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O SENTIR COMO LINGUAGEM: MITO-RELIGIÃO-CULTURA
Por Antônio Carlos Alves da Silva
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro
Rio de Janeiro Março de 2010
ii
O SENTIR COMO LINGUAGEM MITO-RELIGIÃO-CULTURA:
Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Aprovada por: _________________________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro – UFRJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Angélica Maria Santos Soares – UFRJ _________________________________________________________________ Prof. Doutor Antonio José Jardim e Castro – UFRJ _________________________________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Angela Maria Guida – FESJ _________________________________________________________________ Profª. Doutora Martha Alkimim de Araújo Vieira – UFRJ (Suplente) _________________________________________________________________ Profª. Doutora Cláudia Andréa Prata Ferreira – UFRJ (Suplente) Rio de Janeiro Março de 2010
iii
Silva, Antônio Carlos Alves da. O sentir como linguagem: mito-religião-cultura/ Antônio Carlos Alves da Silva – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010.
x, 201 f.; Orientador: Manuel Antônio de Castro Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2010. Referências bibliográficas: f. 193-201. 1. Mito 2. Religião 3. Cultura 4. Linguagem e Poética 5. Sentido. I. Castro, Manuel Antônio de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.
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Para meu pai Admar Soares da Silva ( in memoriam). E para minha mãe Catarina Alves da Silva e para minha irmã Carine Alves da Silva, e por tudo e por mim.
v
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Manuel Antônio de Castro por participar de minha iniciação no
mundo do pensamento poético e pela confiança, paciência e pela atenção a mim
dedicados.
Ao Professor Doutor Antônio José Jardim e Castro, que me fez acreditar que o mundo
da Faculdade de Letras possuía também outras melodias.
À Professora Doutora Angélica Maria dos Santos Soares, que desde a graduação me viu
como possibilidade de ser e de não-ser.
Ao Professor Doutor Adauri Silva Bastos, que, no início, confiou em mim muito
provavelmente pela vizinhança competente dos meus amigos nessa Universidade.
À Professora Doutora Angela Maria Guida por ser mais uma dentre os que se colocam
diante do pensamento poético com muita destreza, perícia e dedicação e por ter se
disponibilizada para o encontro com esse texto.
Às Professoras Doutoras Claudia Andréa Prata Ferreira e Martha Alkimim de Araújo
Vieira por serem parte indireta desse mesmo humus.
Aos meus amigos de graduação Luciana Salles, Rodrigo Sant’Izabel, Mônica Fagundes,
Luciano Rosa, Patrícia Simões, Michelle Gomes pela oportunidade dos encontros e
desencontros.
À Soraia Santos Sales, na companhia e na angústia do namoro de todos os dias.
Ao meu destino.
vi
RESUMO O sentir como linguagem: mito-religião-cultura
Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro
Resumo da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). A tese, essa con-junção, é uma reaproximação da intersecção e da referência inaugural, originária, existente entre mito, religião, cultura e linguagem. A releitura tenta trazer à cena as relações fundamentais próprias de todas essas conjecturas da história do ser do ente. Nesse percurso, ora elas são apreciadas pelo vigor de sua própria vigência inaugural e ainda presente, ora são consideradas pelas indisposições que a modernidade a elas conferiu ao longo do percurso do mundo ocidental e o seu pensar metafísico. A tentativa de tal interpretação é de buscar refazer o percurso ontológico que permanece contido em cada uma das quatro referências a partir da dimensão e do vigor do sentir, de modo que o senti(n)do se mostre como o ser sendo e se coloque como também instância originária do pensar e do ser como linguagem, congraçando physis, logos e alétheia no destino histórico da humanidade dessa terra. Palavras-chave: Mito – Religião – Cultura – Linguagem - Sentir Rio de Janeiro Março de 2010
vii
ABSTRACT The act of feeling as language: myth-religion-culture
Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro
Abstract da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).
The thesis, this conjunction, is a reconnection between the intersection and the inaugural original reference that there is among myth, religion, culture and language. The approach tries to bring out the fundamental relations, proper of all the conjectures of the being’s entity’s history. Thus, these relations are either appreciated for the vigor of its own inaugural duration, which is still present or considered for the conflicts that modernity has ascribed to them throughout the history of the western world and its metaphysical thinking. The attempt of such interpretation is to redo the ontological path that remains held in each of the four references from the dimension and the vigor of the act of feeling, so that the meaning-feeling shows itself as the being existing and also puts itself as an original instance of the thinking and the being as language, gathering physis, logos e alétheia in the historical destiny of this land’s humanity. Key words: Myth – Religion – Culture – Language – The act of feeling Rio de Janeiro Março de 2010
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RÉSUMÉ Le sentir comme language: mythe-religion-culture
Antônio Carlos Alves da Silva Orientador: Manuel Antônio de Castro
Résumé da tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).
La thèse, cette conjonction, est un rapprochement de l'intersection et de la référence inaugurale, originaire, existante entre mythe, religion, culture et langage. La relecture essaye d'apporter à la scène les relations fondamentales propres de toutes ces conjectures de l'histoire de l'être de l'être. Dans ce parcours, certaines fois elles sont appréciées par la vigueur de leur propre validité inaugurale et encore présente, d’autres sont considérées par indisposition que la modernité lui a conferé au long du parcours du monde occidental et son penser métaphysique. La tentative de telle interprétation est celle de chercher à refaire le parcours ontologique qui reste contenu dans chacune des quatre références à partir de la dimension et de la vigueur sentir, de manière que le sens se montre comme l'être en étant et il se place aussi comme instance originaire de la pensée et de l'être comme langage, en combinant physis, logos et alétheia sur le destin historique de l'humanité de cette terre. Palavras-chave: Mythe – Religion – Culture – Langage – Sentir Rio de Janeiro Março de 2010
ix
De onde pro-vêm as realizações, re-tornam também as desrealizações: pois, de acordo com o vigor da con-signação, elas con-cedem umas às outras articulação e, com isso, também consideração pela des-articulação, de acordo com o estatuto do tempo.
Anaximandro (fragmento), Pensadores Originários, 1999, p. 39.
x
SUMÁRIO
Introdução..................................................................................................................p. 11
1- O mito no homem: o fabular................................................................................p. 17
1.1. O pensar e o fabular: o vigorar da phýsis.............................................p. 21
1.2. O mito como phýsis.................................................................................p. 25
1.3. Mito: a reunião de lógos e phýsis na casa do ser..................................p. 29
1.4. Na casa do ser: a luz do divino..............................................................p. 36
1.5. O mito: o ex-sistir como sendo...............................................................p. 56
2. A religião: o homem sem a memória do divino..................................................p. 62
2.1. Para uma onto-poética do humano na luz do divino...........................p. 65
2.2. O divino: o homem entre o céu e a terra..............................................p. 69
2.3. A santidade do homem: a onipresença do deus...................................p. 73
2.4. “A morada do homem, o extraordinário”............................................p. 81
2.5. Domínio do racional e domicílio do sentido.........................................p. 85
2.6. A referência homem e deus: o extraordinário.....................................p. 95
2.7. Santo e sagrado: o (re)colher-se na terra para o divino.....................p.102
3- Cultura e indefinição...........................................................................................p.112
3.1. Cultura como distintivo da civilização.................................................p.115
3.2. Cultura e alguns o-cultos.......................................................................p.125
3.3. Cultura, cultivo do culto do ser............................................................p.135
3.4. Cultivar como prece..............................................................................p.146
4. Linguagem e pensamento.: (des)caminhos do sentir.........................................p.153
4.1. A linguagem diz e não fala....................................................................p.162
4.2. Pensamento: linguagem e sentido........................................................p.170
4.3. Linguagem como saga do sentido.........................................................p.176
4.4. Sentindo: o pensamento-linguagem.....................................................p.183
Conclusão..................................................................................................................p.188
Bibliografia................................................................................................................p.193
Introdução
A questão que se desenvolverá aqui visa observar como mito, religião, cultura e
linguagem se dão no espaço ontológico do homem enquanto sentir. Acredita-se que há
ainda uma oportunidade para a apreciação de como, entre essas quatro questões da
dimensão do existir enquanto sendo, ocorre a referência fundamental e originária que
permeia sempre o modo de o humano acontecer.
A motivação de entrelaçamento dessas cinco questões se deve ao fato de que a
relação existente entre mito e religião, ou entre mito, religião e cultura, ou entre mito,
religião, cultura e linguagem sempre se encontra na dimensão ontológica do ser e na
constituição ôntica do ente. A pergunta que traz à tona tal questionar se dá com base no
por quê. Ou seja: há de se perguntar por que o mito aconteceu na realidade do mundo do
homem, bem como religião, cultura e a própria linguagem. Ou ainda: por que mito
religião e cultura aconteceram como linguagem para o homem? O desdobramento de tal
questionar passa pela apreciação de como phýsis e lógos atuam na dimensão do que hoje
é chamado de humano.
O começo da humanidade do humano é a terra, o nascer dela, o conviver com ela
e o para ela e nela morrer, ou retornar. Isso implica voltar o pensamento para o fato, na
tentativa de apreciar qual a relação que se estabeleceu no percurso histórico do mundo
do homem com mito, religião, cultura e linguagem para marcar a sua presença na
história dos dias.
O homem grego antigo e tantas outras civilizações do mundo arcaico e antigo
no seu começo viveram a dimensão da terra como referência e presença do mito. A
experiência do existir se compunha a partir da e com a presença do mito não como
alegoria e fantasia de uma narrativa que ilustrava como deleite artístico moderno o
pensar e o agir humanos. Tal homem viveu, porque entendeu, a forma de o mito se
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corresponder com o mundo. O mito vivia a vida do homem e este a vida do mito,
porque ambos se co-pertenciam dentro de um mesmo espaço onto-poético do existir
fazendo a experiência do mundo junto à terra. Isso era o modo de pertencimento do
homem. Na sua origem, no modo inaugural do entendimento do homem com o mundo,
o homem percebia e entendia a dinâmica da terra dentro do vigor e da vigência da
phýsis falando como lógos pelo e com o mythos. O modo de o homem, o ente enquanto
tal, se entender e dar-se como mundo acontecia pela e com a forma do lógos agindo
como e na dimensão do mito. Entender e estar na dimensão do mito, no entanto, é,
certamente hoje, algo que não participa da constituição do humano. Mas isso não ocorre
mais, porque o homem deixou de lado a referência originária dos antigos tempos.
Ocorre(u) no percurso historiográfico a destituição política e religiosa do que o mito
constituía. Muito provavelmente, isso aconteceu pelo fato de o homem se distanciar de
sua relação e referência originárias com a terra. Ele vive, apenas, sobre a terra e não
com ela, na sua intimidade. Na verdade, parece que se perdeu o afeto, o sentir e o
sentido primordial, para com o mundo.
Contudo, para o homem que ainda vive na sua escuta, o mundo como mito volta
e meia ainda se conserva como conversa junto ao homem. O mito é a fala inaugural do
mundo. Como inauguração, como phýsis, ele iniciou o mundo como lógos para a
experiência com a terra. O mito ensinou e ensina como o mundo se dá e permite a
experiência do real. Mas tal vigor apenas acontece naquilo que o ente consegue mostrar
enquanto ser.
Cabe ainda notar que o modo de o mundo se ensinar enquanto phýsis-lógos é a
referência mesma originária que permite o homem a aproximação com aquilo que é
chamado de religioso. A dimensão do religioso nasce e acontece conjuntamente com a
dimensão de vivência e vigência do mito. Não existe mito sem a dimensão religiosa do
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sagrado e vice-versa. A compertinência entre ambos é de uma referência também
originária.
Para longe de qualquer entendimento com a noção religiosa moderna, sobretudo
a judaico-cristã, a relação entre mito e religião é a instância em que o ser acontece como
ente. É uma impossibilidade que o ente consiga fazer a experiência do entendimento do
mundo, do real, sem se deparar mais hora, menos hora, com o impasse, o enigma e o
mistério do existir. Mesmo que tal situação seja renegada pelo modelo “racional”
moderno, a hora da morte, por exemplo, de qualquer ente envolto de uma
correspondência de afetos, coloca todo ente como ser de frente para o mistério sagrado
do existir, justamente quando cada entidade deixa a existência. Nessa hora, parece que o
que se perdeu foi mais que isso. De certo, chega-se perto do entendimento de que algo
maior que o ente se perdeu. Parece que se entende que o ser se perdeu para sempre
dessa existência. Por se chegar a tal aproximação de sentido e entendimento do existir, é
costume moderno, de algum modo, se “exaltar”, se “glorificar”, se “mitificar”, o ente
querido que se foi. Esse gesto talvez sirva para mostrar o traço indicativo de que o mito
e o sagrado se encontram sempre diante do ente de cada ser, mesmo na hora em que o
enigma fundante do existir se aproxima do homem como morte. A morte, contudo, mais
do que representar o infortúnio de uma perda, constitui a originariedade do homem com
a terra.
O mito e o sagrado surgem com a terra e nela sempre estão presentes. Mesmo
que haja o esquecimento por conta da correria da vida moderna, a presença mítico-
sagrada do existir acontece com o deixar de existir na hora da morte. O ente, no seu
retorno para a terra do mundo, é a vigência da phýsis acontecendo como lógos, que é
mito como voz e santo como deus. Assim, o ser-aí de cada ente se reúne na força
originária do mundo.
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Esse modo de vigência do ente do ser reunido pela força que reúne o ser como
mito e sagrado é, por sua vez, a maneira pela qual o homem acontece como cultura. Esta
não é apenas a forma de o homem se dar para o mundo como evento sociológico.
Cultura é vista aqui como o vigor do modo de existir do ser enquanto ente. Como ente,
o homem é o que a phýsis, por meio do lógos sempre dizente, deixa ser doado na
referência direta do existir no e com o mundo. A noção de mundo, da qual tanto se quer
compartilhar, pertence à relação que se estabelece pela comunhão da terra para com o
homem. Este não cuida da terra. A terra, nesse percurso, é que cuida do homem. Sob os
cuidados da terra, o homem, enquanto ente, consegue realizar a façanha e o mistério do
existir. Se a terra não se desse como a oferenda do sagrado, ela não se disporia como a
que se presta a receber a semente para semear o fruto para a colheita como vida. O
entendimento do cultivo da terra é a fala do lógos junto à phýsis, mostrando-se como a
alétheia do mundo, num movimento de encobrimento e desencobrimento de toda
reunião das vigências do mundo. O ser, enquanto ente, nesse percurso, deveria ser o
que, primeiro e sempre, pode se colocar na escuta desse movimento que reúne mito,
religião e cultura.
A cultura e o cultivo do ente do ser é o que permanece como verdade do mundo.
Tal verdade se acoberta na história dos tempos e se desencobre na medida em que o real
acontece mediante as realizações de cada entidade, em sua existência. O modo com o
qual o homem acontece como ente, deixando à verdade a revelação de cada ser, é a
forma de cultivo originária do mundo. Nesse sentido, cultura reúne, no lógos sempre
dizente, mito e sagrado. A terra, sendo o mesmo que fecunda e é fecundada, abre-se ao
dispor de cada ente revelando a intervenção sagrada do deus e doando-se como mito
para a grande história do ser e do existir. Pensar-se como cultura é entender não como o
ser se cultiva, mas entender como é cultivado pela terra, que a cada vez se dá como e
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para a humanidade do homem. O cultivo de cada cultura é sagrado e mito, porque
ambos se guardam como mistério da terra e do ser, vigendo na verdade do mundo. O
homem quando nasce, e nasce o mesmo a cada minuto, se estabelece como mundo na
mesma dimensão em que o sagrado abençoa a terra e diz, eternizado como mito, a
fortuna e o infortúnio de todo nascimento, guardados, a partir de então e para todo
sempre, na história dos tempos.
O que corresponde ao sentir como linguagem nesse percurso de mito, religião e
cultura é precisamente um deparar-se com o lógos sempre dizente que faz com que o ser
se mostre como sendo e aconteça como mundo. O humano só tem mundo porque a
linguagem nele já habita. Fazendo do humano seu habitat, a linguagem permite o
acontecimento, de todo e sempre, também originário para que a leitura do mundo como
mundo do real e das realizações seja lido. A linguagem enquanto lógos reúne tudo:
mito, religião e cultura. Na verdade, um outro elemento fundamental e originário
também a ele pertence: o sentir. O lógos acontece como linguagem e leitura de uma
escuta sempre freqüente, à medida que o sentir se encontra como lógos. Este é a
linguagem enquanto tal, na referência proveniente da vigência do sentir. A dimensão de
leitura diante da escuta do lógos só acontece enquanto o ser se reconhece como sentido.
Na dimensão do sentir, o homem se dá na e pela escuta do lógos. A escuta, por sua vez,
é uma disposição do sentir. Este não é o que é percebido, mas o que se põe a perceber.
O sentir atua no homem como linguagem. Não conseguimos ir ao encontro do
lógos ou percebê-lo como a fala dizente do mundo, se o sentir não se encontrou como
sentido no pensar do homem. O pensar, a propósito, o mesmo que ser, se dá quando o
sentir atua como lógos na dimensão do existir, realizando a façanha e o gesto
malabarístico de o ser se mostrar enquanto ente. Só assim o ente deixa se entrever como
ser, quando o sentir se coloca no meio de todo pensar. Não há a possibilidade de pensar
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sem sentir. Pode-se mesmo entender que o sentir é o movimento do lógos e da phýsis
acontecendo como a alétheia da existência de cada ente. O que se tentará, então,
mostrar aqui é que sentir é o mesmo que ser e pensar, como força de reunião do lógos e
da phýsis.
É assim, pela releitura da relação entre mito, religião, cultura e linguagem como
sentir que se tentou entender a dimensão ontológica do ser na disposição ôntica do ente.
O percurso que se quer mostrar é, sobretudo, o da referência que entre todas essas cinco
questões fundamentais do ser, compõe aquilo que é chamado de mundo, a partir da e
mediante a disposição do sentir.
O projeto formal desse texto é de mostrar mito, religião, cultura e linguagem
numa estruturação em que os capítulos seguem um percurso, no qual se acumulam os
fatos condizentes à natureza de cada questão. Apesar de religião não suceder mito, nem
cultura suceder mito e religião, nem linguagem suceder os três citados, os capítulos
tentam, gradualmente e à medida de cada peculiaridade, agregar as referências dos
argumentos dos capítulos antecedentes. Assim, o sentir, por exemplo, é discutido de
modo mais efetivo, por assim dizer, no capítulo da linguagem, apesar de aparecer
permeando os outros capítulos.
Tal estruturação, gradual e cumulativa entre os capítulos, tem o propósito de
tentar fazer com que cada questão venha a ser discutida a seu tempo e com a devida
atenção, (re)apresentando os aspectos de cada um de seus vigores e tentando localizar,
com maior ou menor intensidade, os pontos, sobretudo, de intersecção e de
compertinência de cada um dos argumentos localizados no corpo da discussão que o
texto se propôs trazer à baila.
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1. O mito no homem: o fabular
A história do homem é rica e toda ela pautada no mito – o que cria a sua
constituição de mundo. A realidade nossa existente é a de que não existe mundo sem
mito, bem como não existe homem sem mundo.
O entendimento, no entanto, observado nos parâmetros do mundo ocidental
advém da interpretação de que o mito não corresponde mais à sua realidade de mundo.
Acredita-se que a realidade seja transposta para muitos condicionamentos em que as
mais diversas ramificações científicas se encontram e desencontram, aglomeram-se e
desaglomeram-se. O mundo ocidental, sobretudo, vive sob a consideração de que mito é
“fábula, invenção, ficção”. Nesse sentido, o mito não pertenceria à realidade, tal como
hoje se entende e se vivencia.
A nossa cultura, então, acredita que o mundo das alegorias engendra um outro
tipo de realidade que não se coaduna com os anseios da cultura moderna,
eminentemente laica, científica e racional. O pressuposto provável ainda existente é o de
ver o mundo constituído por realidades cabíveis e não cabíveis, realidades que
comportam o procedimento moderno de ser e estar no mundo em face das inúmeras
tecnologias que circundam e povoam o homem atual. As tecnologias são, a propósito, as
forças mais ocupantes do homem e hoje fazem com que ele se mostre como um ser
dizente de si mesmo, a partir de técnicas cada dia mais apuradas. Tal pureza se depura
nos artefatos. O homem é atualmente a realização de uma série de artefatos que o
tecnologizam. O artefato, assim, coloca-se como a própria forma de o homem dizer-se e
de rezar-se. Tanto é assim que o que mais acontece nas sociedades ocidentais, nas
metrópoles que nelas pululam, é o fato de o homem ser tido como bem sucedido na
medida em que ocupa um lugar tecnológico no espaço do mundo.
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O espaço do homem é o espaço da máquina. O espaço da máquina é a
conformação do homem na realidade da evolução caminhando para o progresso da
máquina, talvez do próprio homem. O homem, com a máquina e seus artefatos, é a
consolidação da figura do progresso moderno. Os artefatos e as máquinas não são
apenas uma realização do homem-tecnológico na modernidade. As tecnologias vigentes
são também as possibilidades de confecções mais ou menos pragmáticas de uma vida
que abunda midiaticamente em discursos. Tudo isso compete à realidade moderna. E,
nesse sentido, Heidegger já disse que “A vigência da técnica ameaça o desencobrimento
e o ameaça com a possibilidade de todo des-encobrir desaparecer na dis-posição e tudo
se apresentar apenas no des-encobrimento da dis-ponibilidade”1. Assim, a questão da
técnica não se coloca de maneira devida no horizonte como destino do homem.
Dentre outros estranhos comportamentos, científica ou não, a produção de
discursos ainda mostra a competência que se assumiu como o modo legítimo e real de
desbravar as realidades, cultivando-as e dominando-as. A noção de domínio é o que
impera na forma como o mundo se realiza para o homem. Ou melhor, o mundo não
pode mais se realizar. O homem é quem o realiza, porque o dirige e domina o mundo
inestimável das tecnologias.
O sentido de direção adotado por ele é o que dá rumo e sentido à vida. Então,
para que a vida se configure e se afirme como cheia de sentidos e benesses, o homem se
maquinaliza na tecnologização do mundo.
A verdade do homem é que ele organizou, compreendeu e aprendeu a dirigir a
verdade da máquina dentro de uma verdade categorial e de um tempo histórico-
cronológico em que se acredita mais humano e percebe, no melhor dos tempos, a forma
senhorial, de domínio e de relacionamento com seu próprio modo de ser. O mundo
1 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 36.
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moderno é, dessa feita, um artefato que permite a recategorização do homem diante das
realidades, de modo a conformá-las em um todo controlável e de alguma maneira auto-
regulamentável. O que importa, no pensamento ocidental moderno, é o domínio e o
controle do real e suas realidades aparentes e creditáveis. O pressuposto do controle,
contudo, se volta e se encontra constantemente como o desencontro do homem.
Aliás, a força do homem na luta do mundo não é uma questão de somenos. A
força da luta é uma constante e, talvez, a briga seja pelo domínio da força que possui o
mais forte. A pergunta que ao tempo tecnológico não costuma ser feita é: até que ponto
a vida-máquina do homem moderno não é mito? Até que ponto não é uma dimensão da
“fábula”, não é uma “invenção”, não é uma “ficção”?
Se o que se entende pelos três vocábulos é apenas o que não corresponde ao real,
a discussão tenderia a determinar uma visão sobre o que é considerado real e irreal, ou o
que do real é participante ou não. Certamente, nessa eleição, o resultado proviria de um
todo arbitrário e desmedido. Mas não é esse o caminho.
Pelo étimo, vale lembrar que fábula2 remete a mu~qoj. Tal remissão aponta para
significados de uma mesma ordem de sentido, e que, para mu~qoj são:
1 palavra; discurso; matéria de um discurso, op. a e2rgon; mu~qon telei~n HOM. cumprir a palavra 2 discurso público 3 narrativa 4 rumor 5 notícia; mensagem e diálogo; conversa; entrevista 7 pl. discussão 8 conselho; ordem; prescrição 9 objeto do discurso ou da conversa 10 resolução; decisão; projeto [...]3
2 Morfologicamente, fábula, con-fabular, con-fabulação são termos correspondentes. Tal correspondência ainda diz que o radical “fab” provém de “fabela”, tendo relação com “falar; emitir sons”, tal é o que consta em HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol II. São Leopoldo: Unisinos, 1984, p. 1647. Além disso, tanto o substantivo latino “fabula,-ae” quanto o respectivo verbo “fabulor, -ãrïs, -ãtus sum” mostram o compromisso com o sentido de “falar”, ver FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar latino-português. Rio de Janeiro: FENAME, 1975, p. 385. 3 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura . Dicionário grego-português (DGP). vol.3. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 185.
20
Esses sentidos, contudo, pouco esclarecem o percurso que se dará aqui. Partindo
já de muqe9w-w~ ger. méd., podem-se entrever significados como “2 dizer; contar algo,
ac., a alguém, dat. 3 designar, chamar, nomear 4 anunciar um oráculo 5 ordenar, inf. 6
dizer a si mesmo; deliberar por si mesmo, ac. <mu~qoj>”4 – mais interessantes para o
encaminhamento proposto, pois a compreensão de mito como “dizer (e/ou também
falar), contar algo, chamar e nomear, anunciar um oráculo, ordenar” reaproxima,
sobretudo, o sentido de fábula como fala, mas a fala do dizer do mito, tal como se quer
entender. Nenhum parentesco em termos de radical em “fábula” se aproxima do radical
de “mitos”, não havendo por que considerar seu sentido como o habitual, muito menos
pelos significados correntes nos dicionários atuais. Desse modo, fábula, e tudo o que a
ela for co-respondente, será concebida como a fala-dizente onde o mito se mostra e se
coloca. Nesse sentido, há de se entendê-lo pela sua originariedade, “onde mito é o relato
de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes
sobrenaturais”5. Ou ainda, seguindo tal entendimento, considerar-se-á também que
[...] mythos tem o sentido da palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana e que por assim apresentar revela o canto como fonte de conhecimentos relativos ao sentido do ser e às formas divinas do mundo... mythos significa as palavras das ‘Musas Olímpicas’[...]6
4 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura . Dicionário grego-português (DGP). vol.3. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 185. 5 BRANDÃO, Junito de Souza. “Mito, Rito e Religião”. In: Mitologia grega, vol. I. 20ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 35. 6 TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus – o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996. p.26. Ainda que seguindo um outro discurso, de tradição mais historiográfica e, em muitas vezes, tendendo à metafísica, cabe notar que o entendimento de mito em Mircea Eliade é próximo ao de Jaa Torrano no que diz respeito à presença e à operação do divino, chegando inclusive a colocar também presente a questão do mito como um acontecer que pertence ao que se mostra como originário. Mircea Eliade, em O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 84-85, diz o seguinte: “O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gestas constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhes fossem revelados. O mito é, pois, a história do que passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. ‘Dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab origine.” Sob certo sentido, Mircea Eliade percebe alguns dos aspectos primordiais do que é da competência do mito.
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Assim, a fábula, além de ser a fala-dizente, é o que se coloca como e onde o
dizer do mito falará, sempre no sentido de mostrar o acontecimento de todos os tempos
na sua originariedade. Fábula e mito são, aqui, o mesmo vigor que apela, pelo canto,
contar e re-montar todas as vigências de instalação do homem no mundo. O sentido que
se quer trazer é o de, pela fala-dizente do mito enquanto fábula, incidir sobre a realidade
inaugural do Ser do ente dos homens. Então, entende-se também que o mito participa do
e configura o fabuloso. E dentro de uma perspectiva que não é a habitual, haveria aqui
de se requestionar o que é “fabular”?
Aproveitando algumas correlações do entendimento atual, fabular veio a dar em
português derivados como “confabular”, que modernamente não tem o sentido de
produzir fábulas como evento não-participante do real. Confabular ganhou, dentre
muitos sentidos, o de tramar, o de arquitetar alguma ação que venha a ser favorável ou
desfavorável a algo ou a alguém. A trama da confabulação, portanto, não se dá na
solidão. O con-fabular implica uma comunhão com o outro cuja fabulação se coaduna
no mesmo intuito, na mesma perspectiva de propósitos. Então, con-fabular é criar uma
predisposição do e no real para que, quando se está numa dimensão de propósitos
comunitária, tal realidade aconteça. Se con-fabular é criar uma vida comum, a fábula é a
condição ordinária do homem, porque advém do fato de ser dele a natureza dela A
trama narrativa da fábula é ao mesmo tempo o seu vigor e o seu modo de ser e mesmo
de pensar. O pensar do mito é, nesse sentido, fabuloso, porque é ele o próprio fabular.
1.1. O pensar e o fabular: o vigorar da phýsis
O pensar-apresentante do mito se dá no fabular, porque este se coloca na
dimensão do inventar, do criar, no sentido do fazer nascer originário da phýsis/poiéw. A
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necessidade da fábula é, como in-venção, a necessidade de uma escuta e de uma fala
que se coadunam no empreendimento de toda uma trama, de todo um arquitetar que só o
pensar orienta. E o homem é e não é o pensar, porquanto nem sempre o homem se dá
como disponível para o pensamento. A essa altura, poder-se-ia perguntar quando, então,
o homem con-fabula? O homem confabula no momento em que se coloca como o
encontro em que escuta a voz originária do mito, ou seja: encontra a fábula em seu
fabular e ouve o canto das musas dizendo a mensagem do lógos, o divino. Toda vez em
que ocorrem as confabulações o homem vive, ao mesmo tempo, junto ao fabuloso, ao
extraordinário. Neste momento, viver é estar numa disposição do acontecer em que o
antes e o depois do mito, pela e na con-fabulação, apresentam-se como fá(bu)la, como
fala originária. O fabuloso é, então, além de um viver na dimensão do real com o divino,
o que permite e dá acesso, desvelando o velado, à vigência proeminente da fábula
enquanto aquilo que o coloca na ordem do fabuloso, do sagrado, do divino, do
extraordinário. Todos esses aspectos são a presentificação de um vigor de todo
inaugural mediante o vigorar da phýsis. Tudo quanto é do humano é fabuloso. Tudo
quanto é do humano é primeiro da phýsis. Todo o fabuloso está na e provém da phýsis.
Mas só a ela, no seu movimento de se mostrar e não mostrar, cabe o vigorar no qual o
homem desde sempre se ambienta. O fabuloso conduz e condiz ao humano e a ele diz
respeito. Assim, se o homem se dá exatamente na, pela e para a dimensão do mito, tal
abertura sempre o lançará forçosamente para o encontro de sua própria fábula, enquanto
disposição iminente de a fabulação se tornar memorável. O que se pensa é que a fala
vive no sentido do in-ventar originário e só se constitui como tal porque entra pelo
mitós-lógos como uma fabulação moldada em toda a memória e seus ecos.
A melodia que surge a partir da fala-cantante do mito e das musas é própria dos
que podem cantar e repetir como gesto a ser sempre co-memorado: essa melodia é
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sempre a da lembrança do mesmo canto. Há quem queira, nessa hora, perguntar: mas
que “mesmo canto” é esse? E por que o “mesmo”? O homem vive na escuta do lógos7,
na melodia que dele emana e que pelas musas no mito en-canta. O homem, nessa
audição, é aquele que não vive na e para a fala e a escuta de si mesmo. E em tal falar-
escutar, o som, a melodia que mais o enobrece é a que dá sempre a oportunidade de um
dizer se (re)dizer. Tal reedição não se apresenta, todavia, como mera repetição ou eco.
O redizer acontece como forma de ser, de se constituir, tal como para a constituição dos
dias existe a possibilidade de repetição dos dias que são sempre o mesmo, mas nunca os
mesmos dias. O falar-escutar do lógos em todo homem permite que ele se faça como
sempre se fez e sempre se fará: fabuloso. Falar-escutar o lógos-mitos é mostrar ao
homem a sua vigência. Falar e escutar são, nesse sentido, não um mero movimento de
produzir e acolher sons a serem pro-fanados ardilosamente, com astúcia e perícia, tal
como se faz nos projetos de exteriorização e exibição intelectuais. Heidegger, a esse
respeito, já fez uma consideração sobre o vigor da saga do dizer (e do escutar):
Conhecemos a fala como verbalização articulada do pensamento por meio dos órgãos da fala. Mas falar é ao mesmo tempo escutar. É hábito contrapor fala e escuta: um fala e o outro escuta. Mas a escuta não apenas acompanha e envolve a fala que tem lugar numa conversa. A simultaneidade de fala e escuta diz muito mais. Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. Essa escuta da linguagem precede de maneira mais insuspeitada todas as demais escutas possíveis. Não falamos simplesmente a linguagem. Falamos a partir da linguagem. Isso só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que é que nela escutamos? Escutamos a fala da linguagem.8
7 Aqui, vale lembrar o fragmento 50 de Heráclito, em Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 71, que diz: “Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um”. Tal consideração lembra a condição da linguagem no homem. Em seu falar-dizer, está sempre presente a necessidade de sua escuta, não a do homem, mas a do lógos. A fala do homem é a escuta do lógos, comportando um diá-logo de todo originário. O homem quando fala está sempre num entre-dizer, que, por isso, não é nunca um fora nem um dentro, mas sempre uma situação limite em que tanto a fala diz como não deixa dizer. Na situação limite, diante da escuta do lógos, o homem vive o mostrar da phýsis no velar-desvelante do lógos e assim experiencia o cumprimento do seu destino, como presença do mito, diante do dizer do sagrado. 8 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 203.
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Por isso, há de se entender que falar e escutar são estar numa mesma dimensão,
mas não na de interseção com a exteriorização da voz de outrem. É voltar para a
melodia da voz do pensamento como quem volta para a casa do próprio ser,
considerando sempre a manifestação outorgada pela conformidade de todas as
entidades, a saber, e prioritariamente: a de seu próprio modo de se entificar. Tal melodia
sempre reside na conformidade do ser como possibilidade de articulação da linguagem.
O homem só possui a linguagem porque é da sua natureza o canto. Existe, em toda a
dinâmica da linguagem, uma voz que só fala porque vive na incidência contínua do
cantar. O cantar aqui não é exatamente um cantar de todo e sempre mostrante como as
categorias sentenciais que o mundo ocidental entende e denomina por arte. O canto é o
in-ventar na dimensão de um poiéw, porquanto viabiliza a possibilidade de que, naquele
respectivo canto, as musas podem tornar memorável seu dizer. O homem fala e vive no,
do e a partir do canto, porque é sempre um ente que, na dinâmica do ser, está dis-posto
ao cantar que ocorre em e para todos os cantos. Ainda que mudo, o homem não se
locomove sem uma melodia sequer. Todos os movimentos dos corpos de todos os
homens são cantantes-dançantes. Todos os desenhos dos movimentos humanos são
cantantes-dançantes. O corpo canta-dança quando se movimenta na dimensão da
linguagem. O bailado andante do homem já é por si a movimentação do homem na
disposição da linguagem em seu torno, con-torno e re-torno. O bailado da linguagem,
nessa ocasião, coloca o homem diante de seus muitos tornar-se. O homem só vive no
con-torno e no seu próprio re-torno porque está sempre na linguagem, à espreita da
possibilidade de por ela sempre se dignificar. Estar na linguagem significa aqui o
seguinte: viver sempre no limite de se con-fundir com o que en-torna e estar sempre
num viver à beira do centro do próprio do ente; a saber, na referência do ser.
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1.2. O mito como phýsis
Segundo Heidegger, “Com o ente nos deparamos em toda parte. Ele nos rodeia,
nos leva e subjuga, nos satisfaz, nos eleva e decepciona”9. A essa altura, cabe aqui
estender o entendimento acerca do ente, a partir do que implica entificar-se. Para o
homem, entificar-se é estar na disposição de manifestação do ser enquanto ente,
enquanto sendo. Mas, entificar-se é, ainda, pela possibilidade de manifestação, a
mostragem de como o ser se cria, se inventa e se dá na radicalidade do homem. O ser do
homem é notado por meio das entidades reveladas. Na velação e na re-velação dos
entes, o ser do homem se constrói passo a passo nos vieses pelos quais o ser permite
mostrar-se e dar-se, paulatinamente, para e em cada homem. Então, o ser é, na
constituição de cada ente, a possibilidade de manifestação de suas entidades.
O ser das entidades que o homem exibe no seu cotidiano está, há muito, longe de
se mostrar, porque o que o homem mais aprendeu até hoje foi a se esconder. O ser dos
entes não se mostra como ser, porque o homem não se entende na totalidade do seu
próprio ser. O que tem constituído a caracterização do homem diante do mundo é
mostrar-se ao revés dessa totalidade. Há muito, o homem tem, assim, preferido não agir.
O homem ainda não aprendeu a lidar com a totalidade de realidades em função das
possibilidades de manifestação da phýsis. Diz Heidegger que a phýsis é “o surgir e o
elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poi&hsij”10. O homem não soube, ou pouco
soube, até agora, a dimensão da phýsis como totalidade. O que ele conseguiu foi se
relacionar com a phýsis pelas partes, na dimensão de cada ente. Por isso, talvez, o
9 HEIDEGGER, Martin. “A questão fundamental da Metafísica”. In: Introdução à Metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 59. 10 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 16.
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homem tenha se mostrado como aquele que se desentende com a realidade do seu
próprio mundo, porque não alcançou, tal como deveria, o diá-logo em que a phýsis se
mostrasse não como parte, mas como o seu próprio falar-escutar. Arrisca-se dizer que,
se um dia o homem se der para tal referência dia-lógica, talvez possa lidar com a phýsis
em sua alétheia (des-encobrimento11), pois, ao mesmo tempo em que até hoje ela vela e
re-vela a dimensão dos entes do mundo para o homem, um dia ela poderá, talvez, ser
apreciada como re-velação constante. Na dinâmica do re-velar, a verdade mais
freqüentemente se des-velará; mas, re-velando, mais encobrirá o des-cobrimento.
Tal encobrir, no entanto, não é um ocultar a se perder no horizonte do homem e
para sempre dele se distanciar, refugiar-se nos limbos da memória do mundo. O
encobrir é um cuidar, um proteger o legítimo, o originário, para que nunca se perca de
vista a vigência do des-cobrir, acalentando a singularidade própria da phýsis. Prestar
atenção aos movimentos de des-coberta é tentar se aproximar, por meio dos e no meio
dos entes, da vigência do ser, a mesma que se dá na experiência do mito.
O entendimento de que as coisas, na dimensão da phýsis, velam-se e re-velam-se
merece um aparte. A questão se coloca hoje tal como a entendemos, porque o homem
não vive na dimensão do descobrir-se. O homem, se assim vive, muito vagarosamente
se des-cobre. Muito da phýsis é velado e paulatinamente re-velado, visto que muito do
próprio homem está encoberto. Poucos são os descobrimentos do homem diante de si
mesmo.
Todavia, alega-se que o homem moderno já avançou muito, já descobriu muitas
tecnologias. Mas o problema dessa afirmativa moderna é a utilização da palavra
“muito”. A medição do “muito” se dá sem a menor noção do que seja a compreensão da
totalidade. Assim, o “muito” talvez bem seja o “pouco”. No entanto, esse é um
11 HEIDEGGER, Martin. “Aletheia (Heráclito, fragmento 16)”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 229.
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problema do homem diante dos artefatos da técnica. A phýsis, como possibilidade de re-
velação do ser, não é medível. A realidade da phýsis é a de colocar o homem diante de
uma disposição frente à vida em suas conformidades, sendo também a de um mostrar-se
e velar-se. Essa dinâmica mostra que o que deve ser abolido do pensamento é o “muito”
e o “pouco”. E deve, porque o pensamento não pode ser medido, porque o homem não
pode ser medido, nem o pode ser a natureza. Mas, se todo entendimento da medida é um
equívoco, o que há de se considerar até aqui é, face à dinâmica de possibilidades da
phýsis como manifestação do ser, haver sempre o mo(vi)mento do velar-se e do re-
velar-se. O equívoco do homem como o que dá a noção de medida de todas as coisas e,
assim, pressupõe-se, do próprio homem, deve-se à leitura que se fez do dizer de
Protágoras de Abdera, quando em sua obra Sobre a Verdade diz: “O homem é a medida
de todas as coisas (pantw~n xrhma9twn), das que são enquanto são e das que são
enquanto não são”12. Tal dizer não deve ter uma leitura em que o homem ora é o que
mede as coisas, ora o que é medido por todas elas; o homem, adjetivado-
substantivamente em Protágoras como “medida”, é o medíocre, o moderado, o me(d)io,
o medial, o entre13. O homem, diante dos entes do mundo, coloca-se como o que tem
por destino estar entre todas as manifestações da phýsis. Tal medir, como entre-
modificante-moderado, não põe em cena uma avaliação quantitativa ou qualificativa. A
medida é o simples notar que o entre-encontro dos entes, enquanto coisas, dá-se com e
no homem. E quem sempre o homem encontra no entre-meio e no caminho desse
encontro é a phýsis.
12 MORA, J. Ferrater. “Protágoras”. In: Dicionário de filosofia - Tomo III (K/P). São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 2396. 13 Aqui, vale lembrar que “medida”, o predicativo-substantivo da sentença de Protágoras, provém do verbo grego metréw, que significa, além de “medir”, “contar” e “calcular”, “moderar”, “modificar”. Por sua vez, o significado do adjetivo me9trioj, on ou a, on é “moderado”, “mediano”, “medíocre”, “suficiente”, “simples”, “proporcionado”, “justo”, ver ISIDRO PEREIRA, S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Portugal: Livraria A.I., 1998, p. 371.
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Cabe aqui, ainda, tentar estender o que já se disse sobre a phýsis e o seu velar e
des-velar. Velar-se é um movimento indicativo de que o homem, na conformidade da
phýsis, está guardado. É um estar guardado em si mesmo; e para si mesmo saber,
também um dia, pela dimensão autóctone da phýsis em si próprio, velar-se, guardar-se,
sabendo de sua guarda. A phýsis, por sua própria dinâmica, vai velando-o e des-
velando-o. Des-velar-se, por sua vez, é o movimento contínuo de sair do velamento de
si mesmo e se dar para a phýsis e para o lógos, que, pelo agir do falar-escutar, vão se
falando-ouvindo e, em tal conferência, dão-se na dimensão do humano. O deixar de
estar encoberto é um acontecer da phýsis. Esse acontecer, no entanto, é a orientação em
que o humano se experiencia durante a vida no esforço de se mostrar enquanto tal. O
contínuo desse acontecer é a dinâmica e a vigência de o humano trilhar os caminhos da
vida e se consagrar na dimensão do mito. A consagração e suas sacralidades são a
disposição que o mito constrói para o homem quando para ele e nele o mito se diz,
mostrando o divino no homem e o homem no divino. Mostrar significa, a essa altura, o
seguinte: dar-se, encontrar-se no espaço em que o que permite se dar seja oferecido e,
como oferenda, sirva-se da possibilidade de viver no espaço do servir, do estar a
serviço. Mas caberia, ainda, certamente, uma pergunta: o que é para o homem o
mostrar-servir da phýsis? Mostrar é o devir da phýsis no e para o ser do homem. O
serviço do devir ocorre na referência entre o homem e a dinâmica da phýsis. A phýsis
com que o homem, contudo, relaciona-se e com que vive as suas experiências se dá
como sendo. Na dinâmica das entidades, o mito acontece e orienta o homem. Por isso,
pode-se entender que o mito é a emergência do ser enquanto ente na dimensão do
humano e do divino, que são o mesmo.
Mas o que a emergência do ser enquanto ente tem a ver com a configuração do
homem enquanto mito? O homem é, na dinâmica da phýsis e na referência com o lógos,
29
o que se mostra também como fábula, enquanto aquele que, na comunhão com phýsis e
lógos, consegue se dar como fabuloso, porque além do humano participa do divino,
num todo extraordinário. O homem, na vigência do ser, é o fabular e o fabuloso, porque,
na instância do mito, ele é o ente que se mostra na e a partir da linguagem, tal como a
entendemos até então. Por isso, o fabular e o fabuloso pertencem ao ser.
1.3. Mito: a reunião de lógos e phýsis na casa do ser
O que é, contudo, fábula no contexto da phýsis? – isso não foi respondido. A
phýsis da fábula é o modo dos deuses e não-deuses, mortais e não-mortais, diante do
homem, entregarem-se no e para o real. E todo real do homem participa do fabuloso na
fábula, que é o mito. O mito como fábula, no entanto, só se mostra como con-fabulação.
O fabular do mito deve ser questionado a partir do vigorar da phýsis. Mas por
quê? Heidegger tratou da phýsis na dimensão do lógos. Diz ele:
[...] nossa questão sobre a origem da distinção [entre Ser e Pensar] é ao mesmo tempo e antes de tudo a questão sobre a compertinência Essencial do Pensar ao Ser.
Historicamente, pergunta a questão: o que se passa com essa compertinência no princípio normativo da filosofia ocidental? Como nele se sente o pensar? Pode-nos dar um indício o fato de a doutrina grega sobre o pensar ser uma doutrina sobre o lógos, “lógica”. De fato, deparamo-nos com uma conexão originária entre Ser, phýsis, e lógos. Apenas temos de livrar-nos de julgar que lógos e legein originária e propriamente não signifiquem outra coisa do que pensar intelecto e razão. [...]
Vamos logo ao decisivo e investiguemos: o que significa lógos legein, se não significam pensar? Lógos significa a palavra, o discurso e legein significa falar. Diá-logo é o colóquio, monó-logo, o solilóquio. Não obstante, originariamente, lógos não significa discurso nem dizer algum. Essa palavra não possui, em seu significado, nenhuma referência imediata à linguagem. Lego legein, em latim legere, é a mesma palavra como a alemã “lesen” (ler). [...] Lesen significa pôr uma coisa do lado da outra, juntá-las num conjunto, numa síntese; coligir, reunir. Coligindo, colhendo, ao mesmo tempo se seleciona, se distingue e se separa uma coisa da outra. [...] Analogicamente, também os gregos não pensavam, com a palavra lógos, necessariamente em “discurso” e “dizer”.
