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1 O SUPORTE DA COMUNICAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA Nilde J. Parada Franch 1 “O homem só joga quando é homem no pleno sentido da palavra, e só é completamente homem quando joga”. Schiller 2 Introdução Desde os primeiros momentos da vida do ser humano já se pode observar o nascimento de uma situação carregada de sentimentos e emoções entre ele e sua mãe (ou cuidador). O observador atento poderá ver uma seqüência de “jogos” entre mãe e bebê caracterizados por interesse e atenção especialmente dirigidos de um para o outro. Esses jogos se expressam inicialmente pelo olhar, por sons, balbucios e posteriormente por gestos e verbalizações incipientes. Do ponto de vista do observador, ‘sujeito’ e ‘objeto’ dessa ‘dupla’ podem ser percebidos de modo intercambiável: alternam-se aos olhos do observador. Do ponto de vista psicanalítico, as respostas dadas a questões como: de que modo se dá a constituição do sujeito psíquico, quando o objeto começa a existir para o bebê com o estatuto de objeto, isto é, quando e como se instaura a consciência de um objeto separado, e conseqüentemente do ser separado, têm variado ao longo da história dos conceitos psicanalíticos. 1 Membro Efetivo, Analista Didata e Secretária do Setor de Análise de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo no período de 1997-2000. 2 Citado por Cassirer, E. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.270.

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O SUPORTE DA COMUNICAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA

Nilde J. Parada Franch1 “O homem só joga quando é

homem no pleno sentido da palavra, e só é completamente homem quando joga”. Schiller 2

Introdução Desde os primeiros momentos da vida do ser humano já se pode observar o

nascimento de uma situação carregada de sentimentos e emoções entre ele e

sua mãe (ou cuidador).

O observador atento poderá ver uma seqüência de “jogos” entre mãe e bebê

caracterizados por interesse e atenção especialmente dirigidos de um para o

outro. Esses jogos se expressam inicialmente pelo olhar, por sons, balbucios e

posteriormente por gestos e verbalizações incipientes.

Do ponto de vista do observador, ‘sujeito’ e ‘objeto’ dessa ‘dupla’ podem ser

percebidos de modo intercambiável: alternam-se aos olhos do observador.

Do ponto de vista psicanalítico, as respostas dadas a questões como: de que

modo se dá a constituição do sujeito psíquico, quando o objeto começa a existir

para o bebê com o estatuto de objeto, isto é, quando e como se instaura a

consciência de um objeto separado, e conseqüentemente do ser separado, têm

variado ao longo da história dos conceitos psicanalíticos.

1 Membro Efetivo, Analista Didata e Secretária do Setor de Análise de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo no período de 1997-2000. 2 Citado por Cassirer, E. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.270.

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Entretanto, o desamparo do ser humano ao nascer, focalizado inicialmente por

S.Freud e Otto Rank, parece ser um conceito que se mantém inquestionável.

Dos recursos e capacidades do bebê

O ser humano vem ao mundo num estado psíquico de desamparo, de

dependência e de indiferenciação. Não sobrevive física e psiquicamente sem

os cuidados materiais e emocionais da mãe. É dotado de um equipamento

biológico e pulsional, de competências, e de uma curiosidade inata. A memória

‘biológica’, função das estruturas biológicas, vai criando marcas num momento

em que não há ainda condições de representabilidade psíquica. Estudiosos do

desenvolvimento psíquico do bebê e psicanalistas que têm investigado os

estados mentais primitivos nos alertam para os recursos e as capacidades

incipientes presentes a partir do nascimento. Freud (1911b) já mencionava a

possibilidade de uma forma muito primitiva de vida psíquica ao se referir à

experiência de realização alucinatória do desejo. Bion (1963) sugere o

funcionamento de um aparelho protomental em que físico e psíquico estariam

indiferenciados. Essa construção teórica nos permitiria a aproximação de

experiências emocionais em estado bruto, ainda não processadas. Stern

(1985), entre outros, tem investigado e descrito as competências psíquicas do

bebê ao nascer.

