfazem o que se chama

ordinário e seus correlatos. Acontece que não existe ordem, mas apenas mundo e

homem.

Mundo e homem são na verdade o mesmo. Um é o outro na dinâmica de suas

compertinências. Aqui, quiçá valha voltar à observação de um fato simples: estrangeiro,

o homem não se entende com o mundo. Tal desentendimento é não entender a si mesmo

no mesmo. Não precisa ir a território, ou domicílio outro em outro continente ou região.

Basta o homem se encontrar num ambiente estranho, para que o mundo se coloque

como o estrangeiro para o homem. Daí, ouve-se com freqüência a frase: “esse não é

meu mundo”. A partir desse fato, cabe perguntar: o que isso significa? Primeiro: o

domicílio, o território se tornou o estrangeiro do estranho homem – o que indica que

estrangeiros e estranhos são o homem e o mundo – portanto, os mesmos, um e não dois;

segundo: mundo é o domicílio do entendimento-sentido do ser. A frase “esse não é meu

mundo” diz: não sinto o outro (o mundo) no mesmo que eu sou; logo, desentendo-me

como ser, ainda que me coloque como ente nesse território e reconheça as repartições de

Page 85: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

85

seu espaço físico e toda a geografia do local. Mundo é, por conseguinte, o ser sentindo e

sentido. Sem sentido, o mundo-homem é desentendimento. Grosso modo, nada se vela

nem se revela. Na aparente falta dessa dinâmica, há o estranhamento no qual lógos e

phýsis parecem não estar presentes. A ausência de sentir é a da possibilidade de

articulação do ser como linguagem. Na falta do sentir, o homem não pressente o divino;

sem pressentimentos, o homem não é divino, já que o homem é homem, porquanto é

todo-sentido.

O mundo como sentido é o mesmo que o homem como sentido. Não existe a

possibilidade de mundo-homem-sentido se dar sem o outro. Não existe uma

simultaneidade, mas um ao mesmo tempo. Eles não acontecem numa temporalidade de

mesma localização no espaço do tempo. Todos se instituem como acontecimento de um

tempo inequívoco. Não se dão no contratempo. Sentido é o caminho do mundo. O

mundo é aquilo que confere e é conferido pelo sentido, e o homem nele existe na

direção e disponibilidade do seu sentir. O que compreende à realidade pertence ao

entendimento fundado e garantido pelo sentir. Não existe a possibilidade de o homem

ser sem a sensação. Até a impressão que se tem sobre algo é o anúncio e a aurora de que

o ser se comunicará pelo sentir advindo como um devir. Tal devir é o movimento

originário do lógos e da phýsis na complexidade do ser enquanto ente. O sentir está em

correlação com o ser, assim como a disposição das sensações se configura como ente,

mesmo que isso se mostre aqui apenas como uma transposição aparentemente

conceitual, ainda que não seja esse o caso. O ser, na sua conformidade de apelo junto às

realizações diante da realidade do real enquanto ente, é sempre o desempenho e o

exercício convergente entre o lógos e a phýsis na dinâmica do mundo. O ente, que é o

homem em suas conformidades sociais, culturais, religiosas, enfim, caracterizadoras de

mundo, se mostra de acordo com e dentro das possibilidades das formas de sentir. Tais

Page 86: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

86

formas de sentir e entificar-se ocorrem nos muitos “comos” nos quais o homem vive. A

complexidade desse entendimento é simples: o sentir determina como o ser se mostra

enquanto ente. A interpretação que o homem tem do mundo é dada pelo e com o sentir.

Não existe outra saga para o homem senão perceber tal estatuto nessa experiência.

Tudo quanto se pensa (ou, comumente, se racionaliza) é efetivamente o sentido

do sentir. Nessa direção e apelo, o sentir é o ser do homem a se manifestar como ente.

Ao se conceber o ser e o sentir sendo o mesmo, diz-se, sobre o pensamento humano: ele

é sentido. Essa interpretação é também correspondente ao que Parmênides indica no

fragmento III: “[...] pois o mesmo é pensar e ser”46.

O pressuposto racional, no entanto, adquiriu relevo com os percursos

historiográficos no mundo ocidental, depois que o advento e a supremacia da razão

tornaram-se o pressuposto e a práxis do homem. Essa interpretação é equivocada,

porque foi dada a partir das dicotomias metafísico-ocidentais, sobretudo, a polarizada

em razão e emoção. O pensamento ficou, portanto, dividido em pensamento racional e

emocional, ou afetivo, chegando-se mesmo, a respeito da segunda caracterização, a

denominá-lo de inteligência emocional. Nada disso é suficiente para explicar o processo

pelo qual o ser se manifesta enquanto ente ou mesmo o modo como o ente se dá como

disposição de manifestação dos modos de ser do homem no mundo. Não é suficiente

porque a estratégia utilizada não mais que limita e/ou apenas serve como catalogação.

Assim, haver-se-ia de perguntar quais são de fato os problemas que estão em

jogo ao dividir o pensamento em racional e emocional? As respostas para isso podem

ter vários caminhos. Um deles é entender o pensamento ora como racional ora como

emocional e tender, respectivamente, a um apelo de mais e menos valia. A emoção é

tida como algo menor; a razão, o seu contrário. Até aí não se anda muito num mundo

46 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 45.

Page 87: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

87

cuja tendência é monetária, é a valoração do mundo e das coisas do mundo, incluindo-

se aí o pensamento humano e o próprio homem.

Decorrente de tal valoração, o pensamento racional é então tido como o de maior

serventia e utilitarismo para a prática cotidiana do viver do homem moderno,

caraterizada pelo compromisso técnico do operar os modos de vida. Em função da

técnica, o pensamento racional é encarado como o que mais a ela se presta por poder lhe

atribuir funcionalidade e potencializar seus atributos e evolução. A tecnicidade da

técnica se revigora quando encontra sob sua serventia o pensamento racional que a

potencializa enquanto técnica e pretensiosamente eleva e dignifica o status do

pensamento racional em sua dinâmica. O pensamento racional é, então, medido e

estabelecido a partir de suas habilidades dentro do mundo da técnica. É a sua mais

habilidosa e potencial ferramenta. O mundo da técnica e o do pensamento racional

apontam para dentro de um mesmo vigor, porque se acredita que a técnica se torna mais

racional, e o pensamento se torna mais técnico.

Mas nem este se torna mais aquele, nem aquele se torna mais este. A

compreensão da realidade dentro de tal conformidade não examina o pensamento

racional nem a técnica. Heidegger, sobre a questão da técnica, argumenta que

A vigência da técnica ameaça o desencobrimento e o ameaça com a possibilidade de todo des-encobrir desaparecer na dis-posição e tudo apresentar apenas no dês-encobrimento da dis-ponibilidade. Nenhuma ação humana jamais poderá fazer frente a esse perigo.47

Isso ocorre porque o pensamento racional não se pensa e a técnica não é pensada

enquanto pensamento. Faltando pensamento, falta o ser. O que importa no mundo da

técnica é uma potencialização do ente ou a criação de um novo ente, com uma nova

47 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 36.

Page 88: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

88

tecnologia. O homem, desse modo, é também encarado como um artefato técnico. A

serviço da técnica, ele é a máquina de todas as máquinas; a tecnologia-prima de todas as

tecnologias para o mundo da técnica. Não é à toa a possibilidade de se observarem

ícones ou personalidades do mundo da técnica sendo freqüentemente admirados e

vangloriados no mundo moderno. O estabelecimento do homem no mundo depende

cada vez mais do seu aparelhamento técnico no mundo da técnica. E isso não é um mero

argumento de frustração diante da tecnicidade do mundo. Não é o apelo que se volta

contra uma bandeira de reumanização do homem, apontando uma volta para a dinâmica

do ente a partir do ser. É apenas o caminho que o homem seguiu, escolhendo ser o

futuro da máquina no mundo da técnica. Não é a representação de um saudosismo sem

volta. O pensamento técnico-racional é o caminho do homem no cenário atual. Esse é o

seu valor.

O pensamento emocional, por sua vez, se vê combalido no meio de tamanha

tecnicidade. O problema que ele tem diante de si é como se operar tecnologicamente. É

visto sobre o tratamento de sua conformidade tentando ser medido em relação à

potencialidade de suas emoções. O mundo da psicologia, da sociologia e da pedagogia

humanas tenta dar conta dessa tarefa desde fins do século XIX, justamente o momento

em que o homem moderno se deparou não só com o advento, mas com a hegemonia da

técnica no mundo da máquina, no espaço industrial e informatizado do ocidente. As

ciências humanas tentam fazer a sua parte. A tentativa é um gesto que deflagra o

conflito existente na necessidade de não deixar cair no esquecimento o pensamento

emocional. Mas tentar não deixar cair significa, então: a queda já se deu. Se o chão

chegou ou não, isso é o de menos. A emoção, nesse momento, parece que tem de ser

revista, de ser atualizada, de passar por um “banho de loja”, de ganhar uma nova

roupagem, de adquirir uma nova mídia, uma nova propaganda. Muitos têm partido por

Page 89: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

89

essa trilha, perseguindo o êxito como se a tarefa fosse a de realizar o maior dos esforços.

Assim, voltou-se a falar da necessidade de o homem sentir, de ser emotivo, de

experienciar as sensações, de abandonar o mundo da técnica – o mundo do trabalho – e

de se orientar para os seus momentos de lazer. Tudo isso é importante e significativo

tanto quanto o é o mundo da técnica. Mas aqui a defesa é em prol dos oprimidos, que

correm o risco de ficar sem voz no meio da sociedade moderna. A emoção tem sido

defendida para que não fique sem o seu lugar na sociedade, apenas isso. No entanto,

nem uma nem outra perspectiva ainda fala com pertinência do que está em jogo nos dois

agires. Pensamento racional e pensamento emocional se conformam nessa dinâmica

como modos de agir e continuam, via de regra, apartados um do outro.

Em tal aparte, a situação poderia ser repensada. Até agora, o fato levado em

conta na disputa pelo pensamento racional ou pelo emocional é uma disputa acerca do

mesmo. É acerca disso que Emmanuel Carneiro Leão faz a seguinte referência à

tensão/disputa do pensamento no mundo moderno da técnica:

Para nós, filhos do petróleo e da técnica, tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por quê? Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência.

O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência, a técnica, o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas as suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que o tijolo e o cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável caso já esteja acertado que crescer é

Page 90: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

90

aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado o que é o homem. Realmente pensar é contraproducente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída.48

Em tais decisões e acertos, também a emoção do homem, orientada pelo fascínio

e pelo fetiche da modernidade técnica do mundo, fez o norte da crença do seu

pensamento se mostrar olhando apenas o mundo da técnica na ausência do pensamento.

As emoções, dessa maneira orientadas, apenas atendem a uma experiência técnica dos

sentimentos e das sensações regulando os comportamentos nomeados como afetivos,

afetuosos, emotivo, sentimentais. Assim, a experiência das emoções na tecnicidade do

mundo é a vivência do homem moderno.

Mas o que isso tem a ver com o ser se dando enquanto ente diante das realidades

do real? E o sentir? E a referência homem-mundo-sentido onde se coloca? À primeira

vista, há um não-sentir. Mas não-sentir é destituir a forma do homem se entender. O

desentendimento é o caminho-trilha que o guia. Como caminho, pode haver retorno,

talvez se um dia se desencontrar ou se se desentender com o mundo da técnica e da

tecnicidade das emoções. O caminho-trilha do homem o guia para o mundo da máquina

maquinando também a direção das emoções. O homem permanecerá nessa trilha não

quando ele mudar de caminho, mas quando o caminho se modificar e apontar para outra

direção, mudar, quando mudar, para onde quer que aconteça a mudança. A invenção da

máquina guiou o homem; o caminho da máquina segue-o com obstinação. O homem

caminha onde seus passos vêem caminho. Como a máquina é quem pisa, ele segue o

destino dessa pegada e não faz a trilha de volta para o próprio homem. O de volta não é

o retorno para o passado do homem, mas o presente contínuo – sem tempo, senhor de

todos os momentos-instantes-acontecimentos – de vigência do ser.

48 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Introdução”. In: Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 10.

Page 91: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

91

Na vigência do ser, o pensamento; o pensamento, o sentir o sentido. Sentir é o

modo de viver no e com o real. Não existe um pensamento sequer do homem que não

seja sentido. O pensamento só pensa o homem, porque sente o que pensa. Só continua a

pensar enquanto o sentir permanece como sentido. Quando o sentir se interpreta como

falta de sentido, o pensamento se desorienta na vigência do ser e demonstra as

intempéries nas conformidades do ente. Sentido e emoção são o mesmo. Racionalizar e

sentir são o mesmo. Um não se dá sem o outro. É uma impossibilidade: pensar sem

sentir, sentir sem ser, ser sem pensar, pensar sem mundo, mundificar sem sentir.

Todo pensamento pensa enquanto sente. Todo sentimento sente por ser do Ser.

Todo ser é pensando o pensamento. Todo pensar pensando é o criar mundo. Todo o

mundo é a reunião de todo sentir. Se há limitações, se não há plenitudes de

entendimentos do mundo, tudo isso acontece no sentir-pensar que se dá pelo e no ser de

cada ente, enquanto tal. Mas, mesmo nas limitações cobertas e descobertas, o sentir

orienta o ser na dinâmica do ente. Sentir é aqui não o que emociona, mas o que co-

move. Sentir faz mover. Move na companhia do mundo, não sendo companhia aquilo

que se dá ao lado do homem, mas sempre no que é o junto. Sentir e mundo são o ser. O

movimento do esforço para que o ser se mostre enquanto ente é o que co-move

mundo(s). Todo mover do mundo é o ser no sentir-sentido das suas realizações na

realidade do real. Sentido movimenta mundo sentido pelo ser enquanto ente. Sentindo o

ser se orienta na saga do seu mundificar.

Assim, o domicílio do ser é o pensar-sentir. Sentimento não serve para

emocionar, ser emotivo. Ser sentir é o emocionar do mundo no movimento de todas as

sensações e pensamentos vários. Todas as razões e desrazões são sentidos do sentir, são

dele provenientes e para ele sempre retornam e eclodem como acontecimento do ser de

cada ente. Todos os entendimentos e desentendimentos são também sentidos do sentir,

Page 92: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

92

visto que cada modo de entender é sempre o de desentender. É no mesmo entender que

se dão os desentendimentos. Desentendimentos são sempre entendimentos já sentidos,

mas renegados e determinados pelas recusas de oportunidades e de orientações. Tal

recusar constitui o abandono a um esforço de cooperação para que o sentido das

realizações se configure como interpretações acatadas e acatáveis pelos entes, nas

determinações das realidades do real. Quando o homem, na dinâmica de cada ente, diz

não entender, ele está sob a vigência de uma recusa do sentir que o orienta. O sentir

orienta o homem. O homem vige sob as determinações dos seus modos de sentir e a ele

se coaduna ou não. Os desentendimentos são os momentos em que o sentir não se

coaduna com os modos de o ente se dar. Não se dando enquanto ente, ocorre

aparentemente um desencontro entre ser e sentir, chamado, ainda há pouco, de momento

no qual o homem se desencontra com o mundo. Mas ainda aqui o desencontro-

desentendido, porque não-sentido, ou sem-sentido, com o mundo não é decerto

desencontro. O ser do ente do homem não se coloca à disposição do real mediante a

vigência de uma dada realidade ou realização. Esse processo de recusa talvez seja o

inexplicável do homem. Por que diante de tantas realizações da realidade vigente para

todos os muitos homens do mundo acontece o momento em que, no meio de toda a

possibilidade de sentir, recusa-se a dar sentido? A recusa a dar sentido é uma das

disposições do ente segundo os modos de o ser se constituir na vigência do lógos e da

phýsis. É próprio da relação entre o lógos e phýsis o surgir e o encobrir. No surgimento-

encobrimento do ser, os (des)encontros se mostram. Surgir e cobrir já desencadeiam o

movimento originário em que ser e ente se correspondem. Na medida em que o ser se

mostra para o ente enquanto tal, o ente esconde o ser como vigência de todo o real.

Entendimento e desentendimento, nesse sentido, perfazem o mesmo percurso que ser e

ente sob a sua característica e vivida experiência cotidiana. Toda possibilidade de

Page 93: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

93

entendimento já tende a um desentendimento. Nunca acontece de outra maneira. O

esforço contínuo do ser é, na vigência do sentir, consumar, de acordo com a disposição

dos entes, o sentido de cada realização na realidade do real. O vigor do sentir está

sempre presente diante das distrações do ente. Distraído, o ente se lança sobre o sentir

para tentar a busca pelo entendimento. Nessa busca, o sentir se desenvolve. Não evoluiu

no sentido habitual. Desenvolver-se aqui tem o sentido de fazer tornar-se envolto do ser

na disposição de possibilidade do ente. Então, quando o sentir se desenvolve, a

realidade se mostra como mundo e se dá enquanto real. Diante do mundo/real, o sentir

deu o homem para o entendimento do sentido. Sentida, a metafísica chamou o

entendimento do sentido de razão, de raciocínio. No entanto, raciocínio é o sentir se

mostrando dentro de um lógos que se desencobriu e ganhou a conformidade de

representação descritiva com a qual habitualmente o homem moderno ocidental lida.

Chamar o racional de emocional é uma transposição que não ilumina a natureza

originária do sentir-sentido do ser na dinâmica de cada ente.

“O que não faz sentido” e o “sem-sentido” são duas expressões do pensamento

humano que, então, colocam-se a falsear o fato que realmente ocorre. A primeira indica

um não reconhecimento do lógos enquanto phýsis. A segunda sugere de modo diferente

o mesmo. Contudo, dizendo mais: a primeira trata de dizer que o sentido não se faz/fez

e a segunda trata de uma ausência completa de sentido. A diferença se dá sobre um

aspecto parcial e um aspecto total do desentendimento do sentir. Ainda aqui, ocorre que

o lógos se colocou como encobrimento de uma phýsis descoberta, mas não disposta para

a realização do ente perante uma determinada configuração do real. A não-apresentação

de sentido é o desencontro dado num após simultâneo ao enfrentamento do encontro do

sentir com a realidade sentida pelo sentido. O sentido, quando se indispõe de algum

modo com a realidade da phýsis, gera um não entendimento, o desencontro do homem

Page 94: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

94

com o mundo, e isso é ainda uma referência entre ambos a incidir sobre uma realidade

sentida; entretanto, torna-se uma realidade sobremaneira recusada, por alguma

circunstância, diante da realização iminente de cada ente a cada instância e instante da

vida humana. Dessa forma, não-entedimentos e desencontros com o mundo são o sentir

na recusa direta ou indireta do sentido a que o ser se dispõe enquanto ente – fazendo,

assim, a experiência do lógos e da phýsis originários outrora tão presentes no

pensamento grego antigo.

Não existe mais pensamento racional ou emocional nessa instância. Ocorre

simplesmente o movimento de ser e ente na dinâmica do real. O ser se dá enquanto ente

quando o sentir, que segue uma dada direção, depara-se com a instância de uma

realização que, naquele preciso momento, recua para o encobrimento do ser,

provocando o que se designou por desentendimento, desencontro etc. Então, sentir é ser;

e os modos de sentir se conformam na disposição dos entes junto às realizações nas

realidades do real.

“O que não faz sentido” é a rigor inviável, não tem como ter via de acesso para o

homem. O inacessível não existe. Ou melhor: existe tanto quanto o acessível. Afinal de

contas, só se pode alegar que algo é inacessível quando já vê o acesso. O inacessível

está, na verdade, na trilha do acessível, mas é lido por meio de uma dificuldade

qualquer, medida por um valor desmesurado e que se caracteriza como inacessível. Mas

“o não faz sentido” é apenas uma sentença a declarar que o mundo sentido não se

vincula mais ao sentido anterior, trilhado pela experiência do ser na dinâmica do ente. O

“sem-sentido” já se interpreta indicando que algo é destituído de sentido. Esse caso

aponta para algo pertencente ao entendimento, pois tudo é, de fato, a priori, destituído

de sentido. A posteriori, o sentir sentindo é quem dá sentido e se manifesta na dinâmica

e na medida de disposições do lógos e da phýsis. Mas tais a priori e a posteriori se dão

Page 95: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

95

numa mesma relação de tempo. Assim, a phýsis se dá para o sentir e o lógos, pelas

disposições do sentir, recolhe-se de acordo com as possibilidades de entendimentos das

realizações do ente diante da realidade do real. “Não fazer sentido” e “ser sem sentido”

apenas apontam para interpretações que subvertem o entendimento do ser sentindo,

além de não dizerem para onde cada uma dessas declarações apelam.

2.6. A referência homem e deus: o extraordinário

Na convergência do sentir, o ser do ente se volta sempre para o religioso,

fazendo da experiência com o real a sua religião e a sua santificação, tornando-se o

consagrado de todos os tempos na história do mundo. Assim, o homem é, também,

divino.

Na lua que o céu lumina, o luminoso permanece no ser do ente do homem,

fazendo dele a iluminação a partir do e para o iluminado. Esse duelo entre o homem e o

sagrado sempre foi dos mais conturbados, sobretudo quando o sagrado ganhou uma

representação a partir de um ente divino, ou de Deus. Sobre isso, Jaa Torrano,

comentando a Teogonia de Hesíodo, diz:

Na oposição entre homem e Deus, pela qual unicamente se determina a área de atribuições e atributos de cada um dos dois, as fronteiras entre ambos são variáveis segundo a visão que deles têm as diversas culturas. A compreensão que o homem tem de sua própria essência e condição, de seu próprio corpo e das funções de seus órgãos corporais, – também não tem nada de inerente a uma natureza humana, mas é dada culturalmente, – tal como a idéia que o homem possa fazer de seu(s) Deus(es). Assim, muitas das atribuições que hoje por nós são meramente entendidas como meramente humanas, os contemporâneos de Hesíodo as entendiam como privilégios da Divindade, inacessíveis aos mortais, – e o que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus Deuses. Para Hesíodo, o mundo não é uma materialidade fundada em uma essência universalmente homogênea, subsistente por si mesma, e entregue às suas próprias leis nelas inscritas e nas quais ela em ser movimento e transformações se inscreve. [...]

Page 96: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

96

Para Hesíodo, o mundo não é um conjunto não-enumerável de teofanias, séries sucessivas e simultâneas de presenças divinas. Cada presença, é um pólo de forças e de atributos, que instaura e determina a área temporal-espacial de sua manifestação. 49

Torrano considera o entendimento da oposição homem e Deus como uma

produção variável das diversas culturas. Mas, independentemente da pluralidade

cultural existente, é preciso estar atento ao que possibilitou, no percurso historial do

homem no mundo, a articulação, a correspondência, a co-referência entre homem e

Deus. Há aqui uma inter-ferência comum a ambos, de tal modo que os dois participam

da mesma comunidade. A relação existente entre homem e Deus só pode haver porque

existe uma co-respondência entre eles. A resposta de um é a pergunta do outro. Homem

vem de humus. Deus é a luz que penetra e fecunda o humus, a terra. A terra fecundada

deu para a luz o homem. O homem é dado sob a lumisosidade dos céus, do divino, do

extraordinário. Este se faz como luz sem precisar da ingerência de quem o lumine e é a

luz que ilumina os homens. O divino é luminoso, é luminado; o homem é

não-luminado50. Se existe alguma oposição, está justamente na relação que existe entre

a luz diurna do divino e a escuridão noturna do homem no meio do mundo. Mesmo

assim, não se trata de disposição entre a claridade e a escuridão. O homem não se

escurece. A escuridão é da conformidade da natureza do homem, isto é, ela é própria do

ser enquanto ente, para que faça da vida o convívio das diferenças existentes entre os

entes do mundo. Mais ainda: o homem é o escuro em que a verdade advém no percurso

49 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 50-51. 50 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 182. Nesse capítulo, partindo do esclarecimento sobre o método estabelecido pela gramática comparada, Benveniste diz: “A gramática comparada, por seu próprio método, leva à eliminação dos desenvolvimentos particulares para restituir a base comum. Tal procedimento não permite que subsista senão um ínfimo número de termos indo-europeus: assim, não haveria nenhum termo comum designando religião, o culto e o sacerdote, e sequer nenhum deus pessoal. Em suma, de comum restaria apenas a noção de ‘deus’. Esta é bem documentada sob a forma *deiwos, cujo sentido próprio é ‘luminoso’ e ‘celeste’; nessa qualidade, o deus se opõe ao humano, que é ‘terrestre’ (tal é o sentido da palavra latina homo)”.

Page 97: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

97

da alétheia, como o não-esquecimento da luz, trazida ao mundo para realizar a presença

do homem como o também divino. A luz da presença do divino dá luminosidade ao

homem, tornando-o o ser-lembrança por meio da e na phýsis neste mundo. A memória

do homem, sendo lembrança do divino e desencadeada pelo movimento da luz como

verdade, se dá como não-esquecimento do ser do ente na dinâmica do homem no

mundo. A luz do céu, do divino, do extraordinário, resultante da união de Zeus com

Memória, é o fato que torna possível apreciar a existência do homem como sendo

aquele nascido para e pela luz dos céus para lembrar de ser, pela luz, iluminado e,

assim, proporcionando o não-esquecimento do ser do ente. Assim, o homem e o divino,

sendo o mesmo, são igualmente trazidos à presença da luz, mediante a correspondência

de um no outro.

Sobre tal correspondência, é possível entendê-la a partir do comentário tecido

por Jaa Torrano sobre o pensamento mítico e a questão da alteridade e da ipseidade:

Na verdade, o pensamento mítico, servindo-se de figuras não-

conceituais, de imagens concretas e de ideações plásticas, servindo-se de relatos e de fábulas (i. é., disto em que se constituem propriamente os mythoi e os hieroì lógoi, os “mitos” e os “relatos sagrados”), coloca em seus próprios termos (i. é., em termos míticos) o problema da relação entre a Alteridade e da Ipseidade: Zeus é ele-Mesmo e é o outro; o Outro é tanto Outro quanto é o Mesmo.

Já havíamos nos referido anteriormente à importância fulcral e ao vigor que tem na organização do pensamento arcaico a coincidentia opositorum. Evidencia-se agora que a concomitância como forma de relação entre os eventos (a qual exclui e substitui a relação de causa e efeito) implica o problema da relação entre Alteridade e Ipseidade: é o fato de a Alteridade e a Ipseidade darem-se tanto como coincidência quanto como diferença que torna possível a relação de concomitância entre os entes e eventos a excluir e substituir a relação de causa e efeito.

A Alteridade coincide com a Ipseidade tanto quanto dela difere: o Outro é o Mesmo (coincide com o Mesmo) tanto quanto é – na referência ao Mesmo – o Outro (difere de si mesmo). Zeus é os Ciclopes e os ciclopes são atributos da essência de Zeus tanto quanto os ciclopes são os ciclopes (e não Zeus) e Zeus é Zeus (e não os ciclopes).51

51 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 77.

Page 98: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

98

Dessa maneira, pode-se dizer que o homem é o divino tanto quanto o divino é o

homem, na mesma dimensão em que o homem, enquanto divino, é sagrado; e o divino,

enquanto homem, se sacraliza como sendo da e para a terra, em humanidade. A

alteridade e a ipseidade existente entre o homem e o divino estão na mesma referência,

em face de o homem, como escuridão que é, se deixar ser o iluminado na luz dos céus

de deus. O céu do deus é luz para dar luz ao iluminado, mas isso não se apresenta como

a tarefa da luz como presença para o homem. É próprio da luz iluminar e próprio do

homem ser luminado por essa mesma luz. Essa relação, entre o que está na

profundidade do céu e o que se coloca na superfície da terra, se abre como a clareira que

guia os passos dos dias e das noites do homem junto à phýsis e ao lógos, e na medida

em que Mnemosyne evoca a humanidade da terra diante da alétheia do ser do ente. Na

profundeza da luz, o divino se apresenta ao homem que, iluminado, mostra-se saído das

entranhas para a superfície da terra. A diferença entre homem e deus não se estabelece

no sentido de oposição entre o divino e o mundo, o céu e a terra. A diferença de cada

um acontece no outro, pelo outro e com o outro. Deus se presentifica como luz dos céus

no extraordinário do mundo que é o homem. O homem, morador do extraordinário,

nasce apontado para o céu, locomovendo-se em direção ao divino na tentativa contínua

de des-encobrimento e de re-velação da verdade religiosa do ser do ente. Lidar com a

sua religiosidade é o caminho de (re)integração com a verdade face a disposição do ser,

no sentido de que a luz dos céus faz do homem ele próprio, tendo em vista o apropriar-

se da luz do divino como participante da busca pelo que encoberto tende a se

desencobrir.