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[...] A alusão ao significado fundamental de lógos só nos poderá dar
um indício, se já tivermos compreendido o que “Ser” diz para os gregos: phýsis. Não apenas, em geral, mas pelas diferenciações imediatamente anteriores do Ser frente ao Vir a ser e à Aparência circunscrevemos de modo sempre mais claro o significado de Ser.
Na suposição de nunca perdermos imediatamente de vista o que ficou dito acima, dizemos que o Ser como phýsis é o vigor imperante, que surge. Em oposição ao vir a ser, mostra-se como a consistência, a presença constante. Em oposição à aparência, se afirma, como o aparecer, como a presença manifesta.14
A fala de Heidegger aponta para o entendimento da phýsis como lógos e na
dimensão de possibilidade de manifestação de o ser se dar. É assim que a questão do
mito aqui se quer notar diante do que ele, mito, numa referência enquanto fábula, a fala-
dizente, isto é, enquanto phýsis-lógos provoca no ser do homem, enquanto sendo. O
reunir do lógos é a questão do mito. O mito é o que reuniu até hoje o homem numa só
concentração. O mito esteve e está diante da realidade, o tempo todo, a guiá-lo no seio
da terra. A força do mito não é, portanto, para se pensar como uma força diferente da
força do lógos na dimensão do ser. Na vigência do lógos em que o mito se articula, o
homem sempre e melhor entendeu a realidade. O mito é para o homem, porque foi e
sempre será a instância em que o homem se depara com o lógos a guiá-lo. Pode-se
perguntar nesse momento: como esse reunir do lógos, que se apresenta no mito,
guia/guiou o homem na aurora do pensamento? A resposta provém de uma sugestão
que diz algo a respeito do reunir. Re-unir é, num primeiro momento, voltar a unir.
Repetidamente o homem se dá na força que volta a se dar como união. Unir diz ainda
que o homem existe, a partir de um separar que tende sempre à junção de todo
experiencial na rotina do seu mundo. Tal movimento diz também outra coisa: unir é
estar sempre prestes a ir de encontro a e ao encontro de um dar-se para a dimensão do
Ser do ente. Nessa união, o dar-se do homem se guia e se orienta. Orientar e guiar são o
14 HEIDEGGER, Martin. “A delimitação do Ser”. In: Introdução à Metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, pp. 148-150.
31
papel do mito na vida do homem. O mito surge para o homem sempre como guia, está
também na dimensão do unir. Unir é, a saber: estar junto numa só presença; diante do
que se presentifica; tornar todos os tempos e todos os lugares uma só disposição do real;
estar dentro e envolto por todo o real; estar pensando voltado para o mesmo ponto de
encontro, o da presença. Quando se guia pelo mito, o homem se volta para o apelo de
todo um re-unir que o coloca diante, com e no meio de toda a presença. O que traz
presença é linguagem, e o mito é também uma dinâmica da linguagem. A fábula, que é
o mito, não está fora dessa dinâmica. Fabular é estar voltado para todo re-unir. Mas re-
unir deve ser pensado ainda como aquilo que está voltando a unir. O “re-” é um fazer
voltar, é um criar para o homem o re-torno. Unir é estar compelido e fadado a fazer
voltar esse re-torno. Re-tornar não é voltar para um tempo passado em que se projeta
um futuro. O re-tornar, na dinâmica do fabular do mito, é pensar a disposição do mundo
como pertencendo a um todo-presente. Na presença do todo do tempo, o canto que a
musa, pela memória evoca, canta o homem, criando para ele a realidade de todos os
tempos e de todos os homens. O fabular é um presentificar, é criar presença, porque
vivente dessa presença. Por isso, o mito é um reunir, na força da fabulação, todos os
tempos-lugares (história) do homem, colocando-o num onde-temporal em que ele se
encontra num sempre presente-retorno junto ao encanto de todos os deuses no
pensamento da terra, vindo como oferenda, por meio e diante da voz das musas, na fala-
cantada-pensante dos aedos, que são, por legitimidade, todos os poetas, os mithologoi,
os fabulosos, os mito-cantadores. Assim, volta-se ao entendimento de que o pensar do
mito é o fabular, porque, como fala-dizente, cria, in-venta15·, vem receber como
15 Inventar é um verbo que provém do latim “inveniõ, -ĩs, -ĩre, -venĩ, -ventum” e significa “vir em ou sobre”, “encontrar”, “achar”, “receber”, “descobrir”, ver FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar latino-português. Rio de Janeiro: FENAME, 1975, p. 524. Seu radical, entretanto, é proveniente de “venio, ventum, venire” que significa “vir”; “transportar-se de um lugar para outro”; “chegar” , ver Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol IV. São Leopoldo: Unisinos, 1984, pp. 4379-4383. O prefixo “in-” indica: movimento para dentro, um ficar no meio, no entre.
32
encontro o des-cobrimento do agir, na dinâmica do poiéw. Na dimensão do pensar, o
fabular do mito é de todo-sempre deixar o agir agindo, à mostra, como poiéw tanto do
dizer quanto do falar. Mas qual fala-dizente diz todas as fábulas, no originário dos
mitos? As falas que as pronunciam são as da in-venção, isto é: as falas do encontro com
o des-coberto, o des-velado auto-velante, pois só con-fabulando o ser se des-cobre, se
des-encobre, se dá como verdade (alétheia). O criar, como poiéw, o agir-des-cobridor, é
da natureza do ser do homem na dimensão dos entes. Criar, como poiéw, é, por isso,
também in-ventar. Estar no seio da in-venção é, para o homem, estar no entre-vir, no
entre-des-cobrir; ou seja, estar na sua própria casa. O homem mora sempre onde ele se
in-venta, no entre-des-cobrir. O maior invento, o maior coberto-des-coberto, a saber: o
homem, como mito e fábula, pois na dimensão da fala-dizente da fábula o homem se
cria, se des-cobre. E só se des-cobre, porque sempre en-coberto16. O criadouro: sua
própria casa. A casa onde ele mora: a linguagem. E o falar da fábula é estar como
habitante na linguagem, pois que nela ele, o homem, mora. Heidegger, a esse respeito
disse:
O homem não é apenas um ser vivo, que, entre outras faculdades, possui também a linguagem. Muito mais do que isso. A linguagem é a casa do Ser. Nela morando, o homem ec-siste na medida em que pertence à Verdade do Ser, protegendo-a e guardando-a.17
Mas o que significa habitar a linguagem originariamente? Aqui há de se partir
para o sentido mais usual de estar de posse de um habitar. Quando o homem possui a
certeza de uma habitação, ele possui não só a si mesmo, mas ainda: acredita possuir
agora formas de proteção e vigília que, como sendo, apresenta. A alquimia que se
16 É esse também o sentido do que Heráclito diz, no fragmento 123: “Surgimento já tende ao encobrimento”, ver Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 91. Aqui, o in-ventar é, nesse sentido, também o des-cobrimento/surgimento que tende ao encobrimento. 17 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1967, p. 55.
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estabelece entre o sendo e a linguagem é de tal ordem que casa e homem, quando
habitados entre si, colocam-se dentro de uma mesma relação de proteção comum. O
homem comum, aliás, sabe disso. Quando não possui moradia, a sua vida não se
sedimenta ou vive à espreita de ficar mais vulnerável a toda e qualquer tormenta e
cataclismo. O corpo do homem é o corpo da casa, que é o corpo do homem. O homem e
a casa: um, a habitação do outro. O homem e a linguagem: o mesmo.
O habitar nessa vida é estar ciente de que o homem tem a posse da linguagem
não como mero utilitário e recurso retórico. O homem também sabe que não é qualquer
fala tecnocrática que o deixa de posse de seu habitat. A retórica tecnocrática, teorizante,
politizada etc., no máximo, deixa-o vislumbrar as cercanias e as peripécias mil
permitidas pela linguagem como ad-vento, mas não como e-vento consumado de
disposição do ser.
O homem sabe que existe um dizer que por muito quer falar, mas que só fala
legitimamente quando se coloca numa posição de audiência de todo o movimento que
constrói a habitação da sua própria casa. Casar com a sua casa é algo sempre disponível
ao ser do homem. O homem que, no entanto, nela mais sabe saborear os seus aposentos
é o que canta com divina melodia o seu canto. A ele, foi dado o nome de aedo; hoje,
poeta. No entanto, em muito se distingue a figura do poeta moderno e a do aedo. Os
críticos desatentos de hoje, em geral, vivem tal distinção sob a contingência da idéia de
gênero.
Contudo, há de se observar que hoje, quem mais se coloca no papel dos aedos de
outrora é aquele que põe, no seu dizer, a disposição da confidência que vive à margem
de uma profecia. O aedo, o poeta-cantor, apresentava no seu dizer uma dimensão do
lógos que vinha trazer, pelo canto divino das musas, as próprias musas como as
cantantes do que pertencia à morada do homem, num confidenciar tal que a fidenciação
34
era fiduciária de todo o percurso do mito na face da terra, casa do homem. O cantar que
as musas cantavam-dançavam traziam pelo aedo a mostragem de todos os lugares e
tempos pertencentes ao homem. O canto do aedo era um dar às musas o canto, num dar
que se conformava como a entrega completa para que o canto fosse completo, para que
a divindade se fizesse repleta e para que o homem se fizesse pleno diante do canto que
vinha junto e direto dos deuses para a interseção e a compreensão com o mundo dos
homens, a saber: a sua própria casa, a sua própria linguagem.
Nesse dizer-música, o homem antigo sabia que, tanto quanto divino, era também
o humano, porque era sempre a forma que o homem tinha e tem de entrar em
comunhão, não com o mero mundo dos deuses, mas com o seu próprio mundo. O
mundo dos deuses era também o mundo das divindades de todas as naturezas, e a
primeira delas era a de se mostrar divino para os homens. Os homens sabiam que a
divindade dos deuses era divina na intersecção que todo o lógos, na dimensão da phýsis,
carreou para o próprio homem, no sentido de que era este quem deveria, pelo canto das
musas, e nessa terra morando e habitando, fazer o encontro do mundo com o próprio
homem. O encontro do homem com o mundo só se dá quando o homem constrói o
mundo como e a partir da linguagem. E, originariamente, construir é já um saber da
necessidade do morar habitando a casa do ser, a linguagem.
Mas em “A linguagem é a casa do ser”, não há como perguntar onde a
linguagem habita, nem onde o ser habita, pois um mora na proteção e na guarda do
outro. E, com relação ao homem, não há como responder. A resposta não vem, porque
o homem não vive na casa do ser, mas na do ente. O homem não se coloca à disposição
do ser. O homem, muito timidamente, consegue se disponibilizar para que o ser se
mostre como sendo, como ente. No advento da mostragem, o homem fica diante de uma
perplexidade que não o co-move. A falta de locomoção diante da manifestação do ser
35
tem sido modernamente a dificuldade de o homem entender-se com e na linguagem,
ainda que ela seja a sua morada. O homem mora sem saber onde dorme e onde acorda.
Os lapsos de vigília são dados amiúde. O fato de o homem ter a linguagem e ela ser sua
casa não tem sido suficiente para mostrar que ele sabe nela habitar. O homem não vive
pré-ocupado com sua proteção, tampouco vive na sua guarda. Como guardião, o homem
tem experimentado apenas as relações exteriores que a casa pode externar. O interior,
mormente é encarado como a mesma faceta do modo como encara o exterior. Mas o que
é viver na casa do ser na dimensão da linguagem, afinal, já que o homem tem se
mostrado inábil? Viver na casa do ser é “proteger e guardar a Verdade do Ser”, assim
foi dito. Proteger e guardar é viver no estabelecimento de compertinência e de convívio
com o que faz o homem se voltar para dentro de, velando de tal modo o que ali está que,
na proteção dada ao que dentro mora, permita toda e qualquer saída da linguagem em
direção às outras moradas onde residem todos os homens. A linguagem só se bem
guarda quando, no seu res-guardo, ela se ensina e se aprende a ser ouvida e ecoada pela
voz do mito na casa do ser – casa de todos os homens – o máximo possível e, enquanto
linguagem, pode-se fazer ecoante e mostrante. O morar é um guardar-protegendo, mas
que só guardado-protegido permite ser, junto e dentro, um morante-residente. “A
linguagem é a casa do ser”, porque é ela quem sabe ser sempre residente e conhece, pela
sua vigência, pelo seu vigor, o interior de todas as residências: o ser.
Quando um mito, por meio das musas, canta o seu canto, o homem se vê diante
de um guardar e de um proteger de todo inaugural. A linguagem casa do ser é a casa-
linguagem do mito. A linguagem é a voz do lógos vindo a confirmar sempre residência
onde já ele mora, o ser do homem. A fala do lógos no mito é sempre um canto que
encanta a casa do ser. O homem, à espreita e à margem de tal encantamento, sabe que,
com o mito, a linguagem fala uma fala não só encantadora como mera fantasia e
36
disponibilidade para uma dimensão fictícia em que ele não mais se reconhece como
homem, mas fala um encantar pela voz das musas e pela sua presença. As musas trazem
para o homem a linguagem como ponto de encontro em que se orienta conjuntamente a
casa dos homens diante da casa dos deuses a guiarem os homens para a sua morada.
1.4. Na casa do ser: a luz do divino
O encontro dos homens com os deuses é a fala de um lógos que orienta o
homem em direção divino. Só o divino ilumina e não escurece. Por isso, o lumificar da
fala das musas se faz de tal modo operante e fabuloso diante da fala do lógos do
homem. Pelos deuses e não-deuses, pelos mortais e não-mortais, a linguagem é luz na
casa do ser. Viver sob a iluminação dos deuses e não-deuses, face ao canto das musas na
realidade do mito, é estar também não como iluminado, mas como participante da
mesma luz, visto que, por uma concessão outorgada pelos deuses, essa iluminação se
coloca como a (con)vivência do e entre o homem e o divino.
A luz da linguagem dos deuses é luz que reúne, porque só no lógos tudo se
conjunta. A con-junção é a presentificação do destino do homem quando diante do mito.
O homem é um desconjuntado sempre à procura da con-junção. Por ser desconjuntado,
e mesmo assim sendo e se sabendo como tal, o homem sabe também que pela, na e com
a linguagem ele se dirige sempre para o viver em tal comunhão. A con-junção entre o
homem e sua casa, que é também a casa das musas no mito, é um pressentimento
constante na vida do homem. Esse pressentimento faz do homem um ser que, mesmo
orientado pela, na e com a linguagem ainda não achou a sua casa, porque não a entende
como tal. Existe aqui uma dis-junção que sempre advém ao seu destino, tornou-se rotina
e o seu próprio cotidiano. Diante desse dia a dia, o homem perambula pelos des-
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caminhos da linguagem querendo qualquer voz que o oriente. Ele vive como quem não
sabe se sai de casa, porque, por pouca freqüência, não distingue mais o que é viver
dentro. Essa é a sua dis-junção. Quem assim o orienta é a linguagem na dimensão da
escrita, a partir da metafísica, de um modo geral. Elas não se orientaram sozinhas; ele
optou por esses descaminhos. Tais descaminhos levaram o homem moderno para o
encontro com a escuridão da casa do ser. Essa escuridão, sendo um sempre, não
ilumina, porque não deixa o homem saber do interior de sua própria casa. O homem,
assim, sem o canto das musas, vive na escuridade do ser. Jaa Torrano refere-se a essa
escuridade, fazendo menção à Noite negra, a que as Musas se opõem. Ele diz:
A irrupção da voz, impondo-se à Noite negra, traz consigo os Deuses senhores da festa cósmica, a ordem cósmica que estes deuses determinam e em si mesmos são, e traz ainda consigo a própria noite circundante dentro de que as Musas surgem como belíssima voz e fazem surgir múltiplo o cosmo divino. Fecham este catálogo a Noite negra (expressão do Não-ser, filha de kháos, a noite circunstante e a solitária geradora de todas as forças que marcam pela privação e não-ser a vida do homem) e a referência à sagrada geração (= ser) dos outros imortais sempre vivos. Assim, enantiologicamente, as potências ontofânicas (Musas) situam-se no meio da potência do não-ser e da privação (Noite) e mais: trazem junto à sua plenitude configuradora da Ordem e da Vida esta Força originária da Negação.
A manifestação das Musas não é apenas um esplendor e diacosmese que se opõem ao reino das trevas e da carência, mas sobretudo tem no antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao esplender em seu fundamento, dá a este mesmo reino antinômico a sua fundamentação.18
Aqui, urge perguntar o que a Noite negra é na dimensão do mito e do homem?
Em tal condição, a Noite negra seria para o homem e para o mito a instância em que o
primeiro se coloca fora da casa do ser, fora da linguagem. Dentro da noite, o homem
não seria, mas espreitaria pela claridade o advento da vigência do ser. O lógos, em sua
vigência, está sempre à beira da manifestação de o ser se dar enquanto ente, sendo. A
claridade de todo homem é também a força de encontro da luz, dia e noite, que o lógos
18 TORRANO, Jaa (tradução). “Musas e Ser”. In: Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 23.
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reúne. Como força de reunião plena, sempre vigendo, o homem vive a rogar para que tal
clareira, que é também a força da Noite negra, o ilumine. Rogando, clamando pela força
de todas as divindades que as musas sempre trazem para o seu convívio, o homem, só
nesses momentos, pode se deparar com a fala de todos os mitos, porque em tal rogativa
o homem se encontra com o divino, que são todos os mortais e todos os imortais a
trazerem pela voz o destino sagrado do homem diante de suas clareiras.
A voz do mito, que o canto e a presença de todas as musas anuncia, traz sempre
para o homem a oportunidade de se encontrar em sua casa, pela força de vigência
reunidora do lógos. A fala do lógos, mais que reunir, convoca sempre o homem para o
diá-logo, o monó-logo, o soli-lóquio, o co-lóquio em que todas as vozes do canto se
encontram na escuridão da Noite negra. No entanto, a Noite negra, pelo canto das
musas, acende-se ao homem quando, a partir de então, ele se reconhece como o
participante desse mesmo lógos. Participar é estar dentro e no entorno do conjunto; é
viver a mesma vigência de todos os elementos reunidos e congregados em tal juntar; é
estar disposto a viver dentro das mesmas habilidades e organizações de tudo que, pela
junção de todos os particípios, tornou-se participante. Na participação, o homem é
aquele que não viveu na escuridão da noite negra. E assim, ele vive na clareira que fala
o lógos do mito.
Importa agora tratar da fala do lógos do mito, concebido como o mesmo que
viver na dimensão do fabular. A fala do lógos, do legein – disse Heidegger – está na
evocação de que lógos é:
de-por e pro-por, é puro dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se prostra. O Lógoj vige, pois, no e como o puro legen, o puro de-por e pro-por, que colhe, escolhe e recolhe no recolhimento de uma concentração. O Lógoj é, assim, o recolhimento originário de uma
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colheita original a partir de uma postura inaugural. O Lógoj é postura recolhedora e nada mais.19
Tal dizer aponta o lógos como um recolhimento. Tal colher e re-colher é a es-
colha que faz com que o mito um dia tenha falado com todo o seu vigor para o homem.
O vigor na sua es-colha permitiu ao homem conviver na dimensão do mito; vivência
que até hoje se dá, mas que tenderá a viver num disfarce projetado pelo modo moderno
de se colocar diante da realidade no entendimento do Ocidente. O re-colher refere-se
aqui a, diante do lógos, o homem, na dimensão e em conformidade com o mito, pro-
jetar uma disposição da es-colha que, no tempo da colheita, deixa e a-colhe o mundo
que frutificou e que frutificará sempre. Colher significa estar diante da possibilidade do
a-colhimento. No a-colher, o homem se depara com a realidade dentro de si. No interior
de sua humanidade, ele vive na base de todas as colheitas que o lógos, enquanto mito,
permite disponibilizar. O fruto que ele encontra nessa colheita é o ser se dando. Na
dádiva oferecida pelo ser, o homem se vê diante da dis-posição do lógos, na freqüência
do mito. Freqüentar-se no mito coloca-o na mesma compertinência na qual o mito se dá,
na qual o lógos tende e está a se oferecer. Tal oferta não é uma oferta da amostra,
visível, palpável e ponderável, medida por um avaliar moderno. Esse oferecimento
ocorre quando o lógos, como reunião de tudo o que é possível re-colher, a-colhe. O re-
colher também remete a um voltar a colher. O homem, na dimensão do lógos, vive na
busca da colheita, no empenho da colhedura, indo para junto e em direção à terra; terra
que vive à busca de seus frutos. Re-colher fala ainda de um movimento de re-tração. A
retração, conquanto modernamente indique um fechamento, não se distancia do
entendimento de que, no colher, no a-colher e no re-colher, haja a reunião que é sempre
o movimento de tracionar para um dentro, a saber, para dentro do ser, na dimensão do
19 HEIDEGGER, Martin. “Lógos (Heráclito, fragmento 50)”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 190.
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lógos, que é o momento em que o mito se coloca dis-traído. A dis-tração do lógos é a
oportunidade de não re-colhimento do mito enquanto tal. Dis-trair é um per-passar pela
vigência do tracionar, con-centrar-se no seu cerne. Distrair nada tem a ver com o fato do
mito acontecer de súbito, repentinamente, sem nenhum planejamento, ou aviso prévio.
Somente porque se coloca como elemento de extremo tracionar, visto que na e pela dis-
tração se aponta para estar no cerne de toda e qualquer possibilidade de centro, e aí é
que o mito se dá na dimensão do humano, enquanto sendo, o “dis” remete a um
“através de”, indo “em direção a”20·; estando na direção, o meio no meio se coloca;
estar no meio é estar na ocupação do todo, por todo o seu alongar-se. Alongar-se é estar
indo na direção em que a tração se demora. Dis-trair é estar no meio, no centrar e no
concentrar, de toda tração. Estar na tração é estar ocupado pelo vigor de todo tracionar.
Concentrar-se no seu cerne diz de uma disposição do mito enquanto fala, mas
apenas na força de reunião que só o lógos evoca. Concentrar-se é ainda, nesse sentido,
estar no e com o centro de uma mesma tração; é estar no meio de um tracionar que, na
colheita, es-colhe o que, como centro, merece e permanece como o fulcro de toda a
questão que o mito colhe para o ser do homem na dimensão do lógos. A reunião que o
lógos reúne dá e sempre deu ao mito a sua dimensão primeira: recolher e en-contrar-se.
En-contrar-se diz que o homem vive em con-tração. Mas o que é essa con-tração do en-
contro? O en-contro é sempre a experiência do dis-trair-se do mito. O “en” fala de um
“dentro”, de um “aí” e um “ali”, fala também de uma “permanência no lugar indicado
por e0n”21. Assim, a con-tração do encontro é o lógos como mito na dinâmica da phýsis.
Todos percebem o movimento de tal con-tração. Volta e meia o homem se pega con-
traído. Na con-tração, o homem vive no en-contro de si mesmo. Isso normalmente se dá
20 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura Dicionário grego-português (DGP) - vol.1. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 212. 21 MALHADAS Daisi; CONSOLIN, Maria Celeste Dezotti e NEVES, Maria Helena de Moura Dicionário grego-português (DGP) - vol.2. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 62.
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quando uma questão fundamental a ele se lhe mostra. Toda mostragem, entretanto,
implica uma inquietação que, mesmo demonstrando uma agitação exterior do corpo
pelo comportamento, invoca uma con-centração do interior prestes a promover o en-
contro com o que inquieta o homem. Tal en-contro é a percepção de que o homem tende
ou tenderá a se encontrar com a questão do ser na dimensão do ente, mostrado para o
homem em sua própria história, sua humanidade. Diante do en-contro, o homem, se
com o lógos não fala, certamente dá acesso – porque vive sempre no en-torno – à
dimensão em que o lógos se coloca à espreita da dimensão da fala do mito. Foi dito que
com o lógos o homem não fala. De certo, isso ocorre. O lógos se manifesta, se mostra,
se diz por meio e a partir do homem. Ele sempre se coloca antes do homem se dizer
enquanto linguagem que se executa a partir da dinâmica desse mesmo lógos. O diá-logo
então existente é sempre uma disposição da dinâmica do lógos no ser do homem
enquanto ente. Mas o que fala a fala do lógos? A fala do lógos se dá na in-venção. E
aqui é preciso tentar chegar nas proximidades do sentido de inventar. In-venção: ver
dentro, no e pelo meio desse dentro; é ver o esse (o ser). Mas o que é ver dentro, no e
pelo meio desse dentro? Ver dentro é estar na dimensão daquilo que pela reunião de
uma totalidade se mostra. E o que se mostra sempre: a saga do dizer. A fala do lógos do
mito executa sempre diante dos olhos a saga do dizer: o mostrar.
O mito, quando se fala, (se) mostra como rito. Mas qual rito se mostra sempre?
O homem a cada consagração do dizer. Cada consagração do dizer é o rito de todo mito
que como e por meio do homem se põe a mostrar. O mito, como phýsis em rito, é
sempre mostrador. No entanto, o mostrar do rito de cada mito sempre se dá como algo
revelador. Ser re-velador é colocar-se na dimensão da verdade, como alétheia. Como
verdade, o mito fala o lógos que são os deuses e todos os mortais. O mito reúne pela
força do lógos o mortal e o imortal, condições que são sempre formas de apresentação
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do divino. O que é re-velador no lógos do mito é o tornar toda a ordem do mundo como
presença. O homem re-velado vive na instância do se mostrar como presença. Presente,
ele se reconhece e volta pela força do lógos do mito a ouvir o dizer do que é dito, pela
força de presença e de canto das musas. Estar presente é estar no lugar em que o sendo
do ser mais se mostra. Mostrar é sempre o lugar da presença e a saga de todo o dizer.
Estar na presença é estar no desempenho do vigor da linguagem. Quando a linguagem
se coloca como a saga do dizer, ela se põe no e como o destino do homem. O homem
não fala a saga do dizer. Por meio do homem, a linguagem, no cumprimento de seu
destino, cruza a sorte de todos os homens. A sorte de todos os homens é estar no
percurso da linguagem, caminhando pelo lógos no seu conjunto, no seu reunir.
Heidegger já pensou a saga do dizer por outros caminhos:
A saga do dizer é mostrar. Em tudo que nos fala alguma coisa, em tudo que nos aclama, conclama, reclama, em tudo que nos aguarda como o que não foi falado e também na fala que nós cumprimos, em tudo isso vigora o mostrar, que deixa aparecer toda vigência e que tira do brilho toda ausência.22
É nesse sentido que se pode também entender que, a partir do mostrar, saga de
todo o dizer, a fala do lógos se apresenta. O mito não é um mero falante. O mito no rito
é, sobretudo, mostrante. Mostrante é a caracterização de tudo o que consegue – porque
só a ele pertence tal poder – ser mostrador. Mostrar quer dizer, dentre outras coisas, que
o que mostra se coloca às vistas, sempre num adiante da possibilidade de todo olhar e de
todo ver, mas não de um ver qualquer. O ver que está em jogo é o que vive a
experiência dos olhos, sabendo de sua contingência e exercício ainda que diante de
qualquer cegueira fisiológica. A visão do homem está sempre disposta frente à
possibilidade de o dizer se mostrar. O lógos se sobrepõe, interpõe e antepõe diante de
22 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 206.
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qualquer olhar. A voz do lógos do mito é, assim, algo sempre visível. O mito sempre
está às claras. Estar na clareira é o como a linguagem se dá como saga, como dizer para
o homem na dimensão de todo e qualquer dito, que é também o do mito. O que a
linguagem faz é sempre, enquanto mostrante, colocar-se como o que, por meio do
homem, como clareira, o ilumina. O lumificar do lógos do mito é um dar na dimensão
da luz, enquanto luz. Mas o que dá a luz não é a luminosidade. E estar luminoso é o
resultado do que sofreu a ação de encher-se, banhar-se e fazer-se da, na e com a luz.
Isso pressupõe a presença da noite negra, da escuridão do homem, mas ela é a
possibilidade da luz lumificar não o escuro, mas aquilo que, como passível de se
iluminar, far-se-á luz e claridade iluminante. O fabuloso do mito é que ele se ilumina e
se dá como luz do mundo.
Desse modo, o in-ventar de uma con-fabulação só se dá como fábula, criada-
criadora, e encontra o espelho do claro e do escuro na fala do mundo, porque confere
afeto aos sentidos a serem resguardados pelos entes de algum modo, em algum tempo,
na dimensão do seu sentir, isto é, na dimensão do ser. A clareza e a escuridão do homem
são, de há muito, o seu feito fabuloso na internação e estadia nessa terra, constituindo o
mundo de seu mundo. Heidegger, pensando o mito e as deidades gregas, trata da
questão da claridade e da escuridão dizendo o seguinte:
O mutoj é a saga, palavra tomada literalmente no sentido da fala essencialmente primordial. “Noite” e “luz” e “terra” são um mutoj, não “imagens” de encobrimento e de desvelamento, “imagens” que um pensar pré-filosófico não transcende. Em vez disso, encobrimento e desencobrimento são previamente experimentados de tal maneira essencial que apenas a simples mudança de noite e dia é suficiente para destacar a emergência de todo essencial contido na palavra mutoj. A simples diferença entre claridade e escuridão, que usualmente ligamos ao dia e à noite, não diz, em si mesma, nada. Já que a diferença assim compreendida “não diz nada” a respeito da essência do encobrimento e do desencobrimento, não tem, também, nenhum caráter de mutoj. A diferença entre claridade e escuridão permanece “não-mítica”, se, previamente e antes de tudo, iluminação e ocultamento não aparecem como essência da luz e da escuridão e,
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junto com eles, o que vem à luz e recua para a escuridão aparece de tal maneira que, precisamente, este vir à luz e o retroceder para a escuridão perfazem a essência, em que toda presença e toda a ausência moram. Somente se estivermos atentos a isso, temos uma medida para compreender que o pensador primordial pensa o próprio ser baseado no desencobrimento e encobrimento.23
Heidegger aponta a luz e a escuridão como também local de morada do homem
diante de um essencializar a própria condição de o ser se dar. Ora, nesse caminho, o
morar do homem é sempre o sempre se colocar como o i-luminado, porquanto a
escuridão também o é. O homem e a escuridão são i-luminantes porque não são capazes
de, por si só, luminarem-se, de se fazerem se dando como luz. Na verdade, há de se
dizer mesmo que o homem e a escuridão que o acompanha são na mesma dimensão i-
luminantes e a-lucinados. Não são por si lúcidos. A lucidez só quem dá é a luz, a
mesma de Lúcifer. O homem, no vigor do mito que o lógos dá o tempo todo, vive sob a
égide de todo o projeto de advento de manifestação reflexa da luz. O mito, nesse
sentido, é o que dá a luz ao i-luminado, ao que é a-lucinado. Ambos vivem na escuridão
dos tempos. A cada clareira do lógos do mito, o homem se torna parte do que
compreende ao que hoje chamamos de luz, que no vigor do luminar faz com que toda a
humanidade se dê no e para o homem em sua morada nesta terra. A morada de todo
homem é sempre i-luminada pelo lógos do mito. O homem antigo nunca se permitia
viver fora da proteção luminante do mito porque sempre foi confidente dele (pois que
vivia em sua fidelidade) e, assim, sempre quis fazer parte do luminoso, isto é, do divino
na dimensão presente de toda a realidade que se in-corporava a ele. Ou seja: por dentro
do corpo, a luz do lógos pela voz do mito se construía e o matinha sempre junto a sua
morada, a linguagem. Estar i-luminado e a-lucinado é o modo de ser do homem. A-
lucinado, sem luz, o homem se i-lumina. I-luminado, o homem vive não só à busca da
23 HEIDEGGER, Martin. “A conexão entre mutoj e as deidades gregas”. In: Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, pp. 93-94.
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luz, mas sempre se colocando como disponível para ela. Isso ocorre numa disposição tal
que sempre para ela vive numa distância que é sempre a da proximidade. Viver o tempo
todo na casa da linguagem é estar in-serido na dinâmica do mito, enquanto este é
sempre o diá-logo que se coloca como fala na vida do homem. O homem, nesse sentido,
é o diálogo da luz com a escuridão. Nunca se colocando fora desse caminho. Na
dinâmica dos eventos que o humanizam, o homem é a conversa e o lugar em que dia e
noite se encontram para fazer nascer em todos os dias seguintes a voz do mito no ser de
todo homem. Dia e noite são a voz dialógica do lógos diante de sua história. A história
acontece no homem como presente e na presença da luz do dia com a escuridão da
noite. Neles, dia e noite, o homem se dá para toda a clareira advinda da luz de todos os
lógos. Quando, por essa conversa, o ente se dá a ouvir pela voz de todos os tempos, o
ser se presentifica como, para e na história do mundo. E o homem grego antigo sabia
que o vilarejo e a sua comunidade vivente, bem como a casa do ser e suas múltiplas
entidades, eram a voz da história se mostrando na verdade do mundo. Isso era o modo
de viver e dia-logar como o mito. O mito, quando fabula o homem, assegura a
compertinência de mostrar a luz da noite e a escuridão do dia como sua essência. Hoje,
o dia mata a noite que assim mata o dia. E o diálogo acontece, inclusive, na dimensão
das trevas. Na morte da luz e da escuridão, a con-versa não se dá. E as vozes não-
ouvidas são o emudecimento do mundo. Por isso, o mito não mais foi visto como
outrora. Perdeu importância tal dialogia. Con-versar, no entanto, com o dia e com a
noite, juntos numa mesma luz e sombra, é sempre se manter no mesmo verso. Versar é
estar no mesmo caminho, pois se destina para a mesma casa, a da linguagem. Versar,
dessa forma, é pôr-se no caminho que anda sempre dentro da casa do ser na qual o lógos
vive como um fogo a clarear. O mito, então, pela luz e pela noite, está sempre se
colocando como verso e re-verso. Como verso está sempre a cantar o canto das musas
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como lógos e mostra sempre o dentro onde mora; como re-verso está como re-torno
para o advento da luz que tende a luminar sua casa. É bom dizer a essa altura que luz
não i-lumina. Luz i-luminando está sempre na ausência de um vigor que é impossível de
se conformar como tal. Luz só consegue luminar. Por isso, o mito, a voz das musas que
são deusas dos cantos e dos diálógos dos dias e das noites do sendo do homem, é a
presença do divino, de toda a luz trazida aos olhos como vidência, previdência e
providência para os humanos na história que se dá como mundo. Como vidência, o mito
mostra o que é visto; como pré-vidência, o mito vê, anunciando num antes, o dia e a
noite; como pro-vidência, o mito ajuda o homem a ver o dia e a noite na casa do ser. E
ajuda, porque a luz, quando muita, cega.
Muita luz acontece quando há a presença de muitos i-luminados. A vigência de
luz se dá na necessidade de um luminar freqüente que encontra no lógos uma de suas
entificações como força de reunião. Diante do i-luminado, faz-se necessária a luz.
Diante da luz, coloca-se o i-luminado, porquanto a-lucinado. Estar a-lucinado é
condição de todo homem na vigência do Ser enquanto ente, enquanto sendo. O homem
enquanto ente é um a-lucinado. A-lucinado significa: viver na tormenta busca da luz, da
lumificação. A tormenta do ente entra em calmaria quando o lógos, no seu re-
colhimento, se faz como possibilidade de clareira do ser. Diante dela, aquieta-se; o ente
vive nas suas cercanias. Na tentativa de cercar a clareira, vive à margem da luz. Viver à
margem é estar ainda fora da luz, mas sempre na espera da oportunidade de viver
dentro. Estando dentro, o homem se entende como aquele que tem na linguagem a sua
própria casa. Essa mesma casa, a da linguagem, que é a do ser, o cerca e o faz nela
morar. A questão que se coloca para o ente é que ele nem sempre se reconhece junto à
luz, à clareira, à linguagem, à sua casa, ao mito. E, para o ente, nessa ignorância, ele não
sabe se ficou de fora e, portanto, se pode ou se consegue retornar ao vigor do lógos.
47
Mas essa dúvida é uma herança dos tempos que o homem antigo, e, assim, o moderno,
mantém dentro de sua casa, sustentando a surdez diante da voz que fala o dizer do lógos
pelo mito. Heráclito, fragmento 34, disse o seguinte, a respeito da negação da escuta:
“Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta: presentes estão
ausentes”24 . Tal falta de compreensão mostra que, mesmo diante de qualquer fala, não
se tem a escuta que faria com que o homem sempre se apresentasse como presença
diante da fala do lógos, que fala na fala do mito. O mito é, para o homem, a vigência de
um lógos sempre a requisitar uma escuta tanto da fala dos deuses pela fala-canto-
rítmico-melódica das musas, como da fala do encanto do lógos, como linguagem,
reconfigurando o homem diante do ser. Por isso, o mito se coloca para o homem, por
tanto con-fabular, como a vigência do fabuloso.
Até agora o que se conseguiu, então, foi entender que o homem vive na fábula e,
con-fabulando, coloca-se no meio, dentro e entre. Isso ocorre porque con-fabular é criar
na fala o com; ele é o próprio falar. E, quando fala, o homem mitifica. Não está sendo
dito que toda fala é mito. Mas nela reside a possibilidade do mitificar. O homem é assim
mito do e no próprio homem. Sendo mito, não se quer dizer nem pensar que o homem é
ficção ou produto de um aparato ficcional, no sentido de sua não produção no real. O
que se afirma com tal sentença é que o homem, o único capaz de mitificar e de tornar
algo digno de permanecer na história do mundo como mito, é a via para o ser de todos
os mitos, haja vista o fato de todas as narrativas míticas, assim entendidas até hoje,
apontarem para algo próprio da dimensão do humano. Só no e para o homem, o mito é
mito, porque só o que pertence ao humano é mitificável e mitificante.
Não existe uma narrativa mítica sequer, clássica ou moderna, que não traga à
tona a dimensão do ser diante da apresentação dos entes que nelas vivem. Mas por que
24 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 67.
48
acontece tal trazer? A resposta: o homem não consegue ser senão na dimensão do mito.
A dimensão do mito, no entanto, é a do fabular. O homem está na dimensão do mito
pelo e no con-fabular. Fabulando com, falando com, o homem faz de si o advento
iminente do mito. O primeiro ser, a saber, com quem o homem con-fabula é ele mesmo,
o mesmo.
O homem se mitifica num contínuo temporal que só para o homem converge.
Aqui se observa outro fato: o mito é de um tempo-todo-homem. O tempo do homem é o
do mito. A homidade do con-fabular mítico só se projeta como fábula quando
direcionado no encontro que visa o homem na vigência de um mýthos-lógos dado entre
a phýsis e o lógos.
Mas o que significa dizer que o tempo do homem é o tempo do mito? Aqui, urge
uma necessidade: a de entender tempo. Tempo é também cronos. Mas não só isso.
Tempo é, sobretudo, o lugar do encontro. E encontrar quer dizer que o momento está
guardado diante de e localizado todo para o homem no seu retorno. O contorno que
envolve o homem é, nesse sentido, o de volver-se para e com o seu tempo, não o tempo
demarcado pelos limites exteriores impostos pela cronologia, mas por uma história-
tempo-plenitude, a que o grego antigo chamou de kairós. Independente do que motiva
como força originária o sentido do kairós, importa aqui pensar, como desdobramento, a
dobra em que o homem se encontra. A questão do encontro acontece sempre e somente
para o homem. O homem é, antes, o que vive em desencontro. Por viver não se
encontrando, existe uma procura constante pelo encontrar-se. Um dos encontros do
homem consigo, mesmo na dinâmica da história, foi chamado de mito. O mito é o local
do encontro, porque reside como apelo de vida no tempo do homem. O tempo que vive
em apelo para o homem é o do momento que a qualquer instante a vida permite
desencadear. O homem diante e dentro do seu tempo está diante da posse de sua casa.
49
Possuindo a casa, encontra-se no seu próprio tempo, que é o do mito. Seguindo esse
caminho, o contratempo é a instância em que o mito, diante do cotidiano ordinário,
distanciado do rito, mostra que o homem vive em desencontro. O mito, o tempo e o
homem pertencem a uma mesma dinâmica de tal modo imbricada, que um não se
realiza sem o outro. Todo mito é a presença sagrada do rito no corpo do homem. É
apresentar ao homem o encontro e o retorno à sua casa; a saber, seu próprio corpo, a
linguagem. O corpo que encontra o homem é o tempo como mito. O mito só se realiza e
se realizou na Antigüidade do homem porque foi para ser o encontro do homem.
No transcurso historiográfico moderno, no entanto, as sociedades letradas
providenciaram outras formas de simulação de encontros e, por isso, afastaram-se da
dimensão pregressa do mito, acreditando que os encontros se dão de muitas maneiras.
De fato, as maneiras são muitas e de ordens variadas. Entretanto, caberia considerar se
todo e qualquer artifício criado no transcorrer da história é o que comporta ao homem a
possibilidade do encontro. Por essa ocasião, vale lembrar que, ainda do mundo grego e
de outras sociedades, não só da Antigüidade remota, o homem viveu numa relação de
encontro do mito no corpo do tempo. Isso se dava porque a conformidade do mito,
porquanto advinda e ordenada pelo comportamento dos deuses em suas vivências
olímpicas e extra-olímpicas, era sempre a de atingir e a de dizer algo que, para o próprio
homem, fazia-se na e para a dimensão do humano. Tal experiência era o dar-se da vida
entre os mortais.
A fábula-mítica é discurso, fala. O homem, enquanto possibilidade de
manifestação das entidades do ser, coloca-se como aquele que, na con-fabulação, na
fabulação dos deuses, diz-se. Se fabular permite, pela fabulação, projetar o homem
também na dimensão do mito, o con-fabular é um discurso que, falando com, diz da
natureza do homem. O mitificar é a própria linguagem, pois mito é lógos. O rito-mito se
50
faz constantemente na instância de possibilidades em que o ser se dá. Assim é que os
mythologoi, os contadores de mito, os mito-cantantes, os aedos, são a expressão que
mais representa o próprio condicionamento originário do lógos na dimensão do ser. O
homem, na vigência do lógos, é o rito-mito do ser na dimensão do ente, de um sendo e
num projeto que corre a despeito das forças de seu destino no seio da terra, pois o ser,
na dimensão do mito, sempre se diz num desvelar auto-velante. A propósito, sobre o
dizer e a fala, Heidegger pondera que:
Enquanto dizer, a fala pertence à rasgadura do vigor da linguagem, rasgadura perpasssada pelos modos de dizer e do dito, onde vigência e ausência se assentem, se consentem e dissentem, mostram-se ou se retraem. O dizer de múltiplas configurações e diferentes proveniências é o corrente na rasgadura do vigor da linguagem.25
Mas o que o pensamento de Heidegger sinaliza quando diz que a “fala pertence à
rasgadura do vigor da linguagem”? No caso do projeto do ser, enquanto inerente à
instância do mito, poder-se-ia considerar a fala do con-fabular também como o local
onde o homem se faz proprietário, numa reunião de identidade de todas as diferenças. A
linguagem detém como pertencimento a fala e todo e qualquer fabular, apontando
mesmo para o fabular que coloca o mito na condição de invenção, como poiéw.
O que se inventa é o que se dá a partir da linguagem. Só a linguagem é a
condição de pertencimento do dizer. Todo dizer pertence à linguagem, ao lógos,
enquanto manifestação da phýsis. O sentido que o dizer-mito con-fabula é talvez uma
das dimensões em que o ente ainda não tenha se dado conta com propriedade. Todo
dizer e fala do ser se mitifica com o e pelo rito-mito. As rotinas criadas na dimensão do
humano se dão na dimensão em que a crença em tais rotinas e a sustentação de todas
elas, enquanto se suportam como assentes, são rotinas na dimensão do mito.
25 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 202.
51
Ainda que não se considere mais que os pensamentos e as articulações do
cotidiano estejam desvinculados pela dimensão temporal e cultural do sentido originário
das narrativas míticas, o homem, na fomentação discursiva de sustentação de suas
crenças, vive a realidade numa esfera que não é diferente da esfera mítica. E por que de
tal esfera não consegue se desvincular? A resposta decorre do fato de que o ser do ente é
o mesmo, porque o projeto de operacionalização na dimensão do mundo ainda é e será o
de estar inserido e vivente no âmbito da linguagem; e, sendo o ente, está na dinâmica
constante do lógos sempre vigente.
O mundo do ser é, desse modo, o lógos; e este é estar à disposição de todo
mitificar possível. A propósito, o homem não vive na dimensão do impossível enquanto
vive no desempenho de um lógos. O que o homem não diz é sempre uma possibilidade
e não uma impossibilidade da linguagem. O lógos, como vigor, é sempre o que permite
o dizer na linguagem do ser. Mas a permissão é sempre subserviente à disposição do
homem diante do real e suas realidades. Por isso, não se diz o que se quer. O querer
existente em todos os modos de dizer o dito depende sempre do que o ser consegue
dizer. A relação entre o que se quer dizer e o que se consegue é ainda subalterna ao
lógos diante das possibilidades de manifestação do ser enquanto ente. As entidades que
categorizam o homem no modo de ser ocidental geram inúmeras dificuldades nesse
sentido. Mas é também no e pelo sentido que a phýsis pressente e se ressente da força
do lógos como vigor da linguagem. É nesse ponto que Heidegger também coloca a
questão da “rasgadura do vigor da linguagem”. Conceituou-se o mundo ocidental. A
conceituação, entretanto, esmorece tal vigor. Nesse instante, a “rasgadura” se mostra
não como algo determinável, mas como aquilo que se coloca como a força de onde o
lógos se ressente.
