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O TEATRO DE VARIEDADES EM J.-K. HUYSMANS: ELEMENTOS DA CENOGRAFIA ENUNCIATIVA Claudio Flores Serra Lima Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina RIO DE JANEIRO DEZEMBRO DE 2010

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O TEATRO DE VARIEDADES EM J.-K. HUYSMANS:

ELEMENTOS DA CENOGRAFIA ENUNCIATIVA

Claudio Flores Serra Lima

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

RIO DE JANEIRODEZEMBRO DE 2010

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O TEATRO DE VARIEDADES EM J.-K. HUYSMANS:

ELEMENTOS DA CENOGRAFIA ENUNCIATIVA

Claudio Flores Serra Lima Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa)

Banca examinadora:

________________________________________________________________Presidente, Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ

________________________________________________________________ Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ

________________________________________________________________Professora Doutora Angela Mousinho Leite Lopes – UFRJ

________________________________________________________________Professora Doutora Sônia Cristina Reis, Suplente – UFRJ

_______________________________________________________________Professor Doutor Roberto Ferreira da Rocha, Suplente - UFRJ

Rio de Janeiro dezembro de 2010

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A Carmen, Renato, Renata e Maria Cândida, meus grandes amores e principais amigos, protetores e mecenas.

A Paulo Serra Lima, que tornou mais fácil minha inevitável trajetória pela língua e cultura francesas, que deve estar feliz com essa concretização.

A Anita Wilson, trisavó, que trabalhou no teatro de revista carioca.

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AGRADECIMENTOS

Uma pesquisa de mestrado é um processo que começa bem antes dos dois anos

convencionados academicamente. Desse modo, não apenas o mestrando está envolvido no

processo de “escavação arqueológica” e de reflexão teórica. Nesse processo de criação,

muitos são os responsáveis pela concretização da pesquisa e devem ser lembrados agora.

Em primeiro lugar agradeço a meu orientador, professor doutor Pedro Paulo Garcia

Ferreira Catharina, que acreditou em um ex-aluno de Artes Cênicas com um projeto de

pesquisa “estrangeiro” ao programa de pós-graduação em Letras Neolatinas e construiu, tanto

quanto eu, a presente dissertação. Minha mais sincera gratidão e respeito a seu

comprometimento como professor da UFRJ.

Fundamentais, também, são os professores doutores que aceitaram compor a banca

examinadora: Celina Maria Moreira de Mello, por quem tenho grande admiração e que tanto

me faz refletir antes de me pronunciar academicamente; Angela Leite Lopes, artista,

professora e amiga em cuja trajetória no teatro e na cultura francesa me inspiro; Sônia Cristina

Reis, que me ajudou a fazer e refazer o projeto de pesquisa que se transformou em dissertação

e Roberto Ferreira da Rocha, com quem tenho muito que trocar sobre teatro e literatura.

Não poderia esquecer os senhores André Guyaux e Philippe Barascud e a senhorita

Aurelia Cervoni, integrantes do Centre de recherche sur la littérature française du XIXe

siècle (Université Sorbonne Paris IV), que me acolheu e forneceu documentos de extrema

importância a minha pesquisa.

Aos amigos Claudio de Souza Castro Filho, o primeiro companheiro e incentivador de

minha caminhada acadêmica na pós-graduação; Rafael Haddock Lobo, que, há anos, já

idealiza para mim um doutorado em que utilize o pensamento de Derrida; e Edmar Guirra dos

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Santos, colega de mestrado com quem troquei informações, angústias e conquistas

acadêmicas.

A todos os professores - seja na literatura, seja nas artes - que me entusiasmaram a

continuar na busca incessante do conhecimento e da criação. Agradeço às equipes de

Literatura e de Artes do Colégio Pedro II, ao corpo docente da graduação em Artes Cênicas da

UFRJ, Unirio e Unicamp, bem como meus professores no programa de pós-graduação em

Letras.

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LIMA, Claudio Flores Serra. O teatro de variedades em J.-K. Huysmans: elementos da cenografia enunciativa. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.

RESUMO

Análise das cenas de teatro nos romances Marthe,histoire d’une fille e Les soeurs Vatard, nos poemas em prosa La Rive Gauche e Les Folies-Bergère en 1879 e na pantomima Pierrot Sceptique, de Joris-Karl Huysmans, a partir das teorias sociológicas de Pierre Bourdieu e da Análise do Discurso de Dominique Maingueneau. Estudo de elementos que compõem a cenografia enunciativa desses textos, assim como dos posicionamentos enunciativos e do caráter paratópico do autor, destacando, na trajetória de Huysmans, suas tomadas de posição no campo literário.

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LIMA, Claudio Flores Serra. O teatro de variedades em J.-K. Huysmans: elementos da cenografia enunciativa. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.

RÉSUMÉ

Analyse des scènes de théâtre dans les romansMarthe, histoire d’une fille et Les soeurs Vatard, dans les poèmes en prose La Rive Gauche e Les Folies-Bergère en 1879 et dans la pantomime Pierrot Sceptique, de Joris-Karl Huysmans, à partir des théories sociologiques de Pierre Bourdieu et de l’Analyse du discours de Dominique Maingueneau. Étude des éléments qui composent la scénographie énonciative de ces textes, ainsi que des positionnements énonciatifs et du caractère paratopique de l’auteur, mettant en relief, dans la trajectoire de Huysmans, ses prises de position dans le champ littéraire.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................1

2. PARIS, UMA CENOGRAFIA CONSTRUÍDA.....................................................8

2.1 – A Paris de Notre-Dame de Paris.................................................................12

2.2 – A Paris de Le Père Goriot...........................................................................14

2.3 – A Paris de L’Éducation Sentimentale.........................................................17

2.4 – A Paris de Au Bonheur des Dames.............................................................19

2.5 – A Paris de Joris-Karl Huysmans.................................................................23

2.5.1 – Crítica de arte......................................................................................24

2.5.1.1 – Arquitetura.................................................................................25

2.5.1.2 – Pintura........................................................................................30

2.5.2 – Romances e poemas em prosa.............................................................35

3. A TOPOGRAFIA TEATRAL PARISIENSE ENTRE 1874 E 1881..................45

3.1 – A difícil definição de um gênero.................................................................45

3.2 – O teatro burguês..........................................................................................48

3.2.1 – Comédie-Française.............................................................................54

3.2.2 – Outras salas..........................................................................................56

3.3 – Émile Zola e André Antoine: a origem do teatro moderno.........................58

3.4 – O bulevar do crime e a feira........................................................................63

3.5 – As salas de “variedades”.............................................................................67

3.5.1 – Rive gauche: os dois Bobino...............................................................68

3.5.2 – Rive droite : as Folies-Bergère...........................................................71

4. A ENUNCIAÇÃO HUYSMANSIANA E O TEATRO DE VARIEDADES......76

4.1 – Campo literário, capital, tomada de posição, trajetória..............................76

4.2 – Posicionamento enunciativo, paratopia, cenografia enunciativa................80

4.3 – Cenas de teatro em Huysmans....................................................................85

4.3.1 – Le Drageoir aux épices....................................................................86

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4.3.2 – Marthe, histoire d’une fille..................................................................94

4.3.3 – Les Soeurs Vatard..............................................................................103

4.3.4 – Les Folies-Bergère en 1879...............................................................118

4.3.5 – Pierrot Sceptique................................................................................124

5. CONCLUSÃO........................................................................................................133

6. REFERÊNCIAS.....................................................................................................146

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1 – INTRODUÇÃO

O escritor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) nasceu Georges-Charles e

modificou seu nome para o equivalente em holandês. Dessa maneira, reverenciava seus

antepassados artistas dos Países-Baixos, preterindo o aspecto quotidiano do nome em língua

francesa. Sua obra literária marca essa recusa às normas sociais de uma França que lutava

para manter-se na hegemonia econômica de dominação mundial e, internamente, para se

estabilizar dentro do regime político republicano. Numa primeira abordagem, Huysmans

parece alinhar-se ao que se convencionou chamar “escola naturalista”, cujo maior expoente

era Émile Zola. Entretanto, esta imagem do pertencimento a um grupo coeso e forte vai se

desfazendo para dar lugar àquela de um escritor solitário que finda por recolher-se em

construções religiosas e não fazer mais parte do dia-a-dia do mundo literário parisiense.

No primeiro momento de sua trajetória dentro do campo de produção literária, as

várias passagens descritivas de seus romances e poemas em prosa revelam uma espacialidade

parisiense construída através dos lugares menos visitados por turistas e burgueses. Dentro

dessa Paris escondida, aparecem rápidas passagens situadas em salas de espetáculo e

números cênicos variados. Os trechos dedicados ao ambiente teatral são, de fato, discretos, se

comparados às descrições das massas trabalhadoras, dos odores da capital francesa e dos tipos

sociais que ali transitam. Desvelam, entretanto, espaços arquitetônicos e ambientes sociais

que não mais existem e técnicas artísticas das mais antigas no terreno popular que, ao mesmo

tempo, serão sistematizadas e incorporadas ao terreno do teatro na primeira metade do século

XX: o gesto, a fragmentação do corpo e da linguagem, a dissolução dos limites entre o teatro

e outras disciplinas artísticas.

Ao leitor que se vê diante de tais descrições pela primeira vez, parece complexo todo o

universo de personagens e ambientes escolhido por aquele autor para descrever com minúcia

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não somente a arquitetura e as técnicas cênicas sobre o palco como, também, a circulação de

público. Ali se encontra a teatralidade que propiciou tantas reflexões e experimentações no

século seguinte, a teatralidade que se opunha à tradição dramática européia, calcada nas

interpretações das Poéticas clássicas. Assim, foram escolhidas como corpus dessa pesquisa as

passagens que tratam das artes do espetáculo dentro dos romances e poemas em prosa de

Huysmans, entre os anos 1874 e 1881.

Entretanto, a relevância de se escolher como objeto de pesquisa o teatro em Huysmans

ganha nova dimensão com a descoberta de que o escritor sustentava verdadeiro desprezo pela

arte teatral e ódio pelo público que circulava pelas salas dedicadas ao teatro burguês.

Huysmans não frequentou nem escreveu para o teatro. Há um único exemplo de texto teatral

de sua autoria: uma pantomima, ou seja, uma peça sem falas, sem um texto a ser falado,

baseada nos gestos dos mímicos. Evidencia-se, dessa maneira, um terreno fértil em

investigações.

A fim de estruturar, em linhas gerais a pesquisa nessa introdução, dá-se a conhecer seu

objeto de pesquisa para, em seguida, explicar a organização da dissertação. É importante

salientar que, tratando-se de um corpus escrito originalmente em francês e de comentadores,

em sua maioria, também franceses e sem traduções conhecidas em português, optamos por

traduzir todos os textos citados nessa língua, mantendo o original ora no corpo do trabalho

(para o caso dos textos de Huysmans), ora nas notas de pé de página.

Dentro da obra de Huysmans, foram encontradas algumas passagens descritivas de

salas de espetáculo e teatro de rua que fazem parte do que pode ser considerado como a

primeira fase de sua escrita. Os romances e poemas em prosa em que se encontram tais

passagens não estão dispersos em momentos diversos de sua produção literária, mas numa

sequência entre os anos 1874 e 1881.

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A primeira tomada de posição decisiva e substancial da parte de Huysmans em relação

ao campo literário parece ser a publicação do romance Marthe, histoire d’une fille, em 1876.

A partir de então, Huysmans não só chamou atenção para sua figura de escritor com a

polêmica (ainda que pequena) causada pela censura a seu livro, como garantiu um lugar na

rede de relações entre escritores naturalistas. Assim Pierre Brunel e Sylvie Thorel-Cailleteau

introduzem essa questão:

1876 foi um ano decisivo na vida de Huysmans e em sua carreira de escritor. É o ano de publicação de seu primeiro romance completo. É o ano do primeiro encontro com Zola o qual, seguindo o conselho de Henry Céard, visitou em seu apartamento da rua Saint-Georges, munido do Drageoir e de Marthe. É o ano em que se forma o grupo dos cinco amigos, Paul Alexis, Léon Hennique, Guy de Valmont (isto é, Maupassant), Henry Céard e Huysmans. Eles decidiram defender L’Assommoir contra a tempestade de críticas que o romance levantou.1

Marthe é um romance dividido em doze capítulos que conta as desventuras de um tipo

social: a jovem prostituta parisiense. A personagem-título tenta sua carreira no teatro musical

da margem esquerda do rio Sena, mas não obtém êxito, da mesma maneira que em suas

tentativas de relações amorosas. Primeiramente, Marthe é protegida por um cômico de teatro,

alcoólatra, em seguida, um jovem jornalista tenta uma relação amorosa com a protagonista,

também mal sucedida.

Seu segundo romance, escrito no momento em que Huysmans está definitivamente

estabelecido entre os naturalistas, recebe o título de Les Soeurs Vatard (1879). Céline e Désiré

Vatard são duas irmãs que trabalham em um ateliê de restauração de livros. Désiré mostra-se

1 “1876 a été une année décisive dans la vie de Huysmans et dans sa carrière d’écrivain. C’est l’année de la publication de son premier roman achevé. C’est celle de la première rencontre avec Zola à qui, sur le conseil d’Henry Céard, il est allé rendre visite dans son appartement de la rue Saint-Georges, muni du Drageoir et de Marthe, C’est l’année où se forme le groupe des cinq amis, Paul Alexis, Léon Hennique, Guy de Valmont (c’est-à-dire Maupassant), Henry Céard et Huysmans. Ils ont décidé de défendre L’Assommoir contre la tempête des critiques que le roman a soulevée ». BRUNEL, Pierre & THOREL-CAILLETEAU, Sylvie. Préface. In :HUYSMANS, Joris-Karl. Romans 1. Paris : Robert Laffont, 2005b, p. IX.

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mais séria e Céline mais aventureira. Ambas tentam, em vão, assim como Marthe, constituir

relações amorosas felizes.

Os aspectos trabalhados no romance são consonantes com a escrita naturalista: pintura

de grupo – em contraponto com um intimismo individualizado –, personagens dos meios

populares – ao invés de deuses, aristocratas ou burgueses – e filiação de cada personagem a

um tipo social. A partir da leitura de Les Soeurs Vatard é possível compreender porque o

naturalismo na literatura é comparado ao impressionismo na pintura, já que Huysmans

descreve o movimento das multidões, tanto no momento de trabalho, como no momento de

festa, estabelecendo um jogo de cores e luzes, valorizando certos detalhes, tal qual um quadro

de Manet ou Renoir.

Da coletânea de poemas em prosa Croquis Parisiens, de 1880, há um texto que se

destaca dentro dos interesses dessa pesquisa por tratar de uma das salas de teatro variado mais

célebres da França. Huysmans o intitula Les Folies-Bergère en 1879. Ao longo das oito

seções, o enunciador descreve uma noite naquele teatro, apresentando detalhes do interior da

estrutura arquitetônica da sala, números apresentados em cena e a atitude do público que ali

circula. Diferentemente da escrita de seus romances, os poemas em prosa exigem uma escrita

fragmentada, como pinceladas de uma pintura inacabada, por isso o nome “croqui”.

Um dos números descritos na sala das Folies-Bergère apresenta uma pantomima

executada por uma trupe de clowns ingleses em voga à época, os Hanlon-Lees. Huysmans não

apenas descreve sua apresentação com grande entusiasmo, como escreve uma pantomima

para ser encenada pelo grupo inglês. Dessa maneira, o conjunto de textos analisados nessa

pesquisa destaca, finalmente, uma estrutura textual distinta dentro de toda a obra

huysmansiana. Trata-se do único exemplo de literatura dramática de autoria de Huysmans.

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Na verdade, a peça Pierrot Sceptique, de 1881, pode ser considerada

preferencialmente um texto teatral, mais do que literatura dramática, já que não se trata de

uma obra textual desenvolvida a partir de diálogos, característica própria do drama, em

contraponto com a narração do romance e a lírica da poesia. Pierrot Sceptique é uma

pantomima, um acontecimento teatral calcado nos gestos de mímicos especializados em certas

técnicas, não possuindo texto falado.

Para situar os textos de Huysmans e suas cenas teatrais, o segundo capítulo da

dissertação apresenta o confronto topográfico parisiense entre as duas margens do rio Sena.

Através do reconhecimento de uma tradição oitocentista que opõe o comércio e o dinheiro

novo da margem direita à aristocracia decaída e aos meios estudantis da margem esquerda,

revela-se uma Paris específica na obra huysmansiana. Compreende-se a partir de então, uma

preferência do escritor por descrições dos meios trabalhadores e dos teatros da margem

esquerda, em oposição à burguesia da margem direita. A escolha por um foco em determinada

topografia – que envolve a recusa de uma outra – supõe um posicionamento enunciativo no

interior das obras analisadas, bem como uma tomada de posição no campo literário, que serão

discutidas no último capítulo.

O terceiro capítulo traz uma discussão de caráter histórico, revelando documentos

publicados no momento em que Huysmans escreveu os textos que fazem parte do objeto da

pesquisa, tais como os Annales du théâtre et de la musique, de Édouard Noël e Edmond

Stoullig, e a primeira versão de Le Naturalisme au théâtre, de Émile Zola. Tendo como

parâmetro a divisão do território parisiense em duas margens, estabelecida no capítulo

anterior, são revelados espaços teatrais consonantes com tal divisão topográfica, no que

concerne aos gêneros cênicos e à circulação de público. Na margem direita, abundam palcos

dedicados ao teatro dramático e musical burgueses, ao passo que na esquerda, alguns

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espetáculos de números variados concentram-se entre o Jardim de Luxemburgo e o bairro de

Montparnasse.

Finalmente, o quarto capítulo apresenta excertos analisados e reflexões a propósito das

cenas de teatro nos romances, poemas em prosa de Huysmans, bem como sua única peça de

teatro, entre 1874 e 1881. Para discutir a literatura huysmansiana e aquelas com as quais

mantém relações diretas ou indiretas, servimo-nos também das correspondências trocadas

entre Huysmans e seus contemporâneos, como Émile Zola, Théodore Hannon e Edmond de

Goncourt.

Os conceitos adotados de acordo com o aparato teórico da pesquisa – aqueles que se

desdobram a partir do conceito de “campo” do sociólogo Pierre Bourdieu e de “cenografia

enunciativa” do linguista Dominique Maingueneau – permitem uma maior percuciência

analítica do corpus. Ao invés de observar a obra literária de Huysmans apenas como reflexo

de sua vida pessoal, ou como influência dos acontecimentos sociais de seu tempo, é possível,

através dos conceitos propostos, discutir as engrenagens que edificam a estrutura da obra,

reconhecendo não somente os terrenos literário e teatral com os quais mantém relação, mas

também os confrontos entre os enunciadores huysmansianos dentro de sua trajetória e as lutas

do campo.

Em suma, partindo de uma perspectiva abrangente, como o plano de Paris intramuros

que acabara de ser aumentado, esta dissertação reduz seus limites para algumas salas de teatro

de variedades parisienses, para, por fim, chegar a um território ainda mais reduzido: as

passagens literárias que dão conta do ambiente cênico em Huysmans. A especificidade do

espaço torna-se inversamente proporcional à abrangência de detalhes analisados no decorrer

da pesquisa, isso quer dizer que existe uma espacialidade que vai se reduzindo ao longo dos

capítulos, em contraponto com o aprofundamento dos elementos que constituem tal terreno de

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análises. Os curtos trechos escolhidos nas obras do escritor suscitam uma análise mais

perspicaz dos elementos que os constituem se comparados ao olhar panorâmico sobre a

cidade de Paris, que serve para situar as relações sócio-culturais na capital francesa.

O olhar crítico dos enunciadores huysmansianos sobre seu objeto, no que concerne às

práticas cênicas, denuncia a paratopia do autor, ao privilegiar os tradicionais espetáculos

populares, revelando uma enunciação que progressivamente mina os diálogos sociais do

mundo quotidiano e, por fim, aponta o futuro da arte que Huysmans mais desprezava, o

teatro.

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2 – PARIS, UMA CENOGRAFIA CONSTRUÍDA

Paris como espaço de relações sociais revela-se como objeto privilegiado de estudo

dentro do campo literário francês oitocentista. Inúmeros escritores localizam suas tramas no

território parisiense. Além disso, não se pode considerar esse território somente como espaço

fictício, mas é necessário sinalizar que uma grande parcela dos escritores franceses do século

XIX buscou representar Paris tal qual eles a viam, ou seja, descrevendo minuciosamente

lugares e endereços reais, isto é, que existiam no espaço da vida quotidiana, alguns

conservados ainda hoje. Difícil seria ignorar esse cenário e suas transformações urbanísticas

como decisivo para inúmeras narrativas francesas, sobretudo se considerarmos que o período

que se estende da queda da Bastilha à primeira Guerra Mundial sofreu consideráveis

mudanças na organização política e social.

Bo Liu reconhece em Louis-Sébastien Mercier a grande referência pré-romântica que

constrói Paris como tema literário: “Não podemos deixar de observar que, às vésperas do

romantismo, uma obra volumosa intitulada Tableau de Paris contribuiu enormemente para

essa eclosão”2. Essa eclosão é a grande disseminação de um movimento de revisitação desse

espaço dentro da literatura francesa, nos princípios do século XIX.

Certos escritores contemporâneos das revoluções de 1830 e 1848, efetivamente,

introduziram um estudo minucioso tendo Paris como protagonista, na prosa e na poesia. O

romance jornalístico de Mercier, ao qual se refere Liu, no entanto, já se propõe, entre 1781 e

1788, a descrever o quotidiano urbano parisiense. Mercier divide o terreno parisiense por

bairros e posições sociais; por vezes, até mesmo andares de edifícios são medida para dividir

2 “Nous ne pouvons pas ne pas remarquer qu’à la veille du romantisme un ouvrage volumineux intitulé Tableau de Paris a grandement contribué à cette éclosion ». LIU, Bo. Les “Tableaux Parisiens” de Baudelaire. Genèse et expérience poétique. Paris : Harmattan, 2003, T.1, p. 22.