A clareira do homem é o deus, o divino, o extraordinário. Se o extraodinário

surge como apelo fundamental do sentido do ser do ente do homem, é possível supor

Page 99: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

99

que o pensamento do homem se orienta pela, na e com a luz dos céus, num esforço

incessante do percurso de cada experiência do ser na dimensão do ente. A escuridão do

homem na referência originária da vivência sob a luz do divino permite a interseção

entre o homem e o deus. Ambos se buscam numa permuta irremediável, já que cada um

se presentifica diante de um si mesmo, que é o outro. O homem é o divino, porque dele

se faz também participante a luz dos céus. A luz dos céus só se disponibiliza como

clareira em razão de o mundo ser o lugar de morada da escuridão a desencadear a

iluminação do ser do ente.

Escuridão não é aqui o que turva e torna o homem cego. Ela é a via de acesso

para a luz da presença do divino que caminha por essa via em referência ao ser do ente

do homem. Esse é o acontecimento originário da constituição do ser do ente. E assim

caracterizado, o divino participa do homem, e o seu contrário, à medida que, na

luminação do céu-do-deus, o deus e sua sacralidade proporcionam ao homem toda a sua

existência na história do mundo. Essa é a história do homem e do deus. Deus só passou

a ser tomado como existente quando a luz da sua presença deu visibilidade ao homem,

no nascimento de verdade deste e no percurso da história da terra, enquanto solo e

fecundação.

A história do divino que é a do homem é, mais do que a do surgimento da terra,

a do fecundar das águas dos céus do deus a inundar a terra de terra e fazer nascer o

homem como o seu divino. O divino da terra é o homem, por isso, já estava dado ao

homem, desde sempre, humanizar-se, sair da terra e nela entrar para manter a sua

correspondência, humanizando-se com o divino do solo e tornando-se, mais do que

qualquer outro, aquele que tem por propriedade viver, na humildade do mundo, a

humanidade da terra, nascida com a semente luminosa dos céus.

Page 100: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

100

Não existe a possibilidade de o divino nascer e de a terra dar a presença da luz

dos céus, se não houver o nascimento do ser do ente por meio da inseminação do

sagrado no seio da terra e se tal inseminar não se der como a fecundação referencial do

homem, que é desde já e sempre apontado para o extraordinário. A morada do homem é

o extraordinário. O extraordinário é, nesse sentido, o mundo. Mundo é, por sua vez, o

que congrega como sagrado o homem e o deus, o divino. Tal reconsideração provém da

ligação de Zeus com Mnemosyne. A memória é que possibilita ao homem fazer a

experiência de reencontro e convívio ab originem com o divino, sendo ele mesmo o

outro; e outro, ele mesmo. A alteridade existente entre o homem e o deus decorre de

uma relação de ipseidades existindo em íntima compertinência. Intimidade essa que é

parida pela terra. Ser parido pela terra é o destino da humanização da humanidade do

homem, tendo em vista a correspondência originária entre ente e ser. Entre o ser e o

ente, enquanto tal, o homem vive o encontro das ipseidades de cada ser. Isso ocorre

junto ao conflito emergencial das experiências disponibilizadas pelas caracterizações e

atributos do ente. Essas colocam as alteridades como as vigências acessíveis e

provenientes da referência de cada ser. O vigor de cada ipseidade se potencializa na

correspondência com outras ipseidades, permanecendo no seio da terra e estabelecendo

a íntima e originária disputa das alteridades. A alteridade existente no mundo é a

ipseidade enquanto ente na inter-relação e na co-respondência com o ser do homem. O

movimento de esquecimento e de não-esquecimento do ser é onde a verdade se coloca a

partir da atitude de Mnemosyne. Diz Jaa Torrano, comentando a união de Zeus com

Memória:

O poder de Zeus, centrado no espírito (epí-phron), dá-se como

o gerador e o sujeito dessa grande percepção (mégan nóon) em que seu cônjuge Memória gera as forças do Canto (=Musas) pelas quais os nomes-numes se fazem presentes como presenças configuradoras da totalidade do que se desvela e do que não se desvela.

Page 101: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

101

Longe de se esgotar em sua acepção psicológica, Memória é uma potência cósmica, que nasce da cópula do Céu e da Terra, esses fundamentos inabaláveis dos Deuses e de Tudo, assim como deles nascem a Visão (Théia), a fluência (Rhéia), a Luminosidade (Phoíbe) e a Instauradora-Nutriz (Téthis).

Memória, que mantém as ações e os seres na luz da Presença enquanto eles se dão como não-esquecimento (a-létheia), gera de Zeus Pai as Forças do Canto, cuja função é nomear-presenticar-gloriar tudo quanto a de deixar cair em Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno Não-Ser tudo o que não reclama a luz da Presença.52

As ações e os seres se dão como não-esquecimento, porque na sua escuridão o

ente permanece como desvelamento velando o ser. Somente sob a vigência da presença

da luz do divino, o homem é dado para o mundo enquanto tal e é fecundado pela relação

entre o deus e a terra. Deus, luz do céu, configuração do divino, sacraliza-se como

sagrado porquanto integra o mundo, vivendo sempre dentro da terra a semear o ser do

ente enquanto homem. O homem nasce dessa íntima relação de exercício de

humanização do divino no seio da terra. A propósito da humanização do homem, é

comum ouvir dizer que “o homem precisa se humanizar”. Em princípio, essa sentença

parece conceber o homem como destituído de sua própria humanidade. De fato, ele

assim se comporta. Deve ser motivo dessa crença o fato de que o homem não está

humanizando quando suas ações revelam um comportamento que vai de encontro à

manutenção da referência aos outros homens, colocando em risco a existência do

conjunto, ora chamado de humanidade, ora de sociedade. Então, parece que o

entendimento é o de que a desumanidade da humanidade do homem coloca em xeque a

existência da sociedade.

A sentença “o homem precisa se humanizar” aponta na direção da falta.

Enquanto ente, sempre tentando o encontro fugidio frente ao desvelamento do ser, o

homem surge como o carente de uma permanência de contato com a terra, posto que

52 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 70.

Page 102: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

102

passou a desconhecer o sentido do relacionar-se com a humanidade deste mundo. A

falta de humanidade é a falta da terra no ser do homem enquanto ente. Isso mostra o

quanto a desumanização atesta o status do homem atual. Na atualização do mundo, o

homem se desatualiza no ritual de desumanização do humano e percorre a superfície da

terra sem destino diante do conhecimento do mundo no território do seu próprio modo

de mostrar-se frente às realizações da realidade. O aparte dado entre o homem e o

humus o deslocou no percurso histórico da humanidade. Tendo em vista o mundo atual,

é possível entender que essa separação aponta para a ruptura existente entre o homem e

o deus e para a luz da presença do divino que estaria sempre a fazer da escuridão da

noite o freqüentar a clareira que se abre como dia sobre o homem. Com isso, ele perdeu

a sua sacralidade a sua santidade.

2.7. Santo e sagrado: o (re)colher-se na terra para o divino

Caberia a essa altura tentar olhar para o porquê de o homem ser também o santo

como participante da ação do divino. Foi dito aqui que o homem é também divino. Isso

decorre de ser ele também o santo, estar sempre comprometido com o sagrado e dele

participar à medida que vive na companhia da luz.

O sagrado (do latim sacer53) possui na sua origem um caráter ambíguo. Ele é o

“consagrado aos deuses e carregado de uma mácula indelével, augusto e maldito, digno

de veneração e despertando o horror”54. Certamente, essa consideração não pertence

mais ao entendimento atual, mas importa notar que o sagrado, sendo o “consagrado aos

deuses e carregado de mácula”, era o destino do homem determinado pelas forças de

interseção entre o céu e a terra. Na consagração aos deuses, o homem é posto na 53 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 191. 54 Idem, p. 189.

Page 103: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

103

companhia daquilo que permanece como presença do seu percurso histórico. Estar na

companhia dos deuses e sob eles se inserir e diferenciar é o que apresenta a imagem da

consagração junto ao divino, ao(s) deus(es). Carregado de mácula, o homem está na

perspectiva do viver a necessidade de um contato e uma interferência urgencial com os

céus, para que, mesmo cheio de mácula, faça-se como partícipe de um mundo no qual o

divino é mais do que uma reivindicação de precariedade intelectual, traçando os

percursos do mundo sob a égide de um primitivismo qualquer na sua maneira de pensar,

ser e agir. O divino é a figura da presença sempre emergente para dar ao ente o amparo,

a proteção e a permanência de um convívio, a fazer com que o homem se reencontre

como o que está sempre a pender para a consagração de sua existência.

O homem é carregado de mácula significa: ele é o detentor da mácula, não a

carrega como sendo o suporte da mácula do mundo. Ela, no entanto, é proveniente do

gesto da fecundação do céu com a terra. A mácula é, de algum modo, o registro da

ruptura do homem trazido à superfície do mundo. Porque para nascer rompe o corpo da

mãe terra, o homem carrega consigo não o infortúnio do mundo, mas o registro e a

cicatriz que demarcam a presença de seu nascimento como não-divino, não-luminado,

diante da luz de deus no céu de todo o destino.

Ser detentor da mácula não é a indicação de uma desgraça, uma condição que

confina o homem em uma vida de intempéries contínuas, confirmando o status de sua

inferioridade no inferno histórico de sua humanidade. Isso implicaria entender que o

homem, nascido da terra e provindo de suas regiões inferiores, estaria destinado a

retornar para ela. Mas o percurso dele é de, depois de viver suas realizações como

desgraça do mundo, tender a se reencontrar, no fim de sua experiência terrena, na

inferioridade da terra, sua mãe e seu inferno.

Page 104: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

104

O homem é decerto o desgraçado, porque é originariamente sem graça. A graça

do mundo é o deus. A graça do deus é engraçar o homem para que, congraçado, ele

possa estar disponível para as possibilidades de sua consagração em direção ao divino.

Assim, é possível entender que o destino do homem no mundo é viver nas mediações de

uma convivência com o divino. A sua religiosidade consiste no fato de que o homem de

algum modo só se coloca assegurado de sua humanidade, como nascido do humus, a

partir do momento no qual ele compreende que já estar humano é se orientar da e na

terra. Assim, ele seguirá sempre guiado pela luz de deus a diluir as sombras dos seus

passos na superfície do mundo, norteando as suas experiências.

O homem grego antigo, e talvez o de todas as sociedades que se mantiveram e

mantêm até hoje comprometidas com esse modo de agir, parece ter entendido melhor do

qualquer outro o que é o gesto do nascer. O homem, aliás, não nasce. O homem não

consegue realizar o nascer; ele é sempre nascido. Da semente, dá-se o nascimento. Mas

nem a semente faz nascer. O papel da semente é acontecer como nascimento. Desse

modo, a semente é o que dá nascimento como, para e no mundo. O mundo é, nesse

sentido, a maior sementeira. Como phýsis, ele é a semente de todas as sementes. Deu a

todas elas os seus modos de acontecerem como tais diante da luz do mundo, como

evento inerente ao divino.

Isso estabelece no homem o seu sentido sagrado. Consagrado, o homem se

tornou santificado pelas benesses do divino. Pela santificação, o homem pode vir a ser

designado nesse mundo como santo, trazendo à presença o caráter sagrado do divino e

vivenciando, pelo modo humano do mundo e pelas participações nos ritos religiosos, os

poderes de deus sobre a terra, sobre a humanidade do homem.

Sobre o entendimento que determinou a participação do homem como santo,

fazendo a experiência do sagrado, Benveniste diz:

Page 105: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

105

[...] é sanctum o que está apoiado por uma sanctio, forma abstrata da palavra sanctum. Vê-se em todo caso que sanctum não é o que é “consagrado aos deuses”, que se diz sacer, nem o que é “profano”, ou seja, o que se opõe a sacer (sanctum – grifo meu) é aquilo que, não sendo nem um nem outro, é estabelecido, firmado por uma sanctio, aquilo que é defendido de qualquer ataque por meio de uma penalidade, a exemplo das leges sanctae.

[...] A diferença entre sacer e sanctus se mostra em diversas

circunstâncias. Não se trata apenas da diferença entre sacer, estado natural, e sanctus, resultado de uma operação. Diz-se uia sacra, mons sacer, dies sacra, mas sempre: murus sanctus, lex sancta. O que é sanctus é o muro, mas não o domínio cercado pelo muro, que se diz sacer; é sanctum o que é defendido por certas sanções. Mas o fato de entrar em contato com o sagrado não resulta no estado sanctus; não existe sanção para quem toca o sacer e assim se torna também sacer; ele é banido da comunidade: não o castigam, e tampouco a quem o mata. Dir-se-ia que o sanctum é aquilo que se encontra na periferia do sacrum, servindo para isolá-lo de qualquer contato.

Mas essa diferença se vai abolindo aos poucos, conforme o antigo valor do sagrado se transfere para a sanção: sanctus já não é apenas o murus, e sim o conjunto do campo e tudo o que está em contato com o mundo do divino. Não é mais uma definição de caráter negativo (“nem o sagrado nem o profano”), e sim uma noção positiva. Torna-se sanctus aquele que se encontra investido de um favor divino, e assim recebe uma qualidade que o eleva acima dos humanos; seu poder o converte num ser intermediário entre o homem e a divindade. Sanctus se aplica aos que são mortos (os heróis), aos poetas (uates), aos sacerdotes e aos locais por eles habitados. O epíteto acaba sendo aplicado à própria divindade, deus sanctus, aos oráculos e aos homens de autoridade. (...) Aqui se consuma a evolução: sanctus agora qualifica uma virtude sobre-humana.55

Ainda que sanctus tenha sido outrora o não passível de sanção, por tocar o sacer,

também se tornava sacer. Mesmo banido da comunidade, estava a partir de então dado

como sacer. Então, lendo o que também pode ser lido, o que se tem é: o homem se torna

sagrado quando se deixa tocar pelo sagrado. Em contato com o sagrado, o homem não

se torna o santo propriamente dito. O sagrado e o santo não comungavam da mesma

experiência nos primeiros momentos de convívio com o divino. O sagrado era

entendido e experienciado como não pertencente à experiência do homem santo. Santo

era o que recebia a defesa do divino por meio de sanções. O sagrado foi tido como um

55 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 191-192.

Page 106: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

106

aparte, porque tinha a sua qualidade como absoluta, pertencia a um outro eixo e modo

de ser que não partilhava a experiência do humano como santo; este podia tornar-se ou

não santo, dependendo da ingerência das sanções a ele atribuídas. Assim, o sagrado,

como sacer, era uma designação da autonomia da existência do divino, mas mostra “um

estado de afastamento, uma qualidade augusta e nefasta de origem divina, que se separa

de qualquer relação humana”56; o santo, por sua vez, era dado pelas ocasiões de

presença do divino. O sacer era o divino e o céu no mundo; o santo acontecia como o

freqüentar do sacer se dando por meio da intervenção do divino no homem desse

mesmo mundo.

No entanto, surge, ao longo do percurso de compertinência entre o sagrado e o

santo, a transferência das atribuições do sagrado para o santo. Santo passava a ser

entendido, então, como o que participava do divino pela experiência do contato com ele.

Por isso, o homem faz parte da santidade do divino. Importa notar que os mortos, os

sacerdotes com os locais por eles habitados e os poetas passavam a ser entendidos como

os que experimentam o sagrado a parir de sua santificação, tornando-se os santos desse

mundo. E aqui interessa observar que os poetas são colocados como homens santos.

Mas por que isso? Por que também os poetas são santos? Os poetas originários do

mundo grego antigo talvez possam ser vistos como os que já constantemente se

colocavam em relação com os deuses-deusas que viviam sob a evocação, a proteção e a

orientação para que os grandes feitos do divino fossem dados para a experiência do

homem. Na verdade, as Musas cantavam o canto que orientava os aedos para mostrar o

destino histórico do homem no e sobre o mundo da terra, indicando que a sua

mundidade se consagra pelo exercício permanente de sua humanidade. O aedo – o

homem en-cantado pelo canto divino das musas – era o que, por meio da melodia e do

56 Idem, p. 206.

Page 107: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

107

ritmo dos cantos, entendia os compassos de vida a serem convividos pelo homem junto

ao sagrado, para fazer a humanidade partícipe dos ceús, entendendo que o deus e o

homem são um só no espírito de co-operação, para vivenciaram conjuntamente a

experiência do humano, que é a do divino. O divino opera no mundo junto ao homem e

nunca o deixa de fora. Essa perspectiva mostra aquilo que talvez seja um traço

diferenciador, sobretudo, no que diz respeito ao comportamento do homem grego antigo

fazendo a experiência com o sagrado.

Isso pode ser observado já na Teogonia de Hesíodo. Jaa Torrano explica essa

condição sagrado-religiosa do aedo e do seu canto da seguinte maneira:

Essa múltipla e uníssona voz das Musas e Cantar no mesmo

Canto com que o Cantor (scilicet o aedo) ao cantar presentifica a Totalidade Cósmica ante a si mesmo e a seus ouvintes – é, para esse Cantor e seus ouvintes, a mais forte experiência da realidade, justamente por ser, para eles, a experiência em que Se dá a Presença Divina.

As Deus Musas cantam no Olimpo para deleite de Zeus o mesmo Canto que o aedo servo das Musas, pela outorga que estas lhe fizeram, canta – não só para o deleite dos ouvintes mortais – mas também para a manutenção da vida, para a vivificante comunhão com o divino, para a transmissão do Saber e para que se possa ter visão da Totalidade do Ser.

[...] No Encanto do Canto – na força dessa poesia oral arcaica – é

que se experimenta a Mais Forte Realidade, O Que Se dá como Presença Divina. Essa experiência numinosa – i. é., essa experiência em que o Nume (=Deus) Se dá – da linguagem e particularmente do Canto é a experiência em que mais fortemente se vive como percepiente, com a alertada e acesa atenção ao que se ouve e ao que se canta. A experiência numinosa do Canto é a audição de palavras-seres, de palavras-presenças. A Palavra-Presença, i. é., a Voz Múlitpla e uníssona das Musas encarnada na voz do aedo, mais do que ouvida é percebida: é vivida e vista na arcaica concretude em que se reúnem e se con-fundem o nome e a coisa nomeada. A percepção humana que percebe esse Canto iluminador da a-létheia presentificador da Presença Divina e da Totalidade Cósmica coincide com a grande percepção de Zeus no Olimpo [...]57

57 TORRANO, Jaa. “A presença do Nume-Nome”. In: Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 94-95.

Page 108: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

108

Nesse comentário, é possível perceber que a relação estabelecida com o sagrado

é, sobremaneira, diferente da que se deu momentos depois na história do mundo

ocidental, comparando-se com o que originariamente o sentido da experiência latina

acarretou sobre sacer, o sagrado por si, e sanctus, o sagrado dado como sanção.

Não obstante na experiência latina fosse de algum modo dada a participação

junto ao divino, isso aconteceu de maneira muito mais patente na experiência do mundo

grego antigo. Ainda que desprezada e destituída de valor no pensamento ocidental

moderno, vale à pena por alguns instantes reapreciar a experiência grega antiga; não

como saudosismo inglório, mas como (re)aprendizagem de uma forma de entendimento

do ser do ente humano fazendo a experiência do real.

O homem grego antigo, precisamente, o arcaico, dos tempos dos cantos

hesiódicos, era aquele que participava da experiência religiosa do divino fazendo,

trazendo para a realidade concreta do mundo a força de reunião que se conformava

como o pacto de convivência existente entre as Musas e Zeus, as Musas e o Aedo, o

Aedo e Zeus, o canto divino e o homem, as Musas e o homem, o homem e o mundo do

divino. O Deus ficava assim no “centro do convívio dos homens, canta a Si Mesmo e à

totalidade do Ser e percebe a Si mesmo, a seus ouvintes (mortais e imortais) e à

totalidade do Ser como o Canto de múltiplas e uníssonas Musas.”58. Ele estabelece para

o homem o entendimento do que é mundo. Para o homem grego que viveu nos tempos

de Hesíodo, o aedo originário, deve-se também lembrar que:

O Mundo (Mundus = puro, con-sagrado) é o Canto das Musas,

as quais não são senão a teo-cosmo-fânica função do Cantar, explicitações do Ser de Zeus e da Memória (e estes Zeus e Memória são explicitações do Ser inconcusso e primordial da Terra-Mãe, fundamento de tudo e de todos os mortais e Imortais); – e, sensuais e fecundas, infundindo a volúpia de ouvir, ver e Ser, as Musas são o

58 TORRANO, Jaa. “A presença do Nume-Nome”. In: Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.96.

Page 109: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

109

Canto Mundificante (teogônico = cosmogônico e con-sagrado) Ouvido por Si Mesmo Que O Canta.59

Tal entendimento mostra como o divino acontecia no homem. O sagrado do

mundo era a presença do divino se dando como acontecimento primordial, fazendo do

canto a palavra-presente a configurar a realidade existente e toda a experiência com a

terra. Tal experiência com a mãe-terra era o saber-se sob a diligência do divino a guiar a

palavra pelo aedo e, com isso, trazer à tona da realidade a presença de deus e das

deusas, mostrando a concretude de um agir que, de longa data, já não acontece mais no

mundo ocidental moderno. Tal concretude se colocava para o homem como o divino

atuando por meio da phýsis, a instaurar sempre de modo inaugural, nunca conceitual, a

ordenação das experiências que se mostravam dizíveis pelo pronunciamento divino do

legein originário das Musas, realizando a experiência do humano com o divino e, assim,

consagrando o homem à sua humanidade. O homem con-sagrado pelo canto das musas,

canto entendido e interpretado pelo poeta-cantor, só se dava como entendimento e

interpretação, porque se mostrava compreensível e não alegórico, ou não metafórico, na

medida das experimentações vividas pelo próprio aedo; e, assim, fazia do canto não

algo a participar externamente do real de cada homem, mas fazia a totalidade do ser dos

homens integrante e consumada da experiência sagrada do mundo, acontecendo na

dinâmica dos movimentos de humanidade do humus-humano na con-vivência da, na e

com a terra. Desse modo, o homem entendia o papel da mãe e do pai do mundo como

divinos, como a presença do sagrado. Viver tal experiência era o mesmo que perceber,

como presentificação do ser do ente, a disposição de orientação dos entes diante da

dinâmica sagrada do mundo e junto ao(s) deus(es). Assim se dava o caráter religioso do

divino do mundo atuando em íntima relação e realização de experiência com o sagrado

59 Idem, p. 96.

Page 110: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

110

no mundo grego60 de Hesíodo. Isso, é claro, mostra uma dinâmica diferente da que o

homem romano e os outros homens do mundo, inclusive o moderno, entendem quando

fizeram e fazem a experiência com o sagrado. Não é uma experiência melhor nem pior a

que se coloca atualmente, mas, de certo, tal atualidade não conversa no cotidiano com o

deus da mesma maneira que o homem grego arcaico hesiódico. Há de se alegar que seja

natural tal mudança, que é natural de realmente acontecer. Então, diz-se que o mundo

evoluiu e essa foi a tendência, a direção e a postura assumidas pelo homem, sobretudo,

em razão de um percurso político-religioso talvez muito mal experimentado pelo

homem ocidental e, em princípio, bem demarcado com a experiência da cultura judaico-

cristã nos seus dois mil anos com a(s) igreja(s) e muitas das outras instituições

religiosas. É mesmo muito provável pensar que os que hoje alegam distanciarem-se do

deus assim o façam por não admitirem as formas de agir, condicionadas por séculos de

“gestos religiosos” equivocados. O entendimento do religioso foi posto tal qual uma

ativação e determinação de caráter eminentemente político. E essa politização do

religioso e do sagrado se mostrou como uma forma de exercício de poder de regulação

da cultura, da crença, da vida do homem como um todo. Essa tentativa política da

regulação do comportamento se colocou na história do mundo como a amiga força de

repulsão que afastou o homem do deus, desfazendo a experiência que no distante de

60 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. Nesse capítulo, tratando do sagrado sob o ponto de vista da experiência grega, Benveniste, depois da releitura em que hierós (um dos termos para designar o sagrado) acontece nos contextos homéricos, chega à seguinte interpretação do sentido em grego: “Em hierós,... vemos uma propriedade ora permanente, ora incidental que pode resultar de um influxo divino, de uma circunstância ou uma intervenção divina.” (v. p. 198); já sobre hágios (o segundo termo para usado para designar o sagrado) não há uma distinção tal clara sobre os significados, apesar das citações de Heródoto e Estrabão. Mas em determinado momento da explicação, Benveniste arrisca a dizer que “A relação entre hierós e hágios em grego parece muito equivalente à relação entre sacer e sanctus, a grossos traços. Sacer e hierós ‘sagrado’ ou ‘divino’ são empregados para a pessoa ou a coisa consagrada aos deuses, ao passo que tanto hágios quanto sanctus indicam que o objeto está protegido contra qualquer violação, conceito negativo, e não, positivamente, que esteja carregado da presença divina, que é o sentido específico” (v. p. 204). No entanto, como conclusão do capítulo, o próprio Benveniste entende que existe uma reciprocidade de entendimentos correspondente tanto a hierós como quanto a hágios. Assim, ele encerra o capítulo dizendo o seguinte: “Enfim, hierós e hágios mostram claramente o aspecto positivo e negativo da noção (de sagrado): de um lado, aquilo que está animado por uma potência e agitação sagrada, de outro lado, aquilo que é proibido, devendo-se evitar contato”. (v. p. 206).

Page 111: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

111

outrora aconteceu com o nome de sagrado, de divino, proporcionando o entendimento

da vida na totalidade e consolidando a dinâmica dos entes humanos diante da realidade

do ser.

A experiência religiosa do homem é realmente a do divino, na co-participação de

um no outro, apontando sempre para o mesmo sentir e sentido, trazendo à presença o ser

mediante a disposição do agir dos entes. O agir humano era divino, porque provinha do

divino e nele se deixava como dis-posição do ser à vivência experimental do ente de

cada homem.

A religiosidade existente, vale ponderar, não é a que se entende hoje. O religioso

atualmente é o que tem religião ou algum compromisso de comunhão com o seu Deus.

No mundo grego arcaico não existia religião, mas se entendia bem a dinâmica com o

religioso.

Page 112: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

112

3. Cultura e indefinição

O conceito de cultura segue caminhos confusos, em determinações que

normalmente não dão conta do que a ela podem ser conferidas. Um dos problemas

basilares talvez seja considerá-la a partir da noção de conceito. Cultura não se presta a

uma conceituação de limites bem delineados. Cultura não se define porque sempre se

expande. A natureza de todo e qualquer movimento do que se costumou chamar pelo

nome de cultura não dá na correspondência de um limitar, mas de um ilimitar. Ela não

se limita. Qualquer definição a priori já limita.

Assim, quando se encontra uma definição como: “a idéia de ‘cultura’ como

‘cultivo’ de capacidades humanas e como o resultado do exercício dessas capacidades

segundo certas normas”61, já se deparam dificuldades patentes de fazer ver o que está

realmente determinando cultura. Nela, eliminaram-se todas as singulares de saberes

adquiridos na ordem do tempo dos diversos povos e suas comunidades. Nem mesmo é

possível perceber o que é esse “cultivo” de capacidades humanas. A rigor, o cultivo é o

plantar de alguma coisa, mas muitas coisas são plantadas e não são colhidas. Ou ainda:

mesmo colhidas, essas coisas muitas não são suficientes para fazer parte do que se

chama habitualmente de cultura. Falar também que cultura é “o resultado do exercício

dessas capacidades” é demasiado impreciso. A definição não define as capacidades

plantadas e trata a cultura como o plantio e a colheita de um não se sabe o quê. O

conceito de cultura não mostra a cultura. Aliás, a rigor, nenhum conceito trata mais da

coisa conceituada, porque o conceito de uma coisa não é mais a própria coisa.