Uma das primeiras capacidades seria a de expressar fortemente suas

necessidades biológicas, seus desejos, sentimentos e suas emoções. Estamos

destacando aqui sua capacidade expressiva. Citando Melsohn (1991): “O

sentimento visa um objeto, mas ele o visa à sua maneira, que é afetiva. Ter

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ódio do objeto é constituí-lo segundo uma dimensão particular; o sentimento

confere ao objeto um sentido e uma atmosfera sui generis”....“o sentimento é

uma concepção; de sua estrutura participam elementos expressivos primordiais

e básicos que perfundem os planos representativos. Aqueles mesmos

‘sentidos’ expressivos que, por primeiro, se constituíram como conteúdos de

vivência dos estadios iniciais de organização e abertura da consciência para a

alteridade, estão também integrados nas formas mais complexas da vida do

sentimento......Ancoradas nos planos mais profundos da vida psíquica, servindo

para recepção e comunicação de estados emocionais primordiais da existência,

as percepções e as reações expressivas da mãe constituem o instrumento

afetivo para elaboração e transformação das vivências do bebê.”

Como o bebê não tem ainda um aparelho psíquico suficientemente

desenvolvido para processar as impressões sensoriais de suas experiências

emocionais de modo a poder formar representações simbólicas que poderão

ser usadas para sonhar, pensar, brincar, essas emoções tenderão a ser

evacuadas na forma de identificações projetivas, somatizações, agitação,

hiperatividade, etc. A percepção é vivida como pura qualidade afetiva: terror,

ameaça, tranqüilidade, etc.; o que se vê é presença viva, caracterizada pelo

valor expressivo, ou seja, nada tem valor representativo. No entanto, a

descarga imediata não satisfaz por muito tempo. A inibição da descarga

motora, que pode levar ao processo de pensar, se desenvolve a partir das

representações mentais (Freud,S.,1911). São as experiências emocionais que

fazem pressão em direção à figurabilidade3 buscando representação mental.

3 “Darstellbarkeit” é amiúde traduzido por “figurabilidade” ou “representabilidade”; designa a capacidade de exprimir em imagens, ao passo que “Vorstellung” , termo de uso coloquial, tem sido

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Hanns (1996) enfatiza que no texto freudiano a representação (Vorstellung) é o

suporte que representa a pulsão na esfera consciente. Elas se interligam numa

extensa malha de idéias e imagens inter-relacionadas permitindo o trabalho

psíquico do sonhar, do brincar e do pensar.

À medida que a capacidade de representação mental das experiências

emocionais vai se desenvolvendo, outros tipos de manejo da angústia e do

desespero vão se tornando possíveis. Outros recursos que não descarga, a

evacuação, a expulsão, a somatização, a agitação, poderão ir se

desenvolvendo.

Hochmann, J. (1992) propõe um meio de lidar com o desprazer decorrente do

lapso entre desejo e realização, que ele chama de erotização da excitação,

uma teorização baseada nos trabalhos de Bion. Vistos a partir dessa

perspectiva, os cuidados maternos tais como embalar o bebê, falar-lhe com voz

apaziguadora, iriam reduzindo progressivamente as sensações de tensão e de

excitação ligadas ao desejo, e a ativação do polo motor.

Paulatinamente, o bebê iria se tornando capaz de procurar se acalmar com

seus próprios recursos, inicialmente imitando o comportamento materno,

embalando-se, reproduzindo as idas e vindas do rosto materno por meio de

movimentos, reproduzindo a musicalidade da fala materna pela lalação, etc.

Num segundo momento, o bebê teria internalizado suficientemente esses

procedimentos, de modo a não ter mais que apoiá-los em elementos

sensoriais. Terá nascido, então, o ‘auto-erotismo mental’, que representa a

capacidade de obter prazer por meio desse órgão particular que é o

usado para designar ‘idéia’ ou ‘concepção’, no sentido de idéia visualizada, da significação que o conteúdo da representação veicula, de pensamentos mais imagéticos.(Hans, L.,1996)

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psiquismo. Para Hochmann, o ‘aparelho para pensar os pensamentos’ (Bion)

pode ser considerado como uma zona erógena apoiada no corpo e

progressivamente desligada dele, em que a pulsão pode encontrar sua fonte e

seu objeto.

Graças à obtenção do prazer pela inibição ativa das descargas pulsionais,

imagens pictográficas extremamente condensadas passam a ser formadas

para dar significado a experiências de prazer e de desprazer. O pictograma

auto-erótico pode ser simbolizado pela imagem face- contra-o seio, figurando

um bebê satisfeito, em repouso, descansando de encontro ao seio da mãe que

o olha, sorrindo para ele. Esse prazer narcisista de consolação e pacificação

formaria um eixo metafórico de transposição da satisfação em outro registro

que não o da descarga pulsional, registro em que

a tensão moderada mantém um funcionamento mental que também é fonte de

prazer e que está na origem do prazer de pensar, de falar, de sonhar, de

brincar.

