5
O SER BANDIDO: FACES E VIRTUALIDADES DA EXCLUSÃO Igor de Souza Rodrigues 1 RESUMO Este trabalho aborda a gênese social do controle penal como mecanismo de poder, inclusive simbólico, a partir do que chamamos de “caso Taquaral”. Mostra como o controle penal é seletivo em uma dimensão que reproduz as assimetrias e as desigualdades sociais, principalmente em relação à classe e raça. Desconstrói a lógica liberal que o preconceito, nestes termos, é algo meramente do indivíduo e que, inclusive, ele próprio o constrói. Recorre aos estudos da criminologia do Século XIX para demonstrar, genealogicamente, como havia uma negociação e uma disputa da seletividade do controle penal, no qual, o negro e o mulato eram postos como degenerados, criminosos e bandidos. Palavras-chave: controle penal; desigualdade social; crime; ABSTRACT This work addresses the social genesis of criminal control as engine power, even symbolic, from what we call "case Taquaral". Shows how criminal control is selective in a dimension that reproduces the asymmetries and social inequalities, particularly in relation to class and race. Deconstructs the logic that liberal bias in these terms, is something merely of the individual and even the building itself. It will draw on studies of criminology nineteenth century to demonstrate, genealogically, as there was a negotiation and dispute the selectivity of penal control, in which the black and mulatto were placed as degenerates, criminals and thugs. Keywords: criminal control, social inequality; crime. 1 Mestrando e bolsista Capes - DS pelo Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora; Advogado, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior; Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Este trabalho aborda a gênese social do controle penal como mecanismo de poder, inclusive simbólico, a partir do que chamamos de “caso Taquaral”. Mostra como o controle penal é seletivo em uma dimensão que reproduz as assimetrias e as desigualdades sociais, principalmente em relação à classe e raça. Desconstrói a lógica liberal que o preconceito, nestes termos, é algo meramente do indivíduo e que, inclusive, ele próprio o constrói. Recorre aos estudos da criminologia do Século XIX para demonstrar, genealogicamente, como havia uma negociação e uma disputa da seletividade do controle penal, no qual, o negro e o mulato eram postos como degenerados, criminosos e bandidos.

Citation preview

Page 1: O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

O SER BANDIDO: FACES E VIRTUALIDADES DA EXCLUSÃO

Igor de Souza Rodrigues1

RESUMO

Este trabalho aborda a gênese social do controle penal como mecanismo de poder,

inclusive simbólico, a partir do que chamamos de “caso Taquaral”. Mostra como o

controle penal é seletivo em uma dimensão que reproduz as assimetrias e as

desigualdades sociais, principalmente em relação à classe e raça. Desconstrói a lógica

liberal que o preconceito, nestes termos, é algo meramente do indivíduo e que,

inclusive, ele próprio o constrói. Recorre aos estudos da criminologia do Século XIX

para demonstrar, genealogicamente, como havia uma negociação e uma disputa da

seletividade do controle penal, no qual, o negro e o mulato eram postos como

degenerados, criminosos e bandidos.

Palavras-chave: controle penal; desigualdade social; crime;

ABSTRACT

This work addresses the social genesis of criminal control as engine power, even

symbolic, from what we call "case Taquaral". Shows how criminal control is selective

in a dimension that reproduces the asymmetries and social inequalities, particularly in

relation to class and race. Deconstructs the logic that liberal bias in these terms, is

something merely of the individual and even the building itself. It will draw on studies

of criminology nineteenth century to demonstrate, genealogically, as there was a

negotiation and dispute the selectivity of penal control, in which the black and mulatto

were placed as degenerates, criminals and thugs.

Keywords: criminal control, social inequality; crime.

