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LUZIA HELENA LOPES DE MEDEIROS O SIGNIFICADO DA EXPERIÊNCIA DO ADOECIMENTO POR CÂNCER: UM ESTUDO BIOGRÁFICO CUIABÁ 2010

O SIGNIFICADO DA EXPERIÊNCIA DO ADOECIMENTO POR … · que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso. ... essenciais para a construção desse trabalho. ... Os dados foram

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LUZIA HELENA LOPES DE MEDEIROS

O SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DO

ADOECIMENTO POR CNCER: UM ESTUDO

BIOGRFICO

CUIAB

2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE ENFERMAGEM

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENFERMAGEM

MESTRADO EM ENFERMAGEM

LUZIA HELENA LOPES DE MEDEIROS

O SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DO

ADOECIMENTO POR CNCER: UM ESTUDO

BIOGRFICO

CUIAB

2010

LUZIA HELENA LOPES DE MEDEIROS

O SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DO ADOECIMENTO POR

CNCER: UM ESTUDO BIOGRFICO

Dissertao apresentada a Banca

examinadora do Curso de Mestrado da

Faculdade de Enfermagem da Universidade

Federal de Mato Grosso como requisito

para obteno do ttulo de Mestre em

Enfermagem.

rea de concentrao: Processos e Prticas

em Sade e Enfermagem

Linha de Pesquisa: Direito, tica e

Cidadania no Contexto dos Servios de

Sade

Orientadora: Prof. Dr. Aldenan Lima

Ribeiro Corra da Costa

CUIAB

2010

Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer

meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada

a fonte.

FICHA CATALOGRFICA

M488s Medeiros, Luzia Helena Lopes de

O significado da experincias do adoecimento p

cncer: um estudo biogrfico / Luzia Helena Lopes

de Medeiros. 2010.

119 f. : il. ; color. ; 30 cm.

Orientadora: Prof. Dr. Aldenan Lima Ribeiro

Corra da Costa.

Dissertao (mestrado) Universidade Federal

de Mato Grosso, Faculdade de Enfermagem, Ps-

graduao em Enfermagem, rea de Concentrao:

Processos e Prticas em Sade e Enfermagem, Linha

de Pesquisa: Direito, tica e Cidadania no Contexto

dos Servios de Sade, 2010.

Inclui bibliografia.

Inclui anexos.

1. Cncer Enfermagem. 2. Cncer Processo

de adoeci- mento. 3. Cncer Itinerrio teraputico.

4. Oncologia. 5. Cncer Estudo biogrfico. I.

Ttulo.

CDU 616-083-006.6

Ficha elaborada por: Rosngela Aparecida Vicente

Shn CRB-1/931

LUZIA HELENA LOPES DE MEDEIROS

O SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DO ADOECIMENTO POR CNCER:

UM ESTUDO BIOGRFICO

Esta dissertao foi submetida ao processo de avaliao pela Banca Examinadora

para obteno do ttulo de:

Mestre em Enfermagem

E aprovada em sua verso final em 31 de maro de 2010, atendendo s normas da

legislao vigente da UFMT, programa de Ps-graduao em Enfermagem, rea de

concentrao Processos e Prticas em Sade e Enfermagem.

______________________

Dr. Rosemeiry Capriata de Souza Azevedo

Coordenadora do Programa

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________

Dr. Aldenan Lima Ribeiro Correa da Costa

Presidente (Orientador)

__________________________ ________________________

Dr. Mrcia Maria Fonto Zago Dr. Wilza Rocha Pereira Membro Efetivo Membro Efetivo

______________________________ _______________________

Dr. Solange Pires Salom de Souza Dr. Snia Ayako Tao Maruyama

Membro Suplente Membro Suplente

Eu sou o Alfa e o mega, o princpio e o fim, diz o Senhor, que , e que era, e que h de vir, o Todo-Poderoso.

(Apocalipse 1.8)

DEDICATRIA

minha querida me e ao meu querido pai,

que com lies de amor me ensinaram a compreender

o verdadeiro valor da vida.

Seguindo o exemplo de vocs, aprendi a amar e me dedicar

aos meus estudos e minha profisso.

Ao meu esposo Wendell, amor da minha vida,

pelo carinho, e fora,

por aceitar e compreender os momentos de minha ausncia.

Aos meus filhos Lucas e Joo Pedro, pela presena em minha vida,

pelo amor incondicional, por me ensinar o que cuidar,

pelo significado de ser me.

minha sogra Nice, pela ajuda incondicional

em todos os momentos.

minha famlia, principalmente meus irmos,

Joo Ricardo e Paulo, minha cunhada e amiga

Elen e meu amado sobrinho Joo Victor.

Agradecimento Especial

D. Vernica que colaborou com a

realizao deste trabalho, compartilhando sua

experincia de adoecimento, pelo exemplo de

vida que me deu.

MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS

Agradeo Deus pela vida, por ter me dado o dom de cuidar, pela proteo e

sabedoria concedidas durante todo meu existir.

minha orientadora, Prof Aldenan, que com seu carinho, dedicao e

pacincia me transmitiu lies de me que me acompanharo por toda vida.

prof Snia pelo apoio e incentivo. Suas sugestes e contribuies foram

essenciais para a construo desse trabalho. A voc minha gratido e admirao.

prof Roseney e a Prof Laura por no pouparem esforos que conduzissem

ao crescimento do Grupo de Pesquisa GPESC. vocs, meu carinho e gratido pelos

conhecimentos compartilhados e por sempre acreditar no potencial de seus alunos.

Fabia, a quem posso chamar no s de amiga, mas tambm de irm, que

com seu jeito meigo de ser me ensina muitas lies de vida.

minha madrinha, Dondica, pela presena constante em minha vida.

As minhas colegas de Mestrado, Ana Maria Nunes da Silva, Carolina

Campos Ribeiro,Graciela da Silva Miguis Salomo, Jacqueline Pimenta Navarro,

Margarete de Castro, Marilene Hiller, Lorena Arajo Ribeiro, Quli Cristina de

Oliveira, Valria de Carvalho Arajo Siqueira, pelo convvio e pela troca de

experincias que me proporcianaram.

Aos alunos e professores do Grupo de Pesquisa GPESC, pelo incentivo e

troca de conhecimentos que foram fundamentais para a construo desse trabalho.

Aos profissionais de Sade Unidade de tratamento oncolgico, pelo

acolhimento e conhecimentos que muito contribuiu para o xito desse trabalho.

Daniele Caminski, secretria do Mestrado, que nunca mediu esforos para

me ajudar. Obrigada Dani.

Aos bolsistas de iniciao cientfica, Emlio, Fernando e Graziela, que me

auxiliaram para o desenvolvimento desse trabalho. Vocs foram timos.

FAPEMAT, pelo apoio financeiro pesquisa

queles que, direta ou indiretamente, contriburam para que este trabalho se

concretizasse, auxiliando-me nas necessidades, apoiando-me nas decises.

A TODOS VOCS, MUITO OBRIDADA!!!

MEDEIROS, Luzia Helena Lopes de. O significado da experincia do

adoecimento por cncer: um estudo biogrfico. Dissertao (Mestrado em

Enfermagem) Curso de Ps-Graduao em Enfermagem. Universidade Federal de

Mato Grosso, Faculdade de Enfermagem, Cuiab, 2010, 92 p.

Orientadora: Dr. Aldenan Lima Ribeiro Correa da Costa

RESUMO

Este estudo teve como pressuposto bsico que as narrativas de vida na

experincia de adoecimento por cncer podem oferecer elementos importantes para

revelar os diferentes modos que as pessoas utilizam para expressar e compreender o

seu processo de adoecimento, os sentidos e significados a ele atribudos, os quais

podero servir de base para a constituio de novas prticas de cuidados em

enfermagem. Seu objetivo geral foi compreender a experincia de adoecimento de

uma pessoa no enfrentamento de um cncer e os objetivos especficos foram:

evidenciar os significados dessa experincia e compreender os significados presentes

no Itinerrio Teraputico. Pesquisa de natureza qualitativa na perspectiva biogrfica

interpretativa, realizada no municpio de Cuiab, principal referncia para tratamento

de cncer no estado de Mato Grosso. A participante do estudo foi uma mulher de 56

anos, designada ficticiamente por D. Vernica, que realizava tratamento para cncer

em uma unidade de tratamento oncolgico. Os dados foram colhidos no perodo de

fevereiro a junho de 2009, por entrevista-narrativa e observaes simples

complementares no contexto social da participante. As ferramentas de anlise

utilizadas foram o Itinerrio Teraputico (IT), o genograma e o ecomapa. A

interpretao dos dados utilizou fundamentos do Interacionismo Interpretativo. A

trajetria biogrfica interpretada evidenciou seis epifanias, ou momentos importantes

que tiveram o potencial de gerar transformaes na vida D. Vernica: o recebimento

do diagnstico; a retirada da mama; a realizao da quimioterapia; a reconstituio

malsucedida da mama; a separao conjugal e o diagnstico de metstase ssea, o

qual foi a epifania principal. A vida, que era considerada normal, passa a ser

diferente, gerando a necessidade de constituio de novas normas para encaminh-la

na nova condio. Esse evento desencadeou uma srie de transformaes que se

processaram levando elaborao de um conceito de morte e a pensar a vida alm

dela. O Itinerrio Teraputico evidenciou o trmite pelo sistema privado de

desembolso direto, conveniado e pblico, assumindo o significado de um

empreendimento realizado para buscar, produzir e gerenciar seus cuidados de sade.

O estudo trouxe vrios elementos para repensar o cuidado a uma pessoa com cncer,

desde a formao do profissional at seu preparo permanente na considerao da

cidadania da pessoa e sua famlia na condio crnica decorrente do cncer.

Palavras-chave: Enfermagem, Biografia, Oncologia, Itinerrio Teraputico

MEDEIROS, Luzia Helena Lopes. The meaning of the experience of suffering from

cancer: a biographical study. Dissertation (Masters in Nursing) - Post-Graduate

Nursing. Federal University of Mato Grosso, School of Nursing, Cuiab, 2010, 92 p.