Para Hochmann, o auto-erotismo mental do bebê explicaria a transformação da

experiência dolorosa do luto ligado à metaforização de um objeto perdido,

ausente, em uma experiência prazerosa de figurar, simbolizar, sonhar, pensar.

“É como se a nostalgia da coisa ausente e ‘perdida’ em sua realidade, uma vez

que re-presentada, viesse adoçar o sofrimento do luto e como se esse

adoçamento tivesse um charme particular”.

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Como se percebe dessa exposição, dificilmente se pode falar do bebê, com

seus recursos e capacidades, sem incluir as condições psíquicas do objeto

externo.

O papel do objeto

A importância do papel do objeto materno tem sido amplamente considerada,

desde Freud. M.Klein apresentou valiosas contribuições sobre a importância da

relação com o primeiro objeto externo para a organização da vida psíquica do

sujeito. Winnicott, com seu conceito de ‘mãe suficientemente boa’ e Bion, com

o conceito de rêverie materna, enriqueceram e ampliaram grandemente nossas

possibilidades de pensar essa questão do objeto.

A ‘mãe suficientemente boa’ é capaz de dar respostas às necessidades do

bebê de modo a manter a ilusão de fusão, condição necessária para que a

consciência da alteridade, da separabilidade, vá se dando paulatinamente, à

medida que as condições do bebê para suportar dor, angústia, terror, vão se

ampliando e fortalecendo, isto é, que suas incompetências vão sendo

diminuídas ou até mesmo ultrapassadas. A consciência de ser separado

demanda recursos psíquicos para lidar com terríveis angústias de

aniquilamento, e também com os sentimentos de perda: perda da ilusão da

fusão, perda da onipotência, perda do sentimento de posse; um trabalho de

luto se iniciará, com os recursos que forem possíveis ao bebê, com a ajuda que

for possível por parte da mãe.

Por melhor que seja a mãe, ela não pode dar conta de certas incompetências

do bebê e de certas tarefas que ele próprio terá que aprender. Ela poderá

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ajudá-lo a suportar a angústia e a dor, mas não poderá impedi-lo de sentir.

Uma dessas tarefas diz respeito à relação do bebê com seu trato digestivo. Diz

F.Guignard (1995):”Indissoluvelmente ligado à sobrevivência física do sujeito,

é muito natural que o aparelho digestivo lhe sirva de modelo de funcionamento

para a sobrevivência de seu aparelho psíquico. Designado por Freud como o

primeiro objeto de investimento externo ao próprio corpo, o seio vai dar, em sua

união vital com o orifício oral, sua impulsão em direção às relações do sujeito

com o mundo externo por meio dos mecanismos de base que são a projeção e

a introjeção, seguindo a linha dos dois princípios do funcionamento mental:

prazer-desprazer e realidade”.

Para Guignard, a melhor das mães pode proporcionar satisfação direta, sob

forma de aleitamento, para acalmar as necessidades, ou mesmo os desejos do

bebê ligados à oralidade, mas só poderá intervir indiretamente nas questões

ligadas ao sofrimento que se origina no interior do aparelho digestivo; ele terá

que lidar com vivências de adaptação de seu trato digestivo: cólicas,

regurgitações, sensação de vazio, de plenitude, dor, enfim, experiências no

plano corporal e seus equivalentes emocionais. Essas experiências, vividas

como frustrações às expectativas de prazer contínuo e de um estado de

homeostase constante, também vão contribuir para que a consciência de um

objeto, distinto do sujeito no plano psíquico, vá se estabelecendo.

Segundo Bion, o ser humano já nasce com a preconcepção de um objeto que

satisfaça suas necessidades. “Suas idéias sobre a preconcepção

correspondem a esquemas emocionais destituídos de conteúdo representativo.

Esses esquemas se transformam em concepção, em realização, quando se

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preenchem de conteúdo por ocasião das experiências com o mundo” (Melsohn,

I. 1996, p.177). Assim é que, quando a mãe com capacidade de rêverie acolhe

as identificações projetivas do bebê, o pavor, a angústia de aniquilamento

vivenciados por ele, a comunicação de suas necessidades físicas e

emocionais, e pode metabolizá-las, devolvendo-as de forma mitigada, ela

estará se apresentando como modelo de uma mente pensante que poderá ser

introjetado pela criança. Identificando-se com a mãe continente, o bebê poderá

recriá-la imaginativamente na ausência dela; assim surgem os primórdios do

aparelho de pensar.