1 Mestrando e bolsista Capes - DS pelo Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal de Juiz de Fora; Advogado, graduado em Direito pelo Instituto Vianna Júnior; Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

Page 2: O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

Este trabalho opera na interface sociologia e direito. Como tal, atesta para a vital

necessidade de interdisciplinaridade na produção do conhecimento na

contemporaneidade. Foi concebido ao longo do convívio com as teorias sobre a

desigualdade social de nosso orientador Professor Jessé Souza, do departamento de

sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Inicia-se discutindo o convencionamos chamar de “caso Taquaral”, que se trata

de uma ordem de serviço dada pelo capitão Ubiratan Beneducci, comandante da 2ª

Companhia do 8º Batalhão da Polícia Militar, em Campinas, no dia 21 de dezembro de

2012. Segundo a ordem, denominada “intensificação do policiamento” a polícia deveria

focar “abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente

indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais

sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência naquela

localidade".

A pergunta não é “por que alguém pratica um crime?” Torna-se mais relevante

identificar e analisar como a sociedade, ao longo do tempo, escolhe e define um tipo de

indivíduo a ser criminalizado. Por que, embora o crime não seja algo específico de uma

classe e de uma raça, a prisão é uma “senzala”? Por que os rótulos, tal como de suspeito,

criminoso, delinquente, perigoso, marginal, meliante, menor, como no “caso Taquaral”,

tem ligação com a forma que o individuo é representado e não com que ele fez? Por que

é recorrente a associação da noção de criminoso à pobreza, o “negro” e o “mulato” e

não qualquer outro traço? Por que a polícia faz essa ligação? Por qual motivo tais

questões são principais para se classificar e se (des)classificar as pessoas no Brasil?

Essas são algumas das perguntas que buscaremos discutir durante o trabalho.

A abordagem que se pretende deste caso não está focada nele mesmo, ou seja,

não se intenciona demonstrar se o capitão Ubiratan Beneducci foi preconceituoso ou

não, tampouco fazer uma avaliação da operação policial no “caso Taquaral”. Mas

demonstrar como a ordem de serviço reflete algo que não só passa pelo capitão e pela

polícia, mas está dentro e fora deles. Isso significa dizer que o preconceito não está

genealogicamente “dentro da polícia”, embora muitos pensem assim2.

2 Cf. Michel Misse (2010: p.17.): “O mais conhecido desses tipos é o sujeito que, no Brasil, é rotulado

como “bandido”, o sujeito criminal que é produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e

das leis penais”.

Page 3: O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

A forma como a polícia identifica o suspeito, como pretendemos demonstrar,

mais que o preconceito do capitão Ubiratan Beneducci, expressa a construção do

controle social e um mecanismo de poder, no qual está em causa muito mais do que

meros “desvios individuais” ou uma reação baseada na interação “face a face”, como

propôs Howard Saul Becker, em Outsiders (1963). Essa leitura liberal, que põe a lógica

subjetiva da ação como gênese dos preconceitos sociais, é a defesa de que é por meio

das interações que nós estabelecemos uns com os outros que criamos e recriamos o

mundo, transformando o preconceito em um confronto situacional de indivíduos.

O “tipo criminoso” não é algo dado, mas construído, é preciso observar essa

construção, sob pena de recairmos em um liberalismo de consequências conservadoras.

O crime não é algo específico de uma classe. Se o indivíduo pratica crime isso não é o

que determina no seu processo de criminalização e de punição, isto é, criminoso não

estabelece uma sinônima perfeita com autor de crime.

Fizemos o exercício de pensar a criminologia do século XIX e a interpretação

brasileira como parte do controle social e da construção histórica de sua seletividade,

isso foi imprescindível para desconstruir essa ótica de que o preconceito é algo

meramente do indivíduo e que, inclusive, ele próprio o constrói. Percebemos que o

fator raça esteve no centro da discussão da criminologia no Brasil e, ainda que alguns

defendessem o mestiço, outra raça (exceto a branca) era apontada como degenerada

(como fez Silvio Romero). A teoria de Lombroso sobressaiu sobre as demais

evolucionistas da época; autores como Morgan, Tylor, Heackel, Spencer, até aparecem

nas discussões, mas é Lombroso quem figura no núcleo da discussão intelectual,

principalmente, pelo fato de que a criminologia se funde ao próprio controle social. A

readaptação de sua teoria lombrosiana segue, sobretudo, o prisma racial, sendo que, é

Nina Rodrigues que dá contornos mais conservadores e compatíveis com os interesses

dominantes.