61 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626.

Page 113: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

113

A definição mencionada “é, não obstante, muito anterior a toda idéia formal de

cultura no âmbito do sistema da sociedade”62. Se ela é então uma definição pré-tida ao

enfileirar-se de muitas outras definições, já se vê que o problema do defini-la estava

instaurado mesmo na origem. Na história das conceituações arbitradas, associou-se com

muita freqüência uma série de correlações, tais como a de cultura com natureza, depois

com o homem etc. Vale, a título de curiosidade e registro desses momentos, trazer à

baila algumas dessas considerações a respeito de cultura, como testemunho da

fragilidade e da falência a que se destinaram muitos dos caminhos trilhados.

Houve, já entre os gregos, freqüentes disputas acerca da diferença entre o que se denominou posteriormente “estado de natureza” (natureza) e “estado de cultura” (civilização). Um dos aspectos mais conhecidos dessa diferença é o contraste estabelecido pelos sofistas entre o que é “por natureza” (fu9sei) e o que é por convenção ou por “lei” (no0mw). Manifestaram-se posições muito diversas: a cultura é um desenvolvimento da Natureza; a cultura é algo em princípio contraposto à Natureza; a cultura representa um obstáculo ao desenvolvimento “espontâneo” da Natureza etc. Os cínicos, por exemplo, proclamaram sua oposição a tudo o que não fosse a “simplicidade” natural, sendo a cultura considerada um sinal de corrupção e decadência.63

Parte do pensamento grego, após o surgimento do que se chama de filosofia no

mundo ocidental metafísico, considerou a cultura por muitos caminhos conceituais,

todos eles distanciados de uma apreciação não definidora. Na base desses conceitos

estão dois caminhos para cultura, o que é natural, espontâneo, e o que é não natural,

não-espontâneo, provavelmente confeccionado pelo homem. Nesse passo, houve um

desacerto sobre o que é cultura: de um lado os partidários da primeira posição e, de

outro, os da segunda. Então, cultura era ora a manifestação do natural, ora do produzido,

mas não pela natureza. Como parece que não se sabia mais ao certo o que era da ordem

da natureza e o que era da ordem do produzido, a discussão sobre cultura foi, desde

62 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626. 63 Idem, p. 626.

Page 114: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

114

então, no seu cerne, posta de lado, desviada do caminho. Na verdade, na busca pela

conceituação de cultura, já estavam em jogo a disputa pela escolha de seus predicativos

e de suas atribuições mais gerais. Mas cultura não parecia, a rigor, nem uma coisa nem

outra. Era preciso entender, no desentendimento do mundo, a natureza e a não-natureza

para que, depois dessa luta, a vitória do conceito permanecesse clarificada.

Em tempos mais recentes, é outro o caminho conceitual de cultura. Ele aponta

para a correlação com o que é da ordem do humano e do não-humano. É isso o que

verifica no seguinte comentário do verbete anteriormente citado.

Hoje, fala-se de “Natureza” e “cultura” principalmente com os

seguintes propósitos: 1) distinguir dois aspectos da realidade: o humano e o não-humano; e 2) distinguir dois aspectos no ser humano: o natural e o cultural, ou, como também se chamou, o “espiritual”. 1) e 2) podem ser interpretados ontologicamente ou metodologicamente, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Na interpretação ontológica, supõe-se que natureza e cultura diferem basicamente. Na interpretação metodológica, supõe-se que natureza e cultura podem formar uma espécie de contínuo, mas que convém usar métodos distintos para cada um dos “aspectos” ou “fases” desse contínuo. Na interpretação ao mesmo tempo ontológica e metodológica, avalia-se que há uma diferença real entre natureza e cultura e que essa diferença se reflete nos métodos utilizados para estudar cada uma delas.

Foi mais comum associar a cultura ao ser humano; a maioria das opiniões apresentadas...segue esse caminho. (...) 64

Aqui, observa-se o destino da cultura: ela não é senão a discussão existente entre

o que é humano e o que não é humano. Mas caberia já inspecionar, sobretudo, o que

nessa discussão é o não-humano. Ele parece ser tudo o que não participa do homem. Se

tudo o que não é o homem é o não-humano, então, estaria, porventura, em jogo o

comportamento dos minerais, dos vegetais e dos animais? É algo muito curioso o

caminho que a discussão pode ter tomado, se é realmente esse o viés do destino do

conceito de cultura. Enfim, a disputa por tal conceituação se coloca agora sobre dois

eixos, que, na verdade, são os mesmos: o homem e não-homem. 64 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626.

Page 115: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

115

Interessante ainda notar o comentário dado pelo verbete de que há a

possibilidade de a interpretação se dar pela ontologia e pela metodologia. Parece

estranho. Por que haveria de algum caminho interpretativo estar impedido, e por que

foram apenas esses dois os caminhos escolhidos? Parece preconceituoso não escolher a

interpretação sociológica, a fisiológica, a psicológica, a econômica, a política, a

historiográfica, a literária, a lógica, a matemática, a biológica, a astrofísica e outras mais

– tantas quantas venham a existir – nesse percurso de montagem conceitual do que é

cultura. Além disso, dizer que há a possibilidade, nesse caso, de interseção das duas

interpretações é pouco produtivo e eficiente para o definir, já que, em razão do rigor

etimológico do nome “de-finir”, há de se partir de duas finitudes, a ontológica e a

metodológica, para conseguir uma de-finição que torne a compreensão sobre o que é

cultura algo realmente bem finito, bem delimitado. Nesse caso, talvez haja uma espécie

de incompletude ou parcialidade em cada processo interpretativo que não se sustenta,

mas se torna subsistente quando em conjunto, a ponto de se chegar ao âmago do que

seja cultura.

Para mostrar um pouco mais o que se discutiu até hoje sobre o que é cultura, há

de se observar que ela já teve uma acepção mais ampla, mais aberta, por assim dizer.

Isso é o que mostra a seguinte passagem:

Muitos filósofos – e, em todo caso, a maioria dos “filósofos da

cultura”, antes mencionados – tenderam a dar ao vocábulo ‘cultura’ uma acepção extremamente ampla. Se com isso eles querem dar a entender que as atividades humanas não estritamente naturais – como seria o caso, por exemplo, das atividades biológicas (sem nem mesmo nelas incluir as sociobiológicas) – são atividades culturais, esta acepção ampla é admissível. Nesse caso, pode-se denominar “cultura” tudo aquilo que o homem faz e que o leva a “objetivizar” suas atividades em produtos, que passam a fazer parte de um sistema cultural transmitido de uma geração a outra e oportunamente modificado, e às vezes até mesmo radicalmente transformado.65

65 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 627.

Page 116: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

116

A amplitude da definição consiste, então, em conferir à cultura o

estabelecimento das atividades humanas não especificamente naturais como sendo

também as culturais. Esse entendimento não é só amplo por si só, mas apela para o fato

de que a parte biológica, ou fisiológica, do homem também participa da possibilidade de

se tornar e se entender como cultura. Esse é um caminho. No entanto, o rumo a que se

destina é o de colocar processos orgânicos, do organismo, do corpo humano, como algo

dado também como evento cultural. A cultura seria assim também produzida pela

fisiologia humana, ficando à mercê das possibilidades anatômicas do homem e

chegando, inclusive, a viabilizar o entendimento de que, se a anatomia humana e sua

fisiologia não se modificarem, a cultura como um todo também não se modificará. Isso

é evidentemente “esclarecedor”, porque coloca a cultura como algo submetido a uma

possibilidade de inércia e de imperícia, quanto aos seus movimentos e desígnios, não

sendo preciso se preocupar, a propósito, com uma releitura ou com uma reapreciação do

que com ela acontece no percurso histórico do mundo. Ela estaria quase para sempre

destinada a ser a mesma, desde o começo até o fim dos tempos.

Percebe-se até agora que o conceito de cultura é trabalhado sempre na tentativa

de trazer para junto de si algo que não exatamente se coloca como satisfatório para

designá-la. Talvez realmente não haja como. E, se há, ainda não se trilhou um caminho

de apreciação capaz de sustentar o entendimento acerca de um conceito. Nele, ou se

generaliza ou se adota uma correlação que o torna demasiado impróprio e não

esclarecedor. Dizer que é possível encarar a cultura sob muitos pontos de vistas seria

também dizer algo pertinente a todo e qualquer evento social que se queira conceituar.

Tudo pode ser visto com quaisquer olhos; diante das ciências e das filosofias várias,

contudo, é que se encontram os aspectos de os fatos desse mundo não poderem ser

Page 117: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

117

considerados de tal ou tal forma. Isso também não é novidade ou privilégio de nenhuma

argumentação capaz de tentar a sustentação de qualquer conceito.

As complicações conceituais são quase sempre freqüentes. Essa mesma

generalização gerou, por exemplo, o conceito oposto, defendido pelos não partidários de

tal amplitude conceitual. Assim, surge o seguinte comentário:

Há, porém, inconvenientes em dar ao termo ‘cultura’ uma

acepção tão ampla. Em virtude desses inconvenientes, e por várias razões, Mario Bunge propôs – num trabalho intitulado “Culture as a subsystem of Society: Culture as an Aspect of Social Change”, apresentado num simpósio de fevereiro de 1976 – considerar as atividades culturais como atividades organizadas por indivíduos, seja por indivíduos sozinhos, ou, mais freqüentemente, em relação e cooperação com outros. A cultura constitui então um “subsistema” da sociedade, na qual se devem levar em conta igualmente os subsistemas da economia e da política. O fato de que nenhuma atividade social seja puramente econômica ou puramente política – ou puramente cultural – não impede que se introduzam as distinções necessárias destinadas a evidenciar a relação entre o subsistema chamado “cultura” e o sistema chamado “sociedade”. O subsistema denominado “cultura” não é autônomo; ele está integrado aos outros sistemas indicados, mas pode distinguir-se deles e constituir por sua vez outros subsistemas (como a arte, a ideologia, a tecnologia, as humanidades, a ciência, a matemática).

Se se refina dessa maneira a noção de cultura como “subsistema social”, evitam-se as ambigüidades até agora ligadas a essa noção. Evitam-se, naturalmente, as amplas e vagas generalidades comuns em muitas das “filosofias da cultura”.(...) 66

Tal refinamento, como diz o verbete, é algo que deve ser entendido da seguinte

maneira: a cultura, bem como tudo o mais existente no mundo, formaliza-se como um

produto do mundo gerado pela grande indústria humana, chamada de sociedade. A

sociedade, sendo o sistema dos sistemas, engendra a possibilidade de sistemas derivados

existirem e se constituírem como tais dentro da sociedade. Quem gerencia a sociedade

como sistema devem ser, então, os indivíduos com suas disposições humanas e não-

humanas, orgânicas e não-orgânicas. Assim, o mundo é reduzido a uma grande máquina

66MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 627-628.

Page 118: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

118

a confeccionar, talvez, num contínuo, a existência das artes, da matemática, da religião e

tudo o mais. Muito curiosa é a interpretação que da generalidade permitiu um caminho

de entendimento bastante específico. A cultura como subsistema deve ser entendida, a

propósito, como uma delimitação no sistema sociedade. É possível também cogitar a

possibilidade de ela, como sistema, não só confeccionar tais subsistemas, mas também

gerenciá-los. A autonomia do subsistema cultura é, dessa forma, dependente do sistema

sociedade, que estabelece o modo como os subsistemas devem e podem funcionar. A

cultura é entendida realmente como um subsistema porque ela deve funcionar como

determina a sociedade. Isso, pelo visto, não parece um entendimento muito acertado.

Colocar tudo subordinado ao sistema é não entender a existência desse próprio sistema,

pois sequer é dado saber se a presença de um desses subsistemas é ou não

imprescindível para a existência do sistema sociedade. É bem provável, nesse sentido,

que a ausência ou das artes, ou da matemática, ou da biologia, ou da cultura seja

possível sem em nada afetar o sistema sociedade. Mas, no caso de o subsistema cultura

ser desconsiderado, destituído, posto fora de cena, aconteceria de existir, a partir de

então, uma sociedade sem cultura, um resultado perfeitamente possível a partir de tal

consideração do mundo dividido em sistema e subsistemas.

Conforme se vê, não é possível partir para uma releitura do que é cultura em

função dos pensamentos conceituais vigentes. Nem mesmo é bom tentar conceituar

cultura. A questão pode ser talvez, ao menos, apreciada naquilo que ela pode apresentar

como de oportuno para o entendimento do mundo, no sentido de uma referência dada

entre o homem e o que a cultura cultua.

Page 119: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

119

3.1. Cultura como distintivo da civilização

Tudo quanto participa do mundo pode ser tido como possível de ser entendido

como cultura. Mas, como caráter distintivo da civilização, ela tem sido objeto de muitas

especulações, fazendo mesmo com que se pense em uma cultura como algo a

estabelecer parâmetros modelares de condicionamentos humanos. Tais observações

chegam, de fato, a tentar, como resultado, estabelecer o que deve e o que não deve ser

entendido por cultura. Daí, surge a idéia de que existem culturas superiores e inferiores.

Normalmente, culturas antigas, politeístas, ou de algum movimento que não se sustenta

mais na atualidade, são tidas como primitivas, de modo que tal entendimento as coloca

numa posição de menor valor. Por outro lado, existem, naturalmente, as que se realizam

e sustentam até a modernidade e, com isso, são mais bem aquinhoadas e recebem o

prestígio social dos viventes desse cenário atual.

Acontece com o mundo grego algo um tanto curioso, acerca de tal divisão. A

cultura grega normalmente padece de uma dupla condição: a de ser bem e mal vista. Ela

serve ainda de referência e parâmetro para o pensar científico e filosófico moderno, ou

seja, para os aspectos tidos como racionais, mas não se presta para o serviço das coisas,

por assim dizer, espirituais – mesmo sendo ambos, na verdade, a mesma coisa.

Observando ainda a questão da religião, que é um aspecto do que se chama

cultura, é oportuno lembrar o que Walter Otto disse a respeito do olhar da modernidade

sobre tal cultura religiosa no mundo grego antigo. Desse modo, ele disse:

Assim, na virada do século (do XIX para o XX), e em virtude

das mais eruditas pesquisas, proclamou-se que a religião e a arte brotaram da “estupidez primitiva” (K. Th. Preuss). E já muitos anos mais tarde demonstrou-se, com aplauso de prestigiosos especialistas, que os homens dos primórdios acreditaram poder eles mesmos criar, por meio das artes da magia, tudo quanto era desejável, até que o fracasso evidente de suas práticas os obrigaram a criar os deuses; estimou-se também possível constatar, com exatidão científica, este

Page 120: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

120

grau máximo de primitivismo mesmo em uma religião como a romana (L. Deubner).

Esta teoria mágica é um fruto legítimo da era técnica.67

A argumentação de Otto se dá com o nítido tom da reclamação, apontando para

um problema de interpretação dos cientificistas da virada do século XIX e mostrando o

quão estranhas são essas leituras a respeito dos deuses da Grécia Antiga e os seus

modos de existência. Tal problema interpretativo reflete uma visão consideravelmente

limitada de observação e de abordagem de um fato acontecido em uma época não

conhecida pelo homem moderno e sua ciência. Como um período significativo, o

mundo grego, arcaico e antigo, poderia no mínimo ser considerado de modo mais

acautelado, mais prudente e não tão taxativo.

Tal desentendimento sobre determinada cultura, como a grega, revela que o

comportamento do homem moderno é o de encarar os fatos sempre sobre a

compreensão que se não deve ter, pois esta se dá via de regra sobre a que se quer tomar

e direcionar acerca de um determinado fato histórico. E o mundo grego antigo e sua

religiosidade demarcam o fato como pertencente à história não só do homem, como

também do mundo.

Nietzsche também se mostrou como um pensador que viveu na recusa de tal

postura do mundo moderno. Suas considerações são patentemente contrárias ao modo

como a ciência e o homem como um todo lidavam com o mundo, fazendo a observação

da realidade existente. Seu olhar recai, sobretudo, na atitude existente à sua época de

uma posição que primava por tentar fazer do mundo uma estatutização do

comportamento humano, designando-o como cultura superior e como cultura inferior.

Nietzsche volta e meia abordava o tema por muitos caminhos. Num deles, diz:

67 OTTO, Walter Friedrich. “Religião, Magia e o ‘Primitivo’”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 31.

Page 121: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

121

A cultura superior é necessariamente incompreendida. – Quem dotou seu instrumento apenas de duas cordas, como os eruditos, que além do impulso de saber têm somente um impulso religioso adquirido, não compreende os homens que sabem tocar mais cordas. É da natureza da cultura superior, de muitas cordas mais, que seja interpretada erradamente pela inferior; o que sucede, por exemplo, quando a arte é tida como uma força disfarçada de religiosidade. De fato, pessoas apenas religiosas compreendem até a ciência como busca do sentimento religioso, tal como os surdos-mudos não sabem o que é música, se não for o movimento visível.68

Certamente, o texto de Nietzsche contribui para a manutenção de cultura na

distinção entre superior e inferior. Mas o fato de ele querer inverter o que se entende por

cultura superior, apontando os problemas de interpretação da sociedade de seu tempo, a

modernidade, já é um indicativo de que tal leitura mostrava uma posição um tanto

quanto fora de propósito na realidade vigente e na não mais vigente. Em sua fala, a

cultura superior não é a moderna. A crítica, é perceptível, recai sobre os eruditos,

aqueles que não reconhecem os instrumentos de mais de duas cordas por se acreditarem

como os que sabem tocar os de duas cordas.

Cabe aqui observar que tanto Nietzsche quanto Otto concordam quanto ao papel

do erudito moderno sob pelo menos um aspecto (e não interessa avaliar se em outros

mais): ambos entendem o comportamento do homem científico, o erudito, como o que

costumeiramente atravanca as percepções acerca de muitos fatos que pertencem com

propriedade ao ser do homem. O ser e seus modos de se dar para a realidade por meio

de suas muitas entidades não conseguem se colocar à mostra de modo a possibilitar o

convívio na contingência e no vigor do ser do ente. O ente é avaliado somente como

entidade e não como ser, nesse sentido. Embora eles não tenham usado tal tratamento

vocabular com a mesma freqüência com que se usa aqui, a questão que está em jogo de

fato é a mesma.

68 NIETZSCHE, Friedrich. “Sinais de cultura superior e inferior”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 190.

Page 122: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

122

Em outra passagem, pode-se ver Nietzsche, mais uma vez, indo de encontro à

postura do homem moderno. Sobre o “Defeito principal dos homens ativos”, ele diz:

Aos homens ativos falta habitualmente a atividade superior,

quero dizer, a individual. Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes de uma espécie, mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. – A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante: ele é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme a estupidez da mecânica. – Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito.69

A posição de Nietzsche é curiosa e fala de homens ativos, escravos de muitas

contingências do mundo moderno. O que isso revela para a observação da cultura como

distintivo de civilização? Isso mostra existir, na ignorância que freqüenta cada ser

humano, um fato inconteste: o modo de lidar com as realizações fazendo delas sempre

um aparte de toda a dinâmica da realidade e do real. Quando Nietzsche mostra o homem

sendo vivente de uma irracionalidade permanente, traz à tona o momento de

reapreciação do fato, para que se perceba em que trajetória tem caminhado o homem

desde longa data. O princípio de atividade e do agir como um todo não deveria

reivindicar para si comportamentos a colocar o indivíduo numa postura de

irracionalidade e sim do seu contrário. Fica firmada e afirmada, diante de uma

cotidianidade das realizações, a postura de todo um comportamento tido como o

oportuno, o de maior utilidade e de maior eficácia, porque o homem ativo deveria ser o

maior contributo para a lógica social que visa à presteza e ao utilitarismo racional do

mundo, ao mesmo tempo em que deveria ser o maior tributável por ser o desencadeador

de uma realidade de todo operante. No entanto, o que se dá é justamente o contrário:

69 NIETZSCHE, Friedrich. “Sinais de cultura superior e inferior”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 191.

Page 123: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

123

diante de um pressuposto operacional eficiente e ativo, o homem não se opera e não

participa da realidade e do real tal como se supunha. A sua infelicidade é resultado de

um princípio de atividade que não proporciona, na franqueza de suas cotidianidades

laborais, nenhuma felicidade. O homem, assim, quanto mais ativo, mais infeliz. O ciclo

moderno do comportamento da sociedade e de sua civilização, na busca da evolução de

sua performance, tende, então, a trilhar o caminho de maior utilidade para o mundo e

menor utilidade para o seu próprio ser, chamado popularmente de “si mesmo”. Contudo,

o si mesmo moderno, merece um comentário. Ele freqüentemente é um “si mesmo” que

é tido como “cada vez mais si mesmo”, à medida que se pro-jeta e se intro-jeta de

atividades utilitaristas para o pressuposto melhor gerenciamento e condicionamento da

vida em sociedade, fazendo desta uma civilização sempre e mais civilizada. Ele é, por

conseguinte, um “si mesmo”, um ente, posto diante da atividade operacional do mundo,

e sempre a destino da infelicidade do ser. À proporção que se torna “cada vez mais si

mesmo”, dentro de suas muitas e múltiplas atividades civilizatórias, menos ser ele se

mostra.

Isso é provavelmente um processo decorrente de se entender que o homem é

mais civilizado e, com isso, humanizado, na razão de suas realizações: o homem evolui

se ele se civiliza e se humaniza sempre diante do exercício de um “si mesmo”

plenamente ativo e preso às suas muitas atividades. Quanto mais ativo, mais “si mesmo”

pressupõe-se. Não obstante, o caminho da civilização supercivilizada é o destino que

sempre estará a par de sua mesma infelicidade diante da busca de ser como Ser.

Crê-se, desse modo, no homem sendo um ente vivendo na crença do conceito de

civilização. Este, por sua vez, crê no conceito de atividade e de utilidade. O ativo e o

útil é o civilizado, o feliz. Outro engano, porque a felicidade não tem se encontrado até

hoje no e com o homem. Talvez o mesmo possa ser entendido acerca da expressão

Page 124: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

124

“consciência tranqüila”, a qual tem sido válida e utilizada para dar testemunho de um

pressuposto de “dever cumprido”, na tentativa de falar que a felicidade está presente.

Ora, tanto “consciência tranqüila” como “dever cumprido” aparecem quase que

invariavelmente em contextos similares: os que tentam demonstrar as tarefas realizadas

como de todo acabadas e asseguradas para o bem-estar da civilização de cada sociedade

em particular, mesmo sendo elas de menores representações quantitativas, ou seja,

mesmo sendo apenas um grupo de funcionários, de entes familiares etc. Isso apenas

indica que as tarefas já foram executadas dentro da ordem de suas competências e nada

mais há o que fazer. Assim, a atividade do homem ativo já foi por ele encerrada,

fazendo dele o que concorreu para a manutenção e a evolução de sua civilização, de sua

sociedade. E, supostamente ou não, isso basta e nisso se permanece enquanto “si

mesmo”.

Enfim, talvez isso também represente o “Erro de cálculo na sociedade”,

comentado mais uma vez por Nietzsche:

Este deseja ser interessante com seus juízos, aquele com suas afeições e aversões, um terceiro com suas relações, um quarto com seu isolamento – e todos calculam mal. Pois aquele diante do qual se representa o espetáculo pensa ser ele mesmo o único espetáculo que interessa.70

Parece possível agora pensar aqui algo sobre o homem moderno: sua posição

como um “si mesmo cada vez mais si mesmo”, porque desempenha suas atividades

como um espetáculo que se espetaculariza na oportunidade de se tornar o mais ativo dos

ativos dos ativos, na verdade, torna-o o mais feliz dos infelizes. E isto quer dizer: no

meio dos infelizes, o hiperfeliz é o mais infeliz de todos os felizes. A felicidade do

infeliz é ser o mais infeliz, fato que faz de sua infelicidade a sua maior virtude. Ser feliz

70 NIETZSCHE, Friedrich. “O homem em sociedade”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 212.

Page 125: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

125

é não perceber a atividade da infelicidade da civilização. Essa é a condição de algo

conceituado como cultura – moderna e civilizada.

3.2. Cultura e alguns o-cultos

Afinal de contas, poder-se-ia pensar o que é cultura, perguntado diretamente o

que ela é. Mas não se quer aqui partir para uma tentativa de definir cultura como algo

que faz assim ou de outra maneira. Talvez seja melhor começar tentando olhar por que

ela existe e porque não consegue deixar de existir.

Seja qual for o entendimento que se tenha de cultura, importa notar que ela faz

parte do mundo. Há quem possa dizer que ela não participa do mundo, alegando haver

uma conformidade social nomeada com tal designação, que, no fundo, não se presta a

poder ser considerada a partir de algo do mundo. Tal entendimento é possível, se se

entender que o nada existe antes de qualquer coisa e que o mundo é a constituição de

um monte de nadas existindo de uma maneira qualquer, mas padecendo cada nada de

ser nomeado segundo a arbitrariedade de cada idioma, em cada tempo e por um

determinado agrupamento humano chamado de sociedade ou algo do tipo. Só assim

pode-se considerar não existir aquilo que cultura nomeia. Partindo desse fato, então, o

mundo todo é composto de nadas metaforicamente apelidados de acordo com vontades

sociais e rotulados por uma força estranha e misteriosa, fazendo desse mistério o

cinismo de um cotidiano que somente conseguiu ser vivenciado pelo nome de cultura. O

problema decorrente disso é discutir o(s) nada(s), mas isso não interessa aqui. Sendo

assim, pelo que se nomeia cultura e pelo que ela não devia nomear com tal nome, ela

pode ser considerada pelo existir. Mas como é que se dá um existir de uma cultura?

Talvez cultura não seja mesmo algo que exista, pois que não passível de desempenhar

Page 126: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

126

as fortunas e os infortúnios da existência, mas é sim um acontecimento. Cultura é algo

sempre presente e ausente; é sempre o que recolhe da escolha da colheita. No entanto,

olha-se para ela tanto a partir do que ela dá quanto do que ela não dá. Cultura é algo de

caráter ambíguo tal como mito e religião; mas uma ambigüidade co-pertinente. Ambos

não existem, mas acontecem sempre, embora haja quem os despreze e os que não os

encarem por essa lógica. O certo, entretanto, é que não existe nenhum período da

história do homem em que não tenha havido mito, religião e cultura. Aliás, os três

obedecem a uma mesma ordem e conformidade. O mito se dá tanto quanto, e ao mesmo

tempo, se dão religião e cultura. Não é possível examinar a presença desses três

acontecimentos, sem a correspondência e a co-referência existente entre eles. Poder-se-

ia mesmo dizer que a linguagem também aqui já acontece. Um não acontece sem o

outro. Com isso, torna-se fato não ocorrer religião sem mito e mito sem religião, e, por

sua vez, ambos não se desempenham fora do que se chama cultura, nem esta sem

ambos, no que a linguagem sempre se dá como o que faz deles a permanência de cada

presença no seio do mundo no, com o e para o ser de cada ente. Essa compertinência é

inelutável e não se arredia.

Sob esse aspecto, talvez se possa observar o traço de referência entre cultura e

religião (incluindo-se os mitos e os seus rituais, sacrifícios e libações, cantos e danças).