Como desenvolvi em trabalho anterior (Franch,1996), auto-continência e

rêverie são, a meu ver, estados sexualizados de mente. Deixar-se penetrar por

angústias e identificações projetivas supõe a disposição, atitude ativa para

deixar-se penetrar, e o investimento afetivo que acompanha essa

disponibilidade. Ademais, num segundo momento, pós-penetração das

identificações projetivas, há um trabalho ativo de processamento das angústias

e de desintoxicação. Eu tenderia a ver o trabalho de rêverie como uma

conjunção amorosa; conjunção porque fruto de dois elementos, ativo-passivo, e

amorosa porque fruto do investimento mútuo de ambos, mãe e bebê, que os

tornará atraentes e atrativos um para o outro. Concluo que a rêverie é uma

operação erotizada, uma vez que a criança é objeto do desejo da mãe e esta é

o objeto do desejo da criança. Gostaria de levantar aqui a questão dialética que

é introduzida com o aparecimento do terceiro, até então na penumbra da

paixão recíproca. Quando a mãe sai do estado de ‘preocupação materna

primária’ (Winnicott), ela abre espaço em sua mente para o pai e, permitindo a

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entrada dele no triângulo, será a agente do corte, da interdição. Primeiro

estimula, e depois proíbe, criando a contradição inerente à situação edipiana,

drama que condensa as paixões humanas.

Quando o objeto-mãe, por questões de sua estrutura emocional, não se deixa

penetrar, apresentar-se-á como um objeto duro, não amoroso, e será então

vivenciado intrusiva e precocemente como o ‘’outro’, provocando mais dor e

angústia. Como nos lembra Izelinda Barros (Barros, I., 1988), distúrbios graves

na relação mãe-bebê trazem uma quebra irreparável no fluxo comunicativo da

dupla, com danos importantes no desenvolvimento do bebê. A perda mais

grave está ligada ao crescente desinteresse dele por seus parceiros humanos

e que acarreta, conseqüentemente, grandes dificuldades na aquisição da

linguagem verbal.

Patologias graves são habitualmente relacionadas a distúrbios precocíssimos

da relação mãe-bebê, tais como: anorexia, autismo, psicoses, e também

patologias aditivas.

À medida que a criança se desenvolve em situação de rêverie materna, de

auto-continência de suas emoções e do processamento de suas experiências

emocionais pela função alfa, seu brincar evidenciará níveis cada vez mais altos

de simbolização.

Os primeiros “jogos” da criança, como nos referimos anteriormente, são não-

discursivos, têm função expressiva, uma vez que se constituem, por meio das

identificações projetivas, em um modo de comunicação. São precursores de

modalidades mais complexas de comunicação de emoções e pensamentos

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que aparecerão mais tarde em formas simbólicas de comunicação que

culminarão na linguagem verbal.

Brincar passa a ser um importante instrumento, “expressão da vida dos

impulsos subjetivos e expressão do significado e valor ético e afetivo dos

objetos” (Melsohn, I., 1996).

O brinquedo e o brincar na análise de crianças

É interessante observar como, nas duas primeiras décadas do século XX, o

brinquedo e o brincar da criança passaram a ser objeto de reflexão de

pensadores de vários segmentos do conhecimento humano.

Sigmund Freud, em 1909, escreve o artigo `Análise de uma fobia em um

menino de cinco anos, em que descreve o modo como compreendia

psicanaliticamente as brincadeiras do pequeno Hans relatadas pelo pai. Freud

buscava o significado do conteúdo manifesto das brincadeiras, ou seja, o

conteúdo latente, inconsciente, na tentativa de reverter os sintomas fóbicos de

Hans. Suas `interpretações´ eram transmitidas ao garoto pelo pai, uma vez que

nessa época Freud acreditava que somente um dos pais poderia analisar a

criança. Diz Freud: ”Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se

uniam numa mesma pessoa, e porque nela se combinavam o carinho afetivo e

o interesse científico, é que se pôde, neste único exemplo, aplicar o método

numa utilização para a qual ele não se teria prestado, fossem as coisas

diferentes”. Experiência posterior mostrou a Freud que essa limitação era

desnecessária, e em 1918 aparecem observações suas sobre o valor técnico

da análise de crianças.

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Em 1919, Sigmund Pfeifer, psicanalista de Budapeste, publica um longo artigo

intitulado `Manifestações das pulsões eróticas infantís nas brincadeiras -

Apreciações psicanalíticas das mais importantes teorias do brincar´

(Pfeifer,S.,1919). Baseando-se no artigo de Freud acima citado, em

observações de crianças e das brincadeiras mais comuns e freqüentes, Pfeifer

relaciona os processos de elaboração psíquica utilizados no brincar, com os

processos utilizados no trabalho do sonho. Ele nunca chegou a analisar

crianças; manteve-se na postura de observar, refletir e teorizar.