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as classes; por exemplo, os sótãos parisienses, famosos até hoje por seu desconforto, são

relacionados aos artistas em começo de carreira:

Falemos em primeiro lugar, da parte mais curiosa de Paris, os sótãos. Como na máquina humana, o topo contém a mais nobre parte do homem, o órgão pensante [...]. Ali se forma, em silêncio, o pintor, ali o poeta faz seus primeiros versos, ali se meditam todas as obras-primas das artes; [...] Perguntem a Diderot se ele gostaria de deixar sua moradia para residir no Louvre e escutem sua resposta. [...] Quando descem de lá, os escritores perdem frequentemente toda a sua chama.3

Já o faubourg St-Marcel “[...] é o bairro onde mora o populacho de Paris, o mais

pobre4”. Da mesma maneira, veremos em muitos escritores oitocentistas a continuidade

dessas divisões topográficas, no território parisiense, com correspondências entre os sótãos e

os meios estudantis e os faubourgs tomados pelas classes populares.

Nessa perspectiva, as literaturas de Victor Hugo, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert,

Émile Zola e Joris-Karl Huysmans ajudam a criar a topografia e o mito de Paris, tornando

possível o redimensionamento da análise estética de suas obras em análise do espaço social,

no qual se insere o campo de produção desses autores5. De acordo com o que será investigado

ao longo dessa dissertação, esse espaço é recriado no discurso literário de certos escritores,

que o colocam em cena como um campo de lutas e de escolhas, de parcerias e rivalidades, tal

qual um campo de jogo, com equipes definidas, ainda que não definitivas. Além disso, tal

espaço topográfico constitui parte da cenografia enunciativa6 dos textos em que se encontra e

3 «Parlons d’abord de la partie la plus curieuse de Paris, les greniers. Comme dans la machine humaine, le sommet renferme la plus noble partie de l’homme, l’organe pensant [...]. Là se forme en silence le peintre ; là, le poète fait ses premiers vers ; là se méditent tous les chefs-d’oeuvre des arts ; [...] Allez demander à Diderot s’il voudrait quitter son logement pour aller demeurer au Louvre, et écoutez sa réponse. [...] Lorsqu’ils en descendent, les écrivains perdent souvent tout leur feu [...] ”. MERCIER, Louis-Sébastien. Le Tableau de Paris.Paris : François Maspero, 1982, p. 129. 4 “[...] c’est le quartier où habite la populace de Paris, la plus pauvre”. Ibidem, p. 75. 5 Os autores citados, exceto Huysmans – cuja escrita é objeto dessa pesquisa –, foram aqui escolhidos, dentre os inúmeros autores de importância na França do século XIX, pelo diálogo que será estabelecido com as questões levantadas nesse texto, vistas adiante. 6 Dominique Maingueneau considera, para fins de organização metodológica, que a cena de enunciação é subdividida em cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante trata do tipo de discurso – no caso de Huysmans, o literário –; a cena genérica trata do(s) gênero(s) escolhido(s). A cenografia é o veículo, ou a maneira pela qual o leitor recebe o ato da enunciação; ela chega ao leitor antes mesmo das cenas englobante e

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a preferência por determinadas localidades estabelece não apenas relações entre esses textos,

como evidencia um posicionamento enunciativo7.

A principal divisão do território parisiense, relevante para a presente pesquisa, será

constituída a partir do atrito entre os grupos que frequentam as margens direita e esquerda do

rio Sena. Esse diálogo entre as margens pode ser reconhecido, entre os autores aqui citados,

desde o primeiro Victor Hugo até Huysmans, portanto ao longo de todo o século XIX. Trata-

se de dois lados, dois pólos, localizados sobre Paris – tendo o Sena como divisor – que

transformam o plano da cidade em um tabuleiro de xadrez, em que, pouco a pouco, a

modernização vai conquistando territórios. Grosso modo, pode-se dizer que a margem direita,

vinculada ao desejo da Paris modernizada, busca atingir a velocidade industrial, ao passo que

a margem esquerda, vinculada à tradição, mantém seus mistérios de religião e erudição.

O imaginário da Paris reurbanizada de acordo com ideais burgueses de

industrialização e modernização está, de maneira recorrente, relacionado às propostas de

transformações urbanísticas no governo de Napoleão III (conhecidas também como

“embelezamentos de Paris”)8, realizadas pelo barão Georges

Eugène Haussmann, entre 1852 e 1870, que transformaram a capital francesa num grande

canteiro de obras:

Com Haussmann tudo está dito, Paris termina e recomeça. Quem, à semelhança de Victor Hugo, deixou Paris no advento de Napoleão III para só voltar após sua queda,

genérica. Na cenografia encontram-se a topografia, a cronografia e os estatutos de enunciador e co-enunciador. Ela faz parte da obra literária e, também, a valida, torna-se seu resultado. Ela traz à cena de enunciação não somente a escrita (em oposição à oralidade), mas também a filiação a outras enunciações. Ela, por fim, constrói-se nos processos de escrita e de leitura. Cf. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário (trad. Adail Sobral). São Paulo: Contexto, 2006, p. 251. 7 O posicionamento enunciativo, proposto por D. Maingueneau, diferencia-se dos conceitos posição e tomada de posição, de Pierre Bourdieu; ramifica-se em algumas particularidades, como a vocação enunciativa, os ritos genéticos, o investimento genérico. Para posicionar-se dentro do campo, um escritor leva em consideração “a autoridade que tem condições de adquirir, dadas suas conquistas e a trajetória que concebe a partir delas num dado estado do campo”; assim como sua conduta social, que percorre domínios “de elaboração (leituras, discussões...), de redação, de pré-difusão, de publicação”; e, também, em que gênero um escritor investe e com que outros textos ele está dialogando. Ibidem, p. 152 e 155. 8 « Embellissements de Paris sous Napoléon III ». THORAVAL, Jean et alii. Les Grandes étapes de la civilisation Française. Paris : Bordas, 1978, p. 313.

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tem a sensação estranha de ir parar numa cidade desconhecida de onde emergem, aqui e acolá, alguns destroços com uma silhueta vagamente familiar. Nunca, na longa história da cidade, viu-se uma modificação tão radical da paisagem urbana. Entre 1853 e 1870, dezessete anos de edilidade lhe foram suficientes para levar a cabo um trabalho de titã e transfigurar totalmente o cenário9.

No entanto, uma empreitada anterior já anunciava esses trabalhos de reorganização do

território urbano parisiense: as reformas de Napoleão I. No governo conhecido como Primeiro

Império, Napoleão Bonaparte – militar oriundo da Revolução, movimento social francês que

não só tinha sido um “tempo morto para a construção”10, como havia visto o vandalismo e a

mutilação de inúmeros monumentos ligados à monarquia – incentiva a renovação arquitetural

da cidade. Seus planos de construir uma metrópole colossal não chegam, no entanto, a se

concretizar antes do fim de seu governo. Os embelezamentos urbanos se mantêm na esfera do

decorativo, sem modificar a estrutura da capital imperial. A cidade se mantém, portanto, com

seus doze distritos, tal qual tinham sido concebidos em 1795.11

Distribuição dos 12 distritos de Paris a partir de 1795. HTTP://image.absoluteastronomy.com/images/topicimages/a/ar/arrondissements_of_paris.gif

(acessado em 08/06/2010)

9 “ Avec Haussmann tout est dit, Paris s’achève et recommence. Qui, à l’instar de Victor Hugo, a quitté Paris à l’avènement de Napoléon III pour n’y revenir qu’après sa chute, a le sentiment étrange de tomber dans une ville inconnue d’où émergent, çà et là, quelques épaves à la silhouette vaguement familière. Jamais, dans la longue histoire de la ville, on n’a vu une modification aussi radicale du paysage urbain. Entre 1853 et 1870, dix-sept ans d’édilité lui ont suffi pour mener à bien un travail de Titan et bouleverser totalement le décor ». MANEGLIER, Hervé. Paris Impérial, la vie quotidienne sous le Second Empire. Paris : Armand Colin, 1990, p.7. 10 “ [...] un temps mort pour la construction ». THORAVAL, p. 311. 11 Cf. MANEGLIER, op. cit., p. 9.

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2.1 – A Paris de Notre-Dame de Paris

Em Notre-Dame de Paris – 1482 (1831), romance histórico de Victor Hugo, vemos

não apenas uma Paris que se moderniza, como a polaridade entre as margens direita e

esquerda. O autor, no segundo capítulo do terceiro livro do romance, intitulado “Paris à vol

d’oiseau”, descreve a Paris do século XV, a Paris que desapareceu, da qual “só resta a

lembrança”12, sempre em contraponto com a Paris dos anos 1830, sua contemporânea. Assim,

será na descrição minuciosa de Paris no século XV que se encontrarão evidenciadas as

reformas de arquitetura e urbanismo desde Napoleão I. É no estranhamento com a Paris

medieval que se descreve a capital francesa, na terceira década do século XIX:

Paris nasceu, como sabemos, nessa velha île de la Cité que tem a forma de um berço. [...] desde o século XV [...] A poderosa cidade tinha derrubado sucessivamente suas quatro muralhas, como uma criança que cresce e que rasga suas roupas do ano anterior. [...] Desde então, Paris transformou-se de novo, infelizmente, aos nossos olhos. [...] No século XV, Paris estava ainda dividida em três cidades totalmente distintas e separadas, tendo cada uma sua fisionomia, sua especialidade, seus modos, seus costumes, seus privilégios, sua história.13

Hugo divide o território que analisa em três partes: A Cidade Antiga (la Cité), a

Universidade (l’Université), a Cidade (la Ville). Apesar de situar a descrição da divisão da

cidade no século XV, trata-se de uma configuração territorial muito próxima daquela que

existe no século XIX e que ainda poderá ser reconhecida nos textos de Huysmans sobre Paris,

anos mais tarde. No estudo introdutório da publicação À Paris, compilação de textos de

Huysmans, Patrice Locmant comenta:

Nesse face a face das duas margens, o Sena representa o lugar de todos os perigos, o espaço de contaminação liquefativa onde o homem corre o risco de se ver levado pela corrente do século. [...] Assim, os cais do Sena, que mantêm

12 « [...] aujourd’hui il n’en reste que le souvenir ». HUGO, Victor. Notre-Dame de Paris. Paris : Folio, 2002, p. 166. 13 « Paris est né, comme on le sait, dans cette vieille île de la Cité qui a la forme d’un berceau. [...] dès le quinzième siècle [...] La puissante ville avait fait craquer successivement ses quatre ceintures de murs, comme un enfant qui grandit et qui crève ses vêtements de l’an passé. [...] Depuis lors, Paris s’est encore transformé, malheuresement pour nos yeux [...]. Au quinzième siècle, Paris était encore divisé en trois villes tout à fait distinctes et séparées, ayant chacune leur physionomie, leur spécialité, leurs moeurs, leurs coutumes, leurs privilèges, leur histoire ». Ibidem, p. 166-168.

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distantes uma da outra as duas margens, formam um cordão sanitário: os cais são o terreno neutro onde cessa o perpétuo combate que travam as duas faces de Paris.14

Nas duas perspectivas da capital, a de Hugo e a de Huysmans, encontra-se a

polaridade entre as margens e o Sena. Em Hugo, a rive gauche é representada pela Université

e a rive droite pela modernização da cidade (la Ville), tendo como limite o Sena, onde se

encontra a île de la Cité (la Cité). Em Huysmans, o Sena mantém sua importância narrativa;

por exemplo, em seus dois primeiros romances, quais sejam, Marthe, histoire d’une fille

(1875) e Les Soeurs Vatard (1879), as protagonistas tentam se jogar no rio para acabar com

suas vidas.

A ilha sobre o Sena é, no romance de Hugo, a mãe das duas margens, a menor e a mais

antiga das três partes. Ela contém as igrejas, está relacionada ao bispo, ao passo que a margem

direita está associada ao “prévot des marchands” (oficial real na chefia administrativa dos

comerciantes de Paris) e a margem esquerda, ao reitor:

A Cidade, que ocupava a ilha, era a mais antiga, a menor [...]. A Universidade cobria a margem esquerda do Sena, desde a Tournelle até a torre de Nesle, pontos que correspondem, na Paris de hoje, ao Mercado de Vinhos e à Casa da Moeda. [...] A Cidade, que era a maior dos três pedaços de Paris, dominava a margem direita. [...] A Cidade entrava terra adentro ainda mais profundamente que a Universidade. O ponto culminante dos muros da Cidade (os de Charles V) se encontrava nas portas Saint-Denis e Saint-Martin, cuja localização não mudou.15

Se Hugo, em 1831, já descreve uma Paris remodelada, que se impõe às construções

medievais, é porque, pelo menos desde o Império de Napoleão I, há concepções urbanísticas

de transformação da cidade em grande centro urbano, nos padrões da nobreza do Imperador.

14 « Dans ce face à face des deux rives, la Seine représente le lieu de tous les dangers, l’espace de contamination liquéfiante où l’homme risque de se voir emporter par le courant du siècle. [...] Ainsi les quais de la Seine, qui maintiennent les deux rives à distance l’une de l’autre, forment un cordon sanitaire : les quais sont le terrain neutre où cesse le perpétuel combat que se livrent les deux faces de Paris. » LOCMANT, Patrice. Préface. In :HUYSMANS, Joris-Karl. À Paris. Paris : Bartillat, 2005a, p. 26. 15 “La Cité, qui occupait l’île, était la plus ancienne, la moindre [...]. L’Université couvrait la rive gauche de la Seine, depuis la Tournelle jusqu’à la Tour de Nesle, points qui correspondent dans le Paris d’aujourd’hui l’un à la Halle aux vins, l’autre à la Monnaie. [...] La Ville, qui était le plus grand des trois morceaux de Paris, avait la rive droite. [...] La Ville entrait dans les terres plus profondément encore que l’Université. Le point culminant de la clôture de la Ville (celle de Charles V) était aux portes Saint-Denis et Saint-Martin dont l’emplacement n’a pas changé ». HUGO, op. cit., p. 168.

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Essas obras – tais como os cruzamentos da Place de l’Étoile, a rua de Rivoli e suas

construções simétricas – já anunciam as medidas de seu sobrinho Napoleão III, duas décadas

mais tarde.16

O mais importante em Paris à vol d’oiseau, em confronto com a Paris de Huysmans, é

a divisão clara que Hugo estabelece entre as três partes da capital. Tal repartimento expõe a

relação dialógica entre as três porções da cidade, sobretudo entre as margens direita e

esquerda, que podem alargar seus limites geográficos. Se, por um lado, a margem esquerda

tenta manter a tradição dos estudos e da erudição, por outro, a margem direita vai se tornando,

desde o século XV, detentora do poder econômico.

2.2 – A Paris de Le Père Goriot

No ano de 1834, portanto na mesma década em que foi escrito Notre-Dame de Paris,

Honoré de Balzac publica Le Père Goriot, ambientado durante a Restauração, em 1819. As

relações sociais nesse campo de disputas que é a própria capital francesa também são

destacadas pelo autor, à sua maneira. No plano da cidade, vislumbram-se classes sociais

distintas como a aristocracia falida, a pequena e a alta burguesias.

A Paris em que Balzac vive, apesar de manter o mesmo plano urbano desde o fim do

século XVIII, já não funciona socialmente como na primeira década do século XIX; o acesso

ao transporte ferroviário proporciona a muitos camponeses a possibilidade de trabalhar na

capital; muitos ateliês ocupam as antigas casas da aristocracia, então falida.

Balzac localiza a pensão burguesa de madame Vauquer (que se encontra “[...] entre o

Quartier Latin e o faubourg Saint Marceau”17), onde se passa a maior parte da ação e onde

mora Goriot, em um bairro decadente, longe da efervescência da burguesia endinheirada, do

16 THORAVAL, op. cit., p.310. 17 “[...] entre le quartier latin et le faubourg Saint-Marceau”. BALZAC, Honoré de. Le Père Goriot. Paris : Garnier Frères, 1981, p. 5.

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capital econômico dominante: “Um parisiense perdido veria lá apenas pensões burguesas ou

pensionatos de jovens, miséria ou tédio, a velhice que morre, a alegre juventude forçada a

trabalhar”.18

Em contraponto com essa parte da rive gauche, encontram-se as casas das filhas de

Goriot. Elas conseguem atravessar o Sena e se casar na rive droite, para orgulho do pai.

Através da escrita balzaquiana, é possível reconhecer a atmosfera da alta burguesia na

margem do comércio, na qual as duas filhas, Delphine e Anastasie, tentam ser aceitas. Na

trajetória desses dois personagens (se uma se casa com um banqueiro, a outra esposa um

nobre falido) o campo de luta entre as duas margens é bem evidente: as filhas de Goriot,

antigo comerciante que enriqueceu após a Revolução Francesa, tentam a todo custo camuflar

sua origem camponesa, frequentando os eventos da alta burguesia e da nobreza e contraindo

dívidas.

Cada uma a seu modo, as duas filhas de Goriot se colocam em um jogo de conquistas

de território com o campo do poder. Se Delphine é caracterizada como “[...] uma loura que

possui um camarote [...] na Opéra, que vai também aos Bouffons e ri muito alto para se fazer

notar”19, Anastasie, diante da ruína de seu pai, vai até o velho doente pedir dinheiro para

quitar dívidas. Segundo as palavras do velho Goriot: “[Nasie] tinha encomendado, para esse

baile, um vestido de lamê que deve lhe cair como uma jóia. Sua costureira, uma mulher

infame, não quis dar-lhe crédito [...] Nasie está desesperada. Ela quis que eu lhe emprestasse

meus talheres para empenhá-los”20.

18 « Un Parisien égaré ne verrait là que des pensions bourgeoises ou des Institutions, de la misère ou de l’ennui, de la vieillesse qui meurt, de la joyeuse jeunesse contrainte à travailler ». Ibidem, p. 7. 19 « [...] une blonde qui a une loge [...] à l’Opéra, qui vient aussi aux Bouffons, et rit très haut pour se faire remarquer». Ibidem, p. 89. 20 « Elle avait commandé, pour ce bal, une robe lamée qui doit lui aller comme un bijou. Sa couturière, une infâme, n’a pas voulu lui faire crédit [...] Nasie est au désespoir. Elle a voulu m’emprunter mes couverts pour les engager », ibidem, p. 272.

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Apesar do poder econômico, a margem direita deseja fazer parte do seleto grupo do

faubourg Saint-Germain, localizado na margem esquerda, no 6º distrito: “O faubourg Saint-

Germain, por exemplo, constitui uma espécie de bastião da aristocracia, de onde se ousa

raramente sair para circular na cidade”21 No romance de Balzac, esse espaço é representado

pela Viscondessa de Beauséant, aristocrata de nascença, anfitriã de um salão ao qual aspiram

os ricos da margem direita, que não eram aristocratas. Para exemplificar a relação entre o

dinheiro novo da margem direita e o prestígio social próprio do grupo ao qual pertence

Beauséant, o narrador afirma: “[...] para se abrir uma porta no faubourg Saint-Germain, a

mulher de um banqueiro era capaz de todos os sacrifícios”22

A cena final do romance, protagonizada pelo personagem do jovem estudante e

aristocrata falido Eugène de Rastignac (parente da Viscondessa de Beauséant), ocorre no alto

do cemitério do Père-Lachaise, de onde se pode ver Paris de forma panorâmica, e traz de volta

a capital como campo de luta. Ao desafiar Paris com a frase “Agora somos apenas nós

dois”23, Rastignac afirma sua vontade (que também pode ser vista na ótica de um grupo

social) de obter êxito em Paris. Ora, esse êxito, ao que parece, não se direciona a Paris como

um todo. Ao pronunciar tais palavras, o jovem o faz observando, juntamente com os Invalides

e a Place Vendôme. O desafio é lançado a esse grupo e à alta burguesia dos bancos e do alto

comércio.

Balzac, ao longo de seu romance, estabelece nitidamente não apenas as diferenças

socioculturais entre as margens do Sena, mas, sobretudo, a batalha entre os diferentes capitais

simbólicos sobre a topografia parisiense de sua época. Nesse confronto entre as diferentes

21« Le Faubourg Saint-Germain, par exemple, constitue une espèce de place forte de l’aristocratie d’où l’on ose à peine sortir pour circuler dans la grande ville ». BERTAUT, Jules. Le Père Goriot d’Honoré de Balzac. Paris : SFELT, 1947, p. 91. 22 “[...] pour s’ouvrir une porte dans le faubourg Saint-Germain, la femme d’un banquier était capable de tous les sacrifices ». BALZAC, op. cit., p.158. 23 « A nous deux maintenant », ibidem, p. 309.

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porções da capital francesa, Le Père Goriot vai um pouco além de Notre-Dame de Paris, já

que enfatiza as diferenças da margem esquerda em oposição à emergência burguesa na

margem direita. Ao longo do século XIX, a literatura parisiense mostrará tal confronto cada

vez mais acirrado.

2.3 – A Paris de L’Éducation Sentimentale

Gustave Flaubert faz alusão em seu romance L’Éducation Sentimentale (1869) ao

desafio lançado por Rastignac ao final do Père Goriot, em que se evidencia a ambição

burguesa ligada ao processo industrial e econômico. Flaubert coloca no personagem

Deslauries as palavras que serão dirigidas ao protagonista, Frédéric: “Lembre-se de Rastignac

na Comédie Humaine. Você vencerá, estou certo disso!”24

A primeira imagem desse romance de Flaubert está localizada na interseção dos dois

pólos rivais do território parisiense: o rio Sena. Frédéric está deixando Paris e, emocionado,

olha a ilha Saint-Louis, a Cité e Notre-Dame, como se ali fosse, como vimos anteriormente

em Notre-Dame de Paris, o lugar de origem e de paz espiritual da capital francesa, do qual ele

se despede para chegar ao Havre, onde o Sena desemboca no mar25.

No que diz respeito ao campo de disputas no plano de Paris na L’Éducation

Sentimentale, há dois “grupos” principais dividindo o território: os Arnoux, proprietários de

L’Art Industriel, “um estabelecimento híbrido compreendendo um jornal sobre pintura e uma

loja de quadros”26; e os Dambreuse, membros da antiga nobreza que se tornara industrial,

morando na rua d’Anjou27.