Advisor: Mrs. Aldenan Lima Ribeiro Correa da Costa

ABSTRACT

This study is the basic assumption that the narratives of life in the illness experience

of cancer may provide important elements to reveal the different ways that people

use to express and understand their disease process, the meanings attributed to him,

which could form the basis for the establishment of new practices in nursing care.

The general purpose was to understand the illness experience of a person in coping

with cancer and the specific objectives were: to highlight this experience and

understand the meanings present in the Therapeutic Itinerary. Qualitative research in

the interpretive biographical perspective, was in the city of Cuiab, the main

reference for the cancer treatment in the state of Mato Grosso. The participant was a

woman (56 years old), fictional designated by D. Veronica, who was undergoing

cancer treatment in an oncology unit. The data were collected from February to June

2009 through narrative interview and simple observations in the social context of the

participant. The analysis tools used were the Therapeutic Itinerary , the genogram

and eco-map. The interpretation of the data used grounds of Interpretive

Interactionism. The biographical way interpreted showed six epiphanies, or moments

that had the potential to generate changes the D. Veronicas life: receiving the

diagnosis, the removal of the breast, the chemotherapy, the unsuccessful breast

reconstruction her divorce and the diagnosis of bone metastasis, which was a major

epiphany. The life that was considered "normal" is to be different, creating the need

to create new rules to guide it in new condition. This event triggered a series of

transformations that took place leading to the elaboration of a concept of death and

think about life beyond. The Therapeutic Itinerary revealed by the processing system

of private direct expenditure, with coverage and the public, taking on the meaning of

an enterprise to seek out, produce and manage their health care. The study provided

many elements for rethinking the care of a person with cancer, provided professional

training to prepare them permanently into consideration the person's citizenship and

his family in chronic condition resulting from cancer.

Keywords: Nursing, Biography, Oncology, Therapeutic Itinerary

MEDEIROS, Luzia Helena Lopes. El significado de la experiencia de padecer

cncer: un estudio biogrfico. Tesis (Maestra en Enfermera) - La enfermera de

postgrado. Universidad Federal de Mato Grosso, la Escuela de Enfermera, Cuiab,

2010,92p.

Asesor: Dr. Aldenan Lima Ribeiro Correa da Costa

RESUMEN

El estudio teve como pressupuesto base que las narrativas de la vida en la

experiencia del enfermedad por cncer puedem ofrecer elementos importantes para

revelar los diferentes modos que las personas utilizam para expressar y compreender

o su processo del enfermedad, los sentidos y significados a ele atribuidos, los quais

poderam servir de base para la constituicin de nuevas praticas de cuidados en

enfermera. Su objetivo general fue compreender la experiencia del enfermedad de

una persona no enfrentamiento del un cncer y los objetivos especficos fueram:

evidenciar los significados dessa experiencia y compreender los significados

presentes en Itinerario Teraputico. Pesquisa de naturaleza qualitativa na perspectiva

biogrfica interpretativa, realizada em el municipio de Cuiab, principal referncia

para el tratamiento del cncer em el estado de Mato Grosso. La partilhante del

estudio fue una mujer de 56 ans, designada em teora por D. Vernica, que realizava

tratamiento para cncer en una unidad del tratamiento oncologico. Los dados fueram

colectados en el perodo del fevrero a junio del 2009, por entrevista-narrativa y

observaciones simples complementares en contexto social da partilhante. Las

ferramientas del analise utilizadas fueram el Itinerario Teraputico (IT), el

genograma y el ecomapa. La interpretacin de los dados utilizavam fundamientos del

Interaccionismo Interpretativo. La historia biogrfica interpretada evidenciou seis

epifanas, ou momentos importantes que tuvieran el potencial de generar

transformaciones em la vida D. Vernica: el recebimiento del diagnstico; la retirada

de la mama; la realizacin de la quimioterapia; la reconstituicion malsucedida de la

mama; la separacion conjugal y lo diagnostico del metstasis seas, lo qual fue la

epifana principal. La vida, que sea considerada normal, pasa la ser diferente,

gerando la necessidad del constituicion del nuevas normas para enviar en la nueva

condicin. Esse evento desencadenou una serie del transformaciones que se

processaram levando a elaboracin del un conceito de muerte e a pensar la vida

adems dela. El Itinerario Teraputico evidenciou el procesiamento por el sistema

privado de desembolso directo, conveniado y pblico, assumindo el significado de un

empreendimiento realizado para buscar, produzir e gerenciar sus cuidados de la

salud. El estudio trajo ms elemientos para repensar el cuidado a una persona com

cncer, desde la formacin del profesional a su preparo permanente em las

consideracin da cidadania em la persona y su familia en la condicin crnica

decorrente del cncer.

Palabras-clave: Enfermera, Biografa, Oncologa, Itinerario Teraputico

Lista de Figuras

Figura 1 Ecomapa de D. Vernica ..........................................................................58

Figura 2 Genograma de D. Vernica ......................................................................62

Figura 3 Itinerrio Teraputico de D. Vernica ......................................................64

LISTA DE ABREVIATURAS

SIM/MS: Sistema de Informao de Mortalidade/ Ministrio da Sade

SES: Secretaria do Estado de Sade

FUSC: Fundao de Sade de Cuiab

SMS: Secretaria Municipal de Sade

SUS: Sistema nico de Sade

APAC/ Onco: Autorizao de Procedimentos de Alta Complexidade de Oncologia

UNACON: Unidade Assistencial de Alta Complexidade em Oncologia

SAS/MS: Secretaria de Ateno Sade/ Ministrio da Sade

OMS: Organizao Mundial de Sade

HIV/AIDS: Vrus da Imunodeficincia Adquirida

IT: Itinerrio Teraputico

IARC: Agncia Internacional de Investigao do Cncer

INCA: Instituto Nacional do Cncer

SNC: Servio Nacional do Cncer

GPESC: Grupo de Pesquisa Enfermagem e Cidadania

HUJM: Hospital Universitrio Jlio Mller

UFMT: Universidade Federal de Mato Grosso

SUMRIO

1. INTRODUO............................................................................................17

2. OBJETIVOS...............................................................................................25

2.1. Objetivo geral.......................................................................................................25

2.2. Objetivos especficos........................................................................................25

3. O OBJETO DE ESTUDO NA PESQUISA BIOGRFICA INTERPRETATIVA

..................................................................................................................................26

3.1. A condio crnica do cncer...........................................................................26

3.2. Dados epidemiolgicos do cncer..................................................................28

3.3. O SUS e o Inca na assistncia ao cncer........................................................31

3.4. O cncer e sua histria na sade brasileira.....................................................33

3.5. A experincia do cncer: aspectos individuais e socioculturais. ........................35

4. REFERENCIAL TERICO-METODOLGICO..................................................39

4.1. O processo metodolgico.....................................................................................46

4.2. Os cuidados ticos, a entrada no campo e o contexto estudado...........................46

4.3. A coleta de dados.................................................................................................51

4.4. O processo de anlise e compreenso dos dados.................................................53

5. OS SIGNIFICADOS DA EXPERINCIA DE ADOECIMENTO DE UMA

PESSOA COM CNCER .........................................................................................56

5.1. Quem D. Vernica..........................................................................................56

5.2. Os significados presentes no itinerrio teraputico, no ecomapa e no genograma

da experiencia de D.Vernica.....................................................................................57

5.3. Os significados do diagnostico, da dor, do sofrimento, do corpo, do cncer e da

morte na experincia de adoecimento de D.Vernica................................................66

5.3.1. O impacto do diagnstico do cncer................................................................66

5.3.2. A dor como fator paralisante.............................................................................73

5.3.3. Enfrentando o sofrimento.................................................................................77

5.3.4. O significado cultural do corpo.........................................................................82

2

5.3.5. O significado da doena cncer........................................................................85

5.3.6. H vida aps a morte.........................................................................................90

6. A COMPREENSO DO SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DE

ADOECIMENTO POR CNCER.............................................................................92

6.1. A compreenso sobre si mesma: eu me tornei uma pessoa melhor.....................92

7. A COMPREENSO DO SIGNIFICADO DA EXPERINCIA DE

ADOECIMENTO POR CNCER PELO PROFISSIONAL DE SADE................98

7.1. A constituio de novas prticas profissionais de enfermagem para o cuidado do

usurio com cncer.....................................................................................................99

7.2. O profissional de enfermagem trabalhando com a morte e a finitude humana

...........................................................................................................................105

7.3. O profissional de enfermagem trabalhando com a dor......................................108

7.4. O profissional de enfermagem trabalhando com o corpo mutilado pela doena

.............................................................................................................................110

7.5. O profissional de enfermagem compreendendo e apoiando a pessoa com cncer

nas mudanas de normalidade..................................................................................111

7.6. O profissional de enfermagem compreendendo a religiosidade como apoio ao

processo de finitude da vida......................................................................................112

7.7. Eu me tornei uma profissional melhor...........................................................114

8. CONSIDERAES FINAIS...............................................................................117

9. REFERNCIAS....................................................................................................120

ANEXOS..................................................................................................................130

17

1. INTRODUO

Esta pesquisa foi realizada como um recorte do projeto Avaliao dos

mltiplos custos em sade na perspectiva dos itinerrios teraputicos de famlias e da

produo do cuidado em sade em municpios de Mato Grosso (MT)1. Sua

finalidade propiciar novos olhares do enfermeiro para o cuidado a pessoas com

cncer, pois aborda a experincia de quem vivencia a doena, possibilitando a

constituio de um cuidado mais sensvel e mais condizente com as necessidades dos

usurios do Sistema nico de Sade (SUS) que estejam vivenciando esse problema.

O termo cncer designa um conjunto de mais de uma centena de doenas que

tm como caracterstica o crescimento desordenado de clulas que invadem os

tecidos e rgos do corpo humano ocasionando diversas consequncias na vida das

pessoas (BRASIL, 2008). Destaco neste estudo a necessidade de entender como as

pessoas que vivenciam esta doena gerenciam seu cotidiano, pois seu diagnstico

configura-se em uma doena marcada pelo sofrimento decorrente das manifestaes

fsicas, tratamento agressivo, dificuldades de acesso aos profissionais e instituies

nos servios pblicos de sade mas tambm pelo estigma de uma doena incurvel

e de ter que conviver com esta condio por um perodo .