Não existia rito sem mito, nem mito sem canto, canto sem dança, prece sem sacrifícios,

sacrifícios sem oferendas nos mundos arcaicos do mundo ocidental71. Todos esses

gestos se co-pertenciam fazendo com que o homem, enquanto ente, fizesse o percurso

de experiência do ser, na disposição da phýsis e na permissão do lógos. Chamam-se

gestos, porquanto todos eles comportam as maneiras pelas quais o ser se mostrava para

o ente na disposição de possibilidades interlocutórias de cada entidade, fazendo o

71 CHAMOUX, François. “Ritos e deuses”. In: A civilização grega. Portugal: Edições 70, 2003, p. 143-203.

Page 127: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

127

mundo ser entendido a partir de toda realização junto aos seus deuses e de todas as

realidades do real. Não havia um aparte, uma separação, uma ruptura, entre esses modos

de o homem se entender enquanto ser. Na forma com que se manifestava cada gesto

religioso-mítico-cultual, o homem fazia a experiência do ente na dimensão de des-

velamento da verdade do ser que se vela e re-vela em cada dimensão do humano, ou do

sagrado, que são o mesmo. Isso era o modo grego arcaico de fazer a experiência daquilo

que hoje se chama pelo nome de cultura. Mas há indicativos de que outros povos, com

suas outras culturas, faziam, cada qual a seu modo, algo muito similar ao que se deu

com os gregos nesse passado já longínquo. Walter Otto comenta o fato de ainda existir

no mundo a experiência originária do sagrado com seus ritos, mitos, magias, sacrifícios

etc., afirmando o seguinte: “Por certo, não cabe negar que a verdadeira magia existiu e ainda

existe. As fórmulas mágicas de alguns povos indígenas, combinadas a certas práticas, produzem

efeitos que, de nosso ponto de vista, por força têm de parecer milagres” 72.

Poder-se-ia aqui catalogar uma série de depoimentos de autores de prestígio e de

não tanto prestígio relatando as experiências nas quais o sagrado ainda possui uma

íntima relação com a experiência do ser. Mas não é o caso. Para dar um pouco mais de

esclarecimento sobre aspectos que circundam o mesmo fato, bastam ainda outras

afirmações do mesmo Walter Otto: “A cada ramo da humanidade o divino se revelou a

seu modo, dando forma a sua existência e fazendo dele o que efetivamente devia ser.

Também os gregos hão de ter assim acolhido a sua própria experiência do divino”73. E

mais adiante, ao fazer a defesa, por assim dizer, da religião grega, ele mostra a relação e

a referência existente entre o sagrado e o profano:

72 OTTO, Walter Friedrich. “Religião, Magia e o ‘Primitivo”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 31-32. 73 OTTO, Walter Friedrich. “O divino só pode ser vivenciado”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 20.

Page 128: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

128

O ofício divino e a vida profana não estavam tão completamente separados um do outro a ponto de caberem ao culto tão somente determinados dias, ou horas, podendo os assuntos mundanos, com seu regime próprio, ocupar à vontade, quanto espaço se quisesse. 74

Ora, em ambas afirmações, Otto coloca a relação homem e o divino como algo

único a referendar a unidade e a comunhão existente entre o sagrado e o homem. O ser

se dá ao, para o e no homem pelo convívio que estabelece com ele. Não havia outro

procedimento no meio da vivência que os gregos foram conjurados a fazer nesse

mundo.

A cultura grega arcaica, então, se não era apartada do divino, era principalmente

com ela e nela constituída e assim se deu com a maior parte dos povos ditos primitivos e

com aqueles que ainda fazem a experiência do mundo como a consagração cotidiana

com o divino. Não havia a separação entre o homem e o mundo e, assim, com o divino.

O homem vivia o mundo fazendo a vivência a partir do que o mundo lhe proporcionasse

como força criadora da realidade que se conseguiu construir. O divino dava o mundo

para o homem para que, nas disponibilidades do ente, deixasse se aclarar como sagrado,

na existência e no modo de o ser se dar como phýsis, na disposição de re-colhimento e

de reunião do lógos, o divino-dizente. Só assim o homem acontecia como sendo para o

mundo e para a sua permanente consagração. Mais uma vez aqui, vale lembrar Walter

Otto, tratando do desempenho do homem grego arcaico (que foi um dos que melhor fez

a experiência do sagrado) e do divino:

O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso não é o “absolutamente outro” em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. É onipresente. Todas as coisas e fenômenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos. Não fala de um Criador nem de um Senhor, e sim do Ser eterno que tomando forma neles se revela. Irradia com a inefável magnificência dentro da qual mesmo o destino

74 OTTO, Walter Friedrich. “A que se deve o desprezo pelo mundo divino dos gregos”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 21.

Page 129: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

129

mais triste é grandioso. Porém o Divino é muito mais que todas as coisas, fenômenos e instantes em que sua presença se declara. É a forma de todas as formas, a Essência vivente, disposta a falar imediatamente ao homem, indo-lhe ao encontro, se ele for homem de verdade. De todos os seres vivos, só o homem nasceu com a faculdade de perceber e verificar Formas Essenciais. Portanto sua própria constituição o liga com as formas do Ser e sua hierarquia, até, no ápice, a Forma do Divino.75

Tal entendimento mostra o divino não se realizando por si só, nem o homem

fazendo algum tipo de contrato com o divino para daí nascerem a glória e a redenção de

ambos. O divino é a proteção do ser e o homem faz a experiência de se saber e ser

protegido pelo deus. A cultura grega arcaica era certamente reunidora das habilidades e

das práticas humanas em seu maior estado de profusão e disso fazia o modo peculiar de

existência dos gregos. Jean Pierre Vernant, com sua historiografia helênica, afirma que

“A vida social aparece centralizada em torno do palácio cujo papel é ao mesmo tempo

religioso, político, militar, administrativo e econômico”76; além disso, diz mais adiante:

“A efervescência religiosa não contribuiu somente para o nascimento do Direito.

Preparou também um esforço de reflexão moral, orientado por especulações políticas.”77

Mas o que traz à tona o relato de Vernant não é somente historiografia. Nela, pode-se

perceber um indicativo de que a religião viabilizou o nascimento do pensamento

jurídico, das leis que regulam o universo social, num primeiro momento. Isso é

importante para se observar que a relação estabelecida com o sagrado para a orientação

do mundo do ser não se limitou a um relacionamento pormenorizado, circunscrito a

uma vivência de compadres e comadres. Não existiu uma comunhão homem e divino

que se desse só comprometida com o fomentar apenas uma intimidade frívola e

apequenada, ou mesmo primitiva, entre o sagrado e o mundo. O sagrado norteou o 75 OTTO, Walter Friendrich. “A exaltação do homem e a verdade do mito”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 86. 76 VERNAT, Jean-Pierre. “A realeza micênica”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 21. 77 VERNAT, Jean-Pierre. “A organização do cosmos humano”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 21.

Page 130: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

130

mundo e aquilo que se chamou civilização, contribuindo para a orientação do

entendimento político, militar, administrativo etc., tal como menciona Vernant em seu

estudo. Isso significa que o homem grego antigo – e, provavelmente, muitos outros

povos – entendeu a experiência religiosa originária do mundo. Assim, ele fez do ritual

de culto com o sagrado o parâmetro não modelar da vida, mas a própria forma de existir

enquanto ser, na dimensão da phýsis, conferindo à história o que é o condizente a toda a

sua cultura.

Jean Pierre Vernant ainda diz mais sobre o entendimento do pensamento grego

diante de sua realidade, do seu modo de ser:

Os homens, a divindade, o mundo formam um universo unificado, homogêneo, todo ele no mesmo plano: são as partes ou os aspectos de uma só e mesma phýsis que põe em jogo, por toda parte, as mesmas forças, manifesta a mesma potência de vida. 78

Tal consideração mostra, de maneira suficientemente clara, a condição do

comportar-se do religioso no homem grego antigo. O sagrado e todas as suas

conformidades vivenciais e experienciais sempre foram o norte do pensamento do

homem grego. Nunca se deu diferente. Cultura, no sentido de indicar a reunião dos

comportamentos e aspectos sociais engendrados pelo homem, ou melhor seria dizer

pelo movimento existente entre phýsis e lógos fazendo a experiência do ser do ente,

chega mesmo a poder ser pensada como o que é o resultado de condicionamentos

múltiplos, tendo como ponto de partida o religioso.

A influência e a determinação com que o sagrado participava do cotidiano na

vida do homem grego antigo era um fato evidente à medida que se olha para o que

foram os oráculos, principalmente o de Delfos. Muitos pensadores modernos e mesmo a

ciência ocidental dos últimos tempos rejeitam as possibilidades de intervenções do

78 VERNAT, Jean-Pierre. “Cosmogonias e mitos de soberania”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 81.

Page 131: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

131

divino com suas premonições e orientações de caráter, dir-se-á, transcendental. Mas

William J. Broad faz um estudo mostrando outros posicionamentos acerca do que foi o

divino oráculo de Delfos e sua influência no pensamento do homem grego antigo. O

sagrado orientava comumente o profano, sem dele se diferenciar e se distanciar. Assim,

o indivíduo permanecia em sociedade fazendo de tal convivência a predestinação e a

consagração de seus hábitos e de sua cultura. Muitas são as afirmações de William J.

Broad sobre o papel do oráculo e o comportamento da cultura grega antiga. A propósito,

ele diz:

Não podemos esperar entender os gregos a menos que

entendamos o Oráculo, a atração por ele exercida sobre a imaginação religiosa, sua fama de precisão, seu domínio, seu renome. A alta sacerdotisa transitava sem esforço entre o sagrado e o profano, aconselhando governantes, cidadãos e filósofos sobre todos os assuntos, de suas vidas sexuais aos negócios do Estado, sobretudo predizendo o resultado de guerras e ações políticas. Isso foi feito milhares de vezes. Os indícios sugerem que as palavras do Oráculo em vários casos mudaram o rumo da História. Ao longo de um vasto período – séculos em que indivíduos nasceram e morreram, impérios ascenderam e ruíram – , o Oráculo provou ser a força mais duradoura e influente da sociedade que foi, provavelmente, a mais importante jamais imaginada pelo homem. A pítia foi a estrela-guia da civilização grega. Não existe equivalente. Nenhuma figura religiosa ou secular, nenhum papa ou imame, nenhuma celebridade ou cientista, goza do tipo de respeito que os gregos tinham pelo Oráculo de Delfos.79

Talvez aqui possamos pensar outra coisa, um pouco mais arriscada sobre o que é

culto ao religioso na origem do homem sobre o mundo: possivelmente foi pelo aprender

a viver com o sagrado que o lógos lançou o homem para phýsis. O lógos do mundo é o

sagrado. Aprendendo a dialogar, o homem realizou seu ainda pouco aprendizado pelas

experiências com o mundo da phýsis. O mundo da phýsis, na dinâmica do ser do ente, é

o lógos acontecendo originariamente e sempre na dimensão do sagrado. A voz que diz o

dito do lógos é primariamente da ordem do sagrado fazendo a experiência do profano no

79 BROAD, William J. “O centro do universo”. In: O oráculo: o segredo da antiga Delfos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 23.

Page 132: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

132

coração do homem. A força de reunião, de recolhimento do lógos, conforma o homem

acontecendo diante do divino, fazendo do ser enquanto ente a dinâmica da existência

sobre a terra, estabelecendo o modo de o homem se realizar em meio às suas

realizações, constituindo a experiência do real, acontecendo em forma de cultura

cultivada como culto junto ao deus e lavrando o ser por toda a terra, tornando-se num

mesmo fruto e semente do mundo.

O que acontece na dinâmica do religioso como cultivar originário do homem é

um fato irrevogável acerca do comportamento humano e fecundo para a história do

mundo. Não se mostra de forma diferente em muitos outros momentos históricos e em

muitas outras sociedades o princípio de origem de toda a forma de pensamento. O

pensamento se orienta sempre articulando a consagração de um povo e seu conjunto de

hábitos e costumes, ao que parece, a partir dessa interferência, referência e interposição

do acontecimento primevo de todos os entes. O sair da terra, ver-se voltado para os céus

e sobre a luz do sagrado se orientar, fez o homem existir em sua humanidade,

constituindo os desígnios e destinos de sua comunidade, realizando a vida como

sociedade, cultura e civilização. Estar civilizado era simples e originariamente estar

sempre no entendimento do deus. O mundo não podia acontecer como humanidade sem

o contato com o lógos, como o dizer-consagrante da phýsis no ser do ente do homem.

É a isso que, em outras passagens sobre o oráculo de Delfos, o mesmo William

J. Broad alude:

O indivíduo comum não era menos supersticioso que os generais e líderes civis. Pastores perscrutavam o céu noturno em busca de presságios. Criados e operários viam como arautos do destino os trovões e as revoadas de povoadas de pássaros. Um espirro, um tique ou arrepio podia ser um sinal, pois era costume atribuir os movimentos involuntários à influência divina. Métodos simples de adivinhação eram usados o tempo todo, como os oráculos alfabéticos. De um saco ou de uma caixa, os que buscavam respostas tiravam pedras que traziam letras pintadas, cada uma expressando em determinado presságio: alfa, por exemplo, indicava sucesso, beta, perigo, e ômega, dificuldades futuras.

Page 133: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

133

A elite espiritual afirmava deter não apenas talentos especiais para interpretar, mas também poderes semelhantes aos dos deuses. [...]

Os gregos antigos não possuíam em seu vocabulário termos especiais para designar telepatia e vidência, mas acreditavam piamente que os indivíduos devotos eram capazes de chegar à percepção extra-sensorial, bem como à precognição, na forma de profecia ou adivinhação. 80

Nesse texto, mostra-se mais um aspecto da cultura grega antiga. Ela não

estabelecia nenhuma relação hierárquica, nem entre os homens, nem entre os homens e

os deuses. Um sempre vive na expectativa de operação das realizações da realidade

fundadas num comum experienciar do real, interagindo da mesma forma e sobre o

mesmo ato de consagração do mundo.

Isso denota que o modo de entender o mundo e nele desempenhar a experiência

do ser só acontecia como permanência do humano na mesma dimensão em que o divino

atuava como o lógos consagrador. Na força de reunião que lhe é própria, fazia-se do

recolhimento entre o homem e o sagrado a experiência do mundo, sendo o divino o

humano e o humano o divino, pois, como diz Walter Otto, “o divino oferece ao homem

a revelação de seu ser e, com isso, em vez de um penhor para o futuro, em seu presente

lhe franqueia os magníficos momentos da realidade”81.

Se esse comportamento do divino, incluindo-se aí a atuação dos oráculos, é algo

tão demarcado na cultura grega antiga, não há por que se pensar a realidade como

constituída por outro princípio; é dessa realidade que o ser se dá ao homem enquanto

ente. Isso aparece na história do mundo e por diversos caminhos. O modo de operar a

realidade por meio das múltiplas realizações do real só acontece por meio de e com o

divino acontecendo junto ao homem, desvendando o ente se velando enquanto ser.

80 BROAD, Willian. “O centro do universo”. In: O oráculo: o segredo da antiga Delfos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 27. 81 OTTO, Walter Friedrich. “A bem-aventurança”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 103.

Page 134: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

134

A relação que se estabelecia entre o ser e o ente é já desencadeada pela procura

de um se dando no e com o outro. Nesse dar-se, o divino se dá para o homem e o

homem re-colhe o que o divino lhe fornece para a consagração humano-divinado

mundo. A experiência que disso se estabelece é a mesma ocorrida sempre que o homem

procura desvendar-se a partir do ente enquanto ser. O homem não se entifica com suas

reais atribuições e atributos se não se fizer à procura do encantamento divino do ser.

Realizando tal procura, ele segue em busca de sua verdade (alétheia), na tentativa de

des-cobrir o lógos, que acontece como re-colhimento na dimensão de cada ser. O

recolhimento reúne, escolhe, colhe, acolhe. Tal reunião e colheitas se dignificam e se

tornam perceptíveis à medida que o ente se orienta na direção re-colhedora de cada ente

enquanto tal. Existe, então, no religioso e naquilo que se estabeleceu com o nome de

cultura, o impulso divino da phýsis se colocando como a pro-vocação do lógos, para

fazer o ente se dando no e para o homem, sendo essa reunião o acolhimento do ser para

esse mesmo ente, acontecendo como humanidade no seio da terra. Isso nada mais é que

o modo de atuar e de ser do homem no mundo, acontecendo como cultura: a busca e o

encontro no divino, para ele e com ele. O reunir do lógos é o que mostra e coloca o

homem sob a força de pertencimento junto ao sagrado e faz do ser a instância originária

de toda a história do mundo.

3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

Cultura é o que se cultiva. Somente se dando como culto e rito de cultivo do

homem com a terra, fazendo a experiência do ser, é possível pensar algo relativo ao que

chamamos de cultura, confabulando os traços da sociedade, da civilização, ou qual

nome se venha a dar a tal evento de reunião do agir de todos os homens no mundo.

Page 135: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

135

Assim, cultura cultiva instâncias de um vigor do mito e do religioso, porque tudo

surge enquanto crença. Na crença, a fé se coloca como a fiança de cada mito,

fomentando a religiosidade do ser do ente no meio do mundo, fazendo o entrelaçamento

dos agires humanos e possibilitando ao ser se dar como sempre sendo. O ser se orienta

pelo e com o mito, na religiosidade que pertence à realização e à realidade de cada ente

diante do real. Tal correspondência não é gratuita, ou fortuita; não se dá ao acaso. A

palavra cultura é originária do latim

colere (colo, colui, cultum), habitar; cultivar. O lexema IE (indo europeu) *kwel, indica a idéia de ir em torno de, o que se encontra no sânsc. cárati, ele se move, ele circula. No sentido romano era ‘prestar homenagem aos deuses’.82

Como habitar e cultivar, cultura é estar no convívio da terra, fazendo dela a

experiência do cultivo e do culto, recolhendo os destinos do ser que habita em cada ente

no desempenho de suas realizações e fazendo a experiência do real.

Como cultivo do culto, cultura sempre refaz a experiência mítica, porque parte

de uma fé como con-fiança. Con-fiar é estar na fiança e com o que é fiado. Isso talvez já

esteja a apontar o que é que deve ser considerado como digno de confiança: o homem

consagrado pelo, no e com o divino.

Mas é preciso ainda tratar da cultura e do que ela cultiva no homem. Em

princípio, cultivar é estar na ação do cultivo. Cultivante é a forma de o culto acontecer

para o homem. Na relação de estar como culto, o cultivo se realiza. Toda forma de

semente acontece como árvore e fruto porque está acontecendo dentro da e para a terra

como o culto. Dentro da terra, a semente dá a fecundar. A semente não é o que fecunda,

mas o que dá a fecundar. A fecundação dada pela semente para a terra já é o primeiro

gesto do culto, fazendo o mundo como cultura porque cultivada pelos movimentos

82 HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa (vol. II). São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 1302-1303.

Page 136: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

136

fecundantes da semente. Semear não é simplesmente o gesto de arar a terra fazendo nela

uma fenda. A fenda que se abre para o semear é um devir originário da terra cultuando a

semente como vigor originário do culto.

Não se pode pensar que todo semear é um ato arbitrado que faz com que o

homem tenha implementado no mundo a atividade da agricultura. A phýsis se planta

para dar o humano, como ser.

O gesto da fecundação é originário, mas só porque e quando participa e atua

junto ao sagrado como extraordinário. A phýsis é o extraordinário da terra realizando

sempre pelo e no mesmo rito o gesto originário do cultuar-cultivar que fez de Deméter a

deusa da agricultura e Géia, a Mãe-Terra. Ambas acontecem como a eterna repetição de

experiência desse modo sagrado de atuar como elementos telúricos fecundantes-

fecundadas. Nem Géia nem Deméter se realizam sozinhas, como deusas que são,

sacralizando o solo do mundo, fazendo o sagrado da terra. Existe entre elas o mesmo

vigor e desempenho originários co-participantes de um mesmo ritual, que gesticula

sempre o mesmo gesto, tal como toda e qualquer mulher acontecendo como mãe diante

da maternidade de seu ser. Ambas são as fecundantes e as fecundadas, assim como

homem e mulher dividindo-se como participantes da fecundação de um novo ser.

O movimento de quem fecunda é o mesmo movimento de quem é fecundado. O

fecundante não acontece sem o fecundo e vice-versa. Não existe nenhum princípio de

hierarquia ou de alteridade que não se encontre no mesmo do fecundar. Quando dois

entes se encontram no ritual divino e consagrado do acasalamento, o ser fecunda. A

fecundidade é uma disposição do vigorar da phýsis a se dar, a todo e qualquer momento

histórico do mundo, como ato de fecundação. Assim, quando a terra se mostra fecunda

para o ser do ente, nada mais acontece senão a ritualização e a consagração da phýsis se

mostrando por meio do e como o divino. Fecundar é o ato que só se realiza porque o

Page 137: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

137

sagrado acontece como unção no seio divino da terra. O modo de perceber isso é o

mesmo que ocorre quando a semente do homem e a da mulher convive no mesmo

espaço do útero, ainda que não se liguem para semear o culto-árvore do homem. Apenas

quando, por alguma razão, elas se encontram no sagrado do útero, passa a ser

desencadeado o movimento que dá origem ao feto e ao bebê como um novo ser. Muitas

vezes, essas sementes masculinas e femininas estão no mesmo espaço de vida, mas só

podem ser dadas como fecundantes quando atuam juntamente, impelidas por uma força

divina qualquer, nomeada sob qualquer nome da biologia humana moderna. A semente

e o semear têm que acontecer juntos ao fecundar da fundação originária. Somente

quando esse gesto se completa como um todo, o novo ser se dispõe como ente, ventre

do mundo, realizando o movimento e o vigor da phýsis.

Do mesmo modo, o cultivante não acontece como cultor, se não houver desde o

começo o gesto do cultivar. O cultivante e o cultivado são o mesmo em si mesmo no

mesmo. O culto e seu ritual operam numa junção de todo originária. A junção sempre se

deve à companhia e à atuação do rito. A família acontece como cultura quando o seu

movimento advém como rito de um culto que cultiva o mesmo gesto originário de todas

as épocas. Esse gesticular não é um mero agitar-se, mas um agir de todo fecundante, de

todo cultivante. O culto é o agir do rito junto ao sagrado do mundo. Não existe

fecundação sem o gesto da cópula, tal como não ocorre cultura sem a cópula enquanto

rito do mito, do sagrado. Isso significa que, para haver cultura, é preciso realizar o agir

originário do rito-mito e fazer junto ao lógos a reza que sacraliza a terra para que haja a

fecundação de uma nova cultura, a permanecer como a mais originária de todas elas, ou

seja, como a permanecer como o mesmo no mesmo. Para um cultivar a terra, é preciso

cultuá-la como culto e rezar a reza do sagrado no vigor do mundo como phýsis, fazendo

com que o lógos diga o destino histórico do ser de cada ente.

Page 138: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

138

O arar, nesse sentido, o que é? Arar é o agir que faz o gesto original do rito para

que oculto se cultive aqui e ali como cultivo, como culto, como cultura. Assim, é

possível entender que um determinado grupo social, uma determinada coletividade

humana, só acontece e permanece como cultura, quando, no seu cultivo, advém como

culto sagrado, permanecendo como luz do divino a luminar na noite e a noite do ser. O

ser clareado pela luz do divino se mostra cobrindo-se e se desencobrindo tanto mais

quanto for o vigor e a vigência do rito de seu culto sagrado diante de toda a terra nesse

mundo.

Se o homem entende o vigor do cultuar do culto de todo cultivar, ele começa a

estar na fronteira da colheita. A colheita ocorre como possibilidade e disposição de um

cultivar. A colheita é o divino que se mostra novamente como semente para o ser do

ente. A colheita é o que es-colhe, re-colhe e a-colhe o ser-sendo, atuando no sentido de

sua humanidade e fazendo o convívio com a terra para entender a phýsis como legein,

sempre consagrado para o e no destino histórico da existência.

A colheita, nesse caso, não é feita pelo homem. O homem não faz a colheita,

mas nela vive. O homem é posto como ente para que viva do fazer do culto de toda a

cultura como o ritual de sua verdade, no gesto do encobrir e do desencobrir do ser

diante de todo cultivar. A colheita é o que o ser recolhe da escolha do seu recolhimento.

O gesto do recolher está sempre se dando, porque o ser está sempre se velando e

desvelando como verdade. Tal velar-se e desvelar-se não são o fazer de uma experiência

em que gradualmente se adquire a apreensão e a compreensão do mundo em suas

verdades e correções, aperfeiçoando-se para o destino das perfeições depositadas num

futuro qualquer do mundo.

O velamento e o desvelamento da alétheia acontecem como o vigorar originário

da phýsis como ser e para o ser e nunca fora dele. O mundo não possui uma verdade,

Page 139: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

139

uma alétheia. Só quem a possui é o ser de cada ente. Ao ser, é dado ser participante de

sua própria verdade. Ao mundo pertence a phýsis em diá-logo com o lógos, dizendo-se

na reunião de cada ser como recolhimento.

A possibilidade de relação de lógos como colheita acontece no gesto originário

do recolhimento. Lógos sempre tem como escolha o recolhimento. A cultura pode ser,

então, compreendida como o vigor do lógos se dando no destino sagrado do mundo. O

que o lógos recolhe é a escolha do divino como alétheia para o ser do ente, fazendo

dessa correspondência a forma de a fundação do mundo se dar com a fecundação da

terra, tornando o homem humano em sua humanidade historial, agindo segundo as

disposições de phýsis.

É nesse campo que o homem é recolhido pelo culto da colheita do divino, do

extraordinário, no ser do ente. É também nesse sentido que Heidegger trata da questão

do divino para o homem grego antigo.

Para um grego, o divino, a deidade, funda-se diretamente no

extra-ordinário do ordinário. É na diferença entre um e outro que aparece e chega à luz. Em parte alguma encontramos a expansão extraordinária do ente, na qual e pela qual o divino tivesse de despertar e o sentido para o divino tivesse de ser mobilizado. Por isso é que a questão do “dionisíaco” também deve ser desenvolvida como questão grega. (...) Na Grécia reina, por toda parte, antes de mais nada, a claridade simples do ser, que deixa todo ente manter-se no brilho e afundar-se na escuridão. Por isso, tudo que pertence ao aparecimento do ser é sempre ainda à maneira do extra-ordinário, de modo que o divino não precisa ajuntar-se posteriormente ao ser nem tem a sua existência comprovada. Se, pois, a a1lh9qeia pertence à essência do ser originário e com ela à sua essência contrária, a lh0qh, então ambas são, originariamente, um qei=on, algo de divino.83

O que Heidegger precisamente coloca nesse momento é a questão do

extraordinário, o divino, e do ordinário, mostrando que o pertencente ao ser ocorre ao

83 HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 177.

Page 140: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

140

modo do extraordinário. Ora, a colheita se coloca para o homem como a presença do

divino trazendo a alétheia à superfície do ser-sendo. A clareira que se abre com o

desencobrimento da verdade dá ao ser a possibilidade de ele acontecer no mundo,

precisamente como a disposição do divino acontecendo ao seu modo. Pertence ao ser o

modo de agir do divino. A colheita só se dá como tal porque tende ao mesmo

movimento da verdade. A cultura acontece como colheita porque é este o agir da

alétheia para o ser do ente.

Não há como deixar de perceber que a colheita se dá para o ser. A fecundidade

da terra possibilita não todo e qualquer culto para se dar como o rito sagrado de cultivo

da terra, mas somente como o culto a desencadear a verdade do ser se desencobrindo

como colheita para acontecer como verdade do ser para cada sendo. O homem só se

coloca como verdade do ser quando a colheita se coloca como colheita trazida à luz do

mundo como destino histórico do ser.

Nisso, cultura e colheita atuam dentro de um mesmo agir coincidente com o

desencobrimento da fecundação do ser humano desempenhando sua humanidade. A

necessidade de uma cultura é proveniente de um vigor fecundante da phýsis

acontecendo como lógos para o ser do ente. Cultura é algo a brotar como o fruto

surgente para a colheita. Mas o ser só consegue se entender com a colheita que recolhe

da terra do mundo quando ele realiza, na disposição do ente, o modo pelo qual

aconteceu a fecundação do mundo. Mas o que é perceber tal fecundação? É permanecer

fazendo sempre o gesto da cópula, o rito de cultuar o destino do mundo. Dentro do

ritual da cópula, a fecundidade da fecundação de cada culto como cultura se aproxima.

Importa observar que fecundidade não é a fecundação, assim como o fecundar não é o

copular. Os quatro vigores da phýsis atuam na participação fecundante-fecundada de

Page 141: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

141

acontecer como cultura; cada um tem a sua disposição e a sua vigência, mas todos

sempre operam na cooperação do mesmo: cultura.