52
A pergunta agora poderia ser a seguinte: onde o lógos tem ressentimentos?
Como pode ele ressentir-se? Ressentir-se aponta para dois caminhos: um é o de se
retrair; o outro, decorrente desse, é o de se sentir dentro de si mesmo. O re-trair-se é um
viver em tração constante voltado para si mesmo, no mesmo; e é também viver na
tentativa de vasculhar os sentidos e caminhos velados da e na linguagem de toda e
qualquer fabulação dos mythologoi, dos mito-cantadores, dos aedos. O aedo é, assim, o
que sente e se re-sente, pois que o lógos assim se orienta na dimensão do ser, na
disposição dos entes, enquanto sendo. Por isso, não houve até então momento em que o
ser não existisse e se orientasse fora dessa tensão do sentir e do re-sentir. Sentir, no
entanto, diz: aquilo que faz e dá sentido; o que dá e serve sentido e vive disposto à
percepção de uma orientação; o que orienta é o que pertence a e dá oriente. O re-sentir
é, a princípio, e nesse sentido, o que vive do se re-orientar, na busca constante de uma
re-orientação. O que se mostra agora é que o ser, na dimensão da re-orientação, já
possui um modo de se conduzir, mas vive à disposição de modos outros que podem, se
puderem, dar outra con-dução. A con-duta, na dimensão do ser, sob essa perspectiva, é
o que coloca o lógos diante do homem. Estar na con-dução é estar orientado para, com e
na trilha do duto, na companhia do caminho, no caminho que é o do fabular: na reunião
do lógos, num sempre a dois.
O que se pode considerar agora é qual a importância da con-duta na construção
do mito? A possível resposta é: todo mythós-lógos é a mostragem de uma con-dução.
Não de uma condução qualquer, tampouco de uma mostragem aleatória. Mostra-se o
que de mais oportuno e condizente à manifestação de um ser-aí se pode deixar mostrar,
em função do modo como diz o que deve e pode ser dito. O dizer especial do mito não
faz a mesma in-vocação da linguagem ordinária, cotidiana. A sua especialidade consiste
em dizer para o homem algo que é de seu interesse.
53
Certamente, dependendo do prisma moderno sob o qual seja encarada a
linguagem, ela se mostra, como sempre, sendo oportuna para o homem pelo fato de que
a ela é dado articular a engrenagem da vida cotidiana. Ela faz a roda da vida ordinária
girar em torno do eixo das ações imediatas, pragmáticas do dia a dia. Assim, ela atende
a uma determinada especialidade, cada qual a seu turno e modos de proceder. Mas essa
é uma configuração não pertencente à ordem originária da linguagem.
Nessa ordinária modernidade, as linguagens se articulam para obedecer e
desobedecer a ordens das mais variadas contingências, e são todas passíveis de uma
mensurabilidade e uma efemeridade constantes, próprias da emergência que cada
situação indica. Diante de tal postura moderna, como se poderia olhar para a linguagem
na condição do dizer dito por mýthos-lógos? Quando é que o homem articularia, então,
tal dizer? Diante do modo de ser ocidental moderno, a linguagem coloca o homem
diante do ordinário e produz um lógos que não vige na “rasgadura do vigor da
linguagem”. Há momentos, no entanto, dos mais estranhos, nos quais o homem se
espanta com o próprio dizer. Na sentença “Não é para se falar e agir dormindo”26·,
Heráclito aponta, a priori, para um inofensivo cotidiano e dos mais freqüentes.
Entretanto, se se perguntar o que está por trás de uma afirmativa de tal natureza, há de
se parar e de se adentrar pelos caminhos que ela conduz.
A fala na qual o ente se mostra como entidade e pela qual caminha expõe, dentre
outras leituras, que o homem costuma, em muitas ocasiões, falar e agir durante o sono.
Mas que fala e que sono são esses de que fala Heráclito? Se, por um lado, poder-se-ia
cogitar o fato de ocorrerem atividades humanas no estágio de latência do corpo, por
outro, ela faz pensar que o comportamento do homem costuma ser o de executar sua
existência como que em estado de dormência. Dormente, o homem vive na ausência do
26 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 79.
54
ser, como que distante da vigência do lógos. O dormir de Heráclito aponta para muitos
caminhos, certamente. A dormência de tal dormir não é oposta ao fato de o homem se
falar e se agir dormindo, mas é a postura com que o homem moderno mais se orienta
diante da linguagem. Isso talvez traga alguma coisa acerca de como o homem até hoje
se mostra: ele se fala e se age dormindo. Mas o que é o falar-dormindo? O que é o agir-
dormindo? Heráclito não diz. Tentar responder a essas perguntas é tarefa que pode
servir de aventura.
Falar e agir não são atividades incompatíveis. Todo o agir, como poiéw, é o
dizer. Todo dizer, como poiéw, é agir. Não existe no homem a possibilidade de um se
dar sem a realização do outro. Ambos são intimamente ligados, visto que articulam o
mesmo, a saber: o mythos-lógos, o canto cantante no gesto memorável e divino dos
aedos. Quando o homem se encontra no mythos-lógos, agir e falar-dizendo se reúnem
no mesmo, como manifestação do ser, na dinâmica dos entes, enquanto sendo. Porém,
enquanto ser, apenas ficam, para o mundo moderno, as entidades com as quais o homem
se depara e as quais consegue entificar, em uma sina que persiste em acontecer diante de
seu próprio con-fabular.
Falou-se, até aqui, do agir e do falar, mas e o dormir? Quando, todavia, o
homem dorme? Ele dorme a todo instante, haja vista que, por muitas ocasiões, ele
mesmo permanece na dis-tração. Existe um tracionar, um vigor, típico da linguagem.
Heidegger a chamou de “rasgadura do vigor da linguagem”. Heráclito, de vigília. Só na
vigília da linguagem, do lógos como manifestação do ser, é que o homem se coloca
agindo e falando o dizer do lógos; só então ocorreu e ocorre na história do homem a
possibilidade vigente de ele mitologar. Aliás, o homem sempre esteve e está na
dimensão do mito. Estando ou não em vigília, o mito se manifesta e se dá de muitas
formas, ainda que a modernidade viva na recusa da idéia de que o homem de hoje
55
acredita em mitologias. De certo, a natureza narrativa do mito não se mostra mais a
mesma, mas ainda se fundamenta no mesmo; ou seja, na linguagem.
Heidegger rememora esse mesmo quando, ao tratar do lógos, expõe:
Os gregos conheciam ainda uma outra [experiência] mais
antiga: a linguagem e a palavra como mu=qoj. Todavia, como mu=qoj, a palavra não tem força de recolhimento, para, por assim dizer, contrapor-se ao sendo e resistir-lhe; como mu=qoj, a palavra que vem sobre o homem, é aquilo em que se indicam e se interpretam dados e fatos de toda sua presença; não é a palavra em que o homem fala de si mesmo, mas a palavra que lhe anuncia o destino.
Como mu=qoj, a palavra dá a indicação e interpreta; como lógoj, a palavra intervém, esclarece a si mesma e ao homem. Lógoj, a linguagem, só se faz através e com a filosofia, isto é, no momento em que, ligado e pendente do sendo, o homem se levanta contra o sendo como tal, e de si o interpela, a saber, sobre o que ele, sendo, é. Entretanto, o lógoj originário da filosofia fica sempre ligado e articulado com o mu=qoj; a separação de ambos só se dá e se cumpre na língua das ciências.27
O que importa do texto de Heidegger é a dimensão de encontro entre mito e
lógos. Heidegger também acena para o fato de que o mito não possui força de
recolhimento. Mas por que tal afirmativa e o que ela quer dizer a respeito do mito? O
mito não se mostra como recolhimento, porque a tarefa a que ele se pro-põe é a de
indicar e inter-pretar, disse ele. No entanto, também disse que o lógos originário é
sempre articulado com o mito. Afinal, o que isso implica? Isso gera o entendimento,
então, de que o lógos é ainda e sempre a articulação de todos os mitos. Os mithologoi
são, nesse sentido, aqueles que vivem a articulação vigente de todo lógos, de toda
linguagem, tida no fabular de todas as fábulas para que, do encontro con-vivente do
mito com o lógos, o homem se coloque como o e diante do fabuloso. Viver em tal
vigência é estar no vigor da rasgadura, é estar em vigília. Mas que vigília é essa que
estava desde antes na fala de Heráclito? Pode-se entender que é um estar acordado,
27 HEIDEGGER, Martin. "A linguagem como lógoj e como mu[qoj”. In: Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; a essência da verdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 128.
56
lúcido. A lucidez é estar diante e dentro da luz que a fala do mito clareia. O que ele
torna claro é uma das formas de, na dimensão de vigência dos entes, o homem acordar.
O acordar dos homens na disposição do ser é a possibilidade dos acordos da
fala-fabulante do mito. O acordar é estar desperto, é trazer para junto de si e, num estar
consigo, ser a lembrança da vivência na clareira do dia de todo o homem. Mas des-
pertar diz ainda de um chamar à espertidão, tornar e trazer à esperteza de toda
luminosidade da escuridão que a noite, sempre na hora oportuna, presta-se a dar pela
manhã, como aurora, a continuidade para que o turno da noite não se perca na e da
dimensão do dia do homem na vida do mundo. Assim, sempre que o homem desperta, o
que se abre é todo um lógos que confere as condições de acesso ao retorno da escuridão
do dia como noite e da noite como dia, trazendo à clareira da linguagem a forma como o
mito ainda se manifesta.
O mito se manifesta. O mito, o homem, a linguagem, o criar, tudo se manifesta
porque se dá. Toda essa disposição é algo que percorre as possibilidades de o mundo ser
mundo; e de o homem ex-sistir. O existir como se dá? Ex-sistir é estar disposto na
irrupção de possibilidade de o ser se dar.
1.5. O mito: o ex-sistir como sendo
O existir é o mundo do homem. O mundo do mito é o mundo sempre diante de
todo existir. Quando Hesíodo canta a sua Teogonia, ele não canta o canto do mundo dos
deuses. Mas o mundo do canto das musas canta, musicante, o mundo do homem gerido
e guiado pelos deuses. Assim, como Homero, que evoca tanto na Ilíada como nos Hinos
Homéricos a Hermes e a Afrodite28·, Hesíodo evoca as musas. Por que tal e-vocar? O
28 GRAMACHO, Jair. Hinos homéricos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 51 e 85.
57
que se e-voca? A voz que canta é a das musas. Mas as musas cantam para que, sob o
apelo de Mnemosyne, sua Mãe, seja preservada a memória dos deuses e não só para que
haja a mera representação modelar dos homens sobre a Terra, mas para que, na
vidência, como culto na escuridão do ser, preserve-se a vida dos deuses do céu e da terra
e, de tudo que há dentro e fora-circundante a ela, preserve-se no seu entorno. A vida do
mundo é a própria maneira com que os homens se põem e se mostram, diante do
mundo, dos deuses, dos semideuses e de outros homens, como viventes na sociedade
em que habitam.
O homem, grego ou não, diante do divino, é sempre um homem a considerar,
pelos seus modos, o destino de todo homem, quiçá de toda a humanidade. A grande
batalha que se traçou no começo dos tempos históricos do homem antigo não foi
exatamente uma empreitada diante apenas de riquezas que faziam parte de ser mundo
exterior, mundo concidadão. O que era para ser levado adiante e, por isso, preservado,
era o modo como as culturas originárias de outrora se com-portavam diante de seus
próprios mitos e ritos, porque, a propósito, estes ainda não foram discutidos como tal.
Somente a posteriori, sobretudo a partir dos letramentos, de toda uma intervenção da
tecnologia da escrita, as sociedades passaram a encarar tais narrativas como mitologias
e acervos literário-ficcionais.
O homem grego antigo foi a vigência do mito nas sociedades que se sustentavam
diretamente por poderes, bênçãos e maldições advindas dos deuses. Deuses esses, hoje,
divididos em pagãos e não-pagãos. O mundo grego antigo teve essa dinâmica na
Antigüidade pré-letrada. O comportamento que se assumiu depois do maquinário do
alfabeto é que caracterizou o pensamento do mundo diante da realidade do mito, como
não-verdade, como falsidade, tal qual se entende hoje.
58
No entanto, do comportamento moderno assumido, restará também uma
observação: o de que as realidades são vivenciadas a partir da instância sorrateira do
mito. O pensamento como mito vive na dimensão do fabuloso. É dessa fala que o
destino do homem não consegue escapar. Sempre e de maneira a sair de um rompante, o
fabuloso se mostra com ou sem rosto ao homem. Com rosto, o homem se dis-põe a dia-
logar; sem rosto, ele cai na perplexidade diante das peripécias da linguagem.
No malabarismo que a linguagem metafísica disponibiliza, o homem atual pensa
que não vai mais se deparar com a linguagem ainda se articulando na dimensão do mito.
Procedimento semelhante talvez tivesse sido o dos homens antigos que viviam na
dimensão mítica, por assim dizer. Mas não o foi de certo, haja vista eles nem sequer
entenderem a realidade como distinta da convivência com os deuses e com as deusas
que povoavam não só o mundo divino, como também o mundo humano. Vale dizer que
os deuses eram a realidade dos homens e também o seu contrário.
Na realidade do homem moderno, poder-se-ia indagar em que medida existe a
certeza de que suas disposições diante do real não apresentam um caráter de crença, que
poderia ser vindouramente encarada como mítica. Lida-se com a ciência atual como
quem rege o pensar moderno, mesmo sendo um artifício precário de estruturação do
mundo. Vale lembrar que quem mais se autoriza hoje a ser encarado como
mi(s)tificador é o estatuto científico, tido como a coisa/causa mais racional e objetiva do
mundo moderno, ainda que a cultura ocidental o tenha permitido. É claro que o método
científico não é constituído pelos mesmos motivos que montaram a pré-história do
letramento no ocidente. Os deuses eram a realidade do homem e não configuravam,
como num projeto de engenharia, o mundo divino sobre a terra. Articulavam realidade
no vigor de sua vigência, mas não maquinavam o modo como a crença nessa realidade
deveria se dar.
59
No entanto, sob outras conformidades, o texto, tido como científico e ainda
todos os demais discursos que pelo mesmo intuito se inter-assinalam, coloca-se como
uma forma de mi(s)tificação metafísica da realidade. Pode-se, nesse caso, alegar, a
pretexto de preservação da racionalidade e do estatuto de cientificidade, haver muitas
diferenças no modo como o velho e o novo mítico-pensamento se apresentam.
As diferenças são, no entanto, e sobretudo, demarcadas pelo objeto que as move:
a possibilidade de diálogo com o sagrado do divino. No homem moderno, reza-se a
ciência no domínio da metafísica. No homem grego antigo, rezava-se o cotidiano junto
ao convívio com os deuses. Por isso, o que ocorre, todavia, e se coloca, talvez,
disfarçadamente, é o fato de o diálogo, que agora é permitido, dar-se com os caminhos
dos métodos científicos. Talvez se tenham modernamente substituído os caminhos dos
deuses pelos caminhos dos métodos. De qualquer forma, o homem continua a caminhar,
mais por dentro do que por fora da metafísica. O que se poderia perguntar é: existe
maior ou menor racionalidade e convicções no pensamento que se conformou como
mítico, ficcional, fabulesco, fabuloso do que no pensamento que se conforma como não-
mítico, não-ficcional, anti-fabulesco, ou não-fabuloso? Certamente dirão: cada homem
há de acreditar no seu tempo. Por isso, no que se crê, cada um se mantém, cada um
permanece, na ignorância do vigor da origem.
Mas, mais do que acreditar no tempo, é acreditar na sua própria crença. Porém,
crer na sua crença deveria ser sempre saber entender que o homem não consegue viver e
respirar um fôlego sequer fora da dinâmica da sua própria fé; pois na, com a e dentro da
fé, todos os homens se acreditam, todos os homens acreditam que acreditam e, na
própria dinâmica de entendimento comum a todos que se colocam em comunidade,
fazem-se diante de si a própria noção de humanidade. Mas a noção atual de humanidade
não se con-forma a partir do próprio homem e, em geral, o homem moderno tem
60
formulado muito mal a sua própria fala, posto que não acredita desde há muito no poder
das palavras (o mesmo que o poder do mito). De modo que, não crer nas palavras é não
crer mais no próprio homem, e talvez não crer em si mesmo.
Arrisca-se a dizer que o homem é um des-crente perpétuo na modernidade. Mas
o que é estar na des-crença? É estar fora da dinâmica da crença. O raciocínio é
propositalmente tautológico, pode-se alegar. Mas essa tautologia diz que o homem saiu
de dentro da crença, porque não se coloca mais nela, porque não está mais na dimensão
da crença. E, se saiu, é porque, há muito e sempre, esteve sempre dentro. E hoje,
perdido, talvez, não saiba conviver (des)crendo efetivamente em algo. Com isso, há um
receio: o de ficar à disposição de qualquer artefato colocado na dimensão dos outrora
deuses; tenha, tal dimensão, o nome de ciência ou não, de objetividade ou não, de
metafísica ou não, de filosofia ou não, de fatos ou não, de real ou não.
O homem de há muito e sempre tem crido e não consegue ser sem crer. Aliás, o
homem também só fala, e fala que crê e que não crê, porque acredita no dizer que
através de si mesmo vem à tona e traz à baila o homem como música e memória de uma
instância que até então se nomeou crença. A voz que fala na fala do homem é a escuta
de uma voz que não mais tem sabido fazer o homem se apoiar ao longo dos séculos.
Mas existe uma procura sempre proveniente dessa mesma voz.
Há também quem acredite na fala do homem, hoje, como consolidada a partir de
outro parâmetro que não só o da crença e o da descrença: é o não-crente. Quase que
mortificando a história, pode-se aqui dizer que o homem ocidental fez o seguinte, como
escolha de percurso: na Antigüidade, o mito eram os deuses; na Idade Média, o mito era
o cristianismo em suas múltiplas conformidades; da Renascença até então, o mito é o
gênio científico.
61
Há sempre, nesse momento, quem queira refutar tal idéia, alegando ser tal
divisão um absurdo: ora por rebaixar os deuses à realidade de outras épocas sequer
comparáveis, pois sequer não-existidas; ora por condicionar tanto a religião quanto a
ciência às insanidades mítico-primitivas e involuídas da Antigüidade. Isso é um
descalabro. De fato, é. Considerar os três tempos como um só é realmente descabido e
mesmo fora de propósito. O descalabro, contudo, é não entender que, por trás dessas
três dinâmicas históricas, mostra-se, cada vez mais patente, o mesmo. O mesmo homem
diante de sempre uma mesma realidade. O tempo do homem continua sendo o mesmo
tempo, a sua história – que se faz um contínuo, mas não continuada; todavia, mesmo
diante dos revezes, o tempo do homem é o do mito.
62
2. A religião: o homem sem a memória do divino
O tempo do homem é o do mito, que é o tempo da phýsis. Essa sentença
demarca o modo como o homem antigo esteve sempre lidando com o religioso. Vale
notar que o assunto agora trazido não será apreciado tão somente pelo conceito
ortodoxo, vigente no mundo ocidental, acerca do que se entende por religião. O que se
quer é localizar o homem e sua relação com o divino, o sagrado e a religiosidade
existentes na dinâmica do humano, que é a do mito e a da linguagem.
Dizer que o tempo do homem é o tempo do mito não é proferir uma sentença
simbólica qualquer. A dinâmica do mito é a da religiosidade sempre presente na forma
como o homem grego antigo esteve lidando com o sagrado, pois o tempo do mito é o
momento em que se depara ao homem a construção do real diante da relação
experiencial com o sagrado.
O homem sempre acreditou no divino. Mesmo numa sociedade em que a cultura
ocidental institucionalizou a religião, há ainda resquícios de que o homem não consegue
se desgarrar, conquanto as instituições religiosas ocidentais criem o conflito para que
esse apartar se dê por completo. Muitos crentes atuais, judaico-cristãos, meio que num
conflito a se instaurar entre a vida tida como profana e a religiosa, deparam-se com a
vivência junto ao extraordinário, mesmo pelas chamadas crendices, assim denominadas
por terem menor valor de culto ou menor representatividade religiosa frente à
mentalidade ortodoxa ocidental.
Mas, independente disso, o que importa notar é o caráter da presença do sagrado
na ordem do mundo junto à realidade do homem. O homem é um ser iluminado, já se
disse isso aqui. Na antiguidade homérica e pré-homérica, o homem esteve, talvez com
uma freqüência maior, diante da experienciação com o sagrado. De acordo com Walter
63
Otto, há uma dificuldade atual em se entender tal realidade e disposição. Ele argumenta
dizendo o seguinte:
Só temos que esclarecer o que significam esse antropomorfismo
e seu triunfo sobre todas as outras formas. Ele não é propriamente uma novidade, pois sem dúvida era comum em priscas eras, junto com as representações teriomórficas; mas tornou-se, então, única e exclusiva. Com isso, a nova fé se destaca decididamente da antiga.
[...] A filosofia religiosa de nosso tempo prefere ignorar essa
concepção do divino. Sobre a influência de uma religião totalmente orientada para o transcendental, estriba-se no sentimento de aflição da alma e no exemplo de religiões orientais voltadas, acima de tudo, para o salvífico; por isso, só espera esclarecimentos válidos a respeito do que é sagrado de comoções de ânimo e de arroubos extáticos.29
O entendimento do mundo religioso moderno sente dificuldades para entender a
dinâmica da sua própria religiosidade. De tal modo isso ocorre, que ela se faz valer de
imagens simbólicas que as mais das vezes não conseguem sequer viver a experiência
com o próprio sagrado, fato totalmente contrário ao que se deu com o homem homérico
e, sobretudo, pré-homérico. Nesse momento da vida, o sagrado e o homem eram uma e
mesma coisa. Não havia uma distinção entre a vida religiosa e a vida “profana”, isto é, a
vida humana. A vida humana era a vida divina e a vida divina era a humana. O homem
e o divino viviam em contato contínuo sempre na dinâmica da experiência vivencial e
da construção das realidades do real. A vida do homem era rezada pelos deuses
porquanto, a cada ação humana, o homem estava sob a invocação do deus que iria
reger-lhe os passos, orientando-o para o fortúnio e o infortúnio das suas ações. Não
existia o sentido de que para algumas ações da vida cotidiana era necessária a invocação
do divino. Nas suas ações, o divino era freqüentemente invocado porque o homem sabia
do entrelaçamento de sua vida com o destino que a divindade deveria dar aos caminhos
do mundo. O curso do homem era rezar a reza dos deuses para que, numa aliança sem
29 OTTO, Walter Frederic. “IV. A essência dos deuses”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 149.
64
igual em sua história religiosa sobre a Terra, esse mesmo homem estivesse a crescer e a
se engrandecer sob a luz do divino e fizesse com que o divino se divinificasse ainda
mais na história dos tempos, que é a história originária do religioso.
A experiência com o divino é algo que desde muito tempo ocupou o
entendimento do homem nesse mundo. Acredita-se haver equívocos consideráveis até
agora. Criaram-se apartes entre o homem e o divino de tal modo que não se conseguiu
mais fazer com que ambos se reencontrassem e fizessem desse encontro a forma de
convivência que pudesse se mostrar não como a conveniente, mas como a que talvez
deveria ter se dado até os dias em que a humanidade, ocidental ou não, vive hoje.
O certo é que, mesmo com todos os desacertos com deus, o homem sempre
tende a considerá-lo como presente em muitas instâncias e circunstâncias de seu
cotidiano, seja por uma cultura religiosa judaico-cristã, muçulmana, budista, espírita,
umbandista, candomblecista etc. Há momentos em que o homem sempre se coloca a
espreitar a necessidade do divino. O problema nesse aspecto é que o homem passou a
lidar com o divino a partir de instâncias em que haja uma necessidade de proteção da
divindade da qual ele carece em alguns momentos de sua vida. A auto-suficiência no
homem não o coloca mais na dimensão legítima do divino. O homem atual o trata como
instrumento de serventia para que algumas realizações pessoais sejam efetivadas, ainda
que por apelo do miraculoso diante de dificuldades tidas como reais. O divino não mais
dignifica o homem, mas empresaria e/ou patrocina alguns de seus raros momentos
cotidianos. Dessa maneira, o divino não participa mais do homem, mas de suas
realizações. O homem não convive no meio do divino em relação constante com toda a
divindade. As divindades atendem o homem em tal ou tal atividade, dependendo do
apelo do qual ele se sinta debilitado. Assim, não existe relação entre os homens e o
divino, mas sim uma relação comercial em que as preces, as súplicas e invocações, os
65
transes são costumeiramente vivenciados como numa relação comercial qualquer. Só
que nessa relação, o divino “atende o seu humano cliente” com a ventura de ter –
quando se tem – o pedido do milagre atendido divinamente. Esse é o comportamento
que, via de regra, o homem ocidental assumiu, sobretudo, desde o advento da religião
como instituição. Os pedidos são feitos ao Deus ou aos deuses, aos santos, aos exus e
aos orixás e outras entidades espirituais transcendentais quaisquer para que alguma
benesse seja operada na rotina do cotidiano, ou mesmo como promessa de uma bem-
aventurança post mortem. No entanto, a realidade do divino parece ser bem outra, ainda
que se tenha esquecido como o homem é divino em sua essência.
O esquecimento se firmou a partir, principalmente, do momento em que o
homem deixou de fazer a experiência da vida como a experiência pertencente a toda
divindade que se coloca como presença. O divino é toda e qualquer manifestação do
homem sobre a terra. Existe uma interdependência entre o homem e o divino já
esquecida. É interdependência, mas não subserviência. No entre-depender, homem e
divindade são o mesmo. O mesmo que se quer aqui não esquecer.
2.1. Para uma onto-poética do humano na luz do divino
O curso do homem é o percurso da terra. O homo sapiens, assim designado, diz
que sua origem é a terra (do latim humus). O homem é aquele que se levanta da terra.
Mas se levanta em direção a quê? A direção é o destino do homem. O que a terra faz é
dar-se para o nascer do humano. Ele, assim, nasceu dela, vive o pisar sobre ela e depois,
no fim da vida, para ela retorna. O homem é o que vive o entorno e no contorno da terra.
A princípio, dela nunca deveria se perder. Mas, como nasce da terra e sobre ela se
conduz pelo caminho, o homem engendra sua saga sobre o solo deste mundo. A direção
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que ele toma é a de, ao sair da terra, encontrar com os céus, no encontro com o sagrado.
O céu é seu horizonte desde o seu nascimento. Saído da terra e protegido pela graça dos
céus, o homem vive sob a proteção do divino. Ao sair da terra, encontra-se com o
sagrado. Modernamente, poder-se-ia dizer que essa é a sua religião. No âmbito de tal
religiosidade, o homem segue o seu destino.
É bem verdade que o termo religião, tal como se entende hoje, não existiu
durante muito tempo na Antigüidade. Apenas a partir do advento do cristianismo, é que
se pode pensar na existência desse termo com a interpretação que a ele hodiernamente é
dada. Benveniste esclarece:
Não existe – é uma constatação imediata – um termo indo-europeu comum para “religião”. Ainda, historicamente, diversas línguas indo-européias são desprovidas desse termo, o que não é de surpreender; é a própria natureza dessa noção que não se presta a uma denominação única.30
Assim, é oportuno caminhar pela trilha da religiosidade do homem sem pensar o
termo religião tal como hoje é concebido. Mas a idéia do religioso, do sagrado, do santo
nunca foi distante da realidade do homem; ao contrário, sempre esteve muito mais no
seu cotidiano do que depois do advento da religião como instituição. Não havia a
distinção entre o sagrado e o profano. Inicialmente, o sagrado era o homem, nunca
apartado a priori do divino.
Sobre o termo religião, há entendimento de que seja proveniente do verbo latino
(re)ligare; o que é um equívoco. Na verdade, religião está comprometido historicamente
com o verbo latino (re)legere, ao qual pertencem também derivados como religious e
lego. O mesmo Benveniste é quem diz que “Cícero que...liga religio a legere, ‘colher,
congregrar’, a outra (definição) por Lactâncio e Tertuliano, que explicam religio por
30 BENVENISTE, Émile. “Religião e superstição”. In: O vocabulário das instituições indo-européias (Vol. 2). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 268.
67
ligare ‘ligar’”31. O que religio designa realmente é a preocupação de Benveniste. A
preocupação aqui é já atentar para o fato de sua implicação na dimensão do ser do
homem. Se religare/religio é o ponto de partida, é preciso notar o que ele já pode dizer
sobre a essência do homem. Vindo de legere, “colher, congregar”, pode-se pensar que o
homem, como o que vive da terra e sobre a terra, vive a colher os caminhos de sua
escolha. Mas essa interpretação pode ser por demais apressada e não diz muita coisa. O
que se quer pensar é a necessidade do homem em estar sempre em busca do e no
encontro com o divino, de tal modo que é ele mesmo, o próprio homem, que se
consagra com o divino, por causa da urgência vigente de todo o sagrado sobre a terra.
Aliás, falou-se da terra, que o homem dela surge. Nesse sentido, o homem não realiza o
seu nascimento. O homem não nasce, nunca nasceu, nunca nascerá, tampouco morrerá.
Não existe morte e vida, tal como hoje se entende. O homem é nascido pela terra e para
ela volta. O que se percebe é a correspondência do homem ao movimento da phýsis.
Ela, pelo seu mostrar-surgente, como acontecimento primordial, que dá da terra a
semente para a planta plantar nova semente, faz o mesmo com o homem, já que, no
acolher-se como terra, semeia a planta e todas as vegetações. A terra, pela phýsis, planta
o homem para o seu destino, que é voltar para a terra. A terra é, na verdade, quem colhe,
re-colhe, es-colhe o homem para os desígnios do mundo, do divino.
Quando a terra es-colhe o homem para dar testemunho do nascimento, ela se
mostra como terra-mundo. Ser terra-mundo do e para o homem é fazer com que ele se
mostre para o divino. Essa escolha da terra, quando colhe o homem para seu plantio,
mostra que o homem, tal como vegetação, viverá sob a proteção e os desígnios do
sagrado, do(s) deus(es), do divino. A planta, quando da terra nasceu no seu nascimento
inaugural, não foi plantada pelo homem. O homem também não se plantou como tal. A
31 BENVENISTE, Émile. “Religião e superstição”. In: O vocabulário das instituições indo-européias (Vol. 2). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 270.
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terra o semeou. A terra deu o homem para a luz. O encontro desse nascimento foi fazer
com que o homem se desencobrisse, em sua alétheia, e se visse com o divino, num
encontro sem igual. Deixá-lo na luz do mundo foi já o mostrar para o homem que fora
do divino não há como viver, não há como morrer. O es-colher da terra, no entanto, tem
um desígnio. Ela, desde que fez nascer o homem, deixou-o sempre em seu território,
para que do humus permanecesse em sua humildade, em sua humanidade, que é a de um
dia ser re-colhido pela própria terra. O destino da terra é tomar conta do homem, tarefa
que executa junto à proteção dos deuses. Durante a vida, o homem é a-colhido pelo
divino e, durante a morte, re-colhido na es-colha da terra. O movimento da terra é o
movimento do divino que ora colhe, es-colhe, re-colhe, a-colhe, en-colhe o homem em
seu seio. Por isso, o homem é um ser terrestre, pois não vive nem sob, nem sobre a terra,
mas vive todos os destinos da terra em seus caminhos. O homem é num só corpo o
terrestre e o terreno. Pelas vias e veias do solo, segue os sinais da terra, perfaz o terreno.
O homem nasceu do meio da terra e no meio dela vive, entre ela e o divino. O homem é,
então, o lugar do meio, o entre. Mas no meio da terra, fica justo no meio do divino.
Todo seu conteúdo está contido no corpo da terra e do divino.
Outro aspecto que vale notar é o nascer da terra. Poder-se-ia perguntar quem dá
para a terra a sua disposição para o nascimento do homem. A terra é o próprio nascer
enquanto phýsis. A terra executa sempre a disposição do emergir. Mas, na emergência,
sempre deixa algo ainda a ser emerso e requisita o homem na morte como imergir. A
submergência do homem nunca está além da terra. Nesse sentido, ele nunca pode, nem
deve, porque não é da sua natureza, transcender. A submergência do homem não é
voltar para a terra, para debaixo dela. Voltar para debaixo da terra significa voltar para a
terra, na sua imergência, mas no limiar de novas emergências. Morrer, voltar para a
terra, então, diz outra coisa, talvez a mais clara: morrer é voltar para a humanidade do
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homem enquanto humus, colhido e re-colhido na es-colha de sua humildade. Morrer é
ainda continuar no seio da terra, nunca distante do mundo dos deuses. Sobre a terra,
sempre surge o divino como amparo e luz do mundo dos homens. A conhecida frase “a
mãe deu à luz o menino” significa, neste entendimento, então, o seguinte: a mãe-terra
deu o homem para a luz, para o divino. Isso indica mais uma vez que o homem é
nascido para o encontro com o seio de deus, na luz deste deus, luz que ilumina o homem
desde o seu primeiro contato/encontro com o mundo.
2.2. O divino: o homem entre o céu e a terra
No começo, Caos reinou sozinho. Depois, como começo do mundo surgiu Gaia,
a terra: “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também / Terra de amplo seio, de todos
sede irresvalável sempre, / dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, / e Tártaro
nevoento no fundo do chão de amplas vias”32 Esse é o começo do mundo. É terra, Gaia,
quem o inaugura. Depois dela, é que tudo surge no seio do mundo. O homem inclusive.
O homem é inaugurado pela terra. No seio dela, nasce, cresce, vive os adventos do
mundo e morre, retornando para o seu meio, a própria terra. Isso diz a fala-mito da
história para o grego pré-homérico. Já a narrativa judaico-cristã diz: “No princípio,
Deus criou o céu e a terra”33. Há diferenças entre elas. Mas importa notar que a terra
aparece logo no primeiro instante da criação. No mito grego, nasce do Caos e dá origem
à Terra, ao mundo; no mito judaico-cristão, faz parte do primeiro dia da criação, junto
com o céu. Só depois, então, os demais entes do mundo surgem.
Terra é a mãe que deu luz ao mundo. O mundo, todo em luz, iluminou tudo que
nascesse do ventre de sua grande-mãe, a terra. Sabe-se que “Sem concurso de macho, 32 HESÍODO. “Os Deuses primordiais”. In: Teogonia: a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003. 33 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora PAULUS, 2002, p. 33.
70
isto é, por partenogênese, Gaia deu à luz Urano (o céu), Montes e Pontos,
personificação do mar.”34. O homem quando nasce da terra e sobre a terra já está sob o
céu. Isso possibilita a leitura de que o homem, ao nascer, já está sob a proteção de céu e
terra. Aliás, sabe-se também que terra e céu (Gaia e Urano) se unem e, em seguida,
tornam-se os geradores dos Titãs. Isso mostra que tudo se reúne no vigorar da phýsis. O
homem, então, nascido da mãe-terra, Gaia, se encontra junto ao sagrado céu. Sob a
proteção também do céu, o homem estava destinado na sua terra.
É possível daí entender que a vida do homem é organizada pela terra, mas vivida
sob a proteção do céu, na sua guarda, no seu cuidado. Quando, então, vão surgindo
todas as divindades, o homem já está sob a terra. Desse modo, o homem não é o filho de
deus algum, mas o filho da terra, que nela e por ela cresce. Os deuses são filhos de
entidades orgânicas originárias. Os deuses são gerados por deuses para cuidar do mundo
do homem e seus afazeres.
O homem, nesse sentido, não é o divino, mas faz com que o divino exerça sua
divindade sacrossanta na relação de proteção e orientação dos destinos do homem.
Neste aspecto, ele é aquele que participa do divino, na medida em que executa as
atribuições e as organizações do mundo sob a vigília dos deuses. Muitos são os relatos
homéricos e não-homéricos, de Hesíodo e poetas pós-homéricos, que narram a relação
dos deuses com os homens, diante das interferências constantes no mundo dos mortais.
Tanto a Ilíada quando a Odisséia estão repletas desses relatos. A intervenção divina é
sempre a marca da presença do divino na vida do homem. O imortal rege o mortal35. O
imortal vive o mortal e vice-versa. Nessa convivência, o homem participa da 34 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p. 461. 35 OTTO, Walter Friedrich. “Ser e acontecer à luz da revelação divina”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 156. O texto diz: “A divindade não influi do além no íntimo do homem, em misteriosa conexão com a sua alma. Ela é idêntica ao mundo, e nas coisas do mundo vem ao homem quando este vai a seu encontro e participa da sua vida emocionada. Este não a experimenta por via de introspecção, mas lançando-se ao mundo, captando, agindo”.
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imortalidade dos deuses quando adere a seus vigores e suas ordenações. O mundo dos
deuses só se completa na possibilidade de execução e vivência do homem junto à
experiência do divino. Nessa época, o homem, sobretudo o grego antigo homérico e pré-
homérico, sabia, porque vivia, a experiência do deus, sempre requisitado à presença
diante de alguma necessidade emergencial frente às grandes tribulações da vida. Aliás,
aqui vai uma correção. A vida do homem sempre foi entendida como a sua maior
tribulação. Tudo que dela participava se dava como de extrema importância, de modo
que o divino sempre viveu junto ao homem diante de suas, aparentemente mínimas,
necessidades. Fato curioso, que talvez não tenha sido notado com tal ocupação, é a
constância de orientações com que os deuses orientam os heróis e não-heróis homéricos,
fossem eles Aquiles, Heitor, Pátroclo, Ulisses etc. Em muitos casos, o que se vê são os
deuses sendo os articuladores de muitas das diretrizes que o homem deveria tomar
naquele momento. E, as mais das vezes, segundo a visão moderna, poder-se-ia entender
o evento em que o herói recebe auxílio por demasiado banal. Talvez pareça ser isso,
quando se olha para a distância em que tal intervenção existiu. Mas não é esse o tom das
mediações divinas. O homem, assim mediado pelos deuses, coloca-se na realidade
fazendo a experiência do divino, experiência sempre a lhe impulsionar e a provocar a
expectativa de que, junto à divindade, sua realidade se mostra como o real se dando em
sua sacralidade e sacralização.
Vale notar que os homens, sofrendo a intervenção dos deuses, não são
marionetes36 à mercê de um destino que eles mesmos não podem traçar. De fato, o
36 OTTO, Walter Friedrich. “Ser e acontecer à luz da revelação divina”. In: Os deuses da Grécia: a imagem do divino na visão do espírito grego. São Paulo: Odysseus Editora, 2005.p. 156. Walter Otto fala o seguinte acerca do fato de os homens não serem marionetes os deuses: “O homem não é mero instrumento dos deuses, nem a existência humana se reduz a palco de atuação dos divinos. É um ser que se impõe agir por si mesmo. A vivacidade do homem responde ao milagre do mundo encantado que também o encanta. A pergunta sobre onde acaba o homem e onde começa a divindade não pode ser respondida porque a fé tem raiz na experiência de que ambos se tocam e se conformam um ao outro.”
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homem não pode traçar o destino sozinho37. Mas o que importa observar, além das
impossibilidades diante de rumar contra o destino, é que, vivendo na intervenção dos
deuses, o homem faz a experiência de suas decisões e de toda a sua vida junto à
realidade deles, o divino. É nesse aspecto que o homem é divino na Antigüidade grega e
em outros modos e conformidades de experiência com o divino. O homem divino é
aquele que conhece o divino, que faz junto a ele a sua própria experiência – tal como o
“homem amistoso é o que ‘conhece o amigável’”38. Isso tudo se perdeu quando o
sagrado se institucionalizou como religião. Todas as vivências são dadas a partir do
divino. O homem precisa do canto e do encanto do sagrado para que o segredo da vida
se faça como e com o divino, a partir de realidades e realizações que mostram ao
homem o que é ser divino. A experiência do divino é a do homem; a do homem é,
então, divina. Nunca antes e depois no mundo, o homem entendeu tão veementemente a
presença do divino na realidade do mundo. Nesse sentido, pode-se compreender um dos
sentidos sobre os quais se diz: o homem é sagrado; o homem é divino.
Experiência completamente adversa é a que ocorreu, infelizmente, para o
homem moderno, a partir da leitura judaico-cristã acerca do divino junto ao homem. O
homem se separou da divindade. Ela foi colocada como o transcendente, o inatingível.
A experiência grega antiga do divino era a do aparente, a da aparência, porquanto o
deus aparecia na vida do homem e o homem na vida do deus que viesse a colaborar ou a
impor empecilhos na vida humana. O aparecimento de um ao outro era a forma de o
homem fazer e entender a experiência do real, tornando a realidade em múltiplas
realizações. Nessa experiência da intervenção, em que um freqüenta o outro, o homem
fazia a vivência de sua essência dentro do real, configurando a sua realidade. Diante das
37 Idem, p. 237-260. Nesse último capítulo, “Destino”, bem como em anteriores, Walter Otto elenca uma série de passagens, sobretudo, homéricas nas quais se mostra o registro de como os deuses atuavam junto aos homens orientando-os para o seu destino. 38 Idem, p. 161.
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escolhas e dilemas preparados e sugeridos pelos deuses no cotidiano do mundo, ele ia
percorrendo os seus caminhos sobre a terra, para que um dia a ela retornasse. Nesse
percurso, sobre a terra, junto à intervenção dos deuses, o homem vive o aprendizado do
real, fato comum a todos que entenderam o que era estar sob a proteção do divino. Os
deuses, nesse sentido, fizeram com que o homem entendesse, porque vivendo, a
realidade do mundo. Nesse entendimento vivido da realidade, o homem grego foi o que
até hoje se fez modelar para toda a humanidade porque, pelo modo de conjugação com
o divino, conseguiu interpretar e apreender a realidade, norteando todo o mundo
ocidental. Mesmo que com reservas e ponderações da parte de alguns, são Homero,
Hesíodo, Euclides, Heródoto, Pitágoras, Parmênides, Heráclito, Anaximandro,
Xenofonte, Ptolomeu, Sócrates, Platão, Aristóteles, Sófocles e tantos outros que o
mundo moderno tem como referência e reverência. Assim, evidencia-se que as
tecnologias modernas ainda não fizeram, nem realizaram, nem rezaram a experiência do
real tal como a fizeram esses gregos, cada qual a seu modo e dentro de suas diferenças.
2.3. A santidade do homem: a onipresença do deus
Walter Otto explica que, com a experiência do homem junto ao sagrado,
“Estamos diante de um protofenômeno da atitude religiosa. Seja como gesto, ato ou
palavra, ela corresponde ao desvelar-se do ser sacrossanto da divindade.”39 O
protofenômeno que está diante dos olhos de qualquer um é o fato de que o religioso, o
sagrado, o divino, circunda a vida do homem no mundo. Se decorrente do mito ou não,
as manifestações do divino são patentes. O homem nunca deixou de estar com deus.
Essa sentença é antiga e se lê de muitas maneiras. Uma delas é a de se pensar que o
39 OTTO, Walter Friedrich. “A manifestação originária do mito”. In: Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 42.
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homem está sempre sob a proteção do divino. Talvez essa seja a mais comum. Com
isso, o que se nota mais uma vez é a presença do divino no homem. A pergunta que
poderia surgir desde sempre é: por que o homem sempre esteve em busca do divino? E
mais: por que o divino sempre se coloca como uma necessidade imperativa na vida do
homem? A resposta, das mais imediatas, tenta mostrar que a realidade desse mundo não
é suficiente para dar conta do mundo no cenário da vida. Daí, é comum pensar que o
mundo só se completa quando o homem, por alguma infelicidade ou fraqueza, não se
realiza com os elementos presentes no mundo e busca explicações onde não deve, pois
que nessa hora tenta responder às suas necessidades materiais e concretas com
figurações abstratas, razão pela qual recorre à imagem de santos, de santas, de exus, de
orixás, de Cristo, de Deus, de espíritos benfeitores e malfeitores etc.
No entanto, observando essa busca e essa mesma explicação para tal
questionamento, poderia ser observado o fato de haver sempre um encontro que, se não
é sempre gratuito, é, ao menos, fortuito. Se a realidade de fato não se coloca como
suficiente, a ponto de ser explicada pelas suas entidades divinas, sagradas, o que se
poderia entender é que o mundo dos homens não se dá por completo somente com o
humano. Ele precisa do divino para completá-lo. Mas não é um completar que parece
representar a coisa faltante. É um completar no âmbito do pertencer. Pertence ao mundo
o divino, e ao divino o mundo. Existe sempre na presença do mundo a onipresença do
sagrado. Os homens gregos antigos a vivenciaram como ninguém. Na presença do
homem, está a onipresença dos deuses. Para cada homem, um único deus se coloca
como o que vai contribuir para a ação no real, conferindo ao mundo as suas realidades e
realizações.
No mundo judaico-cristão, Deus, o único, é onipresente. Na sua univocidade e
na sua unidade, Ele reúne todo o real do mundo. A leitura judaico-cristã não é essa, mas
75
não impede que haja aqui a provocação de uma releitura. O homem não entendeu a idéia
de onipresença que também se coloca como possível para esse Deus único. A
onipresença confere também a possibilidade de o divino estar sempre no homem,
porquanto sua presença envolve todos os humanos, os que são da terra. Se está em todos
os lugares, não precisaria a princípio ser evocado. Está sempre na presença do homem
como força inspiradora de todo o seu agir, que se dá como poiéw. O homem continua
envolto a um agir humano-divino. O problema que parece se impor não é o
distanciamento do divino na vida do homem moderno, mas um distanciamento que se
mostra cada vez mais distante. A experiência com o divino bem poderia se dar até hoje
como se deu para o homem grego. Mas não se dá. E não se dá mais, não pelo motivo de
uma mera troca de uma mentalidade monoteísta que passou a viger aniquilando a
mentalidade politeísta grega. Aliás, o que menos interessa aqui é a discussão sobre a
existência de uma religiosidade monoteísta ou politeísta. O que importa é a experiência
com o sagrado. Assim, o que há de se observar é que o homem moderno não faz mais é
a experiência com o sagrado, sobretudo quando institucionalizado e regulamentado com
pró-formas e liturgias que cada vez mais não correspondem ao convívio com o sagrado.