Como doena, o cncer tem sido muito estudado e vrios conhecimentos tm

sido produzidos sobre seus aspectos biolgicos, possibilitando uma maior

compreenso de suas manifestaes no organismo das pessoas. De igual modo,

necessrio estudar os aspectos subjetivos da doena relacionados ao seu

enfrentamento, identificando as diversas dimenses que afetam o cotidiano da vida

das pessoas que a vivenciam, pois o conhecimento da doena imprescindvel para a

sua cura e/ou controle. Desse modo, compreender a complexidade da experincia

1 Pesquisa financiada pela FAPEMAT Edital MS/CNPq/FAPEMAT - n 010/2006 Seleo Pblica de Projetos de Pesquisa e Desenvolvimento

Tecnolgico Prioritrios para o SUS. Processo n 042-10037475/CNPq/2006.

18

poder ajudar as pessoas a encaminhar suas vidas com maior autonomia e menos

sofrimento nesta nova condio.

Em minha experincia profissional, atuei como enfermeira no Hospital do

Cncer de Cuiab, onde convivi com pessoas com cncer cujas histrias de vida

continham narrativas que retratavam percursos em busca de cuidado e as formas

como as prticas dos profissionais e das instituies de sade atendem aos seus

problemas.

O sofrimento e a luta dessas pessoas e suas famlias me fizeram refletir sobre

a atuao do enfermeiro e suas prticas no cuidado a pessoas com necessidades

oncolgicas, e a maneira pela qual ns, enfermeiras, estamos exercendo as nossas

prticas de cuidados. Desde ento, comecei a questionar: como experienciar uma

condio crnica decorrente de um cncer e quais so as suas repercusses na vida

pessoal e familiar? Como as pessoas acessam as prticas profissionais e as

instituies de sade? Como atendemos essas pessoas?

Minha insero no curso de mestrado trouxe a oportunidade de trabalhar com

esse tema e buscar, atravs da pesquisa, conhecimentos acerca dos significados

atribudos pelas pessoas sobre a sua experincia do adoecimento por cncer.

Significados esses que elas do as suas experincias considerando o seu contexto

social e familiar. Como resultado de minha experincia profissional nesta rea,

considero que o diagnstico do cncer traz grande impacto no s sobre a vida da

pessoa afetada, mas tambm para os que lhe so prximos. Algumas pessoas

modificam seus hbitos, passam a rever conceitos, valores, crenas, comportamentos

e atitudes, promovendo uma reviravolta em suas vidas. Tal observao possibilitou a

compreenso de que vrios significados esto implicados nesta situao e muitas

podem ser as repercusses desses significados na vida da pessoa e de sua famlia, e

nas nossas prticas de cuidados de enfermagem, os quais podem ser apreendidos e

orientar mudanas as prticas atuais, pois configuram como desafios aos sistemas de

sade no que se refere ao cncer.

No Brasil, as estimativas para o ano de 2010 e vlidas tambm para o ano de

2011, apontam que ocorrero 489.270 casos novos de cncer (BRASIL, 2009). O

Sistema nico de Sade (SUS) registrou 423 mil internaes por neoplasias

malignas (cncer) em 2005, alm de 1,6 milho de consultas ambulatoriais em

oncologia. Mensalmente, so tratadas 128 mil pessoas com quimioterapia e 98 mil

19

com radioterapia ambulatorial. Nos ltimos cinco anos, ocorreu aumento expressivo

no nmero de atendimentos oncolgicos nas unidades de alta complexidade do SUS.

Estima-se tambm que existe diferena no risco absoluto e na sobrevida por cncer

entre as diversas regies brasileiras e, caso no haja um controle efetivo, tal diferena

poder assumir propores ainda maiores no que se refere ao acesso aos servios de

qualidade para tratamento do cncer (BRASIL, 2007).

No Estado de Mato Grosso, o cncer a terceira causa de bito. Segundo o

Sistema de Informao de Mortalidade (SIM-MS), foram notificados 1.800 casos de

bito em 2005 em Mato Grosso, sendo 413 residentes de Cuiab, com 69,2% de

mortalidade hospitalar, um problema crescente de sade pblica. A estimativa do

Instituto Nacional do Cncer (Inca-MS) para incidncia de cncer em Mato Grosso

em 2010 de cerca de 2.620 casos novos em mulheres (sendo 640 s em Cuiab) e

2.940 casos novos em homens (BRASIL, 2007). Em julho de 2008, tivemos nos

registros da Central de Regulao Oncolgica de Mato Grosso cerca de 4.000

pessoas cadastradas em tratamento de quimioterapia e/ou radioterapia. Destas,

apenas 1.500 estavam com autorizao trimestral para realizar tratamento, as demais

estavam fora deste tratamento especfico, outras em acompanhamento nos servios

ou sem diagnstico de cncer confirmado (CUIAB, 2008).

Em Cuiab assegurada a assistncia a pessoa com cncer, por meio de uma

rede de ateno oncolgica planejada, organizada e controlada pela Secretaria de

Estado de Sade. Nesta assistncia esto includos procedimentos cirrgicos,

radioterpicos e quimioterpicos, com finalidade curativa e paliativa, conforme

critrios estabelecidos na Portaria SAS/MS N 741 de 8 de dezembro de 2005

(CUIAB, 2008).

Nesse cenrio, podemos verificar a necessidade de muitos investimentos para

o desenvolvimento de aes que devero ser disponibilizadas para o controle do

cncer nos diferentes nveis de atuao, seja em promoo de sade, deteco

precoce, assistncia direta, vigilncia, formao de recursos humanos, comunicao e

mobilizao social, pesquisa ou na gesto do SUS.

Os dados epidemiolgicos comprovam que a importncia de estudos

versando sobre o cncer em seus aspectos biolgicos inquestionvel, pois deles

dependero a criao de novas tecnologias para minimizar os impactos negativos da

doena na vida das pessoas. Igualmente importantes so os estudos versando sobre a

20

experincia de adoecimento por cncer e o seu significado no cotidiano das pessoas

que o vivenciam, pois a pessoa com cncer passa a requerer cuidados profissionais

de sade, cuidados familiares, a depender dos servios de sade, de profissionais

capacitados no s para cuidar das complicaes fsicas decorrentes da doena, mas

tambm de pessoas e de estruturas que o apiem no seu cotidiano frente a condio

de estar com cncer, representado como uma doena grave e de sofrimento.

Apesar das pessoas viverem a situao de estar com cncer entendemos que

cada pessoa a vivencia de modo muito particular tal experincia, pois os significados

atribudo por ela sua experincia de adoecimento tem relao com os significados

construdos por cada pessoa em seu processo de vida nos contextos socioculturais os

quais esto inseridos. Compreender os sentidos e significados se constitui em um

aspecto relevante na medida em que nos possibilita ampliar a condio de estar com

cncer para alm da dimenso biolgica, contribuindo para a constituio de prticas

de cuidados que possam contemplar outras dimenses da vida humana alm da

dimenso biolgica.

No entanto, ao realizar levantamento bibliogrfico sobre a experincia de

adoecimento por cncer em banco de dados (Lilacs, Capes, Bdenf e Scielo e

Medline), constatei que as literaturas cientficas que abordam a experincia do

adoecimento, na viso dos usurios dos servios de sade, so relativamente

recentes, sendo que a partir da dcada de 70 que surge uma maior publicao

abordando a experincia de mulheres com cncer, ou seja, voz das pessoas que

passam pela experincia tem sido escutadas e includas em pesquisas.

Associado a isso, constatei que a partir de 1988, com a criao do SUS,

comea a existir, alm da dimenso biolgica, tambm uma maior preocupao na

valorizao de outros aspectos associados ao adoecimento. Neste sentido, comea a

ter uma maior participao dos usurios do SUS no que se refere ao seu tratamento e

gerenciamento de suas necessidades de sade. No entanto, as prticas s pessoas com

cncer tem sido um desafio aos gestores e as instituies do sistema de sade por no

considerarem a complexidade da experincia em suas diversas dimenses, desde o

aparecimento dos sintomas iniciais, o impacto do diagnostico, repercusses e o

contexto da experincia.

Assim, busco desvendar como ocorre a experincia de quem vivencia o

cncer e o seu significado, sob o ponto de vista de quem passa por essa experincia,

21

por entender que a vida comporta mltiplas dimenses que extrapolam e que no se

reduz a doena. Essas mltiplas dimenses so as vivncias do sofrimento advindas

de sua repercusso e para as quais a pessoa precisa de mecanismos de enfrentamento

e meios que lhe permitam continuar a fazer andar sua vida2.

A relevncia deste estudo se relaciona tambm gesto de prticas e saberes

em sade, voltada para a ateno condio crnica e a compreenso de aspectos do

adoecimento relacionados dimenso cotidiana da pessoa e das famlias, que

necessitam gerenciar uma condio crnica. Com o intuito de compreender a

experincia de adoecimento dessas pessoas, o estudo procurou enfocar sua forma de

lidar e gerenciar suas necessidades de sade, bem como o significado atribudo por

ela a esta experincia de adoecimento.

Meu pressuposto foi que na biografia das pessoas que tem cncer a

experincia de adoecimento est implicada nas suas historias de vida pelos

significados sobre corpo, sade, doena, famlia, cncer, entre outros, presentes em

nosso meio sociocultural e que fazem sentido a vida das pessoas. De posse desses

significados, pude evidenciar a necessidade de novos cuidados de enfermagem que

possam facilitar, na medida do possvel, o enfrentamento da condio crnica por

adoecimento por cncer na vida de outras pessoas.

Nesta perspectiva a famlia a principal unidade de cuidado pessoa numa

condio crnica e esse cuidado influenciado pelo seu contexto cultural, incluindo

as crenas, os valores e os significados que o grupo compartilha. Assim, a famlia

toma suas decises de acordo com o que seus membros acreditam, com o modo em

que vivem e principalmente de acordo com sua condio financeira (ALTHOF,

1998). O processo de tomada de deciso relacionado s necessidades de sade e ao

gerenciamento do cuidado mediado por esses fatores existentes no contexto

familiar, os quais permeiam a relao com os servios de sade e determinam, em

larga medida, a utilizao dos recursos de tratamento.