O cultuar, o entrar no movimento de culto, e assim realizar seu rito, é o dar-se

como fecundidade, fecundação, fecundar e cópula. Cultuar é estar diante do vigor do

divino acontecendo no ordinário sob a vigência da luz da verdade enquanto alétheia. Tal

luz, em referência com a terra, traz à tona o vigor da semente e fica à espera do rito, que

cultua o deus como semente e permanece como culto a cultuar como cultura.

Nesse momento, a cultura se coloca como registro histórico e mostra o vigor

originário do ser e de sua verdade. Cultura é, assim, também possível de ser entendida

como a forma de a verdade se dar como ser. A verdade do mundo se nomeia cultura: ela

traz, para a superfície da terra e para a luz do mundo, o ser se dando no ordinário como

extraordinário, como sagrado, como divino. Cultura é o sendo como extraordinário na

vigência do ordinário. Em função desse aspecto, Heidegger disse:

O que chamamos de “extra-ordinário” nós o apreendemos com

base no ordinário. O que o assim chamado extra-ordinário é em si mesmo e o que possibilita antes de tudo o caráter do extra-ordinário, em conseqüência, isso é baseado no deixar os entes virem ao seu brilho, na auto-apresentação, em grego: daíw.

O que deixa os entes virem ao seu brilho, no entanto, jamais pode ser explicado com base nos entes nem construído a partir dos entes, mas é o próprio ser. O ser que brilha para a cercania dos entes é to( dai=on – dai~mon. (...) 84

Heidegger trata do extraordinário como o que deixa os entes virem a seu brilho.

Isso indica que o divino, enquanto extraordinário, faz os entes se apresentarem como

cultura, na medida em que se auto-enunciam como legein agindo de acordo com as

disposições de cada cultivar e dando a verdade do ser como colheita do ente.

84 HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 154.

Page 142: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

142

Tal fato mostra que o ser-sendo está sempre na disposição de se dar enquanto

colheita. Para isso, é necessário o acontecimento primordial dos ritos de fecundação

desencadeando a cópula que dará a semente para o ordinário da terra. A par disso, a

semente, com o vigorar da phýsis, e a atuação do extraordinário, do divino, se colocará

como colheita no instante em que o ente se deparar com a vigência do ser-sendo se

realizando como presença da cultura.

O extraordinário atua no ordinário para trazer à luz a verdade do ser. A luz que

brilha como verdade é o divino congraçando o culto e todo o gesto do cultivar como

cultura. O ordinário sendo levado à luz se mostra como ser do ente justamente porque a

fecundação do mundo e todo o culto são sempre o encontro e a vigência do

extraordinário. A luz, que é dada a cada nascimento, é o encontro do divino com o

homem, sem o qual não há como nada ser plantado nessa terra e tampouco surgido com

o nome de cultura para destino da história do ser.

O encontro do divino com o homem semeia os modos pelos quais ele se planta.

Isso significa que o homem é estabelecido segundo as duas formas de habitar, sendo, ao

mesmo tempo, não só o que está entre o céu e a terra, mas também na possibilidade de o

ordinário se encontrar no e como extraordinário. O homem habita porque seu habitat é

estar sempre no meio dos dois, permanecendo como a interseção vigente de céu e terra,

do sagrado e do profano. O mundo como tal se dá como habitat, porque está sempre

como lugar de proteção do ente de cada ser. O vigor do mundo permanece como lugar e

instância originária para o ser se dar como ente ao nascimento de cada ser humano sob a

luz do mundo e a escuridão da terra. Isso faz do homem aquele que pelo culto do cultivo

se encontra com a cultura de cada terra.

Em cada terra, o humano se humaniza no encontro com o sobrenatural, com o

divino. Sua relação com este se dá sempre na emergência do semear e na transformação

Page 143: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

143

da semente que permanece como tal, na medida em que acontece como vegetal e se

revigora no vigor do fruto como o destino sagrado do cultivar. Isso é o seu modo de

habitar. O homem só habita na mesma dimensão em que se coloca à e na disposição do

cultivo de sua terra acontecendo como cultura.

Heidegger traz à cena o que o cultivar é enquanto habitar e construir. Ele diz: “O

que diz então construir? A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir,

“buan”, significa habitar. Diz: permanecer, morar. O significado próprio do verbo

bauen (construir) perdeu-se” 85. Mais adiante, ele explica tal correlação:

A antiga palavra bauen (construir) a que pertence “bin”, “sou”,

responde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. A construção de navios, a construção de um templo produzem, ao contrário, de certo modo a sua obra. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir permanece, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, “habitual”. Isso esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação.86

Heidegger retoma a palavra “buan”, para considerar os aspectos por detrás do

construir e do habitar. Está em jogo nessa hora a tentativa de entender a relação

existente em toda e qualquer cultura como habitar. Cultura, nesse sentido, fala dos

modos de habitar. E isso não é mera relação com uma etimologia a tentar sanear e

85 HEIDEGGER, Martin. “Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 126. 86 Idem, p. 127.

Page 144: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

144

comprovar os acertos e desacertos que se carregam sob os inúmeros conceitos de

cultura.

A relação de cultura e habitar é algo visível e verificável tal como é vivenciada

mesmo hoje. Cultura indica sempre o modo de habitar. A dita cultura das sociedades

indígenas, européias, africanas, asiáticas, americanas, todas elas se colocam como

experiência de mundo, mostrando como cada coletividade habita essa terra. Mas os

modos de habitar o que são? Pode-se aqui tentar um caminho: tais modos são os cultos

com os quais os homens fazem, re-fazem, des-fazem a experienciação do humano, na

dinâmica de orientações de suas competências e sob os exercícios de suas habilidades.

Tais competências e exercícios, os nossos modos de ser e existir nesse mundo, são

sempre os esforços orientados pelos caminhos da feitura de experiências da, com e pela

vida de cada ente junto ao mundo. Tentar entender e lidar com o existir é seguir sempre

o destino de compleição que conjuga ser e ente. O mundo é o ser-sendo. Esse sendo não

é um mero desempenhar tarefas. Sendo, o humano se abre como possibilidade e

compertinência entre phýsis e logos, referênia pela qual o sendo tenta, enquanto ente,

estar no exercício de ser no mundo. Isso é a forma como o humano se coloca como ente,

ora predestinado no e para mundo, ora submetido aos desígnios das tarefas que a

civilização, com sua maquinaria cada vez mais moderna e com todos os seus artefatos

industriais, comerciais, tecnológicos e sociais, articula para seguir o rumo das

realizações da realidade presente. Enquanto ente, o humano participa da civilização com

aquilo que ela oferece e tem oferecido até hoje; enquanto ser, o homem se delimita

como ente tentando fazer a experiência de ser e existir no mundo, num esforço contínuo

e simultâneo de entendimento e de desentendimento diante da compertinência entre

phýsis e lógos.

Page 145: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

145

Cultura é habitar sempre, porque para estar no seu habitat o ente já é dado como

o cultivo da terra. Ao vir à luz do mundo, cada ente está na dinâmica do ter sido

plantado pelo vigor da phýsis que, na escolha dessa colheita, já coloca o homem como

fruto deste mundo. Ser deste mundo significa: o modo de habitar condizente a essa terra

é o que nela se configura como próprio na articulação possível de se dar para a

existência, sendo sempre em si mesmo o mesmo e atuando do mesmo modo sobre o

mesmo para si mesmo.

Cultura acontece com o e a partir do habitar. Nunca se deu diferente essa

referência. Habitando, o ser se cultiva como ente. O cultivo e a colheita, com sua es-

colha e re-colhimento de semente-fruto, é o exercício originário do habitar. Assim,

habitar é fazer o exercício da colheita que tem se chamado pelo nome de cultura. Tudo

quanto é realizado como realizações dentro das realidades do real é cultura, é mostrar,

também numa outra dinâmica que é a mesma, a casa do ser. Existe uma relação entre

habitar e cultivar com o modo de o ser se dar enquanto linguagem. Na verdade, a

experiência da colheita, que como re-colhimento acontece também como es-colha, é a

experiência com a linguagem, em certo sentido. Os modos de es-colher, de colher e de

re-colher são o mesmo exercício que a linguagem faz com o ser do ente, enquanto tal.

No lidar cultivar-habitante, o homem já está desde sempre se fazendo como habitual,

construindo-se como habitação possível desse habitat, nessa terra.

Sempre que o homem diz que tem por hábito fazer tal coisa ou ser de tal jeito,

isso significa que já está presente e dentro de alguma conformidade o seu modo de lidar

com o cultivo, tentando fazer a experiência da terra e do habitar.

Habitar é acontecer como cultivador e cultivo, ao mesmo tempo. É também

fazer a experiência da terra. Não é possível habitar ou cultivar sem deixar a terra se dar

como terra, isto é, acontecer como sagrado e rezar a experiência do ser do ente,

Page 146: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

146

enquanto tal. Habitar diz também, por um outro caminho, deixar o sagrado acontecer no

homem, com e para ele. A forma de cultivar e de habitar se dá como prece. A reza que

reza o homem é a sua mundidade acontecendo sob a luz divina do mundo enquanto

sagrado. Habitar é dar-se ao e como consagrado, fazendo a experiência do divino. O

mundo não existe sem o divino. Dir-se-á que ele mesmo é o mundo. Habitar o e no

mundo é deixar o divino acontecer como experiência originária. Dado como tal, mundo

é habitação. Habitar é, nesse sentido, fazer da habitação o encontro de reunião e de

consagração do homem junto ao sagrado, permanecendo em sua comunhão e se

mostrando como cultura do mundo. Todo habitar é sagrado; assim também todo

cultivar. Não existe uma real distinção a ser estabelecida entre ser, cultivar e habitar.

Ambos acontecem como mundo no destino da terra. A terra só é terra porque se orienta,

conserva e constitui como tal, porquanto pertence a ela fazer o ser-habitante-cultivador

acontecer como homem. O homem é o acontecimento dado ao mundo como habitação

para fazer a experiência do habitar, já dada e não vivenciada ainda e de todo,

estabelecendo, assim, o cultivar do ser enquanto ente. Cultivar o mundo e cultivar o ser

é sempre uma mesma coisa. É fazer o mundo como habitar. É tornar o mundo tão ou

mais habitual sob conformidade de todos os hábitos possíveis de operação das

realidades possíveis. O mundo habitual do homem só acontece no e com a experiência

do habitar, cultivando-se enquanto ente, fazendo a experiência de ser e existir no

mundo, conjurado ao e pelo sagrado.

3.4. Cultivar como prece

Cultivar é rezar o mundo como habitar. Rezar é a forma de o homem estar no

mundo. Aliás, fazer uma prece, fazer uma reza significa estar dentro da prece, dessa

Page 147: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

147

reza que faz o ser acontecer como habitar. O construir como habitar só é dado ao

homem porque é nele e em prol dele que o habitar surge como cultura de todo um rezar

experiencial da existência. Mas o que diz rezar? Por que rezar acontece no cultivar

originário de todo homem? Se ele acontece(u) sempre, deve ser essa originariedade

digna de fundamentação do ser do ente enquanto tal ou é mero processo articulatório de

verbalização do gesto do sagrado. Infelizmente, não há estudos a respeito. Mircea

Eliade e outros tantos falam do mundo profano e do sagrado, mas não se ativeram

meticulosamente ao agir do rezar. Algumas religiões o definem pelo modo como

acontece a prece, e/ou a reza é proferida em cada uma de suas instituições, mas nada é

mostrado como o que possa ser digno de uma observação consistente acerca do que é a

prece enquanto rezar. E ainda: o que isso tem a ver com o habitar, o cultivar e o ser.

Rezar, fazer uma prece, diz Benveniste vir de

*prek-/*prex- (e) designa uma atividade puramente verbal, não comportando meios materiais e consistindo num pedido geralmente dirigido por um inferior a um superior. É por aí que *prek- ‘pedido de um favor’ se separa da raiz – não atestada em outra parte – que é representada pelo verbo latino quaero e o nome de agente quaestor.87

Isso não é o suficiente para mostrar o que é rezar. Mesmo Benveniste fazendo

uma competente apreciação sobre prece, não dá ainda instrumentos que informem a reza

como acontecimento do ente, mostrando uma emergência do ser. O fato é que a reza

acontece. Dizer que rezar é um pedido de um inferior feito a um superior é a

formalização do rezar. Mas rezar parece ser mais do que isso. É dito que todo homem,

se não reza, sabe rezar, ou tem condições para tal. Rezar é um falar com o superior. Essa

fala o que diz; e por que diz o que diz; e como diz? Normalmente, a reza acontece num

momento de procura de encontro com o sagrado. Mas a situação revela, ao que parece,

87 BENVENISTE, Émile. “O quaestor e a *prex”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 162

Page 148: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

148

um momento de urgência na instância originária do legein. Reza não é qualquer fala. É

o dizer dizendo o dito do lógos, no momento em que esse lógos se mostra com o divino

junto ao homem. O homem não reza. A reza é a comunhão que faz o homem estar

consagrado junto aos céus. Rezar é ir em direção aos céus, buscando o encontro com o

divino, com o extraordinário. O deus acontece no mundo como reza pelo dizer do

homem. O homem não diz a reza. Ele é deixado sob a experienciação do sagrado que se

nomeia como reza. Indo em direção ao divino, a voz que diz o dizer de cada reza é a

experiência ordinária do homem que vai ao encontro do extraordinário.

Por que o homem busca o extraordinário? O extraordinário, o divino, é o

desconhecido. A propósito, é dito que o homem é curioso; portanto, busca o

desconhecido; talvez, por isso, reze, tentando se encontrar com ele mesmo no e com o

sagrado. No entanto, o desconhecido sempre permanece como desconhecido. Não existe

nenhum conhecimento que cancele ou interrompa a busca pelo desconhecido como

encontro88. O homem, sempre, segundo o pensamento moderno, conhece mais. Mas,

quanto mais conhece, mais busca o desconhecido. Tratar do conhecido gera certo

marasmo e enfastiamento em muitos casos. A busca pelo desconhecido é constante e

dada. Não há como não admiti-la.

Parece, contudo, estar em jogo muito mais do que uma busca pelo desconhecido.

Reza não é um dizer qualquer buscando o encontro com o sagrado. O encontro com o

sagrado configura a experiência de o ente se dar e se encontrar enquanto ser numa

esperança ordinária sempre à espera, sempre à espreita e ao redor do extraordinário. O

ordinário só procura pelo extraordinário, pelo divino, porque sabe e pressente sua

88 Sobre a espera desse (des)encontro, Heráclito, em Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 63, já disse algo a respeito, no fragmento 18: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”. Tal afirmação diz o mesmo se fosse enunciada da seguinte maneira: Se se espera, se encontra o inesperado, sendo um caminho de encontro e com vias de acesso. Tal pensamento demarca o percurso do ser enquanto ente na busca e no encontro-desencontro junto ao sagrado, ao divino.

Page 149: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

149

vizinhança. O ente enquanto tal percebe-se nos arredores e sob a circunscrição de um

íntimo convívio com tal vizinho. O extraordinário habita o homem na sua vizinhança.

A reza é lógos se reunindo como habitação do ser. O homem só habita essa terra

à medida que consegue rezá-la. Todo o seu percurso junto a essa terra, a esse mundo,

não é a escolha arbitrada de um desenvolver-se colhendo e recolhendo o mundo como

tecnologias ou frutos de uma vegetação qualquer. A possibilidade de habitar só acontece

enquanto reza. É rezando que tudo acontece.

Rezar, a essa altura, significa: estar dizendo o dizer que constrói o mundo como

habitar e cultivar o sagrado junto ao homem, à proporção que o divino se presentifica

extraordinariamente com o ordinário. Sem essa referência, não existiria, talvez, a

possibilidade de o homem ser trazido à luz como acontecimento. A luz destina o

homem para o mundo à medida que habitar e cultivar se colocam como prece, como

reza. Rezar é o modo originário do lógos, fato que pertence à essência do ser enquanto

ente. Nos primórdios dos tempos, o homem não aconteceu como comunidade, como

civilização. No começo do pensamento, o rezar já acontecia para o e no homem,

traçando os destinos de seu cultivar e habitar essa terra. Distante de qualquer ciência e

tecnologia, foi rezando que o homem aconteceu como mundo e nessa terra.

Tal rezar está, é claro, longe de ser igualado a uma mera prece, casual,

subjugada a uma forma de agradecimento ou de pedido junto ao deus. Rezar era e é

permitir que o pensar aconteça como experiência do ser enquanto ente. Poder-se-ia,

então, perguntar quando o homem reza? O homem age enquanto reza o tempo todo,

porque todo pensar participa e se encontra como pensamento somente quando pergunta

pelo mundo junto ao sagrado. A luz do mundo deu a luz para o homem no seu

nascimento e a cada nascimento. Isso significa que o pensamento acontece como e junto

à luz do mundo do divino para o ser de cada ente. O homem se lumifica com a luz do

Page 150: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

150

divino, porque o seu pensar é todo a reza originária, o lógos que reúne como existência

o vigor da phýsis acontecendo com, para e no homem. O homem só acontece à medida

de sua reza. Rezar diz, então, de um vigor originário do pensamento, buscando o

entendimento do mundo enquanto phýsis na referência ao lógos. A referência originária

do lógos acontece como rezar. Rezar configura, de algum modo, a maneira como o

homem estabelece a sua sacralização. O dizer primordial do lógos é um legein sagrado.

A ele, deu-se o nome de reza, ou prece, ou oração.

Rezar é cultivar e habitar o e no sagrado. A reza diz sempre o que não é possível

dizer como ordinário, nem sobre o ordinário. Rezar é estar diante de um vigor do lógos

originário. Não existe uma razão moderna que consiga dar conta da explicação do

porquê o homem reza ou crê em deus. Sob o julgo de tal razão moderna, não faz sentido

o homem rezar suplicando por algo ou agradecendo a deus os frutos do existir.

Realmente, sob essa perspectiva não faz nenhum sentido. Isso ocorre talvez mesmo,

porque há muitas coisas “sem sentido”, “sem lógica”, ou “sem fundamento”. Mas tal

razão curiosamente não pensou até hoje o que ela chama de raciocinar, lógica, ou algo

do tipo; e isso sim é evidente.

O homem só reza, porque a reza acontece como sentido do pensar. Rezar é o

pensar originário que reúne, num só encontro, o que o mundo moderno chama de

pensar/raciocinar e sentir. Tudo quanto o pensamento pensa é o sentido do mundo

enquanto reza. A reza reúne, num só vigor do lógos, pensar e sentir, pois não há como

considerar nenhum tipo de movimento com o sagrado, ou com o que quer que seja, com

o diálogo e a interseção de um pensar sem ser sentido e um sentir sem ser pensado.

Aqui, há mais um aspecto: é o sentir a reza que se dá e dá a pensar. Todo pensamento é

precisamente reza sob a orientação do sentir-sentindo. Rezar se dá sempre e à medida

que o sentir aponta como sentido, fazendo do cultivar o habitar do homem sobre a terra

Page 151: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

151

e sob a luz do divino, numa referência de um no outro e ao outro. Todo sentir é entrar

em prece. Sentir se mostra como sentido pelo e no rezar, que dá acesso ao ser do ente

enquanto tal. O ser se diviniza quando corresponde ao e com o sagrado. Isso é o advento

do homem sobre o mundo nessa terra. O devir da reza é dar o mundo como habitar e

cultivar. Habitar e cultivar são o mesmo: rezar.

Habitando, o homem sabe-se em prece, junto ao divino, ao sagrado, fazendo a

sua consagração se estabelecer como advento originário do ser no mundo dos entes,

interferindo no cultivo e na colheita e tornando-se o intermediário do extraordinário face

à ordenação das realidades do real. A atuação do homem junto à realidade nada mais é

do que reza. Rezando-se, torna-se cada vez mais terra, no que se consagra como

também habitado no e pelo divino.

Não é fácil, de certo, encarar o habitar como reza originária do homem; isso, não

sem razão, não foi considerado nem cogitado até hoje. Mas o fato é que rezar não é um

mero dirigir-se a deus ou a qualquer entidade superior, proferindo alguma contingência

dos desejos para continuar na permanência desse mundo. É o próprio modo de o homem

acontecer segundo seu ser na medida de cada ente enquanto tal. Rezar é sentir o sentido

do habitar o mundo, nunca querendo se afastar ou deixar-se pôr em afastamento da luz

sagrada, surgida como nascimento para o homem, o que provoca o desencontro com o

sagrado, o divino, o extraordinário, que são em si mesmo o mesmo, agindo no mesmo

do ser de cada ente. Sentindo, o homem habita e cultiva e se colhe no recolhimento da

colheita.

Cultura é, para o ser, proveniente do modo como o ente se realiza como sendo.

O homem sendo está na disposição do ser do ente enquanto tal. Mas o homem só é, se o

sendo estiver na mesma referência em que o rezar habita e cultiva o e no homem.

Enquanto ente, o destino do mundo se dá como reza. A reza permite ao homem o

Page 152: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

152

mundo como habitação e colheita, mesmo que os modos de habitar e colher sejam

múltiplos e variados. Aliás, é necessário que as maneiras de habitar e colher sejam

diferenciadas para que se perceba, pela diferença de cada ente, que o existir de cada ser

não é algo dado de modo uniforme. A identidade de cada ente se dá pelo somatório de

todas as diferenças. Somadas, elas dão o homem para o mundo, configurando o que se

chama de cultura, de humanidade, de civilização etc. A identidade não pode, então, ser

vista como a equalização das diferenças. Ela é o que, das diferenças, faz o modo de cada

ser acontecer enquanto ente, justamente pelos seus atributos e atribuições se realizando

como terrestre, como terreno, permitindo e dando acesso ao homem como o ser da terra

de todas as terras desse mundo.

Cada reza age como cultura à medida que se dirige e se encontra na vizinhança

dos céus junto ao divino, mostrando o lugar originário de cada habitar. Assim, o homem

é construído. Mas também o divino atua como divino e faz a experiência do homem na

dimensão do sagrado. Essa experiência só é dada ao ente porque nele está a disposição

de o ser se dar ao mundo pelas possibilidades e disposições da phýsis atuando junto ao

lógos originário, que reúne como vigor do pensamento a reza de cada cultura que se

inaugura e se instala sempre a partir do mesmo e sobre o mesmo dessa terra. Não há

como fazer a experiência do humano, fazendo a humanidade da terra, se a reza não

acontecer como habitação e cultivo do ser de cada ente enquanto tal.

Page 153: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

153

4. Linguagem e pensamento: (des)caminhos do sentir

Heidegger falou: “linguagem é a casa do ser”89. Parmênides disse: “o mesmo é

pensar e ser”90. Considerar-se-á aqui a tentativa de um outro caminho, provavelmente o

mesmo. Existe uma referência originária entre linguagem, pensar e ser. No entanto,

quando se pensa, o que é o pensar? O pensar acontece quando pensamos. Quando

pensamos, somos. Nisso, somos a linguagem enquanto sendo.

Mas o que acontece quando o pensar se pensa? Há quem diga que nesse

momento se veiculam imagens91. Mas a veiculação de imagens não é da competência do

pensamento. Veicular imagens já é estar na disposição de uma forma do pensar. Tal

consideração mostra apenas parte da linguagem. Parte-se então do pressuposto, nesse

momento, de que o pensamento só ocorre em conformidade com uma linguagem pré-

existente e de todo dada, a ponto de o pensamento só conseguir ser executado a partir de

uma decodificação que o considera na oportunidade de ser veiculado da maneira com a

qual se veicula. A veiculação de imagens, se é tarefa do pensamento, constitui-se como

o que faz o pensar como um produtor de categorias morfologicamente determinadas por

qualquer tipo de simbologia. As imagens são o pensar. Como imaginação, já se adentrou

no âmbito da linguagem veiculada por qualquer idioma. Comparando com outras

categorias e tecnologias existentes no mundo, pode-se então afirmar que a natureza

pensa porque também veicula imagens. A organização do cosmos também faz o mesmo.

E mesmo uma televisão ou monitor veiculam imagens.

89 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1967, p. 55. 90 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 45. 91 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 75-77. Sobre o pensamento como imaginação e imagem, ver parte V desse capítulo, itens 62 e 63.

Page 154: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

154

Caberia, então, partir para a consideração de que existe uma natureza que pensa,

um cosmos que pensa e um monitor pensante e todos se comportam da mesma maneira

que o pensar humano. Não existe, nesse sentido, diferença entre o homem e os demais

entes e/ou realidades e realizações existentes. Esse caminho considera que o pensar é

algo que se dá também fora do homem. Mas isso, certamente, é posto de lado, não tem

sentido. Há de se considerar o caminho um tanto quanto tortuoso.

Deve ocorrer que a questão do pensar não caminha nesse passo. Mas há de se

permanecer nas imagens por mais um instante. As imagens que o pensamento pensa

onde acontecem? Acontecem dentro da nossa cabeça. Então, o pensar é o que está

dentro de uma cabeça. Porém, dentro da cabeça estão uma série de parafernálias

fisiológicas, orgânicas e todas elas, ao que se sabe, não pensam. Dizer que o pensar é o

que se dá dentro da cabeça do homem aponta para o fato de se dizer a localização do

pensamento – mas, mesmo nesse ponto, ainda não há uma resposta satisfatória, porque

ainda permanece uma dúvida: onde realmente o pensamento acontece, dentro ou fora da

cabeça? Nisso surge uma outra situação: sobre o pensamento presente, que se dá no

momento em que o homem se coloca na disposição de tal dinâmica, alegar-se-á que está

dentro; mas e o pensamento que já foi pensado, nunca editado, assim como o que será

talvez, quem sabe, um dia, pensado, onde se localiza, fora da cabeça? O pensamento é

algo de dentro e de fora, poder-se-ia dizer. O pensamento está em todos os lugares, essa

seria a conclusão. Mas o homem mesmo sabe que não é assim. Diante sempre de um

pensamento novo, ele se coloca como o detentor de uma idéia possuidora de muito mais

fronteiras e limites do que qualquer continente neste mundo. O pensamento próprio é de

cada indivíduo e tão individual que nunca chega a ser do conhecimento do mundo dos

outros entes pensantes, outros homens. O pensamento possui limites intransponíveis.

Nem mesmo por telepatia se consegue ler determinadas considerações, ou elucubrações,

Page 155: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

155

sobretudo, as tidas como originais, ou inovadoras. Mas é certo também que, por

telepatia, consegue-se chegar a ler os pensamentos do outro. Como é que se lê um

pensamento? Quando lido, quando na realização da leitura, o que se lê é ainda o pensar,

ou a linguagem, ou uma representação de linguagem. Há quem possa considerar que o

que se lê são as imagens interpretáveis daquele pensar. Então, volta-se para a imagem.

Outra questão surge: existem, dessa maneira, imagens interpretáveis e imagens não-

interpretáveis. Como afirmar que uma imagem não é interpretável, se, para dizer que o

não interpretável não é passível de interpretação, é preciso ocorrer, de algum modo, um

tipo qualquer de justamente interpretação? Diz-se que uma imagem é não-interpretável

e isso significa que há maneiras do pensar acontecer de tal modo que o pensamento não

é passível de interpretação. Todavia, como pode o pensar se mostrar destituído de uma

forma de interpretação? Seria acaso um pensamento com defeito ou algo do tipo?

Mesmo assim, um pensamento com defeito seria, ainda, nesse caso, o resultado de um

pensamento. O pensamento não-interpertável acontece como imagem que não se

mostra. Tal condição é fortuita e parece razoável na medida em que, se um pensar

acontece como algo que não se mostra, não pode ser entendido como o que foi pensado;

pois na ausência da mostragem, necessariamente, não deveria ter ocorrido nenhuma

possibilidade do movimento de pensar. Uma imagem não-interpretável parece, então,

comportar-se como uma forma, talvez, chamada de atípica de pensamento. Assim,

acredita-se entender que o pensamento acontece de duas maneiras, ao menos: uma

típica, interpretável; outra, atípica, não-interpretável. Seja qual for a forma de ele

acontecer, seria sempre um pensamento.