24 « Rappelle-toi Rastignac dans la Comédie Humaine ! Tu réussiras, j’en suis sûr ! » FLAUBERT, Gustave. L’Éducation Sentimentale. Paris : Seuil, 1964, p. 14. 25 Cf. Ibidem, p. 8. 26 « [...] un établissement hybride, comprenant un journal de peinture et un magasin de tableaux », ibidem, p. 9. 27 Cf. Ibidem, p. 14.

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O estabelecimento dos Arnoux se encontra no bulevar Montmartre, no coração do que

se tronavam aos poucos os grandes bulevares de Haussmann, nos arredores da Ópera. O

letreiro do estabelecimento (Art industriel) sinaliza o grupo a que pertence e os lugares

frequentados. Enquanto os Arnoux agrupavam os artistas, sobretudo aqueles ligados à

indústria, os Dambreuse reuniam os homens da política e os altos cargos do funcionalismo

público, como analisa o sociólogo Pierre Bourdieu, em Les Règles de l’Art.28

Através da análise esclarecedora de Bourdieu, o que se estabelece como interseção

entre esses dois conjuntos rivais que jogam todo o tempo com a arte e com o dinheiro é o

demi-monde, composto por mulheres ligadas à prostituição de luxo, sustentadas pelos

cavalheiros com uma boa posição no campo do poder. Esse “mundo do meio” faz o diálogo

entre o “monde” (das famílias respeitáveis, membros da alta burguesia e da aristocracia) e o

sub-mundo. No romance de Flaubert, ele é representado pelo salão do personagem Rosanette,

nos arredores do faubourg Montmartre (no centro do 9º distrito de Paris). A mulher que se

encontra entre a boemia e o monde (alta sociedade) pode circular pelos dois grupos

incompatíveis, viabilizando a comunicação entre essas duas visões distintas da sociedade.

Na primeira parte de Les règles de l’art, Bourdieu faz uma profunda análise dessa obra

de Flaubert, traçando o espaço topográfico da Paris onde circulam o protagonista Frédéric e

os grupos com os quais ele mantém relações: “esse adolescente burguês que [...] pode abraçar,

com um olhar, o conjunto dos poderes e dos possíveis que lhe estão abertos e das avenidas

que conduzem até lá”29.

O campo de forças que representa o campo social na análise de Bourdieu sobre a obra

de Flaubert é o modelo de análise para o campo de produção literária parisiense no século

28 Cf. BOURDIEU, Pierre. Les Règles de l’Art ; genèse et structure du champ littéraire. Paris : Seuil, 1998, p. 22. 29 “[...] cet adolescent bourgeois qui [...] peut embrasser d’un regard l’ensemble des pouvoirs et des possibles qui lui sont ouverts et des avenues qui y conduisent”. BOURDIEU, op. cit., p. 21.

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XIX. Assim, nesse terreno, há forças que agem sobre os agentes ali presentes e interagem com

os capitais trazidos para esse jogo, ou seja, atributos comportamentais (elegância, beleza,

ambição, inteligência) que se relacionam com os capitais econômico, cultural e social. Os

personagens constroem suas trajetórias através dos capitais herdados; isso quer dizer, através

das vantagens que têm para vencer no campo e da disposição dentro do campo do poder, isto

é, a vontade de vencer.30

Podemos, dessa maneira, reconhecer, resumidamente, os dois grupos que disputam o

campo do poder na margem direita do Sena e encontrar uma margem esquerda povoada de

estudantes, boêmios e artistas não ligados ao capital econômico do Quartier Latin. A relação

entre arte e dinheiro é ricamente trabalhada por Flaubert e profundamente analisada por

Bourdieu. O escritor e o artista que frequentam a margem direita, no romance, lidam com o

comércio da arte e com exploração do trabalho artístico por uma “indústria da arte”.

A Paris de L’Éducation Sentimentale leva a imagem de campo de batalha, já vista em

Hugo e Balzac, a um novo patamar, em que os escritores e artistas necessitam de uma

estratégia muito bem organizada para permanecer na guerra que se estabelece no campo de

produção literária e artística. Através do protagonista Frédéric, é enunciado o confronto entre

as duas margens do Sena. A esquerda, possui caráter estudantil e, de certa forma, romântico; a

direita, é subdividida entre o grupo detentor da arte industrial e aquele formado pela nova

aristocracia e a alta burguesia.

2.4 – A Paris de Au Bonheur des Dames

Não é exclusivo da margem direita, naturalmente, o processo de industrialização

francês oitocentista. A rive droite simboliza, na capital francesa, essa corrida pelo avanço

tecnológico. Entretanto, pode-se observar o processo de modernização industrial parisiense

30 Cf. BOURDIEU, op. cit., p. 32.

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também no território da rive gauche, tal qual é visto por Émile Zola, entre outros autores, que

escreve o romance intitulado Au Bonheur des Dames (1883) sobre o comércio das grandes

lojas na margem esquerda. Zola denuncia a dinâmica de opressão do grande sobre o pequeno

comerciante, este não encontrando mais lugar no campo econômico de um Segundo Império

que tenta impor suas regras frente ao mundo industrializado, do qual a Inglaterra foi

precursora.

Por ocasião da publicação de Au bonheur des dames, décimo primeiro romance da

série Les Rougon-Macquart, Huysmans endereçou a Zola uma carta na qual metaforiza o

crescimento do comércio no espaço urbano da Paris das reformas urbanísticas do Segundo

Império como uma máquina, ou mesmo um monstro, que conquista mais espaços, em

consonância com o aumento da população urbana e da produção industrial. Nas palavras de

Huysmans :

Quant à la partie plastique du monstre – la foule, les étalages, vous pouvez croire que je les ai savourés. [...] vous aviez à créer – et c’est réalisé selon vos intentions - le commencement d’un magasin allant toujours en s’amplifiant, jusqu’à ce qu’il emplisse toute une partie de la ville [...].31

Dessa forma, a dinâmica industrial – que, segundo os autores anteriormente citados,

reinava na margem direita – tenta ultrapassar o limite do Sena para conquistar seus territórios

abaixo dele, na margem esquerda. Eis o tema principal de Au bonheur des dames: a vitória da

modernidade industrial e dos novos modos de circulação das mercadorias sobre a tradição do

pequeno comércio da margem esquerda. No romance de Zola, o emblema dessa conquista de

territórios é o grand magasin intitulado “Au bonheur des dames”. Um grand magasin é um

estabelecimento comercial que compra no atacado e, dessa forma, pode comprar e vender a

preços mais baixos do que aqueles encontrados no pequeno comércio:

31 “Quanto à parte plástica do monstro – a multidão, as vitrines, pode acreditar que eu as saboreei. [...] você devia criar – e foi realizado segundo suas intenções - o começo de uma loja em constante amplificação, até o ponto em que preenche uma parte inteira da cidade [...]” HUYSMANS, J.-K. apud CNOCKAERT, Véronique. Au bonheur des dames d’Émile Zola. Paris : Gallimard, 2007, p. 214.

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Os preços, ao invés de serem ditados, como outrora, por uns cinquenta estabelecimentos, são impostos, hoje, por quatro ou cinco, que os baixaram, graça ao poder de seus capitais e à força de sua clientela... Melhor para o público, está claro.32

Um grande estabelecimento como o que aparece no romance de Zola toma uma larga

fatia das vendas do pequeno comércio ao reunir em uma única loja todos os produtos que são

vendidos, separadamente, em cada estabelecimento do pequeno comércio, especializado em

um produto específico. Logo, com a praticidade do grand magasin, os consumidores param

de comprar a agulha no armarinho, ou os doces na pâtisserie, para concentrar suas despesas

no grand magasin que, com seus vários andares e seções, torna-se uma cidade dentro da

cidade de Paris.

Da mesma maneira que em Au bonheur des dames a personagem Denise se perde

pelos corredores do grand magasin ao qual ela tenta se adaptar, o cidadão parisiense busca

decodificar essa nova dinâmica espacial da Paris moderna. Como fez Zola, em relação a

Denise, em Au bonheur des dames, Huysmans também descreve uma funcionária do Bon

Marché em uma crítica de arte intitulada “Millet”, na coletânea Certains. Sua descrição toma

partido dos sacrifícios dos trabalhadores da capital francesa em contraponto com os

trabalhadores camponeses, que lhe parecem menos sacrificados que os da capital:

Ainsi qu’une bête de somme, la paysanne rentre les foins et fend le bois et poêlonne, et bêche et vêle. Oui ; - mais une ouvrière cloîtrée depuis le matin dans l’air raréfié d’un Bon Marché ou d’un Louvre, une femme toujours débout et attentive aux souhaits d’une foule, est plus souffreteuse et plus débile, plus douloureusement laminée par la vie, plus vraiment à plaindre ! 33

32 « Les prix, au lieu d’être faits comme autrefois par une cinquantaine de maisons, sont faits aujourd’hui par quatre ou cinq, qui les ont baissés, grâce à la puissance de leurs capitaux et à la force de leur clientèle. Tant mieux pour le public, voilà tout ! ». ZOLA, Émile. Au bonheur des dames. In:___. Les Rougon-Macquart. Paris: Seuil, 1970, T. IV, p. 113. 33 « Assim como um burro de carga, a camponesa recolhe o feno, corta a lenha e cozinha, pega na enxada e pare. Sim; – mas uma funcionária enclausurada desde de manhã no ar rarefeito de um Bon Marché ou de um Louvre,uma mulher sempre em pé e atenta aos desejos de uma multidão, é mais miserável e fraca, mais dolorosamente massacrada pela vida, e deve inspirar mais piedade!” HUYSMANS, J.-K. Écrits sur l’art. Paris : Flammarion, 2008, p. 357. (Cf. 2.5.1, p. 31-32)

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Não por acaso tantos escritores sinalizaram as mudanças urbanísticas desse período.

Os personagens que circulam na cidade perdem-se ainda mais pelas ruas expandidas na

largura e no comprimento, mais populosas, com edifícios mais altos e transparentes (o que

ocorre graças às técnicas de utilização do ferro e do vidro, que permitem a redução de áreas

cobertas por paredes de cimento e o aumento de superfícies translúcidas), enfim, pelas novas

possibilidades de acesso.

Nota-se que, não só em Au bonheur des dames, mas também no conjunto dos Rougon-

Macquart, Zola comete anacronismos e aparentes erros de data. Tais lapsos são, obviamente,

propositais, já que há uma necessidade literária de desenvolvimento de seu enredo que, por

vezes, é incompatível com o tempo da História, ou seja, do que de fato ocorreu

cronologicamente.

A iluminação elétrica do grand magasin é um exemplo desse anacronismo entre a

época em que se passa o romance (o Segundo Império) e o início do regime posterior (a

Terceira República):

Seis horas iam soar, o dia que caía do lado de fora se retirava das galerias cobertas, já escuras, enfraquecia-se no fundo dos halls, invadidos por lentas sombras. E, nesse dia ainda mal terminado, acendiam-se, uma a uma, luminárias elétricas.34

O autor optou por instalar a iluminação elétrica no estabelecimento fictício Au

Bonheur des dames anos antes de tal fato acontecer no estabelecimento Le bon Marché, que

serviu de modelo para a criação do magasin da ficção: até o fim do Segundo Império nenhum

grand magasin estava equipado com um sistema de iluminação elétrica.35

A luz elétrica – que à época parece ser muito clara a ponto de incomodar a visão – era,

até 1870, utilizada apenas em grandes espaços, como em circunstâncias festivas e canteiros de

34 « Six heures allaient sonner, le jour qui baissait au-dehors se retirait des galeries couvertes, noires déjà, pâlissait au fond des halls, envahis de lentes ténèbres. Et, dans ce jour mal éteint encore, s’allumaient, une à une, des lampes électriques ». ZOLA, op. cit., p. 219. 35 Cf. CNOCKAERT, op. cit., p. 149.

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obras noturnas, devido à hostilidade de Haussmann em relação ao uso da luz elétrica na

iluminação pública. Ao longo da década de 1870, apesar de experimentos e tentativas, a

iluminação pública se mantém a gás.36 Os parisienses viram, de uma maneira mais ampla, os

novos efeitos da luz elétrica, em 1881, na Exposição Internacional de Eletricidade, no Palais

de l’Industrie.37

É interessante observar a opção de contrariar o tempo histórico em favor da narrativa,

posto que, dessa forma, o choque entre o antigo e o moderno é evidenciado no contexto

temporal e espacial do fim do Segundo Império, nos últimos anos da década de 1860, e na

Terceira República, mais precisamente em 1883, data da publicação do romance. A luz

elétrica parece, justamente, fazer essa ponte, sendo um ponto fundamental para a

reconfiguração da topografia urbana e também para a renovação do teatro.

Quanto ao teatro, retomaremos mais tarde sua análise ao observarmos uma nova era

cênica, qual seja, a era dos encenadores e dos efeitos “realistas” proporcionados pela luz

elétrica – palco ao qual Huysmans virará as costas. Quanto à nascente Terceira República, que

começa a ver a substituição da iluminação a gás pela eletricidade, é necessário sinalizar,

ainda, o posicionamento huysmansiano diante das diferenças entre as duas metades da capital.

2.5 - A Paris de Joris-Karl Huysmans

Enquanto Émile Zola descreve o pequeno comércio a fim de marcar a diferença com o

comércio em escala industrial, protagonista de Au bonheur des dames, J.-K. Huysmans dedica

suas páginas aos pequenos estabelecimentos. Os detalhes sórdidos ou tristes do anacronismo

de tais espaços decadentes que, na vida quotidiana, são vistos como periféricos, em Huysmans

são deslocados para o centro do interesse narrativo.

36 Cf. DELATTRE, Simone. Les douze heures noires, la nuit à Paris au XIXe siècle. Paris : Albin Michel, 2003, p. 165.37 Ibidem, p. 167.

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Huysmans, observador da rive gauche, vê a aproximação gradativa dessas mudanças

urbanísticas que ultrapassam o limite do Sena. Porque, se a rive droite já estava sendo

modificada e se estabelecia como margem moderna do comércio, a rive gauche ainda possuía

uma atmosfera misteriosa, com seus antigos monastérios e edifícios históricos, e começava a

sentir a aproximação das reformas modernizadoras.

2.5.1 – Crítica de arte

Através da crítica de arte em forma de artigos, é possível reconhecer, na obra de

Huysmans, seus posicionamentos sobre a relação entre arte e literatura e como sua maneira de

olhar o mundo constrói a Paris que vemos em suas obras.

A compilação, organizada por Patrick Locmant e intitulada Écrits sur l’art, numa

edição de 2008, reúne três conjuntos de artigos produzidos pelo escritor. O primeiro conjunto

de textos, L’Art Moderne, trata da publicação pelo editor Charpentier, em 1883, de artigos

anteriormente lançados (entre 1879 e 1881) em jornais e revistas, tais como Le Voltaire, La

Réforme e La Revue littéraire et artistique. O segundo conjunto, Certains, publicado, em

1889, pelo editor Tresse et Stock, reúne artigos publicados, entre 1880 e 1889, nas seguintes

mídias: L’Évolution Sociale, La Revue indépendante, La Cravache parisienne, La Revue

illustrée e La Réforme. Finalmente, o terceiro conjunto, Trois Primitifs, foi publicado pelo

editor Messein, em 1905, contendo um artigo original e outro publicado um ano antes em Le

Mois littéraire et pittoresque.

Através dos vários enunciadores huysmansianos presentes nessa publicação

heterogênea intitulada Écrits sur l’art, é possível analisar o confronto entre os elementos

formadores das duas margens do Sena, no que concerne à produção artística à época de

Huysmans.

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2.5.1.1 – Arquitetura

Um bom exemplo das modificações urbanísticas da Terceira República seriam as

ruínas do Conselho de Estado38 que, na virada do século, tornaram-se a estação de trem cujo

edifício abriga, atualmente, o Museu d’Orsay, no 7º

distrito, na margem esquerda. Havia rumores, nos fins

da década de 1880, de que as ruínas seriam destruídas

por definitivo para dar lugar ao Museu de Artes

Decorativas. Huysmans escreve, então, um artigo

intitulado Le musée des Arts décoratifs et l’Architecture cuite, publicado em 1889 – após

revisão39 -, em conjunto com outros textos agrupados com o título de Certains. Nesse artigo,

Huysmans prevê a derrocada final do prédio antigo, seu desaparecimento e, sobre ele, a

edificação dos valores modernos em forma de arquitetura. Ao supor que haveria a substituição

dos modelos arquitetônicos, em sua opinião, verdadeiramente artísticos, pela mercadoria

industrial, Huysmans faz alusão ao Bon Marché dizendo: “[...] ce sera le luxe à bon

compte”40.

Não que Huysmans atribuísse ao palácio d’Orsay (que ainda não se tinha a certeza se

seria construído) o mesmo valor estético que atribuía aos outros construídos nas décadas que

precederam à escrita dos textos que compõem Certains (como a Bolsa de Valores, a igreja da

Madeleine, o Ministério da Guerra, a igreja Saint-Xavier, a Ópera e o Odéon). O que ele

propõe, ironicamente, no lugar de novas construções assinadas por arquitetos de monumentos,

38 Os edifícios do Conseil d’État, próximo ao cais Voltaire, sofreram incêndios durante os combates da Comuna de Paris (18 de março – 28 de maio de 1871). A partir de 1875, o Conselho se instala, definitivamente, no Palais Royal. Cf. HUYSMANS. Écrits sur l’art, 2008, p. 337. Na imagem : detalhe da pintura representando o Palais d’Orsay, onde se instalou o Conselho de 1818 a 1871. Tela de Albert Girard que se encontra na sala da seção do contencioso do atual edifício do Conselho de Estado. Consultado em 08/06/2010 em: HTTP://www.conseil-etat.fr/cde/node.php?.pageid=37539 Na nota introdutória da edição mais recente de Certains, Jérôme Picon sinaliza o artigo Fantaisie sur le musée des Arts décoratifs et sur l’architecture cuite, publicado na Revue indépendante em novembro de 1886, como a origem desse texto publicado em 1889, em Certains. Ibidem, p. 339. 40 “[...] será o luxo a preço baixo”. Ibidem, p. 337-338.

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seriam as ruínas das construções que já existiam (e que, em sua opinião, enfeavam Paris), já

que, segundo Huysmans, a arquitetura do ferro ainda não encontrara sua forma e, quando se

estabelecesse, seria (e foi) fatalmente a imagem de uma época de mercantilismo e de

velocidade.41

A Paris que o escritor vê, e que não o agrada, é um território retalhado pelos estilos de

época impuros e por opções arquitetônicas de cada governo, de acordo com o que vimos

anteriormente nas questões referentes ao urbanismo nos governos de Napoleão I e Napoleão

III. Huysmans descreve a capital como “[...] ici un morceau de l’Antiquité, là un bout de

Moyen Âge et raccordant le tout, tant bien que mal[...] ”42.

Com isso o autor exprime sua paratopia em relação ao campo de produção artística de

sua época, ou seja, seu lugar periférico em contraponto ao centro dominado pela alta

burguesia ligada, ainda, aos valores do Segundo Império. O conceito de “paratopia” será

empregado, aqui, de acordo com Dominique Maingueneau, que analisa o afastamento

proposital de um escritor em relação ao centro de poder do espaço literário ao qual pertence,

quer dizer, o campo de produção literária com as devidas condições de enunciação desse

escritor. Tal recusa ao pertencimento ao campo (campo que o reconheceria como escritor;

portanto, não se estabelece uma ruptura total) legitima o produtor de um texto. Sendo próprio

do escritor/artista um lugar fora do topos social, “o pertencimento ao campo literário não é,

portanto, ausência de todo lugar, mas [...] uma negociação entre o lugar e o não-lugar”.43.

Em seus romances e poemas em prosa, o caráter paratópico é evidenciado não apenas

pela topografia, mas também pelos personagens marginais que protagonizam as tramas e

pelas descrições, tal qual será tratado no quarto capítulo. Além disso, em sua produção de

41 Cf. Ibidem, p. 341. 42 “[...] um pedaço de Antiguidade aqui, uma ponta de Idade Média ali, ajustando o todo, de qualquer maneira ». Idem.43 MAINGUENEAU, op. cit., p. 92.

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crítico de arte, um outro confronto com o topos é manifestado. Trata-se da própria condição

de escritor pertencente a um campo de produção literária que conquista, gradativamente, sua

autonomia no século XIX e que permite que um escritor se manifeste sobre um campo

correlato ou mesmo distinto, sem que necessariamente isso implique em um engajamento

direto de ordem política ou comercial.

Seria, assim, uma atitude paratópica de Huysmans maldizer praticamente tudo o que a

arte do século XIX produziu. Parece existir, ao se ler sua crítica, uma incompatibilidade entre

as propostas burguesas de estetização e de modernização do terreno urbano da capital e os

valores estéticos de Huysmans. Desse modo, ele propõe, ironicamente, semear ruínas por

meio de incêndios propositais:

Pour embeillir cet affreux Paris que nous devons à la misérable munificence des maçons modernes, ne pourrait-on [...] semer çà et là quelques ruines, brûler la Bourse, la Madeleine, le ministère de la Guerre, l’église Saint-Xavier, l’Opéra et l’Odéon, tous les dessous du panier d’un art infâme ! L’on s’apercevrait peut-être alors que le Feu est l’essentiel artiste de notre temps et que, si pitoyable quand elle est crue, l’architecture du siècle devient imposante, presque superbe, lorsqu’elle est cuite44.

No que diz respeito ao material arquitetônico, a pedra começa a ver seu lugar

destronado pelo aparecimento do ferro. Esse novo material, ou melhor, as novas técnicas de

tratamento desse antigo material (que vislumbravam, à época, possibilidades de edifícios

construídos com ferro) já vinham sendo usadas na estrutura de estufas e estações ferroviárias.

Na verdade, assim como a luz elétrica, seu uso deliberado nas ruas existe, na década de 1870,

somente como possibilidade. Será nas duas últimas décadas do século XIX que haverá

grandes mudanças de maneira generalizada.45

44 “Para embelezar essa horrorosa Paris que devemos à miserável liberalidade dos pedreiros modernos, não poderíamos [...] semear, aqui e acolá, algumas ruínas, queimar a Bolsa, a Madeleine, o Ministério da Guerra, a igreja São Xavier, a Ópera e o Odéon, todas as sobras de uma arte infame? Perceberíamos, talvez, então, que o Fogo é o artista essencial de nosso tempo e que, tão lastimável enquanto crua, a arquitetura do século se torna imponente, quase espetacular, quando cozida.” HUYSMANS. Écrits sur l’art, 2008, p. 341-342. 45 Cf. THORAVAL, op. cit., p. 446-448.