Ao relacionar a doena crnica e a famlia, devem-se considerar a durao do

tratamento e as consequentes limitaes associadas ao estilo de vida do cotidiano do

doente e de seus familiares. Portanto, fundamental compreender o processo de

2 Expresso tomada do estudo de Souza (2006, p. 17), entendida como as maneiras com que as pessoas se conduzem e

enfrentam sua existncia cotidiana, ou seja, como possibilidades de caminhos e de trnsito nos contextos sociais, educacionais e

de sade, entre outros.

22

viver da famlia, que dinmico e sujeito a modificaes ao longo dos diferentes

estgios do ciclo de vida familiar e que se integram as experincias de adoecimento

por cncer em um dos seus membros.

Muitas so as maneiras como as pessoas enfrentam sua doena e tambm

muitos so os caminhos que percorrem em busca de atendimento para suas

necessidades fsicas, psquicas e sociais. As prticas e estratgias da populao no

enfrentamento de seus problemas cotidianos, sobretudo em relao procura de

cuidados em sade, so bem analisadas atravs dos Itinerrios Teraputicos (IT)

descritos por Bellato, Arajo, Castro (2008). Nesse entendimento, os processos de

escolha, avaliao e aderncia a determinadas formas de tratamento so complexos e

difceis de ser apreendidos se no for levado em conta o contexto dentro do qual o

indivduo est inserido, sobretudo frente diversidade de possibilidades disponveis

(ou no) em termos de cuidados em sade.

A expresso Itinerrio Teraputico foi aqui utilizada como trajetrias de

busca, produo e gerenciamento do cuidado para com a sade. Essas trajetrias so

empreendidas pelas pessoas, no sentido de que os trajetos so realizados com uma

finalidade especfica, isto , acessar servios de sade que possam garantir resoluo

a suas necessidades. Na lgica de busca esto implicadas tambm as redes sociais

como garantia de sustentabilidade durante a realizao do IT (BELLATO,

ARAJO, CASTRO, 2008). A noo de IT permite dar visibilidade e voz aos

usurios do SUS, principalmente no que se refere condio crnica, pois nesta h

necessidade de gerenciamento constante do cuidado, j que nela h perodos de

exacerbao dos sintomas e ocasies em que eles silenciam podendo passar

despercebidos pelos profissionais de sade, mas podendo reaparecer logo a seguir na

vida da pessoa.

A condio crnica traz repercusses na vida do usurio dos servios de

sade e famlia que no so percebidas pelo Sistema de Sade, e se constituem em

necessidades experienciadas, mas no percebidas como tais. Torn-las evidentes

possibilitar a adoo de formas de cuidados mais significativas aos mesmos (OMS,

2002).

O atendimento, se devidamente centrado no usurio, torna-se positivo, pois

autonomia implica a possibilidade de reconstruir sujeitos e sentidos, e essa

ressignificao tem peso efetivo no modo de viver do usurio, incluindo-se a a luta

23

pela satisfao de suas necessidades da forma mais ampla possvel (PINHEIRO &

MATTOS, 2005, p. 23).

Pressuponho que na experincia de pessoas com cncer as necessidades em

sade, implicados as diversas dimenses da vida dessas pessoas, as levam a

buscarem por servios de sade e por recursos necessrios para o cuidado as suas

necessidades. Essas necessidades sentidas, muitas vezes no so percebidas pelos

servios de sade e seus profissionais, mas podero ser evidenciadas na apreenso de

sua histria de adoecimento e busca por cuidados e, a partir dessa deteco, novas

prticas profissionais podero ser constitudas.

A organizao das aes e dos servios de sade de forma usurio-

centrada, garantida por equipes multiprofissionais de carter

interdisciplinar, orientada por atos de escuta, acolhimento,

atendimento e acompanhamento, propiciar maior resolutividade

das prticas de cuidado, dos servios e dos sistemas de sade

(CECCIM & FERLA, p. 177, 2006).

Contudo, a organizao das prticas profissionais, voltada ateno integral

sade, ser mais bem conduzida se tiver subsdios tericos sobre a experincia de

adoecimento de pessoas vivenciando condies crnicas, como a que o presente

estudo busca enfocar.

A noo de integralidade tem sido pensada de diversas maneiras. Se focarmos

o sentido da integralidade na viso do usurio, este apresentar o entendimento do

termo relacionado a tratamento digno, com respeito, de maneira que integre o

vnculo e o acolhimento nas relaes profissional-usurio. Assim, o termo

integralidade vem sendo muito utilizado, pois permite iluminar essas relaes

existentes nos locais de trabalho, onde os saberes e prticas se interagem

(PINHEIRO; MATTOS, 2003b).

A busca pela construo de prticas de ateno integral sade constitui um

dos maiores desafios no cotidiano dos enfermeiros e de outros profissionais de sade.

Neste sentido, a ateno dispensada sade das pessoas na experincia de

adoecimento por cncer deve ocorrer de modo que possa favorecer a garantia das

mesmas nas situaes em que elas se fazem necessrias, vislumbrando o alcance da

maior integralidade possvel na medida em que integram em suas prticas as diversas

dimenses implicadas na experincia do adoecimento nos contextos socioculturais as

quais elas esto inseridas.

24

Alm disso, as intervenes especializadas no atendimento s necessidades

decorrentes do cncer tero melhor chance de atingir sua eficcia se os profissionais

da sade e, particularmente os de enfermagem, se dispuserem a exercitar a escuta

atenta para compreender o modo de andar a vida da pessoa em sua experincia de

adoecimento. Tal escuta permitir a descoberta de outras necessidades surgidas no

decorrer do processo de tratamento e possibilitar a troca de ideias entre profissionais

e usurios do SUS sobre a melhor forma de atendimento, resultando na constituio

de novas prticas de cuidados.

Assim, a relevncia do estudo se traduz na aquisio de subsdios tericos a

partir da anlise de dados empricos do que experienciar uma condio crnica de

cncer e os significados atribudos pela pessoa a sua experincia. A partir dessa

compreenso poderemos ampliar nossas perspectivas de cuidado em sade,

favorecendo a constituio de novas prticas profissionais mais efetivas,

principalmente no que se refere considerao dos significados e sentidos presentes

em cada experincia das pessoas que vivem o adoecimento.

25

2. OBJETIVOS

2.1. Objetivo geral

Compreender a experincia de adoecimento de uma pessoa no

enfrentamento de um cncer.

2.2. Objetivos especficos

- Evidenciar os significados da experincia de adoecimento de uma

pessoa com cncer;

- Compreender os significados presentes no Itinerrio Teraputico, na

experincia de adoecimento de uma pessoa com cncer.

26

3. O OBJETO DE ESTUDO NA PESQUISA BIOGRFICA

INTERPRETATIVA

Segundo Denzin (1989b), numa pesquisa biogrfica interpretativa h uma

fase denominada desconstruo que envolve uma anlise crtica de como o fenmeno

de nosso interesse investigativo est sendo apresentado, estudado e analisado na

literatura cientfica existente. Significa, portanto, evidenciar aquilo que foi descrito e

o que no foi ainda explicitado em pesquisas anteriores. Desta forma, na presente

desconstruo do meu objeto de estudo, apresento aspectos importantes da literatura

existente sobre o cncer no Brasil e em Mato Grosso, bem como estudos realizados

sobre a experincia de adoecimento por cncer em nosso pas, evidenciando como

essa experincia em mulheres est sendo pesquisada, analisada e observada por

pesquisadores da enfermagem brasileira. Para isso, busquei explorar atentamente as

conceituaes, as observaes e a forma como as mesmas tm sido apresentadas nos

estudos acessados.

3.1. A condio crnica do cncer

At o ano de 1957 as doenas crnicas eram consideradas aquelas

biologicamente definidas, de longa durao e sem perspectiva de cura. O cncer

citado como um dos exemplos de doena crnica no mbito dessa definio

(GARCIA, 1994).

Ainda no mesmo ano a Comisso de Doenas de Cambrigde ampliou a

definio de doena crnica passando a consider-la como

27

todos os desvios do normal que tenham uma ou mais das seguintes

caractersticas: permanncia, presena de incapacidade residual,

mudana patolgica no reversvel no sistema corporal,

necessidade de treinamento especial do paciente para reabilitao

e previso de um longo perodo de superviso, observao e

cuidados (MARTINS; FRANA; KIMURA, 1996, p. 6).

Atualmente, alm da considerao das doenas crnicas, h tambm a

considerao das condies crnicas, as quais nem sempre se relacionam a doenas,

mas que trazem diversificadas necessidades de sade.

Segundo a OMS (2002, p. 15), as condies crnicas constituem problemas

de sade que requerem gerenciamento contnuo por um perodo de vrios anos ou

dcadas. Assim, elas abrangem muitos agravos que aparentemente no apresentam

relao. Mesmo no apresentando semelhanas, as doenas transmissveis, as no

transmissveis e as incapacidades estruturais esto includas no conjunto das doenas

crnicas, pois nessas situaes as pessoas requerem cuidados contnuos, por um

tempo prolongado, e de servios de sade que atendam suas necessidades.

Na tica da OMS (2002), as condies crnicas representam um srio desafio

para os atuais sistemas de sade no que diz respeito eficincia e efetividade dos

mesmos, desafiando a organizao de sistemas para a criao de modelos de sade

que as contemplem. No caso especfico do cncer, por se tratar de uma condio que

requer gerenciamento contnuo por parte das pessoas que a experienciam, a voz

destas precisa ser ouvida, refletida e atendida pelas prticas profissionais nos

servios de sade e no contexto social.

Souza (2006), refletindo sobre as condies crnicas com base na definio

da OMS, afirma que elas apresentam um ponto em comum por persistirem e

necessitarem de cuidados permanentes, ou seja:

As condies crnicas no so mais vistas de forma tradicional

(ex. limitadas s doenas cardacas, diabetes, cncer e asma),

consideradas de forma isolada ou como se no tivessem nenhuma

relao entre si. A demanda sobre os pacientes, famlias e o

sistema de sade so similares (SOUZA, 2006, p. 23)

Ao considerar as condies crnicas como uma categoria mais abrangente, a

OMS amplia tambm a nossa viso quanto formao profissional para este

enfrentamento, j que agora o foco no se restringe ao corpo biolgico e aos

28

profissionais como detentores exclusivos dos conhecimentos sobre sade, mas busca

integrar os indivduos e as comunidades nas aes de sade.