Não há, nesse momento, ainda, a oportunidade de se considerar a lógica, mas há

de se seguir em parte esse caminho. Dizer que o pensar acontece como interpretável e

não-interpretável deve ser o mesmo que dizer que há pensamentos lógicos e não-

Page 156: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

156

lógicos. Na verdade, um pensamento lógico é tanto quanto ilógico. A questão da lógica

é sempre determinada por um parâmetro qualquer previamente dado e estabelecido as

mais das vezes de modo arbitrário, mas admitido no seio de uma determinada cultura. A

propósito, os vieses culturais são eficazes em mostrar que as lógicas se desencontram na

multiplicidade dos seus universos . Há muito mais conflitos lógicos no mundo do que se

pode supor. E às vezes não é necessário nenhum código verbal para se determinar tal

situação.

Mas, voltando: o não-interpretável é o ilógico do pensamento. O pensar nesse

ponto é avaliado a partir de uma medição acerca do entender92. Há aqui de se considerar

medição. Quem acredita no lógico é igualmente crente do ilógico. Essa pessoa,

certamente, não faz sentido. Não faz porque ela tem que se perguntar em que momento,

a partir de que pensar, surgiu a autorização e a autoridade de determinar o estatuto da

lógica. Não existe pensamento lógico ou ilógico. Existe pensar. Ninguém, nem mesmo

o pensamento, tem como dar ao mundo e aos entes a possibilidade de aferir o que é da

competência da ordem do mundo. Nenhuma definição sobre o que é da competência da

Lógica, mesmo como Ciência, serve para aferir qualquer grau de sua própria orientação

conceitual. O conceito de que a Lógica dispõe, apresenta de igual modo o ilógico. Na

verdade: o conceito que se confere à lógica partiu de uma determinação e regulação

qualquer de um pensamento assim designado para tratar de certas competências das

realizações entre algumas das realidades do real, e deste modo se conformou. O seu

percurso em nada difere de qualquer organização mental, seja ela científica, filosófica,

cultural, religiosa, que tenha passado a figurar a partir de determinado momento da

92 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 27. Na parte I desse capítulo, Wittgenstein começa indagando com as seguintes perguntas: “Como se pode falar sobre ‘entender’ ou ‘não entender’ uma proposição? Por acaso, não é uma proposição até ser entendida?”. Mais adiante, no final dessa parte, afirma: “é estranho que a ciência e a matemática façam uso de proposições, mas não tenham nada a dizer sobre o entendimento dessas proposições”. Isso mostra o quanto até hoje não foi apreciada a questão do pensamento sob nenhum aspecto, nem ao menos sob a sua forma proposicional.

Page 157: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

157

história do homem e, assim, a prestar serviço nas atribuições e nas atribulações do

mundo. Dessa forma, não há como acreditar na existência de um pensamento lógico ou

ilógico, interpretável ou não-interpretável.

O pensar volta, dessa forma, à questão de ser uma imagem. Ocorre que a

recíproca não é verdadeira: uma imagem não é um pensamento, porque não é capaz de

pensar. Dizer que ela é a representação de um pensamento que foi pensado, não é

suficiente para considerar que a representação como imagem é o que deu o pensar. O

pensar, orientado a partir da representação, não é satisfatório. O pensamento não

representa o pensar, nem se representa como imagem. O pensar pensa e não se constitui

de outro modo. Se representa, cabe perguntar: o que representa a representação do

pensamento enquanto tal? Existe um pensar que aconteça sob um pensamento

genuinamente representado? Toda e qualquer forma de representação é, ao que se

mostra, uma figuração. Uma figura do pensamento é apenas o resultado do exercício do

pensar. O pensar visto como um resultado é uma dificuldade acerca do entendimento do

estar pensando.

Aqui, vale rememorar outra apreciação sobre o pensar: ele é entendido como um

exercício da mente. Como exercício, tenderia a um tipo de melhor performance. O

pensamento é o exercício performático da mente93. Aqui, há três fatos considerados: 1º

o pensamento é a mente; 2º o pensamento é um exercício; 3º o pensamento se

aperfeiçoa por meio de uma performance.

O primeiro fato apenas coloca o pensamento confundido com o instrumento

fisiológico de sua faculdade, facultando-o enquanto pensar. O segundo se mostra como

uma tarefa a ser desempenhada num quando qualquer da vida, ou no tempo todo dela. O

93 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido – Parte V”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 78. Nesse momento, Wittgenstein diz: “É uma deturpação da verdade dizer ‘O pensar é uma atividade de nossa mente, como escrever é uma atividade da mão’”.

Page 158: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

158

terceiro faz do pensamento algo que é passível de melhorias em sua execução. Nenhum

dos três considera o que realmente o pensar pensa.

A mente é um artefato. Por nenhuma razão, a mente é o cérebro que pensa.

Podia ser qualquer outra parte do corpo humano aquela a ter a correspondência do

pensar. Aliás, há quem diga que alguns homens pensam com o coração. É bom aqui

atentar para o cérebro. A biologia moderna diz: um cérebro com grande atividade

mental (leia-se: em plena atividade pensante) realiza várias sinapses. Mas o que pensa

uma sinapse? Talvez nunca tenha pensado. Se ela não pensa, como ela contribui para o

pensamento pensar e acontecer enquanto tal? Uma sinapse acontece pela atividade dos

neurônios. Estes se dão por meio de descargas elétricas. O que a eletricidade dos

neurônios, donde decorrem as sinapses, produz como pensamento? Certamente, não há

resposta, porque uma sinapse, um neurônio ou uma descarga elétrica não são da ordem

do pensar. Então, o pensamento não é a mente, ou o cérebro; mas outra coisa diferente.

Se se considerar o pensamento como exercício, os caminhos também se mostram

difíceis. Há de se enveredar pelo entendimento de que o pensamento acontece à medida

que se exercita. Bom, sobre o ser humano, diz-se que ele está sempre a pensar. Por esse

viés, o exercício corre o risco de ser medido em razão do tempo de vida de cada

indivíduo. Quanto mais se vive, mais se pensa. Mas parece que isso ainda pode ser

contra-argumentado, alegando-se que o exercício do pensar acontece somente e

sobremaneira junto aos grandes homens “pensadores” da humanidade. Talvez se

arrolem aqui o nome de alguns filósofos, pesquisadores, cientistas, artistas, ou algo do

gênero. Isso talvez seja possível. Contudo, parece que a realidade não se patenteia e não

se conforma diante de tal observação. Não é difícil ver, na biografia de muitos deles,

uma impossibilidade da atividade mental quando acometidos por uma deficiência

mental, uma esclerose etc., no fim da vida. A biologia e fisiologia humana parecem não

Page 159: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

159

cooperar no mesmo sentido. Já que sobre homens desse galardão compete mostrar o

quanto o pensamento se desenvolveu, mediante tamanho exercício durante a sua vida

intelectual, eles acabam por não se colocarem como as melhores representações para o

exercício do pensar.

O pensamento, quando pensa, se exercita: tal declaração pode parecer simples de

afirmar, mas nada fácil de constatar. Nesse momento, há, então, de se entender que

pessoas mais idosas desempenham mais e melhor, o tempo todo, o exercício do

pensamento. Mas existe quem alegue que há crianças, adolescentes e pessoas mais

jovens que demonstram uma atividade mental intensa, colocando-se mesmo como

novos “gênios” da humanidade. Percebe-se aqui que tal fato gera uma contradição

historiográfica para localizar com precisão o que é o pensamento como exercício. Isso

inviabiliza qualquer possibilidade de entendimento das temporalidades do pensamento,

sofrendo o processo de maturação e destreza no percurso de vida do próprio pensar.

Como exercício, o pensamento se dá mediante um aperfeiçoamento e sua

performance. O pensamento, agora, deveria ser entendido como uma atividade mental

que é cada vez mais pensamento à medida que o pensamento evolui. Mas como medir a

evolução do pensamento? Normalmente, isso é feito comparando momentos

historiografados e a partir de tal cronologia do mundo é dito que o pensar humano

evoluiu, sem contar o fato de que nessa hora o que é chamado de evolução é decorrente

da comparação entre hábitos existentes e não mais existentes. Evolução é o

comportamento da moda. Se a moda muda, e mudou, evolui-se, é o que se diz. Assim, a

conclusão única possível é a seguinte: o pensamento desempenha sua performance à

medida que acompanha a mutação da moda.

O que a moda modela é a predestinação do pensamento. A exibição do

pensamento na passarela do pensar humano é correspondente ao desfile a ocorrer em

Page 160: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

160

função do modelo da moda chamada evolução. Em termos mais cientificistas, a moda é

a teoria nova. A performance do pensamento é a freqüência do exercício que

acompanha a mudança das teorias velhas em teorias novas – talvez seja isso o que tal

consideração esteja levando em conta nesse momento. Mas aí ninguém até agora atinou

para o fato de que a passagem de uma teoria a outra não é evolução, sobretudo, se elas

forem distintas. Aliás, mesmo permanecendo em suas semelhanças. Importa observar

que, sendo a velha ou a nova, o pensamento permanece como teoria. A performance do

pensamento é o exercício da moda enquanto teoria e coisas do gênero. Tudo quanto aqui

se quiser elencar pode ser elencado, mas parece que o pensar não conseguirá se desviar

dessa estagnação performática considerada acerca do pensamento, quiçá do próprio ser.

Mas talvez não seja nada disso.

O que está sendo feito até aqui é o que Wittgenstein, de certo modo, expressou

quando disse: “A idéia do pensamento como um processo inexplicado na mente humana

torna possível imaginá-lo transformado em uma condição amorfa persistente”94. Tal

afirmação de Wittgenstein não é um pensamento elogioso, mas a constatação de que o

pensamento ainda não foi considerado na sua devida forma de pensar. Em tempos mais

recentes, ele fez um esforço considerável para se aproximar do que fosse o pensar

enquanto linguagem. O pensamento, para muitos, é uma condição amorfa persistente.

Tal condição faz dele algo ainda inexplicado.

De um modo geral, a linguagem enquanto pensamento é vista como um

mecanismo psicológico ou sociológico, em que os gestos de pensar não são formas de

agir, mas algo determinável, em certa medida, pelas possibilidades de interpretação dos

fatos e eventos. Isso não parece suficiente, porque inverte a condição de pressupostos.

Observa-se a linguagem em razão do meio em que o pensamento opera e por quem

94 WITTGENSTEIN, Ludwig. “Parte VII – A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 106.

Page 161: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

161

opera. Aí na verdade se considera a linguagem como um advento do ego, veiculando as

subjetividades de uma sociedade já determinada pelo comportamento que é interpretado

como condizente ao sujeito enquanto indivíduo. Mas a linguagem não é o indivíduo.

Linguagem nunca é individual. A apreciação da linguagem por meio de onde pensar

provém ou se determina é um desvio do entendimento acerca do encontro com a

linguagem como pensamento. Wittgenstein comenta num outro momento:

Uma explicação da operação da linguagem como mecanismo psicológico não é de nenhum interesse para nós. Tal explicação usa, ela própria, a linguagem para descobrir os fenômenos (associação, memória etc.); é, ela própria, um ato lingüístico e fica fora do cálculo, mas precisamos de uma explicação que seja parte do cálculo.95

Importa notar que o pensamento de Wittgenstein também se conforma dentro de

um método a querer determinar a operação da linguagem. Efetivamente, ele não pensa o

pensar, mas tenta averiguar como o pensamento acontece mediante as proposições e

seus sentidos. Mas sua afirmação mostra algo já mencionado aqui: o fato de a

linguagem ser inoportunamente medida ou considerada a partir das muitas formas de

avaliações possíveis. A psicologia pensa linguagem como algo interpretável pela

própria psicologia; assim o faz a sociologia, a física, a lingüística e todas as demais

determinações humanas, sociais. Nesse momento, a linguagem é pensada não como

pensamento, mas como e a partir de outras finalidades não condizentes com o seu vigor

e o modo de se dar diante da realidade.

A linguagem existe antes de quaisquer determinações das citadas há pouco. Não

é possível querer chegar a um entendimento razoável se se fizer esse percurso pelo

caminho inverso. É possível, acerca das construções humanas, dar uma interpretação,

por exemplo, à função do edifício, e isso pode ser feito pelo olhar da psicologia, da

95 WITTGENSTEIN, Ludwig. “Parte II - A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 50.

Page 162: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

162

sociologia, da engenharia etc. Mas a linguagem não é um edifício, o pensamento muito

menos, até porque ambos acontecem dentro da mesma referência. Pensar e dizer são o

mesmo. E, de certo, não se há de pensar no dizer como mera articulação acústica que

executa fonologicamente ou graficamente as sentenças e ou enunciados em geral. O

dizer é o pensar, numa mesma dinâmica.

4.1. A linguagem diz e não fala

A questão da linguagem é de uma busca incessante. Nela, o ser enquanto ente se

mostra e se dá cumprindo o seu destino. A linguagem é o que se coloca como sentido

para o ente, enquanto ser. Mas isso não acontece quando se fala. Existe uma referência

entre falar e dizer, é o que se pensa normalmente, mas não é bem isso o que ocorre.

Heidegger disse que: “Dizer e falar não são porém o mesmo. Alguém pode falar, falar

sem parar e não dizer nada. Por outro lado, alguém pode ficar em silêncio, não falar e

nesse não falar dizer muito”.96 O fato de haver tanta fala e tão pouco dizer pode ser

considerado a partir da experiência que o homem faz com a linguagem no mundo

ocidental moderno. A linguagem se coloca para ele como mero instrumento de

consumo. Para consumir o mundo de maneira comunicativa, ele dana a falar. A fala

como ferramenta fica destinada a servir como instrumental para as articulações

rotineiras dentro do cotidiano. A fala é, nesse sentido, se fazer valer de um dado

conjunto de palavras e sentenças para que, sob sua vontade, possa estabelecer e manter a

aparente ordem do viver na sociedade moderna. Não é da ordem do comportamento

moderno estar comprometido com a palavra senão numa dimensão da utilidade. O

utilitarismo junto à linguagem e o pensar não funcionam, porque não se correspondem. 96 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. p. 201.

Page 163: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

163

O pensamento enquanto linguagem, grosso modo, não tem utilidade. Isso significa que

pensamento e linguagem não se dão no mesmo lugar do que se entende por útil ou

inútil. O pensamento é o pensamento porque é isso o próprio do pensar e acontecer

como linguagem. Não existe outra possibilidade de referência com relação a ele.

A linguagem se comporta sempre no seu destino independente dos desatinos e

descaminhos do mundo. Se o mundo se conforma dentro de parâmetros e crenças que

regem as realizações e a realidade para o caminho operacional da trivialidade do

cotidiano, é de se notar que a phýsis e o lógos não se comportam da mesma maneira.

Sempre o que se dá como instância originária não se modifica pelas tecnologias da

modernidade. Uma árvore, por exemplo, não se modificou com o advento da

modernidade, com a revolução industrial ou os tecnologismos informáticos e

performáticos dos últimos tempos. Uma árvore continua se plantando, nascendo,

crescendo e se desenvolvendo tal como a primeira árvore do mundo. Um cachorro

também segue o mesmo destino. Uma criança é dada à luz por meio de uma mulher e

isso não acontece de outra maneira senão da mesma com que nasceu a primeira criança.

Podem-se inventar vários tipos de partos e mesas operatórias, mas o nascer é sempre o

mesmo. As doenças sempre acontecem como doenças e a morte é sempre da mesma

maneira. O deixar de existir é sempre o mesmo. Tudo isso não se moderniza, bem como

o pensamento e a linguagem. Não há tecnologia ou sucessão historiográfica dos tempos

e de seus acontecimentos que modifiquem o modo de o dizer ser dito, enquanto

pensamento e linguagem.

Aliás, sobre o tempo, vive-se acreditando que a sucessão temporal acontece

cronologicamente. A dificuldade que se soma ao entendimento do existir e do ser do

ente na linha do tempo tem sido medido a partir de uma sucessão de momentos em que

o primeiro acontecimento é deixado de lado em função do evento seguinte. O último

Page 164: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

164

momento e o momento presente, na verdade, a rigor, quase não mais interessam, ou

acontecem junto ao interesse do próprio ente. O homem, como ente, sempre vive a

expectativa de um futuro melhor, muito provavelmente porque os momentos anteriores

já são dados a priori como momentos piores. Isso explica a questão do consumir e do

cálculo como consumo. Heidegger, sobre isso, diz que

Pensando em tempos modernos, o tempo é algo que o homem coloca em seu cálculo, e isto como o enquadramento vazio da progressão das ocorrências, uma depois da outra. Em toda parte, não somente na física, o tempo é o “parâmetro”, isto é, aquelas coordenadas, ao longo (para0) das quais transcorre toda medição (me0tron) e cálculo. O homem usa e consome o tempo como “fator”. Como conseqüência dessa disposição, que consome e consuma, o homem constantemente tem cada vez menos tempo, apesar de seus esforços de economizar tempo, isso porque economizar e poupar tempo é necessário até mesmo nos mais ínfimos procedimentos tecnológicos. Para o homem moderno, o sujeito para o qual o “mundo” se tornou exclusivamente um “objeto” uniforme, também o tempo tornou-se um objeto de consumo. O homem moderno, por isso, sempre “tem” cada vez menos tempo, porque, de antemão, apropriou-se do tempo somente como cálculo, e fez dele uma obsessão, embora ele presumivelmente seja o legislador, cujas leis dominam o tempo. Para o pensamento primordial grego, pelo contrário, o tempo é que concede cada vez mais tempo e é ao mesmo tempo o tempo concedido, e assim lança o homem e todos os entes em sua disponibilidade, determinando em todos os casos o aparecer e o desaparecimento dos entes. O tempo descobre e encobre.97

Tal conformidade dos tempos modernos mostra o tempo como medida feita e

dominada. A contradição da qual ainda o homem não se deu conta é a de que, mesmo

pensando em dominar o tempo, em controlá-lo de alguma maneira, ele está sempre a

reboque do domínio do tempo, que não se domestica. Não é possível domar o tempo,

ainda que os aparatos tecnológicos, ou a física moderna, ou qualquer outra teoria

venham a ser considerados. Não há como fazer com que o tempo seja regulável ou

determinável. O homem não é quem dá o tempo. O tempo é que se dá para o homem

97 HEIDEGGER, Martin. “Parte III, seção b”. In: Parmênides. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 203-204.

Page 165: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

165

junto ao seu destino histórico diante da disposição do ser enquanto ente. O surgimento

do tempo é sempre algo que permanece dentro de sua dinâmica originária, mas sendo

vivenciado pelo homem, na contramão historial do mundo, como acontecimento.

Heidegger, mais uma vez, sobre como tempo se comporta na sua instância

originária, diz:

“Tempo”, compreendido de modo grego, xrónov, correponde

em essência a to9pov, que erroneamente traduzimos por “espaço”. Porém, topos é o lugar, e especificamente aquele lugar ao qual algo pertence, por exemplo, fogo, chama e ar para cima, água e terra para baixo. Assim como to9pov dispõe a pertença de um ente para seu lugar de presentificação, assim o xrónov dispõe a pertença do aparecer e desaparecer ao seu “então” e “quando” destinados. Por isso, o tempo é chamado de makróv, “amplo”, no sentido da possibilidade, indeterminável a partir do homem e marcada cada vez pelo tempo singular, de liberar os entes para o seu aparecer ou retrair-se. Uma vez que o tempo tem sua essência neste deixar aparecer e retomar, o número não tem nenhum poder em relação a ele. O que concede a cada ente, cada vez, seu tempo de aparecer e desaparecer, se subtrai essencialmente a todo cálculo.98

O sentido grego de tempo não é só o modo de trazer para a discussão nos dias de

hoje um sentido que não está mais em voga, ou que não se realiza na mesma

compertinência. O tempo grego, entendido por makro0v, é algo que ainda é do vigor

originário que não se esvaiu ao longo do mundo. E como originário, não deixou de

acontecer na mesmidade de sua presença, descobrindo e encobrindo o mundo enquanto

phýsis e lógos. A amplitude do tempo não é determinável pelas humanidades. A

disposição do tempo se dar para o mundo e para o ente enquanto tal não é um

determinador das formas de agir e construir e habitar o mundo. Isso não revela a sua

verdade enquanto alétheia.

O movimento da verdade é o mesmo do tempo enquanto makro0v, e isso, de

algum modo, é registrado pelo homem quando diz o seguinte a respeito de alguns

98 HEIDEGGER, Martin. “Parte III, seção b”. In: Parmênides. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 202.

Page 166: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

166

acontecimentos: o tempo sempre trará a verdade à tona; ou deixa estar que o tempo dirá

a verdade. O que está em jogo nessas sentenças tão costumeiramente freqüentadas no

cotidiano moderno, ainda surge como o que permanece acerca do vigor e da presença do

tempo no sentido originário do pensamento grego. Lamentavelmente, não há uma

observação acontecendo de modo experiencial sobre tais declarações. Mas o tempo ser

trazido à presença como resquício do passado grego é o fato de que tempo e verdade se

encontram numa mesma referência de disposições e possibilidades acontecendo para o

ser do ente nesse mundo. Heidegger lembra que o “tempo descobre e encobre” e isso é o

mesmo caminho de vigor da deusa verdade. Verdade como desencobrimento acontece

no limite e no limiar de cada tempo, na singularidade de cada ente. A verdade vem com

o tempo significa, de algum modo: ela acontece no encobrimento como desencobrir de

cada ser, à medida que o tempo dá o homem para a sua verdade, cada uma em si mesma

a mesma. Verdade e tempo acontecem no mesmo movimento do lógos mediante o vigor

da phýsis, possibilitando, numa mesma referência e compertinência, a experienciação do

ser enquanto ente. O descobrimento na sua essência é o que dá a indicação de acesso ao

ser sendo. O ser sendo se mostra na disposição e vigor do humano enquanto ente e, a

cada maneira de entificar-se, o tempo surge na mesma dimensão do existir de cada ser,

fazendo a experiência da existência e acontecendo diante do mundo cultivando-se em

seu mitho0v como habitação e reza, realizando as realizações da realidade do real junto

ao extraordinário.

O desencobrir-se no encobrimento é o que acontece como o vigor de cada ente

enquanto ser. O ser acontece como ente à proporção que a realidade o conforma

mediante um modo de entificar-se, para daí fazer a experiência do existir. Tal

experienciação é o acontecimento sempre ordinário a acontecer na dimensão mesma do

extraordinário. Para tal acontecer, ordinário e extraordinário se encontram no mesmo

Page 167: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

167

tempo e na mesma verdade, fazendo a experiência do existir com o e pelo

desencobrimento do encoberto do mundo enquanto lógos, convivendo e partilhando do

vigor da phýsis. Em tal caso, o sagrado se revela também como encontro possível junto

e no ordinário.

É nesse campo de convivência que verdade e tempo se localizam e se dão para o

ser de cada ente. Mas onde está o pensamento e a linguagem nesse caso? Pensamento

acontece como linguagem na disposição de cada tempo, revelando-se na referência da

amplitude que se dá no desencobrimento do encoberto do ser e no momento em que o

ente surge como sentido e orientação do lógos. O pensamento enquanto linguagem é

uma disposição do lógos que tudo reúne, trazendo o homem como mito para

permanecer em seu habitar, cultivar e rezar na história do mundo.

Por outros caminhos, Heidegger já falou o mesmo, quando disse:

Para sermos o que somos, nós humanos permanecemos

entregues ao vigor da linguagem, sem dele nunca podermos sair de maneira que pudéssemos vislumbrar esse vigor sob outro prisma. E é por isso que só vislumbramos o vigor da linguagem è medida que a linguagem nos olha, nos guarda e nos apropria. Conceito tradicional de saber como representação não nos possibilita saber nada sobre o vigor da linguagem. Isso não é, contudo, de maneira alguma uma privação, sendo, ao contrário, o que favorece um âmbito privilegiado no qual nós, recomendados para a fala da linguagem, habitamos como mortais.99

A permanência no vigor da linguagem é que faz com que o ente do ser se dê

como olhado, guardado e apropriado. É no olhar que o ser enquanto ente habita; é no

guardar que ele se mitifica e reza; e é no apropriar que ele se cultua como cultivo e

colheita dessa terra. Nessas correspondências, que são sempre o dizer o mesmo, o ente

acontece na sua humanidade, co-pertencendo à phýsis e ao lógos como linguagem.

99 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 214.

Page 168: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

168

A linguagem, casa do ser, estabelece o vigor vigente no lógos, para que se dê

como o que é próprio do ser e aconteça e permaneça como dizer. Ela acontece como o

lugar, horizonte e destino primordiais, originários do ser de cada ente, fazendo com que,

no lugar, o ente se mostre como desencoberto e, no horizonte, coloque-se o destino do

desencobrir da verdade e do tempo enquanto tais. Como palavra, seu desempenho não

se submete a qualquer consideração do agir do homem, mas somente sob esse prisma é

que ela tem sido utilizada. Heidegger afirma o seguinte a esse respeito:

A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em

nenhum lugar em que o destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural, essa que nomeia que o ente é e como o ente brilha e brota. A palavra para a palavra, um tesouro na verdade, nunca foi encontrada na terra do poeta; mas e na terra do pensamento? Quando o pensamento procura pensar a palavra poética, mostra-se que a palavra, o dizer, não tem ser. Nossos hábitos representacionais reagem todavia contra esse entendimento. Todo mundo vê e escuta palavras, tanto na escrita como na língua falada. As palavras são. As palavras podem ser como as coisas são, a saber, perceptíveis para os sentidos. 100

Por isso, é difícil pensar linguagem nos tempos atuais precisamente porque ela

não é pensada. Assim como verdade e tempo, ela não acontece como disponível para o

maquinário das ações cotidianas. Interessa já aqui notar que Heidegger coloca a questão

do dizer e do falar como um perceber, considerando o equívoco comum observado

sobre o que são as palavras quando tentam dizer o pensamento, sobretudo o pensar

poético. Tal apelo para o perceber aponta o sentido equivocado de seu uso,

demonstrando estar presente uma relação com os sentidos não apenas material e

concreta, mas se dando a partir do que mais superficial os sentidos promovem como

percepção. Isso certamente ainda decorre de uma conta que o cálculo moderno não

consegue calcular e nunca mesmo conseguirá, porque o vigor do perceber não é

calculável por cada um dos sentidos dos quais o ser humano dispõe. 100 HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 150.

Page 169: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

169

O cálculo medindo a linguagem a partir do falar e do dizer compromete o vigor e

a vigência do pensar e, mais ainda, compromete a sua própria condição matemática, de

precisão e exatidão, inerente a qualquer cada calcular. Se o cálculo não se mostra como

capaz de calcular com precisão, ele mesmo se torna inoperante como calculador no seu

desempenho como elemento de precisão, visto que a própria modernidade e seu modo

de lidar com a realidade fazem com que qualquer competência de realização de suas

atribuições diárias não se satisfaça dentro de sua mesma funcionalidade.