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A pedra que, tal qual assinala o escritor no artigo Le fer, do mesmo Certains, encontra

o auge do trabalho artístico na arquitetura gótica, parece ter seu uso completamente

desgastado, como se os edifícios contemporâneos ao autor, portanto novos àquela época,

parecessem mais velhos e tristes do que os góticos e antigos. Entre as mais recentes

construções estavam a Ópera Garnier e o palácio do Trocadéro:

Un fait est certain: l’époque n’a produit aucun architecte et ne s’est personnifiée dans aucun style. Après le Roman, le Gothique, la Renaissance, l’architecture se traîne, découvre encore de nouvelles combinaisons de pierres, s’engraisse dans les mauvaises emphases du Louis XIV, maigrit dans le Rococo, meurt d’anémie, dès que la Révolution naît. [...] La suprême beauté des âges pieux a créé l’art magnifique, presque surhumain, du Gothique; l’époque de la ribaudaille utilitaire que nous traversons n’a plus rien à réclamer de la pierre [...].46

A introdução do ferro na arquitetura é experimentada desde o reinado de Louis-

Philippe (1830-1848), mas se restringia à decoração e equipamento de interior, em uma

aplicação ou em uma parte associada à estrutura de pedra. Porém, há a previsão de que seja

possível ter o ferro como base estrutural de um edifício, não só pelas estações de trem e

estufas já existentes. Nas exposições universais, como a de 188947, era possível sentir a

atmosfera da modernidade arquitetônica ligada ao ferro e à busca de um novo estilo, ainda

que, segundo Huysmans, “ces bâtiments tout provisoires ont été érigés pour satisfaire le goût

des cambrousiers de la province et des rastaquouères hameçonnés dans leur pays par nos

annonces”48.

46 “Uma coisa é certa: nossa época não produziu nenhum arquiteto e não se personalizou em nenhum estilo. Após o Românico, o Gótico, o Renascimento, a arquitetura se arrasta, descobre ainda novas combinações de pedras, engorda na ostentação de mau gosto do estilo Luís XIV, emagrece no Rococó, morre de anemia assim que a Revolução nasce. [...] A suprema beleza das eras pias criou a arte magnífica, quase sobre-humana, do Gótico; a época de porcarias utilitárias que atravessamos não tem mais nada a exigir da pedra”. HUYSMANS. Écrits sur l’art, 2008, p. 346. 47 Essa Exposição é marcada pelos avanços técnicos do ferro não só pela Galeria das Máquinas de Dutert e Constamin, como pela Torre Eiffel. Cf. Ibidem, p. 447. À torre Eiffel é atribuída, nesse artigo de Huysmans (Lefer), uma feiúra desconcertante. Cf. Ibidem, p. 348. 48 «[...] esses edifícios, totalmente provisórios, foram erguidos para satisfazer o gosto dos camponeses do interior e dos rastaqueras fisgados em suas regiões por nossos anúncios”. Ibidem, p. 346.

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As Exposições aliaram o novo tratamento do ferro ao espírito fugaz da modernidade,

já que se montavam e desmontavam estruturas com rapidez. Eis o moderno que Huysmans

observa e critica. Seu gosto é tão avesso ao espaço que vê em sua época, que Huysmans

direciona seu olhar diretamente à Antiguidade, à Idade Média e à Renascença. Nem o século

de Louis XIV e o do Rococó se salvam das críticas estéticas huysmansianas. O que o autor

sinaliza é que, do greco-romano ao gótico e renascentista, há estilos de época puros, com suas

regras matemáticas e seus tratamentos rigorosos do material, ao contrário da arte produzida do

Barroco em diante, sobretudo a sucessão de estilos oitocentistas, que misturam elementos e

linguagens anteriores, tendendo ao hibridismo e a impureza.

É curioso notar que, em seus artigos de crítica de arte da década de 1880 (como

aqueles agrupados em Certains), Huysmans se opõe claramente ao caráter heterogêneo da

Paris que vê e, ao mesmo tempo, ao nos depararmos com seus romances e poemas em prosa

da década de 1870, o que se nota é a descrição minuciosa do território urbano da “sua” Paris:

heterogênea e impura, que “n’a produit aucun architecte et ne s’est personnifiée dans aucun

style”.49

É, portanto, interessante confrontar esses dois momentos da produção huysmansiana.

Trata-se de duas posições diferentes50. De um lado, os romances e poemas em prosa

escolhidos como objeto dessa pesquisa, que estabelecem um recorte temporal entre 1874 e

1881 – fase em que Huysmans mais se aproxima de uma posição no campo que está

consonante com os naturalistas liderados por Émile Zola. Por outro, as críticas de arte

referentes à arquitetura e à pintura, publicadas entre 1883 e 1889, que já apontam para um

outro momento da produção de Huysmans, em que o escritor se distancia dos naturalistas.

49 “[...] não produziu nenhum arquiteto e não se personificou em nenhum estilo”. Ibidem, p. 345. 50 De acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu, conceito de “trajetória” é considerado como uma série de posições distintas ocupadas por um agente num espaço em constante transformação. Cf. BOURDIEU, Pierre. Raisons Pratiques, sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994, p. 78.

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Aqui, é importante trazer à luz tais críticas porque, através dos choques que estabelecem com

o primeiro período de produção literária de Huysmans, elas acabam por evidenciar as tomadas

de posição do escritor no campo e seu posicionamento enunciativo nos textos escolhidos.

2.5.1.2 – Pintura

Zola, ao descrever minuciosamente a sociedade do Segundo Império, criticou

diretamente a sua moral política e social. Nota-se um cuidado enorme em dar conta dos

personagens e do espaço que os rodeia, há uma importância em conhecer e reconhecer esse

território, ainda que seja para criticá-lo.

É sabido que a descrição minuciosa é uma das principais características dos escritores

naturalistas – e não se pode negar a adequação de Huysmans, nesses anos da década de 1870,

a esse grupo. Como Zola, Huysmans descreve, com toda a atenção, uma Paris que parece não

lhe agradar, ou melhor, ele constrói seu discurso, extremamente cuidadoso, do espaço e dos

personagens parisienses, tendo uma posição ambígua, em que ora recusa, e ora se deixa

encantar por esse ambiente. Por exemplo, na descrição da rue de la Gaieté que se encontra no

poema em prosa Une Goguette, há um distanciamento crítico em relação ao espaço, quando

escreve: “Ce n’est même pas le marchand de vins des quartiers populeux avec ses barreaux

rouges et ses raisins en tôle bleue, au-dessus de la porte, c’est le vulgaire mastroquet des

anciens temps [...]”.51 Da mesma maneira, Huysmans se deixa encantar pela oferta de

entretenimento da mesma rua ao qualificar: “[...] non loin de l’extraordinaire bal Grados, rue

de La Gaieté”.52

51 “[...] não é nem o vendedor de vinho dos bairros populosos, com barras vermelhas e suas uvas de latão azul sobre a porta, é o vulgar pé-sujo de outrora”. HUYSMANS, J.-K. Croquis Parisiens. Paris: La Bibliothèque des Arts, 1994, p.215. 52 “[...] não muito distante do extraordinário baile Grados, na rua da Gaité”. Ibidem, p. 214

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Enquanto escritor que escolhe, durante certo momento de sua trajetória, um espaço de

possíveis em questão na produção literária naturalista53, Huysmans defende a legitimidade da

formação individual de cada escritor ou artista, ou seja, afirma que as obras produzidas devem

condizer com o que seu produtor conhece, com o que ele viu. Torna-se, portanto, para ele,

fictícia e mentirosa a produção artística que tenta representar o que não faz verdadeiramente

parte do que o artista vê e experimenta. Tal opinião é enfatizada no artigo, ainda dentro de

Certains, em que Huysmans analisa a obra do pintor Millet, doze anos após sua morte.

Joris-Karl Huysmans, ao escrever esse artigo,

está diante da exposição Jean-François Millet54, na

Escola de Belas-Artes, em 1887 e, apesar de a

imprensa da época conferir ao pintor valores de grande

artista, como testemunha Huysmans, Millet não pinta o

que Huysmans considera como a realidade. Seus

quadros mais famosos tratam dos trabalhos dos camponeses e, ao que parece, representam

esse universo tomando os personagens por vítimas diante dos trabalhos exaustivos do campo.

Joris-Karl não consegue considerar verdadeiras essas pinturas, já que, em comparação com o

operário parisiense, o trabalhador campesino não parece tão sacrificado. Huysmans não julga

legítima a imagem do camponês exausto pintado por Millet, já que o operário da cidade vive

em condições mais desumanas. Enquanto o camponês respira ao ar livre e se abriga no

inverno, o trabalhador urbano passa o dia inteiro em ambiente fechado, com ar rarefeito e se

alimenta mal. Segundo Huysmans, Millet equivoca-se na representação do tema campestre, já

53 O espaço de possíveis é o espaço de tomadas de posições que se relacionam, no qual o agente enuncia em relação com um entrecruzamento de enunciações e não isoladamente. Cf. BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art, p. 384. O posicionamento de Huysmans seria outro, por exemplo se estivesse em outro estado do campo, limitado, portanto, a se relacionar com outros agentes e posicionamentos. 54 Ao lado se pode observar a tela de Millet L’angélus (1857-1859) que se encontra no Musée d’Orsay,(dimensões: 55,5 x 66). FERMIGIER, André. Millet. Genève: Albert Skira, 1977, p. 15.

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que, por não conhecer verdadeiramente o tema, produz uma imagem inverossímil do

camponês, sobretudo quando este último é comparado ao operário urbano:

Millet changeait en d’innocents forçats, en de maladroits rhéteurs, les paysans des environs de Fontainebleau, les gens de la Brie. Alors qu’il représente un paysan, éreinté, appuyé sur sa houe [...] il ment, car il est vraiment temps de le dire. [...] le paysan, exterminé par d’incessants labeurs [...] n’existe pas. [...] mettez en face de cet homme [...] un ouvrier de Paris, et voyez la différence.55

Além da questão mimética, em que o artista retrata o que vê56, Huysmans acredita que

a formação do artista permite que este último escolha certos temas a ser representados, ao

mesmo tempo em que impossibilita outros. A formação de Millet não condiz com alguns

tratamentos escolhidos nas telas dedicadas à vida campesina, como aquele dado aos temas

bíblicos, por exemplo. Conforme as palavras de Huysmans :

Millet avait suivi l’école, dans son village, puisqu’il était venu étudier la peinture chez Delaroche, à Paris ; c’est toujours la même chose ; nous sommes en face d’un fils de paysan [...] lâché, dans la capitale, au milieu de peintres non moins ignares mais dont l’esprit populacier s’est dégrossi dans des estaminets et des crémeries. En fait de lectures, Millet avait sans doute connu la fameuse rengaine de La Bruyère dont j’ai parlé ; il avait tâtonné dans les épisodes de la Bible qu’il n’était déjà plus ni assez simple, ni assez affiné pour comprendre.57

Ao confrontar a crítica a respeito da exposição em homenagem a Millet com a crítica

do salão de 1879 (oito anos antes, mesma época em que publica Les Soeurs Vatard), vemos

que Huysmans já explicita a problemática da formação do artista, em desarmonia com sua

produção. Em consonância com os ideais naturalistas, o crítico afirma que alguém saído dos

55 « Millet transformava em inocentes trabalhadores forçados, em mestres de retórica desajeitados, os camponeses dos arredores de Fontainebleau, as pessoas da Brie. Quando ele representa um camponês extenuado, apoiado sobre sua enxada [...] ele mente, porque é realmente tempo de dizer, [...] o camponês, exterminado por incessantes labores [...] não existe. [...] coloque diante desse homem [...] um operário de Paris e veja a diferença”. HUYSMANS, Écrits sur l’art, 2008, p. 356. 56 “Je fais ce que je vois, ce que je sens et ce que j’ai vécu ». « Faço o que vejo, o que sinto e o que vivi ». HUYSMANS, J.-K. Avant-Propos. In :____. Marthe, histoire d’une fille. Les Soeurs Vatard. Paris : Union générale d’Éditions, 1975, p. 26. 57 “Millet frequentara a escola em seu vilarejo, já que só depois viera estudar pintura com Delaroche, em Paris; é sempre a mesma coisa; estamos diante de um filho de camponês [...] largado na capital, no meio de pintores não menos incultos mas cujo espírito popular diminuiu em cabarés e leiterias. Em matéria de leituras, Millet teria, provavelmente, conhecido a famosa ladainha de La Bruyère de que falei; ele andara às cegas por episódios da Bíblia, os quais ele não era nem simples, nem refinado o bastante para compreender”. HUYSMANS, Écrits sur l’art, 2008, p. 358.

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meios populares não está legitimado a representar os valores das classes econômica e

socialmente mais favorecidas.

No salão de 1879, os elogios de Huysmans crítico de arte se voltam para os artistas

Independentes (grupo de pintores que não expõem nos salões oficiais e que, nesse momento,

não podiam ser diferenciados dos pintores Impressionistas). No que concerne às críticas

negativas, o alvo é o grupo de pintores oficiais, ou seja, aqueles ligados à Escola de Belas

Artes, que ignoram as iniciativas naturalistas – seja na poesia, no romance, ou na pintura – de

ruptura com as antigas fórmulas e convenções. Huysmans considera, em suma, que:

Tenez que la plupart n’ont reçu aucune éducation, qu’ils n’ont rien vu et rien lu. [...] Moins un peintre a reçu d’éducation, et plus il veut faire du grand art ou de la peinture à sentiments. Un peintre élevé chez des ouvriers ne représentera jamais des ouvriers mais bien des gens en habit noir, qu’il ne connaît pas.58

O fato de pintores como Millet saírem da Escola de Belas Artes e se dedicarem aos

temas da pintura de história parece ser a causa da crítica huysmansiana. Indo além, Huysmans

afirma que a distinção entre esses artistas e aqueles que produzem algo digno de ser analisado

não está no tema escolhido, mas no tratamento dado ao assunto. Desse modo, o escritor não

só se posiciona a favor do artista que retrata estritamente o que vê, como parece fazer alusão à

própria escrita. São recorrentes em sua obra os temas da miséria metropolitana, da

ambientação decadente, dos personagens marginalizados. Sua linguagem – que mistura gírias

de grupos populares ao francês precioso, preenchido com metáforas e neologismos – trata o

ambiente marginal através de uma escrita híbrida. O tema chulo se transforma, na escrita

huysmansiana, em obra tecnicamente bem esculpida.59

58“Considere que a maior parte não recebeu nenhuma educação, que eles não viram nada e não leram nada. [...] Quanto menos educação um pintor tem, mais ele quer fazer uma arte nobre ou pintura com sentimento. Um pintor educado entre os operários nunca representará operários, mas pessoas em roupas de gala, que ele não conhece”. Ibidem, p.48-49. 59 A questão da linguagem dos meios populares não foi privilégio de Huysmans, mas se torna, no século XIX, um terreno de pesquisas antropológicas, visto a quantidade de dicionários e estudos sobre o assunto. Dentro da tradição oitocentista de revisitação da temática parisiense, está inserido o estudo das gírias. Em meio aos documentos aos quais Huysmans teve acesso, em sua trajetória de leitor, encontra-se o livro 7 da quarta parte de

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Na verdade, trazer a linguagem popular para a escrita culta é uma característica

frequente no grupo naturalista. Dentro da pesquisa “arqueológica” dos escritores que

colaboraram, de um modo ou de outro, para a difusão das teorias de Zola, o preciosismo das

palavras, em meio a gírias, faz-se recorrente. Além disso, é importante notar que Huysmans

não só vem de uma família de artistas plásticos holandeses, como traduz seu nome francês –

Georges-Charles – para o equivalente em holandês – Joris-Karl -, como que reafirmando sua

filiação à tradicional escola pictórica holandesa. Desse modo, o escritor entra em conflito com

a formação rasa dos pintores contemporâneos a ele. Trazendo consigo o capital cultural

hereditário relacionado à pintura, Huysmans toma para si a legitimidade do crítico de arte, tal

qual observa Fernande Zayed:

Huysmans nasceu pintor, como outros escritores nascem poetas, romancistas ou dramaturgos. Em sua obra, a visão é incontestavelmente o sentido mais desenvolvido e seu gosto pela descrição, uma tendência irreprimível. Ele os recebeu por hereditariedade, os desenvolveu pelo exercício, os manteve pela frequentação dos artistas e pela visita aos museus.60

De acordo com esse Huysmans, filiado às artes pictóricas, Millet seria, portanto, um

ex-camponês (ainda que talentoso) que forja sua rusticidade com o que aprendeu em

cabarés61; ele não poderia, dessa forma, utilizar temáticas da pintura de história para tratar

seus camponeses, pois sua formação não era erudita. Como ele, segundo a crítica

huysmansiana, há muitos outros pintores nos meios populares dos cafés-concertos tentando se

refinar em leituras, mas que continuam com uma formação rasa.

Esse meio popular das canções de café-concerto e music-hall, onde artistas se

misturam aos trabalhadores, onde a poesia é ambígua e se aproxima da grosseria, será

Les Misérables, de Victor Hugo. Cf. BERNARD, Jean-Pierre A. Les Deux Paris, les représentations de Paris dans la seconde moitié du XIXe siècle. Seyssel : Champ Vallon, 2001, p. 243. 60 « Huysmans est né peintre, comme d’autres écrivains naissent poètes, romanciers ou dramaturges. Chez lui, la vision est sans conteste le sens le plus développé, et son goût pour la description une tendance incoercible. Il les a reçus par hérédité, les a développés par l’exercice, les a entretenus par la fréquentation des artistes et par la visite des musées ». ZAYED, Fernande. Huysmans peintre de son époque. Paris : A.G. Nizet, 1973, p. XV. 61 Cf. HUYSMANS, Écrits sur l’art, 2008, p. 358.

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representado por Huysmans na primeira fase de sua trajetória como escritor. O cenário que

Joris-Karl supõe ter ambientado a formação artística de Millet – cabarés ocupados por artistas

rudes vindos da província – se presentifica com frequência na primeira fase de sua trajetória,

que reúne romances e poemas em prosa. Em seus dois primeiros romances, Marthe, histoire

d’une fille (1876) e Les Soeurs Vatard (1879), há descrições detalhadas de tais cabarés, ao

passo que nos poemas em prosa, de estrutura mais fragmentada e inacabada, como se fossem

croquis, essas salas de divertimento da margem esquerda do Sena aparecem em rápidas

imagens construídas por linhas que parecem escritas com rapidez. Num caso, ou no outro,

suas páginas são habitadas por personagens excluídos da Paris projetada pelo barão

Haussmann.

2.5.2 – Romances e poemas em prosa

Quando J.-K. Huysmans descreve uma rive gauche esquecida, anacrônica, pontuada

por suas salas de music-hall decadentes, o que está por trás do cenário é a resistência da velha

Paris ao avanço industrial. Enquanto o tout Paris despendia seu dinheiro nos grandes

bulevares da rive droite, o que Huysmans nos oferece como imagem é a massa popular em

busca de fuga da realidade, no fim de um dia de trabalho.

Um de seus biógrafos, Alain Vircondelet, comenta as reformas da cidade que o jovem

Georges-Charles (Joris-Karl), dez anos antes de escrever Marthe, observa:

Haussmann recortava, como um cirurgião, os centros antigos de Paris, suas velhas casas de madeira, seus bairros onde se amontoava de qualquer maneira uma humanidade heterogênea. Os pobres estavam exilados nos subúrbios anêmicos [...] a boemia era perseguida, encurralada em bairros já destinados aos planos de destruição.62

62 “Haussmann dépeçait comme un chirurgien les cœurs anciens de Paris, ses vieilles demeures à colombages, ses quartiers où s’entassait pêle-mêle une humanité composite. Les pauvres étaient exilés dans les banlieues anémiées [...] La bohème était pourchasée, acculée dans les quartiers voués déjà sur plans à la destruction ». VIRCONDELET, Alain. J.-K. Huysmans. Paris : Plon, 1990, p. 50.

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Apesar de se colocar mais à vontade na margem esquerda do que na direita, e de

afirmar esse posicionamento nas escolhas temáticas e topográficas ao longo de toda a sua

trajetória enquanto escritor e crítico, Huysmans olhou também para a metade mais ao norte da

capital, descrevendo, entre outros lugares, uma sala de variedades, na margem direita. Tal

posicionamento que parece se dar nesse estado do campo em que se encontra Huysmans é, de

acordo com a teoria de Bourdieu, uma tomada de posição dentro da rede de relações entre

numerosas posições no campo, em que todas as posições dependem de sua situação na

estrutura do próprio campo.

A tomada de posição analisada nesta dissertação se desenvolverá a partir da escolha do

escritor pelo tema e pela topografia do teatro de variedades nas passagens escolhidas dos

romances e textos curtos. Nesse sentido, apesar de ser levado em consideração seu

posicionamento relacionado ao estilo, ou ao gênero, por exemplo, a situação espacial do teatro

popular vem à frente de todos e será analisado no universo de relações com outras tomadas de

posição possíveis. Isso quer dizer que, nesta dissertação, o recorte escolhido trata do teatro de

variedades e este serve para que se discuta o posicionamento huysmansiano dentro de um

estado específico do campo.63

Então, se vemos em Marthe e em Soeurs Vattard o quartier de Montparnasse, ora com

pouco público em seus teatros, ora com a algazarra de uma platéia bastante popular – além de

uma decoração de mau gosto -, observamos, em 1879 (data, de acordo com o título, do

poema-em-prosa Les Folies-Bergère en 1879), o music-hall da rive droite, qual seja, as

Folies-Bergère, com um grande público circulando em um lugar da moda.

63 Consideramos aqui “posição” e “tomada de posição” como as conceitua Bourdieu. Tomada de posição : as estratégias dos agentes e das instituições engajados nas lutas literárias (estratégias estilísticas, políticas, éticas, etc...). Posição no campo: a distribuição do capital simbólico que possibilita um lugar legitimado em relação às outras forças do campo (reconhecimento interno ou notoriedade externa). Cf. BOURDIEU. Raisons pratiques; sur la théorie de l’action, p. 71.