3.2. Dados epidemiolgicos do cncer

Diante da necessidade de atender demanda de diagnstico e/ou exame

anatomo-patolgico em Cuiab, as secretarias Estadual (SES) e Municipal de Sade de

Cuiab (SMS), participaram em 2007 do plano de trabalho (iniciado em 2001) para

reestruturar, organizar, reorientar e acompanhar a implantao das diretrizes da

poltica estadual de preveno, controle e gesto do cncer. Tais diretrizes foram

aprovadas em dezembro de 2002 pela SES e SMS de Cuiab, para assistncia

oncolgica nos trs nveis de ateno. O objetivo foi o de organizar e estruturar o

atendimento ao usurio, considerando os respectivos nveis de complexidade em

oncologia, desenhando os fluxos de referncia e contrarreferncia e estruturando os

servios para viabilizar a integralidade das aes necessrias assistncia oncolgica

(CUIAB, 2008).

No ano de 2007 o SUS em Cuiab manteve os crescentes custos do tratamento

de cncer, sendo gastos cerca de R$ 12.345.340,35 com procedimentos ambulatoriais

de quimioterapia e radioterapia. Na rede hospitalar foi custeado um montante de cerca

de R$ 4.475.633,45 com 5.412 procedimentos de internao em oncologia. Alm

disso, difcil a quantificao e a totalizao de gastos com exames e servio de apoio

diagnstico, medicamentos, internaes clnicas e UTI, pagamentos administrativos e

demandas judiciais, entre outros gastos com pacientes oncolgicos na Rede de Sade

Municipal e Estadual, devido subnotificao no Sistema de Informao (CUIAB,

2008).

No ms de junho de 2008, foram autorizados cerca de 2.500 Tratamentos

Ambulatoriais de Alta Complexidade em Oncologia (Apac/Onco), nas unidades

prestadoras de oncologia de Cuiab. Os demais casos podem ter sido assistidos e/ou

subnotificados na rede bsica, secundria e/ou terciria em hospitais no credenciados

como Unidade Assistencial de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon),

29

principalmente no interior de Mato Grosso, inviabilizando a notificao das suspeitas e

casos confirmados de cncer. Para ser credenciado como Unacon a instituio de

sade precisa confirmar, alm das instalaes fsicas e de equipamentos, tambm as

condies tcnicas e os recursos humanos adequados oferta de cuidados

especializados de alta complexidade para o diagnstico e o tratamento dos tipos de

cncer mais prevalentes em nosso pas (CUIAB, 2008).

Estudos epidemiolgicos demonstram um aumento do nmero de casos de

cncer, apontando-o como um dos mais importantes problemas de sade pblica

mundial, tanto nos pases desenvolvidos como nos pases em desenvolvimento. As

estatsticas mundiais mostram que no ano de 2000 ocorreram 5,3 milhes de casos

novos de cncer em homens e 4,7 milhes em mulheres, e que 6,2 milhes de

pessoas morreram por essa causa (3,5 milhes de homens e 2,7 milhes de mulheres)

correspondendo a 12% do total de mortes por todas as causas (cerca de 56 milhes)

(BRASIL, 2007).

A Agncia Internacional de Investigao do Cncer (Iarc) estimou que em

2002 havia 10,9 milhes de novos casos de cncer e mortes em todo o mundo. Esses

nmeros representam um aumento de 22% na incidncia e mortalidade por cncer

em comparao com os nmeros de 1990 e, de acordo com a OMS, o nmero de

casos vai aumentar para 15 milhes at o ano de 2020 (PARKIN, 2005).

Existem vrios fatores que favorecem o desenvolvimento do cncer. Podemos

citar como principais: predisposio gentica (casos na famlia), hbitos alimentares,

estilo de vida e condies ambientais (BRASL, 2008).

O Brasil classifica-se entre os pases com maior incidncia de cncer de

mama em todo o mundo. Segundo o Inca (2009), o nmero de casos novos de cncer

de mama estimados para 2010 de 49 mil, sendo o segundo tipo de cncer mais

frequente no mundo e o mais comum entre as mulheres. A cada ano, cerca de 22%

dos casos novos de cncer em mulheres so de mama.

O cncer considerado de melhor prognstico o de mama, sua deteco

precoce facilita o tratamento e aumenta a chance de cura. Em nosso pas, a

descoberta tardia da doena, geralmente em estgios avanados, faz com que o

nmero de mastectomias realizadas seja alto (MAKLUF, DIAS & BARRA, 2006).

Em tais condies observa-se uma diminuio das chances de sobrevida,

comprometimento dos resultados do tratamento e, consequentemente, perda na

30

qualidade de vida das pacientes (THULER & MENDONA, 2005; INCA, 2002). O

cncer de mama , portanto, uma preocupao da sade pblica, para qual

necessrio a implantao de aes, planos e programas destinados ao controle da

doena.

O tratamento primrio do cncer de mama a mastectomia, interveno

cirrgica que pode ser restrita ao tumor, atingir tecidos circundantes ou at a retirada

da mama, dos linfonodos da regio axilar e de ambos os msculos peitorais. O

tratamento, que pode ser quimioterpico ou radioterpico dependendo da situao,

traz repercusses importantes no que se refere identidade feminina. Alm da perda

da mama ou de parte dela, esses tratamentos complementares podem impor a perda

dos cabelos, a parada ou irregularidade da menstruao e a infertilidade, fragilizando

ainda mais o sentimento de identidade da mulher (FERRIGNO, 1989).

No cncer de mama a forma de disseminao distncia mais frequente a

metstase ssea, o que causa de piora na qualidade de vida das pessoas que

experienciam esse problema. (FERRIGNO, 1989).

As metstases so causa de morte em grande parte das pessoas com cncer. A

despeito da importncia clnica, pouco se conhece sobre os fatores genticos e

bioqumicos que as determinam.

O processo metasttico complexo e ocorre numa sequncia de

eventos que envolve a invaso de tecidos adjacentes,

desprendimento de clulas do tumor primrio, transporte atravs do

sistema circulatrio, alcance de um stio secundrio,

extravasamento e crescimento no rgo secundrio (MEHLEN et

al, 2006, apud CORREA, 2007, pp. 29-30).

Os dados epidemiolgicos so relevantes no contexto deste estudo, pois

justificam a necessidade de uma poltica de sade especfica ao atendimento dos

agravos impostos pelo cncer e organizao dos servios de sade dentro do SUS, de

modo que o tratamento adequado do cncer possa ser ofertado populao brasileira,

j que no caso do cncer de mama o diagnstico precoce e o tratamento apropriado

podem resultar no aumento da expectativa de vida (OMS, 2002).

31

3.3. O SUS e o Inca na assistncia ao cncer

A Constituio Federal do Brasil promulgada em outubro de 1988 define, em

seu artigo 196, que a sade um direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de

outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua

promoo, proteo e recuperao. A partir da inicia-se a construo do Sistema

nico de Sade (SUS) com seus princpios de universalidade, equidade e

integralidade das aes, participao popular, descentralizao poltico-

administrativa, com direo nica em cada esfera do governo, destacando a

municipalizao, alm da hierarquizao e regionalizao da rede de servios de

sade (BRASIL, 2002).

O Sistema nico de Sade (SUS) uma conquista da sociedade brasileira e

foi criado com o firme propsito de promover a justia social e superar as

desigualdades na assistncia sade da populao, tornando possvel a

operacionalizao da obrigatoriedade e gratuidade do atendimento a todos os

indivduos. Sua institucionalizao, como uma poltica de Estado, apresenta avanos

histricos com a descentralizao, a municipalizao de aes e servios, a melhoria

e a ampliao da ateno sade da populao e a vigilncia em sade e sanitria,

bem como um maior controle social com a atuao dos Conselhos de Sade.

Todavia, a efetivao de um controle social, conforme os ideais existentes por

ocasio da reforma sanitria, ainda exige uma maior participao dos usurios e,

neste sentido, prticas de sade privilegiando a voz dos mesmos podem constituir um

importante mecanismo nessa luta.

Especificamente no que diz respeito ao controle do cncer, as primeiras

iniciativas desenvolvidas relacionadas ao seu enfrentamento remontam ao incio do

sculo XX, tendo sido orientadas, quase exclusivamente, para o diagnstico e o

tratamento da doena. A pouca importncia dada preveno se justificava, em

parte, pela incipincia do conhecimento sobre a etiologia do cncer (RODRIGUES,

2006).

32

Durante a primeira metade do sculo XX, fortaleceu-se entre cirurgies a

ideia de que quanto mais precoce o diagnstico e o tratamento da doena melhor

seria o prognstico dos doentes, iniciando-se assim a preocupao com a preveno e

o diagnstico precoce do cncer (BRASIL, 2002).

Em 1937, foi criado o Centro de Cancerologia do Servio de Assistncia

Hospitalar do Distrito Federal (Rio de Janeiro), que veio a se constituir no atual

Instituto Nacional de Cncer (Inca). Em 1941, foi criado o Servio Nacional de

Cncer (SNC), com o objetivo de organizar, orientar e controlar, em todo o pas, as

aes de combate ao cncer (BRASIL 2002).

O Inca o rgo do Ministrio da Sade, vinculado Secretaria de Ateno

Sade, responsvel por desenvolver e coordenar aes integradas para a preveno e

o controle do cncer no Brasil.

Tais aes so de carter multidisciplinar e compreendem a

assistncia mdico-hospitalar, prestada direta e gratuitamente aos

pacientes com cncer, no mbito do SUS, e a atuao em reas

estratgicas como a preveno e a deteco precoce, a formao de

profissionais especializados, o desenvolvimento da pesquisa e a

informao epidemiolgica. Todas as atividades do Inca tm como

objetivo reduzir a incidncia e a mortalidade causada pelo cncer

no Brasil (Brasil, 2008)

Com o objetivo de melhor desempenhar o seu papel pblico de rgo

executor, normalizador e coordenador da poltica nacional de controle do cncer no

Brasil, o Inca redefiniu no ano de 2000 sua misso, que passou a ser enunciada como

aes nacionais integradas para preveno e controle do cncer.