O controle não está apartado do mundo social, todavia essa seja uma ideologia

necessária ao seu próprio funcionamento – incluindo sua legitimidade – sua parcialidade

não reside simplesmente no fato de que seus operadores estão pré-dispostos a julgar a

causa, mas justamente o oposto, a causa está predisposta ao julgamento: a polícia, por

exemplo, naturaliza o controle e, mais do que isso, é impelida a “garantir” a ordem

social contra os considerados perigosos, violentos, criminosos, etc., assim, atua como

instrumento reprodutor e garantidor desse processo, esquecendo-se de sua gênese, como

se todos fossem igualmente alvos do controle. Nesse sentido, é um engano dizer que a

Page 4: O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

polícia tende criminalizar determinados indivíduos, como muitos afirmam, daí porque

seria como considerá-la como o próprio fator de criminalização, enquanto na verdade,

ela atua como garantidora desse processo.

A importância deste trabalho se justifica na medida em que busca discutir e

desconstruir algumas lógicas de interpretação do criminoso e dos preconceitos no

Brasil, sobretudo a partir de uma interpretação invariável do controle penal, isto é,

desprovida de qualquer relação assimétrica de poder e independente a variáveis como

classe e gênero. O problema é, portanto, além de desconhecido, distorcido, assim, a

contribuição dessa inversão, uma reflexão crítica, reside na ideia de que é conhecendo

que se pode combater.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: a nova escola penal no

Brasil 1889- 1930. 1996. 304 f. Tese (Doutorado)- Programa de Pós-graduação em

Sociologia, Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. 1996.

______. A Criminologia no Brasil ou Como Tratar Desigualmente os Desiguais. Rio de

Janeiro: Dados – Revista de Ciências Sociais, Vol. 45, nº 4, 2002, p. 677- 704.

BECKER, Howard Soul. Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, (1963) 2008.

CARVALHO, Paulo Egídio de Oliveira. Estudos de Sociologia Criminal: Do Conceito

Geral do Crime segundo o Método Contemporâneo (A Propósito da Teoria de E.

Durkheim). São Paulo, Tipografia e Edição da Casa Eclética. 1900.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. As verdades e as formas jurídicas. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2003.

______. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.

______. Os anormais. São Paulo: WMF - Martins Fontes, 2010.

______. “Truth and Power” in: Power/Knowledge. New York: Pantheon Books, 1980.

______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes. 1987.

GARLAND, David. A Cultura do Controle: crime e ordem social na sociedade

contemporânea. Rio de. Janeiro: Revan, 2008

Page 5: O Ser Bandido Faces e Virtualidade Da Exclusão

GOFFAMAN, Erving. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.

4. ed. Rio de Janeiro: LTC. 1988.

MIRANDA, Mácia Mathias. A construção do crime e do criminoso: uma análise

interacionista. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 5, ed. 12, jul. 2011.

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição

analítica sobre a categoria “bandido”. São Paulo: Lua Nova, 79: 15-38, 2010.

RODRIGUES, Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. São

Paulo, Companhia Editora Nacional, 1984.

______. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual de Ciências

Humanas. 2010.

______. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: UFRJ/Biblioteca

Nacional, 2006.

______. Os mestiços brasileiros (1890). Em As coletividades anormais. Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, pp. 195-215. 1939.

ROMERO, Silvio. Doutrina contra Doutrina: o evolucionismo e o positivismo no

Brasil. Rio de Janeiro: J. B. Nunes, 1894.

SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das

Letras, 1993.

SILVA, Alexandre Evangelista da e SILVA, Jeziel Gregório da. Negros criminosos nos

primeiros anos pós-escravatura: uma análise da estigmatização social na visão histórica

e antropológica do racismo científico ANPUH – Associação Nacional de

História/Núcleo Regional de Pernambuco, 2004.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2011

TERRA, Lívia Maria. Identidade bandida: a construção social do estereótipo marginal e

criminoso. Marília: Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP-Marília

– 6 ed. - Número 06 Dezembro/2010..

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria.1999