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As classes sociais, à primeira década da Terceira República, podem ser divididas no

plano da cidade de Paris, sem que haja dificuldade em se reconhecer o mapeamento da

circulação do público de teatro nos bairros, distritos e margens. Entretanto, existe uma mistura

de classes no começo do século XIX que já se perdeu nos anos de 1870, sinalizada por

Simone Delattre:

Passaríamos, assim, de uma frequentação socialmente mista dos lugares de prazer, pelos parisienses, no começo do século XIX (mistura da qual as guinguettes, os teatros do bulevar do Templo, o carnaval e as festas públicas seriam o local de fusão) a uma dissociação crescente entre os divertimentos do povo e aqueles da elite, na medida em que uma cultura de massa, modelada pelas classes médias, emergiria e absorveria as práticas festivas anteriores.64

Simone Delattre, ao mapear os estabelecimentos de entretenimento noturno, no

período entre a Monarquia de Julho (1830) e o Segundo Império (1852), afirma que da

topografia parisiense dos prazeres noturnos, a rive gauche se encontra excluída, tendo esse

contraste entre as margens do Sena sido acentuado pelas obras do governo de Napoleão III.65

O que observamos, no entanto, ao nos debruçar sobre a primeira década de produção literária

de Joris-Karl Huysmans, são as descrições de salas de espetáculo da rive gauche que, apesar

de miseráveis, estão repletas e histericamente animadas pelo riso popular.

Entretanto, os espetáculos descritos nos textos huysmansianos não diferem muito de

uma margem a outra; na verdade, trata-se de espetáculos de variedades, com grande influência

do antigo acontecimento teatral de feira: exposição de técnicas corporais em contraponto com

o teatro clássico francês, dos quais falaremos adiante. O que parece diferir é justamente a

circulação no espaço urbano: o tout Paris nas casas de espetáculo dos grandes bulevares e a

classe trabalhadora nas salas dos arredores de Montparnasse. Essa organização topográfica,

64 “On passerait ainsi d’une fréquentation socialement mixte des lieux de plaisir par les Parisiens au début du XIXe siècle (mixité dont les guinguettes, les théâtres du boulevard du Temple, le carnaval et les fêtes publiques seraient le creuset) à une dissociation croissante entre les divertissements du peuple et ceux de l’élite, à mesure qu’une culture de masse modelée par les classes moyennes émergerait et absorberait les pratiques festives antérieures ». DELATTRE, op. cit., p. 214. 65 Cf. Ibidem, p. 213-214.

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portanto, que estabelece uma circulação específica de público, determina, igualmente, a

relação palco-platéia, a decoração de interior, a indumentária, o texto, o preço do ingresso:

alguns dos elementos que compõem a cenografia enunciativa de Huysmans no período entre

1874 e 1881.

O espaço no qual o enunciador pode articular a legitimação de seu enunciado, as

condições de seu surgimento e, finalmente, seu posicionamento denomina-se cenografia

enunciativa, de acordo com Dominique Maingueneau. Trata-se do eixo em torno do qual se

movimentarão as negociações entre enunciador, leitor, contexto histórico e topográfico.66

Complementarmente às cenas englobante (o discurso literário) e genérica67 (o romance

e o poema em prosa), a cenografia enunciativa estudada na presente pesquisa se mostra

através das descrições de espaços teatrais dedicados ao espetáculo de variedades. Dentro

desse universo, reconhece-se em Huysmans o diálogo entre a necessidade imagética de tal

teatro e a sua escrita, repleta de imagens. Estão em relação, também, os detalhes que

compõem suas descrições e seu caráter de pintor colorista, traduzido em texto literário. A

cena que permite, portanto, a enunciação huysmansiana, no período entre 1876 e 1881,

estabelece uma relação dialógica entre as condições de sua existência e sua legitimação no

campo.

A enunciação de Joris-Karl Huysmans não será, portanto, analisada alheia a outras

enunciações. A cenografia enunciativa não pretende que “a obra surja de um puro alhures

espacial e temporal, que exista por si mesma, subtraída a todo processo de comunicação entre

um enunciador e um co-enunciador especificados”68, mas traz consigo a memória de outras

enunciações. Quando, por exemplo, o leitor se encontra diante de um poema em prosa como

Les Folies-Bergère en 1879, o processo de enunciação entre escrita e leitura evoca os outros

66 MAINGUENEAU, op. cit., p. 249. 67 Ibidem, p. 251. 68 Ibidem, p. 254.

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poemas em prosa escritos até então, estabelecendo um conjunto de diálogos possíveis, aos

quais Huysmans se filia para enunciar, naquele contexto, as Folies-Bergère, como, por

exemplo, os Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire.

Para o sociólogo Pierre Bourdieu o espaço no qual um escritor produz uma obra é um

campo de forças que se relacionam através de alianças e choques. De maneira geral, para

reconhecer a obra dentro desse campo, é preciso, portanto, buscar os elementos formadores do

campo, tais como o poder político oficial, as oposições ao governo, os escritores, artistas e

editores aliados aos valores dominantes e aqueles que se opõem a esses valores, num período

determinado, num espaço específico.69

Dentro desse campo, que é homólogo ao campo econômico, circulam agentes

munidos (ou não) de capital econômico (o dinheiro), capital cultural (a formação de cada

agente do campo), capital social (as relações estabelecidas entre os agentes) e capital

simbólico (o prestígio). Um escritor pode se impor nesse campo não apenas por sua

genialidade, mas pelos capitais que possui, pelas escolhas que faz dentro de seu espaço de

possíveis, ou seja, de acordo com os outros escritores e artistas a quem se filia.

Com filiações múltiplas, a cenografia desse período de produção huysmansiana se alia

a cenas genéricas distintas. Por um lado, seus romances se impõem no campo de produção

literária filiados aos ideais naturalistas propostos por Zola, mas já impregnados de

picturalidade presente em sua primeira fatura (Le Drageoir aux épices) e segundo o capital

cultural proveniente de sua origem familiar; por outro lado, em seus poemas em prosa,

verifica-se o diálogo com a fugacidade moderna da poesia baudelairiana. Ambas as filiações

se entrecruzam, nunca totalmente distintas, tampouco idênticas.

69 Cf. BOURDIEU, Les Règles de l’art, p. 353.

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Quanto à proximidade com os escritores naturalistas que frequentavam as reuniões na

propriedade adquirida por Zola com o sucesso financeiro de L’Assommoir, em Médan, quais

sejam, Léon Hennique, Paul Alexis, Guy de Maupassant, Henri Céard e Octave Mirbeau, ao

que parece, trata-se de uma união que visa a imposição de um lugar no campo, uma tentativa

de legitimação no campo de produção literária do grupo e, também, de cada escritor. Através

das correspondências trocadas entre os adeptos da causa naturalista à época (que serão citadas

e comentadas no capítulo 4), é possível reconhecer a dura batalha de Zola e seus discípulos a

fim de obter prestígio perante a crítica e o público leitor. Dessa maneira, parece natural que

alguns escritores se agrupem sob o título de “naturalistas” para aumentar suas chances de

legitimação nesse campo de forças, ainda que suas escritas tenham características distintas.

É recorrente encontrar comentários sobre esses jovens escritores que estabelecem uma

divisão do calendário naturalista baseada no jantar de Trapp, nas Soirées de Médan, e no

Manifesto dos 5, considerando que tais eventos correspondem, respectivamente, ao

nascimento, à maturação e ao declínio desse movimento literário. Pedro Paulo Catharina

discorda, no entanto e de acordo com David Baguley, dessa perspectiva na medida em que,

mais que um culto aos mesmos ideais, o grupo reconhecido como “naturalista” perpetua esse

título através de mitos arquitetados midiaticamente. Por exemplo, a propósito do suposto rito

criador do movimento Naturalista, o jantar de Trapp, Catharina observa:

Anunciado com antecedência em alguns jornais, como em La République des Lettres e Les Cloches de Paris, e causando antecipadamente uma certa polêmica, o banquete nada mais foi do que uma jogada publicitária para chamar a atenção sobre o grupo de jovens autores praticamente desconhecidos, que admiravam escritores já reconhecidos, como Flaubert e Goncourt, e formavam um magro esquadrão de batalha em torno das polêmicas levantadas pelos romances de Zola [...]70

70 CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Estética Naturalista e configurações da modernidade. In:MELLO, Celina M. M. de & CATHARINA, Pedro Paulo G. F. Crítica e movimentos estéticos; configurações discursivas do campo literário. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 107.

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O grupo que se forma a partir de então, e que será conhecido como o grupo de Médan,

devido à publicação coletiva Les Soirées de Médan, constituía-se de escritores ainda

ignorados pelo grande público de leitores e, se estavam reunidos em torno de Zola, era muito

mais para defender sua obra dos ataques da crítica do que por compartilharem uma mesma

estética literária:

O problema da coesão do grupo naturalista fez correr muita tinta. Curiosa escola literária na qual os membros não compartilham as doutrinas de seu mestre! A própria questão de uma estética comum é uma causa principal de desacordo! [...] A história da escola de Médan, como sabemos, não é desprovida de coincidências, curiosidades e de contradições. 71

Huysmans está, de fato, comprometido, durante certo período, com a luta de inversão

do estado do campo, que, àquela altura, bombardeava Zola com críticas a uma suposta

pornografia literária. Baguley afirma:

Quanto a Huysmans, ele é, antes de 1880, o mais ativo dos jovens associados ao autor dos Rougon-Macquart, o mais vigoroso dos defensores de Zola em seu Émile Zola et l’Assommoir (1877), o autor de dois dos primeiros romances naturalistas mais marcantes, Marthe, histoire d’une fille (1876) e Les Soeurs Vatard (1879), este último dedicado a Zola por “seu fervoroso admirador e devotado amigo”. Mas Huysmans guarda um silêncio discreto sobre as idéias do “mestre de Médan” e, mesmo antes de 1880, vem a se arrepender de seus primeiros entusiasmos e de sua dedicação naturalistas.72

Quanto à filiação ao poema em prosa do Baudelaire de Spleen de Paris, cabe lembrar

que o período de composição dos poemas em prosa baudelairianos foi de angústia, doença e

cinismo73. A imagem de um escritor incompreendido, tal qual Baudelaire se mostra nessa fase

final de produção, aproxima-se bastante dos personagens e ambientes escolhidos por

71 “Le problème de la cohésion du groupe naturaliste a fait couler beacoup d’encre. Curieuse école littéraire dans laquelle les membres ne partagent guère les doctrines de leur maître ! La question même d’une esthétique commune est une cause principale de désaccord ! [...] L’histoire de l’école de Médan, on le sait, n’est pas dépourvue de coïncidences, de curiosités et des contradictions ». BAGULEY, David. Le Naturalisme et ses genres. Paris : Nathan, 1995, p. 22. 72 “Quant à Huysmans, il est, avant 1880, le plus actif des jeunes associés de l’auteur des Rougon-Macquart, le plus vigoureux des défenseurs de Zola par son « Émile Zola et L’Assommoir » (1877), l’auteur de deux des premiers romans naturalistes les plus marquants, Marthe, histoire d’une fille (1876) et Les Soeurs Vatard (1879), celui-ci dédié à Zola par « son fervent admirateur et dévoué ami ». Mais Huysmans garde un silence discret sur les idées du « maître de Médan » et, même avant 1880, en vient à se repentir des ses premiers enthousiasmes et de son dévouement naturalistes ». Ibidem, p. 23. 73 Cf. Introdução de Max Milner para BAUDELAIRE, Charles. Le Spleen de Paris, petits poèmes en prose.Paris : Imprimerie Nationale, 1979, p. 9.

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Huysmans. Personagens paratópicos como a prostituta e o artista de music-hall, habitantes do

espaço noturno parisiense, resgatam a atmosfera da Paris de Baudelaire. Além disso, a rápida

escrita dos croquis literários de Huysmans sinalizam a fugacidade metropolitana exaltada por

Baudelaire.

No que tange à forma do poema em prosa, gênero que Baudelaire atribui a Aloysius

Bertrand (1807-1841), há o lirismo e a condensação da poesia, combinados à falta de medida

da prosa. Nas palavras de Baudelaire:

Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante ágil e bastante violenta para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobresaltos da consciência?74

Baudelaire sonha, então, com uma escrita que exprima os estados de sua alma, a

musicalidade do texto, típico do lirismo da poesia, porém sem que haja o aprisionamento de

tal texto às regras rítmicas tradicionais. A necessidade de uma nova poesia parece estar em

consonância com a vivência urbana de uma metrópole, quer dizer, com a topografia parisiense

que se modifica diante do poeta. Dessa forma, ele afirma: “É sobretudo da frequentação das

cidades enormes, é do cruzamento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal

obsessivo”.75

Celina Moreira de Mello reafirma o caráter visual da escrita baudelairiana desse

período, em consonância com o contexto espaço-temporal em que se encontra o poeta:

O poeta publicará, igualmente, em 1862, Le Spleen de Paris [O spleen de Paris], republicado em 1864 com o título de Pequenos poemas em prosa (Petits Poèmes en prose), livro que reúne pequenas cenas urbanas, em que Baudelaire experimenta

74 « Quel est celui de nous qui n’a pas, dans ses jours d’ambition, rêvé le miracle d’une prose poétique, musicale sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme, aux ondulations de la rêverie, aux soubresauts de la conscience ? ». Ibidem, p. 54. 75 “ C’est surtout de la fréquentation des villes énormes, c’est du croisement de leurs innombrables rapports qui naît cet idéal obsédant ». Idem.

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uma nova forma poética, em prosa, mais adequada ao leitor de seu tempo e voltada sobretudo para a visualidade da cidade moderna.76

Nesse reconhecimento de uma escrita da metrópole, meio poesia, meio prosa, é

estabelecida uma relação intertextual entre Huysmans e Baudelaire. Ambos tentam “rabiscar”

literariamente as multidões em busca de evasão nos estabelecimentos dedicados às diversões

cênicas, por exemplo. Por um lado, Baudelaire, no poema Le vieux saltimbanque, descreve os

números de destreza e força através de “Hércules, orgulhosos da enormidade de seus

membros, sem testa e sem crânio, como os orangotangos, se exibiam majestuosamente em

suas malhas lavadas na véspera para a circunstância”.77 Huysmans, por sua vez, em La rive

gauche, observa um homem de certa idade, que levanta pesos pesados: “Les muscles de son

cou s’enflaient et sillonnaient la chair comme des grosses cordes.”78

Baudelaire, no mesmo poema, descreve: “[...] as dançarinas, belas como fadas ou

princesas, saltavam e davam cambalhotas [...]”79. Em Les Folies Bergères em 1879,

Huysmans observa: “Le ballet commence. Le décor représente un vague intérieur de sérail,

plein de femmes encapuchonnées qui se dandinent comme des ourses ».80

Dessa maneira, é possível reconhecer uma filiação de Huysmans em relação a

Baudelaire, no que tange o poema em prosa, assim como há um diálogo claramente

estabelecido entre os romances huysmansianos analisados nessa pesquisa e a estética literária

naturalista proposta por Zola. De toda maneira, através das obras citadas neste capítulo,

76 MELLO, Celina Maria Moreira de. Baudelaire e a poesia da “Cidade Grande”. In: GUBERMAN, Mariluci & PEREIRA, Diana Araújo (org.). Provocações da cidade. Rio de Janeiro : M. Guberman, D. Araujo Pereira, 2009, p. 19. 77 “Hercules, fiers de l’énormeté de leurs membres, sans front et sans crâne, comme les ourangs-tangs, se prélassaient majestueusement sous les maillots lavés la veille pour la circonstance ». BAUDELAIRE, op. cit., p. 93. 78 « Os músculos de seu pescoço se inflavam e sulcavam a carne como cordas grossas”. HUYSMANS, Joris-Karl. Le Drageoir aux Épices ; suivi de textes inédits. Paris : Honoré Champion, 2003, p. 133. 79 “ [...] les danseuses, belles comme des fées ou des princesses, sautaient et cabriolaient [...] ». BAUDELAIRE, op. cit., p. 93. 80 “O balé começa. O cenário representa um vago interior de harém, cheio de mulheres encapuzadas que se balançam como ursas”. HUYSMANS, Croquis Parisiens, p. 27.

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observa-se uma tradição que se constrói ao longo do século XIX em que a topografia

parisiense é evidenciada. Nessa espacialidade, há um nítido confronto entre as duas margens

do rio Sena e um contínuo jogo de conquista de territórios entre grupos de artistas e escritores,

que se posicionam através de suas enunciações.

Visto que a análise do discurso huysmansiano e sua cenografia enunciativa serão

desenvolvidas no quarto capítulo da presente dissertação, o relevante nesse momento é efetuar

o mapeamento das salas de espetáculo parisienses, presentes nos romances e nos poemas em

prosa do escritor.

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3 - A TOPOGRAFIA TEATRAL PARISIENSE ENTRE 1874 E 1881

De acordo com a divisão topográfica do espaço parisiense observada no primeiro

capítulo, bem como com o recorte temporal estabelecido, será analisada a distribuição das

salas de espetáculo da capital francesa entre as duas margens do rio Sena. Dessa maneira, será

possível reconhecer que gêneros cênicos ocupam prioritariamente cada margem e também

revelar a circulação de público correspondente a cada espaço teatral, com o objetivo de trazer

à luz os ambientes descritos por Huysmans em seus romances e poemas em prosa.

3.1 – A difícil definição de um gênero

Ao pensar em um gênero teatral é comum remeter-se a uma época que produziu um

determinado tipo de literatura dramática, ou a modificações de um gênero na

contemporaneidade. O teatro como poesia dramática é um universo plural de investigações,

seja em sua compreensão histórica – em pesquisas, por exemplo, que tentam dar conta de uma

linha progressiva de modificações na cena teatral, acompanhando cronologicamente os

acontecimentos políticos e sociais -, seja em estudos sobre a contaminação da poesia

dramática por outros tipos de poesia – como a narração, por exemplo, própria da epopéia, que

combinada à estrutura dialógica da poesia dramática, problematiza o drama como gênero

literário.

Nesses dois casos, sucintamente exemplificados no parágrafo anterior, há um

elemento comum que serve de estrutura para a compreensão de uma práxis literária e cênica,

bem como fornece uma base às pesquisas que envolvem tais assuntos: o texto teatral. Essas

obras escritas estão em articulação com a situação histórica em que apareceram (com seu

público, seus regimes políticos, econômicos e religiosos) e com regras – que podem ser

respeitadas ou não – de alguma das várias Poéticas já escritas. Dessa forma, elas são passíveis

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de ser analisadas em sua relação com outras enunciações, mas todas compartilham um suporte

de comunicação, qual seja, o texto.

Um pouco mais nebuloso é o terreno de estudos de um gênero teatral tão heterogêneo,

quanto anti-literário. Heterogêneo quando este é edificado por vários outros gêneros, não

possuindo, portanto, um estatuto cujas normas sejam claramente identificadas e

sistematizadas. Não-literário, posto que se mostra independente de estrutura textual para

acontecer como prática teatral, ou seja, colocando a literatura em segundo plano.

Um espetáculo dessa natureza começa a ser discutido sob uma nova perspectiva nos

fins do século XIX, sendo redimensionado no século seguinte:

[...] outras formas de espetáculo, pouco ou diferentemente submetidas à onipotência do verbo, tais como o circo, o café-concerto, os teatros de sombras, a dança ou a pantomima, traçaram um caminho ao longo do século, constituindo uma fonte de inspiração inegável para esses novos encenadores e reativando antigas questões não-resolvidas. O que é a presença cênica? O que é a graça? O tempo? O volume? O espaço sonoro? A teatralidade?81

Dentro desse conjunto de gêneros híbridos, que misturam, pelo menos, música, dança

e teatro, em números variados sem conexão narrativa obrigatória uns com os outros, pode-se

reconhecer o music-hall francês. O nome, vindo da língua inglesa, significando “sala de

música”, parece ter sua origem na sala de espetáculos de variedades Canterbury Music-Hall,

em Londres, a partir de 1842.82 É habitual estudar o music-hall em conjunto com gêneros de

espetáculo que se confundem com ele e que, por vezes, assumem seu nome, tais como o café-

concerto, o café-cantante, a revista, o cabaré. Tratando-se de palcos heterogêneos – cujos

81 « [...] d’autres formes de spectacle, peu ou différemment soumises à la toute-puissance du verbe, tels que le cirque, le café-concert, les théâtres d’ombres, la danse ou la pantomime, ont tracé leur voies tout au long du siècle, constituant une source d’inspiration indéniable pour ces nouveaux metteurs en scène, et réactivant d’anciennes questions irrésolues. Qu’est-ce que la présence scénique? Qu’est-ce que la grâce? Le temps ? le volume ? l’espace sonore ? la théâtralité ? » MOINDROT, Isabelle (dir.). Le spectaculaire dans les arts de la scène, du Romantisme à la Belle Époque. Paris : CNRS, 2006, p. 8. 82 Cf. TRESORS DE LA LANGUE FRANÇAISE. Dictionnaire de la langue et littérature du XIXe et XXe siècle (1789-1960). Paris : Gallimard, 1985, T. 11, p. : 1254. Aqui, o music-hall é caracterizado como « estabelecimento que apresenta espetáculos de variedades (canto, dança, revistas, números de circo, atrações diversas)” [établissement qui présente des spectacles de variétés (tours de chant, danses, revues à grand spectacles, numéros de cirque, attractions diverses).

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números e técnicas são compartilhados entre si -, é natural que os limites entre um e outro

estejam em constante reorganização83.

Em relação ao termo music-hall, empregado de maneira generalizada em muitos

textos, Dominique Jando discorre:

O termo, na verdade, é impróprio: há o music-hall, mas também o caf’conc’, a revista de grande espetáculo, o ministrel-show, o spezialitätentheater, o burlesco e o vaudeville americanos – e até mesmo o cabaré e seu filho adotivo, o cabaré de grande espetáculo, que é nomeado nos países anglo-saxões floor-show. Tudo isso constitui o universo das variedades que englobamos na França com o título de music-hall.84

Algumas especificidades são estabelecidas, geralmente, na tentativa de organizar esse

campo de prática cênica. Por exemplo, o café-concerto está relacionado ao consumo de

bebidas durante a apresentação, ao passo que a revista tem, necessariamente, nudez feminina.