Para alcan-la, o Inca tem como viso estratgica

exercer plenamente o papel governamental na preveno e

controle do cncer, assegurando a implantao das aes

correspondentes em todo o Brasil e, assim, contribuir para a

melhoria da qualidade de vida da populao (BRASIL, 2008, p....)

A partir da pde-se pensar na reorganizao de todo o setor relacionado com

a cancerologia no Brasil estabelecendo-se novos critrios de desenvolvimento de

uma poltica nacional de combate ao cncer. Todavia se reconhece que as aes de

controle da doena de mbito individual (diagnstico e tratamento), dissociadas

daquelas de cunho coletivo (preveno e diagnstico precoce), no alteraro o perfil

da mortalidade por cncer no Brasil.

http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=1http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=51http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=185http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=185http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=356http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=51

33

Diante disso o Ministrio da Sade props, por meio da portaria n

2.439/GM, instituir a Poltica Nacional de Ateno Oncolgica contemplando

aes de promoo, preveno, diagnstico, tratamento, reabilitao e cuidados

paliativos, a ser implantada em todas as unidades federadas. A proposta estabelece

que a Poltica Nacional de Ateno Oncolgica deve ser organizada de forma

articulada com o Ministrio da Sade e com as secretarias de Sade dos estados e

municpios.

Assim, em 8 de dezembro de 2005, instituda a poltica que, dentre outros

aspectos, estabelece o desenvolvimento de estratgias coerentes com a Poltica

Nacional de Promoo da Sade voltadas para a identificao dos determinantes e

condicionantes das principais neoplasias malignas. Orienta-se para o

desenvolvimento de aes intersetoriais de responsabilidade pblica e da sociedade

civil, que promovam a qualidade de vida e sade, capazes de prevenir fatores de

risco, reduzir danos e proteger a vida, de forma a garantir a equidade e a autonomia

de indivduos e coletividades.

3.4. O cncer e sua histria na sade brasileira

Segundo Santanna (2000), no sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX,

o cncer era uma doena associada falta de higiene, sujeira tanto fsica quanto

moral. Havia o entendimento de que o cncer se relacionava falta de limpeza das

cidades, principalmente presena de animais soltos, ratos e insetos. Tambm se

concebia que o cncer era uma doena contagiosa, sendo mais visvel entre os

amantes e as mulheres que se entregavam aos pecados e vcios nas prticas

sexuais. Neste sentido, o cncer era considerado um castigo atravs do qual o

doente poderia alcanar sua redeno, a libertao dos pecados caso conseguisse

suportar com resignao o sofrimento causado pela doena (SANTANNA, 2000, p.

47).

Culturalmente o cncer pode ser considerado uma doena que no decorrer de

sua histria teve seus significados relacionados a idia de punio, trazendo em

34

decorrncia disso uma maior carga de sofrimento s pessoas, pois alm da aflio

imposta pelos agravos ao corpo, o adoecimento comportava tambm uma dimenso

moral. Neste sentido, a experincia de adoecimento tem sido ressignificada pelas

pessoas como algo de cunho reparador de culpas (MARUYAMA et al, 2006).

Nos anos 30 e 40 a viso do cncer como doena de cunho moral continua

muito evidente, porm novas ideias comeam a surgir por causa da industrializao

das grandes cidades. Assim, outros fatores de predisposio doena comeam a ser

observados, como alimentao no saudvel, hbito de fumar e atividades

estressantes do dia-a-dia (SANTANNA, 2000). Nesta poca, portanto, os

sentimentos de vergonha, o sigilo e o recolhimento social eram comuns,

principalmente nas mulheres afetadas com o cncer de mama, pois neste caso a

possibilidade de mutilao ameaava tambm um dos smbolos de feminilidade

(TAVARES; TRAD, 2005).

Nos anos 50 comeam a ser observados grandes avanos em relao ao

diagnstico e tratamento da doena, aumentando assim a expectativa de vida e o

tempo de sobrevida das pessoas adoecidas por cncer. Pelo fato de a doena requerer

acompanhamento prolongado, observou-se a necessidade de proporcionar s pessoas

adoecidas uma melhor qualidade de vida e a importncia de se estudar as

repercusses da doena e adaptaes que as pessoas e suas famlias passavam a

constituir. Assim, reas da medicina comearam a perceber e admitir fatores

psquicos como causa de desenvolvimento do cncer (SANTANNA, 2000).

Inicia-se nesta poca a percepo de que o cncer estaria relacionado no

expressividade das emoes, iniciando-se a percepo da representatividade que o

cncer assumia na vida das pessoas.

Nos anos 60 e 70 foi intensificada a ateno aos fatores psicolgicos.

Palmeira (1997) apud Silva (2008, p. 234) assinala que

os fatores da esfera psquica" mais frequentemente estudados e

considerados como implicados na carcinognese podem ser

reunidos em dois grupos genricos. No primeiro esto os estados

disfricos (depresso, tristeza, infelicidade, abatimento, desnimo,

desesperana, desamparo, desapontamento) e de ansiedade,

juntamente com situaes traumticas envolvendo perdas e

privaes. No segundo, esto os fatores definidos por

caractersticas de personalidade e de enfrentamento da doena,

que variam segundo os pressupostos tericos adotados.

35

A luta contra o cncer naquele momento implicava autoconhecimento,

conhecimento do corpo e expresso emocional da pessoa adoecida, fazendo com que

falasse sobre seus sentimentos e se fortalecesse com isso. Assim, na dcada de 1970,

a experincia de mulheres que tinham cncer comeou a ser vista em um aspecto

mais amplo (SILVA, 2008), ou seja, comea a haver uma abertura para os relatos

delas, favorecendo a troca de ideias e de experincias e propiciando uma participao

dos doentes no processo de tratamento.

Hoje em dia a pessoa adoecida vista como propiciadora de sua cura, o que

tem colaborado para que haja uma maior visibilidade em relao qualidade de vida

dessas pessoas pelos estudiosos e gestores da sade. Porm, observamos que a

nfase na concepo de que determinados estados psicolgicos e certas

caractersticas de personalidade do doente so importantes fatores predisponentes ao

cncer pode mostrar-se to punitiva quanto noo da doena como castigo

(SILVA, 2008, p. 235).

Assim, entender os significados e propiciar formas de enfrentamento do

cncer contribuiu para o aumento da capacidade de gerenciamento do estado de

sade e elevao da qualidade de vida do doente.

3.5. A experincia do cncer: aspectos individuais e socioculturais

Embora estejamos no sculo XXI, no que se refere ao cncer, apesar de todo

o avano cientfico e tecnolgico alcanado, essa doena continua exigindo

continuados estudos para o esclarecimento de suas causas e o alcance de um

tratamento totalmente eficaz.

Um aspecto que est implicado na questo do manuseio eficaz do cncer pode

estar ligado ao paralelo existente entre as proposies cientficas e as prticas

curativas e cuidativas, pois se o foco se mantm apenas na parte afetada do corpo,

esquecendo-se a totalidade do ser, a sade, entendida como equilbrio, pode no ser

restabelecida. O adoecimento, entendido como a perda do equilbrio, no deve ser

considerado apenas um fato mdico-biolgico, mas um processo relacionado com a

histria de vida do indivduo e com a sociedade (GADAMER, 2002, p. 48). No

36

entanto, embora exista uma quantidade significativa de pesquisas sobre o cncer, os

estudos sobre a perspectiva de quem sofre a doena, so ainda pouco explorados.

O termo cncer utilizado para se referir a doenas nas quais as clulas

sofreram alteraes genticas, as chamadas clulas neoplsicas ou cancergenas. O

acmulo dessas clulas forma tumores ou neoplasias malignas, podendo, por meio do

sistema linftico e da circulao sangunea, invadir tecidos do organismo e se

disseminar para outras regies do corpo, dando origem a tumores em outros locais

(ABCNCER, 2009).

Alguns aspectos biolgicos respondem pelas variaes dos diferentes

comportamentos clnicos e evolutivos dos diversos tipos de cncer. O tipo da clula

onde o processo de carcinognese se iniciou, a velocidade de multiplicao dessa

clula, a maior ou menor capacidade de invaso de tecidos vizinhos ou distantes e

alteraes a nvel molecular e gentico so aspectos que influenciam essas variaes

(FRANKS, 1990; PITOT 1993).

Uma caracterstica do cncer que o processo de sua formao, na maioria

das vezes, ocorre de forma lenta ao longo da maior parte da vida do indivduo e, com

grande frequncia, a doena s se manifesta clinicamente muitos anos geralmente

dcadas depois do incio do contato com o(s) fator(es) causal(is). Essa uma das

razes pelas quais a maioria dos casos de cncer ocorre em pessoas com mais de 60

anos (FRANKS 1990; PITOT, 1993).

Outro aspecto importante do ponto de vista da preveno que, teoricamente,

o processo de formao do cncer pode ser interrompido, dependendo da fase de

evoluo em que o processo se encontra, do nvel do dano celular e, principalmente,

da suspenso da exposio ao agente cancergeno (PITOT, 1993).

Embora o cncer seja uma doena cuja localizao biolgica pode ser

identificada, mapeada e tratada, ao se manifestar na vida de uma pessoa a doena a

afeta em sua totalidade e no apenas o seu corpo fsico. Dela decorre uma srie de

necessidades cujo gerenciamento contnuo requer da pessoa e de sua famlia uma

ateno e um cuidado constantes. Assim, a doena leva a uma condio crnica.

Bergamasco & Angelo (2001) realizaram uma pesquisa fundamentada

teoricamente no interacionismo simblico e metodologicamente no interacionismo

interpretrativo sobre a experincia do diagnstico de cncer de mama. O estudo

revelou que a descoberta do cncer pela mulher a leva a experienciar uma nova

37

identidade e tambm que nesse momento ela apresenta diferentes reaes, tais como

indiferena, medo, ansiedade, angstia e desamparo. A incerteza relacionada

durao e qualidade de vida gera a necessidade de um novo aprendizado para

conseguir manter algum controle sobre a prpria vida. Durante a experincia da

enfermidade, um aspecto que favorece a continuidade do tratamento e fortalece a

mulher para que ela no desista o apoio social recebido de familiares e pessoas

solidrias. Para o estabelecimento de novos propsitos de vida, necessria a adoo

de ajustamentos psicossociais, tais como a pessoa reconhecer que pode adquirir

novos modos de encaminhar sua vida de forma produtiva e saudvel.