O que falta é a experiência do convívio, tal como o homem poderia, talvez, experienciá-
la. Na falta dessa experiência, falta tudo ao homem. Como reflexo dessa falta na
modernidade, falta o humano e o divino. O homem vive na procura do divino sempre
que ele vive em desencontro com o humano, com a terra. No desencontro com a terra, o
homem vive na falta. Falta que não é o pecado, mas é a dessacralização típica do
homem moderno. O homem dessacralizado é o homem com falta de sua terra, de seu
terreno, de seu encontro com o humus, a humildade, a humanidade. É o homem com
falta de homem que o afasta do divino. O afastamento do homem junto a si mesmo é o
acontecimento que fez com que, no percurso de sua história deixasse de acompanhar o
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seu destino histórico. Chegou-se, então, no momento em que ele, não sabendo viver e
lidar com a experiência da presença do divino, não soube viver e lidar com ele mesmo.
Isso é também o que quer dizer o pensamento de Heráclito no fragmento 72: “Do Lógos
com que sempre lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem
estranhas”40. Essa distinção, entre ele e o divino, representa o maior desvio do homem
sobre a terra. A dessacralização do divino dessacralizou o homem em sua humanidade.
O destino conformado foi o de um desvio histórico, que para voltar a se conformar, a
tomar a forma da companhia e do acompanhamento com o divino, requisitaria a simples
inspeção de experiência com o deus, fato que hoje não mais se dá com a mesma
vivência.
Essa falta do homem, que é a falta do sagrado junto ao homem, acarreta algumas
dificuldades na releitura da onipresença, mesmo diante do Deus judaico-cristão. Disse-
se que a onipresença aponta para uma convivência junto ao homem em todos os lugares
onde o homem esteja nessa terra. Desde o seu nascimento até a sua morte, esse Deus
está junto ao homem para que também este faça de sua vida a vivência da travessia no
período de vigor do corpo trabalhando, cultivando e agindo sobre a terra.
A onipresença dos deuses gregos, diz Walter Otto, implicava um distanciamento,
porquanto são mortais, e não imortais. No entanto, ele diz: “A serena distância dos
deuses não exclui o que nos é mais familiar: sua onipresença, na verdade uma presença
tão imediatamente sensível como em nenhuma outra religião antiga podemos encontrar”
41. E ainda complementa mais adiante o raciocínio: “os remotos bem-aventurados são os
sempre próximos, em tudo operantes; os sempre próximos são os remotos bem-
aventurados. Não se dá uma coisa sem a outra. A inatingível lonjura faz ser o que é a
40 Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 79. 41 OTTO, Walter Friedrich. “A onipresença dos deuses”. In: Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 64.
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proximidade.” 42 Aqui se observa a união originária que faz do homem um ser divino. A
proximidade dos deuses junto aos homens, tornando-os, pelo agir, divinos, provém
justamente do distanciamento enquanto deuses. Assim, pelo distante que vive na
proximidade da experiência, o homem grego antigo sempre realizou o seu agir junto aos
deuses. Walter Otto, sobre o agir humano, diz mais: “Também em situações de outra
natureza (Otto se refere à atuação dos deuses no agir do homem e cita a luta decisiva
entre Aquiles e Heitor) o fazer humano é propriamente um ato divino. Precisamente
onde nós enfatizamos a decisão autônoma do homem, atribuindo-lhe o máximo de
valor, Homero vê a manifestação de um deus” 43. Sendo o agir humano executado pelos
deuses, o agir humano é divino. Isso é diferente de entender que o agir dos homens é o
agir dos deuses. O agir dos deuses é que atua no agir humano fazendo deste agir divino.
Ora, se é possível entender isso com relação ao homem grego antigo no que diz respeito
a sua religiosidade, não é de todo inconveniente a releitura do distanciamento que gera
cada vez mais distância entre o homem moderno e o Deus único.
Atualmente, já foi dito, o que acontece diante da dessacralização do homem é
que esse mesmo homem não deixa mais deus agir. Fora de atuação, deus se encontra
fora do homem. Fora do homem, tem-se a falta do divino. A falta do divino é a falta do
homem que faz da distância entre o homem e Deus cada vez mais distanciamento. A
esse movimento que provocou o afastamento de Deus, a modernidade deu um nome
bem conhecido, chamou-o subjetividade. Na subjetividade, pensa-se o homem como
cada vez mais senhor dos seus destinos. No entanto, ocorre que na subjetividade o
homem está cada vez mais distante do ser, porque mais próximo do eu, e, com isso, o
próprio homem não se deixa na proximidade do agir do divino. A distância sempre mais
aumenta entre o homem e o sagrado.
42 Idem, p.64 43 Idem, p. 66.
78
Há de se considerar, todavia, que a experiência com o divino não se dá, mesmo
atualmente, somente a partir da instituição religiosa. O divino como instituição não se
aproxima do homem, não faz a fronteira com o caminho da travessia pertencente a cada
passo dado no seio da terra, local de onde nasce e, durante toda a vida, nutre-se,
amamenta-se. O homem, não se deve esquecer, da terra nasce, dela se alimenta e para
ela retorna.
Sabe-se que há homens, em raros casos, ainda hoje fazendo a experiência com o
sagrado. Algumas tribos nômades da África, alguns indianos, andinos, e outros povos
não viventes no âmbito da instituição permanecem de alguma maneira próximos da
experiência do homem grego antigo junto ao divino. Percebe-se o divino sendo não
disciplinado aos moldes da instituição religiosa tal como se tem hoje. Isso parece
apontar para o aviso que mostra o divino, que está para se apresentar como tal em sua
sacralidade e sacrossantidade, sempre a vivenciar o humano na distância de sua
proximidade. Não é que a instituição, os templos e as liturgias sejam o impedimento de
percepção da presença do divino. O divino não se nega aos templos, às liturgias e aos
seus rituais. Ocorre que o homem não vive sequer a sacralidade religiosa dos templos e
suas religiosidades, mas sim a forma estereotipada de relacionamento com aquilo que
poderia fazer o divino se aproximar novamente do humano, tal como se deu com o
homem grego. Hoje, vive-se o agir da fé; não é mais o divino que vive o agir do
homem. Houve uma diferença significativa de atitude diante da experiência do real.
Essa mesma experiência não percebe que a onipresença do divino não é vivida como a
entrega do homem para que o divino atue no seu agir, fazendo o agir humano divino,
como se deu no mundo grego antigo.
A onipresença do Deus único não é mais experienciada porque ele está fora do
homem. O divino fora do homem é o homem fora da terra e da sua humanidade. A sua
79
humanidade é o divino agindo e realizando as realizações da realidade. A onipresença
diz ainda que Deus é presença única; que Deus é uno em sua apresentação; que o
apresentar é sempre o mesmo e sempre único para cada homem, atuando em várias
realizações no agir de cada ente; que a presença é um agir no homem e para o homem
fazer a experiência do real, sabendo-se antes, ou melhor, desde sempre, a vida divina.
Quando o homem se mostra como o que está sempre a buscar a experiência do
divino, requisitando a presença do seu agir, isso significa que o mundo do homem não
está completo. É o divino quem o completa como experiência do agir no homem. O
divino não age por meio do, mas no homem. Agindo assim, o homem pode experienciar
o real, em suas realidades e em suas realizações. O agir humano é divino e, nessa
atuação, lida o homem com a onipresença de Deus. Esse agir divino no homem é a
onipresença de todo o sagrado, o vivido pelo homem grego antigo e o não vivido pelo
homem moderno.
Por isso, entende-se o homem moderno como o homem faltante, o da falta. Não
está presente o divino-agir. Raras vezes, se é que ainda isso ocorre, o divino faz a
experiência do real. Para tal, o homem precisa estar disposto ao convívio com o divino,
deixando o homem não agindo por si só. O homem agindo no homem é a subjetividade
moderna. O homem, quando se abandona enquanto entidade-homem, quando se
desencontra de sua subjetividade e vive na entrega dos seus agires, sempre se aproxima
do divino e faz a experiência do real.
É bastante comum dizer que um artista ou que um trabalhador qualquer executou
um belíssimo trabalho, chegando mesmo a se diferenciar esse ou aquele trabalho de
todos os outros já feitos. Quando isso ocorre, explicam, o artista e/ou trabalhador, que
se entregaram de corpo e alma naquela tarefa. O que isso significa: se entregar de corpo
e alma? Entende-se que é se entregar por inteiro. Mas isso não responde à pergunta.
80
Apenas a reedita como resposta. Isso significa, no entanto, o seguinte: que o homem se
deu de tal modo para aquela tarefa que o inteiro, o divino, agiu sobre ele iluminando
aquele trabalho. Simploriamente, é esse o entendimento que está em jogo. É comum
também a confissão do artista/trabalhador dizendo: daquela vez as condições
instrumentais, de tintas, pincéis, ferramentas operacionais de tal ou tal tarefa, não eram
nem das melhores, nem tão adequadas, mas de algum modo ela saiu diferenciada. A
diferença é a identidade que há entre o homem e o divino. A entrega do homem
permitiu o divino agir nele. O homem quando se entrega para cada agir permite que a
ação e a atuação dos deuses orientem a tarefa de modo a torná-la também sagrada,
também divina. No momento em que o divino age no homem, ele entra na dinâmica
originária do poiéw, ele vive no mundo como poesia, como um ser da poiésis. Esse é o
encontro do homem com a essência do ser a vigorar em cada sendo, a vigorar na
conformação de cada realização, compondo a realidade, integrando-se e integrada como
de hábito ao real.
O agir poético é o agir do divino no homem. Essa conformidade é de todo
originária. Todo agir humano está comprometido com uma poiésis que o homem
consegue no seu agir-divino experienciar como poético. Nessa compertinência, do
poiéw como o agir primordial, o homem faz a vivência do sagrado, vive no encontro
com o divino, na sua onipresença. A onipresença de deus é, então, o agir divino no
homem. Como presença que nunca se deixa ausente, o deus encontra sempre o homem
em todo e qualquer agir, desde que este entenda que a realidade de cada momento é o
encontro sempre inesperado com o extraordinário do divino.
81
2.4. “A morada do homem, o extraordinário”44
Desde sempre, o homem procura o divino. O homem, no entanto, mora no
divino. A moradia dos homens se encontra no mundo do divino. Interessa notar que os
deuses, mesmo nas lutas por vezes travadas entre si, visavam ao homem como aquele
que estava, pela experiência do sagrado, a entender e a lidar com o divino presente na
construção do mundo humano.
Aliás, é oportuno observar que, se o mundo do homem é o dos deuses, o mundo
é também divino. Não é dos deuses, mas é divino. O mundo é o lugar de moradia dos
deuses. O mundo dos deuses é o mundo dos homens. O extraordinário, como morada do
homem, aponta para o divino como sempre presente. O extraordinário se coloca para
além de qualquer ordem, de qualquer ordenação. Por extraordinário, não se deve
entender o que não está em ordem, mas sim que a organização do mundo se dá,
sobretudo, diante da manifestação e da presença do que se coloca para além da ordem
habitual das entidades do mundo. Se a morada do homem é o extraordinário, tal como
disse Heráclito no fragmento supracitado, pode-se pensar que o homem, se não o
conhece, está sempre na sua vizinhança, pois está sempre como habitante-habitado do
que não pertence às conformidades ordinárias do mundo. O extraordinário como morada
é o lugar onde o homem nasce, cresce e morre, acorda e dorme, alimenta-se e repousa,
ou seja, é o lugar sempre do encontro com o divino. O divino é o extraordinário, porque,
na dinâmica própria de seu poiéw originário, realiza junto ao homem a experiência
diária do divino.
Aqui vale retomar o já citado pensamento de Heidegger: “a linguagem é a casa
do Ser”45. A ser mora na linguagem, o homem mora no extraordinário. Qual é a
44 HERÁCLITO. “Fragmento 119”. In: Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 91.
82
implicação possível entre ambos? A princípio, não há implicação, visto que Heráclito
fala do homem e Heidegger fala do ser. Mas ambos falam do morar, do habitar. Onde
eles se encontram é dentro de casa. A linguagem, como casa do Ser, e o extraordinário,
como casa do homem, não estão de todo distante. Na distância, um se encontra na
vizinhança do outro, na vigência do lógos, enquanto divino e enquanto extraordinário. A
linguagem é o extraordinário na casa do ser. A linguagem é, nesse sentido, o divino
enquanto presença na morada do homem. Como linguagem, o divino se nomeia e
desencadeia as realizações do mundo de realidades no mundo do homem. Tal nomear e
desencadear são dados pela disposição do divino. O divino e toda experiência com o
real criam o mundo, e tal criação é a manifestação constante do extraordinário no seio
da terra. Mundo para o homem não é o lugar onde ele constrói as suas relações sociais e
se desenvolve para o longo da vida como habitualmente se pensa. A instância a se
colocar em tal momento é a de tentar entender que a dinâmica de convívio e intersecção
com a linguagem é o mesmo que estar no âmbito do extraordinário. Ele vive no homem
e com o homem. É da phýsis a existência tanto do que pertence à tida ordem natural das
coisas, como a do sobrenatural.
Aliás, a rigor, é comum se entender a realidade como constituída de elementos
ordinários e extraordinários, estes chamados de sobrenaturais. Porém, tal consideração
se mostra arbitrária na medida em que não há como determinar por nenhum critério
pressupostamente científico, objetivo, a dimensão das realizações das realidades do real
na dinâmica pertencente a esse mesmo real. As medições nesse sentido são desmedidas,
fora de propósito, pois colocam o homem aferindo uma conformidade não pertencente
ao seu domínio de mundo. Além disso, o sobrenatural se mostra comprometido como
algo de menor valor, sendo, na verdade, costumeiramente lido como um subnatural.
45 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 55.
83
Depois de instar-se nesses três âmbitos – o natural, o sobrenatural e o subnatural – o
mundo religioso ocidental, montado a partir, sobretudo, do advento da cristandade e
seus aparelhamentos metafísicos, catalogou, com vária distinção de valor, o modo de
lidar com as realizações das realidades do real. E isso representa atualmente uma
impossibilidade de se experienciar o mundo e a própria dinâmica de existência do
divino. Na divisão de valores, um deles foi o escolhido, o natural; mas nenhum deles
vivenciado.
2.5. Domínio do racional e domicílio do sentido
Outra coisa vale aqui ponderar sobre o conhecimento que o homem faz do
mundo: a noção de domínio. Domínio pertence ao regimento de um domus. Mas o
mundo se domina; não é dominado pelo homem. Os limites e os controles dos territórios
mundanos não são da ingerência do humano. Mundo não escolhe território, não se
limita ao entendimento de um conjunto de terras em que os passos são a medida. Mundo
não é um espaço físico medido. As construções de mundo permanecem na mudança do
mundo. Inclusive sob o aspecto geológico, mundo é o permanente e a mudança. Desde o
começo do espaço físico universal, as galáxias e sistemas solares vivem sob o que
permanece: a mudança. Mudar e permanecer são contrários que não vivem um à revelia
do outro, mas cooperam no mesmo: o extraordinário. Mudar e permanecer é o
comportamento do divino, no sentido de que toda permanente mudança traz à cena o
sentido do existir: o convívio no e do extraordinário. O natural e o sobrenatural, então,
sempre coincidem. Na co-incidência, são a junção, a companhia e o testemunho de um
no outro e pelo outro sobre o mesmo na vigência do divino. Iluminado pela luz do deus,
o homem é partícipe da escuridão do mundo, sempre sob a clareira do extraordinário.
84
Mundo é o lugar vigente do divino, do extraordinário e do próprio homem. Ao
homem, a propósito, caberia a pergunta: ele é o ordinário ou o extraordinário? Esta
pergunta o próprio homem moderno não se faz. E não faz porque se pressupõe como o
que ordena, o ordenador. Com isso, a pergunta não é feita nunca. Ele já está, segundo
sua crença e (cons)ciência, dentro da ordem do mundo. De tal modo, elege as coisas
ordinárias das extraordinárias, desprezando estas últimas. Mas a pergunta fica ao
abandono do homem na dimensão da competência do ser. A resposta talvez de fato não
exista por meio da escolha de um dos dois aspectos. A classificação é precária e não dá
luz a nenhum entendimento. Não se pensa aqui numa impossibilidade de classificação;
mas a pergunta não se orienta para um clarear acerca do que é o homem na dinâmica do
ser. Tal obscurecer é decorrente dos próprios conceitos que perfazem o que se chama
ordinário e seus correlatos. Acontece que não existe ordem, mas apenas mundo e
homem.
Mundo e homem são na verdade o mesmo. Um é o outro na dinâmica de suas
compertinências. Aqui, quiçá valha voltar à observação de um fato simples: estrangeiro,
o homem não se entende com o mundo. Tal desentendimento é não entender a si mesmo
no mesmo. Não precisa ir a território, ou domicílio outro em outro continente ou região.
Basta o homem se encontrar num ambiente estranho, para que o mundo se coloque
como o estrangeiro para o homem. Daí, ouve-se com freqüência a frase: “esse não é
meu mundo”. A partir desse fato, cabe perguntar: o que isso significa? Primeiro: o
domicílio, o território se tornou o estrangeiro do estranho homem – o que indica que
estrangeiros e estranhos são o homem e o mundo – portanto, os mesmos, um e não dois;
segundo: mundo é o domicílio do entendimento-sentido do ser. A frase “esse não é meu
mundo” diz: não sinto o outro (o mundo) no mesmo que eu sou; logo, desentendo-me
como ser, ainda que me coloque como ente nesse território e reconheça as repartições de
85
seu espaço físico e toda a geografia do local. Mundo é, por conseguinte, o ser sentindo e
sentido. Sem sentido, o mundo-homem é desentendimento. Grosso modo, nada se vela
nem se revela. Na aparente falta dessa dinâmica, há o estranhamento no qual lógos e
phýsis parecem não estar presentes. A ausência de sentir é a da possibilidade de
articulação do ser como linguagem. Na falta do sentir, o homem não pressente o divino;
sem pressentimentos, o homem não é divino, já que o homem é homem, porquanto é
todo-sentido.
O mundo como sentido é o mesmo que o homem como sentido. Não existe a
possibilidade de mundo-homem-sentido se dar sem o outro. Não existe uma
simultaneidade, mas um ao mesmo tempo. Eles não acontecem numa temporalidade de
mesma localização no espaço do tempo. Todos se instituem como acontecimento de um
tempo inequívoco. Não se dão no contratempo. Sentido é o caminho do mundo. O
mundo é aquilo que confere e é conferido pelo sentido, e o homem nele existe na
direção e disponibilidade do seu sentir. O que compreende à realidade pertence ao
entendimento fundado e garantido pelo sentir. Não existe a possibilidade de o homem
ser sem a sensação. Até a impressão que se tem sobre algo é o anúncio e a aurora de que
o ser se comunicará pelo sentir advindo como um devir. Tal devir é o movimento
originário do lógos e da phýsis na complexidade do ser enquanto ente. O sentir está em
correlação com o ser, assim como a disposição das sensações se configura como ente,
mesmo que isso se mostre aqui apenas como uma transposição aparentemente
conceitual, ainda que não seja esse o caso. O ser, na sua conformidade de apelo junto às
realizações diante da realidade do real enquanto ente, é sempre o desempenho e o
exercício convergente entre o lógos e a phýsis na dinâmica do mundo. O ente, que é o
homem em suas conformidades sociais, culturais, religiosas, enfim, caracterizadoras de
mundo, se mostra de acordo com e dentro das possibilidades das formas de sentir. Tais
86
formas de sentir e entificar-se ocorrem nos muitos “comos” nos quais o homem vive. A
complexidade desse entendimento é simples: o sentir determina como o ser se mostra
enquanto ente. A interpretação que o homem tem do mundo é dada pelo e com o sentir.
Não existe outra saga para o homem senão perceber tal estatuto nessa experiência.
Tudo quanto se pensa (ou, comumente, se racionaliza) é efetivamente o sentido
do sentir. Nessa direção e apelo, o sentir é o ser do homem a se manifestar como ente.
Ao se conceber o ser e o sentir sendo o mesmo, diz-se, sobre o pensamento humano: ele
é sentido. Essa interpretação é também correspondente ao que Parmênides indica no
fragmento III: “[...] pois o mesmo é pensar e ser”46.
O pressuposto racional, no entanto, adquiriu relevo com os percursos
historiográficos no mundo ocidental, depois que o advento e a supremacia da razão
tornaram-se o pressuposto e a práxis do homem. Essa interpretação é equivocada,
porque foi dada a partir das dicotomias metafísico-ocidentais, sobretudo, a polarizada
em razão e emoção. O pensamento ficou, portanto, dividido em pensamento racional e
emocional, ou afetivo, chegando-se mesmo, a respeito da segunda caracterização, a
denominá-lo de inteligência emocional. Nada disso é suficiente para explicar o processo
pelo qual o ser se manifesta enquanto ente ou mesmo o modo como o ente se dá como
disposição de manifestação dos modos de ser do homem no mundo. Não é suficiente
porque a estratégia utilizada não mais que limita e/ou apenas serve como catalogação.
Assim, haver-se-ia de perguntar quais são de fato os problemas que estão em
jogo ao dividir o pensamento em racional e emocional? As respostas para isso podem
ter vários caminhos. Um deles é entender o pensamento ora como racional ora como
emocional e tender, respectivamente, a um apelo de mais e menos valia. A emoção é
tida como algo menor; a razão, o seu contrário. Até aí não se anda muito num mundo
46 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 45.
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cuja tendência é monetária, é a valoração do mundo e das coisas do mundo, incluindo-
se aí o pensamento humano e o próprio homem.
Decorrente de tal valoração, o pensamento racional é então tido como o de maior
serventia e utilitarismo para a prática cotidiana do viver do homem moderno,
caraterizada pelo compromisso técnico do operar os modos de vida. Em função da
técnica, o pensamento racional é encarado como o que mais a ela se presta por poder lhe
atribuir funcionalidade e potencializar seus atributos e evolução. A tecnicidade da
técnica se revigora quando encontra sob sua serventia o pensamento racional que a
potencializa enquanto técnica e pretensiosamente eleva e dignifica o status do
pensamento racional em sua dinâmica. O pensamento racional é, então, medido e
estabelecido a partir de suas habilidades dentro do mundo da técnica. É a sua mais
habilidosa e potencial ferramenta. O mundo da técnica e o do pensamento racional
apontam para dentro de um mesmo vigor, porque se acredita que a técnica se torna mais
racional, e o pensamento se torna mais técnico.
Mas nem este se torna mais aquele, nem aquele se torna mais este. A
compreensão da realidade dentro de tal conformidade não examina o pensamento
racional nem a técnica. Heidegger, sobre a questão da técnica, argumenta que
A vigência da técnica ameaça o desencobrimento e o ameaça com a possibilidade de todo des-encobrir desaparecer na dis-posição e tudo apresentar apenas no dês-encobrimento da dis-ponibilidade. Nenhuma ação humana jamais poderá fazer frente a esse perigo.47
Isso ocorre porque o pensamento racional não se pensa e a técnica não é pensada
enquanto pensamento. Faltando pensamento, falta o ser. O que importa no mundo da
técnica é uma potencialização do ente ou a criação de um novo ente, com uma nova
47 HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 36.
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tecnologia. O homem, desse modo, é também encarado como um artefato técnico. A
serviço da técnica, ele é a máquina de todas as máquinas; a tecnologia-prima de todas as
tecnologias para o mundo da técnica. Não é à toa a possibilidade de se observarem
ícones ou personalidades do mundo da técnica sendo freqüentemente admirados e
vangloriados no mundo moderno. O estabelecimento do homem no mundo depende
cada vez mais do seu aparelhamento técnico no mundo da técnica. E isso não é um mero
argumento de frustração diante da tecnicidade do mundo. Não é o apelo que se volta
contra uma bandeira de reumanização do homem, apontando uma volta para a dinâmica
do ente a partir do ser. É apenas o caminho que o homem seguiu, escolhendo ser o
futuro da máquina no mundo da técnica. Não é a representação de um saudosismo sem
volta. O pensamento técnico-racional é o caminho do homem no cenário atual. Esse é o
seu valor.
O pensamento emocional, por sua vez, se vê combalido no meio de tamanha
tecnicidade. O problema que ele tem diante de si é como se operar tecnologicamente. É
visto sobre o tratamento de sua conformidade tentando ser medido em relação à
potencialidade de suas emoções. O mundo da psicologia, da sociologia e da pedagogia
humanas tenta dar conta dessa tarefa desde fins do século XIX, justamente o momento
em que o homem moderno se deparou não só com o advento, mas com a hegemonia da
técnica no mundo da máquina, no espaço industrial e informatizado do ocidente. As
ciências humanas tentam fazer a sua parte. A tentativa é um gesto que deflagra o
conflito existente na necessidade de não deixar cair no esquecimento o pensamento
emocional. Mas tentar não deixar cair significa, então: a queda já se deu. Se o chão
chegou ou não, isso é o de menos. A emoção, nesse momento, parece que tem de ser
revista, de ser atualizada, de passar por um “banho de loja”, de ganhar uma nova
roupagem, de adquirir uma nova mídia, uma nova propaganda. Muitos têm partido por
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essa trilha, perseguindo o êxito como se a tarefa fosse a de realizar o maior dos esforços.
Assim, voltou-se a falar da necessidade de o homem sentir, de ser emotivo, de
experienciar as sensações, de abandonar o mundo da técnica – o mundo do trabalho – e
de se orientar para os seus momentos de lazer. Tudo isso é importante e significativo
tanto quanto o é o mundo da técnica. Mas aqui a defesa é em prol dos oprimidos, que
correm o risco de ficar sem voz no meio da sociedade moderna. A emoção tem sido
defendida para que não fique sem o seu lugar na sociedade, apenas isso. No entanto,
nem uma nem outra perspectiva ainda fala com pertinência do que está em jogo nos dois
agires. Pensamento racional e pensamento emocional se conformam nessa dinâmica
como modos de agir e continuam, via de regra, apartados um do outro.
Em tal aparte, a situação poderia ser repensada. Até agora, o fato levado em
conta na disputa pelo pensamento racional ou pelo emocional é uma disputa acerca do
mesmo. É acerca disso que Emmanuel Carneiro Leão faz a seguinte referência à
tensão/disputa do pensamento no mundo moderno da técnica:
Para nós, filhos do petróleo e da técnica, tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época de poluição e consumo. E por quê? Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e filosofia que já não podemos ver o mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento. Desconhecemos o paradoxo da revolução do pensamento. Já quase não temos sensibilidade para as vibrações de nosso destino. E isso, não tanto porque, absorvidos pelas solicitações do consumo, quase não pensamos, quase inevitavelmente o fazemos nos moldes da filosofia e da ciência.
O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência, a técnica, o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas as suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que o tijolo e o cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável caso já esteja acertado que crescer é
90
aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado o que é o homem. Realmente pensar é contraproducente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída.48
Em tais decisões e acertos, também a emoção do homem, orientada pelo fascínio
e pelo fetiche da modernidade técnica do mundo, fez o norte da crença do seu
pensamento se mostrar olhando apenas o mundo da técnica na ausência do pensamento.
As emoções, dessa maneira orientadas, apenas atendem a uma experiência técnica dos
sentimentos e das sensações regulando os comportamentos nomeados como afetivos,
afetuosos, emotivo, sentimentais. Assim, a experiência das emoções na tecnicidade do
mundo é a vivência do homem moderno.
Mas o que isso tem a ver com o ser se dando enquanto ente diante das realidades
do real? E o sentir? E a referência homem-mundo-sentido onde se coloca? À primeira
vista, há um não-sentir. Mas não-sentir é destituir a forma do homem se entender. O
desentendimento é o caminho-trilha que o guia. Como caminho, pode haver retorno,
talvez se um dia se desencontrar ou se se desentender com o mundo da técnica e da
tecnicidade das emoções. O caminho-trilha do homem o guia para o mundo da máquina
maquinando também a direção das emoções. O homem permanecerá nessa trilha não
quando ele mudar de caminho, mas quando o caminho se modificar e apontar para outra
direção, mudar, quando mudar, para onde quer que aconteça a mudança. A invenção da
máquina guiou o homem; o caminho da máquina segue-o com obstinação. O homem
caminha onde seus passos vêem caminho. Como a máquina é quem pisa, ele segue o
destino dessa pegada e não faz a trilha de volta para o próprio homem. O de volta não é
o retorno para o passado do homem, mas o presente contínuo – sem tempo, senhor de
todos os momentos-instantes-acontecimentos – de vigência do ser.
48 LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Introdução”. In: Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 10.
91
Na vigência do ser, o pensamento; o pensamento, o sentir o sentido. Sentir é o
modo de viver no e com o real. Não existe um pensamento sequer do homem que não
seja sentido. O pensamento só pensa o homem, porque sente o que pensa. Só continua a
pensar enquanto o sentir permanece como sentido. Quando o sentir se interpreta como
falta de sentido, o pensamento se desorienta na vigência do ser e demonstra as
intempéries nas conformidades do ente. Sentido e emoção são o mesmo. Racionalizar e
sentir são o mesmo. Um não se dá sem o outro. É uma impossibilidade: pensar sem
sentir, sentir sem ser, ser sem pensar, pensar sem mundo, mundificar sem sentir.
Todo pensamento pensa enquanto sente. Todo sentimento sente por ser do Ser.
Todo ser é pensando o pensamento. Todo pensar pensando é o criar mundo. Todo o
mundo é a reunião de todo sentir. Se há limitações, se não há plenitudes de
entendimentos do mundo, tudo isso acontece no sentir-pensar que se dá pelo e no ser de
cada ente, enquanto tal. Mas, mesmo nas limitações cobertas e descobertas, o sentir
orienta o ser na dinâmica do ente. Sentir é aqui não o que emociona, mas o que co-
move. Sentir faz mover. Move na companhia do mundo, não sendo companhia aquilo
que se dá ao lado do homem, mas sempre no que é o junto. Sentir e mundo são o ser. O
movimento do esforço para que o ser se mostre enquanto ente é o que co-move
mundo(s). Todo mover do mundo é o ser no sentir-sentido das suas realizações na
realidade do real. Sentido movimenta mundo sentido pelo ser enquanto ente. Sentindo o
ser se orienta na saga do seu mundificar.
Assim, o domicílio do ser é o pensar-sentir. Sentimento não serve para
emocionar, ser emotivo. Ser sentir é o emocionar do mundo no movimento de todas as
sensações e pensamentos vários. Todas as razões e desrazões são sentidos do sentir, são
dele provenientes e para ele sempre retornam e eclodem como acontecimento do ser de
cada ente. Todos os entendimentos e desentendimentos são também sentidos do sentir,
92
visto que cada modo de entender é sempre o de desentender. É no mesmo entender que
se dão os desentendimentos. Desentendimentos são sempre entendimentos já sentidos,
mas renegados e determinados pelas recusas de oportunidades e de orientações. Tal
recusar constitui o abandono a um esforço de cooperação para que o sentido das
realizações se configure como interpretações acatadas e acatáveis pelos entes, nas
determinações das realidades do real. Quando o homem, na dinâmica de cada ente, diz
não entender, ele está sob a vigência de uma recusa do sentir que o orienta. O sentir
orienta o homem. O homem vige sob as determinações dos seus modos de sentir e a ele
se coaduna ou não. Os desentendimentos são os momentos em que o sentir não se
coaduna com os modos de o ente se dar. Não se dando enquanto ente, ocorre
aparentemente um desencontro entre ser e sentir, chamado, ainda há pouco, de momento
no qual o homem se desencontra com o mundo. Mas ainda aqui o desencontro-
desentendido, porque não-sentido, ou sem-sentido, com o mundo não é decerto
desencontro. O ser do ente do homem não se coloca à disposição do real mediante a
vigência de uma dada realidade ou realização. Esse processo de recusa talvez seja o
inexplicável do homem. Por que diante de tantas realizações da realidade vigente para
todos os muitos homens do mundo acontece o momento em que, no meio de toda a
possibilidade de sentir, recusa-se a dar sentido? A recusa a dar sentido é uma das
disposições do ente segundo os modos de o ser se constituir na vigência do lógos e da
phýsis. É próprio da relação entre o lógos e phýsis o surgir e o encobrir. No surgimento-
encobrimento do ser, os (des)encontros se mostram. Surgir e cobrir já desencadeiam o
movimento originário em que ser e ente se correspondem. Na medida em que o ser se
mostra para o ente enquanto tal, o ente esconde o ser como vigência de todo o real.
Entendimento e desentendimento, nesse sentido, perfazem o mesmo percurso que ser e
ente sob a sua característica e vivida experiência cotidiana. Toda possibilidade de
93
entendimento já tende a um desentendimento. Nunca acontece de outra maneira. O
esforço contínuo do ser é, na vigência do sentir, consumar, de acordo com a disposição
dos entes, o sentido de cada realização na realidade do real. O vigor do sentir está
sempre presente diante das distrações do ente. Distraído, o ente se lança sobre o sentir
para tentar a busca pelo entendimento. Nessa busca, o sentir se desenvolve. Não evoluiu
no sentido habitual. Desenvolver-se aqui tem o sentido de fazer tornar-se envolto do ser
na disposição de possibilidade do ente. Então, quando o sentir se desenvolve, a
realidade se mostra como mundo e se dá enquanto real. Diante do mundo/real, o sentir
deu o homem para o entendimento do sentido. Sentida, a metafísica chamou o
entendimento do sentido de razão, de raciocínio. No entanto, raciocínio é o sentir se
mostrando dentro de um lógos que se desencobriu e ganhou a conformidade de
representação descritiva com a qual habitualmente o homem moderno ocidental lida.
Chamar o racional de emocional é uma transposição que não ilumina a natureza
originária do sentir-sentido do ser na dinâmica de cada ente.
“O que não faz sentido” e o “sem-sentido” são duas expressões do pensamento
humano que, então, colocam-se a falsear o fato que realmente ocorre. A primeira indica
um não reconhecimento do lógos enquanto phýsis. A segunda sugere de modo diferente
o mesmo. Contudo, dizendo mais: a primeira trata de dizer que o sentido não se faz/fez
e a segunda trata de uma ausência completa de sentido. A diferença se dá sobre um
aspecto parcial e um aspecto total do desentendimento do sentir. Ainda aqui, ocorre que
o lógos se colocou como encobrimento de uma phýsis descoberta, mas não disposta para
a realização do ente perante uma determinada configuração do real. A não-apresentação
de sentido é o desencontro dado num após simultâneo ao enfrentamento do encontro do
sentir com a realidade sentida pelo sentido. O sentido, quando se indispõe de algum
modo com a realidade da phýsis, gera um não entendimento, o desencontro do homem
94
com o mundo, e isso é ainda uma referência entre ambos a incidir sobre uma realidade
sentida; entretanto, torna-se uma realidade sobremaneira recusada, por alguma
circunstância, diante da realização iminente de cada ente a cada instância e instante da
vida humana. Dessa forma, não-entedimentos e desencontros com o mundo são o sentir
na recusa direta ou indireta do sentido a que o ser se dispõe enquanto ente – fazendo,
assim, a experiência do lógos e da phýsis originários outrora tão presentes no
pensamento grego antigo.
Não existe mais pensamento racional ou emocional nessa instância. Ocorre
simplesmente o movimento de ser e ente na dinâmica do real. O ser se dá enquanto ente
quando o sentir, que segue uma dada direção, depara-se com a instância de uma
realização que, naquele preciso momento, recua para o encobrimento do ser,
provocando o que se designou por desentendimento, desencontro etc. Então, sentir é ser;
e os modos de sentir se conformam na disposição dos entes junto às realizações nas
realidades do real.
“O que não faz sentido” é a rigor inviável, não tem como ter via de acesso para o
homem. O inacessível não existe. Ou melhor: existe tanto quanto o acessível. Afinal de
contas, só se pode alegar que algo é inacessível quando já vê o acesso. O inacessível
está, na verdade, na trilha do acessível, mas é lido por meio de uma dificuldade
qualquer, medida por um valor desmesurado e que se caracteriza como inacessível. Mas
“o não faz sentido” é apenas uma sentença a declarar que o mundo sentido não se
vincula mais ao sentido anterior, trilhado pela experiência do ser na dinâmica do ente. O
“sem-sentido” já se interpreta indicando que algo é destituído de sentido. Esse caso
aponta para algo pertencente ao entendimento, pois tudo é, de fato, a priori, destituído
de sentido. A posteriori, o sentir sentindo é quem dá sentido e se manifesta na dinâmica
e na medida de disposições do lógos e da phýsis. Mas tais a priori e a posteriori se dão
95
numa mesma relação de tempo. Assim, a phýsis se dá para o sentir e o lógos, pelas
disposições do sentir, recolhe-se de acordo com as possibilidades de entendimentos das
realizações do ente diante da realidade do real. “Não fazer sentido” e “ser sem sentido”
apenas apontam para interpretações que subvertem o entendimento do ser sentindo,
além de não dizerem para onde cada uma dessas declarações apelam.
2.6. A referência homem e deus: o extraordinário
Na convergência do sentir, o ser do ente se volta sempre para o religioso,
fazendo da experiência com o real a sua religião e a sua santificação, tornando-se o
consagrado de todos os tempos na história do mundo. Assim, o homem é, também,
divino.
Na lua que o céu lumina, o luminoso permanece no ser do ente do homem,
fazendo dele a iluminação a partir do e para o iluminado. Esse duelo entre o homem e o
sagrado sempre foi dos mais conturbados, sobretudo quando o sagrado ganhou uma
representação a partir de um ente divino, ou de Deus. Sobre isso, Jaa Torrano,
comentando a Teogonia de Hesíodo, diz:
Na oposição entre homem e Deus, pela qual unicamente se determina a área de atribuições e atributos de cada um dos dois, as fronteiras entre ambos são variáveis segundo a visão que deles têm as diversas culturas. A compreensão que o homem tem de sua própria essência e condição, de seu próprio corpo e das funções de seus órgãos corporais, – também não tem nada de inerente a uma natureza humana, mas é dada culturalmente, – tal como a idéia que o homem possa fazer de seu(s) Deus(es). Assim, muitas das atribuições que hoje por nós são meramente entendidas como meramente humanas, os contemporâneos de Hesíodo as entendiam como privilégios da Divindade, inacessíveis aos mortais, – e o que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus Deuses. Para Hesíodo, o mundo não é uma materialidade fundada em uma essência universalmente homogênea, subsistente por si mesma, e entregue às suas próprias leis nelas inscritas e nas quais ela em ser movimento e transformações se inscreve. [...]
96
Para Hesíodo, o mundo não é um conjunto não-enumerável de teofanias, séries sucessivas e simultâneas de presenças divinas. Cada presença, é um pólo de forças e de atributos, que instaura e determina a área temporal-espacial de sua manifestação. 49
Torrano considera o entendimento da oposição homem e Deus como uma
produção variável das diversas culturas. Mas, independentemente da pluralidade
cultural existente, é preciso estar atento ao que possibilitou, no percurso historial do
homem no mundo, a articulação, a correspondência, a co-referência entre homem e
Deus. Há aqui uma inter-ferência comum a ambos, de tal modo que os dois participam
da mesma comunidade. A relação existente entre homem e Deus só pode haver porque
existe uma co-respondência entre eles. A resposta de um é a pergunta do outro. Homem
vem de humus. Deus é a luz que penetra e fecunda o humus, a terra. A terra fecundada
deu para a luz o homem. O homem é dado sob a lumisosidade dos céus, do divino, do
extraordinário. Este se faz como luz sem precisar da ingerência de quem o lumine e é a
luz que ilumina os homens. O divino é luminoso, é luminado; o homem é
não-luminado50. Se existe alguma oposição, está justamente na relação que existe entre
a luz diurna do divino e a escuridão noturna do homem no meio do mundo. Mesmo
assim, não se trata de disposição entre a claridade e a escuridão. O homem não se
escurece. A escuridão é da conformidade da natureza do homem, isto é, ela é própria do
ser enquanto ente, para que faça da vida o convívio das diferenças existentes entre os
entes do mundo. Mais ainda: o homem é o escuro em que a verdade advém no percurso
49 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 50-51. 50 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 182. Nesse capítulo, partindo do esclarecimento sobre o método estabelecido pela gramática comparada, Benveniste diz: “A gramática comparada, por seu próprio método, leva à eliminação dos desenvolvimentos particulares para restituir a base comum. Tal procedimento não permite que subsista senão um ínfimo número de termos indo-europeus: assim, não haveria nenhum termo comum designando religião, o culto e o sacerdote, e sequer nenhum deus pessoal. Em suma, de comum restaria apenas a noção de ‘deus’. Esta é bem documentada sob a forma *deiwos, cujo sentido próprio é ‘luminoso’ e ‘celeste’; nessa qualidade, o deus se opõe ao humano, que é ‘terrestre’ (tal é o sentido da palavra latina homo)”.
97
da alétheia, como o não-esquecimento da luz, trazida ao mundo para realizar a presença
do homem como o também divino. A luz da presença do divino dá luminosidade ao
homem, tornando-o o ser-lembrança por meio da e na phýsis neste mundo. A memória
do homem, sendo lembrança do divino e desencadeada pelo movimento da luz como
verdade, se dá como não-esquecimento do ser do ente na dinâmica do homem no
mundo. A luz do céu, do divino, do extraordinário, resultante da união de Zeus com
Memória, é o fato que torna possível apreciar a existência do homem como sendo
aquele nascido para e pela luz dos céus para lembrar de ser, pela luz, iluminado e,
assim, proporcionando o não-esquecimento do ser do ente. Assim, o homem e o divino,
sendo o mesmo, são igualmente trazidos à presença da luz, mediante a correspondência
de um no outro.
Sobre tal correspondência, é possível entendê-la a partir do comentário tecido
por Jaa Torrano sobre o pensamento mítico e a questão da alteridade e da ipseidade:
Na verdade, o pensamento mítico, servindo-se de figuras não-
conceituais, de imagens concretas e de ideações plásticas, servindo-se de relatos e de fábulas (i. é., disto em que se constituem propriamente os mythoi e os hieroì lógoi, os “mitos” e os “relatos sagrados”), coloca em seus próprios termos (i. é., em termos míticos) o problema da relação entre a Alteridade e da Ipseidade: Zeus é ele-Mesmo e é o outro; o Outro é tanto Outro quanto é o Mesmo.
Já havíamos nos referido anteriormente à importância fulcral e ao vigor que tem na organização do pensamento arcaico a coincidentia opositorum. Evidencia-se agora que a concomitância como forma de relação entre os eventos (a qual exclui e substitui a relação de causa e efeito) implica o problema da relação entre Alteridade e Ipseidade: é o fato de a Alteridade e a Ipseidade darem-se tanto como coincidência quanto como diferença que torna possível a relação de concomitância entre os entes e eventos a excluir e substituir a relação de causa e efeito.
A Alteridade coincide com a Ipseidade tanto quanto dela difere: o Outro é o Mesmo (coincide com o Mesmo) tanto quanto é – na referência ao Mesmo – o Outro (difere de si mesmo). Zeus é os Ciclopes e os ciclopes são atributos da essência de Zeus tanto quanto os ciclopes são os ciclopes (e não Zeus) e Zeus é Zeus (e não os ciclopes).51
51 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 77.
98
Dessa maneira, pode-se dizer que o homem é o divino tanto quanto o divino é o
homem, na mesma dimensão em que o homem, enquanto divino, é sagrado; e o divino,
enquanto homem, se sacraliza como sendo da e para a terra, em humanidade. A
alteridade e a ipseidade existente entre o homem e o divino estão na mesma referência,
em face de o homem, como escuridão que é, se deixar ser o iluminado na luz dos céus
de deus. O céu do deus é luz para dar luz ao iluminado, mas isso não se apresenta como
a tarefa da luz como presença para o homem. É próprio da luz iluminar e próprio do
homem ser luminado por essa mesma luz. Essa relação, entre o que está na
profundidade do céu e o que se coloca na superfície da terra, se abre como a clareira que
guia os passos dos dias e das noites do homem junto à phýsis e ao lógos, e na medida
em que Mnemosyne evoca a humanidade da terra diante da alétheia do ser do ente. Na
profundeza da luz, o divino se apresenta ao homem que, iluminado, mostra-se saído das
entranhas para a superfície da terra. A diferença entre homem e deus não se estabelece
no sentido de oposição entre o divino e o mundo, o céu e a terra. A diferença de cada
um acontece no outro, pelo outro e com o outro. Deus se presentifica como luz dos céus
no extraordinário do mundo que é o homem. O homem, morador do extraordinário,
nasce apontado para o céu, locomovendo-se em direção ao divino na tentativa contínua
de des-encobrimento e de re-velação da verdade religiosa do ser do ente. Lidar com a
sua religiosidade é o caminho de (re)integração com a verdade face a disposição do ser,
no sentido de que a luz dos céus faz do homem ele próprio, tendo em vista o apropriar-
se da luz do divino como participante da busca pelo que encoberto tende a se
desencobrir.