Na presente pesquisa, essas pequenas diferenças não serão relevantes enquanto

reconhecimento do teatro de variedades como um gênero distinto dos demais que se

dedicaram aos números variados. Será preferível – devido, então, à imprecisão semântica e

genérica – reconhecer a trajetória de dissolução e re-estabelecimento de limites entre essas

variadas técnicas na França oitocentista, a fim de analisar o palco do “variedades” parisiense

dos anos de 1870, representado na literatura de J.-K. Huysmans.

É sabido que Huysmans não escondia seu desprezo pelo teatro. Preterindo algumas

salas mais que outras, de maneira geral, o escritor não se mostrava um entusiasta da cena

teatral, como nos chama atenção Fernande Zayed:

Quanto aos teatros, aonde ele ia pouco e sem paixões, e que ele descreveu, em geral, sem entusiasmo [...] é, para ele, a ocasião seja de pintar a sala ou o palco, os

83Cf. JANDO, Dominique. Histoire Mondial du Music-Hall. Paris : Jean-Pierre Delarge, 1979, p. 11. 84 « Le terme, en fait, est impropre : il y a le music-hall, mais aussi le caf’conc’, la revue à grand spectacle, le ministrel-show, le spezialitätentheater, le burlesque et le vaudeville américains – voire le cabaret et son fils adoptif, le cabaret à grand spectacle, qui se nomme, dans les pays anglo-saxons, le « floor-show ». Tout cela constitue l’univers des variétés, que nous englobons en France sous l’appellation générique de music-hall ». Ibidem, p. 7.

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cantores ou as dançarinas, seja de sublinhar a inépcia dos atores e sua nulidade, seja de constatar a falta de originalidade dos autores que os alimentam [...].85

A fim de analisar o posicionamento huysmansiano perante as várias enunciações que

se encontram no campo de forças do qual faz parte no contexto parisiense entre os anos 1874

e 1881, é necessário primeiro reconhecer tal contexto. Isso quer dizer que, antes de verificar

por que Huysmans escolheu localizar algumas passagens de suas obras em determinados

teatros, é preciso compreender que tipo de público frequentava os teatros, que tipo de artista

trabalhava em determinado estabelecimento e por que casas de espetáculos com

características parecidas compartilhavam a mesma região dentro da topografia parisiense.

Ora, os grandes escritores oitocentistas (citados no capítulo anterior) segmentaram as

atividades artísticas parisienses em regiões – por exemplo, a região dos grandes bulevares

aparece relacionada à arte industrial e a frequentação da alta burguesia em espetáculos

operísticos; o Quartier Latin, por sua vez, acolhe os estudantes que buscam a fuga da

realidade e a diversão. Portanto, Huysmans dominava os códigos dessa topografia teatral da

capital francesa onde se apresentavam mulheres seminuas, as salas em que os trabalhadores se

interessavam mais em beber do que em assistir a uma peça teatral, aonde o burguês ia

acompanhado da esposa e aonde ia sozinho. O território teatral parisiense estava fragmentado

em grupos com determinadas funções sociais.

3.2 – O teatro burguês

A fim de reconhecer o palco do teatro de variedades como elemento constituinte de

um espaço periférico e, muitas vezes, marginal, é necessário lembrar, ainda que rapidamente,

como estava mapeada Paris entre os anos de 1874 e 1881, no que diz respeito ao teatro.

85 “Quant aux théâtres où il allait peu et sans passions et qu’il a décrits en général sans enthousiasme [...] c’est pour lui l’occasion soit de peindre la salle ou la scène, les chanteurs ou les danseuses, soit de souligner l’ineptie des acteurs et leur nullité, soit de constater le manque d’originalité des auteurs qui les alimentent [...] » ZAYED, op. cit., p. 63.

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Evidentemente, a maior parte das salas mais frequentadas pela burguesia que ocupava

o campo do poder se localizava nos primeiros distritos, em torno dos grandes bulevares. A

temática da vida burguesa quotidiana levava as platéias ao riso. O tema mais em voga era

Paris. Enquanto Huysmans vai preferir descrever o público dos meios populares no fim do dia

de trabalho, as comédias burguesas, contrariamente, falam daqueles que estão na platéia,

como que se olhando no espelho, conforme a afirmação de Akakia-Viala:

[...] os palcos do bulevar [que] adotam um assunto na moda: Paris, a cidade grande, tema com numerosas variações: “a noite de Paris”, “os Boêmios de Paris”, “os Mistérios de Paris” e “o Trapeiro de Paris”. [...] Quanto mais a imitação dos cenógrafos é fiel em seus quadros parisienses, mais esses melodramas obtêm sucesso.86

Além do mito de Paris, criado pelos escritores oitocentistas, adotado como tema

recorrente, a interpretação “natural” do ator também é uma característica que se desenvolve

ao longo de todo o século XIX. Tendo se originado no romantismo, esse registro que busca a

linguagem do quotidiano na fala do ator também é reconhecido no trabalho plástico do

cenário e do figurino, exigindo que os acessórios usados no palco sejam de verdade, tal qual

são encontrados nos interiores das casas da “vida real”.87

Ao enfraquecimento dos dramas históricos e tragédias românticas da geração de 1840

se sucedem as comédias de costumes bien faites88, acolhidas pelas salas do Palais-Royal (1º

distrito), do Variétés (2° distrito), do Vaudeville (2º distrito) e do Gymnase (10º distrito). É,

portanto, um teatro dito “realista” que se sobrepõe ao romântico. No lugar de Victor Hugo,

Théophile Gautier e Alfred de Musset, apresentava-se a trama de bulevar de Eugène Scribe;

86 “[...] les scènes du boulevard qui adoptent un sujet à la mode : Paris, la grand’ville, thème à nombreuses variations : Paris la nuit, les Bohémiens de Paris, les Mystères de Paris, le Chiffonnier de Paris. [...] Plus l’imitation des décorateurs est fidèle en leurs tableaux parisiens, plus ces mélodrames ont de succès. » AKAKIA-VIALA, Le Théâtre en France. In : DUMUR, Guy (dir.). Histoire des Spectacles. Paris : Gallimard, 1965, p. 921. (Bibliothèque de la Pléiade). 87 Cf. Ibidem, p. 922. 88 Trata-se de comédias sérias onde temas da sociedade relativamente modernos são tratados com procedimentos herdados do vaudeville e do melodrama. Cf. DUFIEL, Anne-Simone. Le Naturalisme au théâtre, suivi d’un tableau des pièces « naturalistes ». In: BECKER, Colette & DUFIEF, Anne-Simone (dir.). Relecture des “petis” naturalistes (actes du colloque des 9, 10 et 11 décembre 1999). Paris: Université Paris X, 2000, p. 433.

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ao invés do passado e da identidade nacional, a Paris quotidiana; não mais a busca da língua

de Racine, mas o vocabulário do burguês da vida real. Não se deve esquecer que a moral

dessa metade de século também tinha seu lado crítico e menos risonho, como é o caso da

produção de Dumas filho, que defendia um teatro útil que denunciasse os abusos sociais.89

Seja pela denúncia moralizante em Dumas filho, seja pela sátira aos costumes

burgueses em Labiche, o realismo espacial era constante: o palco tornara-se um gabinete de

uma casa burguesa, tal qual, com seus acessórios decorativos e móveis. Da mesma maneira, o

registro de interpretação torna-se ainda mais quotidiano. A famosa “quarta parede”, que

exclui o espectador do jogo com os atores, é constantemente utilizada em prol de um ideal de

realismo.

Na última década do Segundo Império, a opereta de Offenbach conquista um grande

sucesso de público e utiliza largamente os recursos realistas de cenário. Émile Zola presta-lhe

grande homenagem, ainda que com o pretexto de criticá-lo, em Nana (1880), romance

ambientado em torno do demi-monde das operetas: “A sala branca e ouro, realçada com verde

suave, se apagava, como coberta por uma fina poeira, pelas curtas chamas do grande lustre de

cristal”.90

A opereta de Offenbach foi uma das principais responsáveis pela difusão de uma

certa imagem do teatro francês no mundo ocidental, no século XIX. Ela redimensiona a

pompa plástica da ópera européia em um espaço menor e mais ligeiro, mais alegre, mais

engraçado. Tendo se inspirado na ópera-cômica e no vaudeville, a música de Offenbach e os

89 Cf. BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro (trad. Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsbourg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia). São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 441. 90 “La salle blanche et or, relevée de vert tendre, s’effaçait, comme emplie d’une fine poussière par les flammes courtes du grand lustre de cristal ». ZOLA, Émile. Nana. Paris : Librairie Génénerale Française, 2003, p. 23.

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libretos de Ludovic Halévy e Henri Meilhac deram “uma ênfase eletrizante à sátira e à

frivolidade, às frases de efeito e aos paradoxos”.91

O espetáculo visto no primeiro capítulo de Nana segue o curso de um teatro que o

sociólogo Pierre Bourdieu considera como submetido ao mercado e ao Estado, de caráter

ligeiro, posto que relacionado a uma burguesia que busca o prazer fácil, e cuja existência se

torna clara a partir dos anos 1840, sobretudo depois da revolução de 1848:

[...] o peso do dinheiro, que se exerce especialmente através da dependência em relação à imprensa [...] e do entusiasmo, encorajado pelos faustos do regime imperial, pelos prazeres e divertimentos fáceis, particularmente no teatro, favorecem a expansão de uma arte comercial, diretamente submetida à demanda do público.92

Chegando, assim, à primeira década da Terceira República, na qual estão

contextualizados os textos huysmansianos aqui estudados, o teatro realista regozija-se de um

sucesso de público, sobretudo em comédias vaudevilescas. As frases de efeito, os paradoxos,

a frivolidade parisiense são resquícios de um Segundo Império que ainda servem como

trunfos para lucrar nas bilheterias. O espetáculo se sobrepõe ao teatro, ao menos ao texto

enquanto valor dramatúrgico.

É perceptível que, segundo alguns críticos, o gênero do vaudeville não pode ser tão

considerado quanto os gêneros tidos como sérios. Edouard Noël e Edmond Stoullig, autores

dos Annales du théâtre et de la musique, publicação que teve duração de 1875 a 1912 fazendo

a crítica anual das peças de todas as casas de espetáculos parisienses, deixam claro, na edição

de 1877 (referente ao ano de 1876), a idéia de que o vaudeville seria uma arte menor através

de comentários como: “ [...] é um vaudeville sentimental e infantil que pareceu realmente

91 BERTHOLT, op. cit., p. 442. 92 « [...] le poids de l’argent, qui s’exerce notamment au travers de la dépendence à l’égard de la presse [...] et l’engouement, encouragé pour les fastes du régime impérial, pour les plaisirs et divertissements faciles, au théâtre notamment, favorisent l’expansion d’un art commercial, directement soumis aux attentes du public ». BOURDIEU, Les règles de l’art, p. 122.

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demasiado inocente para os espectadores do alegre teatro do Palais-Royal”93. Os autores não

deixam de reconhecer, entretanto, que alguns exemplos desse gênero cênico fazem sucesso

junto ao público: “Sem ser uma obra-prima de originalidade, [...] a Lua sem Mel não deixou

de divertir um público benevolente. O teatro é um mundo de surpresas”94. Por sua vez, ao

citarem a produção do Théâtre des Variétés, Noël e Stoullig celebram a volta de montagens

de operetas (como La Cigale, de Halévy et Meilhac), que haviam sido substituídas por

vaudevilles durante um período:

O Teatro das Variedades rompia cada vez mais com a opereta, para se colocar ao lado da comédia, do vaudeville. Ele fez, esse ano, nesse novo caminho, particularmente com la Cigale, alguns passos mais significativos.95

No entanto, na continuação da crítica, lembram que a opereta havia tido muito sucesso

nesse teatro, mas era um gênero ligado ao Segundo Império, que estava caindo em desuso:

Não acreditamos, entretanto, que esteja próximo o tempo em que esse gênero, que outrora foi o desse teatro, retomará definitivamente posse desse palco. Ainda é uma questão de moda e essa moda pode durar muito tempo.96

No número relativo ao ano de 1875, publicado no ano seguinte, ainda há a nítida

desclassificação do gênero vaudevilesco pelo críticos, que consideram que com peças de

Marivaux e de Molière, clássicos do teatro nacional e não vaudevilles, o teatro “Odéon

justifica melhor o subtítulo97 que lhe vale esses 60.000 francos de subvenção”.98

93« [...] c’est un vaudeville sentimental et enfantin qui a paru vraiment trop innocent pour les habitués du joyeux théâtre du Palais-Royal”. NOËL, Édouard & STOULLIG, Édmond. Annales du théâtre et de la musique (T2). Paris : Charpentier, 1877, p. 380. 94 « Sans être un chef-oeuvre d’originalité, [...] la Lune sans miel n’a pas laissé d’amuser un public bienveillant. Le théâtre est un monde de surprises”. Ibidem, p. 381. 95 « Le théâtre des Variétés rompait de plus en plus avec l’opérette, pour se tourner du côté de la comédie, du vaudeville. Il avait fait cette année, dans cette voie nouvelle, et notamment avec la Cigale, quelques pas plus significatifs ». Ibidem, p. 416. 96 “Nous ne croyons pas, cependant, que les temps soient proches où ce genre, qui fut autrefois le sien, reprendra définitivement possession de cette scène. C’est encore affaire de mode, et cette mode peut durer longtemps », idem.97 O subtítulo a que se referem os autores é o de “segundo teatro francês, vindo após a Comédie-Française”. 98 “L’Odéon justifie mieux le sous-titre qui lui vaut ses 60,000 francs de subvention ». NOËL, Édouard & STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique (T1). Paris : Charpentier, 1876, p. 242.

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Se era visto como menor artisticamente por um lado, por outro, o vaudeville estava

longe de ser considerado um gênero marginal de sua época, já que atraía grande circulação de

público e, por isso, obtinha grande sucesso econômico. No índice dos Annales do ano de 1876

fica perceptível a diferença de valor entre os teatros ligados ao Estado (que dividiam suas

temporadas entre textos clássicos e comédias modernas, além de operetas à moda do recente

Segundo Império) e aqueles relacionados ao teatro de variedades e gêneros adjacentes. Há,

listados um por um, os nomes das salas de espetáculo parisienses, começando pela Academia

Nacional de Música (o recém-inaugurado Palais Garnier), seguida da Comédie-Française:

dois monumentos ligados ao passado que buscavam manter os valores de uma burguesia

recém-saída do Segundo Império, ao invés de vislumbrar novos parâmetros. Enquanto a

Opéra, entre 1875 e 1880, dividiu seu repertório entre balés e óperas consagrados, a Comédie

colocou em cena não somente os clássicos de Molière e Racine, como os de Victor Hugo

(Hernani) e Alexandre Dumas (Les Fils Naturel). No ano de 1875, por exemplo, obteve

sucesso com um drama de Dumas Filho:

Tudo se concentra, lá dentro, nos ensaios da nova peça de Alexandre Dumas filho [...] O ensaio geral de A Estrangeira aconteceu no sábado 12 de fevereiro, à tarde, diante de uma sala lotada [...] e, pelo efeito produzido naquele dia, a portas fechadas, pode-se legitimamente contar com um grande sucesso. Com o fim do ensaio, a primeira apresentação estava definitivamente marcada para dois dias mais tarde, 14 de fevereiro. [...] O chefe de Estado e a duquesa de Magenta haviam reservado seu camarote; tudo o que Paris possui como celebridades em todos os meios ali estava para dar àquela noite um caráter de solenidade, pois o nome do autor justificava bastante o resto. Não se tratava mais, como por Le Demi-monde,de uma peça conhecida e julgada, mas de uma obra absolutamente inédita do autor da Dama das Camélias [...]. Era, resumindo, o começo, em um palco onde OMisantropo alternava ora com o Cid, ora com Fedra, de um escritor a quem seu título recente de acadêmico impunha a tarefa de vencer [...]99

99 « Tout se concentre à l’intérieur sur les répétitions de la nouvelle pièce d’Alexandre Dumas fils [...] La répétition générale de l’Étrangère, eut lieu le samedi 12 février, dans l’après-midi, devant une salle comble [...] et, par l’effet produit ce jour-là, à huis clos, on pouvait légitimement compter sur un grand succès. A l’issue de la répétition, la première représentation était définitivement fixée au surlendemain, 14 février. [...] Le chef de l’État et la duchesse de Magenta avaient fait retenir leur loge ; tout ce que Paris compte d’illustrations dans toutes les branches s’y trouvait pour donner à cette soirée un caractère de solennité, que le nom de l’auteur justifiait assez du reste. Il ne s’agissait plus, comme pour le Demi-monde, d’une pièce connue et jugée, mais d’une oeuvre absolument inédite de l’auteur de la Dame aux camélias [...]. C’était, en un mot, le début, sur une scène où le

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Se, por um lado, a Comédie-Française não podia se apoiar somente em sua tradição

para garantir a bilheteria – e, por isso, acolhia novos autores em sua caixa cênica–, por outro,

ainda gozava dos maiores prestígios sociais e políticos dentro da topografia teatral parisiense,

como ver-se-á a seguir.

3.2.1 – Comedie-Française

Para pensar na importância dessa “trupe” à época de Huysmans e Zola é necessário

atentar para o que Pierre-Aimé Touchard, autor de L’Histoire Sentimentale de la Comédie

Française, escreve sobre a mudança de relação entre os integrantes da Comédie após o ano de

1833. Ele percebe o fim de uma era heróica e aventureira e a introdução do período dos

administradores, na instituição Comédie-Française, que deixa de lado o espírito de trupe,

privilegiando a rigidez empresarial, tanto na relação com o Estado, quanto com o mercado

teatral. O caráter de trupe e a imagem de Molière, tradicionalmente associados a esse grupo,

desaparecem a partir de então.

Entretanto, isso não significa que os esforços relativos à manutenção da tradição dos

clássicos franceses se perderam em meio à época industrial. Persiste o desejo e a prática de

apresentar as obras-primas nacionais, não como recusa de se encenarem novos autores, mas

para assegurar um público de gosto mais tradicional nas salas da Comédie, bem como para

obter a aprovação dos críticos de teatro. Visto que havia cada vez mais salas dedicadas aos

textos contemporâneos, os societários da Comédie deviam atrair o público com o que eles

dominavam: o repertório glorioso. Retomam-se, assim, os grandes criadores de outrora, tais

que Molière, Voltaire, Baumarchais.

Misenthrope alternait tantôt avec le Cid et tantôt avec Phèdre, d’un écrivain à qui son titre récent d’académicien imposait la tâche de réussir [...] ». Ibidem, p. 71-74.

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Há uma sucessão de administradores na Comédie-Française. Em determinadas épocas,

os textos clássicos ocupam o lugar de honra em cena e, em outras, são introduzidos novos

autores. No começo da Terceira República, em 1870, após o período da guerra contra a

Prússia e os conflitos relacionados à reconstrução da república, os investimentos do Estado

diminuem, devido a suspeitas contra os beneficiados das subvenções do Império. A mudança

de regime político anuncia um período de calma relativa no que concerne à relação entre

administradores e os atores-societários. Contrariamente às décadas anteriores, quando se viu

um rodízio de gestões, desde a queda de Napoléon III a Comédie-Française teve, durante

quinze anos, a administração de Émile Perrin.

Perrin instaura um momento de estabilidade e é considerado o melhor dos

administradores do grupo. Portanto, o período analisado nessa pesquisa, na Comédie-

Française, é marcado pelo equilíbrio administrativo de Perrin, antigo diretor da Opéra-

Comique e da Opéra. Além disso, ele podia usufruir de uma trupe brilhante que contava, por

exemplo, com Sarah Bernhardt e outros atores de sucesso. Quanto ao repertório, foi preferível

colocar em cena quase que exclusivamente os autores em voga, tais que Augier, Dumas Filho,

Sandeau, Pailleron, Sardou, Meilhac e Halévy (esses dois últimos sendo, juntamente com

Offenbach, os autores de La Belle Hélène, que inspirou Zola a escrever o primeiro capítulo de

Nana): 100

Em 1887, o palco francês estava inteiramente nas mãos de uma ilustre trindade: Augier, Dumas, Sardou reinavam há vinte anos, tanto na Comédie Française, como fora dela. Perrin, que acabara de morrer, dizia de bom grado: “Não preciso de novos autores; um ano Dumas, um ano Sardou, um terceiro, Augier, isso me basta”.101

100 Cf. TOUCHARD, Pierre-Aimé. Histoire Sentimentale de la Comédie-Française. Paris : Seuil, 1955, p. 104. 101 « En 1887, la scène française était tout entière aux mains d’une trinité illustre : Augier, Dumas, Sardou régnaient depuis vingt ans, aussi bien à la Comédie-Française qu’ailleurs. Perrin, qui venait de mourir, disait volontiers : « Je n’ai pas besoin d’auteurs nouveaux ; une année Dumas, une année Sardou, une troisième Augier, cela me suffit ». ANTOINE, André. Mes souvenirs sur le Théâtre-Libre. Tusson, Charente : Du Lérot, 2009, p. 16.

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Dessa maneira André Antoine, criador do Théâtre-Libre, descreve a posição de Perrin

na cena teatral da década de 1880. A Comédie parecia, portanto, ter encontrado um fórmula

para garantir poder econômico e prestígio capazes de sustentá-la, já que, diante das mudanças

da cena teatral, sua imagem começava a ser relacionada a um velho monumento, com

prestígio histórico, mas sem grandes mudanças que saciassem a demanda de uma sociedade

industrial.

3.2.2 – Outras salas

Georges Lerminier chama atenção para a retomada da “civilização do prazer” em Paris

ao fim dos conflitos políticos que marcaram a transição entre o Segundo Império e a Terceira

República, como a guerra contra a Prússia e a Comuna de Paris102. Parece haver, com a

reconstrução de teatros burgueses arruinados no período da Comuna, um retorno à circulação

do público na dinâmica do governo de Napoleão III: a sala de espetáculo que se frequenta

preferencialmente para ser visto, preterindo o acontecimento teatral em prol do acontecimento

social. Em 4 de janeiro de 1875 é inaugurado o Palais Garnier (Ópera de Paris), inteiramente

construído nos padrões estéticos e ideológicos de Napoleão III e do barão Haussmann.