Os subsdios tericos da pesquisa descrita sinalizam para a adoo de aes

de enfermagem no acompanhamento das mulheres em fase de diagnstico de cncer

de modo acolhedor, atencioso e oferecendo informaes reais e consistentes sobre a

doena, bem como uma escuta paciente de suas apreenses e temores. Sabendo que a

incerteza gera na mulher uma incapacidade de lidar com a prpria vida, a

enfermagem poder adotar aes educativas de conformidade com as dvidas e as

necessidades de aprendizagem sobre a doena. De igual modo, o suporte social um

importante aliado da pessoa na experincia de adoecimento. Assim, o enfermeiro ou

a enfermeira presente dever lanar mo de seus conhecimentos sobre o genograma e

o ecomapa, para propiciar o fortalecimento dos vnculos familiares e a ampliao da

rede social das pessoas sob os seus cuidados.

Segundo Conrad (1990) apud Canesqui (2007, p. 24), a investigao da

experincia leiga assenta-se basicamente na interpretao e significados da doena,

na organizao social do mundo do sofredor e nas estratgias usadas para o

gerenciamento.

Assim, a pessoa que experiencia uma doena como o cncer atribui

significados e formas de enfrentamento ao adoecimento. Mas a experincia

construda socialmente, mesmo sendo a doena algo individual, s vivida e sentida

pela prpria pessoa, por isso a importncia da valorizao dos relatos da pessoa

adoecida, libertando a doena da viso biolgica e restituindo-a ao paciente, inserido

no contexto da vida cotidiana.

Bury (1982) apud Canesqui (2007, p. 28), ao se referir doena crnica, diz

que ela uma experincia na qual as estruturas da vida cotidiana, seus significados e

as formas de conhecimento em que se apoiam sofrem rupturas, conduzindo o

38

enfermo a mobilizar recursos de diferentes ordens para enfrentar a nova situao, que

inclui o repensar a sua biografia e autoimagem.

39

4. REFERENCIAL TERICO-METODOLGICO

A minha experincia de atuao como enfermeira em uma unidade

oncolgica me trouxe inquietaes a respeito do sentido atribudo pelas pessoas

sobre o adoecimento por cncer, levando-me a buscar um referencial terico-

metodolgico que permitisse acessar tal experincia, de modo que conseguisse me

aproximar das emoes e aes dessas pessoas. Nesta busca, segui dois caminhos,

descritos a seguir.

Na primeira, me aproximei das noes de histria de vida focal, ao participar

do Grupo de Pesquisa Enfermagem e Cidadania (GPESC), em estudos avaliativos

sobre o SUS em Mato Grosso na perspectiva dos usurios (COSTA; FIGUEIREDO;

MEDEIROS; MATTOS; MARUYAMA, 2009). Nesses estudos a histria de vida

dos usurios permitia apreender suas lgicas ao realizar um itinerrio teraputico nos

servios de sade do SUS, evidenciando tambm como tais servios se organizavam

e ofertavam os cuidados em sade. Para operacionalizar a histria de vida focal,

utilizamos as tcnicas de entrevista em profundidade e a observao, as quais

permitem uma relao de proximidade com as pessoas entrevistadas, possibilitando

um aprofundamento das histrias que trazem suas experincias de vida.

Entretanto, faltava-me ainda uma perspectiva terico-metodolgica que

pudesse apoiar a anlise das experincias acessadas, trazendo a interpretao e a

compreenso como aspectos presentes e essenciais da vida social. Assim, encontrei

no interacionismo interpretativo uma opo para a realizao do presente estudo,

pois focaliza as experincias de vida que radicalmente alteram e moldam os

significados que as pessoas do a si mesmas e s suas experincias (DENZIN,

1989b p. 157).

Um dos pressupostos do interacionismo interpretativo a singularidade como

caracterstica universal de todo ser humano, pois mesmo cada pessoa sendo

semelhante s demais no igual a nenhuma. As pessoas constroem suas biografias

com base nas suas experincias que podem ter efeitos superficiais ou profundos. No

40

nvel profundo os efeitos so intimamente sentidos e deixam marcas, as quais tm o

potencial de modificar sua vida. Tais momentos marcantes so denominados

epifanias.

Assim, epifanias podem ser caracterizadas como momentos significativos que

deixam marcas na vida, que tm potencial para criar experincias e que transformam

a vida das pessoas. Existem quatro formas de epifanias. Epifania Maior: interfere em

toda a estrutura da vida da pessoa, provocando rupturas; Epifania Cumulativa: diz

respeito reao que as pessoas tm frente a uma srie de eventos, que vm

acontecendo por um longo perodo de tempo; Epifania Menor: simbolicamente

marca tenses ou momentos problemticos em uma situao de vida; Epifania

Reexperenciada: os significados so dados no reviver de uma experincia ou de um

evento marcante. Os efeitos so imediatos, mas as conseqncias s aparecero mais

tarde, no reviver do acontecimento. (DENZIN, 1989b).

Assim, os estudos interpretativos, ao focalizar as epifanias como momento de

crise existencial que deixam marcas na vida das pessoas, levando a transformaes

que mudam a forma delas encaminharem suas vidas, me pareceram uma perspectiva

interessante para compreender a experincia de adoecimento por cncer e suas

repercusses na vida pessoal e familiar da pessoa estudada.

Para Denzin (1989a), o pesquisador tem como tarefa apreender e relacionar

os problemas pessoais da vida de uma pessoa com os temas pblicos, j que os

problemas pessoais so biogrficos e os temas pblicos so histricos e estruturais.

Neste sentido, a biografia e a histria podem ser unidas no processo interpretativo,

conectando uma vida especfica e seus problemas a uma estrutura social, histrica e

pblica. Desta forma, o mtodo biogrfico indicado para estudar a experincia de

vida expressa nas narrativas e histrias onde sobressaem momentos de virada na

vida de uma pessoa, permitindo descobrir os significados subjetivos que ela d sua

experincia de vida. Assim, o pesquisador tem a tarefa de localizar as epifanias nas

situaes interpretativas em que as mesmas se tornam pblicas, como ocorre nos

centros de tratamento quimioterpico onde a participante de nosso estudo realiza

terapia medicamentosa no enfrentamento da metstase ssea.

O mtodo biogrfico interpretativo repousa na coleta e anlise de histrias e

narrativas que falam de momentos e passagens transformadoras na vida das pessoas,

sendo a matria de estudo de uma pesquisa interpretativa a experincia biogrfica

41

(Denzin, 1989b). Neste contexto o adoecimento do cncer se constitui uma

experincia problemtica na vida das pessoas.

Segundo Gualda e Melleiro (2003), o mtodo biogrfico envolve o uso e a

coleta de documentos da histria de vida e de narrativas, apoiando-se, portanto, nos

conhecimentos subjetivos e intersubjetivos adquiridos e no entendimento da

experincia de vida dos indivduos. O foco desse mtodo reside nas experincias de

vida que alteram ou formam o significado de si mesmo e que tem como pressuposto

bsico a importncia da interpretao e da compreenso como a chave que forma a

vida social.

Com a nfase no ser, biografia, histria e experincia se relacionam. Assim, a

anlise buscar, retrospectivamente, nas vidas especficas de indivduos que vivem o

processo, integrar dimenses individuais e dimenses coletivas do que est sendo

analisado. A vida de um contador de histrias deve sempre estar em primeiro lugar

na interpretao que escrita. Processo e estrutura devem ser combinados com

experincias vividas.

Segundo Paul Thompson (1978) apud Denzin (1989a), os materiais

interpretativos podem ser apresentados de trs diferentes maneiras: primeiro,

narrativas de experincias pessoais singulares podem ser apresentadas e conectadas

histria de vida de um dado indivduo; segundo, a coleo de histrias de

experincias pessoais pode ser coletadas e agrupadas ao redor de um tema comum;

terceiro, o pesquisador pode oferecer a anlise entre casos a partir dos materiais que

tenham sido coletados, prestando maior ateno ao processo que est sendo estudado

que nas pessoas cujas vidas so embebidas nesses processos. Assim neste estudo

optamos pela segunda forma de apresentao interpretativa sugerida pelo autor.

Concretamente, os materiais do contexto biogrfico so recolhidos atravs da

estratgia da entrevista narrativa, que envolve estimular o entrevistado a recontar um

conjunto de experincias de vida de forma expandida em vrias sesses na forma de

uma histria ou narrativa. Entrevistados so convidados a teorizar sobre suas vidas.

O pesquisador ento tematiza essas narrativas por meio de uma leitura cuidadosa e

interpretativa. A seguir, isola segmentos narrativos e categorias da entrevista.

Padres de significados e experincias so procurados. Nesse estgio a biografia

individual reconstruda e o objetivo estrutural dos fatos que tm moldado o sujeito

identificado (Denzin, 1989a).

42

A minha segunda busca para este estudo tambm se deu no mbito do

GPESC, onde desenvolvemos estudos qualitativos de avaliao do SUS em Mato

Grosso privilegiando o olhar dos usurios que passam por uma experincia de

adoecimento e pela vivncia de uma condio crnica (BELLATO; ARAJO;

FARIA; COSTA; MARUYAMA; 2009). Nestes estudos nos indagamos tambm

sobre o sentido do termo experincia para diferenci-lo do termo vivncia.

A experincia humana difere da experincia cientfica objetiva, pois a

primeira no pode ser matematicamente repetida, j que a subjetividade, os

sentimentos e a historicidade assumem preponderncia, exigindo compreenso e

interpretao. Neste estudo assumo o conceito de experincia elaborado por Gadamer

(2002, p. 527)

Assim experincia , pois, experincia da finitude humana.

experimentado, no autntico sentido da palavra, aquele que

consciente desta limitao, aquele que sabe que no senhor do

tempo nem do futuro. O homem experimentado, propriamente

conhece os limites de toda previso e a insegurana de todo plano

[...] A verdadeira experincia assim experincia da prpria

historicidade.