Em 1920, Hermine von Hug-Hellmuth apresenta no Congresso de Psicanálise

de Haia um trabalho sobre psicanálise de crianças intitulado `Sobre a técnica

de análise de crianças´. Hermine sugere um tratamento educativo e curativo de

base analítica, pois acreditava ser muito perigoso investigar profundamente a

mente infantil. Temia despertar tendências e impulsos reprimidos que a criança

não tivesse recursos para elaborar, inclusive porque naquele momento a

concepção vigente era a freudiana, de que o superego era o herdeiro do

complexo de Édipo, e então se constituiria por volta dos seis anos de vida.

Em conseqüência, sua técnica previa um influxo fortemente educativo e

recomendava o uso de brinquedos e das brincadeiras para despertar o

interesse pelo tratamento, para `quebrar o gelo´ inicial e estabelecer um

contato amigável com o pequeno paciente.

Anna Freud publica, em 1927, seu livro `O tratamento psicanalítico de

crianças´; bastante influenciada pelas idéias de Hermine sobre a possibilidade

de analisar crianças e sobre a técnica, utiliza o brincar praticamente com os

mesmos objetivos de sua inspiradora. Entendia o brincar como atividade

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expressiva, não representativa, e portanto não simbólica, uma vez que o

simbolizado se ligava ao reprimido, segundo concepção da época.

Em 1928, o filósofo alemão Walter Benjamin escreve dois artigos: `História

cultural do brinquedo´ e `Brinquedo e brincadeira´ (Benjamin,W., 1994). No

primeiro deles, faz referência a uma obra de Karl Gröber dedicada à história do

brinquedo: sua evolução e modificações ao longo do tempo. Benjamin, nesse

artigo relaciona a história do brinquedo a aspectos econômicos, políticos,

religiosos e filosóficos da História da humanidade. Reafirma sua convicção de

que é o conteúdo ideacional da brincadeira que determina a escolha do

brinquedo na atividade lúdica da criança, e não o contrário, como se acreditava

no período chamado por ele de `naturalismo obtuso´, em que “não havia a

perspectiva de revelar o rosto da criança que brinca”.

Vê-se, nesse artigo, a articulação entre a idéia do brincar enquanto atividade

expressiva, e a do brinquedo enquanto instrumento do brincar.

No segundo artigo, ao abordar a questão da `teoria da brincadeira´, Benjamin

faz referência à importante obra de Karl Gross `Jogos humanos´, publicada em

1899, e à doutrina gestáltica dos gestos lúdicos descritos por Willy Haas em

1928, em que a brincadeira é percebida como bastante representativa das

experiências emocionais básicas do ser humano.

Melanie Klein, psicanalista vienense, publica importantes artigos sobre análise

de crianças nos anos 20 e 30. Sua genialidade, liberdade de pensamento e de

ação, associadas a experiências clínicas com crianças muito pequenas,

possibilitou sua fundamentação e demonstração da eficácia da técnica do

brincar da criança em análise, em substituição e como correlato das

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associações livres do adulto em análise. Defendeu a idéia de que o brincar da

criança em análise é mais do que uma forma de expressão, é também

alocução e destinação, uma vez que se destina ao analista; supõe, também,

diferentes níveis de simbolização, de acordo com a idade da criança, com seu

nível de funcionamento mental e com a quantidade e qualidade das angústias

suscitadas. Partindo da experiência de analisar crianças muito pequenas,

sugere que a situação edipiana se instala muito anteriormente à época indicada

por Freud, desvincula a formação do superego da elaboração edípica e

defende ardorosamente a idéia da possibilidade de se trabalhar analiticamente

as angústias da criança, ainda que muito pequena.

Sob o vértice psicanalítico, o brincar se organiza sintaticamente tal qual uma

frase: além de seu valor e significado, tem um sujeito e um predicado

ordenados. Os elementos que constituem a sintaxe do brincar são: ações,

gestos, atitudes posturais e verbalizações. Tempo e espaço lhe são

conectados: o tempo-espaço ilusório que constitui o cenário pode estar

explícito ou não, apenas sugerido, e não se refere ao tempo cronológico e ao

espaço real (Liberman, D. et alii,1981).