A clareira do homem é o deus, o divino, o extraordinário. Se o extraodinário
surge como apelo fundamental do sentido do ser do ente do homem, é possível supor
99
que o pensamento do homem se orienta pela, na e com a luz dos céus, num esforço
incessante do percurso de cada experiência do ser na dimensão do ente. A escuridão do
homem na referência originária da vivência sob a luz do divino permite a interseção
entre o homem e o deus. Ambos se buscam numa permuta irremediável, já que cada um
se presentifica diante de um si mesmo, que é o outro. O homem é o divino, porque dele
se faz também participante a luz dos céus. A luz dos céus só se disponibiliza como
clareira em razão de o mundo ser o lugar de morada da escuridão a desencadear a
iluminação do ser do ente.
Escuridão não é aqui o que turva e torna o homem cego. Ela é a via de acesso
para a luz da presença do divino que caminha por essa via em referência ao ser do ente
do homem. Esse é o acontecimento originário da constituição do ser do ente. E assim
caracterizado, o divino participa do homem, e o seu contrário, à medida que, na
luminação do céu-do-deus, o deus e sua sacralidade proporcionam ao homem toda a sua
existência na história do mundo. Essa é a história do homem e do deus. Deus só passou
a ser tomado como existente quando a luz da sua presença deu visibilidade ao homem,
no nascimento de verdade deste e no percurso da história da terra, enquanto solo e
fecundação.
A história do divino que é a do homem é, mais do que a do surgimento da terra,
a do fecundar das águas dos céus do deus a inundar a terra de terra e fazer nascer o
homem como o seu divino. O divino da terra é o homem, por isso, já estava dado ao
homem, desde sempre, humanizar-se, sair da terra e nela entrar para manter a sua
correspondência, humanizando-se com o divino do solo e tornando-se, mais do que
qualquer outro, aquele que tem por propriedade viver, na humildade do mundo, a
humanidade da terra, nascida com a semente luminosa dos céus.
100
Não existe a possibilidade de o divino nascer e de a terra dar a presença da luz
dos céus, se não houver o nascimento do ser do ente por meio da inseminação do
sagrado no seio da terra e se tal inseminar não se der como a fecundação referencial do
homem, que é desde já e sempre apontado para o extraordinário. A morada do homem é
o extraordinário. O extraordinário é, nesse sentido, o mundo. Mundo é, por sua vez, o
que congrega como sagrado o homem e o deus, o divino. Tal reconsideração provém da
ligação de Zeus com Mnemosyne. A memória é que possibilita ao homem fazer a
experiência de reencontro e convívio ab originem com o divino, sendo ele mesmo o
outro; e outro, ele mesmo. A alteridade existente entre o homem e o deus decorre de
uma relação de ipseidades existindo em íntima compertinência. Intimidade essa que é
parida pela terra. Ser parido pela terra é o destino da humanização da humanidade do
homem, tendo em vista a correspondência originária entre ente e ser. Entre o ser e o
ente, enquanto tal, o homem vive o encontro das ipseidades de cada ser. Isso ocorre
junto ao conflito emergencial das experiências disponibilizadas pelas caracterizações e
atributos do ente. Essas colocam as alteridades como as vigências acessíveis e
provenientes da referência de cada ser. O vigor de cada ipseidade se potencializa na
correspondência com outras ipseidades, permanecendo no seio da terra e estabelecendo
a íntima e originária disputa das alteridades. A alteridade existente no mundo é a
ipseidade enquanto ente na inter-relação e na co-respondência com o ser do homem. O
movimento de esquecimento e de não-esquecimento do ser é onde a verdade se coloca a
partir da atitude de Mnemosyne. Diz Jaa Torrano, comentando a união de Zeus com
Memória:
O poder de Zeus, centrado no espírito (epí-phron), dá-se como
o gerador e o sujeito dessa grande percepção (mégan nóon) em que seu cônjuge Memória gera as forças do Canto (=Musas) pelas quais os nomes-numes se fazem presentes como presenças configuradoras da totalidade do que se desvela e do que não se desvela.
101
Longe de se esgotar em sua acepção psicológica, Memória é uma potência cósmica, que nasce da cópula do Céu e da Terra, esses fundamentos inabaláveis dos Deuses e de Tudo, assim como deles nascem a Visão (Théia), a fluência (Rhéia), a Luminosidade (Phoíbe) e a Instauradora-Nutriz (Téthis).
Memória, que mantém as ações e os seres na luz da Presença enquanto eles se dão como não-esquecimento (a-létheia), gera de Zeus Pai as Forças do Canto, cuja função é nomear-presenticar-gloriar tudo quanto a de deixar cair em Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno Não-Ser tudo o que não reclama a luz da Presença.52
As ações e os seres se dão como não-esquecimento, porque na sua escuridão o
ente permanece como desvelamento velando o ser. Somente sob a vigência da presença
da luz do divino, o homem é dado para o mundo enquanto tal e é fecundado pela relação
entre o deus e a terra. Deus, luz do céu, configuração do divino, sacraliza-se como
sagrado porquanto integra o mundo, vivendo sempre dentro da terra a semear o ser do
ente enquanto homem. O homem nasce dessa íntima relação de exercício de
humanização do divino no seio da terra. A propósito da humanização do homem, é
comum ouvir dizer que “o homem precisa se humanizar”. Em princípio, essa sentença
parece conceber o homem como destituído de sua própria humanidade. De fato, ele
assim se comporta. Deve ser motivo dessa crença o fato de que o homem não está
humanizando quando suas ações revelam um comportamento que vai de encontro à
manutenção da referência aos outros homens, colocando em risco a existência do
conjunto, ora chamado de humanidade, ora de sociedade. Então, parece que o
entendimento é o de que a desumanidade da humanidade do homem coloca em xeque a
existência da sociedade.
A sentença “o homem precisa se humanizar” aponta na direção da falta.
Enquanto ente, sempre tentando o encontro fugidio frente ao desvelamento do ser, o
homem surge como o carente de uma permanência de contato com a terra, posto que
52 TORRANO, Jaa. “Três fases e três linhagens”. In: HESÍODO. Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 70.
102
passou a desconhecer o sentido do relacionar-se com a humanidade deste mundo. A
falta de humanidade é a falta da terra no ser do homem enquanto ente. Isso mostra o
quanto a desumanização atesta o status do homem atual. Na atualização do mundo, o
homem se desatualiza no ritual de desumanização do humano e percorre a superfície da
terra sem destino diante do conhecimento do mundo no território do seu próprio modo
de mostrar-se frente às realizações da realidade. O aparte dado entre o homem e o
humus o deslocou no percurso histórico da humanidade. Tendo em vista o mundo atual,
é possível entender que essa separação aponta para a ruptura existente entre o homem e
o deus e para a luz da presença do divino que estaria sempre a fazer da escuridão da
noite o freqüentar a clareira que se abre como dia sobre o homem. Com isso, ele perdeu
a sua sacralidade a sua santidade.
2.7. Santo e sagrado: o (re)colher-se na terra para o divino
Caberia a essa altura tentar olhar para o porquê de o homem ser também o santo
como participante da ação do divino. Foi dito aqui que o homem é também divino. Isso
decorre de ser ele também o santo, estar sempre comprometido com o sagrado e dele
participar à medida que vive na companhia da luz.
O sagrado (do latim sacer53) possui na sua origem um caráter ambíguo. Ele é o
“consagrado aos deuses e carregado de uma mácula indelével, augusto e maldito, digno
de veneração e despertando o horror”54. Certamente, essa consideração não pertence
mais ao entendimento atual, mas importa notar que o sagrado, sendo o “consagrado aos
deuses e carregado de mácula”, era o destino do homem determinado pelas forças de
interseção entre o céu e a terra. Na consagração aos deuses, o homem é posto na 53 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 191. 54 Idem, p. 189.
103
companhia daquilo que permanece como presença do seu percurso histórico. Estar na
companhia dos deuses e sob eles se inserir e diferenciar é o que apresenta a imagem da
consagração junto ao divino, ao(s) deus(es). Carregado de mácula, o homem está na
perspectiva do viver a necessidade de um contato e uma interferência urgencial com os
céus, para que, mesmo cheio de mácula, faça-se como partícipe de um mundo no qual o
divino é mais do que uma reivindicação de precariedade intelectual, traçando os
percursos do mundo sob a égide de um primitivismo qualquer na sua maneira de pensar,
ser e agir. O divino é a figura da presença sempre emergente para dar ao ente o amparo,
a proteção e a permanência de um convívio, a fazer com que o homem se reencontre
como o que está sempre a pender para a consagração de sua existência.
O homem é carregado de mácula significa: ele é o detentor da mácula, não a
carrega como sendo o suporte da mácula do mundo. Ela, no entanto, é proveniente do
gesto da fecundação do céu com a terra. A mácula é, de algum modo, o registro da
ruptura do homem trazido à superfície do mundo. Porque para nascer rompe o corpo da
mãe terra, o homem carrega consigo não o infortúnio do mundo, mas o registro e a
cicatriz que demarcam a presença de seu nascimento como não-divino, não-luminado,
diante da luz de deus no céu de todo o destino.
Ser detentor da mácula não é a indicação de uma desgraça, uma condição que
confina o homem em uma vida de intempéries contínuas, confirmando o status de sua
inferioridade no inferno histórico de sua humanidade. Isso implicaria entender que o
homem, nascido da terra e provindo de suas regiões inferiores, estaria destinado a
retornar para ela. Mas o percurso dele é de, depois de viver suas realizações como
desgraça do mundo, tender a se reencontrar, no fim de sua experiência terrena, na
inferioridade da terra, sua mãe e seu inferno.
104
O homem é decerto o desgraçado, porque é originariamente sem graça. A graça
do mundo é o deus. A graça do deus é engraçar o homem para que, congraçado, ele
possa estar disponível para as possibilidades de sua consagração em direção ao divino.
Assim, é possível entender que o destino do homem no mundo é viver nas mediações de
uma convivência com o divino. A sua religiosidade consiste no fato de que o homem de
algum modo só se coloca assegurado de sua humanidade, como nascido do humus, a
partir do momento no qual ele compreende que já estar humano é se orientar da e na
terra. Assim, ele seguirá sempre guiado pela luz de deus a diluir as sombras dos seus
passos na superfície do mundo, norteando as suas experiências.
O homem grego antigo, e talvez o de todas as sociedades que se mantiveram e
mantêm até hoje comprometidas com esse modo de agir, parece ter entendido melhor do
qualquer outro o que é o gesto do nascer. O homem, aliás, não nasce. O homem não
consegue realizar o nascer; ele é sempre nascido. Da semente, dá-se o nascimento. Mas
nem a semente faz nascer. O papel da semente é acontecer como nascimento. Desse
modo, a semente é o que dá nascimento como, para e no mundo. O mundo é, nesse
sentido, a maior sementeira. Como phýsis, ele é a semente de todas as sementes. Deu a
todas elas os seus modos de acontecerem como tais diante da luz do mundo, como
evento inerente ao divino.
Isso estabelece no homem o seu sentido sagrado. Consagrado, o homem se
tornou santificado pelas benesses do divino. Pela santificação, o homem pode vir a ser
designado nesse mundo como santo, trazendo à presença o caráter sagrado do divino e
vivenciando, pelo modo humano do mundo e pelas participações nos ritos religiosos, os
poderes de deus sobre a terra, sobre a humanidade do homem.
Sobre o entendimento que determinou a participação do homem como santo,
fazendo a experiência do sagrado, Benveniste diz:
105
[...] é sanctum o que está apoiado por uma sanctio, forma abstrata da palavra sanctum. Vê-se em todo caso que sanctum não é o que é “consagrado aos deuses”, que se diz sacer, nem o que é “profano”, ou seja, o que se opõe a sacer (sanctum – grifo meu) é aquilo que, não sendo nem um nem outro, é estabelecido, firmado por uma sanctio, aquilo que é defendido de qualquer ataque por meio de uma penalidade, a exemplo das leges sanctae.
[...] A diferença entre sacer e sanctus se mostra em diversas
circunstâncias. Não se trata apenas da diferença entre sacer, estado natural, e sanctus, resultado de uma operação. Diz-se uia sacra, mons sacer, dies sacra, mas sempre: murus sanctus, lex sancta. O que é sanctus é o muro, mas não o domínio cercado pelo muro, que se diz sacer; é sanctum o que é defendido por certas sanções. Mas o fato de entrar em contato com o sagrado não resulta no estado sanctus; não existe sanção para quem toca o sacer e assim se torna também sacer; ele é banido da comunidade: não o castigam, e tampouco a quem o mata. Dir-se-ia que o sanctum é aquilo que se encontra na periferia do sacrum, servindo para isolá-lo de qualquer contato.
Mas essa diferença se vai abolindo aos poucos, conforme o antigo valor do sagrado se transfere para a sanção: sanctus já não é apenas o murus, e sim o conjunto do campo e tudo o que está em contato com o mundo do divino. Não é mais uma definição de caráter negativo (“nem o sagrado nem o profano”), e sim uma noção positiva. Torna-se sanctus aquele que se encontra investido de um favor divino, e assim recebe uma qualidade que o eleva acima dos humanos; seu poder o converte num ser intermediário entre o homem e a divindade. Sanctus se aplica aos que são mortos (os heróis), aos poetas (uates), aos sacerdotes e aos locais por eles habitados. O epíteto acaba sendo aplicado à própria divindade, deus sanctus, aos oráculos e aos homens de autoridade. (...) Aqui se consuma a evolução: sanctus agora qualifica uma virtude sobre-humana.55
Ainda que sanctus tenha sido outrora o não passível de sanção, por tocar o sacer,
também se tornava sacer. Mesmo banido da comunidade, estava a partir de então dado
como sacer. Então, lendo o que também pode ser lido, o que se tem é: o homem se torna
sagrado quando se deixa tocar pelo sagrado. Em contato com o sagrado, o homem não
se torna o santo propriamente dito. O sagrado e o santo não comungavam da mesma
experiência nos primeiros momentos de convívio com o divino. O sagrado era
entendido e experienciado como não pertencente à experiência do homem santo. Santo
era o que recebia a defesa do divino por meio de sanções. O sagrado foi tido como um
55 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 191-192.
106
aparte, porque tinha a sua qualidade como absoluta, pertencia a um outro eixo e modo
de ser que não partilhava a experiência do humano como santo; este podia tornar-se ou
não santo, dependendo da ingerência das sanções a ele atribuídas. Assim, o sagrado,
como sacer, era uma designação da autonomia da existência do divino, mas mostra “um
estado de afastamento, uma qualidade augusta e nefasta de origem divina, que se separa
de qualquer relação humana”56; o santo, por sua vez, era dado pelas ocasiões de
presença do divino. O sacer era o divino e o céu no mundo; o santo acontecia como o
freqüentar do sacer se dando por meio da intervenção do divino no homem desse
mesmo mundo.
No entanto, surge, ao longo do percurso de compertinência entre o sagrado e o
santo, a transferência das atribuições do sagrado para o santo. Santo passava a ser
entendido, então, como o que participava do divino pela experiência do contato com ele.
Por isso, o homem faz parte da santidade do divino. Importa notar que os mortos, os
sacerdotes com os locais por eles habitados e os poetas passavam a ser entendidos como
os que experimentam o sagrado a parir de sua santificação, tornando-se os santos desse
mundo. E aqui interessa observar que os poetas são colocados como homens santos.
Mas por que isso? Por que também os poetas são santos? Os poetas originários do
mundo grego antigo talvez possam ser vistos como os que já constantemente se
colocavam em relação com os deuses-deusas que viviam sob a evocação, a proteção e a
orientação para que os grandes feitos do divino fossem dados para a experiência do
homem. Na verdade, as Musas cantavam o canto que orientava os aedos para mostrar o
destino histórico do homem no e sobre o mundo da terra, indicando que a sua
mundidade se consagra pelo exercício permanente de sua humanidade. O aedo – o
homem en-cantado pelo canto divino das musas – era o que, por meio da melodia e do
56 Idem, p. 206.
107
ritmo dos cantos, entendia os compassos de vida a serem convividos pelo homem junto
ao sagrado, para fazer a humanidade partícipe dos ceús, entendendo que o deus e o
homem são um só no espírito de co-operação, para vivenciaram conjuntamente a
experiência do humano, que é a do divino. O divino opera no mundo junto ao homem e
nunca o deixa de fora. Essa perspectiva mostra aquilo que talvez seja um traço
diferenciador, sobretudo, no que diz respeito ao comportamento do homem grego antigo
fazendo a experiência com o sagrado.
Isso pode ser observado já na Teogonia de Hesíodo. Jaa Torrano explica essa
condição sagrado-religiosa do aedo e do seu canto da seguinte maneira:
Essa múltipla e uníssona voz das Musas e Cantar no mesmo
Canto com que o Cantor (scilicet o aedo) ao cantar presentifica a Totalidade Cósmica ante a si mesmo e a seus ouvintes – é, para esse Cantor e seus ouvintes, a mais forte experiência da realidade, justamente por ser, para eles, a experiência em que Se dá a Presença Divina.
As Deus Musas cantam no Olimpo para deleite de Zeus o mesmo Canto que o aedo servo das Musas, pela outorga que estas lhe fizeram, canta – não só para o deleite dos ouvintes mortais – mas também para a manutenção da vida, para a vivificante comunhão com o divino, para a transmissão do Saber e para que se possa ter visão da Totalidade do Ser.
[...] No Encanto do Canto – na força dessa poesia oral arcaica – é
que se experimenta a Mais Forte Realidade, O Que Se dá como Presença Divina. Essa experiência numinosa – i. é., essa experiência em que o Nume (=Deus) Se dá – da linguagem e particularmente do Canto é a experiência em que mais fortemente se vive como percepiente, com a alertada e acesa atenção ao que se ouve e ao que se canta. A experiência numinosa do Canto é a audição de palavras-seres, de palavras-presenças. A Palavra-Presença, i. é., a Voz Múlitpla e uníssona das Musas encarnada na voz do aedo, mais do que ouvida é percebida: é vivida e vista na arcaica concretude em que se reúnem e se con-fundem o nome e a coisa nomeada. A percepção humana que percebe esse Canto iluminador da a-létheia presentificador da Presença Divina e da Totalidade Cósmica coincide com a grande percepção de Zeus no Olimpo [...]57
57 TORRANO, Jaa. “A presença do Nume-Nome”. In: Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 94-95.
108
Nesse comentário, é possível perceber que a relação estabelecida com o sagrado
é, sobremaneira, diferente da que se deu momentos depois na história do mundo
ocidental, comparando-se com o que originariamente o sentido da experiência latina
acarretou sobre sacer, o sagrado por si, e sanctus, o sagrado dado como sanção.
Não obstante na experiência latina fosse de algum modo dada a participação
junto ao divino, isso aconteceu de maneira muito mais patente na experiência do mundo
grego antigo. Ainda que desprezada e destituída de valor no pensamento ocidental
moderno, vale à pena por alguns instantes reapreciar a experiência grega antiga; não
como saudosismo inglório, mas como (re)aprendizagem de uma forma de entendimento
do ser do ente humano fazendo a experiência do real.
O homem grego antigo, precisamente, o arcaico, dos tempos dos cantos
hesiódicos, era aquele que participava da experiência religiosa do divino fazendo,
trazendo para a realidade concreta do mundo a força de reunião que se conformava
como o pacto de convivência existente entre as Musas e Zeus, as Musas e o Aedo, o
Aedo e Zeus, o canto divino e o homem, as Musas e o homem, o homem e o mundo do
divino. O Deus ficava assim no “centro do convívio dos homens, canta a Si Mesmo e à
totalidade do Ser e percebe a Si mesmo, a seus ouvintes (mortais e imortais) e à
totalidade do Ser como o Canto de múltiplas e uníssonas Musas.”58. Ele estabelece para
o homem o entendimento do que é mundo. Para o homem grego que viveu nos tempos
de Hesíodo, o aedo originário, deve-se também lembrar que:
O Mundo (Mundus = puro, con-sagrado) é o Canto das Musas,
as quais não são senão a teo-cosmo-fânica função do Cantar, explicitações do Ser de Zeus e da Memória (e estes Zeus e Memória são explicitações do Ser inconcusso e primordial da Terra-Mãe, fundamento de tudo e de todos os mortais e Imortais); – e, sensuais e fecundas, infundindo a volúpia de ouvir, ver e Ser, as Musas são o
58 TORRANO, Jaa. “A presença do Nume-Nome”. In: Teogonia; a origem dos deuses. 5.ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.96.
109
Canto Mundificante (teogônico = cosmogônico e con-sagrado) Ouvido por Si Mesmo Que O Canta.59
Tal entendimento mostra como o divino acontecia no homem. O sagrado do
mundo era a presença do divino se dando como acontecimento primordial, fazendo do
canto a palavra-presente a configurar a realidade existente e toda a experiência com a
terra. Tal experiência com a mãe-terra era o saber-se sob a diligência do divino a guiar a
palavra pelo aedo e, com isso, trazer à tona da realidade a presença de deus e das
deusas, mostrando a concretude de um agir que, de longa data, já não acontece mais no
mundo ocidental moderno. Tal concretude se colocava para o homem como o divino
atuando por meio da phýsis, a instaurar sempre de modo inaugural, nunca conceitual, a
ordenação das experiências que se mostravam dizíveis pelo pronunciamento divino do
legein originário das Musas, realizando a experiência do humano com o divino e, assim,
consagrando o homem à sua humanidade. O homem con-sagrado pelo canto das musas,
canto entendido e interpretado pelo poeta-cantor, só se dava como entendimento e
interpretação, porque se mostrava compreensível e não alegórico, ou não metafórico, na
medida das experimentações vividas pelo próprio aedo; e, assim, fazia do canto não
algo a participar externamente do real de cada homem, mas fazia a totalidade do ser dos
homens integrante e consumada da experiência sagrada do mundo, acontecendo na
dinâmica dos movimentos de humanidade do humus-humano na con-vivência da, na e
com a terra. Desse modo, o homem entendia o papel da mãe e do pai do mundo como
divinos, como a presença do sagrado. Viver tal experiência era o mesmo que perceber,
como presentificação do ser do ente, a disposição de orientação dos entes diante da
dinâmica sagrada do mundo e junto ao(s) deus(es). Assim se dava o caráter religioso do
divino do mundo atuando em íntima relação e realização de experiência com o sagrado
59 Idem, p. 96.
110
no mundo grego60 de Hesíodo. Isso, é claro, mostra uma dinâmica diferente da que o
homem romano e os outros homens do mundo, inclusive o moderno, entendem quando
fizeram e fazem a experiência com o sagrado. Não é uma experiência melhor nem pior a
que se coloca atualmente, mas, de certo, tal atualidade não conversa no cotidiano com o
deus da mesma maneira que o homem grego arcaico hesiódico. Há de se alegar que seja
natural tal mudança, que é natural de realmente acontecer. Então, diz-se que o mundo
evoluiu e essa foi a tendência, a direção e a postura assumidas pelo homem, sobretudo,
em razão de um percurso político-religioso talvez muito mal experimentado pelo
homem ocidental e, em princípio, bem demarcado com a experiência da cultura judaico-
cristã nos seus dois mil anos com a(s) igreja(s) e muitas das outras instituições
religiosas. É mesmo muito provável pensar que os que hoje alegam distanciarem-se do
deus assim o façam por não admitirem as formas de agir, condicionadas por séculos de
“gestos religiosos” equivocados. O entendimento do religioso foi posto tal qual uma
ativação e determinação de caráter eminentemente político. E essa politização do
religioso e do sagrado se mostrou como uma forma de exercício de poder de regulação
da cultura, da crença, da vida do homem como um todo. Essa tentativa política da
regulação do comportamento se colocou na história do mundo como a amiga força de
repulsão que afastou o homem do deus, desfazendo a experiência que no distante de
60 BENVENISTE, Émile. “O sagrado”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. Nesse capítulo, tratando do sagrado sob o ponto de vista da experiência grega, Benveniste, depois da releitura em que hierós (um dos termos para designar o sagrado) acontece nos contextos homéricos, chega à seguinte interpretação do sentido em grego: “Em hierós,... vemos uma propriedade ora permanente, ora incidental que pode resultar de um influxo divino, de uma circunstância ou uma intervenção divina.” (v. p. 198); já sobre hágios (o segundo termo para usado para designar o sagrado) não há uma distinção tal clara sobre os significados, apesar das citações de Heródoto e Estrabão. Mas em determinado momento da explicação, Benveniste arrisca a dizer que “A relação entre hierós e hágios em grego parece muito equivalente à relação entre sacer e sanctus, a grossos traços. Sacer e hierós ‘sagrado’ ou ‘divino’ são empregados para a pessoa ou a coisa consagrada aos deuses, ao passo que tanto hágios quanto sanctus indicam que o objeto está protegido contra qualquer violação, conceito negativo, e não, positivamente, que esteja carregado da presença divina, que é o sentido específico” (v. p. 204). No entanto, como conclusão do capítulo, o próprio Benveniste entende que existe uma reciprocidade de entendimentos correspondente tanto a hierós como quanto a hágios. Assim, ele encerra o capítulo dizendo o seguinte: “Enfim, hierós e hágios mostram claramente o aspecto positivo e negativo da noção (de sagrado): de um lado, aquilo que está animado por uma potência e agitação sagrada, de outro lado, aquilo que é proibido, devendo-se evitar contato”. (v. p. 206).
111
outrora aconteceu com o nome de sagrado, de divino, proporcionando o entendimento
da vida na totalidade e consolidando a dinâmica dos entes humanos diante da realidade
do ser.
A experiência religiosa do homem é realmente a do divino, na co-participação de
um no outro, apontando sempre para o mesmo sentir e sentido, trazendo à presença o ser
mediante a disposição do agir dos entes. O agir humano era divino, porque provinha do
divino e nele se deixava como dis-posição do ser à vivência experimental do ente de
cada homem.
A religiosidade existente, vale ponderar, não é a que se entende hoje. O religioso
atualmente é o que tem religião ou algum compromisso de comunhão com o seu Deus.
No mundo grego arcaico não existia religião, mas se entendia bem a dinâmica com o
religioso.
112
3. Cultura e indefinição
O conceito de cultura segue caminhos confusos, em determinações que
normalmente não dão conta do que a ela podem ser conferidas. Um dos problemas
basilares talvez seja considerá-la a partir da noção de conceito. Cultura não se presta a
uma conceituação de limites bem delineados. Cultura não se define porque sempre se
expande. A natureza de todo e qualquer movimento do que se costumou chamar pelo
nome de cultura não dá na correspondência de um limitar, mas de um ilimitar. Ela não
se limita. Qualquer definição a priori já limita.
Assim, quando se encontra uma definição como: “a idéia de ‘cultura’ como
‘cultivo’ de capacidades humanas e como o resultado do exercício dessas capacidades
segundo certas normas”61, já se deparam dificuldades patentes de fazer ver o que está
realmente determinando cultura. Nela, eliminaram-se todas as singulares de saberes
adquiridos na ordem do tempo dos diversos povos e suas comunidades. Nem mesmo é
possível perceber o que é esse “cultivo” de capacidades humanas. A rigor, o cultivo é o
plantar de alguma coisa, mas muitas coisas são plantadas e não são colhidas. Ou ainda:
mesmo colhidas, essas coisas muitas não são suficientes para fazer parte do que se
chama habitualmente de cultura. Falar também que cultura é “o resultado do exercício
dessas capacidades” é demasiado impreciso. A definição não define as capacidades
plantadas e trata a cultura como o plantio e a colheita de um não se sabe o quê. O
conceito de cultura não mostra a cultura. Aliás, a rigor, nenhum conceito trata mais da
coisa conceituada, porque o conceito de uma coisa não é mais a própria coisa.
61 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626.
113
A definição mencionada “é, não obstante, muito anterior a toda idéia formal de
cultura no âmbito do sistema da sociedade”62. Se ela é então uma definição pré-tida ao
enfileirar-se de muitas outras definições, já se vê que o problema do defini-la estava
instaurado mesmo na origem. Na história das conceituações arbitradas, associou-se com
muita freqüência uma série de correlações, tais como a de cultura com natureza, depois
com o homem etc. Vale, a título de curiosidade e registro desses momentos, trazer à
baila algumas dessas considerações a respeito de cultura, como testemunho da
fragilidade e da falência a que se destinaram muitos dos caminhos trilhados.
Houve, já entre os gregos, freqüentes disputas acerca da diferença entre o que se denominou posteriormente “estado de natureza” (natureza) e “estado de cultura” (civilização). Um dos aspectos mais conhecidos dessa diferença é o contraste estabelecido pelos sofistas entre o que é “por natureza” (fu9sei) e o que é por convenção ou por “lei” (no0mw). Manifestaram-se posições muito diversas: a cultura é um desenvolvimento da Natureza; a cultura é algo em princípio contraposto à Natureza; a cultura representa um obstáculo ao desenvolvimento “espontâneo” da Natureza etc. Os cínicos, por exemplo, proclamaram sua oposição a tudo o que não fosse a “simplicidade” natural, sendo a cultura considerada um sinal de corrupção e decadência.63
Parte do pensamento grego, após o surgimento do que se chama de filosofia no
mundo ocidental metafísico, considerou a cultura por muitos caminhos conceituais,
todos eles distanciados de uma apreciação não definidora. Na base desses conceitos
estão dois caminhos para cultura, o que é natural, espontâneo, e o que é não natural,
não-espontâneo, provavelmente confeccionado pelo homem. Nesse passo, houve um
desacerto sobre o que é cultura: de um lado os partidários da primeira posição e, de
outro, os da segunda. Então, cultura era ora a manifestação do natural, ora do produzido,
mas não pela natureza. Como parece que não se sabia mais ao certo o que era da ordem
da natureza e o que era da ordem do produzido, a discussão sobre cultura foi, desde
62 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626. 63 Idem, p. 626.
114
então, no seu cerne, posta de lado, desviada do caminho. Na verdade, na busca pela
conceituação de cultura, já estavam em jogo a disputa pela escolha de seus predicativos
e de suas atribuições mais gerais. Mas cultura não parecia, a rigor, nem uma coisa nem
outra. Era preciso entender, no desentendimento do mundo, a natureza e a não-natureza
para que, depois dessa luta, a vitória do conceito permanecesse clarificada.
Em tempos mais recentes, é outro o caminho conceitual de cultura. Ele aponta
para a correlação com o que é da ordem do humano e do não-humano. É isso o que
verifica no seguinte comentário do verbete anteriormente citado.
Hoje, fala-se de “Natureza” e “cultura” principalmente com os
seguintes propósitos: 1) distinguir dois aspectos da realidade: o humano e o não-humano; e 2) distinguir dois aspectos no ser humano: o natural e o cultural, ou, como também se chamou, o “espiritual”. 1) e 2) podem ser interpretados ontologicamente ou metodologicamente, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Na interpretação ontológica, supõe-se que natureza e cultura diferem basicamente. Na interpretação metodológica, supõe-se que natureza e cultura podem formar uma espécie de contínuo, mas que convém usar métodos distintos para cada um dos “aspectos” ou “fases” desse contínuo. Na interpretação ao mesmo tempo ontológica e metodológica, avalia-se que há uma diferença real entre natureza e cultura e que essa diferença se reflete nos métodos utilizados para estudar cada uma delas.
Foi mais comum associar a cultura ao ser humano; a maioria das opiniões apresentadas...segue esse caminho. (...) 64
Aqui, observa-se o destino da cultura: ela não é senão a discussão existente entre
o que é humano e o que não é humano. Mas caberia já inspecionar, sobretudo, o que
nessa discussão é o não-humano. Ele parece ser tudo o que não participa do homem. Se
tudo o que não é o homem é o não-humano, então, estaria, porventura, em jogo o
comportamento dos minerais, dos vegetais e dos animais? É algo muito curioso o
caminho que a discussão pode ter tomado, se é realmente esse o viés do destino do
conceito de cultura. Enfim, a disputa por tal conceituação se coloca agora sobre dois
eixos, que, na verdade, são os mesmos: o homem e não-homem. 64 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 626.
115
Interessante ainda notar o comentário dado pelo verbete de que há a
possibilidade de a interpretação se dar pela ontologia e pela metodologia. Parece
estranho. Por que haveria de algum caminho interpretativo estar impedido, e por que
foram apenas esses dois os caminhos escolhidos? Parece preconceituoso não escolher a
interpretação sociológica, a fisiológica, a psicológica, a econômica, a política, a
historiográfica, a literária, a lógica, a matemática, a biológica, a astrofísica e outras mais
– tantas quantas venham a existir – nesse percurso de montagem conceitual do que é
cultura. Além disso, dizer que há a possibilidade, nesse caso, de interseção das duas
interpretações é pouco produtivo e eficiente para o definir, já que, em razão do rigor
etimológico do nome “de-finir”, há de se partir de duas finitudes, a ontológica e a
metodológica, para conseguir uma de-finição que torne a compreensão sobre o que é
cultura algo realmente bem finito, bem delimitado. Nesse caso, talvez haja uma espécie
de incompletude ou parcialidade em cada processo interpretativo que não se sustenta,
mas se torna subsistente quando em conjunto, a ponto de se chegar ao âmago do que
seja cultura.
Para mostrar um pouco mais o que se discutiu até hoje sobre o que é cultura, há
de se observar que ela já teve uma acepção mais ampla, mais aberta, por assim dizer.
Isso é o que mostra a seguinte passagem:
Muitos filósofos – e, em todo caso, a maioria dos “filósofos da
cultura”, antes mencionados – tenderam a dar ao vocábulo ‘cultura’ uma acepção extremamente ampla. Se com isso eles querem dar a entender que as atividades humanas não estritamente naturais – como seria o caso, por exemplo, das atividades biológicas (sem nem mesmo nelas incluir as sociobiológicas) – são atividades culturais, esta acepção ampla é admissível. Nesse caso, pode-se denominar “cultura” tudo aquilo que o homem faz e que o leva a “objetivizar” suas atividades em produtos, que passam a fazer parte de um sistema cultural transmitido de uma geração a outra e oportunamente modificado, e às vezes até mesmo radicalmente transformado.65
65 MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 627.
116
A amplitude da definição consiste, então, em conferir à cultura o
estabelecimento das atividades humanas não especificamente naturais como sendo
também as culturais. Esse entendimento não é só amplo por si só, mas apela para o fato
de que a parte biológica, ou fisiológica, do homem também participa da possibilidade de
se tornar e se entender como cultura. Esse é um caminho. No entanto, o rumo a que se
destina é o de colocar processos orgânicos, do organismo, do corpo humano, como algo
dado também como evento cultural. A cultura seria assim também produzida pela
fisiologia humana, ficando à mercê das possibilidades anatômicas do homem e
chegando, inclusive, a viabilizar o entendimento de que, se a anatomia humana e sua
fisiologia não se modificarem, a cultura como um todo também não se modificará. Isso
é evidentemente “esclarecedor”, porque coloca a cultura como algo submetido a uma
possibilidade de inércia e de imperícia, quanto aos seus movimentos e desígnios, não
sendo preciso se preocupar, a propósito, com uma releitura ou com uma reapreciação do
que com ela acontece no percurso histórico do mundo. Ela estaria quase para sempre
destinada a ser a mesma, desde o começo até o fim dos tempos.
Percebe-se até agora que o conceito de cultura é trabalhado sempre na tentativa
de trazer para junto de si algo que não exatamente se coloca como satisfatório para
designá-la. Talvez realmente não haja como. E, se há, ainda não se trilhou um caminho
de apreciação capaz de sustentar o entendimento acerca de um conceito. Nele, ou se
generaliza ou se adota uma correlação que o torna demasiado impróprio e não
esclarecedor. Dizer que é possível encarar a cultura sob muitos pontos de vistas seria
também dizer algo pertinente a todo e qualquer evento social que se queira conceituar.
Tudo pode ser visto com quaisquer olhos; diante das ciências e das filosofias várias,
contudo, é que se encontram os aspectos de os fatos desse mundo não poderem ser
117
considerados de tal ou tal forma. Isso também não é novidade ou privilégio de nenhuma
argumentação capaz de tentar a sustentação de qualquer conceito.
As complicações conceituais são quase sempre freqüentes. Essa mesma
generalização gerou, por exemplo, o conceito oposto, defendido pelos não partidários de
tal amplitude conceitual. Assim, surge o seguinte comentário:
Há, porém, inconvenientes em dar ao termo ‘cultura’ uma
acepção tão ampla. Em virtude desses inconvenientes, e por várias razões, Mario Bunge propôs – num trabalho intitulado “Culture as a subsystem of Society: Culture as an Aspect of Social Change”, apresentado num simpósio de fevereiro de 1976 – considerar as atividades culturais como atividades organizadas por indivíduos, seja por indivíduos sozinhos, ou, mais freqüentemente, em relação e cooperação com outros. A cultura constitui então um “subsistema” da sociedade, na qual se devem levar em conta igualmente os subsistemas da economia e da política. O fato de que nenhuma atividade social seja puramente econômica ou puramente política – ou puramente cultural – não impede que se introduzam as distinções necessárias destinadas a evidenciar a relação entre o subsistema chamado “cultura” e o sistema chamado “sociedade”. O subsistema denominado “cultura” não é autônomo; ele está integrado aos outros sistemas indicados, mas pode distinguir-se deles e constituir por sua vez outros subsistemas (como a arte, a ideologia, a tecnologia, as humanidades, a ciência, a matemática).
Se se refina dessa maneira a noção de cultura como “subsistema social”, evitam-se as ambigüidades até agora ligadas a essa noção. Evitam-se, naturalmente, as amplas e vagas generalidades comuns em muitas das “filosofias da cultura”.(...) 66
Tal refinamento, como diz o verbete, é algo que deve ser entendido da seguinte
maneira: a cultura, bem como tudo o mais existente no mundo, formaliza-se como um
produto do mundo gerado pela grande indústria humana, chamada de sociedade. A
sociedade, sendo o sistema dos sistemas, engendra a possibilidade de sistemas derivados
existirem e se constituírem como tais dentro da sociedade. Quem gerencia a sociedade
como sistema devem ser, então, os indivíduos com suas disposições humanas e não-
humanas, orgânicas e não-orgânicas. Assim, o mundo é reduzido a uma grande máquina
66MORA, José Ferrater. “Cultura”. In: Dicionário de Filosofia (Tomo I). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 627-628.
118
a confeccionar, talvez, num contínuo, a existência das artes, da matemática, da religião e
tudo o mais. Muito curiosa é a interpretação que da generalidade permitiu um caminho
de entendimento bastante específico. A cultura como subsistema deve ser entendida, a
propósito, como uma delimitação no sistema sociedade. É possível também cogitar a
possibilidade de ela, como sistema, não só confeccionar tais subsistemas, mas também
gerenciá-los. A autonomia do subsistema cultura é, dessa forma, dependente do sistema
sociedade, que estabelece o modo como os subsistemas devem e podem funcionar. A
cultura é entendida realmente como um subsistema porque ela deve funcionar como
determina a sociedade. Isso, pelo visto, não parece um entendimento muito acertado.
Colocar tudo subordinado ao sistema é não entender a existência desse próprio sistema,
pois sequer é dado saber se a presença de um desses subsistemas é ou não
imprescindível para a existência do sistema sociedade. É bem provável, nesse sentido,
que a ausência ou das artes, ou da matemática, ou da biologia, ou da cultura seja
possível sem em nada afetar o sistema sociedade. Mas, no caso de o subsistema cultura
ser desconsiderado, destituído, posto fora de cena, aconteceria de existir, a partir de
então, uma sociedade sem cultura, um resultado perfeitamente possível a partir de tal
consideração do mundo dividido em sistema e subsistemas.
Conforme se vê, não é possível partir para uma releitura do que é cultura em
função dos pensamentos conceituais vigentes. Nem mesmo é bom tentar conceituar
cultura. A questão pode ser talvez, ao menos, apreciada naquilo que ela pode apresentar
como de oportuno para o entendimento do mundo, no sentido de uma referência dada
entre o homem e o que a cultura cultua.
119
3.1. Cultura como distintivo da civilização
Tudo quanto participa do mundo pode ser tido como possível de ser entendido
como cultura. Mas, como caráter distintivo da civilização, ela tem sido objeto de muitas
especulações, fazendo mesmo com que se pense em uma cultura como algo a
estabelecer parâmetros modelares de condicionamentos humanos. Tais observações
chegam, de fato, a tentar, como resultado, estabelecer o que deve e o que não deve ser
entendido por cultura. Daí, surge a idéia de que existem culturas superiores e inferiores.
Normalmente, culturas antigas, politeístas, ou de algum movimento que não se sustenta
mais na atualidade, são tidas como primitivas, de modo que tal entendimento as coloca
numa posição de menor valor. Por outro lado, existem, naturalmente, as que se realizam
e sustentam até a modernidade e, com isso, são mais bem aquinhoadas e recebem o
prestígio social dos viventes desse cenário atual.
Acontece com o mundo grego algo um tanto curioso, acerca de tal divisão. A
cultura grega normalmente padece de uma dupla condição: a de ser bem e mal vista. Ela
serve ainda de referência e parâmetro para o pensar científico e filosófico moderno, ou
seja, para os aspectos tidos como racionais, mas não se presta para o serviço das coisas,
por assim dizer, espirituais – mesmo sendo ambos, na verdade, a mesma coisa.
Observando ainda a questão da religião, que é um aspecto do que se chama
cultura, é oportuno lembrar o que Walter Otto disse a respeito do olhar da modernidade
sobre tal cultura religiosa no mundo grego antigo. Desse modo, ele disse:
Assim, na virada do século (do XIX para o XX), e em virtude
das mais eruditas pesquisas, proclamou-se que a religião e a arte brotaram da “estupidez primitiva” (K. Th. Preuss). E já muitos anos mais tarde demonstrou-se, com aplauso de prestigiosos especialistas, que os homens dos primórdios acreditaram poder eles mesmos criar, por meio das artes da magia, tudo quanto era desejável, até que o fracasso evidente de suas práticas os obrigaram a criar os deuses; estimou-se também possível constatar, com exatidão científica, este
120
grau máximo de primitivismo mesmo em uma religião como a romana (L. Deubner).
Esta teoria mágica é um fruto legítimo da era técnica.67
A argumentação de Otto se dá com o nítido tom da reclamação, apontando para
um problema de interpretação dos cientificistas da virada do século XIX e mostrando o
quão estranhas são essas leituras a respeito dos deuses da Grécia Antiga e os seus
modos de existência. Tal problema interpretativo reflete uma visão consideravelmente
limitada de observação e de abordagem de um fato acontecido em uma época não
conhecida pelo homem moderno e sua ciência. Como um período significativo, o
mundo grego, arcaico e antigo, poderia no mínimo ser considerado de modo mais
acautelado, mais prudente e não tão taxativo.
Tal desentendimento sobre determinada cultura, como a grega, revela que o
comportamento do homem moderno é o de encarar os fatos sempre sobre a
compreensão que se não deve ter, pois esta se dá via de regra sobre a que se quer tomar
e direcionar acerca de um determinado fato histórico. E o mundo grego antigo e sua
religiosidade demarcam o fato como pertencente à história não só do homem, como
também do mundo.
Nietzsche também se mostrou como um pensador que viveu na recusa de tal
postura do mundo moderno. Suas considerações são patentemente contrárias ao modo
como a ciência e o homem como um todo lidavam com o mundo, fazendo a observação
da realidade existente. Seu olhar recai, sobretudo, na atitude existente à sua época de
uma posição que primava por tentar fazer do mundo uma estatutização do
comportamento humano, designando-o como cultura superior e como cultura inferior.
Nietzsche volta e meia abordava o tema por muitos caminhos. Num deles, diz:
67 OTTO, Walter Friedrich. “Religião, Magia e o ‘Primitivo’”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 31.
121
A cultura superior é necessariamente incompreendida. – Quem dotou seu instrumento apenas de duas cordas, como os eruditos, que além do impulso de saber têm somente um impulso religioso adquirido, não compreende os homens que sabem tocar mais cordas. É da natureza da cultura superior, de muitas cordas mais, que seja interpretada erradamente pela inferior; o que sucede, por exemplo, quando a arte é tida como uma força disfarçada de religiosidade. De fato, pessoas apenas religiosas compreendem até a ciência como busca do sentimento religioso, tal como os surdos-mudos não sabem o que é música, se não for o movimento visível.68
Certamente, o texto de Nietzsche contribui para a manutenção de cultura na
distinção entre superior e inferior. Mas o fato de ele querer inverter o que se entende por
cultura superior, apontando os problemas de interpretação da sociedade de seu tempo, a
modernidade, já é um indicativo de que tal leitura mostrava uma posição um tanto
quanto fora de propósito na realidade vigente e na não mais vigente. Em sua fala, a
cultura superior não é a moderna. A crítica, é perceptível, recai sobre os eruditos,
aqueles que não reconhecem os instrumentos de mais de duas cordas por se acreditarem
como os que sabem tocar os de duas cordas.
Cabe aqui observar que tanto Nietzsche quanto Otto concordam quanto ao papel
do erudito moderno sob pelo menos um aspecto (e não interessa avaliar se em outros
mais): ambos entendem o comportamento do homem científico, o erudito, como o que
costumeiramente atravanca as percepções acerca de muitos fatos que pertencem com
propriedade ao ser do homem. O ser e seus modos de se dar para a realidade por meio
de suas muitas entidades não conseguem se colocar à mostra de modo a possibilitar o
convívio na contingência e no vigor do ser do ente. O ente é avaliado somente como
entidade e não como ser, nesse sentido. Embora eles não tenham usado tal tratamento
vocabular com a mesma freqüência com que se usa aqui, a questão que está em jogo de
fato é a mesma.
68 NIETZSCHE, Friedrich. “Sinais de cultura superior e inferior”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 190.