No topo da lista que forma o índice dos Annales du théâtre et de la musique, após a

Opéra e a Comédie-Française, estão os teatros nacionais como a Opéra-Comique e o Odéon,

seguidos por salas tradicionais como o Variétés e o Châtelet, todas dedicadas ao bulevar, a

operetas e, algumas vezes, ao drama burguês. A maior parte dessas salas encontrava-se na

região central da Paris moderna: os grandes bulevares, entre o 2º e o 9º distritos.

Eça de Queirós, que se debruçou sobre a descrição da vida burguesa parisiense

justamente no período aqui estudado, traz sua contribuição no que diz respeito à circulação de

público nessas salas de espetáculo encontradas no topo da lista do anuário do teatro

102 Cf. LERMINIER, Georges. Le théâtre Français. In : DUMUR, Guy. Histoire des Spectacles. Paris : Gallimard, 1965, p. 1079. (Bibliothèque de la Pléiade).

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parisiense. No romance A Cidade e as Serras, o autor português coloca em cena personagens

da nobreza e da alta burguesia francesas em um jantar no número 202 dos Champs-Élysées.

Para tal soirée, o protagonista “mandou, na biblioteca, ligar o teatrofone com a Ópera, com a

Comédia Francesa, com o Alcácer e com os Bufos”103. O teatrofone, aparelho com fones

ligados à base por fios que se conectam a um teatro e possibilitam ao ouvinte apreciar o

repertório daquela noite, permitiu que os convidados se reuníssem para jantar, ao mesmo

tempo em que desfrutavam das canções maliciosas das revistas francesas. No Alcácer, por

exemplo, onze e meia era a hora em que a cantora Gilberte entrava em cena. O narrador

observa, com certo distanciamento, aquele grupo, que ouvia apaixonado a cantora:

Então, ante aqueles seres de superior civilização, sorvendo num silêncio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos canos das fezes, pensei na minha aldeia adormecida. [...] Todos largaram os fios – proclamavam a Gilberte deliciosa104.

Eça constrói, dessa maneira, um retrato da classe dominante parisiense intrínseco ao

funcionamento das salas de espetáculo que se encontram no topo da relação dos Annales du

théâtre et de la musique.

As salas de espetáculos que seguem nessa lista, ou seja, aquelas que não têm o

prestígio dos teatros nacionais, mas que mantêm uma boa frequência de público e alguns

sucessos de bilheteria, não mudam muito de gênero cênico em relação às primeiras salas, mas

têm, em geral, que se adaptar a espaços arquitetônicos menores. É comum, inclusive, que uma

sala compre o espaço de outra e durante alguns anos troquem de endereço, como é o caso, por

exemplo, das Fantaisies-Parisiennes que, nos Annales do ano de 1878, são anunciadas, por

Noel e Stoullig, da seguinte maneira:

O ano de 1878 terá visto o desaparecimento de um teatro de drama e o nascimento, na mesma sala, de um teatro de opereta. Beaumarchais não é mais Beaumarchais:

103 QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 45. 104 Ibidem, p. 55-56.

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que vivam as Fantaisies-Parisiennes! A inscrição e o busto do autor do Barbeiro de Sevilha desapareceram da fachada [...]105

No mesmo ano, Noel e Stoullig escrevem:

As Nouveautés estão situadas no boulevard des Italiens, de frente para a rua de Choiseul e para o Crédit lyonnais, no antigo estabelecimento de uma sala de concertos e exposições de quadros [...] que foi, durante algum tempo, o teatro das Fantaisies-Parisiennes, dirigidas pelo Sr. Martinet e que tinha, recentemente, o nome de Folies-Oller, um café-concerto como as Folies-Bergère.106

É de forma labiríntica, portanto, que se descobre a topografia das salas de espetáculo

da Paris desse contexto histórico, já que uma se confunde com a outra, como se trocassem de

máscaras ao trocarem de endereço ou de nome. Uma sala, criada na década de 1880, no

entanto, propôs um outro tipo de espetáculo que não o musicado, que perdurava há décadas.

Essa nova proposta, ligada diretamente aos ideais naturalistas de Émile Zola, opunha-se a esse

teatro do qual falamos até agora, um teatro cuja imagem estava ligada ao extinto Segundo

Império e que obtivera grande sucesso no exterior, ou seja, o teatro chamado “francês”, pelos

estrangeiros.

3.3 – Émile Zola e André Antoine: a origem do teatro moderno

Durante o início da Terceira República, Zola produziu alguns exemplos de textos

dramáticos, no intento de combater a sociedade do espetáculo do Segundo Império e,

sobretudo, a fim de conquistar prestígio no território economicamente mais abastado da

literatura, o teatral: “Não se pode esquecer o poder maravilhoso do teatro, seu efeito imediato

105 « L’année 1878 aura vu la disparition d’un théâtre de drame et la naissance, dans la même salle, d’un théâtre d’opérette. Beaumarchais n’est plus Beaumarchais : vivent les Fantaisies-Parisiennes ! L’inscription e le buste de l’auteur du Barbier de Séville ont disparus de la façade […] ». NOËL, Edouard & STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique (T4). Paris : Charpentier, 1879, p. 520. 106 “Les Nouveautés sont situées au boulevard des Italiens, en face de la rue de Choiseul et du Crédit lyonnais, sur l’ancien emplacement d’une salle de concerts et expositions de tableaux [...] qui a été, pendant quelque temps, le théâtre des Fantaisies-Parisiennes, dirigé par M. Martinet, et qui était naguère, sous le nom de Folies-Oller, un café-concert à l’instar des Folies-Bergère”. Ibidem, p. 476.

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sobre os espectadores. Não existe melhor instrumento de propaganda”107. Em 1881, Zola

publica sua teoria nos textos Le Naturalisme au théâtre e Nos auteurs dramatiques, mas já

nos Annales du théâtre et de la musique de 1878, aparece uma primeira versão do

Naturalisme au théâtre, como um manifesto endereçado aos editores, autores, artistas e

leitores de teatro. Partindo do princípio de que, desde Aristóteles até Boileau, toda obra de

arte deve ser baseada no verdadeiro, ou seja, na natureza, Zola enaltece a filosofia do século

XVIII, na qual se encontram Rousseau e Diderot, pela fusão do natural e do método na análise

poética do fazer humano:

Antes de tudo, tenho eu a necessidade de explicar o que entendo por “naturalismo”? Repreenderam-me muito por essa palavra [...]. Meu grande crime seria ter inventado e lançado uma palavra nova, para designar uma escola literária velha como o mundo. Em primeiro lugar, acredito não ter inventado essa palavra, que estava em uso em várias literaturas estrangeiras; simplesmente apliquei-a à evolução atual de nossa literatura nacional. [...] Toda a crítica, reforço, desde Aristóteles até Boileau, estabeleceu esse princípio de que uma obra deve ser baseada no verdadeiro.108

Após um histórico do romance naturalista e do teatro francês, Zola recusa

categoricamente todo o período romântico originado em 1830, para discutir até que ponto o

teatro contemporâneo vai ao encontro dos ideais naturalistas. A seu ver, o naturalismo seria a

tendência espontânea na literatura do século XIX, já compreendida pelo romance, mas ainda

timidamente explorada pela literatura dramática:

Mostrei que a força de impulsão do século era o naturalismo. Hoje, essa força acentua-se cada vez mais, avança e tudo deve obedecer-lhe. O romance, o teatro seguem esse movimento. Somente, deu-se que a evolução foi muito mais rápida no romance; ela ali triunfa, ao passo que está apenas começando no palco. Tinha que ser assim. O teatro foi sempre a última cidadela da convenção, por razões diversas, sobre as quais deverei explicar-me. Gostaria, então, de chegar simplesmente ao

107« Il ne faut point oublier la merveilleuse puissance du théâtre, son effet immédiat sur les spectateurs. Il n’existe pas de meilleur instrument de propagande ». ZOLA, Émile. Le Naturalisme au théâtre. In : NOËL, & STOULLIG, Annales du théâtre et de la musique (T4), p. XLVIII. 108 « Avant tout, ai-je besoin d’expliquer ce que j’entends par le « naturalisme » ? On m’a beaucoup reproché ce mot [...]. Mon grand crime serait d’avoir inventé et lancé un mot nouveau, pour désigner une école littéraire vieille comme le monde. D’abord je crois ne pas avoir inventé ce mot, qui était en usage dans plusieurs littératures étrangères ; je l’ai tout au plus appliqué à l’évolution actuelle de notre littérature nationale. [...] Toute la critique, ajoute-t-on, depuis Aristote jusqu’à Boileau, a posé ce principe qu’une oeuvre doit être basée sur le vrai. » Ibidem, p. II.

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seguinte: a fórmula naturalista, de uma vez por todas, completa e fixada no romance, está longe de sê-lo no teatro, e concluo que ela deverá completar-se, que ela atingirá, cedo ou tarde, seu rigor científico, se não o teatro aniquilar-se-á, tornar-se-á cada vez mais inferior.109

Uma das principais características do romance naturalista é a descrição. Por ser

inviável ao público de teatro ouvir um ator passar horas descrevendo um ambiente, como se o

espectador fosse um leitor, Zola conclui que o caráter descritivo do romance traduz-se, no

palco, pelo cenário:

Mas as descrições não precisam ser levadas para o teatro, elas se encontram lá naturalmente. O cenário não é uma descrição contínua, que pode ser muito mais exata e cativante que a descrição feita em um romance? [...] Após os cenários, com relevos tão poderosos, com veracidade tão surpreendente, que vimos recentemente em nossos teatros, não se pode mais negar a possibilidade de evocar, na cena, a realidade dos meios sociais. [...] Atualmente, o movimento naturalista trouxe uma exatidão cada vez maior para os cenários.110

Quanto à maneira de falar em cena, Zola não aceita que haja uma artificialidade que

distancie o texto do público. Se na Grécia clássica os atores falavam através de tubos de

bronze, ou se na corte de Luís XIV eles falavam quase cantando, o teatro ocidental do século

XIX se exprime através do tom da conversa, como na vida quotidiana:

O que eu gostaria de ver no teatro seria um resumo da língua falada. [...] Um dia perceberemos que o melhor estilo, no teatro, é aquele que resume melhor a conversa falada, que coloca a palavra certa exatamente em seu lugar, com o valor que ela deve ter. Os romancistas naturalistas já escreveram excelentes modelos de diálogos reduzidos assim às palavras estritamente úteis. 111

109 « J’ai montré que la force d’impulsion du siècle était le naturalisme. Aujourd’hui cette force s’accentue de plus en plus, se précipite, et tout doit lui obéir. Le roman, le théâtre sont emportés. Seulement, il est arrivé que l’évolution a été beaucoup plus rapide dans le roman ; elle y triomphe, lorsqu’elle s’indique seulement sur les planches. Cela devait être. Le théâtre a toujours été la dernière citadelle de la convention, pour des raisons multiples, sur lesquelles j’aurai à m’expliquer. Je voulais donc en venir simplement à ceci : la formule naturaliste, désormais complète et fixée dans le roman, est très loin de l’être au théâtre, et j’en conclus qu’elle devra se compléter, qu’elle y prendra tôt ou tard sa rigueur scientifique ; sinon le théâtre s’aplatira, deviendra de plus en plus inférieur ». Ibidem, p. XXXVIII. 110 “Mais les descriptions n’ont pas besoin d’être portées au théâtre ; elles s’y trouvent naturellement. La décoration n’est-t-elle pas une description continue, qui peut être beaucoup plus exacte et saisissante que la description faite dans un roman ? [...] Après les décors, si puissants de relief, si surprenants de vérité, que nous avons vus récemment dans nos théâtres, on ne peut plus nier la possibilité d’évoquer à la scène la réalité des milieux [...] Aujourd’hui, le mouvement naturaliste a amené une exactitude de plus en plus grande dans les décors.». Ibidem, p. L-LI. 111 “Ce que je voudrais voir au théâtre, ce serait un résumé de la langue parlée. [...] Un jour on s’apercevra que le meilleur style, au théâtre, est celui qui résume le mieux la conversation parlée, qui met le mot juste en sa place, avec la valeur qu’il doit avoir. Les romanciers naturalistes ont déjà écrit d’excellents modèles de dialogues ainsi réduits aux paroles strictement utiles ». Ibidem, p. LIII.

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Zola defende o rigor científico, já aplicado ao romance, no teatro. Busca um teatro

cujos elementos formadores tenham valor de documento humano e, desse modo, critica, em

Sardou, Dumas filho e Augier, a falta de relação direta com a realidade, com a

verossimilhança, com o ser humano tal qual ele é, “a lógica natural dos fatos e dos seres, tal

qual se comportam na realidade”112

É necessário admitir que Zola não pretende agredir os principais dramaturgos de sua

época de maneira impensada, mas os julga segundo o conjunto de ideias que formam sua tese

sobre o naturalismo. Esses dramaturgos seriam portadores de uma arte fabricada,

convencional, que é puro divertimento para o espírito, puro equilíbrio e simetria. O teatro

naturalista, bem como o romance e a pintura já estavam educando o gosto do espectador, e

devia maravilhar o público através do que ele considera como verdadeiro. Uma das últimas

frases de seu manifesto prevê: “nosso teatro será naturalista, ou não será”.113

Sua carreira de dramaturgo, que parecia promissora, mostrou-se uma sucessão de

decepções e fracassos. Zola não perpetuou seu nome como um gênio dramático de sua época.

Coopera ricamente, no entanto, para a grande revolução que ocorrerá a partir de 1887 com a

abertura do Théâtre Libre: a era da encenação.114

Tal processo de mudanças na história do teatro é, no mínimo, paradoxal. Em sua

origem, a era da encenação encontra as propostas realistas de Émile Zola e as simbolistas de

Stéphane Mallarmé, poeta que apoiava o movimento teatral que, segundo Jean-Jacques

Roubine “consistia em restabelecer os direitos do imaginário [...]. Os simbolistas pretendiam

112 “[...] la logique naturelle des faits et des êtres, tels qu’ils se comportent dans la réalité ». Ibidem, p. LVI. 113 “[...] notre théâtre sera naturaliste ou il ne sera pas ». Idem.114Cf. SARRAZAC, Jean-Pierre. Reconstruire le réel ou suggérer l’indicible. In : JOMARON, Jacqueline de. Le Théâtre en France, de la Révolution à nos jours. Paris : Armand Colin, 1989, T.II, p. 193.

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recolocar o foco central do espetáculo sobre o texto”115. O que será, entretanto, tópico nesse

processo, é o advento da figura do encenador, relegando ao autor e ao ator o segundo plano no

processo de criação cênica.

Apesar da expressão metteur-en-scène (encenador) já existir desde os românticos116, é

com André Antoine, criador do Théâtre Libre, que o termo começa a se desenvolver no

sentido que se utiliza ainda hoje. A interseção da emancipação do encenador – que se ocupará

também das outras artes cênicas, como o cenário, figurino, iluminação, música e interpretação

– e dos escritores naturalistas se dá muito pelas teorias naturalistas a respeito da importância

dos diferentes ofícios que constituem a arte do teatro. Dessa forma, o encenador se apropria

de uma parte da concepção de cada ofício da montagem cênica, ganhando, gradativamente,

lugar de destaque em relação ao autor.117

A década de 1880 é o primeiro momento do Théâtre-Libre, considerado pelo próprio

Antoine como a fase de luta contra o teatro de então. Somente na década seguinte e durante a

virada do século é que o criador do Théâtre-Libre considera que seu movimento conquista o

público.118

Diante desse breve mapeamento do teatro no contexto da primeira fase da produção

literária de Huysmans, o que se pode perceber é que não há propostas completamente distintas

umas das outras, em princípio, no que concerne às correntes do fazer teatral. Seria preferível

dizer que cada uma se desenvolve com argumentos, por vezes, contrários às outras. Por

exemplo, o teatro que propõe Zola, repleto de lutas de classes e que tenta suprimir a

subjetividade romântica, opõe-se, em ideologia, ao teatro musicado e ligeiro do Segundo

115 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral (trad. Yan Michalski). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 49-50. 116Cf. Ibidem, p. 192. 117 Cf. Idem.118 Cf. ANTOINE, op. cit., p. 10.

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Império. No entanto, ambos pensam o gesto do ator, o realismo do cenário e figurino, a

substituição da linguagem declamatória pela linguagem “natural”.

É importante lembrar que o caráter “realista” que vem sendo procurado, ao menos,

desde os românticos, vê seu apogeu com o advento do metteur-en-scène porque coincide com

os primeiros empregos da eletricidade em cena. Se durante todo o século XIX o objeto “real”

foi buscado no palco, as iluminações a vela e a gás davam um contraste entre claro e escuro

que permitia que detalhes mais teatrais no cenário e no figurino fossem verossimilhantes ao

olhar do público. A luz elétrica, por sua vez, revelará o material e seu tratamento, gerando a

preocupação do “real” sobre o palco.

No último lugar da lista dos Annales du théâtre et de la musique, antes somente da

categoria “teatro na província” e “teatro no estrangeiro”, aparecem, em uma só categoria, os

gêneros que constituem o foco dessa pesquisa, com títulos como “teatros de subúrbio e de

bairro, novos teatros, cafés-concertos, o teatro fora do teatro e espetáculos diversos”119.

A fim de vislumbrar uma origem para esse grupo heterogêneo de técnicas cênicas,

voltaremos ao acontecimento mais antigo de teatro popular, no que se refere à Europa pós

Idade Média, qual seja, as feiras. Tais acontecimentos de feira existem no imaginário da

identidade européia, mas constam muito raramente nos livros de história dos espetáculos.

3.4 – O bulevar do crime e a feira

A filiação mais próxima das salas dedicadas aos números variados que aparecem nas

obras de Huysmans entre 1876 e 1881 parece ser a grande avenida, apelidada de boulevard du

crime, que, na primeira metade do século XIX, era o lugar de encontro dos artistas populares

e do público que pagava pouco para se divertir durante algumas horas. Esse bulevar (que na

119 « Le théâtre en province. Le théâtre à l’étranger. Théâtres de la banlieue et de quartier, théâtres nouveaux, Cafés-Concerts, le théâtre hors du théâtre et Spectacles divers ». NOËL & STOULLIG, Annales du théâtre et de la musique (T1), p. 648.

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verdade se chama boulevard du Temple, ainda hoje) foi assim intitulado devido aos inúmeros

crimes cometidos pelos personagens das pequenas peças que ali eram apresentadas120.

Antes de ser reformado pelos trabalhos de embelezamento de Haussmann em 1862 –

que demoliram todos os estabelecimentos comerciais –, o bulevar do crime contava com casas

dedicadas a técnicas cênicas variadas, tais como o mimodrama, o balé, a arte lírica, o circo,

assim como os cafés-cantantes e o teatro de variedades.121 É perceptível a relação entre a

circulação do público no bulevar do crime e o espetáculo de feira, tão popular antes da era

industrial. Na verdade, parece haver, a partir dos fins do século XVIII, um deslocamento das

grandes feiras que dinamizavam o comércio europeu para as exposições comerciais e

industriais de divertimento.122

Trata-se de grandes aglomerações, de espetáculos ligados ao barulho da multidão, dos

copos, das risadas e da música de banda. Para caracterizar o palco do acontecimento de feira,

é preciso enumerar seus variadíssimos artistas e números: acrobatas, marionetistas,

adestradores de animais, equilibristas, demonstradores de força, atores sós ou em conjunto,

médicos charlatões e arrancadores de dentes, fenômenos, prestidigitadores, cantores e

vendedores vindos de todos os cantos da Europa, além dos panoramas, com seus jogos de

perspectivas, sombras chinesas e personagens de cera. Sempre haverá outras atrações

relacionadas à feira a serem descobertas e listadas, tamanha sua necessidade mercadológica de

novidade.123

É importante notar não somente a variedade das técnicas presentes nesse gênero

popular de espetáculo, mas também a relação dinâmica entre público e artista que se tenta

manter no teatro chamado de “variedades” das últimas décadas do século XIX. Há uma

120 Punhaladas, envenenamento e vícios como o alcoolismo. Cf. JANDO, op. cit., p. 11. 121 Idem.122 Cf. WINTER, Hannah. Le Spectacle Forain. In: DUMUR, Guy (dir.) Histoire des Spectacles. Paris : Gallimard, 1965, p.1436. (Bibliothèque de la Pléiade). 123 Cf. Ibidem, p. 1437.

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liberdade de circulação nos mercados, feiras e pontes que se contrapõe à posição estática do

espectador de teatro, sentado na sala de espetáculo. Os teatros do bulevar do crime perdem

uma parte desse movimento, mas tentam mantê-lo, de certa forma, à medida que permitem

que seu público ande pelo estabelecimento. Ainda que a pulverização dos números

apresentados na grande superfície do Jardim do Luxemburgo ou do Pont Neuf (antigos

lugares emprestados às feiras) se perca no “variedades”, a dinâmica de informalidade do

espectador frente ao palco se evidencia, já que esse público pode escolher entre olhar a cena,

beber, passear, conversar ou dançar pelos cômodos dos estabelecimentos.

Tal filiação direta dos números de variedades na sala de espetáculo, à época de

Huysmans, aos acontecimentos de feira sobre as pontes ou nos jardins antes do século XIX

encontra na figura dos mímicos um forte elemento de ligação. Não só pelos números de

pantomima serem muito populares e terem sido passados através das gerações (já que as

trupes de feira eram, quase em sua totalidade, formadas por membros da mesma família) mas,

sobretudo, pela rígida formação dos acrobatas que se apresentavam ao ar livre, fato que

possibilitou que constituíssem trupes de atores na fase de decadência das grandes feiras

européias.