Além da sintaxe, há também uma semântica própria do brincar. Ela parte da

discriminação significante-significado e em seguida é capaz de atribuir

diferentes significados a diversos significantes, delimitando um universo

específico: o universo lúdico, em que o significado pode se distanciar cada vez

mais do referente espaço-tempo real e ligar-se a novos e diversos significantes.

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Essa possibilidade permite à criança fazer frente a situações de angústia sem

se desorganizar: brincando.

Uma terceira área em que o brincar pode ser examinado é a da relação

existente entre o emissor e o receptor. É de fundamental importância que a

presença do Outro (analista) seja aqui considerada, uma vez que somente a

presença deste Outro pensante, a presença mental do analista, permite a

transformação das experiências emocionais.

No trabalho analítico com a criança, defrontamo-nos com diferentes tarefas, no

que diz respeito à simbolização. Por vezes estamos trabalhando com algo que

o paciente traz já simbolizado para que juntos, analista e paciente, possam

chegar à atribuição do significado emocional e ao sistema de atribuição de

significados. Mas, “quanto menor e/ou mais seriamente prejudicada do ponto

de vista cognitivo-emocional for a criança, mais incipientes serão os processos

de simbolização, menos elaborada estará a questão da separação e da

consciência de ser separado e conseqüentemente a materialização no brincar

será utilizada de maneira muito mais concreta” (Franch, 1995).

Nesses casos, a criança traz um material bruto (identificações projetivas) que

precisa ser sonhado (função de rêverie) pelo analista para que algum

significado lhe possa ser atribuído, e assim caberá a ele, como à mãe do

recém-nascido, emprestar sua mente e sua função alfa para que o processo de

pensar possa ser internalizado pelo paciente.

A criança em análise pode encenar com os brinquedos e/ou com a pessoa do

analista, pode desenhar, verbalizar, visando à representação e comunicação

de fantasias inconscientes com a finalidade de elaborar as angústias delas

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decorrentes, ou então descarregá-las evacuatoriamente. Isso vai depender dos

instrumentos de simbolização que a criança possui. Além da elaboração de

angústias, Caper, R. (1996) enfatiza outra função do brincar, que é a de testar

a realidade externa, ou mente do objeto, por meio de aspectos da realidade

interna. Ao projetar aspectos seus para dentro do analista, ela vai observando

como ele reage, que poder ela tem sobre a mente dele e sua possibilidade de

invadí-la, dominá-la e controlá-la onipotentemente. Por meio dessas

experiências, a criança vai construindo um modelo de funcionamento do par,

que poderá ser o de dominador-dominado, o de parceria criativa prazerosa, etc.

Para Caper, esses modelos expressariam a situação do casal parental na

mente da criança, ou seja, o modelo de relação sexual predominante, assim

como a relação da criança com cada elemento da dupla.

Vinheta clínica - Predominância de Identificações Projetivas

Pedro tem dois anos e meio de idade. É levado pelos pais até a porta da sala

de análise de crianças. Entra imediatamente, desligando-se deles.

Aproxima-se da caixa de madeira onde há alguns brinquedos que eu separara

para ele. Retira-os da caixa jogando-os aleatoriamente para o alto, espalhando-

os por toda a sala. Aparentemente não há intencionalidade nesses gestos.

Anda pela sala, tropeça nos brinquedos. Vê a porta do armário sob a pia,

procura abrí-la e, sem noção de distância, bate forte com a cabeça na pia.

Ignora o fato, continua andando pela sala, aparentemente me ignorando.

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Percebo-me muito ansiosa, vivendo uma situação como que de perigo. Penso

sobre o que está acontecendo, se eu estaria vivenciando as angústias de

Pedro, que me mostra que não tem um continente interno, um lugar em que

elas pudessem caber e ser processadas.

Aproximo dele o banquinho em que eu estava sentada, colocando-me vis-à-vis

com ele. Digo-lhe que parece que ele me mostra não ter uma “casinha”

(continente) para as coisas dele, então fica tudo esparramado. Ele me olha por

algum tempo e depois tira da caixa uma miniatura Lego que representava uma

bomba de gasolina e fica virando a manivela em movimentos repetitivos e

automáticos.

Vivencio um sobressalto interior ao associar sua nova atividade com a de

crianças com defesas autísticas. Pedro sai da sala em direção à sala onde

estavam os pais que tentam falar com ele, mas ele prossegue e vai abrindo

todas as portas de minha estante de livros, tentando esvaziá-la. Reconduzo-o à

sala de análise.

Esse foi o início de meu primeiro contato com Pedro. Na segunda visita peço à

mãe que entre junto com ele na sala de crianças, visando a observar a relação

entre eles.