122
Em outra passagem, pode-se ver Nietzsche, mais uma vez, indo de encontro à
postura do homem moderno. Sobre o “Defeito principal dos homens ativos”, ele diz:
Aos homens ativos falta habitualmente a atividade superior,
quero dizer, a individual. Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes de uma espécie, mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. – A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante: ele é irracional. Os homens ativos rolam tal como pedra, conforme a estupidez da mecânica. – Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito.69
A posição de Nietzsche é curiosa e fala de homens ativos, escravos de muitas
contingências do mundo moderno. O que isso revela para a observação da cultura como
distintivo de civilização? Isso mostra existir, na ignorância que freqüenta cada ser
humano, um fato inconteste: o modo de lidar com as realizações fazendo delas sempre
um aparte de toda a dinâmica da realidade e do real. Quando Nietzsche mostra o homem
sendo vivente de uma irracionalidade permanente, traz à tona o momento de
reapreciação do fato, para que se perceba em que trajetória tem caminhado o homem
desde longa data. O princípio de atividade e do agir como um todo não deveria
reivindicar para si comportamentos a colocar o indivíduo numa postura de
irracionalidade e sim do seu contrário. Fica firmada e afirmada, diante de uma
cotidianidade das realizações, a postura de todo um comportamento tido como o
oportuno, o de maior utilidade e de maior eficácia, porque o homem ativo deveria ser o
maior contributo para a lógica social que visa à presteza e ao utilitarismo racional do
mundo, ao mesmo tempo em que deveria ser o maior tributável por ser o desencadeador
de uma realidade de todo operante. No entanto, o que se dá é justamente o contrário:
69 NIETZSCHE, Friedrich. “Sinais de cultura superior e inferior”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 191.
123
diante de um pressuposto operacional eficiente e ativo, o homem não se opera e não
participa da realidade e do real tal como se supunha. A sua infelicidade é resultado de
um princípio de atividade que não proporciona, na franqueza de suas cotidianidades
laborais, nenhuma felicidade. O homem, assim, quanto mais ativo, mais infeliz. O ciclo
moderno do comportamento da sociedade e de sua civilização, na busca da evolução de
sua performance, tende, então, a trilhar o caminho de maior utilidade para o mundo e
menor utilidade para o seu próprio ser, chamado popularmente de “si mesmo”. Contudo,
o si mesmo moderno, merece um comentário. Ele freqüentemente é um “si mesmo” que
é tido como “cada vez mais si mesmo”, à medida que se pro-jeta e se intro-jeta de
atividades utilitaristas para o pressuposto melhor gerenciamento e condicionamento da
vida em sociedade, fazendo desta uma civilização sempre e mais civilizada. Ele é, por
conseguinte, um “si mesmo”, um ente, posto diante da atividade operacional do mundo,
e sempre a destino da infelicidade do ser. À proporção que se torna “cada vez mais si
mesmo”, dentro de suas muitas e múltiplas atividades civilizatórias, menos ser ele se
mostra.
Isso é provavelmente um processo decorrente de se entender que o homem é
mais civilizado e, com isso, humanizado, na razão de suas realizações: o homem evolui
se ele se civiliza e se humaniza sempre diante do exercício de um “si mesmo”
plenamente ativo e preso às suas muitas atividades. Quanto mais ativo, mais “si mesmo”
pressupõe-se. Não obstante, o caminho da civilização supercivilizada é o destino que
sempre estará a par de sua mesma infelicidade diante da busca de ser como Ser.
Crê-se, desse modo, no homem sendo um ente vivendo na crença do conceito de
civilização. Este, por sua vez, crê no conceito de atividade e de utilidade. O ativo e o
útil é o civilizado, o feliz. Outro engano, porque a felicidade não tem se encontrado até
hoje no e com o homem. Talvez o mesmo possa ser entendido acerca da expressão
124
“consciência tranqüila”, a qual tem sido válida e utilizada para dar testemunho de um
pressuposto de “dever cumprido”, na tentativa de falar que a felicidade está presente.
Ora, tanto “consciência tranqüila” como “dever cumprido” aparecem quase que
invariavelmente em contextos similares: os que tentam demonstrar as tarefas realizadas
como de todo acabadas e asseguradas para o bem-estar da civilização de cada sociedade
em particular, mesmo sendo elas de menores representações quantitativas, ou seja,
mesmo sendo apenas um grupo de funcionários, de entes familiares etc. Isso apenas
indica que as tarefas já foram executadas dentro da ordem de suas competências e nada
mais há o que fazer. Assim, a atividade do homem ativo já foi por ele encerrada,
fazendo dele o que concorreu para a manutenção e a evolução de sua civilização, de sua
sociedade. E, supostamente ou não, isso basta e nisso se permanece enquanto “si
mesmo”.
Enfim, talvez isso também represente o “Erro de cálculo na sociedade”,
comentado mais uma vez por Nietzsche:
Este deseja ser interessante com seus juízos, aquele com suas afeições e aversões, um terceiro com suas relações, um quarto com seu isolamento – e todos calculam mal. Pois aquele diante do qual se representa o espetáculo pensa ser ele mesmo o único espetáculo que interessa.70
Parece possível agora pensar aqui algo sobre o homem moderno: sua posição
como um “si mesmo cada vez mais si mesmo”, porque desempenha suas atividades
como um espetáculo que se espetaculariza na oportunidade de se tornar o mais ativo dos
ativos dos ativos, na verdade, torna-o o mais feliz dos infelizes. E isto quer dizer: no
meio dos infelizes, o hiperfeliz é o mais infeliz de todos os felizes. A felicidade do
infeliz é ser o mais infeliz, fato que faz de sua infelicidade a sua maior virtude. Ser feliz
70 NIETZSCHE, Friedrich. “O homem em sociedade”. In: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 212.
125
é não perceber a atividade da infelicidade da civilização. Essa é a condição de algo
conceituado como cultura – moderna e civilizada.
3.2. Cultura e alguns o-cultos
Afinal de contas, poder-se-ia pensar o que é cultura, perguntado diretamente o
que ela é. Mas não se quer aqui partir para uma tentativa de definir cultura como algo
que faz assim ou de outra maneira. Talvez seja melhor começar tentando olhar por que
ela existe e porque não consegue deixar de existir.
Seja qual for o entendimento que se tenha de cultura, importa notar que ela faz
parte do mundo. Há quem possa dizer que ela não participa do mundo, alegando haver
uma conformidade social nomeada com tal designação, que, no fundo, não se presta a
poder ser considerada a partir de algo do mundo. Tal entendimento é possível, se se
entender que o nada existe antes de qualquer coisa e que o mundo é a constituição de
um monte de nadas existindo de uma maneira qualquer, mas padecendo cada nada de
ser nomeado segundo a arbitrariedade de cada idioma, em cada tempo e por um
determinado agrupamento humano chamado de sociedade ou algo do tipo. Só assim
pode-se considerar não existir aquilo que cultura nomeia. Partindo desse fato, então, o
mundo todo é composto de nadas metaforicamente apelidados de acordo com vontades
sociais e rotulados por uma força estranha e misteriosa, fazendo desse mistério o
cinismo de um cotidiano que somente conseguiu ser vivenciado pelo nome de cultura. O
problema decorrente disso é discutir o(s) nada(s), mas isso não interessa aqui. Sendo
assim, pelo que se nomeia cultura e pelo que ela não devia nomear com tal nome, ela
pode ser considerada pelo existir. Mas como é que se dá um existir de uma cultura?
Talvez cultura não seja mesmo algo que exista, pois que não passível de desempenhar
126
as fortunas e os infortúnios da existência, mas é sim um acontecimento. Cultura é algo
sempre presente e ausente; é sempre o que recolhe da escolha da colheita. No entanto,
olha-se para ela tanto a partir do que ela dá quanto do que ela não dá. Cultura é algo de
caráter ambíguo tal como mito e religião; mas uma ambigüidade co-pertinente. Ambos
não existem, mas acontecem sempre, embora haja quem os despreze e os que não os
encarem por essa lógica. O certo, entretanto, é que não existe nenhum período da
história do homem em que não tenha havido mito, religião e cultura. Aliás, os três
obedecem a uma mesma ordem e conformidade. O mito se dá tanto quanto, e ao mesmo
tempo, se dão religião e cultura. Não é possível examinar a presença desses três
acontecimentos, sem a correspondência e a co-referência existente entre eles. Poder-se-
ia mesmo dizer que a linguagem também aqui já acontece. Um não acontece sem o
outro. Com isso, torna-se fato não ocorrer religião sem mito e mito sem religião, e, por
sua vez, ambos não se desempenham fora do que se chama cultura, nem esta sem
ambos, no que a linguagem sempre se dá como o que faz deles a permanência de cada
presença no seio do mundo no, com o e para o ser de cada ente. Essa compertinência é
inelutável e não se arredia.
Sob esse aspecto, talvez se possa observar o traço de referência entre cultura e
religião (incluindo-se os mitos e os seus rituais, sacrifícios e libações, cantos e danças).
Não existia rito sem mito, nem mito sem canto, canto sem dança, prece sem sacrifícios,
sacrifícios sem oferendas nos mundos arcaicos do mundo ocidental71. Todos esses
gestos se co-pertenciam fazendo com que o homem, enquanto ente, fizesse o percurso
de experiência do ser, na disposição da phýsis e na permissão do lógos. Chamam-se
gestos, porquanto todos eles comportam as maneiras pelas quais o ser se mostrava para
o ente na disposição de possibilidades interlocutórias de cada entidade, fazendo o
71 CHAMOUX, François. “Ritos e deuses”. In: A civilização grega. Portugal: Edições 70, 2003, p. 143-203.
127
mundo ser entendido a partir de toda realização junto aos seus deuses e de todas as
realidades do real. Não havia um aparte, uma separação, uma ruptura, entre esses modos
de o homem se entender enquanto ser. Na forma com que se manifestava cada gesto
religioso-mítico-cultual, o homem fazia a experiência do ente na dimensão de des-
velamento da verdade do ser que se vela e re-vela em cada dimensão do humano, ou do
sagrado, que são o mesmo. Isso era o modo grego arcaico de fazer a experiência daquilo
que hoje se chama pelo nome de cultura. Mas há indicativos de que outros povos, com
suas outras culturas, faziam, cada qual a seu modo, algo muito similar ao que se deu
com os gregos nesse passado já longínquo. Walter Otto comenta o fato de ainda existir
no mundo a experiência originária do sagrado com seus ritos, mitos, magias, sacrifícios
etc., afirmando o seguinte: “Por certo, não cabe negar que a verdadeira magia existiu e ainda
existe. As fórmulas mágicas de alguns povos indígenas, combinadas a certas práticas, produzem
efeitos que, de nosso ponto de vista, por força têm de parecer milagres” 72.
Poder-se-ia aqui catalogar uma série de depoimentos de autores de prestígio e de
não tanto prestígio relatando as experiências nas quais o sagrado ainda possui uma
íntima relação com a experiência do ser. Mas não é o caso. Para dar um pouco mais de
esclarecimento sobre aspectos que circundam o mesmo fato, bastam ainda outras
afirmações do mesmo Walter Otto: “A cada ramo da humanidade o divino se revelou a
seu modo, dando forma a sua existência e fazendo dele o que efetivamente devia ser.
Também os gregos hão de ter assim acolhido a sua própria experiência do divino”73. E
mais adiante, ao fazer a defesa, por assim dizer, da religião grega, ele mostra a relação e
a referência existente entre o sagrado e o profano:
72 OTTO, Walter Friedrich. “Religião, Magia e o ‘Primitivo”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 31-32. 73 OTTO, Walter Friedrich. “O divino só pode ser vivenciado”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 20.
128
O ofício divino e a vida profana não estavam tão completamente separados um do outro a ponto de caberem ao culto tão somente determinados dias, ou horas, podendo os assuntos mundanos, com seu regime próprio, ocupar à vontade, quanto espaço se quisesse. 74
Ora, em ambas afirmações, Otto coloca a relação homem e o divino como algo
único a referendar a unidade e a comunhão existente entre o sagrado e o homem. O ser
se dá ao, para o e no homem pelo convívio que estabelece com ele. Não havia outro
procedimento no meio da vivência que os gregos foram conjurados a fazer nesse
mundo.
A cultura grega arcaica, então, se não era apartada do divino, era principalmente
com ela e nela constituída e assim se deu com a maior parte dos povos ditos primitivos e
com aqueles que ainda fazem a experiência do mundo como a consagração cotidiana
com o divino. Não havia a separação entre o homem e o mundo e, assim, com o divino.
O homem vivia o mundo fazendo a vivência a partir do que o mundo lhe proporcionasse
como força criadora da realidade que se conseguiu construir. O divino dava o mundo
para o homem para que, nas disponibilidades do ente, deixasse se aclarar como sagrado,
na existência e no modo de o ser se dar como phýsis, na disposição de re-colhimento e
de reunião do lógos, o divino-dizente. Só assim o homem acontecia como sendo para o
mundo e para a sua permanente consagração. Mais uma vez aqui, vale lembrar Walter
Otto, tratando do desempenho do homem grego arcaico (que foi um dos que melhor fez
a experiência do sagrado) e do divino:
O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso não é o “absolutamente outro” em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. É onipresente. Todas as coisas e fenômenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos. Não fala de um Criador nem de um Senhor, e sim do Ser eterno que tomando forma neles se revela. Irradia com a inefável magnificência dentro da qual mesmo o destino
74 OTTO, Walter Friedrich. “A que se deve o desprezo pelo mundo divino dos gregos”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 21.
129
mais triste é grandioso. Porém o Divino é muito mais que todas as coisas, fenômenos e instantes em que sua presença se declara. É a forma de todas as formas, a Essência vivente, disposta a falar imediatamente ao homem, indo-lhe ao encontro, se ele for homem de verdade. De todos os seres vivos, só o homem nasceu com a faculdade de perceber e verificar Formas Essenciais. Portanto sua própria constituição o liga com as formas do Ser e sua hierarquia, até, no ápice, a Forma do Divino.75
Tal entendimento mostra o divino não se realizando por si só, nem o homem
fazendo algum tipo de contrato com o divino para daí nascerem a glória e a redenção de
ambos. O divino é a proteção do ser e o homem faz a experiência de se saber e ser
protegido pelo deus. A cultura grega arcaica era certamente reunidora das habilidades e
das práticas humanas em seu maior estado de profusão e disso fazia o modo peculiar de
existência dos gregos. Jean Pierre Vernant, com sua historiografia helênica, afirma que
“A vida social aparece centralizada em torno do palácio cujo papel é ao mesmo tempo
religioso, político, militar, administrativo e econômico”76; além disso, diz mais adiante:
“A efervescência religiosa não contribuiu somente para o nascimento do Direito.
Preparou também um esforço de reflexão moral, orientado por especulações políticas.”77
Mas o que traz à tona o relato de Vernant não é somente historiografia. Nela, pode-se
perceber um indicativo de que a religião viabilizou o nascimento do pensamento
jurídico, das leis que regulam o universo social, num primeiro momento. Isso é
importante para se observar que a relação estabelecida com o sagrado para a orientação
do mundo do ser não se limitou a um relacionamento pormenorizado, circunscrito a
uma vivência de compadres e comadres. Não existiu uma comunhão homem e divino
que se desse só comprometida com o fomentar apenas uma intimidade frívola e
apequenada, ou mesmo primitiva, entre o sagrado e o mundo. O sagrado norteou o 75 OTTO, Walter Friendrich. “A exaltação do homem e a verdade do mito”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 86. 76 VERNAT, Jean-Pierre. “A realeza micênica”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 21. 77 VERNAT, Jean-Pierre. “A organização do cosmos humano”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 21.
130
mundo e aquilo que se chamou civilização, contribuindo para a orientação do
entendimento político, militar, administrativo etc., tal como menciona Vernant em seu
estudo. Isso significa que o homem grego antigo – e, provavelmente, muitos outros
povos – entendeu a experiência religiosa originária do mundo. Assim, ele fez do ritual
de culto com o sagrado o parâmetro não modelar da vida, mas a própria forma de existir
enquanto ser, na dimensão da phýsis, conferindo à história o que é o condizente a toda a
sua cultura.
Jean Pierre Vernant ainda diz mais sobre o entendimento do pensamento grego
diante de sua realidade, do seu modo de ser:
Os homens, a divindade, o mundo formam um universo unificado, homogêneo, todo ele no mesmo plano: são as partes ou os aspectos de uma só e mesma phýsis que põe em jogo, por toda parte, as mesmas forças, manifesta a mesma potência de vida. 78
Tal consideração mostra, de maneira suficientemente clara, a condição do
comportar-se do religioso no homem grego antigo. O sagrado e todas as suas
conformidades vivenciais e experienciais sempre foram o norte do pensamento do
homem grego. Nunca se deu diferente. Cultura, no sentido de indicar a reunião dos
comportamentos e aspectos sociais engendrados pelo homem, ou melhor seria dizer
pelo movimento existente entre phýsis e lógos fazendo a experiência do ser do ente,
chega mesmo a poder ser pensada como o que é o resultado de condicionamentos
múltiplos, tendo como ponto de partida o religioso.
A influência e a determinação com que o sagrado participava do cotidiano na
vida do homem grego antigo era um fato evidente à medida que se olha para o que
foram os oráculos, principalmente o de Delfos. Muitos pensadores modernos e mesmo a
ciência ocidental dos últimos tempos rejeitam as possibilidades de intervenções do
78 VERNAT, Jean-Pierre. “Cosmogonias e mitos de soberania”. In: As origens do pensamento grego. 11.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 81.
131
divino com suas premonições e orientações de caráter, dir-se-á, transcendental. Mas
William J. Broad faz um estudo mostrando outros posicionamentos acerca do que foi o
divino oráculo de Delfos e sua influência no pensamento do homem grego antigo. O
sagrado orientava comumente o profano, sem dele se diferenciar e se distanciar. Assim,
o indivíduo permanecia em sociedade fazendo de tal convivência a predestinação e a
consagração de seus hábitos e de sua cultura. Muitas são as afirmações de William J.
Broad sobre o papel do oráculo e o comportamento da cultura grega antiga. A propósito,
ele diz:
Não podemos esperar entender os gregos a menos que
entendamos o Oráculo, a atração por ele exercida sobre a imaginação religiosa, sua fama de precisão, seu domínio, seu renome. A alta sacerdotisa transitava sem esforço entre o sagrado e o profano, aconselhando governantes, cidadãos e filósofos sobre todos os assuntos, de suas vidas sexuais aos negócios do Estado, sobretudo predizendo o resultado de guerras e ações políticas. Isso foi feito milhares de vezes. Os indícios sugerem que as palavras do Oráculo em vários casos mudaram o rumo da História. Ao longo de um vasto período – séculos em que indivíduos nasceram e morreram, impérios ascenderam e ruíram – , o Oráculo provou ser a força mais duradoura e influente da sociedade que foi, provavelmente, a mais importante jamais imaginada pelo homem. A pítia foi a estrela-guia da civilização grega. Não existe equivalente. Nenhuma figura religiosa ou secular, nenhum papa ou imame, nenhuma celebridade ou cientista, goza do tipo de respeito que os gregos tinham pelo Oráculo de Delfos.79
Talvez aqui possamos pensar outra coisa, um pouco mais arriscada sobre o que é
culto ao religioso na origem do homem sobre o mundo: possivelmente foi pelo aprender
a viver com o sagrado que o lógos lançou o homem para phýsis. O lógos do mundo é o
sagrado. Aprendendo a dialogar, o homem realizou seu ainda pouco aprendizado pelas
experiências com o mundo da phýsis. O mundo da phýsis, na dinâmica do ser do ente, é
o lógos acontecendo originariamente e sempre na dimensão do sagrado. A voz que diz o
dito do lógos é primariamente da ordem do sagrado fazendo a experiência do profano no
79 BROAD, William J. “O centro do universo”. In: O oráculo: o segredo da antiga Delfos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 23.
132
coração do homem. A força de reunião, de recolhimento do lógos, conforma o homem
acontecendo diante do divino, fazendo do ser enquanto ente a dinâmica da existência
sobre a terra, estabelecendo o modo de o homem se realizar em meio às suas
realizações, constituindo a experiência do real, acontecendo em forma de cultura
cultivada como culto junto ao deus e lavrando o ser por toda a terra, tornando-se num
mesmo fruto e semente do mundo.
O que acontece na dinâmica do religioso como cultivar originário do homem é
um fato irrevogável acerca do comportamento humano e fecundo para a história do
mundo. Não se mostra de forma diferente em muitos outros momentos históricos e em
muitas outras sociedades o princípio de origem de toda a forma de pensamento. O
pensamento se orienta sempre articulando a consagração de um povo e seu conjunto de
hábitos e costumes, ao que parece, a partir dessa interferência, referência e interposição
do acontecimento primevo de todos os entes. O sair da terra, ver-se voltado para os céus
e sobre a luz do sagrado se orientar, fez o homem existir em sua humanidade,
constituindo os desígnios e destinos de sua comunidade, realizando a vida como
sociedade, cultura e civilização. Estar civilizado era simples e originariamente estar
sempre no entendimento do deus. O mundo não podia acontecer como humanidade sem
o contato com o lógos, como o dizer-consagrante da phýsis no ser do ente do homem.
É a isso que, em outras passagens sobre o oráculo de Delfos, o mesmo William
J. Broad alude:
O indivíduo comum não era menos supersticioso que os generais e líderes civis. Pastores perscrutavam o céu noturno em busca de presságios. Criados e operários viam como arautos do destino os trovões e as revoadas de povoadas de pássaros. Um espirro, um tique ou arrepio podia ser um sinal, pois era costume atribuir os movimentos involuntários à influência divina. Métodos simples de adivinhação eram usados o tempo todo, como os oráculos alfabéticos. De um saco ou de uma caixa, os que buscavam respostas tiravam pedras que traziam letras pintadas, cada uma expressando em determinado presságio: alfa, por exemplo, indicava sucesso, beta, perigo, e ômega, dificuldades futuras.
133
A elite espiritual afirmava deter não apenas talentos especiais para interpretar, mas também poderes semelhantes aos dos deuses. [...]
Os gregos antigos não possuíam em seu vocabulário termos especiais para designar telepatia e vidência, mas acreditavam piamente que os indivíduos devotos eram capazes de chegar à percepção extra-sensorial, bem como à precognição, na forma de profecia ou adivinhação. 80
Nesse texto, mostra-se mais um aspecto da cultura grega antiga. Ela não
estabelecia nenhuma relação hierárquica, nem entre os homens, nem entre os homens e
os deuses. Um sempre vive na expectativa de operação das realizações da realidade
fundadas num comum experienciar do real, interagindo da mesma forma e sobre o
mesmo ato de consagração do mundo.
Isso denota que o modo de entender o mundo e nele desempenhar a experiência
do ser só acontecia como permanência do humano na mesma dimensão em que o divino
atuava como o lógos consagrador. Na força de reunião que lhe é própria, fazia-se do
recolhimento entre o homem e o sagrado a experiência do mundo, sendo o divino o
humano e o humano o divino, pois, como diz Walter Otto, “o divino oferece ao homem
a revelação de seu ser e, com isso, em vez de um penhor para o futuro, em seu presente
lhe franqueia os magníficos momentos da realidade”81.
Se esse comportamento do divino, incluindo-se aí a atuação dos oráculos, é algo
tão demarcado na cultura grega antiga, não há por que se pensar a realidade como
constituída por outro princípio; é dessa realidade que o ser se dá ao homem enquanto
ente. Isso aparece na história do mundo e por diversos caminhos. O modo de operar a
realidade por meio das múltiplas realizações do real só acontece por meio de e com o
divino acontecendo junto ao homem, desvendando o ente se velando enquanto ser.
80 BROAD, Willian. “O centro do universo”. In: O oráculo: o segredo da antiga Delfos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 27. 81 OTTO, Walter Friedrich. “A bem-aventurança”. In: Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 103.
134
A relação que se estabelecia entre o ser e o ente é já desencadeada pela procura
de um se dando no e com o outro. Nesse dar-se, o divino se dá para o homem e o
homem re-colhe o que o divino lhe fornece para a consagração humano-divinado
mundo. A experiência que disso se estabelece é a mesma ocorrida sempre que o homem
procura desvendar-se a partir do ente enquanto ser. O homem não se entifica com suas
reais atribuições e atributos se não se fizer à procura do encantamento divino do ser.
Realizando tal procura, ele segue em busca de sua verdade (alétheia), na tentativa de
des-cobrir o lógos, que acontece como re-colhimento na dimensão de cada ser. O
recolhimento reúne, escolhe, colhe, acolhe. Tal reunião e colheitas se dignificam e se
tornam perceptíveis à medida que o ente se orienta na direção re-colhedora de cada ente
enquanto tal. Existe, então, no religioso e naquilo que se estabeleceu com o nome de
cultura, o impulso divino da phýsis se colocando como a pro-vocação do lógos, para
fazer o ente se dando no e para o homem, sendo essa reunião o acolhimento do ser para
esse mesmo ente, acontecendo como humanidade no seio da terra. Isso nada mais é que
o modo de atuar e de ser do homem no mundo, acontecendo como cultura: a busca e o
encontro no divino, para ele e com ele. O reunir do lógos é o que mostra e coloca o
homem sob a força de pertencimento junto ao sagrado e faz do ser a instância originária
de toda a história do mundo.
3.3. Cultura, cultivo do culto do ser
Cultura é o que se cultiva. Somente se dando como culto e rito de cultivo do
homem com a terra, fazendo a experiência do ser, é possível pensar algo relativo ao que
chamamos de cultura, confabulando os traços da sociedade, da civilização, ou qual
nome se venha a dar a tal evento de reunião do agir de todos os homens no mundo.
135
Assim, cultura cultiva instâncias de um vigor do mito e do religioso, porque tudo
surge enquanto crença. Na crença, a fé se coloca como a fiança de cada mito,
fomentando a religiosidade do ser do ente no meio do mundo, fazendo o entrelaçamento
dos agires humanos e possibilitando ao ser se dar como sempre sendo. O ser se orienta
pelo e com o mito, na religiosidade que pertence à realização e à realidade de cada ente
diante do real. Tal correspondência não é gratuita, ou fortuita; não se dá ao acaso. A
palavra cultura é originária do latim
colere (colo, colui, cultum), habitar; cultivar. O lexema IE (indo europeu) *kwel, indica a idéia de ir em torno de, o que se encontra no sânsc. cárati, ele se move, ele circula. No sentido romano era ‘prestar homenagem aos deuses’.82
Como habitar e cultivar, cultura é estar no convívio da terra, fazendo dela a
experiência do cultivo e do culto, recolhendo os destinos do ser que habita em cada ente
no desempenho de suas realizações e fazendo a experiência do real.
Como cultivo do culto, cultura sempre refaz a experiência mítica, porque parte
de uma fé como con-fiança. Con-fiar é estar na fiança e com o que é fiado. Isso talvez já
esteja a apontar o que é que deve ser considerado como digno de confiança: o homem
consagrado pelo, no e com o divino.
Mas é preciso ainda tratar da cultura e do que ela cultiva no homem. Em
princípio, cultivar é estar na ação do cultivo. Cultivante é a forma de o culto acontecer
para o homem. Na relação de estar como culto, o cultivo se realiza. Toda forma de
semente acontece como árvore e fruto porque está acontecendo dentro da e para a terra
como o culto. Dentro da terra, a semente dá a fecundar. A semente não é o que fecunda,
mas o que dá a fecundar. A fecundação dada pela semente para a terra já é o primeiro
gesto do culto, fazendo o mundo como cultura porque cultivada pelos movimentos
82 HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa (vol. II). São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 1302-1303.
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fecundantes da semente. Semear não é simplesmente o gesto de arar a terra fazendo nela
uma fenda. A fenda que se abre para o semear é um devir originário da terra cultuando a
semente como vigor originário do culto.
Não se pode pensar que todo semear é um ato arbitrado que faz com que o
homem tenha implementado no mundo a atividade da agricultura. A phýsis se planta
para dar o humano, como ser.
O gesto da fecundação é originário, mas só porque e quando participa e atua
junto ao sagrado como extraordinário. A phýsis é o extraordinário da terra realizando
sempre pelo e no mesmo rito o gesto originário do cultuar-cultivar que fez de Deméter a
deusa da agricultura e Géia, a Mãe-Terra. Ambas acontecem como a eterna repetição de
experiência desse modo sagrado de atuar como elementos telúricos fecundantes-
fecundadas. Nem Géia nem Deméter se realizam sozinhas, como deusas que são,
sacralizando o solo do mundo, fazendo o sagrado da terra. Existe entre elas o mesmo
vigor e desempenho originários co-participantes de um mesmo ritual, que gesticula
sempre o mesmo gesto, tal como toda e qualquer mulher acontecendo como mãe diante
da maternidade de seu ser. Ambas são as fecundantes e as fecundadas, assim como
homem e mulher dividindo-se como participantes da fecundação de um novo ser.
O movimento de quem fecunda é o mesmo movimento de quem é fecundado. O
fecundante não acontece sem o fecundo e vice-versa. Não existe nenhum princípio de
hierarquia ou de alteridade que não se encontre no mesmo do fecundar. Quando dois
entes se encontram no ritual divino e consagrado do acasalamento, o ser fecunda. A
fecundidade é uma disposição do vigorar da phýsis a se dar, a todo e qualquer momento
histórico do mundo, como ato de fecundação. Assim, quando a terra se mostra fecunda
para o ser do ente, nada mais acontece senão a ritualização e a consagração da phýsis se
mostrando por meio do e como o divino. Fecundar é o ato que só se realiza porque o
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sagrado acontece como unção no seio divino da terra. O modo de perceber isso é o
mesmo que ocorre quando a semente do homem e a da mulher convive no mesmo
espaço do útero, ainda que não se liguem para semear o culto-árvore do homem. Apenas
quando, por alguma razão, elas se encontram no sagrado do útero, passa a ser
desencadeado o movimento que dá origem ao feto e ao bebê como um novo ser. Muitas
vezes, essas sementes masculinas e femininas estão no mesmo espaço de vida, mas só
podem ser dadas como fecundantes quando atuam juntamente, impelidas por uma força
divina qualquer, nomeada sob qualquer nome da biologia humana moderna. A semente
e o semear têm que acontecer juntos ao fecundar da fundação originária. Somente
quando esse gesto se completa como um todo, o novo ser se dispõe como ente, ventre
do mundo, realizando o movimento e o vigor da phýsis.
Do mesmo modo, o cultivante não acontece como cultor, se não houver desde o
começo o gesto do cultivar. O cultivante e o cultivado são o mesmo em si mesmo no
mesmo. O culto e seu ritual operam numa junção de todo originária. A junção sempre se
deve à companhia e à atuação do rito. A família acontece como cultura quando o seu
movimento advém como rito de um culto que cultiva o mesmo gesto originário de todas
as épocas. Esse gesticular não é um mero agitar-se, mas um agir de todo fecundante, de
todo cultivante. O culto é o agir do rito junto ao sagrado do mundo. Não existe
fecundação sem o gesto da cópula, tal como não ocorre cultura sem a cópula enquanto
rito do mito, do sagrado. Isso significa que, para haver cultura, é preciso realizar o agir
originário do rito-mito e fazer junto ao lógos a reza que sacraliza a terra para que haja a
fecundação de uma nova cultura, a permanecer como a mais originária de todas elas, ou
seja, como a permanecer como o mesmo no mesmo. Para um cultivar a terra, é preciso
cultuá-la como culto e rezar a reza do sagrado no vigor do mundo como phýsis, fazendo
com que o lógos diga o destino histórico do ser de cada ente.
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O arar, nesse sentido, o que é? Arar é o agir que faz o gesto original do rito para
que oculto se cultive aqui e ali como cultivo, como culto, como cultura. Assim, é
possível entender que um determinado grupo social, uma determinada coletividade
humana, só acontece e permanece como cultura, quando, no seu cultivo, advém como
culto sagrado, permanecendo como luz do divino a luminar na noite e a noite do ser. O
ser clareado pela luz do divino se mostra cobrindo-se e se desencobrindo tanto mais
quanto for o vigor e a vigência do rito de seu culto sagrado diante de toda a terra nesse
mundo.
Se o homem entende o vigor do cultuar do culto de todo cultivar, ele começa a
estar na fronteira da colheita. A colheita ocorre como possibilidade e disposição de um
cultivar. A colheita é o divino que se mostra novamente como semente para o ser do
ente. A colheita é o que es-colhe, re-colhe e a-colhe o ser-sendo, atuando no sentido de
sua humanidade e fazendo o convívio com a terra para entender a phýsis como legein,
sempre consagrado para o e no destino histórico da existência.
A colheita, nesse caso, não é feita pelo homem. O homem não faz a colheita,
mas nela vive. O homem é posto como ente para que viva do fazer do culto de toda a
cultura como o ritual de sua verdade, no gesto do encobrir e do desencobrir do ser
diante de todo cultivar. A colheita é o que o ser recolhe da escolha do seu recolhimento.
O gesto do recolher está sempre se dando, porque o ser está sempre se velando e
desvelando como verdade. Tal velar-se e desvelar-se não são o fazer de uma experiência
em que gradualmente se adquire a apreensão e a compreensão do mundo em suas
verdades e correções, aperfeiçoando-se para o destino das perfeições depositadas num
futuro qualquer do mundo.
O velamento e o desvelamento da alétheia acontecem como o vigorar originário
da phýsis como ser e para o ser e nunca fora dele. O mundo não possui uma verdade,
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uma alétheia. Só quem a possui é o ser de cada ente. Ao ser, é dado ser participante de
sua própria verdade. Ao mundo pertence a phýsis em diá-logo com o lógos, dizendo-se
na reunião de cada ser como recolhimento.
A possibilidade de relação de lógos como colheita acontece no gesto originário
do recolhimento. Lógos sempre tem como escolha o recolhimento. A cultura pode ser,
então, compreendida como o vigor do lógos se dando no destino sagrado do mundo. O
que o lógos recolhe é a escolha do divino como alétheia para o ser do ente, fazendo
dessa correspondência a forma de a fundação do mundo se dar com a fecundação da
terra, tornando o homem humano em sua humanidade historial, agindo segundo as
disposições de phýsis.
É nesse campo que o homem é recolhido pelo culto da colheita do divino, do
extraordinário, no ser do ente. É também nesse sentido que Heidegger trata da questão
do divino para o homem grego antigo.
Para um grego, o divino, a deidade, funda-se diretamente no
extra-ordinário do ordinário. É na diferença entre um e outro que aparece e chega à luz. Em parte alguma encontramos a expansão extraordinária do ente, na qual e pela qual o divino tivesse de despertar e o sentido para o divino tivesse de ser mobilizado. Por isso é que a questão do “dionisíaco” também deve ser desenvolvida como questão grega. (...) Na Grécia reina, por toda parte, antes de mais nada, a claridade simples do ser, que deixa todo ente manter-se no brilho e afundar-se na escuridão. Por isso, tudo que pertence ao aparecimento do ser é sempre ainda à maneira do extra-ordinário, de modo que o divino não precisa ajuntar-se posteriormente ao ser nem tem a sua existência comprovada. Se, pois, a a1lh9qeia pertence à essência do ser originário e com ela à sua essência contrária, a lh0qh, então ambas são, originariamente, um qei=on, algo de divino.83
O que Heidegger precisamente coloca nesse momento é a questão do
extraordinário, o divino, e do ordinário, mostrando que o pertencente ao ser ocorre ao
83 HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 177.
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modo do extraordinário. Ora, a colheita se coloca para o homem como a presença do
divino trazendo a alétheia à superfície do ser-sendo. A clareira que se abre com o
desencobrimento da verdade dá ao ser a possibilidade de ele acontecer no mundo,
precisamente como a disposição do divino acontecendo ao seu modo. Pertence ao ser o
modo de agir do divino. A colheita só se dá como tal porque tende ao mesmo
movimento da verdade. A cultura acontece como colheita porque é este o agir da
alétheia para o ser do ente.
Não há como deixar de perceber que a colheita se dá para o ser. A fecundidade
da terra possibilita não todo e qualquer culto para se dar como o rito sagrado de cultivo
da terra, mas somente como o culto a desencadear a verdade do ser se desencobrindo
como colheita para acontecer como verdade do ser para cada sendo. O homem só se
coloca como verdade do ser quando a colheita se coloca como colheita trazida à luz do
mundo como destino histórico do ser.
Nisso, cultura e colheita atuam dentro de um mesmo agir coincidente com o
desencobrimento da fecundação do ser humano desempenhando sua humanidade. A
necessidade de uma cultura é proveniente de um vigor fecundante da phýsis
acontecendo como lógos para o ser do ente. Cultura é algo a brotar como o fruto
surgente para a colheita. Mas o ser só consegue se entender com a colheita que recolhe
da terra do mundo quando ele realiza, na disposição do ente, o modo pelo qual
aconteceu a fecundação do mundo. Mas o que é perceber tal fecundação? É permanecer
fazendo sempre o gesto da cópula, o rito de cultuar o destino do mundo. Dentro do
ritual da cópula, a fecundidade da fecundação de cada culto como cultura se aproxima.
Importa observar que fecundidade não é a fecundação, assim como o fecundar não é o
copular. Os quatro vigores da phýsis atuam na participação fecundante-fecundada de
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acontecer como cultura; cada um tem a sua disposição e a sua vigência, mas todos
sempre operam na cooperação do mesmo: cultura.
O cultuar, o entrar no movimento de culto, e assim realizar seu rito, é o dar-se
como fecundidade, fecundação, fecundar e cópula. Cultuar é estar diante do vigor do
divino acontecendo no ordinário sob a vigência da luz da verdade enquanto alétheia. Tal
luz, em referência com a terra, traz à tona o vigor da semente e fica à espera do rito, que
cultua o deus como semente e permanece como culto a cultuar como cultura.
Nesse momento, a cultura se coloca como registro histórico e mostra o vigor
originário do ser e de sua verdade. Cultura é, assim, também possível de ser entendida
como a forma de a verdade se dar como ser. A verdade do mundo se nomeia cultura: ela
traz, para a superfície da terra e para a luz do mundo, o ser se dando no ordinário como
extraordinário, como sagrado, como divino. Cultura é o sendo como extraordinário na
vigência do ordinário. Em função desse aspecto, Heidegger disse:
O que chamamos de “extra-ordinário” nós o apreendemos com
base no ordinário. O que o assim chamado extra-ordinário é em si mesmo e o que possibilita antes de tudo o caráter do extra-ordinário, em conseqüência, isso é baseado no deixar os entes virem ao seu brilho, na auto-apresentação, em grego: daíw.
O que deixa os entes virem ao seu brilho, no entanto, jamais pode ser explicado com base nos entes nem construído a partir dos entes, mas é o próprio ser. O ser que brilha para a cercania dos entes é to( dai=on – dai~mon. (...) 84
Heidegger trata do extraordinário como o que deixa os entes virem a seu brilho.
Isso indica que o divino, enquanto extraordinário, faz os entes se apresentarem como
cultura, na medida em que se auto-enunciam como legein agindo de acordo com as
disposições de cada cultivar e dando a verdade do ser como colheita do ente.
84 HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 154.
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Tal fato mostra que o ser-sendo está sempre na disposição de se dar enquanto
colheita. Para isso, é necessário o acontecimento primordial dos ritos de fecundação
desencadeando a cópula que dará a semente para o ordinário da terra. A par disso, a
semente, com o vigorar da phýsis, e a atuação do extraordinário, do divino, se colocará
como colheita no instante em que o ente se deparar com a vigência do ser-sendo se
realizando como presença da cultura.
O extraordinário atua no ordinário para trazer à luz a verdade do ser. A luz que
brilha como verdade é o divino congraçando o culto e todo o gesto do cultivar como
cultura. O ordinário sendo levado à luz se mostra como ser do ente justamente porque a
fecundação do mundo e todo o culto são sempre o encontro e a vigência do
extraordinário. A luz, que é dada a cada nascimento, é o encontro do divino com o
homem, sem o qual não há como nada ser plantado nessa terra e tampouco surgido com
o nome de cultura para destino da história do ser.
O encontro do divino com o homem semeia os modos pelos quais ele se planta.
Isso significa que o homem é estabelecido segundo as duas formas de habitar, sendo, ao
mesmo tempo, não só o que está entre o céu e a terra, mas também na possibilidade de o
ordinário se encontrar no e como extraordinário. O homem habita porque seu habitat é
estar sempre no meio dos dois, permanecendo como a interseção vigente de céu e terra,
do sagrado e do profano. O mundo como tal se dá como habitat, porque está sempre
como lugar de proteção do ente de cada ser. O vigor do mundo permanece como lugar e
instância originária para o ser se dar como ente ao nascimento de cada ser humano sob a
luz do mundo e a escuridão da terra. Isso faz do homem aquele que pelo culto do cultivo
se encontra com a cultura de cada terra.
Em cada terra, o humano se humaniza no encontro com o sobrenatural, com o
divino. Sua relação com este se dá sempre na emergência do semear e na transformação
143
da semente que permanece como tal, na medida em que acontece como vegetal e se
revigora no vigor do fruto como o destino sagrado do cultivar. Isso é o seu modo de
habitar. O homem só habita na mesma dimensão em que se coloca à e na disposição do
cultivo de sua terra acontecendo como cultura.
Heidegger traz à cena o que o cultivar é enquanto habitar e construir. Ele diz: “O
que diz então construir? A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir,
“buan”, significa habitar. Diz: permanecer, morar. O significado próprio do verbo
bauen (construir) perdeu-se” 85. Mais adiante, ele explica tal correlação:
A antiga palavra bauen (construir) a que pertence “bin”, “sou”,
responde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. A construção de navios, a construção de um templo produzem, ao contrário, de certo modo a sua obra. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir permanece, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, “habitual”. Isso esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação.86
Heidegger retoma a palavra “buan”, para considerar os aspectos por detrás do
construir e do habitar. Está em jogo nessa hora a tentativa de entender a relação
existente em toda e qualquer cultura como habitar. Cultura, nesse sentido, fala dos
modos de habitar. E isso não é mera relação com uma etimologia a tentar sanear e
85 HEIDEGGER, Martin. “Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 126. 86 Idem, p. 127.
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comprovar os acertos e desacertos que se carregam sob os inúmeros conceitos de
cultura.
A relação de cultura e habitar é algo visível e verificável tal como é vivenciada
mesmo hoje. Cultura indica sempre o modo de habitar. A dita cultura das sociedades
indígenas, européias, africanas, asiáticas, americanas, todas elas se colocam como
experiência de mundo, mostrando como cada coletividade habita essa terra. Mas os
modos de habitar o que são? Pode-se aqui tentar um caminho: tais modos são os cultos
com os quais os homens fazem, re-fazem, des-fazem a experienciação do humano, na
dinâmica de orientações de suas competências e sob os exercícios de suas habilidades.
Tais competências e exercícios, os nossos modos de ser e existir nesse mundo, são
sempre os esforços orientados pelos caminhos da feitura de experiências da, com e pela
vida de cada ente junto ao mundo. Tentar entender e lidar com o existir é seguir sempre
o destino de compleição que conjuga ser e ente. O mundo é o ser-sendo. Esse sendo não
é um mero desempenhar tarefas. Sendo, o humano se abre como possibilidade e
compertinência entre phýsis e logos, referênia pela qual o sendo tenta, enquanto ente,
estar no exercício de ser no mundo. Isso é a forma como o humano se coloca como ente,
ora predestinado no e para mundo, ora submetido aos desígnios das tarefas que a
civilização, com sua maquinaria cada vez mais moderna e com todos os seus artefatos
industriais, comerciais, tecnológicos e sociais, articula para seguir o rumo das
realizações da realidade presente. Enquanto ente, o humano participa da civilização com
aquilo que ela oferece e tem oferecido até hoje; enquanto ser, o homem se delimita
como ente tentando fazer a experiência de ser e existir no mundo, num esforço contínuo
e simultâneo de entendimento e de desentendimento diante da compertinência entre
phýsis e lógos.
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Cultura é habitar sempre, porque para estar no seu habitat o ente já é dado como
o cultivo da terra. Ao vir à luz do mundo, cada ente está na dinâmica do ter sido
plantado pelo vigor da phýsis que, na escolha dessa colheita, já coloca o homem como
fruto deste mundo. Ser deste mundo significa: o modo de habitar condizente a essa terra
é o que nela se configura como próprio na articulação possível de se dar para a
existência, sendo sempre em si mesmo o mesmo e atuando do mesmo modo sobre o
mesmo para si mesmo.
Cultura acontece com o e a partir do habitar. Nunca se deu diferente essa
referência. Habitando, o ser se cultiva como ente. O cultivo e a colheita, com sua es-
colha e re-colhimento de semente-fruto, é o exercício originário do habitar. Assim,
habitar é fazer o exercício da colheita que tem se chamado pelo nome de cultura. Tudo
quanto é realizado como realizações dentro das realidades do real é cultura, é mostrar,
também numa outra dinâmica que é a mesma, a casa do ser. Existe uma relação entre
habitar e cultivar com o modo de o ser se dar enquanto linguagem. Na verdade, a
experiência da colheita, que como re-colhimento acontece também como es-colha, é a
experiência com a linguagem, em certo sentido. Os modos de es-colher, de colher e de
re-colher são o mesmo exercício que a linguagem faz com o ser do ente, enquanto tal.
No lidar cultivar-habitante, o homem já está desde sempre se fazendo como habitual,
construindo-se como habitação possível desse habitat, nessa terra.
Sempre que o homem diz que tem por hábito fazer tal coisa ou ser de tal jeito,
isso significa que já está presente e dentro de alguma conformidade o seu modo de lidar
com o cultivo, tentando fazer a experiência da terra e do habitar.