A condição do cálculo está destinada à falência pelo modo como a sociedade da

exatidão se destina. Mesmo sabendo que a realidade não se conforma baseada no

princípio da precisão, há sempre um discurso da objetividade, ora como pano de fundo,

ora como o discurso majoritário, a determinar os modos de apreciar e definir o

comportamento da realidade do real. Sobre isso, Heiddeger expõe:

Como no entanto o pensamento de hoje tem se tornado cada vez mais decisiva e exclusivamente cálculo, ele concentra todas as suas forças e ‘interesses’ disponíveis em calcular como o homem pode imediatamente instaurar coisas no espaço cósmico desprovido de mundo. Esse tipo de pensamento está a ponto de abandonar a terra como terra. Enquanto cálculo, o pensamento se empenha com velocidade e obsessão na conquista crescente do especo cósmico. 101

Perdido como ânsia matemática e determinística, o pensamento moderno lança o

homem para o abismo do ser, provocando o desencontro entre o ser e o ente no

desempenho de sua humanidade. Tal desencontro não acontece como o episódio ou o

evento momento que advém de uma correria isolada no meio da contemplação do agir

de cada ente. O desencontro é mesmo a realidade de uma celeridade típica e oriunda da

mesma emergência do cálculo como forma de lidar com o pensamento. O pensamento,

sob a vigência da ânsia matemática da modernidade, comporta-se sempre se refazendo

101 HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 147.

Page 170: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

170

como um calcular que a própria matemática não plenifica. A disposição matemática

acontece com o propósito de acelerar o pensamento como eficácia. O destino de eficácia

é viver o embate com a ineficiência. O conceito da ineficácia ou da ineficiência não

edifica como edifício. O edifício que a cada instante se constrói acontece como

destruição de cada eficiência já consolidada como deficiente. Após cada cálculo

eficiente, há a prescrição da necessidade de mais e mais eficiências. O destino do

mundo matematicizado, objetivado, é viver prisioneiro da objetividade, que não se

comporta diante de nenhum objetivo. Nada se sustenta e se assegura como componente

da realidade porquanto cada realidade calculada tende a ser superada por uma nova

razão de cálculo, tentando, ansiosamente, mostrar-se como o mundo assegurado por

meio da matemática das operações e realizações do cotidiano. A objetividade só pode

ter como destino o objetivo sempre a ser superado por um novo objeto, face ao que, já

calculado, não pode mais ser medido, porque essa ou aquela conta, essa ou aquela

matemática já somaram o que poderia ser somado. Assim, a conta do cálculo é a ânsia

que não se pode contar. Mesmo porque, não dá tempo de a contabilidade existir como

cálculo no destino do ser. A essência do cálculo é o viger da ânsia dos tempos atuais. E,

na ansiedade, o tempo consome o homem, na dimensão do ser do ente enquanto tal.

4.2. Pensamento: linguagem e sentido

Gilles Deleuze trata da questão do sentido das proposições da seguinte maneira:

O sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as designações possíveis e mesmo para pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que o eu começa a falar; eu não poderia começar sem esta pressuposição. Por outras palavras: nunca digo o sentido daquilo que digo.102

102 DELLEUZE, Gilles. “Quinta série: do Sentido”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 31.

Page 171: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

171

Delleuze considera a questão da linguagem como sendo aquela que possibilita a

existência das sentenças e das proposições se dando sem veicular o sentido nelas

existente. Assim sendo, o sentido não é veiculado, segundo ele demonstra em seu

argumento. Mas, se, por um lado, ocorre a consideração de que as proposições não

veiculam sentido, já que ele nunca é dito, por outro lado, há de se atentar para o

seguinte: como pode uma proposição não dizer o sentido? Como é possível entender

uma proposição, se nela não vem o sentido, mesmo se considerando que a priori o

sentido não é veiculado? Isso parece um contra-senso e por duas razões a serem

imediatamente observadas: primeiro, porque se deveria falar apenas de sentenças;

segundo, porque o sentido nunca poderia ser apreendido, visto que nunca é veiculado.

Não é sobre sentenças que o entendimento se dá. É a partir das sentenças que

ocorre a possibilidade de se aproximar do que ela veicula, no que são dados os

entendimentos possíveis. Uma sentença por si só não comunica nada. Sempre há sentido

no que se comunica. Aliás, o que há sempre é sentido e muito pouco a sentença. É

muito comum encontrar quem entenda uma sentença ou proposição não pelo que nela

foi dito, mas pelo sentido que por ela foi expresso, mesmo que o que se sentiu não

corresponda ao significado do conjunto vocabular contido na proposição enunciada.

Pode-se até alegar que a pessoa não ouviu o que foi dito. Isso, de fato, ocorre. Mas

certamente não ouviu o dizer preciso da sentença, porque a medição de cada precisão se

mostrou como e pelo sentido. Pode-se até alegar que ouve uma pressa no ouvir de modo

que apressadamente não se ouviu o que foi dito. Mas o apressar do ouvido é algo que

não se determina pela lentidão da sentença enunciada, porém apenas pela sentença

auditada. A sentença falada, a propósito, muito pouco freqüentemente passa e/ou

veicula o mesmo dizer da sentença ouvida, porquanto a sentença que fala carrega

Page 172: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

172

consigo as experiências correspondentes à experiência da fala, dita na diferença de cada

ente, fazendo a experiência do ser. O que se ouve, contudo, passa pelo conjunto de

experiências do ente-ouvido, ouvindo a fala não do outro, mas a do seu próprio modo de

entender-se com o lógos, que só para ele fala o que diz. Ou seja: pelas diferenças

contidas entre o falar de um com o ouvir do outro, a referência dada como possível

acontece sempre a mesma, mas nem sempre articulando a igualdade como igualdade de

conteúdo proposicional. A referência existente entre o ouvir e falar de cada proposição

articula, para cada ente, uma proposição que passa pela diferença do ente em sua

identidade. Não é possível entender com o ouvido a matemática do que foi dito. A

matemática não acontece nem no dito que se coloca como dizente, nem no ouvido que

se coloca como audiente. O que existe é uma interferência de sentidos entre uma

proposição e outra, entre uma fala e outra. Mas também só se percebe o sentido quando

a fala acontece como dizente, mesmo que a fala seja o comunicar do silêncio, visto que

este diz mais do que muitas falas em muitas ocasiões. A impossibilidade de haver

precisamente a mesma correspondência de entendimento acerca de uma dada

proposição decorre de que, pela experiência do ser enquanto ente, as diferenças dadas à

medida que o ente acontece no real advêm do evento do acontecer no mundo de uma

maneira tão própria que o apropriar-se acontece como sentido, lendo o mundo do dizer,

fazendo precisamente, de novo e sempre, a experiência do sentido de cada ente. O ente

não experimenta a leitura fazendo a captação dos vocábulos contidos uma dada

proposição, ou numa seqüência de proposições. O ente faz a experiência do ser somente

a partir dos sentidos, que são desencadeados pelas proposições que demarcam o

percurso do sentir do ouvido para dar fala às diferenças da identidade de cada ser. A

articulação de proposições, mesmo que seqüenciadas e encadeadas numa mesma

composição temática, não dão a lógica para o texto dito, entendido como conjunto das

Page 173: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

173

proposições. Não existe lógica a ser dada. O sentido é que dá o ente para o ouvido que

escuta o ser que se comunica em correspondência com o lógos experienciado em cada

ente, trazendo à tona a disposição e o vigor do ser. Enquanto linguagem, o ser do ente,

na dinâmica do lógos, reúne-se mediante o conjunto de signos para fazer a experiência

de ouvir não o outro, mas da escuta do próprio lógos a dizer, sempre sendo lido pela

vigência das diferenças de cada ente. A leitura que cada ente faz passa e é garantida

pelas diferenças de ser do ente diante da realidade de mundo. O que se ouve é sempre a

escuta do sentido e dos sentidos acumulados na dinâmica das diferenças. Uma mesma

proposição, via de regra, muda de sentido quando escutada e ouvida pela segunda e a

terceira vez, de maneira que tanto o sentido muda quanto o que foi expresso pela

proposição. Nesse caso, há uma correspondência e interferência do dizer da proposição

mediante o ouvido que ouve. O sentido se potencializa na experiência do ser enquanto

ente. Como ser, o ente se dá fazendo a experiência do sentido. Ouvir é tanto ouvir como

falar e assim se desempenham os demais sentidos na vigência e na dinâmica das

diferenças, na configuração das identidades. Outro fato que isso freqüentemente acarreta

é o caso de uma mesma proposição ser diferentemente ouvida, quando direcionada a

mais de uma pessoa. Pode até acontecer o mesmo entendimento, a mesma interpretação,

mas isso se dá apenas no caso de haver a mesma co-referência do sentido existente entre

esses dois ou mais indivíduos – o que, em geral, é pouco provável. No que diz respeito

ao significado imediato, a comunicação se dá por meio da linguagem em razão de ser

apreciada pela superfície habitual dos conteúdos transmitidos diariamente ou em

dicionários, ou pelos étimos. Mas isso não é linguagem, tampouco adentrar a questão do

sentido. É ficar apenas na condição mais sumária de se olhar para o que uma proposição

faz da linguagem como acontecimento do ser do ente. Não está sendo dito aqui que o

sentido é conseqüência do somatório de diferenças. Não existe nem causa, nem

Page 174: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

174

conseqüência. O sentido é sempre lido pelo ser do ente naquilo que o ente consegue

dizer enquanto ser e à medida que o ente faz a experiência de ser. Por isso, o dizer uma

mesma proposição em momentos diferentes já corre o risco, e comumente assim ocorre,

de não ser mais a mesma proposição, posto que o sentido de cada momento de

enunciação já traz consigo uma outra experiência que traz a presença de uma audiência

cada vez diferente, demarcando a identidade de sua diferença. O ouvido que ouve é,

então, a audiência da diferença dos sentidos e não da proposição. A experiência de o

ente acontecer como sendo do ser faz o ouvir auditar o sentido que sente o ser na

dinâmica do falar e do ouvir cada proposição.

O sentido é o que cria o veicular, seja de forma material , seja não material,

como o silêncio. Aliás, não há material e não material. Se o próprio silêncio é capaz de

dizer sem falar verbalmente, é porque existe uma materialidade dizente acontecendo

como sentido. Se tal como se entende do pensamento de Delleuze que o sentido não se

apreende, porque nunca é veiculado, não poderia sequer haver ponderações sobre o

sentir e o sentido de uma proposição. O pensamento de Delleuze, por desprezar o

sentido veiculado por uma proposição, coloca-a como algo meramente no âmbito do

formal, em que a forma é a condição própria de a linguagem se dizer. Mas como pode a

linguagem dizer algo para além da formalidade gramatical de uma proposição? A

linguagem acontece independente da proposição.

A proposição se mostra como linguagem apenas como suporte. O mundo só

acontece como mundo enquanto linguagem, e o estar proposicionante ou não é apenas

uma das formas de a linguagem se mostrar como suporte. Se a comunicação se desse

por sons provenientes das narinas ou da cavidade auricular seria o mesmo, enquanto

linguagem. O fato de o homem sentenciar proposições tal como sentencia não é o

parâmetro ou a guia para se pensar linguagem. O som ser moldado em ondas, veiculado

Page 175: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

175

pelas cordas vocais, articulado pela boca, ou ainda sentenciado proposicionalmente não

é fato suficiente para ponderar o que acontece com a linguagem. A proposição é apenas

um suporte para a linguagem acontecer como a fala-escuta do ser. Mas a fala-escuta do

ser não é o suporte da linguagem, porque esta não acontece na dimensão do que o

suporte suporta. O conteúdo veiculado por uma proposição, no máximo, pode ser visto

como o que a linguagem dá ao homem para que ele se entenda enquanto ser na

disposição de cada ente, fazendo a experiência do vigor do lógos, sempre dizente. A

proposição sem veicular sentido não pode sequer ser interpretada como proposição.

Afinal, seria estranho considerar que algo é chamado de algo, mesmo que esse algo não

aconteça dizendo qual sentido deve ser esse algo.

Sentido é o que dá e se dá como a possibilidade de um significado significar.

Mesmo que se apelasse para a questão dos significados de cada vocábulo, foi primeiro e

antes o sentido que permitiu, pelo sentir, conferir, a tal seqüência fonética, a diferença

significante, a sua fonologia, a sua diferença significada. Vocábulos e proposições são, a

propósito, o mesmo nesse sentido. A seqüência fonética de um vocábulo ou a de uma

proposição simples ou complexa desempenham o mesmo papel de suporte para a

linguagem enquanto sentido – o que muda é somente a extensão da seqüência acústica e

a junção de significações. Mas, em ambos os casos, o sentido é o que primeiro e antes

faz tal vocábulo e proposição acontecer, à medida que o ser se dá como ente, fazendo a

experiência do habitar e do cultivar como o mito originário do mundo. Afinal de contas,

haveria de surgir a pergunta: por que a proposição significa o que significa? Não precisa

aqui sequer perguntar pelo sentido. A propósito, a mesma pergunta poderia ser feita do

seguinte modo: por que tal vocábulo significa o que significa ou deixa de significar o

que outrora significou? Para ambas as perguntas, a resposta uma só: o sentido, dado

pela experiência do ser como ente do mundo, é quem proporciona a possibilidade de o

Page 176: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

176

mundo ser a fala-escuta que, sendo, imprime, no e pelo conjunto das experiências do ser

dos entes, o sentir que acontece como demarcação articulatória do momento histórico

registrado no percurso de escuta do lógos e do dizer da phýsis, sempre desencobrindo o

encoberto como verdade (alétheia) do mundo.

Toda construção proposicional é sempre dada ao mundo como possibilidade de

comunicação entre os homens pelo fato de o ser de cada ente, fazendo a experiência do

real e da realidade, mediante as suas realizações, imprimir nela sentido. Este provém do

acontecimento originário e essencial do mundo: a reunião de lógos, phýsis e alétheia. A

construção do sentido dado a cada proposição é o modo de habitar do ser cultivando-se

como culto junto ao extraordinário e com mito historial.

4.3. Linguagem como saga do sentido

Heidegger disse que “O vigor da linguagem é a saga do dizer enquanto

mostrante. O seu mostrar não se funda num signo. Todos os signos é que surgem de um

mostrar, em cujo âmbito e para o qual os signos podem existir”.103. Mas em que

dimensão acontece o mostrante? O que o mostrante mostra? Talvez o caminho de

resposta para essa pergunta seja menos curvo do que se pode cogitar. O mostrante se

mostra como sempre no sentido de um perceber. Mas perceber não é um mero gesto da

percepção enquanto mostrar. O mostrar é vigência de todo perceber enquanto sendo.

Sendo, o mostrar-perceber é colocado sentindo como sentido do ente. É o sentido a

urgência, a emergência e a vigência, fundando o mostrar, acontecendo como linguagem

e perfazendo o destino de sua saga.

103 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 203.

Page 177: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

177

Normalmente, o sentido é apreciado a partir das possibilidades de articulação

sensorial dos sentidos humanos. Isso é um fato sobremaneira comum a todos os

viventes. Assim, é dito que o homem percebe a imagem como visão; o som como

audição; o odor como olfato; o toque como tato; o gosto como paladar. Há quem fale

mesmo na sensibilidade transcendental feminina como um sexto sentido. Pois bem, o

que está em jogo nesse momento é sempre um sentir e não mais o sentir como sentido.

Sentir, na verdade, é o modo de o ser habitar, cultivar e rezar-se esse mundo. Não é uma

mera vivência no desempenho sensorial dos cinco sentidos que estabelece o sentir sendo

sentido. Ocorre diante dos cinco sentidos, assim catalogados, um único e mesmo evento

correspondente a mais vigente materialidade e concretude de experiência do ser do ente,

tal como o homem grego arcaico as experienciou na época áurea do mundo helênico.

Os sentidos, tal como se entende até hoje, na verdade, são sempre o mesmo: o

tocar. O homem é o que é tocado pelo ser do ente e por outros entes fazendo desse

encontro a experiência do sendo. Há de se entender que, dos cinco, existe apenas um: o

sentir tocante, chamado de tato. Certamente, há uma rejeição inicial nesse

entendimento.

Mas é sabido que a visão depende de luz para se dar como vidente; luz é

constituída de fótons e estes são matéria; então, o ver ocorre a partir do e no momento

em que a luz toca a retina e cristal dos olhos e acontece como visão; desse modo o

homem não vê, mas é tocado pela luz do mundo para se dar como sentido vidente. O

mesmo acontece com o olfato, o paladar e a audição.

O que é o olfato senão o toque do ar odorizante tocando a mucosa nasal? Sem o

tato do cheiro na mucosa, não se sente odor algum. E como o ar é também matéria, o

olfato é o toque recebido pela matéria fragrante do mundo fazendo a experiência do

Page 178: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

178

cheirar. O homem não cheira, mas é tocado pelos odores para se dar como sentido

olfativo.

O paladar, por sua vez, o que é senão o toque do gosto sentido pelas papilas

gustativas? É inviável fazer a experiência do gosto sem que o que se coloca como

alimento toque a língua. E como o alimento é matéria e tem que tocar as papilas, o

paladar é dado ao homem pela experiência do tato como gosto. O homem não sente o

gosto, mas é tocado pelo sabor como gosto para se dar como sentido palatal.

A audição, por exemplo, também não é outra coisa senão o toque das ondas

sonoras acontecendo como som, isto é, como cadeia acústica encontrando, no tímpano e

nas demais organizações fisiológicas auditivas, o tatear das ondas como audição. É a

matéria da onda sonora que toca o tímpano e se dá como audiente na materialidade de

ambos. O homem, dessa maneira, não é o que ouve, mas é o que é tocado pela melodia

do mundo como ritmo e harmonia para se dar como sentido audiente.

Tudo isso demarca o sentir como sendo em sua vigência originariamente tátil e

constituído de uma materialidade que faz o ser do ente existir na e como a concretude de

todo o real. Não existe nenhum tipo de abstração passível de, como abstrata, não ser

perceptível. O sentir como percepção é o vigor da essência do ser. O ser, enquanto ente,

sempre lida com o real a partir da materialidade e concretude desse real. Desse modo,

pensamento e linguagem acontecem na mesma dinâmica, como o mesmo em si mesmo

no mesmo.

Sentir não é o que no mundo desvairado da variedade das sensações vive no

exercício tautológico de se dar como sentido orientado pelas abstrações e/ou

subjetividades do homem enquanto indivíduo. O homem só é como indivíduo à medida

que o ente de cada ser se encontra junto ao real fazendo a experiência do sentir a partir e

na materialidade do mundo. O homem grego antigo entendeu bastante bem essa

Page 179: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

179

dinâmica do real, por meio do vigor da phýsis e do lógos. O tocar é o modo como o ente

de cada ser se conforma diante do mundo. Só quando, a partir do e no ser tocado é que a

experiência diante do real acontece como habitar, como cultivar e como rezar.

Habitar é ser tocado pelo mundo como habitação, vivendo o e no seu entorno.

Cultivar é ser tocado pelo mundo como cultivo-colheita, dando-se como a plantação

originária dessa terra, mediante a constituição do humano se mostrando como

humanidade. Rezar é ser tocado pelo sagrado para que pelo toque se consagre a vigência

do extraodinário no mundo ordinário.

Sentir é “perceber, experimentar”104 e radicalmente, ainda, vem “do latim:

sentio, sensi, sensum, sentire; irl. sét; gal. hynt, caminho; al. sinen, pensar em; o l.

sentis, caminho, senda, está ligado a esta família: sentir o próprio caminho”105. Sentir é

um perceber. Essa afirmação só consegue dizer o que diz à medida que se pensa o que

perceber já traz junto a ele. Perceber é algo que só se dá como advento de percepção se

o percebido se mostra a caminho. O sentido enquanto sentir é o que se encaminha para o

ser do ente se dando como perceber. Pode-se pensar que o perceber acontece depois de

sentir. Mas não parece o caso. Uma coisa se coloca como sentido porque este está de

todo presente. Sentido é o que se dá como presença para o ser do ente enquanto tal, para

fazer a experiência do existir em todas as possibilidades e sob todas as vigências

provenientes do vigor de desencobrimento da verdade enquanto phýsis e junto ao lógos.

Perceber é estar junto do sentir na referência do acolhimento do sentido. O

homem sente o que encaminha como sentir e perceber, fazendo a experiência do

caminhar. Caminhar não é dar o passo seguinte e adiante. Caminhar é colocar-se no e

junto ao movimento que vigora em cada ser. O ser é ser do caminho, colocando-se na

disposição do e à diposição do caminhar, fazendo, conjuntamente, o movimento do 104 HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol. IV. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 3776. 105 Idem, p. 3778.

Page 180: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

180

mundo e de suas realidades, consagrado pela dinâmica do real se manifestar face a

realização de cada ente.

A experiência do sentir é a experiência do saber. Mas como o saber acontece na

medida do sentir originário de cada ser, enquanto ente? Heidegger diz o seguinte, numa

exposição acerca da questão do Teeteto de Platão:

[...] Aristóteles reivindica ai1sqhsiv, no sentido próprio de apreensão, a percepção primordial da essência do saber, e o faz como que espontaneamente, porque a percepção e o ser percebido, entre os gregos, não significam senão fai0netai: dizer que isso ou aquilo se mostra, que uma coisa se mostra é o mesmo que dizer que uma coisa é percebida.

“Uma coisa se mostra”, o grego o compreende e entende no sentido de: apresentar-se, dá-se numa vigência e nela se abre e manifesta. A percepção de que as coisas entram no âmbito de percepção é o processo em que as coisas se apresentam, entram na abertura de sua manifestação, se mostram e aparecem. Não devemos desvirtuá-la, reduzindo-a ao sentido em que pensamos em orelhas, nariz, etc. Percepção e perceber significam um mostrar-se que abertamente se manifesta.

[...] Que, no saber, se trate de algo assim como abertura de

manifestação, não há como negar, mas saber, enquanto estiver nesta abertura, no sentido de verdade, é muito mais. Verdade já não é simplesmente apenas uma abertura qualquer de qualquer manifestação. Verdade é abertura e desencobrimento do sendo, do que é e está sendo.106

O sentir faz a experiência do saber enquanto perceber, porque ele dá sentido ao

saber. O saber só se abre como saber à medida que o perceber como advento do sentir

acontece como sentido para o ser de cada ente. Não é possível considerar qualquer

articulação vigente no real acontecendo sem o sentir. A dinâmica do sentir é colocar o

ser sempre a caminho. O sentir é que caminha o caminho. Se não se caminha enquanto

ser, não é possível estar e se apresentar como presença percebendo a disposição da

phýsis. Aliás, ela própria vige no vigor primordial e originário do sentir. Phýsis é o

modo como o vigente acontece como sentido, porque se dá como descoberto. Mas o 106 HEIDEGGER, Martin. “As respostas de Teeteto à questão sobre a essência do saber e suas rejeições”. In: Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis, RJ : Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 248-249.

Page 181: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

181

perceber como sentido sempre se dá em sua essência a partir da e na linguagem, em que

vigem a dinâmica e o vigor do lógos.

A dinâmica da phýsis é se dar no mundo e para o mundo como o caminho

originário de todo sentir acontecendo como sentido, para fazer o ser viger enquanto

ente. O ente só pode fazer a sua existência como permanência da essência do ser pelo

fato e pelo modo como a phýsis fecunda o mundo mediante a dinâmica de suas

possibilidades de tocar sentindo e de seu sentido-tocante. O que toca o ser do ente é a

phýsis, manifestando-se como sentir-sentido, fazendo o ser sempre um sendo.

O ser enquanto ente é o que se coloca como o único a sentir. Só o ser, enquanto

o que é e existe, pode se colocar como detentor da disposição do sentir. Nada mais no

mundo sente. Mas o mundo acontece sempre como sentido. Os demais entes do mundo

não sentem porque não tem a consciência do sentido. Um animal, um vegetal, um

mineral não conseguem fazer a experiência do sentir e, do mesmo modo, não participam

do mundo dentro da mesma referência. A compertinência existente entre ser e sentir é a

mesma que possibilita a cada ente ser dado e deixar-se na abertura da experiência do

saber.

O saber é deixar-se ao sabor do mundo fazendo, dentro da dinâmica da phisis, a

vigência do lógos. Assim também acontece a referência entre pensamento e ser, ou

pensamento e linguagem. O pensamento, enquanto destino do lógos na dimensão do ser

do ente, é sempre um sentir ferindo e conferindo e referindo sempre o mesmo sentido.

O pensamento e a linguagem acontecem como abertura para a verdade do ser do

ente sob a dimensão do sentir a cada sentindo. Sentindo, o ser é sendo. Sendo o homem

acontece como habitação, cultura, colheita e reza, de maneira originária e ordinária

junto ao extraordinário.

Page 182: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

182

A saga do dizer acontece enquanto mostrante. Mas o que se mostra é sempre

uma disposição do sentir dentro e junto ao vigor da phýsis e sob a vigência do lógos. A

saga do dizer é sentir. Sentir é também, nessa referência, mostrar e se dar como

mostrante para que, na percepção da concretude tátil do ser, faça-se a experiência do

real. É sendo-sentido-sentindo que o ser se dá como verdade, como desencobrimento e

como sempre encoberto. A verdade do ser é se dar para o sendo, sentindo. A disposição

e a vigência de cada ser acontecem e permanecem na referência do sentir. Só sentindo o

sentido do sentir, o ser se dá como abertura em cada ente, para fazer da experiência de

sua humildade a humanidade dessa terra e sobre essa terra, junto ao extraordinário,

como sagrado, mostrando como o ordinário se ordena e aparece para o mundo como

humano.

O humano e terrestre é o entre-dependente do sentido do sentir da phýsis. Como

ser, cada homem enquanto ente é o que permanece sob o vigor da phýsis tentando se

colocar a caminho da clareira aberta pela deusa verdade. É nessa dimensão que sentir é

o acontecimento originário do ser se dando como pensamento e linguagem, fazendo a

experiência da existência no ser de cada ente enquanto tal e estabelecendo as diferenças

em e de cada identidade.

Sentir é o perceber e o saber. Ambos são compertinentes, enquanto e à medida

que o ser sendo está à disposição do sentir. O sentir dá sentido ao ser. Dar sentido é

perceber o saber que se abre como verdade para o ser. Abrir-se como verdade para o

ser-sendo é rumar a caminho, fazendo a experiência do caminhar.

Não é da essência do ser do ente caminhar sem perceber-sabendo o caminho,

sem ter notícia dele, de como ele deixa caminhar. O saber é o caminho se dando a

caminhar como sentido. Isso é a mais originária concretude do ser. Tal concretude é o

tato a tocar o ente enquanto ser para se fazer a experiência do mundo. Sentir é o tocar

Page 183: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

183

originário de todas as percepções, saberes e sensações humanas. Não é possível fazer a

experiência do ser sem sentir. Toda forma de pensamento urge do sentir, porque o

sentido do pensar advém e provém do evento do sentir. Não existe uma relação de

entendimento ou desentendimento que não se dê a partir do e no sentir. Tudo que se

entende e desentende é sentido. Tudo que se não entende e se não abre para o entender

como saber e perceber é sentido e sentir. O mesmo fazem o pensamento e a linguagem.

Tudo quanto a linguagem não profere, não confere, não refere, não infere é não-sentir.

Mas sentindo, ela confere e refere, deferindo ao ser do ente o seu pensar. Pensamento

enquanto linguagem é o sentir, na referência, na conferência e na deferência.

4.4. Sentindo: o pensamento-linguagem

A correspondência essencial do sentir se dá no pensar, que acontece no ser como

linguagem. No fragmento 113, Heráclito disse: “Pensar reúne tudo”107. Mais tarde, na

história ocidental, Wittgenstein, em meio a todos os desvios metafísicos do pensamento,

afirmou: “É na linguagem que tudo é feito”108. Heráclito e Wittgenstein se encontram

no tudo reunindo pensamento e linguagem. Se “pensar reúne tudo” e se “é na linguagem

que tudo é feito”, pensamento e linguagem estão numa correspondência de todo

originária. Mas qual é participação do sentir nesse percurso? O sentir está sempre na

mesma disposição à medida que o pensamento não pensa o que não sente e a

linguagem, por sua vez, não diz o que sentir não deixa se dar como dizer. O sentir,

poder-se-ia pensar, é, então, o que determina o pensar e a linguagem. Poder-se-ia, mas

não é isso. Não, sentir é o pensamento se dando como linguagem. O homem só sente 107 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 1999, p. 89. 108 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 107.

Page 184: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

184

porque já existe em todo pensamento e linguagem o sentido. Tal sentir acontece na

mesma referência de pensar e ser enquanto linguagem. O ser só é sentindo e, no sentir

dado, o pensamento se dá a pensar; e, nisso, a linguagem já se deu no mesmo instante.

O pensamento acontece junto ao e no caminho do sentir. O sentir se coloca como via no

caminho do homem caminhando como o caminho caminha, na predestinação

(pre)sentida da caminhada. Caminhado, o pensamento se dá e o homem diz num sem

palavras o seu destino.