A doena, ao afetar o corpo biolgico, afeta tambm o ser que a padece em

sua totalidade. Neste sentido, tambm me aproximo do pensamento gadameriano

quando ele afirma que a doena no se restringe a um fato mdico-biolgico, mas se

relaciona tambm com a histria de vida do indivduo e da sociedade.

O doente deixa de ser o mesmo que era antes.

Singulariza-se e desprende-se da sua situao vital. No entanto,

permanece ligado a ela na sua esperana de um regresso, como

acontece com todo aquele que perdeu algo. [...] (GADAMER,

2002a, p. 48).

Nessa vertente, a sade no pode ser medida por se tratar de um estado de

convenincia interna e de concordncia consigo mesmo, mantendo-se na medida

prpria e no atraindo ateno para si mesma; j a doena, ao contrrio, se manifesta

e se auto-objetiva, como algo perturbador e perigoso vida, necessitando ser

extirpada ou dominada (GADAMER, 2002a, pp. 102-4).

A doena , portanto, uma experincia de vida e, neste sentido, o conceito de

experincia importante por nos possibilitar abarcar o processo de adoecimento por

metstase ssea no entrecruzamento com o processo de viver. Assim, o conceito de

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experincia na perspectiva hermenutica de Gadamer (2002b) me pareceu o mais

apropriado para a compreenso do meu objeto de estudo.

A experincia modifica o nosso saber e pode ser confirmada indefinidamente,

embora em sentido estrito a mesma experincia no seja possvel repetir: quando

passamos por uma experincia quer dizer que j a possumos. Isto significa que ao

nos vermos frente a uma situao semelhante, nos sentimos mais preparados para

enfrent-la e somente algo inesperado poder nos proporcionar uma nova

experincia. Aquele que experimenta se torna consciente de sua experincia,

tornou-se um experimentador: ganhou um novo horizonte dentro do qual algo pode

converter-se para ele em experincia (GADAMER, 2002b, p. 522).

Alm do respaldo terico-metodolgico descrito, alguns conceitos bsicos

foram necessrios para fundamentar a interpretao, tais como o conceito de

condio crnica e integralidade em sade. Conforme descritos anteriormente, dentre

os diferentes tericos elegi a perspectiva de Canguilhem (2000; 2005), referenciada

por Souza (2006), bem como o posicionamento da OMS (2002) quando trata dos

cuidados inovadores em sade, para discorrer sobre a condio crnica.

Vrios so os autores que tm analisado o princpio da integralidade da

ateno sade buscando extrair seus mltiplos sentidos, inserindo no contexto do

SUS as premissas necessrias para a sua efetivao, atravs de novas prticas em

sade. Tal princpio baseia-se em aes positivas de promoo, garantia de ateno

sade em todos os nveis de ateno, integrando os servios em redes de cuidado e

proporcionando complementaridade entre as aes, atravs da abordagem integral

aos problemas de sade resultante de uma nova prxis dos profissionais envolvidos

(DESLANDES, 2004).

Pinheiro & Mattos (2001) atribui diversos sentidos integralidade e pontua

marcas especficas das polticas e das prticas a ela relacionadas. Relaciona a

integralidade a uma imagem-objetivo que rene um enunciado de certas

caractersticas do sistema de sade, de suas instituies e de suas prticas desejveis.

Afirma que esta imagem-objetivo tem vrios sentidos, tem muitos significados, no

formatada especificamente, nem detalhada, mas expressa em enunciados gerais, que

podem, em certas ocasies, unir atores polticos que desejam modificar a realidade

instituda, mesmo tendo projetos especficos distintos.

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Para Hartz (2004) imagem-objetivo entendida como uma representao de

algo que se quer executar no futuro, ou uma imagem que pode ser tomada como

exemplo para ser imitada em aes e procedimentos. Neste sentido, reflete a

diferena entre aquilo que se deseja e aquilo que se tem, ou se .

Assim, entendo que o sentido de integralidade pode ser questionado nas

experincias de adoecimento de pessoas e suas famlias e, especialmente, na busca

que empreendem por cuidado no SUS em Mato Grosso. Isto , naquilo que nossas

prticas e ofertas de cuidado podem ser ou no resolutivas, para o atendimento das

necessidades de sade da populao.

Neste estudo ser adotada a viso de Hartz e Contandriopoulos (2004, p. 331)

de integralidade:

[...] baseada na primazia das aes de promoo; garantia de

ateno nos trs nveis de complexidade; articulao das aes de

preveno, promoo e recuperao; abordagem integral dos

indivduos e das famlias. O conceito de integralidade remete,

portanto, obrigatoriamente, ao de integrao de servios por meio

de redes assistenciais, reconhecendo a interdependncia dos atores

e organizaes, em face da constatao de que nenhuma delas

dispe da totalidade dos recursos e competncias necessrios para

a soluo dos problemas de sade de uma populao em seus

diversos ciclos de vida [...].

Nesta viso, possvel a abordagem deste princpio a partir de duas

dimenses indissolveis que o compem: integralidade da ateno em sade e

integrao dos servios.

Assim, a experincia do gerenciamento da vida numa condio crnica de

cncer, com seus custos e recursos, ter como conceitos direcionadores, alm da

doena crnica (cncer) e da condio crnica (viver de outro jeito), o princpio da

integralidade da ateno em sade e das prticas profissionais presentes no Itinerrio

Teraputico empreendido por uma pessoa e sua famlia para a resoluo dos seus

problemas de sade.

Todavia, compreendo tambm que as definies que constituem sade e

doena variam entre os diferentes indivduos, famlias, grupos culturais e classes

sociais. Em nvel individual, o processo de definir algum como doente pode ser

baseado nas percepes de cada um, nas percepes dos outros ou em ambos os

casos. Definir algum como doente normalmente implica uma srie de experincias

subjetivas (HELMAN, 2003).

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A doena, muito alm de algo objetivado pela cincia mdica, uma

experincia do paciente, atravs da qual este procura livrar-se dessa perturbao, tal

como faria a respeito de qualquer outra. Manifestando-se como algo perturbador e

perigoso, necessrio se faz se livrar dela. O que se busca nessa situao o

restabelecimento do equilbrio alterado e com ele o bem-estar. No entanto, a

recuperao do equilbrio, do mesmo modo que a sua perda, produz uma

transformao, uma mudana na vida (GADAMER, 2002, p. 60).

4.1. O processo metodolgico

Estudo de natureza qualitativa na perspectiva biogrfica interpretativa,

desenvolvido com a finalidade de compreender o significado da experincia de

adoecimento de uma pessoa no enfrentamento de um cncer.

O estudo qualitativo o que melhor se adequa ao objeto eleito, pois permite

investigar as experincias e compreender os significados que as pessoas atribuem ao

seu processo de viver, j que dimenses como sofrimento, dor, medo, dvidas,

expectativas e mecanismos de enfrentamento impostos pela condio crnica no so

mensurveis quantitativamente, mas passveis de ser apreendidos de modo

qualitativo.

A expresso pesquisa qualitativa assume diferentes significados no campo

das cincias sociais. Compreende um conjunto de diferentes tcnicas interpretativas

que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de

significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenmenos do

mundo social; trata-se de reduzir a distncia entre indicador e indicado, entre teoria e

dados, entre contexto e ao (MAANEM, 1979a , p. 520, apud NEVES, 1996).

Segundo Chau (1995), cada mtodo deve ser determinado por trs aspectos:

pela natureza do objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode se

aproximar desse objeto e pelo prprio conceito de verdade que cada esfera do

conhecimento define para si. Nas cincias humanas os mtodos qualitativos tambm

so denominados mtodos compreensivo-interpretativos, pois seu objeto so as

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significaes ou os sentidos dos comportamentos, das prticas realizadas ou

produzidas pelos seres humanos.

Considerando a minha opo de compreender o significado da experincia de

adoecimento por cncer na voz da prpria pessoa, optei pelo mtodo biogrfico, uma

vez que meu interesse se dirige a tal experincia. Por conseguinte, o estudo procurar

interpretar a experincia de adoecimento, e como ela integra mltiplos significados

compartilhados em seus contextos socioculturais.

A abordagem biogrfico-narrativa permite atribuir primazia ao sujeito ou

cultura no processo de construo de sentido, podendo, portanto, possibilitar a

compreenso daquilo que singular/universal das histrias em seus contextos, pois

revelam prticas individuais que esto inscritas na densidade da histria (SOUZA;

SOARES, 2008, p. 192).

Na pesquisa biogrfica, mediante a ateno s narrativas das pessoas

investigadas sobre suas trajetrias de produo, gerenciamento e busca por cuidados

de sade, o resgate da histria poder ser utilizado como referncia para o

questionamento das experincias pessoais e profissionais em relao ao princpio de

integralidade e resolutividade, conforme preconizado pelo SUS.

As narrativas permitem a abordagem do mundo emprico das pessoas

investigadas, at ento restrito a elas prprias, caracterizando-se pelo delineamento

da situao inicial, ou seja, como tudo teve incio, seus aspectos relevantes dentro da

experincia em seu desenrolar gradativo, possibilitando, ao final, delinear o

acontecido (HERMANNS, 1995, apud FLICK, 2009).

4.2. Os cuidados ticos, a entrada no campo e o contexto estudado

A pesquisa foi realizada no municpio de Cuiab, capital do Estado de Mato

Grosso, principal referncia para tratamento de cncer. Em atendimento ao projeto

matricial, a busca pela participante deste estudo foi orientada em conformidade com

suas diretrizes, ou seja, pessoas residentes na cidade de Cuiab e/ou de municpios

adjacentes pertencentes ao Consrcio Intermunicipal da Baixada Cuiabana. Assim,

com base no objeto de estudo e seus objetivos, foi selecionada uma pessoa que no

perodo da coleta de dados estivesse vivenciando a condio crnica de cncer.

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Aps a excluso das pessoas que devido gravidade de sua condio crnica

tinham dificuldade para se expressar verbalmente e cujo esforo a ser empreendido

na realizao de uma entrevista pudesse ocasionar um maior sofrimento, defini como

critrios de incluso do estudo: ser adulto; estar vivenciando uma condio crnica

de cncer; estar realizando tratamento num centro de quimioterapia em uma das

unidades ambulatoriais do municpio de Cuiab; ter condies de se expressar

verbalmente e aceitar participar do estudo assinando o termo de consentimento livre