Habitar é acontecer como cultivador e cultivo, ao mesmo tempo. É também
fazer a experiência da terra. Não é possível habitar ou cultivar sem deixar a terra se dar
como terra, isto é, acontecer como sagrado e rezar a experiência do ser do ente,
146
enquanto tal. Habitar diz também, por um outro caminho, deixar o sagrado acontecer no
homem, com e para ele. A forma de cultivar e de habitar se dá como prece. A reza que
reza o homem é a sua mundidade acontecendo sob a luz divina do mundo enquanto
sagrado. Habitar é dar-se ao e como consagrado, fazendo a experiência do divino. O
mundo não existe sem o divino. Dir-se-á que ele mesmo é o mundo. Habitar o e no
mundo é deixar o divino acontecer como experiência originária. Dado como tal, mundo
é habitação. Habitar é, nesse sentido, fazer da habitação o encontro de reunião e de
consagração do homem junto ao sagrado, permanecendo em sua comunhão e se
mostrando como cultura do mundo. Todo habitar é sagrado; assim também todo
cultivar. Não existe uma real distinção a ser estabelecida entre ser, cultivar e habitar.
Ambos acontecem como mundo no destino da terra. A terra só é terra porque se orienta,
conserva e constitui como tal, porquanto pertence a ela fazer o ser-habitante-cultivador
acontecer como homem. O homem é o acontecimento dado ao mundo como habitação
para fazer a experiência do habitar, já dada e não vivenciada ainda e de todo,
estabelecendo, assim, o cultivar do ser enquanto ente. Cultivar o mundo e cultivar o ser
é sempre uma mesma coisa. É fazer o mundo como habitar. É tornar o mundo tão ou
mais habitual sob conformidade de todos os hábitos possíveis de operação das
realidades possíveis. O mundo habitual do homem só acontece no e com a experiência
do habitar, cultivando-se enquanto ente, fazendo a experiência de ser e existir no
mundo, conjurado ao e pelo sagrado.
3.4. Cultivar como prece
Cultivar é rezar o mundo como habitar. Rezar é a forma de o homem estar no
mundo. Aliás, fazer uma prece, fazer uma reza significa estar dentro da prece, dessa
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reza que faz o ser acontecer como habitar. O construir como habitar só é dado ao
homem porque é nele e em prol dele que o habitar surge como cultura de todo um rezar
experiencial da existência. Mas o que diz rezar? Por que rezar acontece no cultivar
originário de todo homem? Se ele acontece(u) sempre, deve ser essa originariedade
digna de fundamentação do ser do ente enquanto tal ou é mero processo articulatório de
verbalização do gesto do sagrado. Infelizmente, não há estudos a respeito. Mircea
Eliade e outros tantos falam do mundo profano e do sagrado, mas não se ativeram
meticulosamente ao agir do rezar. Algumas religiões o definem pelo modo como
acontece a prece, e/ou a reza é proferida em cada uma de suas instituições, mas nada é
mostrado como o que possa ser digno de uma observação consistente acerca do que é a
prece enquanto rezar. E ainda: o que isso tem a ver com o habitar, o cultivar e o ser.
Rezar, fazer uma prece, diz Benveniste vir de
*prek-/*prex- (e) designa uma atividade puramente verbal, não comportando meios materiais e consistindo num pedido geralmente dirigido por um inferior a um superior. É por aí que *prek- ‘pedido de um favor’ se separa da raiz – não atestada em outra parte – que é representada pelo verbo latino quaero e o nome de agente quaestor.87
Isso não é o suficiente para mostrar o que é rezar. Mesmo Benveniste fazendo
uma competente apreciação sobre prece, não dá ainda instrumentos que informem a reza
como acontecimento do ente, mostrando uma emergência do ser. O fato é que a reza
acontece. Dizer que rezar é um pedido de um inferior feito a um superior é a
formalização do rezar. Mas rezar parece ser mais do que isso. É dito que todo homem,
se não reza, sabe rezar, ou tem condições para tal. Rezar é um falar com o superior. Essa
fala o que diz; e por que diz o que diz; e como diz? Normalmente, a reza acontece num
momento de procura de encontro com o sagrado. Mas a situação revela, ao que parece,
87 BENVENISTE, Émile. “O quaestor e a *prex”. In: O vocabulário das Instituições indo-européias, vol II. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 162
148
um momento de urgência na instância originária do legein. Reza não é qualquer fala. É
o dizer dizendo o dito do lógos, no momento em que esse lógos se mostra com o divino
junto ao homem. O homem não reza. A reza é a comunhão que faz o homem estar
consagrado junto aos céus. Rezar é ir em direção aos céus, buscando o encontro com o
divino, com o extraordinário. O deus acontece no mundo como reza pelo dizer do
homem. O homem não diz a reza. Ele é deixado sob a experienciação do sagrado que se
nomeia como reza. Indo em direção ao divino, a voz que diz o dizer de cada reza é a
experiência ordinária do homem que vai ao encontro do extraordinário.
Por que o homem busca o extraordinário? O extraordinário, o divino, é o
desconhecido. A propósito, é dito que o homem é curioso; portanto, busca o
desconhecido; talvez, por isso, reze, tentando se encontrar com ele mesmo no e com o
sagrado. No entanto, o desconhecido sempre permanece como desconhecido. Não existe
nenhum conhecimento que cancele ou interrompa a busca pelo desconhecido como
encontro88. O homem, sempre, segundo o pensamento moderno, conhece mais. Mas,
quanto mais conhece, mais busca o desconhecido. Tratar do conhecido gera certo
marasmo e enfastiamento em muitos casos. A busca pelo desconhecido é constante e
dada. Não há como não admiti-la.
Parece, contudo, estar em jogo muito mais do que uma busca pelo desconhecido.
Reza não é um dizer qualquer buscando o encontro com o sagrado. O encontro com o
sagrado configura a experiência de o ente se dar e se encontrar enquanto ser numa
esperança ordinária sempre à espera, sempre à espreita e ao redor do extraordinário. O
ordinário só procura pelo extraordinário, pelo divino, porque sabe e pressente sua
88 Sobre a espera desse (des)encontro, Heráclito, em Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 63, já disse algo a respeito, no fragmento 18: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”. Tal afirmação diz o mesmo se fosse enunciada da seguinte maneira: Se se espera, se encontra o inesperado, sendo um caminho de encontro e com vias de acesso. Tal pensamento demarca o percurso do ser enquanto ente na busca e no encontro-desencontro junto ao sagrado, ao divino.
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vizinhança. O ente enquanto tal percebe-se nos arredores e sob a circunscrição de um
íntimo convívio com tal vizinho. O extraordinário habita o homem na sua vizinhança.
A reza é lógos se reunindo como habitação do ser. O homem só habita essa terra
à medida que consegue rezá-la. Todo o seu percurso junto a essa terra, a esse mundo,
não é a escolha arbitrada de um desenvolver-se colhendo e recolhendo o mundo como
tecnologias ou frutos de uma vegetação qualquer. A possibilidade de habitar só acontece
enquanto reza. É rezando que tudo acontece.
Rezar, a essa altura, significa: estar dizendo o dizer que constrói o mundo como
habitar e cultivar o sagrado junto ao homem, à proporção que o divino se presentifica
extraordinariamente com o ordinário. Sem essa referência, não existiria, talvez, a
possibilidade de o homem ser trazido à luz como acontecimento. A luz destina o
homem para o mundo à medida que habitar e cultivar se colocam como prece, como
reza. Rezar é o modo originário do lógos, fato que pertence à essência do ser enquanto
ente. Nos primórdios dos tempos, o homem não aconteceu como comunidade, como
civilização. No começo do pensamento, o rezar já acontecia para o e no homem,
traçando os destinos de seu cultivar e habitar essa terra. Distante de qualquer ciência e
tecnologia, foi rezando que o homem aconteceu como mundo e nessa terra.
Tal rezar está, é claro, longe de ser igualado a uma mera prece, casual,
subjugada a uma forma de agradecimento ou de pedido junto ao deus. Rezar era e é
permitir que o pensar aconteça como experiência do ser enquanto ente. Poder-se-ia,
então, perguntar quando o homem reza? O homem age enquanto reza o tempo todo,
porque todo pensar participa e se encontra como pensamento somente quando pergunta
pelo mundo junto ao sagrado. A luz do mundo deu a luz para o homem no seu
nascimento e a cada nascimento. Isso significa que o pensamento acontece como e junto
à luz do mundo do divino para o ser de cada ente. O homem se lumifica com a luz do
150
divino, porque o seu pensar é todo a reza originária, o lógos que reúne como existência
o vigor da phýsis acontecendo com, para e no homem. O homem só acontece à medida
de sua reza. Rezar diz, então, de um vigor originário do pensamento, buscando o
entendimento do mundo enquanto phýsis na referência ao lógos. A referência originária
do lógos acontece como rezar. Rezar configura, de algum modo, a maneira como o
homem estabelece a sua sacralização. O dizer primordial do lógos é um legein sagrado.
A ele, deu-se o nome de reza, ou prece, ou oração.
Rezar é cultivar e habitar o e no sagrado. A reza diz sempre o que não é possível
dizer como ordinário, nem sobre o ordinário. Rezar é estar diante de um vigor do lógos
originário. Não existe uma razão moderna que consiga dar conta da explicação do
porquê o homem reza ou crê em deus. Sob o julgo de tal razão moderna, não faz sentido
o homem rezar suplicando por algo ou agradecendo a deus os frutos do existir.
Realmente, sob essa perspectiva não faz nenhum sentido. Isso ocorre talvez mesmo,
porque há muitas coisas “sem sentido”, “sem lógica”, ou “sem fundamento”. Mas tal
razão curiosamente não pensou até hoje o que ela chama de raciocinar, lógica, ou algo
do tipo; e isso sim é evidente.
O homem só reza, porque a reza acontece como sentido do pensar. Rezar é o
pensar originário que reúne, num só encontro, o que o mundo moderno chama de
pensar/raciocinar e sentir. Tudo quanto o pensamento pensa é o sentido do mundo
enquanto reza. A reza reúne, num só vigor do lógos, pensar e sentir, pois não há como
considerar nenhum tipo de movimento com o sagrado, ou com o que quer que seja, com
o diálogo e a interseção de um pensar sem ser sentido e um sentir sem ser pensado.
Aqui, há mais um aspecto: é o sentir a reza que se dá e dá a pensar. Todo pensamento é
precisamente reza sob a orientação do sentir-sentindo. Rezar se dá sempre e à medida
que o sentir aponta como sentido, fazendo do cultivar o habitar do homem sobre a terra
151
e sob a luz do divino, numa referência de um no outro e ao outro. Todo sentir é entrar
em prece. Sentir se mostra como sentido pelo e no rezar, que dá acesso ao ser do ente
enquanto tal. O ser se diviniza quando corresponde ao e com o sagrado. Isso é o advento
do homem sobre o mundo nessa terra. O devir da reza é dar o mundo como habitar e
cultivar. Habitar e cultivar são o mesmo: rezar.
Habitando, o homem sabe-se em prece, junto ao divino, ao sagrado, fazendo a
sua consagração se estabelecer como advento originário do ser no mundo dos entes,
interferindo no cultivo e na colheita e tornando-se o intermediário do extraordinário face
à ordenação das realidades do real. A atuação do homem junto à realidade nada mais é
do que reza. Rezando-se, torna-se cada vez mais terra, no que se consagra como
também habitado no e pelo divino.
Não é fácil, de certo, encarar o habitar como reza originária do homem; isso, não
sem razão, não foi considerado nem cogitado até hoje. Mas o fato é que rezar não é um
mero dirigir-se a deus ou a qualquer entidade superior, proferindo alguma contingência
dos desejos para continuar na permanência desse mundo. É o próprio modo de o homem
acontecer segundo seu ser na medida de cada ente enquanto tal. Rezar é sentir o sentido
do habitar o mundo, nunca querendo se afastar ou deixar-se pôr em afastamento da luz
sagrada, surgida como nascimento para o homem, o que provoca o desencontro com o
sagrado, o divino, o extraordinário, que são em si mesmo o mesmo, agindo no mesmo
do ser de cada ente. Sentindo, o homem habita e cultiva e se colhe no recolhimento da
colheita.
Cultura é, para o ser, proveniente do modo como o ente se realiza como sendo.
O homem sendo está na disposição do ser do ente enquanto tal. Mas o homem só é, se o
sendo estiver na mesma referência em que o rezar habita e cultiva o e no homem.
Enquanto ente, o destino do mundo se dá como reza. A reza permite ao homem o
152
mundo como habitação e colheita, mesmo que os modos de habitar e colher sejam
múltiplos e variados. Aliás, é necessário que as maneiras de habitar e colher sejam
diferenciadas para que se perceba, pela diferença de cada ente, que o existir de cada ser
não é algo dado de modo uniforme. A identidade de cada ente se dá pelo somatório de
todas as diferenças. Somadas, elas dão o homem para o mundo, configurando o que se
chama de cultura, de humanidade, de civilização etc. A identidade não pode, então, ser
vista como a equalização das diferenças. Ela é o que, das diferenças, faz o modo de cada
ser acontecer enquanto ente, justamente pelos seus atributos e atribuições se realizando
como terrestre, como terreno, permitindo e dando acesso ao homem como o ser da terra
de todas as terras desse mundo.
Cada reza age como cultura à medida que se dirige e se encontra na vizinhança
dos céus junto ao divino, mostrando o lugar originário de cada habitar. Assim, o homem
é construído. Mas também o divino atua como divino e faz a experiência do homem na
dimensão do sagrado. Essa experiência só é dada ao ente porque nele está a disposição
de o ser se dar ao mundo pelas possibilidades e disposições da phýsis atuando junto ao
lógos originário, que reúne como vigor do pensamento a reza de cada cultura que se
inaugura e se instala sempre a partir do mesmo e sobre o mesmo dessa terra. Não há
como fazer a experiência do humano, fazendo a humanidade da terra, se a reza não
acontecer como habitação e cultivo do ser de cada ente enquanto tal.
153
4. Linguagem e pensamento: (des)caminhos do sentir
Heidegger falou: “linguagem é a casa do ser”89. Parmênides disse: “o mesmo é
pensar e ser”90. Considerar-se-á aqui a tentativa de um outro caminho, provavelmente o
mesmo. Existe uma referência originária entre linguagem, pensar e ser. No entanto,
quando se pensa, o que é o pensar? O pensar acontece quando pensamos. Quando
pensamos, somos. Nisso, somos a linguagem enquanto sendo.
Mas o que acontece quando o pensar se pensa? Há quem diga que nesse
momento se veiculam imagens91. Mas a veiculação de imagens não é da competência do
pensamento. Veicular imagens já é estar na disposição de uma forma do pensar. Tal
consideração mostra apenas parte da linguagem. Parte-se então do pressuposto, nesse
momento, de que o pensamento só ocorre em conformidade com uma linguagem pré-
existente e de todo dada, a ponto de o pensamento só conseguir ser executado a partir de
uma decodificação que o considera na oportunidade de ser veiculado da maneira com a
qual se veicula. A veiculação de imagens, se é tarefa do pensamento, constitui-se como
o que faz o pensar como um produtor de categorias morfologicamente determinadas por
qualquer tipo de simbologia. As imagens são o pensar. Como imaginação, já se adentrou
no âmbito da linguagem veiculada por qualquer idioma. Comparando com outras
categorias e tecnologias existentes no mundo, pode-se então afirmar que a natureza
pensa porque também veicula imagens. A organização do cosmos também faz o mesmo.
E mesmo uma televisão ou monitor veiculam imagens.
89 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1967, p. 55. 90 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 45. 91 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 75-77. Sobre o pensamento como imaginação e imagem, ver parte V desse capítulo, itens 62 e 63.
154
Caberia, então, partir para a consideração de que existe uma natureza que pensa,
um cosmos que pensa e um monitor pensante e todos se comportam da mesma maneira
que o pensar humano. Não existe, nesse sentido, diferença entre o homem e os demais
entes e/ou realidades e realizações existentes. Esse caminho considera que o pensar é
algo que se dá também fora do homem. Mas isso, certamente, é posto de lado, não tem
sentido. Há de se considerar o caminho um tanto quanto tortuoso.
Deve ocorrer que a questão do pensar não caminha nesse passo. Mas há de se
permanecer nas imagens por mais um instante. As imagens que o pensamento pensa
onde acontecem? Acontecem dentro da nossa cabeça. Então, o pensar é o que está
dentro de uma cabeça. Porém, dentro da cabeça estão uma série de parafernálias
fisiológicas, orgânicas e todas elas, ao que se sabe, não pensam. Dizer que o pensar é o
que se dá dentro da cabeça do homem aponta para o fato de se dizer a localização do
pensamento – mas, mesmo nesse ponto, ainda não há uma resposta satisfatória, porque
ainda permanece uma dúvida: onde realmente o pensamento acontece, dentro ou fora da
cabeça? Nisso surge uma outra situação: sobre o pensamento presente, que se dá no
momento em que o homem se coloca na disposição de tal dinâmica, alegar-se-á que está
dentro; mas e o pensamento que já foi pensado, nunca editado, assim como o que será
talvez, quem sabe, um dia, pensado, onde se localiza, fora da cabeça? O pensamento é
algo de dentro e de fora, poder-se-ia dizer. O pensamento está em todos os lugares, essa
seria a conclusão. Mas o homem mesmo sabe que não é assim. Diante sempre de um
pensamento novo, ele se coloca como o detentor de uma idéia possuidora de muito mais
fronteiras e limites do que qualquer continente neste mundo. O pensamento próprio é de
cada indivíduo e tão individual que nunca chega a ser do conhecimento do mundo dos
outros entes pensantes, outros homens. O pensamento possui limites intransponíveis.
Nem mesmo por telepatia se consegue ler determinadas considerações, ou elucubrações,
155
sobretudo, as tidas como originais, ou inovadoras. Mas é certo também que, por
telepatia, consegue-se chegar a ler os pensamentos do outro. Como é que se lê um
pensamento? Quando lido, quando na realização da leitura, o que se lê é ainda o pensar,
ou a linguagem, ou uma representação de linguagem. Há quem possa considerar que o
que se lê são as imagens interpretáveis daquele pensar. Então, volta-se para a imagem.
Outra questão surge: existem, dessa maneira, imagens interpretáveis e imagens não-
interpretáveis. Como afirmar que uma imagem não é interpretável, se, para dizer que o
não interpretável não é passível de interpretação, é preciso ocorrer, de algum modo, um
tipo qualquer de justamente interpretação? Diz-se que uma imagem é não-interpretável
e isso significa que há maneiras do pensar acontecer de tal modo que o pensamento não
é passível de interpretação. Todavia, como pode o pensar se mostrar destituído de uma
forma de interpretação? Seria acaso um pensamento com defeito ou algo do tipo?
Mesmo assim, um pensamento com defeito seria, ainda, nesse caso, o resultado de um
pensamento. O pensamento não-interpertável acontece como imagem que não se
mostra. Tal condição é fortuita e parece razoável na medida em que, se um pensar
acontece como algo que não se mostra, não pode ser entendido como o que foi pensado;
pois na ausência da mostragem, necessariamente, não deveria ter ocorrido nenhuma
possibilidade do movimento de pensar. Uma imagem não-interpretável parece, então,
comportar-se como uma forma, talvez, chamada de atípica de pensamento. Assim,
acredita-se entender que o pensamento acontece de duas maneiras, ao menos: uma
típica, interpretável; outra, atípica, não-interpretável. Seja qual for a forma de ele
acontecer, seria sempre um pensamento.
Não há, nesse momento, ainda, a oportunidade de se considerar a lógica, mas há
de se seguir em parte esse caminho. Dizer que o pensar acontece como interpretável e
não-interpretável deve ser o mesmo que dizer que há pensamentos lógicos e não-
156
lógicos. Na verdade, um pensamento lógico é tanto quanto ilógico. A questão da lógica
é sempre determinada por um parâmetro qualquer previamente dado e estabelecido as
mais das vezes de modo arbitrário, mas admitido no seio de uma determinada cultura. A
propósito, os vieses culturais são eficazes em mostrar que as lógicas se desencontram na
multiplicidade dos seus universos . Há muito mais conflitos lógicos no mundo do que se
pode supor. E às vezes não é necessário nenhum código verbal para se determinar tal
situação.
Mas, voltando: o não-interpretável é o ilógico do pensamento. O pensar nesse
ponto é avaliado a partir de uma medição acerca do entender92. Há aqui de se considerar
medição. Quem acredita no lógico é igualmente crente do ilógico. Essa pessoa,
certamente, não faz sentido. Não faz porque ela tem que se perguntar em que momento,
a partir de que pensar, surgiu a autorização e a autoridade de determinar o estatuto da
lógica. Não existe pensamento lógico ou ilógico. Existe pensar. Ninguém, nem mesmo
o pensamento, tem como dar ao mundo e aos entes a possibilidade de aferir o que é da
competência da ordem do mundo. Nenhuma definição sobre o que é da competência da
Lógica, mesmo como Ciência, serve para aferir qualquer grau de sua própria orientação
conceitual. O conceito de que a Lógica dispõe, apresenta de igual modo o ilógico. Na
verdade: o conceito que se confere à lógica partiu de uma determinação e regulação
qualquer de um pensamento assim designado para tratar de certas competências das
realizações entre algumas das realidades do real, e deste modo se conformou. O seu
percurso em nada difere de qualquer organização mental, seja ela científica, filosófica,
cultural, religiosa, que tenha passado a figurar a partir de determinado momento da
92 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 27. Na parte I desse capítulo, Wittgenstein começa indagando com as seguintes perguntas: “Como se pode falar sobre ‘entender’ ou ‘não entender’ uma proposição? Por acaso, não é uma proposição até ser entendida?”. Mais adiante, no final dessa parte, afirma: “é estranho que a ciência e a matemática façam uso de proposições, mas não tenham nada a dizer sobre o entendimento dessas proposições”. Isso mostra o quanto até hoje não foi apreciada a questão do pensamento sob nenhum aspecto, nem ao menos sob a sua forma proposicional.
157
história do homem e, assim, a prestar serviço nas atribuições e nas atribulações do
mundo. Dessa forma, não há como acreditar na existência de um pensamento lógico ou
ilógico, interpretável ou não-interpretável.
O pensar volta, dessa forma, à questão de ser uma imagem. Ocorre que a
recíproca não é verdadeira: uma imagem não é um pensamento, porque não é capaz de
pensar. Dizer que ela é a representação de um pensamento que foi pensado, não é
suficiente para considerar que a representação como imagem é o que deu o pensar. O
pensar, orientado a partir da representação, não é satisfatório. O pensamento não
representa o pensar, nem se representa como imagem. O pensar pensa e não se constitui
de outro modo. Se representa, cabe perguntar: o que representa a representação do
pensamento enquanto tal? Existe um pensar que aconteça sob um pensamento
genuinamente representado? Toda e qualquer forma de representação é, ao que se
mostra, uma figuração. Uma figura do pensamento é apenas o resultado do exercício do
pensar. O pensar visto como um resultado é uma dificuldade acerca do entendimento do
estar pensando.
Aqui, vale rememorar outra apreciação sobre o pensar: ele é entendido como um
exercício da mente. Como exercício, tenderia a um tipo de melhor performance. O
pensamento é o exercício performático da mente93. Aqui, há três fatos considerados: 1º
o pensamento é a mente; 2º o pensamento é um exercício; 3º o pensamento se
aperfeiçoa por meio de uma performance.
O primeiro fato apenas coloca o pensamento confundido com o instrumento
fisiológico de sua faculdade, facultando-o enquanto pensar. O segundo se mostra como
uma tarefa a ser desempenhada num quando qualquer da vida, ou no tempo todo dela. O
93 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido – Parte V”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 78. Nesse momento, Wittgenstein diz: “É uma deturpação da verdade dizer ‘O pensar é uma atividade de nossa mente, como escrever é uma atividade da mão’”.
158
terceiro faz do pensamento algo que é passível de melhorias em sua execução. Nenhum
dos três considera o que realmente o pensar pensa.
A mente é um artefato. Por nenhuma razão, a mente é o cérebro que pensa.
Podia ser qualquer outra parte do corpo humano aquela a ter a correspondência do
pensar. Aliás, há quem diga que alguns homens pensam com o coração. É bom aqui
atentar para o cérebro. A biologia moderna diz: um cérebro com grande atividade
mental (leia-se: em plena atividade pensante) realiza várias sinapses. Mas o que pensa
uma sinapse? Talvez nunca tenha pensado. Se ela não pensa, como ela contribui para o
pensamento pensar e acontecer enquanto tal? Uma sinapse acontece pela atividade dos
neurônios. Estes se dão por meio de descargas elétricas. O que a eletricidade dos
neurônios, donde decorrem as sinapses, produz como pensamento? Certamente, não há
resposta, porque uma sinapse, um neurônio ou uma descarga elétrica não são da ordem
do pensar. Então, o pensamento não é a mente, ou o cérebro; mas outra coisa diferente.
Se se considerar o pensamento como exercício, os caminhos também se mostram
difíceis. Há de se enveredar pelo entendimento de que o pensamento acontece à medida
que se exercita. Bom, sobre o ser humano, diz-se que ele está sempre a pensar. Por esse
viés, o exercício corre o risco de ser medido em razão do tempo de vida de cada
indivíduo. Quanto mais se vive, mais se pensa. Mas parece que isso ainda pode ser
contra-argumentado, alegando-se que o exercício do pensar acontece somente e
sobremaneira junto aos grandes homens “pensadores” da humanidade. Talvez se
arrolem aqui o nome de alguns filósofos, pesquisadores, cientistas, artistas, ou algo do
gênero. Isso talvez seja possível. Contudo, parece que a realidade não se patenteia e não
se conforma diante de tal observação. Não é difícil ver, na biografia de muitos deles,
uma impossibilidade da atividade mental quando acometidos por uma deficiência
mental, uma esclerose etc., no fim da vida. A biologia e fisiologia humana parecem não
159
cooperar no mesmo sentido. Já que sobre homens desse galardão compete mostrar o
quanto o pensamento se desenvolveu, mediante tamanho exercício durante a sua vida
intelectual, eles acabam por não se colocarem como as melhores representações para o
exercício do pensar.
O pensamento, quando pensa, se exercita: tal declaração pode parecer simples de
afirmar, mas nada fácil de constatar. Nesse momento, há, então, de se entender que
pessoas mais idosas desempenham mais e melhor, o tempo todo, o exercício do
pensamento. Mas existe quem alegue que há crianças, adolescentes e pessoas mais
jovens que demonstram uma atividade mental intensa, colocando-se mesmo como
novos “gênios” da humanidade. Percebe-se aqui que tal fato gera uma contradição
historiográfica para localizar com precisão o que é o pensamento como exercício. Isso
inviabiliza qualquer possibilidade de entendimento das temporalidades do pensamento,
sofrendo o processo de maturação e destreza no percurso de vida do próprio pensar.
Como exercício, o pensamento se dá mediante um aperfeiçoamento e sua
performance. O pensamento, agora, deveria ser entendido como uma atividade mental
que é cada vez mais pensamento à medida que o pensamento evolui. Mas como medir a
evolução do pensamento? Normalmente, isso é feito comparando momentos
historiografados e a partir de tal cronologia do mundo é dito que o pensar humano
evoluiu, sem contar o fato de que nessa hora o que é chamado de evolução é decorrente
da comparação entre hábitos existentes e não mais existentes. Evolução é o
comportamento da moda. Se a moda muda, e mudou, evolui-se, é o que se diz. Assim, a
conclusão única possível é a seguinte: o pensamento desempenha sua performance à
medida que acompanha a mutação da moda.
O que a moda modela é a predestinação do pensamento. A exibição do
pensamento na passarela do pensar humano é correspondente ao desfile a ocorrer em
160
função do modelo da moda chamada evolução. Em termos mais cientificistas, a moda é
a teoria nova. A performance do pensamento é a freqüência do exercício que
acompanha a mudança das teorias velhas em teorias novas – talvez seja isso o que tal
consideração esteja levando em conta nesse momento. Mas aí ninguém até agora atinou
para o fato de que a passagem de uma teoria a outra não é evolução, sobretudo, se elas
forem distintas. Aliás, mesmo permanecendo em suas semelhanças. Importa observar
que, sendo a velha ou a nova, o pensamento permanece como teoria. A performance do
pensamento é o exercício da moda enquanto teoria e coisas do gênero. Tudo quanto aqui
se quiser elencar pode ser elencado, mas parece que o pensar não conseguirá se desviar
dessa estagnação performática considerada acerca do pensamento, quiçá do próprio ser.
Mas talvez não seja nada disso.
O que está sendo feito até aqui é o que Wittgenstein, de certo modo, expressou
quando disse: “A idéia do pensamento como um processo inexplicado na mente humana
torna possível imaginá-lo transformado em uma condição amorfa persistente”94. Tal
afirmação de Wittgenstein não é um pensamento elogioso, mas a constatação de que o
pensamento ainda não foi considerado na sua devida forma de pensar. Em tempos mais
recentes, ele fez um esforço considerável para se aproximar do que fosse o pensar
enquanto linguagem. O pensamento, para muitos, é uma condição amorfa persistente.
Tal condição faz dele algo ainda inexplicado.
De um modo geral, a linguagem enquanto pensamento é vista como um
mecanismo psicológico ou sociológico, em que os gestos de pensar não são formas de
agir, mas algo determinável, em certa medida, pelas possibilidades de interpretação dos
fatos e eventos. Isso não parece suficiente, porque inverte a condição de pressupostos.
Observa-se a linguagem em razão do meio em que o pensamento opera e por quem
94 WITTGENSTEIN, Ludwig. “Parte VII – A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 106.
161
opera. Aí na verdade se considera a linguagem como um advento do ego, veiculando as
subjetividades de uma sociedade já determinada pelo comportamento que é interpretado
como condizente ao sujeito enquanto indivíduo. Mas a linguagem não é o indivíduo.
Linguagem nunca é individual. A apreciação da linguagem por meio de onde pensar
provém ou se determina é um desvio do entendimento acerca do encontro com a
linguagem como pensamento. Wittgenstein comenta num outro momento:
Uma explicação da operação da linguagem como mecanismo psicológico não é de nenhum interesse para nós. Tal explicação usa, ela própria, a linguagem para descobrir os fenômenos (associação, memória etc.); é, ela própria, um ato lingüístico e fica fora do cálculo, mas precisamos de uma explicação que seja parte do cálculo.95
Importa notar que o pensamento de Wittgenstein também se conforma dentro de
um método a querer determinar a operação da linguagem. Efetivamente, ele não pensa o
pensar, mas tenta averiguar como o pensamento acontece mediante as proposições e
seus sentidos. Mas sua afirmação mostra algo já mencionado aqui: o fato de a
linguagem ser inoportunamente medida ou considerada a partir das muitas formas de
avaliações possíveis. A psicologia pensa linguagem como algo interpretável pela
própria psicologia; assim o faz a sociologia, a física, a lingüística e todas as demais
determinações humanas, sociais. Nesse momento, a linguagem é pensada não como
pensamento, mas como e a partir de outras finalidades não condizentes com o seu vigor
e o modo de se dar diante da realidade.
A linguagem existe antes de quaisquer determinações das citadas há pouco. Não
é possível querer chegar a um entendimento razoável se se fizer esse percurso pelo
caminho inverso. É possível, acerca das construções humanas, dar uma interpretação,
por exemplo, à função do edifício, e isso pode ser feito pelo olhar da psicologia, da
95 WITTGENSTEIN, Ludwig. “Parte II - A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 50.
162
sociologia, da engenharia etc. Mas a linguagem não é um edifício, o pensamento muito
menos, até porque ambos acontecem dentro da mesma referência. Pensar e dizer são o
mesmo. E, de certo, não se há de pensar no dizer como mera articulação acústica que
executa fonologicamente ou graficamente as sentenças e ou enunciados em geral. O
dizer é o pensar, numa mesma dinâmica.
4.1. A linguagem diz e não fala
A questão da linguagem é de uma busca incessante. Nela, o ser enquanto ente se
mostra e se dá cumprindo o seu destino. A linguagem é o que se coloca como sentido
para o ente, enquanto ser. Mas isso não acontece quando se fala. Existe uma referência
entre falar e dizer, é o que se pensa normalmente, mas não é bem isso o que ocorre.
Heidegger disse que: “Dizer e falar não são porém o mesmo. Alguém pode falar, falar
sem parar e não dizer nada. Por outro lado, alguém pode ficar em silêncio, não falar e
nesse não falar dizer muito”.96 O fato de haver tanta fala e tão pouco dizer pode ser
considerado a partir da experiência que o homem faz com a linguagem no mundo
ocidental moderno. A linguagem se coloca para ele como mero instrumento de
consumo. Para consumir o mundo de maneira comunicativa, ele dana a falar. A fala
como ferramenta fica destinada a servir como instrumental para as articulações
rotineiras dentro do cotidiano. A fala é, nesse sentido, se fazer valer de um dado
conjunto de palavras e sentenças para que, sob sua vontade, possa estabelecer e manter a
aparente ordem do viver na sociedade moderna. Não é da ordem do comportamento
moderno estar comprometido com a palavra senão numa dimensão da utilidade. O
utilitarismo junto à linguagem e o pensar não funcionam, porque não se correspondem. 96 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. p. 201.
163
O pensamento enquanto linguagem, grosso modo, não tem utilidade. Isso significa que
pensamento e linguagem não se dão no mesmo lugar do que se entende por útil ou
inútil. O pensamento é o pensamento porque é isso o próprio do pensar e acontecer
como linguagem. Não existe outra possibilidade de referência com relação a ele.
A linguagem se comporta sempre no seu destino independente dos desatinos e
descaminhos do mundo. Se o mundo se conforma dentro de parâmetros e crenças que
regem as realizações e a realidade para o caminho operacional da trivialidade do
cotidiano, é de se notar que a phýsis e o lógos não se comportam da mesma maneira.
Sempre o que se dá como instância originária não se modifica pelas tecnologias da
modernidade. Uma árvore, por exemplo, não se modificou com o advento da
modernidade, com a revolução industrial ou os tecnologismos informáticos e
performáticos dos últimos tempos. Uma árvore continua se plantando, nascendo,
crescendo e se desenvolvendo tal como a primeira árvore do mundo. Um cachorro
também segue o mesmo destino. Uma criança é dada à luz por meio de uma mulher e
isso não acontece de outra maneira senão da mesma com que nasceu a primeira criança.
Podem-se inventar vários tipos de partos e mesas operatórias, mas o nascer é sempre o
mesmo. As doenças sempre acontecem como doenças e a morte é sempre da mesma
maneira. O deixar de existir é sempre o mesmo. Tudo isso não se moderniza, bem como
o pensamento e a linguagem. Não há tecnologia ou sucessão historiográfica dos tempos
e de seus acontecimentos que modifiquem o modo de o dizer ser dito, enquanto
pensamento e linguagem.
Aliás, sobre o tempo, vive-se acreditando que a sucessão temporal acontece
cronologicamente. A dificuldade que se soma ao entendimento do existir e do ser do
ente na linha do tempo tem sido medido a partir de uma sucessão de momentos em que
o primeiro acontecimento é deixado de lado em função do evento seguinte. O último
164
momento e o momento presente, na verdade, a rigor, quase não mais interessam, ou
acontecem junto ao interesse do próprio ente. O homem, como ente, sempre vive a
expectativa de um futuro melhor, muito provavelmente porque os momentos anteriores
já são dados a priori como momentos piores. Isso explica a questão do consumir e do
cálculo como consumo. Heidegger, sobre isso, diz que
Pensando em tempos modernos, o tempo é algo que o homem coloca em seu cálculo, e isto como o enquadramento vazio da progressão das ocorrências, uma depois da outra. Em toda parte, não somente na física, o tempo é o “parâmetro”, isto é, aquelas coordenadas, ao longo (para0) das quais transcorre toda medição (me0tron) e cálculo. O homem usa e consome o tempo como “fator”. Como conseqüência dessa disposição, que consome e consuma, o homem constantemente tem cada vez menos tempo, apesar de seus esforços de economizar tempo, isso porque economizar e poupar tempo é necessário até mesmo nos mais ínfimos procedimentos tecnológicos. Para o homem moderno, o sujeito para o qual o “mundo” se tornou exclusivamente um “objeto” uniforme, também o tempo tornou-se um objeto de consumo. O homem moderno, por isso, sempre “tem” cada vez menos tempo, porque, de antemão, apropriou-se do tempo somente como cálculo, e fez dele uma obsessão, embora ele presumivelmente seja o legislador, cujas leis dominam o tempo. Para o pensamento primordial grego, pelo contrário, o tempo é que concede cada vez mais tempo e é ao mesmo tempo o tempo concedido, e assim lança o homem e todos os entes em sua disponibilidade, determinando em todos os casos o aparecer e o desaparecimento dos entes. O tempo descobre e encobre.97
Tal conformidade dos tempos modernos mostra o tempo como medida feita e
dominada. A contradição da qual ainda o homem não se deu conta é a de que, mesmo
pensando em dominar o tempo, em controlá-lo de alguma maneira, ele está sempre a
reboque do domínio do tempo, que não se domestica. Não é possível domar o tempo,
ainda que os aparatos tecnológicos, ou a física moderna, ou qualquer outra teoria
venham a ser considerados. Não há como fazer com que o tempo seja regulável ou
determinável. O homem não é quem dá o tempo. O tempo é que se dá para o homem
97 HEIDEGGER, Martin. “Parte III, seção b”. In: Parmênides. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 203-204.
165
junto ao seu destino histórico diante da disposição do ser enquanto ente. O surgimento
do tempo é sempre algo que permanece dentro de sua dinâmica originária, mas sendo
vivenciado pelo homem, na contramão historial do mundo, como acontecimento.
Heidegger, mais uma vez, sobre como tempo se comporta na sua instância
originária, diz:
“Tempo”, compreendido de modo grego, xrónov, correponde
em essência a to9pov, que erroneamente traduzimos por “espaço”. Porém, topos é o lugar, e especificamente aquele lugar ao qual algo pertence, por exemplo, fogo, chama e ar para cima, água e terra para baixo. Assim como to9pov dispõe a pertença de um ente para seu lugar de presentificação, assim o xrónov dispõe a pertença do aparecer e desaparecer ao seu “então” e “quando” destinados. Por isso, o tempo é chamado de makróv, “amplo”, no sentido da possibilidade, indeterminável a partir do homem e marcada cada vez pelo tempo singular, de liberar os entes para o seu aparecer ou retrair-se. Uma vez que o tempo tem sua essência neste deixar aparecer e retomar, o número não tem nenhum poder em relação a ele. O que concede a cada ente, cada vez, seu tempo de aparecer e desaparecer, se subtrai essencialmente a todo cálculo.98
O sentido grego de tempo não é só o modo de trazer para a discussão nos dias de
hoje um sentido que não está mais em voga, ou que não se realiza na mesma
compertinência. O tempo grego, entendido por makro0v, é algo que ainda é do vigor
originário que não se esvaiu ao longo do mundo. E como originário, não deixou de
acontecer na mesmidade de sua presença, descobrindo e encobrindo o mundo enquanto
phýsis e lógos. A amplitude do tempo não é determinável pelas humanidades. A
disposição do tempo se dar para o mundo e para o ente enquanto tal não é um
determinador das formas de agir e construir e habitar o mundo. Isso não revela a sua
verdade enquanto alétheia.
O movimento da verdade é o mesmo do tempo enquanto makro0v, e isso, de
algum modo, é registrado pelo homem quando diz o seguinte a respeito de alguns
98 HEIDEGGER, Martin. “Parte III, seção b”. In: Parmênides. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008, p. 202.
166
acontecimentos: o tempo sempre trará a verdade à tona; ou deixa estar que o tempo dirá
a verdade. O que está em jogo nessas sentenças tão costumeiramente freqüentadas no
cotidiano moderno, ainda surge como o que permanece acerca do vigor e da presença do
tempo no sentido originário do pensamento grego. Lamentavelmente, não há uma
observação acontecendo de modo experiencial sobre tais declarações. Mas o tempo ser
trazido à presença como resquício do passado grego é o fato de que tempo e verdade se
encontram numa mesma referência de disposições e possibilidades acontecendo para o
ser do ente nesse mundo. Heidegger lembra que o “tempo descobre e encobre” e isso é o
mesmo caminho de vigor da deusa verdade. Verdade como desencobrimento acontece
no limite e no limiar de cada tempo, na singularidade de cada ente. A verdade vem com
o tempo significa, de algum modo: ela acontece no encobrimento como desencobrir de
cada ser, à medida que o tempo dá o homem para a sua verdade, cada uma em si mesma
a mesma. Verdade e tempo acontecem no mesmo movimento do lógos mediante o vigor
da phýsis, possibilitando, numa mesma referência e compertinência, a experienciação do
ser enquanto ente. O descobrimento na sua essência é o que dá a indicação de acesso ao
ser sendo. O ser sendo se mostra na disposição e vigor do humano enquanto ente e, a
cada maneira de entificar-se, o tempo surge na mesma dimensão do existir de cada ser,
fazendo a experiência da existência e acontecendo diante do mundo cultivando-se em
seu mitho0v como habitação e reza, realizando as realizações da realidade do real junto
ao extraordinário.
O desencobrir-se no encobrimento é o que acontece como o vigor de cada ente
enquanto ser. O ser acontece como ente à proporção que a realidade o conforma
mediante um modo de entificar-se, para daí fazer a experiência do existir. Tal
experienciação é o acontecimento sempre ordinário a acontecer na dimensão mesma do
extraordinário. Para tal acontecer, ordinário e extraordinário se encontram no mesmo
167
tempo e na mesma verdade, fazendo a experiência do existir com o e pelo
desencobrimento do encoberto do mundo enquanto lógos, convivendo e partilhando do
vigor da phýsis. Em tal caso, o sagrado se revela também como encontro possível junto
e no ordinário.
É nesse campo de convivência que verdade e tempo se localizam e se dão para o
ser de cada ente. Mas onde está o pensamento e a linguagem nesse caso? Pensamento
acontece como linguagem na disposição de cada tempo, revelando-se na referência da
amplitude que se dá no desencobrimento do encoberto do ser e no momento em que o
ente surge como sentido e orientação do lógos. O pensamento enquanto linguagem é
uma disposição do lógos que tudo reúne, trazendo o homem como mito para
permanecer em seu habitar, cultivar e rezar na história do mundo.
Por outros caminhos, Heidegger já falou o mesmo, quando disse:
Para sermos o que somos, nós humanos permanecemos
entregues ao vigor da linguagem, sem dele nunca podermos sair de maneira que pudéssemos vislumbrar esse vigor sob outro prisma. E é por isso que só vislumbramos o vigor da linguagem è medida que a linguagem nos olha, nos guarda e nos apropria. Conceito tradicional de saber como representação não nos possibilita saber nada sobre o vigor da linguagem. Isso não é, contudo, de maneira alguma uma privação, sendo, ao contrário, o que favorece um âmbito privilegiado no qual nós, recomendados para a fala da linguagem, habitamos como mortais.99
A permanência no vigor da linguagem é que faz com que o ente do ser se dê
como olhado, guardado e apropriado. É no olhar que o ser enquanto ente habita; é no
guardar que ele se mitifica e reza; e é no apropriar que ele se cultua como cultivo e
colheita dessa terra. Nessas correspondências, que são sempre o dizer o mesmo, o ente
acontece na sua humanidade, co-pertencendo à phýsis e ao lógos como linguagem.
99 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 214.
168
A linguagem, casa do ser, estabelece o vigor vigente no lógos, para que se dê
como o que é próprio do ser e aconteça e permaneça como dizer. Ela acontece como o
lugar, horizonte e destino primordiais, originários do ser de cada ente, fazendo com que,
no lugar, o ente se mostre como desencoberto e, no horizonte, coloque-se o destino do
desencobrir da verdade e do tempo enquanto tais. Como palavra, seu desempenho não
se submete a qualquer consideração do agir do homem, mas somente sob esse prisma é
que ela tem sido utilizada. Heidegger afirma o seguinte a esse respeito:
A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em
nenhum lugar em que o destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural, essa que nomeia que o ente é e como o ente brilha e brota. A palavra para a palavra, um tesouro na verdade, nunca foi encontrada na terra do poeta; mas e na terra do pensamento? Quando o pensamento procura pensar a palavra poética, mostra-se que a palavra, o dizer, não tem ser. Nossos hábitos representacionais reagem todavia contra esse entendimento. Todo mundo vê e escuta palavras, tanto na escrita como na língua falada. As palavras são. As palavras podem ser como as coisas são, a saber, perceptíveis para os sentidos. 100
Por isso, é difícil pensar linguagem nos tempos atuais precisamente porque ela
não é pensada. Assim como verdade e tempo, ela não acontece como disponível para o
maquinário das ações cotidianas. Interessa já aqui notar que Heidegger coloca a questão
do dizer e do falar como um perceber, considerando o equívoco comum observado
sobre o que são as palavras quando tentam dizer o pensamento, sobretudo o pensar
poético. Tal apelo para o perceber aponta o sentido equivocado de seu uso,
demonstrando estar presente uma relação com os sentidos não apenas material e
concreta, mas se dando a partir do que mais superficial os sentidos promovem como
percepção. Isso certamente ainda decorre de uma conta que o cálculo moderno não
consegue calcular e nunca mesmo conseguirá, porque o vigor do perceber não é
calculável por cada um dos sentidos dos quais o ser humano dispõe. 100 HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 150.
169
O cálculo medindo a linguagem a partir do falar e do dizer compromete o vigor e
a vigência do pensar e, mais ainda, compromete a sua própria condição matemática, de
precisão e exatidão, inerente a qualquer cada calcular. Se o cálculo não se mostra como
capaz de calcular com precisão, ele mesmo se torna inoperante como calculador no seu
desempenho como elemento de precisão, visto que a própria modernidade e seu modo
de lidar com a realidade fazem com que qualquer competência de realização de suas
atribuições diárias não se satisfaça dentro de sua mesma funcionalidade.