Pedro pega um boneco de pano e tenta colocá-lo dentro da blusa da mãe

(grávida de sete meses). Converso com ele sobre querer ter um lugar lá dentro

da mamãe, como o que o bebê tem.

Pedro pega o boneco e tenta colocá-lo em um orifício existente na parede

(espelho do fio telefônico); vou conversando com ele no sentido de me fazer

presente como um “objeto” que busca dar algum significado a suas ações.

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Em dado momento, pega alguns brinquedos da caixa, enfia-os um a um em um

orifício no alto do espaldar da cadeira situando-os entre o espaldar e a

almofada que recobre a cadeira. Digo a Pedro que agora o peixe, o boneco,

etc. já têm uma casinha; ele sorri e faz o mesmo com outros brinquedos.

Depois de algumas experiências desse tipo, empurra os brinquedos para o

chão. Eu digo: “Caíííu...!” Assim começamos uma brincadeira de cair e recolher

(acolher), até que coloco minhas pernas (eu estava agachada) como

continuação da lateral da cadeira e ele empurra os brinquedos para o meu

colo; quase que em seguida sobe na cadeira e faz o mesmo trajeto dos

brinquedos colocando-se em meu colo.

Penso que à medida que eu ia “interpretando” ou dando significado a suas

comunicações expressivas, um modelo de continente passa a ser esboçado.

Procurei ilustrar, de maneira sintética, utilizando fragmentos desse

atendimento, o brincar expressivo, ainda não simbólico, mas que poderá evoluir

para formas mais representativas à medida que Pedro possa criar um espaço

interno para digerir suas angústias e emoções, e internalizar um objeto

(analista) capaz de transformar os elementos beta maciçamente evacuados

pela estereotipia de movimentos e pela hiperatividade, em elementos alfa que

possam ser utilizados para representações como fantasias, sonhos e

brincadeiras. Entendo a hipercinesia de Pedro como uma defesa contra

angústias de precipitação (Houzel, D.,1993); não pode parar, pois cairia no

profundo abismo do desespero.

O desenhar na sessão - Vinheta clínica

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Guilherme é um garoto de 13 anos, com desenvolvimento bastante

desarmônico. Estava em análise há mais ou menos um ano quando propôs

fazermos um jogo de guerra. Tomou uma folha de papel e foi explicando o

jogo, enquanto desenhava. De um lado estava o exército que ele comandava

com “x” homens, “y” tanques, “z” aviões, etc.; do outro lado, o “meu” exército,

com os mesmos recursos.

Ele começa o jogo bombardeando o meu exército. Pouco a pouco vai

acabando com tudo e todos. Na minha vez de “jogar” opto por não revidar à

destruição no mesmo nível. Por meio das “dicas” que me dava, avaliei que ele

precisava que eu vivesse o papel de perdedor acuado, submetido. Aceito esse

papel. Em certo momento, meu personagem já não tem mais soldados para

ajudá-lo, nem armamentos, nem munição. Tem que lutar pela sobrevivência

por meio de enganações, seduções, mentiras, tentando passar pelo que não é,

renegando sua identidade. De dentro do papel, falo a Guilherme sobre a

“minha” confusão: não sei mais quem sou, nem o que penso.

Guilherme me diz: “Sabe que é assim que me sinto?”

Nesse ponto podemos conversar sobre seus sentimentos e o significado da

situação ali representada.

O desenho e a encenação são recursos utilizados por crianças e adolescentes

nas sessões analíticas.

A folha de papel parece ser um espaço transicional menos perigoso do que a

encenação viva, uma vez que fantasias perigosas, violentas, ficam contidas no

desenho. Se o analista pode vivenciar pelo paciente aspectos que este sente

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como intoleráveis e verbalizá-los, talvez possa se tornar um continente mais

promissor do que a folha de papel.

O papel pode ser visto como aquele espaço em que objetos internos vão

habitando e se relacionando entre si. Isto pressupõe certo nível de

desenvolvimento simbólico.

O desenhar, como todo meio de brincar, pode ter função evacuatória ou

elaborativa, sendo então o equivalente de uma linguagem inserida em uma

relação marcada pelos efeitos da transferência-contratransferência, em um

discurso associativo com variados níveis de expressão.

Júlia, de 5 anos, pede que eu desenhe uma casa para ela. Olha meu desenho

e parece angustiar-se com os espaços em branco. Passa a preenchê-los todos,

pintando todo o interior da casa. A angústia ligada ao espaço que vai se

constituindo no processo de conscientização de ser separada parece tão

insuportável, que ela precisa anulá-lo imediatamente. Esse espaço está

associado a falha, falta, vazio. Tempos depois, ela mesma desenha uma casa.