O homem não sente, mas é tocado pelo sentir na mesma referência em que

surgem pensamento e linguagem. O homem precisa ser tocado. A experiência humana é

a do tato na sua mais ampla vigência e referência. Na experiência do tocar, há um

comum-pertencer, ou mesmo um entre-pertencer. O tocado toca o tocante à medida que

o mesmo tocante procura como tato o que vem a ser tocado. Não existe uma atitude

ativa com relação ao que toca e uma atitude passiva com relação ao que é tocado. O

tocante e o tocado são igualmente agente-pacientes de uma mesma referência. O tocado

e o tocante são o mesmo em si mesmo no mesmo.

Sentir e ser sentido são uma preocupação do mundo moderno, sobretudo, há uma

necessidade de ser sentido. A necessidade existente de ser sentido é a mesma da de ser

tocado. Quando se é sentido, não é o sentir que apenas se movimenta para se dar como

sentido no outro que o sentiria. Quando se é sentido, se quer ser tocado e isso provoca

um agir se dando pelo toque do outro, fazendo a experiência do sentir como algo

concreto. Tanto é assim que o princípio de satisfação, que tanto se requisita nesse

momento, só se dá por satisfeito, quando, de algum modo, o ser que quer sentir se sente

tocado pelo tato do existir do ser de cada outro ente. O querer sentir não é um querer

tocar apenas, é, na aparente contradição, típica do que essencial e originário, simultânea

e imediatamente querer ser tocado.

Page 185: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

185

Assim, o sentir é um tocar-tocado. Todo sentir depende dessa referência. Isso é o

mesmo que ocorre com a linguagem e com o pensar. A linguagem acontece como dizer

à medida que o dizer ao mesmo tempo não diz, mas deixa aberta a possibilidade de se

dar ainda como dizer. Do mesmo modo, o pensamento pensa o que dá a pensar e o que

não é dado a pensar acontece como possibilidade de pensamento. Mas quem toca o ser

no seu existir e acontecer como ente enquanto tal? O ser é o que habita o mundo como

sentido-pensante-linguagem. Por isso, é dado ao homem se reconhecer como habitante

dessa terra ao longo do existir de sua humanidade.

A respeito do re-conhecimento, no fragmento 116, Heráclito afirma que “É dado

a todos os homens conhecer-se a si mesmo e pensar”109. Conhecer a si mesmo é algo

desejado por todos no mundo moderno. A psicologia faz isso muito, bem mandando

cada um cuidar de si, do seu ego, de sua subjetividade. Cuidando cada um de si mesmo

enquanto ente, caminha-se para o esquecimento do ser e da existência. E assim tem

vivido o homem moderno.

Mas o que pode ser visto aqui ainda é a referência existente entre “reconhecer” e

“conhecer a si mesmo”. Por que conhecer a si mesmo não é diretamente um reconhecer

como um conhecer de novo o próprio eu do si mesmo? Por que o pensamento de

Heráclito não disse: é dado aos homens pensar-se a si mesmo e conhecer? Talvez haja

aqui um mistério que se destina ainda na disposição do sentir. “Conhecer a si mesmo” é

sentir o ser do ente enquanto na abertura da verdade. É fazer o movimento da linguagem

como saga do dizer acontecendo como mostrante. Essa afirmação de Heráclito

permanece como uma recomendação para que o ente não se esqueça enquanto ser,

deixando de fazer a experiência originária do existir. O esquecimento do ser pelo ente

sempre está a requisitar a volta do encontro em que ser e ente não se deixam esvair fora

109 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 89.

Page 186: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

186

de sua referência. O esquecimento do ente é o esquecimento do ser enquanto o que se

deixa tocar pelo sentido do sentir. A necessidade desse toque aponta também para o

encaminhamento da procura que deve haver do ente para com o ser, para desvelar-se

sob sua verdade e para permanecer no ordinário do sentir, enquanto tocar-mostrante,

cumprindo o seu destino junto à linguagem como saga do dizer.

A saga do dizer da linguagem faz com que o ente não se desvie do ser enquanto

o que dá e permanece como sentindo viabilizando e conferindo aos existir a

possibilidade de o ser se dar enquanto ente. “Conhecer a si mesmo” e “pensar”

aparecem na fala de Heráclito mostrando a disposição fundamental do sentir tocando o

ser do ente de cada homem.

É por isso que “conhecer a si mesmo” e “reconhecer” não se alinham numa

mesma determinação. O conhecer de novo o eu de si mesmo não é o conhecer a si

mesmo. Este aponta para o movimento originário da verdade se dando no ser do ente. A

abertura dada pelo desencobrimento da alétheia não se volta sobre o mesmo como uma

igualdade já envelhecida, experienciada de todo, numa cronologia que não volta mais.

Aquele, o conhecer de novo o eu de si mesmo, aponta para um reviver, um viver

novamente, fazendo da experiência velha a igual experiência do presente e também do

futuro. Aqui está o contratempo do conhecer de novo o eu de si mesmo. Isso implicaria

permanecer numa inércia da repetição contraproducente, no sentido de viabilizar a

referência entre ser e ente. Nesse caso, o ente se comportaria como um veículo

destinado a maquinalização do agir único e repetido. Não se daria a experiência do

sentir, do pensamento e da linguagem como poiésis originária. O “conhecer a si

mesmo” já diz respeito a um dar o ente para o ser e o ser para o ente, destinando-os

como verdade, como desencobrimento do encoberto, sempre a desencobrir o

Page 187: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

187

encobrimento, sem ser, o desencobrir, a mesmidade repetitiva que não dá o ser do ente

experienciando o existir.

Mas o que “pensar” diz com o “conhecer a si mesmo”? “Conhecer a si mesmo” é

colocar-se como sentir, deixando o ser sendo o sentido mostrante, tocante-tocado pelas

realizações do ente sob o vigor da phýsis e na vigência do lógos. Tal conhecer se dá

como referência do sentir-pensar originário do ser, para que este aconteça fazendo a

experiência do existir enquanto ente.

Assim, na referência ao pensar como “conhecer a si mesmo”, o sentir acontece

como apelo de orientação e sentido. O sendo é a presença do ser como vigência do

sentir. O “conhecer a si mesmo” e sentir se dão no mesmo. Isso é o vigor inaugural do

ser. Em tal condição, acontece sempre a referência entre mito, religião e cultura. Toda

cultura com os seus modos de cultuar e cultivar se dão sempre na vigência do sentir

enquanto linguagem, deixando manifesto o vigorar da phýsis e o dizer originário e

inaugural do lógos. Apenas sentindo, o humano acontece como sendo. A civilização e a

família se comunicam dentro do viger de um mesmo sentir e sentido apenas porque

estão no percurso da linguagem enquanto casa do ser.

É como e pelo sentir que o lógos diz e acontece como o dizer originário do

mundo. O sentir, nesse entendimento, é a escuta que se dá como lógos deixando-se

aberto como clareira para o vigorar da phýsis e, assim, o humano acontecer como a reza

do mito junto ao sagrado, como o culto e o cultivo extraordinário do humus, para se dar

como o sendo sempre histórico. Assim, como e pela força de reunião do lógos e pelo

vigorar da phýsis, é que mito é a presença, o culto e o cultivo do sagrado como

linguagem, pensar e sentir. Enfim, o ser-sendo, e acontecendo como humanidade, não

existe sem sentido, sem sentir, o vigência do lógos.

Page 188: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

188

Conclusão

A referência entre mito, religião, cultura e linguagem, que se apresentou nesse

percurso, teve por intuito fazer uma apreciação das relações existentes entre essas

quatro questões fundamentais e originárias para o ser do ente. De certo, o caminho para

a releitura de cada uma delas contou com o entendimento a partir da questão do sentir.

Aqui, o mito se colocou não dentro da dimensão de uma mera alegoria ou conto

fantasioso, até porque sua instância originária não diz respeito a tal perspectiva e

nuance. Ele se encontra no fundamento do ser caracterizando os modos de cada ente

atuar diante das realizações do real. Mito, na verdade, é o gesto ôntico e ontológico que

se dá na história como o dizer originário do lógos face o vigorar da phýsis. Nesse

sentido, é possível mesmo já entender que mito é a linguagem habitando a casa do ser,

fazendo dela o lugar onde se reúnem os dizeres originários do mundo falando junto ao

homem.

O mito é a referência e a interferência do deus no mundo do homem, na mesma

medida que o homem é a interferência na vida do mito. A correspondência entre ambos

é a base do que funda o ser, enquanto sendo. Não existe homem sem mito, nem mito

sem homem. Tal relação ainda demarca a presença de uma escuta de um lógos se

dizendo com e por meio do sagrado.

A fala do mito é o dizer sagrado do lógos, o dizer originário do mundo. O que

faz tal dizer é dar ao homem o mundo como sentido naquilo que ele consagra como

reunião junto à phýsis. O lógos, nesse sentido, dá a voz ao mito para a escuta do homem

se desenvolver como ouvido. A escuta do homem é a escuta do ente enquanto ser. Na

verdade, a fala do mito é o caminho que faz com que o ser permaneça como escuta de

uma relação direta com o sagrado. O mito fala do ser-sendo, mas sempre com e por

meio do sagrado. Isso significa que toda narrativa mítico-poética não é apenas o registro

Page 189: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

189

de feitos e afazeres dos deuses atuando e interferindo na vida cotidiana do homem. O

mito é a disposição do sagrado acompanhando, guiando e orientando os modos de o ser

se dar enquanto sendo. A propósito, o homem grego antigo foi o que melhor entendeu a

experiência do mito do que qualquer outra civilização no mundo ocidental.

O sagrado, por sua vez, é visto como o que consagra mito e ser. A dimensão do

religioso não foi vista dentro da ótica institucional religiosa ocidental, nem oriental. A

tentativa foi de rearticular o religioso também no seu vigor originário, participando

diretamente junto ao lógos, que dá voz ao mito como o registro histórico do ser como

sagrado. O mito é o registro histórico da fala e do dizer do sagrado sob a vigência e o

vigor do lógos. A compertinência entre mito e sagrado é fundamento da história do ser

na tentativa de, como sendo, acontecer e permanecer como o que se dá como

humanidade.

O sentido de humanidade também teve sua apreciação tendo em vista a origem

do homem: a terra. O humano é o da terra. O homem, enquanto a instância inaugural se

mostrando como ente de cada ser, é o que vive na e sob a escuta da terra, que acontece

pela e com a voz do lógos do mito e bênção do sagrado dos céus. Sob a luz dos céus, o

homem se ilumina e, iluminado, escuta o que o lógos permite dizer como mito. O

sagrado está já desde sempre lançado para o mundo como lógos e como luz dos céus. A

presença física dos céus e a vigência da dimensão do sagrado orientam o modo de o ser

acontecer como sendo. A sacralização do mundo só se dá no seu vigor quando homem e

deus atuam na referência do agir no real permanecendo como um e o mesmo. A

mesmidade existente, nesse caso, é a presença da força de reunião do lógos se dando

como phýsis. A phýsis se doa ao mundo como lógos e nessa referência o sagrado dá voz

ao mito para fazer do ser o que permanece como história do mundo. Tal história é

experienciada pelo e com o encontro do homem com a terra sob a proteção dos céus. O

Page 190: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

190

ser se abre como clareira para, na claridade, ir ao encontro da luz do deus. O sagrado é a

vigília que permanece na história do ser para iluminar o caminho do ente que se

encontra sempre no agir do real e das realizações. O homem religioso é o que entende a

história do mundo como a fala do mito pelo dizer do lógos. Assim, o ser se consagra

como santo, entendendo a terra como o lugar de todas as bênçãos.

Abençoada, a terra se doa como fecundação originária do mundo para que o

mundo seja lido como o que está sempre provocando o nascimento do real para a

realização histórica do ser. A tentativa de mostrar a fecundação como sagrada é já o

caminho que se quis abrir para mostrar como o ser do ente acontece como cultura. Esta

não foi mostrada a partir das leituras sociológicas e psíquicas provenientes do olhar do

mundo moderno. Cultura é o que o se mostra como cultivo. O cultivo é o gesto

inaugural que acontece como reunião entre phýsis e lógos, consagrando mito e mundo.

Cultivo acontece sob o vigorar da phýsis. Ela estabeleceu o cultivo como

fundamento para que o ser se cultivasse pelo agir onto-poético do mundo e entrasse para

a história mítico-inaugural da terra. Cultivar é a forma de o ser se deixar entrever como

o que, pelo culto sagrado da terra, acontece como cultura. Cultura não é um evento

social: é fato originário inaugural de o ser ser marcado na história do mundo, no pacto

firmado com a terra e abençoado pela luz divina do sagrado dos céus. Assim, a luz

divina dos céus, que ilumina o campo para o cultivo, é o que consagra o homem na

história do mundo sobre esta terra. Por isso, a leitura que se fez presente aqui entende

que mito, religião e cultura são um e o mesmo, porquanto vigem sob um mesmo vigor

inaugural.

A questão da linguagem não foi tratada pelo viés do que ela possibilita articular

enquanto proposições. A linguagem foi relida pela articulação de que ela é a casa do ser,

enquanto tal. Nesse sentido, sob a orientação fundante do lógos que tudo reúne, e tendo

Page 191: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

191

em vista a disposição de ela se dar como verdade, como alétheia, o movimento de

encobrimento e desencobrimento da linguagem é o que faz com que o homem seja o

que consegue acontecer como ser histórico por ter a disposição mítico-religiosa por ser

o que cultua e o que é cultivado. Como cultivo e culto, o humano acontece como o

agricultor da terra. Ser lavrador, faz dele o acontecimento onto-poético do mundo:

humano e humanidade, porque se estabelece na e pela referência direta da experiência

com o humus, com a terra.

Desse modo, linguagem como lógos reúne, numa só articulação de sentidos,

todo o percurso originário do mundo, porque tenta se constituir e caracterizar

substantivando os atributos de cada agir do mundo, na sua relação com o real e em suas

realizações. Na verdade, linguagem entra nesse percurso do pensamento para tentar

mostrar como mito, religião e cultura fundamentam o ser em sua origem inaugural. No

entanto, houve também aqui um outro aspecto que interessou ao desenvolvimento desse

pensamento: o sentir.

Não se acredita que o sentir seja proveniente do pensar, nem o pensar

proveniente do sentir e, com isso, ambos viessem a acontecer como mito, religião,

cultura e linguagem. O lógos inaugural e a disposição de surgimento da phýsis se dão

por meio de uma linguagem fundante que é toda sentir. A rigor, o lógos inaugural, ao

ser entendido como linguagem, deve ser lido também como sentir. O sentir-sentindo-

sentido é o acontecimento originário para que o ser entre na referência necessária para a

escuta do lógos inaugural. Isso decorre do fato de que não se é capaz de escutar, de

ouvir-dizer, se não se está indo ao encontro do sentir que a phýsis junto ao lógos tenta

mostrar-dizer. O esforço em busca de tal audiência é já também o apelo de orientação

pela alétheia, pelo movimento que tenta sempre perceber quando verdade diz e deixa

dizer o dizer do ser, enquanto tal. É só por meio do e com o sentir que se abrem os

Page 192: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

192

caminhos para que se alcance o centro da floresta do ser como clareira. A claridade da

clareira do ser é o sentir. Sentindo, o ser se abre para lógos, phýsis e alétheia.

Cabe ainda aqui dizer que o sentir não é uma mera leitura dos rompantes

afetivos e emocionais do ente. O sentir é o que se dá como sentido. Se dar como sentido

é dar caminho e acesso para a escuta originária do lógos para que o humano aconteça

como linguagem se constituindo, como tal, a casa do ser. Assim como não existe ser

sem linguagem, ambos não existem sem sentir. Foi dito no pensamento que aqui se

mostrou: não se pensa sem sentir. Só se pensa o que se sente. E, como visto, pensar e

ser são um e o mesmo. A rigor, pensar, ser e sentir são um e o mesmo. Então, se não se

pensa o que não se sente, é inevitável o entendimento de que não se consegue ser se não

há sentir e sentido.

Sentir é o gesto inaugural da linguagem enquanto lógos. O lógos como força de

reunião é, a bem dizer, o que se coloca como dizer de todos os sentidos. Quando o

sentido se diz como dizer para o ser de cada ente, a linguagem acontece como casa do

ser, e o mundo passa a ser passível de leitura, sendo esta o gesto inaugural do ser com o

mundo. O ser não entra em contato com o mundo. Ele como mundo e sentidos se lê

como real e entra para a história dos tempos.

Assim, a tentativa aqui foi a de articular o pensamento de modo a mostrar onde

mito, religião, cultura e linguagem acontecem como sentir. A busca por tal

entendimento, de certo, abre espaços para que a leitura se dê no percurso ôntico do ente

e ontológico do ser. O que se tentou foi apenas mais um caminho de compreensão do

que representam e representaram essas questões na história do ser, em busca pela sua

humanização e sua humanidade.

Page 193: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

193

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,

2007. ARISTÓTELES. Retórica. Bauru, SP: Rideel, 2007. ______. Poética: tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro

de Sousa. [s.l]: 8.ed. :INCM, 2008. BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora PAULUS, 2002 BENVENISTE, Émile. O vocabulário das Instituições indo-européias, vol I.

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. BENVENISTE, Émile. O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II.

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957. Rio de

Janeiro: Contraponto, 1995. BONDI, Hermann. Conjetura e mito na física. 2.ed. Brasília: Editora Universidade

de Brasília, 1997. BORN, Max. Problemas da física moderna. São Paulo: Perspectiva, 2006. BOWRA, C.M. A experiência grega. São Paulo: Arcádia Limitada, 1967. BRAGUE, Rémi. Introdução ao mundo grego: estudos de história da filosofia. São

Paulo: Loyola, 2007. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, vol

I. 3. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. ______. .Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, vol II. 4.ed. – Petrópolis,

RJ: Vozes, 1991. _______ . Mitologia grega, vol I. 20.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. _______ . Mitologia grega, vol II. 16.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. _______ . Mitologia grega, vol III. 14.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. BROAD, Willian. O oráculo: o segredo da antiga Delfos. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2007. BUNGE, Mario. Física e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Page 194: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

194

CANDIDO, Maria Regina. A feitiçaria na Atenas clássica. Rio de Janeiro: Letra

Capital: FAPERJ, 2004. CASSIRER, Ernest. A filosofia das formas simbólicas – primeira parte: a

linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _______ . Linguagem, mito e religião. Portugal: RES Editora. CASTRO, Manuel Antônio (org.). Poética e poiesis: a questão da interpretação.

Vol. 5. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras Setor Cultural, 2000. _______ . A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. _______ . A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. _______ . Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. CHAMOUX, François. A civilização grega. Portugal: Edições 70, 2003. CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque – histoire

dês mots. Paris: Klincksieck, 1999. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos,

sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

COLLI, Giorgio. La sapienza greca III. Milão: Adelphi Edizioni, 1993. COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL,

2002. DELLEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana

segundo Hume. São Paulo: Editora 34, 2001. _______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ______. Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DETIENNE, Marcel & VERNANT, Jean Pierre. Métis: as astúcias da inteligência.

São Paulo: Odysseus Editora, 2008. Dicionário de português-latim. 2.ed. Portugal: Porto Editora, 2000. ELIADE, Mircea. Occultisme, sorcellerie et modes culturelles. França: Gallimard,

1992.

Page 195: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

195

______. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ______. Mefistófeles e o andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais

não-europeus. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 2000. ______. Mito e realidade. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. ______. Tratado de histórias das religiões. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ERNOUT, Alfred et MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue

latine – histoire dês mots. Paris: Klincksieck, 2001. FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar latino-português. Rio de Janeiro: FENAME,

1975. ______. Dicionário latino-português. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2003. FERREIRA, Antonio Gomes. Dicionário de Latim-Português. Portugal: Porto

Editora, s/d. FEYERABEND. Diálógos sobre o conhecimento. São Paulo: Perspectiva, 2001. FINLEY, Moses I. Aspectos da antiguidade. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. ______. O legado da Grécia: uma nova avaliação. Brasília: Editora Universidade de

Brasilia, 1998. FIRMINO, Nicolau. Dicionário Latino Português. 5. ed. São Paulo: Edições

Melhoramentos, s/d. GADAMER, Hans-Georg. A razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1983. GAFFIOT, Félix. Dictionnaire abrégé Latin Français. Paris: Hachette, 1936. _______. Dictionnaire Latin Français. Paris: Hachette, 2000. GALVÃO, Ramiz. Vocabulário etimológico, ortográfico e prosódico das palavras

portuguesas derivadas da língua grega. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1994.

GIGON, Olof. Las Orígenes de la filosofia griega. Madrid: Editorial Gredos, 1985. GRAMACHO, Jair. Hinos homéricos. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

2003. HAMILTON, Edith. Mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Page 196: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

196

HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário

morfológico da língua portuguesa – vol I. São Leopoldo: Unisinos, 1984. ______. Dicionário morfológico da língua portuguesa – v. II. São Leopoldo:

Unisinos,1984. ______. Dicionário morfológico da língua portuguesa – v. III. São Leopoldo:

Unisinos, 1984. ______. Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol IV. São Leopoldo:

Unisinos, 1984 ______. Dicionário morfológico da língua portuguesa – v. V. São Leopoldo:

Unisinos, 1984.. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1967. ______. Os pensadores. São Paulo : Editora Nova Cultural, 1996. ______. Introdução a metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. ______. Nietzsche: Metafísica e Niilismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ______. A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP:

Editora Universitária São Francisco, 2003. ______. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. ______. A essência do fundamento. [s.l]: 70 biblioteca de filosofia contemporânea,

s/d. ______. Ser e tempo, parte I. 10.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. ______. Ser e tempo, parte II. 8.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. ______. Lógica: la pregunta por la verdad. Madrid: Alianza Editorial, 2004. ______. Conceptos Fundamentales. Madrid: Alianza Editorial, 2006. ______.Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2006. ______. Que é isto, a filosofia?: identidade e diferença. Petrópolis, RJ: Vozes; São

Paulo: Livraria Duas Cidades, 2006. ______. Hitos. Madrid: Alianza Editorial, 2007. ______. Metafísica de Aristóteles Q 1-3: sobre a essência e a realidade da forca.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

Page 197: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

197

______.Nietzsche. vol I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ______.Nietzsche. vol II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ______.Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade.

Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.

______. Lógica: a pergunta pela essência da linguagem. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkianneiro, 2008. ______. Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora

Universitária São Francisco, 2008. HEISENBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física,

filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. HESÍODO. Os trabalhos e os dias. 4.ed. São Paulo: Iluminuras, 2002. ______. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003. HUME, David. Diálógos sobre a religião natural. Lisboa: Edições 70, 2005. ______. História natural da religião. São Paulo: Editora UNESP, 2005. ISIDRO PEREIRA, S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Portugal:

Livraria A.I., 1998. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret, 2003. ______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo:

Martin Claret, 2003. KUSCH, Martin. Linguagem como cálculo versus linguagem como meio universal –

Um estudo sobre Husserl, Heidegger e Gadamer. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

2000. ______. “Introdução” In: HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. LÉVÊQUE, Pierre. O mundo helenísitco. Portugal: Edições 70, 1987. LIDDELL, Henry George and SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon Witch a

Revised Supplement. New York: Clarendon Press Oxford, 1996. ______. An Intermediate Greek-English An Intermediate. New York: Oxford, s/d.

Page 198: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

198

LLOYD-JONES, Hugh. Los Griegos. Madrid: Editorial Gredos, 1984. MACHADO, José Pedro. Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa

A/D. 3.ed. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. ______. Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa E/M. 3.ed. Lisboa:

Livros Horizonte, 2003. ______. Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa N/Z. 3.ed. Lisboa:

Livros Horizonte, 2003. MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de

Moura. Dicionário grego-português (DGP). vol. 1. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006.

______. Dicionário grego-português (DGP). vol. 2. Cotia, SP: Ateliê Editorial,

2007. ______. Dicionário grego-português (DGP). vol. 3 . Cotia, SP: Ateliê Editorial,

2008. MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São

Paulo: Annablume, 1999. MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia - Tomo I (A/D). São Paulo: Edições

Loyola, 2001. ______. Dicionário de filosofia - Tomo II (E/J). São Paulo: Edições Loyola, 2001. ______. Dicionário de filosofia - Tomo III (K/P). São Paulo: Edições Loyola, 2001. _______ . Dicionário de filosofia - Tomo IV (Q/Z). São Paulo: Edições Loyola, 2001. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.

São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992. ______. O anticristo: maldição do cristianismo. Rio de Janeiro: Edição Integral,

1996. ______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000. ______. Ecce Homo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.

Page 199: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

199

______. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. Fragmentos finais. Brasilia: Editora Universidade de Brasília, São Paulo:

Imprensa Oficial do Estado, 2002. ______. Escritos sobre educação. São Paulo: Edições Loyola 2003. ______. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagens da história

para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. ______. O livro do filósofo. São Paulo: Centauro, 2004. _______. Sabedoria para depois de amanhã. São Paulo: Editora Martins Fontes,

2005. ______. A visão dionisíaca do mundo, e outros textos de juventude. São Paulo:

Editora Martins Fontes, 2005. ______. Cinco Prefácios: para cinco livros não escritos. 3.ed. Rio de Janeiro:

7Letras, 2005. ______. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ______. A filosofia na época trágica dos grego. São Paulo: Escala, 2008. OLIVEIRA, Bosco. Mitologia e vivência humanas. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2009. ONATE, Alberto Marcos. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao

filosofar sem metafísica. São Paulo: INJUÍ, 2000. OTTO, Walter Friedrich. Diálógos I: Mênon, Banquete, fedro. Rio de Janeiro:

Ediouro, 1996. ______. Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus

Editora, 2006. ______. Dionisio: Mito y culto. Madrid: Ediciones Siruela, 2006. Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis:

Editora Vozes, 1999. PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos. Santiago, Chile: O Globo/Klick Editora,

1997. PLATÃO. As leis, ou da legislação e epinomis. 1.ed. Bauru, SP: EDIPRO, 1999. ______. Parmênides. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.

Page 200: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

200

______. Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São

Paulo: Odysseus Editora, 2005. ______. O banquete, ou, Do amor. 4. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. ______. Diálógos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras

(ou sofistas). Bauru, SP: EDIPRO, 2007. ______. Diálógos II: Górgias (ou da retórica), Eutidemo (ou da disputa), Hípias

maior (ou do belo), Hípias menor (ou do falso). Bauru, SP: EDIPRO, 2007. QUICHERAT, L. Par CHATELAIN, Emile. Dictionnaire Français-Latin. Paris:

Librairie Hachette, 2002. QUINTÃO, Denise. Seguindo o Todo por toda Terra: uma fenomenologia do

arcaico nos gregos. Teresópolis, RJ: Daiomon, 2007. SANTOS, José Trindade. Parmênides: da natureza. São Paulo: Edições Loyola,

2002. SANTOS, Mário Ferreira dos. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA,

2000. SARAIVA, F.R. dos Santos. Dicionário latino-português.11 ed. Rio de Janeiro:

Livraria Garnier, 2000. STEPHANIDES, Menelaos. Os deuses do Olimpo. São Paulo: Odysseus, 2004. THOMAS, Rosalind. Letramento e oralidade na Grécia antiga. São Paulo:

Odysseus, 2005. TUCKER. Etymological dictionay of latin. Chicago: Ares Publishers, 1931. VERNAT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. 2.ed. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1999. ______. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005. ______. As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2000. WATTS, Alan. O tao da filosofia: os transcritos editados. Rio de Janeiro: Fissus,

2002. ______. Mito e religião: os transcritos editados. Rio de Janeiro: Fissus, 2002.

Page 201: O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA · celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des ... 3.3. Cultura, cultivo do culto do ser

201

WERNER, Jaeger. Paidéia: a formação do homem grego. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_______. Cristianismo primitivo e paidéia grega. Lisboa: Edições 70, 2002. WITTGENSTEIN, Ludwig. Últimos escritos sobre Filosofia de la Psicologia.

Madrid: Editora TECNOS S.A., 1987. _______. Tratactus Logico-Philosophicus. 3. ed. São Paulo: Editora Universidade de

São Paulo, 2001. _______. Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003. ______. Observações filosóficas. São Paulo: Edições Loyola, 2005. YARZA, Florêncio I. Sebastiän. Diccionario Griego Español. Barcelona: Editorial

Ramon Sopena, s/d.