A condição do cálculo está destinada à falência pelo modo como a sociedade da
exatidão se destina. Mesmo sabendo que a realidade não se conforma baseada no
princípio da precisão, há sempre um discurso da objetividade, ora como pano de fundo,
ora como o discurso majoritário, a determinar os modos de apreciar e definir o
comportamento da realidade do real. Sobre isso, Heiddeger expõe:
Como no entanto o pensamento de hoje tem se tornado cada vez mais decisiva e exclusivamente cálculo, ele concentra todas as suas forças e ‘interesses’ disponíveis em calcular como o homem pode imediatamente instaurar coisas no espaço cósmico desprovido de mundo. Esse tipo de pensamento está a ponto de abandonar a terra como terra. Enquanto cálculo, o pensamento se empenha com velocidade e obsessão na conquista crescente do especo cósmico. 101
Perdido como ânsia matemática e determinística, o pensamento moderno lança o
homem para o abismo do ser, provocando o desencontro entre o ser e o ente no
desempenho de sua humanidade. Tal desencontro não acontece como o episódio ou o
evento momento que advém de uma correria isolada no meio da contemplação do agir
de cada ente. O desencontro é mesmo a realidade de uma celeridade típica e oriunda da
mesma emergência do cálculo como forma de lidar com o pensamento. O pensamento,
sob a vigência da ânsia matemática da modernidade, comporta-se sempre se refazendo
101 HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 147.
170
como um calcular que a própria matemática não plenifica. A disposição matemática
acontece com o propósito de acelerar o pensamento como eficácia. O destino de eficácia
é viver o embate com a ineficiência. O conceito da ineficácia ou da ineficiência não
edifica como edifício. O edifício que a cada instante se constrói acontece como
destruição de cada eficiência já consolidada como deficiente. Após cada cálculo
eficiente, há a prescrição da necessidade de mais e mais eficiências. O destino do
mundo matematicizado, objetivado, é viver prisioneiro da objetividade, que não se
comporta diante de nenhum objetivo. Nada se sustenta e se assegura como componente
da realidade porquanto cada realidade calculada tende a ser superada por uma nova
razão de cálculo, tentando, ansiosamente, mostrar-se como o mundo assegurado por
meio da matemática das operações e realizações do cotidiano. A objetividade só pode
ter como destino o objetivo sempre a ser superado por um novo objeto, face ao que, já
calculado, não pode mais ser medido, porque essa ou aquela conta, essa ou aquela
matemática já somaram o que poderia ser somado. Assim, a conta do cálculo é a ânsia
que não se pode contar. Mesmo porque, não dá tempo de a contabilidade existir como
cálculo no destino do ser. A essência do cálculo é o viger da ânsia dos tempos atuais. E,
na ansiedade, o tempo consome o homem, na dimensão do ser do ente enquanto tal.
4.2. Pensamento: linguagem e sentido
Gilles Deleuze trata da questão do sentido das proposições da seguinte maneira:
O sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as designações possíveis e mesmo para pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que o eu começa a falar; eu não poderia começar sem esta pressuposição. Por outras palavras: nunca digo o sentido daquilo que digo.102
102 DELLEUZE, Gilles. “Quinta série: do Sentido”. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 31.
171
Delleuze considera a questão da linguagem como sendo aquela que possibilita a
existência das sentenças e das proposições se dando sem veicular o sentido nelas
existente. Assim sendo, o sentido não é veiculado, segundo ele demonstra em seu
argumento. Mas, se, por um lado, ocorre a consideração de que as proposições não
veiculam sentido, já que ele nunca é dito, por outro lado, há de se atentar para o
seguinte: como pode uma proposição não dizer o sentido? Como é possível entender
uma proposição, se nela não vem o sentido, mesmo se considerando que a priori o
sentido não é veiculado? Isso parece um contra-senso e por duas razões a serem
imediatamente observadas: primeiro, porque se deveria falar apenas de sentenças;
segundo, porque o sentido nunca poderia ser apreendido, visto que nunca é veiculado.
Não é sobre sentenças que o entendimento se dá. É a partir das sentenças que
ocorre a possibilidade de se aproximar do que ela veicula, no que são dados os
entendimentos possíveis. Uma sentença por si só não comunica nada. Sempre há sentido
no que se comunica. Aliás, o que há sempre é sentido e muito pouco a sentença. É
muito comum encontrar quem entenda uma sentença ou proposição não pelo que nela
foi dito, mas pelo sentido que por ela foi expresso, mesmo que o que se sentiu não
corresponda ao significado do conjunto vocabular contido na proposição enunciada.
Pode-se até alegar que a pessoa não ouviu o que foi dito. Isso, de fato, ocorre. Mas
certamente não ouviu o dizer preciso da sentença, porque a medição de cada precisão se
mostrou como e pelo sentido. Pode-se até alegar que ouve uma pressa no ouvir de modo
que apressadamente não se ouviu o que foi dito. Mas o apressar do ouvido é algo que
não se determina pela lentidão da sentença enunciada, porém apenas pela sentença
auditada. A sentença falada, a propósito, muito pouco freqüentemente passa e/ou
veicula o mesmo dizer da sentença ouvida, porquanto a sentença que fala carrega
172
consigo as experiências correspondentes à experiência da fala, dita na diferença de cada
ente, fazendo a experiência do ser. O que se ouve, contudo, passa pelo conjunto de
experiências do ente-ouvido, ouvindo a fala não do outro, mas a do seu próprio modo de
entender-se com o lógos, que só para ele fala o que diz. Ou seja: pelas diferenças
contidas entre o falar de um com o ouvir do outro, a referência dada como possível
acontece sempre a mesma, mas nem sempre articulando a igualdade como igualdade de
conteúdo proposicional. A referência existente entre o ouvir e falar de cada proposição
articula, para cada ente, uma proposição que passa pela diferença do ente em sua
identidade. Não é possível entender com o ouvido a matemática do que foi dito. A
matemática não acontece nem no dito que se coloca como dizente, nem no ouvido que
se coloca como audiente. O que existe é uma interferência de sentidos entre uma
proposição e outra, entre uma fala e outra. Mas também só se percebe o sentido quando
a fala acontece como dizente, mesmo que a fala seja o comunicar do silêncio, visto que
este diz mais do que muitas falas em muitas ocasiões. A impossibilidade de haver
precisamente a mesma correspondência de entendimento acerca de uma dada
proposição decorre de que, pela experiência do ser enquanto ente, as diferenças dadas à
medida que o ente acontece no real advêm do evento do acontecer no mundo de uma
maneira tão própria que o apropriar-se acontece como sentido, lendo o mundo do dizer,
fazendo precisamente, de novo e sempre, a experiência do sentido de cada ente. O ente
não experimenta a leitura fazendo a captação dos vocábulos contidos uma dada
proposição, ou numa seqüência de proposições. O ente faz a experiência do ser somente
a partir dos sentidos, que são desencadeados pelas proposições que demarcam o
percurso do sentir do ouvido para dar fala às diferenças da identidade de cada ser. A
articulação de proposições, mesmo que seqüenciadas e encadeadas numa mesma
composição temática, não dão a lógica para o texto dito, entendido como conjunto das
173
proposições. Não existe lógica a ser dada. O sentido é que dá o ente para o ouvido que
escuta o ser que se comunica em correspondência com o lógos experienciado em cada
ente, trazendo à tona a disposição e o vigor do ser. Enquanto linguagem, o ser do ente,
na dinâmica do lógos, reúne-se mediante o conjunto de signos para fazer a experiência
de ouvir não o outro, mas da escuta do próprio lógos a dizer, sempre sendo lido pela
vigência das diferenças de cada ente. A leitura que cada ente faz passa e é garantida
pelas diferenças de ser do ente diante da realidade de mundo. O que se ouve é sempre a
escuta do sentido e dos sentidos acumulados na dinâmica das diferenças. Uma mesma
proposição, via de regra, muda de sentido quando escutada e ouvida pela segunda e a
terceira vez, de maneira que tanto o sentido muda quanto o que foi expresso pela
proposição. Nesse caso, há uma correspondência e interferência do dizer da proposição
mediante o ouvido que ouve. O sentido se potencializa na experiência do ser enquanto
ente. Como ser, o ente se dá fazendo a experiência do sentido. Ouvir é tanto ouvir como
falar e assim se desempenham os demais sentidos na vigência e na dinâmica das
diferenças, na configuração das identidades. Outro fato que isso freqüentemente acarreta
é o caso de uma mesma proposição ser diferentemente ouvida, quando direcionada a
mais de uma pessoa. Pode até acontecer o mesmo entendimento, a mesma interpretação,
mas isso se dá apenas no caso de haver a mesma co-referência do sentido existente entre
esses dois ou mais indivíduos – o que, em geral, é pouco provável. No que diz respeito
ao significado imediato, a comunicação se dá por meio da linguagem em razão de ser
apreciada pela superfície habitual dos conteúdos transmitidos diariamente ou em
dicionários, ou pelos étimos. Mas isso não é linguagem, tampouco adentrar a questão do
sentido. É ficar apenas na condição mais sumária de se olhar para o que uma proposição
faz da linguagem como acontecimento do ser do ente. Não está sendo dito aqui que o
sentido é conseqüência do somatório de diferenças. Não existe nem causa, nem
174
conseqüência. O sentido é sempre lido pelo ser do ente naquilo que o ente consegue
dizer enquanto ser e à medida que o ente faz a experiência de ser. Por isso, o dizer uma
mesma proposição em momentos diferentes já corre o risco, e comumente assim ocorre,
de não ser mais a mesma proposição, posto que o sentido de cada momento de
enunciação já traz consigo uma outra experiência que traz a presença de uma audiência
cada vez diferente, demarcando a identidade de sua diferença. O ouvido que ouve é,
então, a audiência da diferença dos sentidos e não da proposição. A experiência de o
ente acontecer como sendo do ser faz o ouvir auditar o sentido que sente o ser na
dinâmica do falar e do ouvir cada proposição.
O sentido é o que cria o veicular, seja de forma material , seja não material,
como o silêncio. Aliás, não há material e não material. Se o próprio silêncio é capaz de
dizer sem falar verbalmente, é porque existe uma materialidade dizente acontecendo
como sentido. Se tal como se entende do pensamento de Delleuze que o sentido não se
apreende, porque nunca é veiculado, não poderia sequer haver ponderações sobre o
sentir e o sentido de uma proposição. O pensamento de Delleuze, por desprezar o
sentido veiculado por uma proposição, coloca-a como algo meramente no âmbito do
formal, em que a forma é a condição própria de a linguagem se dizer. Mas como pode a
linguagem dizer algo para além da formalidade gramatical de uma proposição? A
linguagem acontece independente da proposição.
A proposição se mostra como linguagem apenas como suporte. O mundo só
acontece como mundo enquanto linguagem, e o estar proposicionante ou não é apenas
uma das formas de a linguagem se mostrar como suporte. Se a comunicação se desse
por sons provenientes das narinas ou da cavidade auricular seria o mesmo, enquanto
linguagem. O fato de o homem sentenciar proposições tal como sentencia não é o
parâmetro ou a guia para se pensar linguagem. O som ser moldado em ondas, veiculado
175
pelas cordas vocais, articulado pela boca, ou ainda sentenciado proposicionalmente não
é fato suficiente para ponderar o que acontece com a linguagem. A proposição é apenas
um suporte para a linguagem acontecer como a fala-escuta do ser. Mas a fala-escuta do
ser não é o suporte da linguagem, porque esta não acontece na dimensão do que o
suporte suporta. O conteúdo veiculado por uma proposição, no máximo, pode ser visto
como o que a linguagem dá ao homem para que ele se entenda enquanto ser na
disposição de cada ente, fazendo a experiência do vigor do lógos, sempre dizente. A
proposição sem veicular sentido não pode sequer ser interpretada como proposição.
Afinal, seria estranho considerar que algo é chamado de algo, mesmo que esse algo não
aconteça dizendo qual sentido deve ser esse algo.
Sentido é o que dá e se dá como a possibilidade de um significado significar.
Mesmo que se apelasse para a questão dos significados de cada vocábulo, foi primeiro e
antes o sentido que permitiu, pelo sentir, conferir, a tal seqüência fonética, a diferença
significante, a sua fonologia, a sua diferença significada. Vocábulos e proposições são, a
propósito, o mesmo nesse sentido. A seqüência fonética de um vocábulo ou a de uma
proposição simples ou complexa desempenham o mesmo papel de suporte para a
linguagem enquanto sentido – o que muda é somente a extensão da seqüência acústica e
a junção de significações. Mas, em ambos os casos, o sentido é o que primeiro e antes
faz tal vocábulo e proposição acontecer, à medida que o ser se dá como ente, fazendo a
experiência do habitar e do cultivar como o mito originário do mundo. Afinal de contas,
haveria de surgir a pergunta: por que a proposição significa o que significa? Não precisa
aqui sequer perguntar pelo sentido. A propósito, a mesma pergunta poderia ser feita do
seguinte modo: por que tal vocábulo significa o que significa ou deixa de significar o
que outrora significou? Para ambas as perguntas, a resposta uma só: o sentido, dado
pela experiência do ser como ente do mundo, é quem proporciona a possibilidade de o
176
mundo ser a fala-escuta que, sendo, imprime, no e pelo conjunto das experiências do ser
dos entes, o sentir que acontece como demarcação articulatória do momento histórico
registrado no percurso de escuta do lógos e do dizer da phýsis, sempre desencobrindo o
encoberto como verdade (alétheia) do mundo.
Toda construção proposicional é sempre dada ao mundo como possibilidade de
comunicação entre os homens pelo fato de o ser de cada ente, fazendo a experiência do
real e da realidade, mediante as suas realizações, imprimir nela sentido. Este provém do
acontecimento originário e essencial do mundo: a reunião de lógos, phýsis e alétheia. A
construção do sentido dado a cada proposição é o modo de habitar do ser cultivando-se
como culto junto ao extraordinário e com mito historial.
4.3. Linguagem como saga do sentido
Heidegger disse que “O vigor da linguagem é a saga do dizer enquanto
mostrante. O seu mostrar não se funda num signo. Todos os signos é que surgem de um
mostrar, em cujo âmbito e para o qual os signos podem existir”.103. Mas em que
dimensão acontece o mostrante? O que o mostrante mostra? Talvez o caminho de
resposta para essa pergunta seja menos curvo do que se pode cogitar. O mostrante se
mostra como sempre no sentido de um perceber. Mas perceber não é um mero gesto da
percepção enquanto mostrar. O mostrar é vigência de todo perceber enquanto sendo.
Sendo, o mostrar-perceber é colocado sentindo como sentido do ente. É o sentido a
urgência, a emergência e a vigência, fundando o mostrar, acontecendo como linguagem
e perfazendo o destino de sua saga.
103 HEIDEGGER, Martin. “O caminho para a linguagem”. In: A Caminho da Linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 203.
177
Normalmente, o sentido é apreciado a partir das possibilidades de articulação
sensorial dos sentidos humanos. Isso é um fato sobremaneira comum a todos os
viventes. Assim, é dito que o homem percebe a imagem como visão; o som como
audição; o odor como olfato; o toque como tato; o gosto como paladar. Há quem fale
mesmo na sensibilidade transcendental feminina como um sexto sentido. Pois bem, o
que está em jogo nesse momento é sempre um sentir e não mais o sentir como sentido.
Sentir, na verdade, é o modo de o ser habitar, cultivar e rezar-se esse mundo. Não é uma
mera vivência no desempenho sensorial dos cinco sentidos que estabelece o sentir sendo
sentido. Ocorre diante dos cinco sentidos, assim catalogados, um único e mesmo evento
correspondente a mais vigente materialidade e concretude de experiência do ser do ente,
tal como o homem grego arcaico as experienciou na época áurea do mundo helênico.
Os sentidos, tal como se entende até hoje, na verdade, são sempre o mesmo: o
tocar. O homem é o que é tocado pelo ser do ente e por outros entes fazendo desse
encontro a experiência do sendo. Há de se entender que, dos cinco, existe apenas um: o
sentir tocante, chamado de tato. Certamente, há uma rejeição inicial nesse
entendimento.
Mas é sabido que a visão depende de luz para se dar como vidente; luz é
constituída de fótons e estes são matéria; então, o ver ocorre a partir do e no momento
em que a luz toca a retina e cristal dos olhos e acontece como visão; desse modo o
homem não vê, mas é tocado pela luz do mundo para se dar como sentido vidente. O
mesmo acontece com o olfato, o paladar e a audição.
O que é o olfato senão o toque do ar odorizante tocando a mucosa nasal? Sem o
tato do cheiro na mucosa, não se sente odor algum. E como o ar é também matéria, o
olfato é o toque recebido pela matéria fragrante do mundo fazendo a experiência do
178
cheirar. O homem não cheira, mas é tocado pelos odores para se dar como sentido
olfativo.
O paladar, por sua vez, o que é senão o toque do gosto sentido pelas papilas
gustativas? É inviável fazer a experiência do gosto sem que o que se coloca como
alimento toque a língua. E como o alimento é matéria e tem que tocar as papilas, o
paladar é dado ao homem pela experiência do tato como gosto. O homem não sente o
gosto, mas é tocado pelo sabor como gosto para se dar como sentido palatal.
A audição, por exemplo, também não é outra coisa senão o toque das ondas
sonoras acontecendo como som, isto é, como cadeia acústica encontrando, no tímpano e
nas demais organizações fisiológicas auditivas, o tatear das ondas como audição. É a
matéria da onda sonora que toca o tímpano e se dá como audiente na materialidade de
ambos. O homem, dessa maneira, não é o que ouve, mas é o que é tocado pela melodia
do mundo como ritmo e harmonia para se dar como sentido audiente.
Tudo isso demarca o sentir como sendo em sua vigência originariamente tátil e
constituído de uma materialidade que faz o ser do ente existir na e como a concretude de
todo o real. Não existe nenhum tipo de abstração passível de, como abstrata, não ser
perceptível. O sentir como percepção é o vigor da essência do ser. O ser, enquanto ente,
sempre lida com o real a partir da materialidade e concretude desse real. Desse modo,
pensamento e linguagem acontecem na mesma dinâmica, como o mesmo em si mesmo
no mesmo.
Sentir não é o que no mundo desvairado da variedade das sensações vive no
exercício tautológico de se dar como sentido orientado pelas abstrações e/ou
subjetividades do homem enquanto indivíduo. O homem só é como indivíduo à medida
que o ente de cada ser se encontra junto ao real fazendo a experiência do sentir a partir e
na materialidade do mundo. O homem grego antigo entendeu bastante bem essa
179
dinâmica do real, por meio do vigor da phýsis e do lógos. O tocar é o modo como o ente
de cada ser se conforma diante do mundo. Só quando, a partir do e no ser tocado é que a
experiência diante do real acontece como habitar, como cultivar e como rezar.
Habitar é ser tocado pelo mundo como habitação, vivendo o e no seu entorno.
Cultivar é ser tocado pelo mundo como cultivo-colheita, dando-se como a plantação
originária dessa terra, mediante a constituição do humano se mostrando como
humanidade. Rezar é ser tocado pelo sagrado para que pelo toque se consagre a vigência
do extraodinário no mundo ordinário.
Sentir é “perceber, experimentar”104 e radicalmente, ainda, vem “do latim:
sentio, sensi, sensum, sentire; irl. sét; gal. hynt, caminho; al. sinen, pensar em; o l.
sentis, caminho, senda, está ligado a esta família: sentir o próprio caminho”105. Sentir é
um perceber. Essa afirmação só consegue dizer o que diz à medida que se pensa o que
perceber já traz junto a ele. Perceber é algo que só se dá como advento de percepção se
o percebido se mostra a caminho. O sentido enquanto sentir é o que se encaminha para o
ser do ente se dando como perceber. Pode-se pensar que o perceber acontece depois de
sentir. Mas não parece o caso. Uma coisa se coloca como sentido porque este está de
todo presente. Sentido é o que se dá como presença para o ser do ente enquanto tal, para
fazer a experiência do existir em todas as possibilidades e sob todas as vigências
provenientes do vigor de desencobrimento da verdade enquanto phýsis e junto ao lógos.
Perceber é estar junto do sentir na referência do acolhimento do sentido. O
homem sente o que encaminha como sentir e perceber, fazendo a experiência do
caminhar. Caminhar não é dar o passo seguinte e adiante. Caminhar é colocar-se no e
junto ao movimento que vigora em cada ser. O ser é ser do caminho, colocando-se na
disposição do e à diposição do caminhar, fazendo, conjuntamente, o movimento do 104 HECKLER, Evado; BACK, Sebald; e MASSING, Egon Ricardo. Dicionário morfológico da língua portuguesa – vol. IV. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 3776. 105 Idem, p. 3778.
180
mundo e de suas realidades, consagrado pela dinâmica do real se manifestar face a
realização de cada ente.
A experiência do sentir é a experiência do saber. Mas como o saber acontece na
medida do sentir originário de cada ser, enquanto ente? Heidegger diz o seguinte, numa
exposição acerca da questão do Teeteto de Platão:
[...] Aristóteles reivindica ai1sqhsiv, no sentido próprio de apreensão, a percepção primordial da essência do saber, e o faz como que espontaneamente, porque a percepção e o ser percebido, entre os gregos, não significam senão fai0netai: dizer que isso ou aquilo se mostra, que uma coisa se mostra é o mesmo que dizer que uma coisa é percebida.
“Uma coisa se mostra”, o grego o compreende e entende no sentido de: apresentar-se, dá-se numa vigência e nela se abre e manifesta. A percepção de que as coisas entram no âmbito de percepção é o processo em que as coisas se apresentam, entram na abertura de sua manifestação, se mostram e aparecem. Não devemos desvirtuá-la, reduzindo-a ao sentido em que pensamos em orelhas, nariz, etc. Percepção e perceber significam um mostrar-se que abertamente se manifesta.
[...] Que, no saber, se trate de algo assim como abertura de
manifestação, não há como negar, mas saber, enquanto estiver nesta abertura, no sentido de verdade, é muito mais. Verdade já não é simplesmente apenas uma abertura qualquer de qualquer manifestação. Verdade é abertura e desencobrimento do sendo, do que é e está sendo.106
O sentir faz a experiência do saber enquanto perceber, porque ele dá sentido ao
saber. O saber só se abre como saber à medida que o perceber como advento do sentir
acontece como sentido para o ser de cada ente. Não é possível considerar qualquer
articulação vigente no real acontecendo sem o sentir. A dinâmica do sentir é colocar o
ser sempre a caminho. O sentir é que caminha o caminho. Se não se caminha enquanto
ser, não é possível estar e se apresentar como presença percebendo a disposição da
phýsis. Aliás, ela própria vige no vigor primordial e originário do sentir. Phýsis é o
modo como o vigente acontece como sentido, porque se dá como descoberto. Mas o 106 HEIDEGGER, Martin. “As respostas de Teeteto à questão sobre a essência do saber e suas rejeições”. In: Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Petrópolis, RJ : Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 248-249.
181
perceber como sentido sempre se dá em sua essência a partir da e na linguagem, em que
vigem a dinâmica e o vigor do lógos.
A dinâmica da phýsis é se dar no mundo e para o mundo como o caminho
originário de todo sentir acontecendo como sentido, para fazer o ser viger enquanto
ente. O ente só pode fazer a sua existência como permanência da essência do ser pelo
fato e pelo modo como a phýsis fecunda o mundo mediante a dinâmica de suas
possibilidades de tocar sentindo e de seu sentido-tocante. O que toca o ser do ente é a
phýsis, manifestando-se como sentir-sentido, fazendo o ser sempre um sendo.
O ser enquanto ente é o que se coloca como o único a sentir. Só o ser, enquanto
o que é e existe, pode se colocar como detentor da disposição do sentir. Nada mais no
mundo sente. Mas o mundo acontece sempre como sentido. Os demais entes do mundo
não sentem porque não tem a consciência do sentido. Um animal, um vegetal, um
mineral não conseguem fazer a experiência do sentir e, do mesmo modo, não participam
do mundo dentro da mesma referência. A compertinência existente entre ser e sentir é a
mesma que possibilita a cada ente ser dado e deixar-se na abertura da experiência do
saber.
O saber é deixar-se ao sabor do mundo fazendo, dentro da dinâmica da phisis, a
vigência do lógos. Assim também acontece a referência entre pensamento e ser, ou
pensamento e linguagem. O pensamento, enquanto destino do lógos na dimensão do ser
do ente, é sempre um sentir ferindo e conferindo e referindo sempre o mesmo sentido.
O pensamento e a linguagem acontecem como abertura para a verdade do ser do
ente sob a dimensão do sentir a cada sentindo. Sentindo, o ser é sendo. Sendo o homem
acontece como habitação, cultura, colheita e reza, de maneira originária e ordinária
junto ao extraordinário.
182
A saga do dizer acontece enquanto mostrante. Mas o que se mostra é sempre
uma disposição do sentir dentro e junto ao vigor da phýsis e sob a vigência do lógos. A
saga do dizer é sentir. Sentir é também, nessa referência, mostrar e se dar como
mostrante para que, na percepção da concretude tátil do ser, faça-se a experiência do
real. É sendo-sentido-sentindo que o ser se dá como verdade, como desencobrimento e
como sempre encoberto. A verdade do ser é se dar para o sendo, sentindo. A disposição
e a vigência de cada ser acontecem e permanecem na referência do sentir. Só sentindo o
sentido do sentir, o ser se dá como abertura em cada ente, para fazer da experiência de
sua humildade a humanidade dessa terra e sobre essa terra, junto ao extraordinário,
como sagrado, mostrando como o ordinário se ordena e aparece para o mundo como
humano.
O humano e terrestre é o entre-dependente do sentido do sentir da phýsis. Como
ser, cada homem enquanto ente é o que permanece sob o vigor da phýsis tentando se
colocar a caminho da clareira aberta pela deusa verdade. É nessa dimensão que sentir é
o acontecimento originário do ser se dando como pensamento e linguagem, fazendo a
experiência da existência no ser de cada ente enquanto tal e estabelecendo as diferenças
em e de cada identidade.
Sentir é o perceber e o saber. Ambos são compertinentes, enquanto e à medida
que o ser sendo está à disposição do sentir. O sentir dá sentido ao ser. Dar sentido é
perceber o saber que se abre como verdade para o ser. Abrir-se como verdade para o
ser-sendo é rumar a caminho, fazendo a experiência do caminhar.
Não é da essência do ser do ente caminhar sem perceber-sabendo o caminho,
sem ter notícia dele, de como ele deixa caminhar. O saber é o caminho se dando a
caminhar como sentido. Isso é a mais originária concretude do ser. Tal concretude é o
tato a tocar o ente enquanto ser para se fazer a experiência do mundo. Sentir é o tocar
183
originário de todas as percepções, saberes e sensações humanas. Não é possível fazer a
experiência do ser sem sentir. Toda forma de pensamento urge do sentir, porque o
sentido do pensar advém e provém do evento do sentir. Não existe uma relação de
entendimento ou desentendimento que não se dê a partir do e no sentir. Tudo que se
entende e desentende é sentido. Tudo que se não entende e se não abre para o entender
como saber e perceber é sentido e sentir. O mesmo fazem o pensamento e a linguagem.
Tudo quanto a linguagem não profere, não confere, não refere, não infere é não-sentir.
Mas sentindo, ela confere e refere, deferindo ao ser do ente o seu pensar. Pensamento
enquanto linguagem é o sentir, na referência, na conferência e na deferência.
4.4. Sentindo: o pensamento-linguagem
A correspondência essencial do sentir se dá no pensar, que acontece no ser como
linguagem. No fragmento 113, Heráclito disse: “Pensar reúne tudo”107. Mais tarde, na
história ocidental, Wittgenstein, em meio a todos os desvios metafísicos do pensamento,
afirmou: “É na linguagem que tudo é feito”108. Heráclito e Wittgenstein se encontram
no tudo reunindo pensamento e linguagem. Se “pensar reúne tudo” e se “é na linguagem
que tudo é feito”, pensamento e linguagem estão numa correspondência de todo
originária. Mas qual é participação do sentir nesse percurso? O sentir está sempre na
mesma disposição à medida que o pensamento não pensa o que não sente e a
linguagem, por sua vez, não diz o que sentir não deixa se dar como dizer. O sentir,
poder-se-ia pensar, é, então, o que determina o pensar e a linguagem. Poder-se-ia, mas
não é isso. Não, sentir é o pensamento se dando como linguagem. O homem só sente 107 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 1999, p. 89. 108 WITTGENSTEIN, Ludwig. “A proposição e seu sentido”. In: Gramática filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 107.
184
porque já existe em todo pensamento e linguagem o sentido. Tal sentir acontece na
mesma referência de pensar e ser enquanto linguagem. O ser só é sentindo e, no sentir
dado, o pensamento se dá a pensar; e, nisso, a linguagem já se deu no mesmo instante.
O pensamento acontece junto ao e no caminho do sentir. O sentir se coloca como via no
caminho do homem caminhando como o caminho caminha, na predestinação
(pre)sentida da caminhada. Caminhado, o pensamento se dá e o homem diz num sem
palavras o seu destino.
O homem não sente, mas é tocado pelo sentir na mesma referência em que
surgem pensamento e linguagem. O homem precisa ser tocado. A experiência humana é
a do tato na sua mais ampla vigência e referência. Na experiência do tocar, há um
comum-pertencer, ou mesmo um entre-pertencer. O tocado toca o tocante à medida que
o mesmo tocante procura como tato o que vem a ser tocado. Não existe uma atitude
ativa com relação ao que toca e uma atitude passiva com relação ao que é tocado. O
tocante e o tocado são igualmente agente-pacientes de uma mesma referência. O tocado
e o tocante são o mesmo em si mesmo no mesmo.
Sentir e ser sentido são uma preocupação do mundo moderno, sobretudo, há uma
necessidade de ser sentido. A necessidade existente de ser sentido é a mesma da de ser
tocado. Quando se é sentido, não é o sentir que apenas se movimenta para se dar como
sentido no outro que o sentiria. Quando se é sentido, se quer ser tocado e isso provoca
um agir se dando pelo toque do outro, fazendo a experiência do sentir como algo
concreto. Tanto é assim que o princípio de satisfação, que tanto se requisita nesse
momento, só se dá por satisfeito, quando, de algum modo, o ser que quer sentir se sente
tocado pelo tato do existir do ser de cada outro ente. O querer sentir não é um querer
tocar apenas, é, na aparente contradição, típica do que essencial e originário, simultânea
e imediatamente querer ser tocado.
185
Assim, o sentir é um tocar-tocado. Todo sentir depende dessa referência. Isso é o
mesmo que ocorre com a linguagem e com o pensar. A linguagem acontece como dizer
à medida que o dizer ao mesmo tempo não diz, mas deixa aberta a possibilidade de se
dar ainda como dizer. Do mesmo modo, o pensamento pensa o que dá a pensar e o que
não é dado a pensar acontece como possibilidade de pensamento. Mas quem toca o ser
no seu existir e acontecer como ente enquanto tal? O ser é o que habita o mundo como
sentido-pensante-linguagem. Por isso, é dado ao homem se reconhecer como habitante
dessa terra ao longo do existir de sua humanidade.
A respeito do re-conhecimento, no fragmento 116, Heráclito afirma que “É dado
a todos os homens conhecer-se a si mesmo e pensar”109. Conhecer a si mesmo é algo
desejado por todos no mundo moderno. A psicologia faz isso muito, bem mandando
cada um cuidar de si, do seu ego, de sua subjetividade. Cuidando cada um de si mesmo
enquanto ente, caminha-se para o esquecimento do ser e da existência. E assim tem
vivido o homem moderno.
Mas o que pode ser visto aqui ainda é a referência existente entre “reconhecer” e
“conhecer a si mesmo”. Por que conhecer a si mesmo não é diretamente um reconhecer
como um conhecer de novo o próprio eu do si mesmo? Por que o pensamento de
Heráclito não disse: é dado aos homens pensar-se a si mesmo e conhecer? Talvez haja
aqui um mistério que se destina ainda na disposição do sentir. “Conhecer a si mesmo” é
sentir o ser do ente enquanto na abertura da verdade. É fazer o movimento da linguagem
como saga do dizer acontecendo como mostrante. Essa afirmação de Heráclito
permanece como uma recomendação para que o ente não se esqueça enquanto ser,
deixando de fazer a experiência originária do existir. O esquecimento do ser pelo ente
sempre está a requisitar a volta do encontro em que ser e ente não se deixam esvair fora
109 Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 89.
186
de sua referência. O esquecimento do ente é o esquecimento do ser enquanto o que se
deixa tocar pelo sentido do sentir. A necessidade desse toque aponta também para o
encaminhamento da procura que deve haver do ente para com o ser, para desvelar-se
sob sua verdade e para permanecer no ordinário do sentir, enquanto tocar-mostrante,
cumprindo o seu destino junto à linguagem como saga do dizer.
A saga do dizer da linguagem faz com que o ente não se desvie do ser enquanto
o que dá e permanece como sentindo viabilizando e conferindo aos existir a
possibilidade de o ser se dar enquanto ente. “Conhecer a si mesmo” e “pensar”
aparecem na fala de Heráclito mostrando a disposição fundamental do sentir tocando o
ser do ente de cada homem.
É por isso que “conhecer a si mesmo” e “reconhecer” não se alinham numa
mesma determinação. O conhecer de novo o eu de si mesmo não é o conhecer a si
mesmo. Este aponta para o movimento originário da verdade se dando no ser do ente. A
abertura dada pelo desencobrimento da alétheia não se volta sobre o mesmo como uma
igualdade já envelhecida, experienciada de todo, numa cronologia que não volta mais.
Aquele, o conhecer de novo o eu de si mesmo, aponta para um reviver, um viver
novamente, fazendo da experiência velha a igual experiência do presente e também do
futuro. Aqui está o contratempo do conhecer de novo o eu de si mesmo. Isso implicaria
permanecer numa inércia da repetição contraproducente, no sentido de viabilizar a
referência entre ser e ente. Nesse caso, o ente se comportaria como um veículo
destinado a maquinalização do agir único e repetido. Não se daria a experiência do
sentir, do pensamento e da linguagem como poiésis originária. O “conhecer a si
mesmo” já diz respeito a um dar o ente para o ser e o ser para o ente, destinando-os
como verdade, como desencobrimento do encoberto, sempre a desencobrir o
187
encobrimento, sem ser, o desencobrir, a mesmidade repetitiva que não dá o ser do ente
experienciando o existir.
Mas o que “pensar” diz com o “conhecer a si mesmo”? “Conhecer a si mesmo” é
colocar-se como sentir, deixando o ser sendo o sentido mostrante, tocante-tocado pelas
realizações do ente sob o vigor da phýsis e na vigência do lógos. Tal conhecer se dá
como referência do sentir-pensar originário do ser, para que este aconteça fazendo a
experiência do existir enquanto ente.
Assim, na referência ao pensar como “conhecer a si mesmo”, o sentir acontece
como apelo de orientação e sentido. O sendo é a presença do ser como vigência do
sentir. O “conhecer a si mesmo” e sentir se dão no mesmo. Isso é o vigor inaugural do
ser. Em tal condição, acontece sempre a referência entre mito, religião e cultura. Toda
cultura com os seus modos de cultuar e cultivar se dão sempre na vigência do sentir
enquanto linguagem, deixando manifesto o vigorar da phýsis e o dizer originário e
inaugural do lógos. Apenas sentindo, o humano acontece como sendo. A civilização e a
família se comunicam dentro do viger de um mesmo sentir e sentido apenas porque
estão no percurso da linguagem enquanto casa do ser.
É como e pelo sentir que o lógos diz e acontece como o dizer originário do
mundo. O sentir, nesse entendimento, é a escuta que se dá como lógos deixando-se
aberto como clareira para o vigorar da phýsis e, assim, o humano acontecer como a reza
do mito junto ao sagrado, como o culto e o cultivo extraordinário do humus, para se dar
como o sendo sempre histórico. Assim, como e pela força de reunião do lógos e pelo
vigorar da phýsis, é que mito é a presença, o culto e o cultivo do sagrado como
linguagem, pensar e sentir. Enfim, o ser-sendo, e acontecendo como humanidade, não
existe sem sentido, sem sentir, o vigência do lógos.
188
Conclusão
A referência entre mito, religião, cultura e linguagem, que se apresentou nesse
percurso, teve por intuito fazer uma apreciação das relações existentes entre essas
quatro questões fundamentais e originárias para o ser do ente. De certo, o caminho para
a releitura de cada uma delas contou com o entendimento a partir da questão do sentir.
Aqui, o mito se colocou não dentro da dimensão de uma mera alegoria ou conto
fantasioso, até porque sua instância originária não diz respeito a tal perspectiva e
nuance. Ele se encontra no fundamento do ser caracterizando os modos de cada ente
atuar diante das realizações do real. Mito, na verdade, é o gesto ôntico e ontológico que
se dá na história como o dizer originário do lógos face o vigorar da phýsis. Nesse
sentido, é possível mesmo já entender que mito é a linguagem habitando a casa do ser,
fazendo dela o lugar onde se reúnem os dizeres originários do mundo falando junto ao
homem.
O mito é a referência e a interferência do deus no mundo do homem, na mesma
medida que o homem é a interferência na vida do mito. A correspondência entre ambos
é a base do que funda o ser, enquanto sendo. Não existe homem sem mito, nem mito
sem homem. Tal relação ainda demarca a presença de uma escuta de um lógos se
dizendo com e por meio do sagrado.
A fala do mito é o dizer sagrado do lógos, o dizer originário do mundo. O que
faz tal dizer é dar ao homem o mundo como sentido naquilo que ele consagra como
reunião junto à phýsis. O lógos, nesse sentido, dá a voz ao mito para a escuta do homem
se desenvolver como ouvido. A escuta do homem é a escuta do ente enquanto ser. Na
verdade, a fala do mito é o caminho que faz com que o ser permaneça como escuta de
uma relação direta com o sagrado. O mito fala do ser-sendo, mas sempre com e por
meio do sagrado. Isso significa que toda narrativa mítico-poética não é apenas o registro
189
de feitos e afazeres dos deuses atuando e interferindo na vida cotidiana do homem. O
mito é a disposição do sagrado acompanhando, guiando e orientando os modos de o ser
se dar enquanto sendo. A propósito, o homem grego antigo foi o que melhor entendeu a
experiência do mito do que qualquer outra civilização no mundo ocidental.
O sagrado, por sua vez, é visto como o que consagra mito e ser. A dimensão do
religioso não foi vista dentro da ótica institucional religiosa ocidental, nem oriental. A
tentativa foi de rearticular o religioso também no seu vigor originário, participando
diretamente junto ao lógos, que dá voz ao mito como o registro histórico do ser como
sagrado. O mito é o registro histórico da fala e do dizer do sagrado sob a vigência e o
vigor do lógos. A compertinência entre mito e sagrado é fundamento da história do ser
na tentativa de, como sendo, acontecer e permanecer como o que se dá como
humanidade.
O sentido de humanidade também teve sua apreciação tendo em vista a origem
do homem: a terra. O humano é o da terra. O homem, enquanto a instância inaugural se
mostrando como ente de cada ser, é o que vive na e sob a escuta da terra, que acontece
pela e com a voz do lógos do mito e bênção do sagrado dos céus. Sob a luz dos céus, o
homem se ilumina e, iluminado, escuta o que o lógos permite dizer como mito. O
sagrado está já desde sempre lançado para o mundo como lógos e como luz dos céus. A
presença física dos céus e a vigência da dimensão do sagrado orientam o modo de o ser
acontecer como sendo. A sacralização do mundo só se dá no seu vigor quando homem e
deus atuam na referência do agir no real permanecendo como um e o mesmo. A
mesmidade existente, nesse caso, é a presença da força de reunião do lógos se dando
como phýsis. A phýsis se doa ao mundo como lógos e nessa referência o sagrado dá voz
ao mito para fazer do ser o que permanece como história do mundo. Tal história é
experienciada pelo e com o encontro do homem com a terra sob a proteção dos céus. O
190
ser se abre como clareira para, na claridade, ir ao encontro da luz do deus. O sagrado é a
vigília que permanece na história do ser para iluminar o caminho do ente que se
encontra sempre no agir do real e das realizações. O homem religioso é o que entende a
história do mundo como a fala do mito pelo dizer do lógos. Assim, o ser se consagra
como santo, entendendo a terra como o lugar de todas as bênçãos.
Abençoada, a terra se doa como fecundação originária do mundo para que o
mundo seja lido como o que está sempre provocando o nascimento do real para a
realização histórica do ser. A tentativa de mostrar a fecundação como sagrada é já o
caminho que se quis abrir para mostrar como o ser do ente acontece como cultura. Esta
não foi mostrada a partir das leituras sociológicas e psíquicas provenientes do olhar do
mundo moderno. Cultura é o que o se mostra como cultivo. O cultivo é o gesto
inaugural que acontece como reunião entre phýsis e lógos, consagrando mito e mundo.
Cultivo acontece sob o vigorar da phýsis. Ela estabeleceu o cultivo como
fundamento para que o ser se cultivasse pelo agir onto-poético do mundo e entrasse para
a história mítico-inaugural da terra. Cultivar é a forma de o ser se deixar entrever como
o que, pelo culto sagrado da terra, acontece como cultura. Cultura não é um evento
social: é fato originário inaugural de o ser ser marcado na história do mundo, no pacto
firmado com a terra e abençoado pela luz divina do sagrado dos céus. Assim, a luz
divina dos céus, que ilumina o campo para o cultivo, é o que consagra o homem na
história do mundo sobre esta terra. Por isso, a leitura que se fez presente aqui entende
que mito, religião e cultura são um e o mesmo, porquanto vigem sob um mesmo vigor
inaugural.
A questão da linguagem não foi tratada pelo viés do que ela possibilita articular
enquanto proposições. A linguagem foi relida pela articulação de que ela é a casa do ser,
enquanto tal. Nesse sentido, sob a orientação fundante do lógos que tudo reúne, e tendo
191
em vista a disposição de ela se dar como verdade, como alétheia, o movimento de
encobrimento e desencobrimento da linguagem é o que faz com que o homem seja o
que consegue acontecer como ser histórico por ter a disposição mítico-religiosa por ser
o que cultua e o que é cultivado. Como cultivo e culto, o humano acontece como o
agricultor da terra. Ser lavrador, faz dele o acontecimento onto-poético do mundo:
humano e humanidade, porque se estabelece na e pela referência direta da experiência
com o humus, com a terra.
Desse modo, linguagem como lógos reúne, numa só articulação de sentidos,
todo o percurso originário do mundo, porque tenta se constituir e caracterizar
substantivando os atributos de cada agir do mundo, na sua relação com o real e em suas
realizações. Na verdade, linguagem entra nesse percurso do pensamento para tentar
mostrar como mito, religião e cultura fundamentam o ser em sua origem inaugural. No
entanto, houve também aqui um outro aspecto que interessou ao desenvolvimento desse
pensamento: o sentir.
Não se acredita que o sentir seja proveniente do pensar, nem o pensar
proveniente do sentir e, com isso, ambos viessem a acontecer como mito, religião,
cultura e linguagem. O lógos inaugural e a disposição de surgimento da phýsis se dão
por meio de uma linguagem fundante que é toda sentir. A rigor, o lógos inaugural, ao
ser entendido como linguagem, deve ser lido também como sentir. O sentir-sentindo-
sentido é o acontecimento originário para que o ser entre na referência necessária para a
escuta do lógos inaugural. Isso decorre do fato de que não se é capaz de escutar, de
ouvir-dizer, se não se está indo ao encontro do sentir que a phýsis junto ao lógos tenta
mostrar-dizer. O esforço em busca de tal audiência é já também o apelo de orientação
pela alétheia, pelo movimento que tenta sempre perceber quando verdade diz e deixa
dizer o dizer do ser, enquanto tal. É só por meio do e com o sentir que se abrem os
192
caminhos para que se alcance o centro da floresta do ser como clareira. A claridade da
clareira do ser é o sentir. Sentindo, o ser se abre para lógos, phýsis e alétheia.
Cabe ainda aqui dizer que o sentir não é uma mera leitura dos rompantes
afetivos e emocionais do ente. O sentir é o que se dá como sentido. Se dar como sentido
é dar caminho e acesso para a escuta originária do lógos para que o humano aconteça
como linguagem se constituindo, como tal, a casa do ser. Assim como não existe ser
sem linguagem, ambos não existem sem sentir. Foi dito no pensamento que aqui se
mostrou: não se pensa sem sentir. Só se pensa o que se sente. E, como visto, pensar e
ser são um e o mesmo. A rigor, pensar, ser e sentir são um e o mesmo. Então, se não se
pensa o que não se sente, é inevitável o entendimento de que não se consegue ser se não
há sentir e sentido.
Sentir é o gesto inaugural da linguagem enquanto lógos. O lógos como força de
reunião é, a bem dizer, o que se coloca como dizer de todos os sentidos. Quando o
sentido se diz como dizer para o ser de cada ente, a linguagem acontece como casa do
ser, e o mundo passa a ser passível de leitura, sendo esta o gesto inaugural do ser com o
mundo. O ser não entra em contato com o mundo. Ele como mundo e sentidos se lê
como real e entra para a história dos tempos.
Assim, a tentativa aqui foi a de articular o pensamento de modo a mostrar onde
mito, religião, cultura e linguagem acontecem como sentir. A busca por tal
entendimento, de certo, abre espaços para que a leitura se dê no percurso ôntico do ente
e ontológico do ser. O que se tentou foi apenas mais um caminho de compreensão do
que representam e representaram essas questões na história do ser, em busca pela sua
humanização e sua humanidade.
193
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