Suporta os espaços em branco durante a realização do desenho mas, ao

terminá-lo, novamente é tomada de angústia e precisa preenchê-los. Penso

que o desenho tinha a função de ir permitindo que Júlia me “falasse” desse tipo

de angústias muito primitivas, inomináveis, para que eu as compreendesse e

nomeasse, uma vez que estavam sendo revividas, com possibilidade de serem

re-presentadas na situação de transferência.

O mise-en scène - Vinheta clínica

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Partindo do princípio de que ao brincar a criança pode estar fazendo uma mise-

en-scène de seus conflitos, atualizando-os no campo analítico, o analista deve

estar atento à função do brincar e aos papéis a ele atribuídos como

representante de figuras do mundo interno da criança

No segundo mês de análise, Júlia inicia a dramatização de uma estória em

que os personagens eram cavalos. Ela e eu os representávamos, a seu pedido.

Ela era o cavalo-pai, e eu, o cavalinho. O filhote estava sempre sendo alijado

do convívio com o pai, colocado em um cercado fora da casa, sem brinquedos,

sem amigos, sendo sempre muito repreendido, acusado e castigado. De início

ele não podia reclamar, nem chorar pois o pai ficava irado. Depois de algum

tempo, passei a fazer solilóquios em que, dentro do papel de filhote mal

tratado, falava da não permissão para comunicar sentimentos de tristeza,

medo, raiva.

De início a paciente retrucava: “Não, ele não pensava isso!”

Aos poucos, foi permitindo alguma expressão de sentimentos; inicialmente o

choro, que ela até passou a pedir que eu representasse, depois as

reclamações e reivindicações.

Vários temas estavam se apresentando em nosso cenário para serem

trabalhados: sua fragilidade cindida e rechaçada, suas dificuldades em relação

à alteridade e questões ainda pouco elaboradas sobre a situação edípica.

Neste ponto, eu gostaria de fazer algumas considerações que têm

conseqüências diretas na clínica. Inicialmente, quando a criança nos convida a

representar um determinado papel em sua encenação, nem sempre temos

claro, e eu até diria que muitas vezes nem sequer temos idéia, da função

desse convite e desse papel. Podemos aceitá-lo, colocando-nos à disposição

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das identificações projetivas da criança para, vivendo o papel designado, tentar

apreender sua função e o conteúdo comunicado.

Sobre as funções do convite e do papel, devo dizer que em caso de crianças

perversas, com marcados traços psicopáticos, se o analista não for

demasiadamente masoquista, rapidamente poderá perceber as intenções da

criança, o possível uso sádico a que essas encenações podem se prestar, e

manejar a situação adequadamente do ponto de vista psicanalítico.

Outra função do convite à dramatização pode ser a de manter a ilusão da

fusão, em que o analista se tornaria uma extensão do paciente, algo que ele

alija, traz de volta, torna a mandar embora e faz retornar.

A avaliação da situação particular de cada criança merece especial atenção do

analista, pois o manejo técnico será diferente conforme as hipóteses com que

estiver trabalhando. Quando temos hipóteses alternativas nosso olhar pode se

tornar mais atento e discriminativo. Assim, se avaliarmos corretamente a

existência de um déficit de continência primária, não precisamos ficar muito

afoitos em dar interpretações ligadas à destrutividade, ao ódio à

alteridade e podemos esperar mais tranqüilamente o tempo necessário para

que uma base segura seja criada, para que um continente interno se constitua.

Aceitar o papel seria o primeiro passo na busca da apreensão do que está

sendo expelido para, em seguida, através da própria dramatização, de dentro

do papel, e com a ajuda de sua contratransferência, o analista ir devolvendo

para a criança os sentimentos e os aspectos cindidos e projetados. A

interpretação fora do contexto da encenação ainda não poderia ser ouvida pela

criança. O passo seguinte seria poder prescindir dos personagens e poder falar

direta e claramente dos sentimentos da criança e do que se passa na relação

criança-analista, do modelo evocado no aqui-agora da sessão.

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Esse exercício de modulação pode requerer bastante tempo, paciência e

atenção redobrada do analista, no sentido de utilizar as brechas fornecidas

pelo paciente, sem tentar fazê-lo reintrojetar violenta e intrusivamente as partes

cindidas, mas sim à medida em que for sendo criado espaço e potência para

isso.

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