A ascensão dos estabelecimentos comerciais de espetáculos de variedades é

concomitante, não por acaso, com a diminuição das grandes feiras que atravessaram a Europa

até o fim do século XVIII. Desse modo, muitos dos artistas que se apresentavam nesses

grandes mercados se tornaram atores de pantomima. Quando se imagina um artista

ambulante, acrobata, até a década de 1920, é necessário lembrar que sua formação – que, em

geral, começa desde a mais jovem idade – compreende a dança e a mímica, permitindo que

esses artistas atuem em qualquer espetáculo popular de melodrama, pantomima ou balé. Do

mesmo modo, visto que é exigido dele a maestria corporal e não o domínio do texto, houve

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um grande trânsito de artistas de inúmeras nacionalidades, falando diferentes idiomas, nos

palcos do teatro de variedades parisienses durante o século XIX.124

Se Molière, já em 1655, na peça L’Amour Médecin cita, no primeiro ato, cena II, a

feira de Saint-Laurent – atribuindo-lhe caráter de divertimento puro125, Huysmans, em seu

romance de 1879, Les Soeurs Vattard, localizará um dos capítulos mais longos do livro em

uma grande feira nos jardins de Vincennes, o subúrbio leste de Paris que, à época, era uma

região completamente rural e que, talvez por essa estrutura campesina, possibilite, ainda nos

fins do século, abrigar um grande mercado popular como o descrito no livro e do qual

trataremos mais adiante, ao localizarmos os arredores parisienses na literatura huysmansiana.

Apesar de o teatro de feira não ser considerado um gênero teatral e não estar bem

catalogado na história do teatro, é preciso pontuar que, nos Annales du Théâtre et de la

Musique do ano de 1877, os autores mencionam duas publicações sobre esse gênero. A

primeira, pela Librairie Garnier, com o título Le Théâtre de la foire, avec un Essai historique

sur les spectacles forains, cuja autoria é de Eugène d’Auriac. Acompanhando a menção, há

uma pequena crítica elogiosa que diz: “O estudo do senhor d’Auriac é escrito com seriedade e

a escolha das peças desse curioso repertório é feita de maneira verdadeiramente

engenhosa”.126A segunda, publicada por Berger-Levrault, com o título Les Spectacles de la

foire (1595-1791), do autor Émile Campardon, recebe mais detalhes dos críticos:

Essa obra, que tem a forma de um dicionário, contém todas as informações recolhidas nos Arquivos nacionais sobre os teatros, autores, atores, saltadores e dançarinos de corda, monstros, gigantes, anões, animais curiosos ou conhecidos, marionetes, autômatos, figuras de cera e jogos mecânicos das feiras Saint Germaine Saint-Laurent, dos bulevares e do Palais-Royal. Em uma excelente introdução, o senhor Emile Campardon esboça a história geral desse teatro conhecido como Teatro de Feira.127

124 Cf. Ibidem, p. 1454. 125 MOLIÈRE. L’Amour médecin. In : Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1962, p. 312. 126« L’étude de M. d’Auriac est sérieusement écrite, et le choix des pièces de ce curieux répertoire est faite d’une façon vraiment ingénieuse ». NOËL & STOULLIG, Annales du théâtre et de la musique (T4), p. 658. 127 « Cet ouvrage, qui a la forme d’un dictionnaire, contient tous les renseignements recueillis aux Archives nationales sur les théâtres, auteurs, acteurs, sauteurs et danseurs de corde, monstres, géants, nains, animaux

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Tais aparições num documento como os Annales, que está relacionado diretamente às

salas oficiais subvencionadas pelo Estado, supõe uma preocupação com a memória do

espetáculo na França, ainda que o teatro popular e o acontecimento de feira sejam

considerados vertentes “menores” dentro da publicação de Édouard Noël e Edmond Stoullig.

3.5 – As salas de “variedades”

Ao voltarmos a analisar os números do teatro de variedades explorados nas obras de

Huysmans, deparamos-nos com um palco que também busca lucro econômico, que também

utiliza o estudo do gesto, que à época também podia ser chamado “pantomima do ator”. O que

parece realmente se distanciar de todos os gêneros ou movimentos citados anteriormente é o

fato de a prática cênica se sobrepor ao texto.

O “variedades” localiza-se em uma sala de espetáculos nos moldes de todas as outras

– sala à italiana, por vezes com proporções menores –, o que a distancia dos antigos

acontecimentos de feira que pulverizavam os números em grandes espaços ao ar livre,

cobertos por tendas separadas. Entretanto, mesmo sendo um espaço semelhante ao do teatro

oficial, o espetáculo de variedades não se origina da figura de um autor, nem da de um

encenador.

Dentro dessa prática teatral se enquadram, por exemplo, as Folies-Bergère,

frequentadas por homens ricos e localizadas no centro da vida moderna parisiense, na margem

direita. Mas não só de glamour viveu o “variedades”. Huysmans se concentrará, com muito

mais frequência, nas salas de pouco lugar no mercado, que estão fora do topos estabelecido

pelo Tout Paris, naquelas que se escondem nas sombrias ruas da rive gauche. As palavras de

Simone Delattre denunciam a situação da margem esquerda, no que tange à vida noturna e

curieux ou savants, marionnettes, automates, figures de cire et jeux mécaniques des foires Saint Germain et Saint-Laurant, des boulevards et du Palais-Royal. Dans une excellente introduction, M. Emile Campardon esquisse l’histoire générale de ce théâtre connu sous le nom de Théâtre de la Foire ». Ibidem, p. 632.

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entram, dessa forma, em contradição com as descrições huysmansianas da euforia noturna nos

arredores de Montparnasse:

Parece, todavia, difícil negar a hegemonia de certos centros de vida noturna na Paris do século XIX [...] Dessa geografia da febre noturna, a rive gauche se encontra excluída, assim como o Marais, a Cité ou a ilha Saint-Louis: apenas as loucuras juvenis do Quartier latin, ou as recepções invernais dos palacetes do bulevar Saint-Germain ressoam por vezes nesses bairros [...]. Desde os anos 1830, todos estão de acordo, é o Bulevar que constitui o centro vital das noites e madrugadas parisienses. [...] Se consideramos o conjunto do período, veremos que é, então, sem ultrapassar muito o perímetro delimitado pelas Tuileries, a parte central dos Halles e a parte ocidental do Boulevard que a topografia do prazer noturno evolui. [...] Como poderia ser diferente em uma Paris onde o contraste leste/oeste e margem direita/margem esquerda foi mais acentuado pelas obras do Segundo Império.128

Dentro dos limites da capital francesa – que crescia rapidamente –, mais

especificamente na margem esquerda do Sena, entre o 5º e o 6º distritos, encontra-se o Jardim

do Luxemburgo. Esse parque, que, outrora, acolhera muitas feiras, agrupava um bom número

de casas de espetáculos populares a preços muito baixos. As antigas trupes de feira foram se

estabelecendo pelas redondezas do jardim e acabaram por criar uma zona de diversão popular

que concorrera, até a década de 1860, com os teatros do bulevar do crime, localizado na

margem direita de Paris.

3.5.1 – Rive gauche: os dois Bobino

Os dois primeiros romances de J.-K. Huysmans, Marthe, histoire d’une fille e Les

soeurs Vatard, têm como cenário, respectivamente, os arredores do Jardim do Luxemburgo e

a rue de la Gaîté, no bairro de Montparnasse. O primeiro, entre o 6º e o 13º distritos, o

128 « Il semble toutefois difficile de nier l’hégémonie de certains foyers de vie nocturne dans le Paris du XIXe

siècle [...] De cette géographie de la fièvre nocturne, la rive gauche se trouve exclue, au même titre que le Marais, la Cité, ou l’île Saint-Louis : seules les fredaines estudiantes du Quartier latin ou les réceptions hivernales des hôtels particuliers du faubourg Saitn-Germain retentissent parfois dans ces quartiers [...]. Depuis les années 1830, tous s’accordent à le dire, c’est le Boulevard qui constitue le centre vital des soirées et des nuits parisiennes. [...] Si l’on considère l’ensemble de la période, c’est donc sans dépasser beaucoup le périmètre délimité par les Tuileries, les Halles centrales et la partie occidentale du Boulevard qu’évolue la topographie du plaisir nocturne. [...] comment en serait-il autrement dans un Paris où le contraste est/ouest et rive droite/rive gauche a encore été accentué par les travaux du Second Empire ». DELATTRE, op. cit., p. 213-214.

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segundo, entre os 6º e 14º, ambos na margem esquerda do rio Sena, numa região que viu a

criação e a decadência do teatro popular cantado da primeira metade do século XIX francês.

Nessa região, houve duas salas cujos nomes se confundem e deixam para a pesquisa

histórica uma discussão, já que ambas são lembradas por um nome que permanece, até hoje,

em uso: Bobino. Um turista que se hospede, atualmente, em um hotel parisiense, verá

propagandas anunciando uma apresentação de teatro de revista – com todos seus elementos e

clichês, tais como plumas, brilhos e mulheres levantando as pernas – no Bobino. Qual será,

porém, a sala que dá origem ao cabaré que sobreviveu à decadência do teatro de variedades no

século XX?

Bobino, Folies-Bobino, Teatro do Luxemburgo, rue de la Gaîté: a fim de tentar

compreender melhor essa organização espacial composta por inúmeros pequenos elementos e

de maneira labiríntica, vale retomar as palavras dos pesquisadores de Huysmans.

Segundo Fernande Zayed, referindo-se ao Bobino presente no romance Marthe,

histoire d’une fille:

A origem desse teatro remonta a 1812, quando o clown, acrobata e cantor Saix, conhecido como Bobino, estabelece sua barraca em um dos terrenos baldios que atravessariam mais tarde a avenue du Maine. Após algumas temporadas de feira, Bobino mandou construir, em 1816, um verdadeiro teatro de verdade, na esquina das ruas Madame e de Fleurus e o batizou como teatro do Luxemburgo.129

Da mesma forma, as duas salas aparecem nas palavras de Patrice Locmant, que chama

atenção para a diferença entre O Bobino de Marthe e o Bobino de Les Soeurs Vatard: “O

Teatro do Luxemburgo, dito Bobino, localizava-se na rue de Fleurus. Fora fundado pelo ator

Saix e não deve ser confundido com as Folies-Bobino da rue de la Gaîté.”130

129 “L’origine de ce théâtre remonte à 1812, quand le clown, acrobate et chanteur Saix, dit Bobino, établit sa barraque sur un des terrains vagues que devait traverser plus tard l’avenue du Maine. Après quelques saisons foraines, Bobino s’était fait construire en 1816 un vrai théâtre de variété, au coin de la rue Madame et de la rue de Fleurus, et le baptisa théâtre du Luxembourg ». ZAYED, op. cit., 1973, p. 65. 130 “Le Théâtre du Luxembourg, dit Bobino, se trouvait rue de Fleururs. Il avait été fondé par l’acteur Saix et ne doit pas être confondu avec les Folies Bobino de la rue da la Gaîté ». Nota 1 de Patrice Locmant em HUYSMANS, À Paris, p. 351.

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A conclusão mais simples parece ser a de que a primeira sala – o Bobino que consta

em Marthe – empresta o nome à sala da rue de la Gaîté, construída posteriormente. Em 24 de

novembro de 1873, o Théâtre du Luxembourg se torna as Folies-Bobino, na rue de la Gaîté,

bairro de Montparnasse. Oriundo de uma tradição de pantomima, de funambules (pessoa que

anda e dansa sobre a corda bamba), de danses de corde (fio ou cabo sobre o qual os acrobatas

evoluem) e de espetáculos de feira do Jardim do Luxemburgo, a sala (anteriormente situada

na rua Madame, ao lado do Jardim) pertencia ao senhor Carris. Dizia-se, no entanto, em 1813,

“ir ao Bobino” ou “ao Théâtre de Bobino” devido ao grande sucesso do cômico Bobino, que

era o concorrente, na rive gauche, dos cômicos do Bulevar do Crime. Em 1868, durante o

Segundo Império, o teatro foi demolido por razões de urbanismo, já mencionadas

anteriormente, e se dedicou às variedades depois da mudança para a rue de la Gaîté. Tentou-

se atingir o sucesso da época do palhaço Bobino; não foi possível atingi-lo, entretanto, durante

anos. Apesar da popularidade do café-concerto, cada vez mais presente na Terceira República,

as Folies-Bobino continuaram sendo um music-hall sem abrangência para além do bairro, até

o início do século XX.131

A origem das Folies-Bobino, presentes no romance Les Soeurs Vatard, parece ter uma

relação com o antigo Bobino de Marthe (o Théâtre du Luxembourg), conforme as palavras de

Fernanade Zayed:

Mas esse teatro foi destruído em 1868 por razões de urbanismo. Bobino se reinstalou em Montparnasse, no número 20 da rue de la Gaieté. É esse segundo teatro que é descrito em Les Soeurs Vatard com o nome de Folies-Bobino e que é o atual music-hall Bobino.132

Nos Annales du théâtre et de la musique de 1878, o volume introduzido por Le

Naturalisme au théâtre, de Émile Zola, constam dois espetáculos no repertório anual das

131 Cf. JANDO, op. cit., 1997, p. 83. 132 “Mais ce théâtre fut détruit en 1868 pour des raisons d’urbanisme. Bobino se réinstalla à Montparnasse, 20 rue de la Gaieté. C’est ce second théâtre qui est décrit dans Les Soeurs Vatard sous le nom de Folies-Bobino et qui est l’actuel Music-hall Bobino ». ZAYED, op. cit., p. 66.

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Folies-Bobino: a revista em um ato Y allons-nous à Bobino e o vaudeville em um ato Un

carnaval de domestiques.133 Já no ano anterior, Bobino e o Théâtre de Montparnasse (que

também aparece no romance Les Sœurs Vatard), são descritos pelos autores, dentro de um

conjunto de salas populares que, supostamente, dão continuidade às práticas cênicas do

extinto bulevar do crime:

São quase sempre os dramalhões do antigo bulevar que pagam as apresentações frequentadas unicamente pelos operários e os pequenos burgueses. [...] O Teatro de Batignolles, o de Belleville, o dos Gobelins, de Montparnasse, de Bobino, de Rochechouart, etc, dos quais alguns são reunidos sob uma mesma direção, trocam entre si suas trupes e seus respectivos repertórios, de maneira a variar tanto quanto possível os programas destinados a um público que, mesmo não sendo dos mais delicados, não se mostra menos exigente, tem suas preferências em relação a artistas, peças e mesmo a autores. Eles conservaram, aliás, um caráter popular que não se encontra em outro lugar.134

Acrescentando informações a propósito da circulação dos públicos desses teatros

chamados “de quartier”, os autores continuam: “Isso alegra os habitantes desses bairros que

compõem o público habitual dessas apresentações e vão ao teatro menos para se divertir, do

que por não saberem como preencher as longas noites de inverno”.135

3.5.2 – Rive droite: as Folies-Bergère

Da mesma maneira que Bobino, porém com mais notoriedade, as Folies-Bergère

atraem turistas de passagem por Paris para seus shows de semi-nudez sob strass e plumas.

Esse gênero de espetáculo se desenvolve a partir do início do século XX e, definitivamente,

não é igual àquele praticado no século XIX. A imagem que a maior parte do público faz das

133 NOËL & STOULLIG, Annales du théâtre et de la musique (T.4), p. 646. 134“Ce sont presque toujours les gros drames de l’ancien boulevard qui font les frais des représentations fréquentées uniquement par les ouvriers et les petits bourgeois. [...] Le théâtre de Batignolles, celui de Belleville, ceux des Gobelins, de Montparnasse, de Bobino, de Rochechouart, etc, dont quelques-uns même, sont réunis sous une même direction, échangent leurs troupes et leurs répertoires respectifs, de façon à varier autant que possible les programmes destinés à un public qui, pour n’être pas toujours délicat, ne s’en montre pas moins difficile, a ses préférences en fait d’artiste, de pièces et même d’auteurs. Ils ont d’ailleurs conservé un caractère populaire qu’on ne retrouverait pas ailleurs ». NOËL, Édouard & STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique (T.3). Paris : Charpentier, 1877, p. 599. 135 “Cela réjouit les habitants de ces quartiers qui composent le public habituel de ces représentations et viennent au théâtre moins pour se divertir que parce qu’ils ne savent comment employer les longues soirées de l’hiver ».Ibidem, p. 601.

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Folies está ligada à glamurização e à americanização do gênero music-hall, quando Josephine

Baker encantava a Paris dos Années folles. As Folies-Bergère de Huysmans são bem menos

turísticas, localizando-se num contexto de transição entre o teatro musicado popular da

primeira metade do século XIX e o music-hall da primeira metade do século XX. O programa

era variado : “cantores, dançarinos, números de destreza – um verdadeiro espetáculo de

music-hall e um dos primeiros que aconteceram em Paris ».136

O título de “folies », segundo Dominique Jando, vem do século XVIII, quando era

costume construir casas de divertimento para os prazeres particulares de alguns fidalgos. Por

serem construções no meio de um jardim, entre as folhas, pegou-se emprestado do latim o

termo “foliae », que siginifica « folha ». Essas edificações não devem ser confundidas com as

casas de prostituição. O sítio onde foram construídas as primeiras Folies-Begère, fazia parte,

anteriormente, de uma loja de treliças metálicas, que já tinha sido o jardim do hospital dos

Quinze-Vingts, que recebera o terreno de um monge que ali morava.137

Ao abrir as portas em 1869, na esquina das ruas Richet e Trévise (9º distrito), o

estabelecimento não encontrou o sucesso imediato, devido ao contexto político: a guerra

contra a Prússia e a Comuna de Paris no ano seguinte não possibilitavam os lucros na área do

divertimento teatral. A frequência só começa a aumentar e formar uma reputação do lugar ao

longo da década de 1870, com a administração de Léon Sari, vindo do Théâtre des

Délassements Comiques, sala famosa do bulevar do crime. A casa de espetáculos dessa fase,

que dura até 1885, é descrita por Huysmans no poema em prosa Les Folies-Bergère en 1879.

De acordo com C. Brunschwig :

As Folies-Bergère conheceram três carreiras. Primeiro, de 1869 a 1885, sob a direção de Léon Sari. É desse período que data o célebre promenoir, lugar de eleição das profissionais do bairro, vindas para aliciar a clientela e que foi

136 “[...] chanteurs,danseurs, numéros d’adresse – um vrai spectacle de music-hall, et un des premiers qui fut à Paris”. JANDO, op. cit., p. 49. 137O Quinze-vingts é um hospital fundado em Paris por Saint –Louis em 1254 para 300 cegos. Cf. Ibidem, p. 47.

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importante para a primeira reputação do estabelecimento. Depois, de 1885 a 1918, [...] alternaram-se revistas (a primeira se dá em 1886), números de canto [...] e atrações. [...] Enfim, em 1918, Paul Derval toma a direção e lhes dá esse estilo que fez a reputação das Folies no mundo inteiro.138

Como na maior parte dos estabelecimentos relacionados ao café-concerto e ao

espetáculo de variedades, a primeira fase é ligada a uma cena mais marginal, menos

glamurizada. É esse primeiro trajeto que Huysmans observa nas Folies. Um palco de números

variados em que o espetáculo não mostra uma estrutura organizada como será nas revistas de

1900 e nos shows dos Anos Loucos entre as duas guerras. Da mesma maneira, a dinâmica de

circulação do público é bem menos homogênea nessa primeira fase, visto que o famoso

promenoir (espaço sem assentos atrás da platéia onde o público pode circular e, no caso das

Folies, onde as prostitutas encontravam os clientes) tem tanto ou mais importância que o

palco. Num primeiro momento, a prostituição é inerente ao espetáculo, ao passo que, com a

passagem do século, tal aspecto se perde à medida que a proposta do estabelecimento aponta

para o luxo e o turismo.

Quanto à caixa cênica, esta não diferia dos teatros em geral, sobretudo aqueles

relacionados às operetas do Segundo Império: palco italiano com balcão semi-circular sobre

as frisas da platéia. A decoração era suntuosa e um jardim coberto oferecia aos clientes

música e pequenas atrações, onde, atualmente, está o grande hall.139

Huysmans não só descreve o interiore do prédio em mais detalhes que os livros de

história, como se debruça sobre as técnicas desenvolvidas em cena e os figurinos de artistas e

espectadores. Foi no intuito de chegar às descrições huysmanianas que as salas aqui

138 Les Folies-Bergère ont connu trois carrières. De 1869 à 1885 d’abord, sous la direction de Léon Sari. C’est de cette période que date le célèbre promenoir, lieu d’élection des professionnelles du quartier venues là pour aguicher le chaland, et qui ne fut pas pour rien dans la réputation première de l’établissement. Puis, de 1885 à 1918, [...] on alterna des revues (la première fut donée en 1886), tours de chant [...] et attractions. [...] Enfin, en 1918, Paul Derval en prend la direction et leur donne ce style qui a fait la réputation des Folies dans le monde entier. BRUNSGHWIG, C. et alii. Cent ans de Chanson Française, 1880 – 1980. Paris: Seuil, 1981, p.163.139 Cf. JANDO, op. cit., p. 47.

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mencionadas foram escolhidas : são exatamente as salas localizadas em textos do escritor na

passagem da década de 1870 para a de 1880. Huysmans ali esteve e dedicou algumas páginas

aos acontecimentos teatrais presentes nesse capítulo, no que se refere ao teatro chamado aqui

« não oficial ».

Quanto ao teatro bem colocado na sociedade, dentro do campo do poder, o autor de

Marthe simplesmente o ignora em seus romances e poemas em prosa. Há uma menção rápida

no romance À Vau-l’eau, de 1882, em que o protagonista é levado a duas montagens na

Opéra-Comique e, enfastiado com o espetáculo operístico, acaba por dormir e não assisti-lo.

Ao assistir Richard Coeur de Lion, o narrador critica:

Il finit par ne plus suivre du tout la pièce ; d’ailleurs, les chanteurs n’avaient aucune voix et ils se bornaient à avancer des bouches rondes au-dessus de la rampe, tandis que l’orchestre s’endormait, las d’épousseter la poussière de cette musique [...] Mon Dieu ! que tout cela est donc vieux ! [...] ils se levèrent, pendant que la toile baissait, saluée par les salves de claque .140

Diante do segundo espetáculo, Le Pré-aux-Clercs, a crítica é ainda mais severa:

Le tenor se tenait en scène comme un frotteur et il nasillait, quand par hasard il lui coulait de la bouche un filet de voix. Costumes, décors, tout était à l’avenant [...] Et la salle s’était emplie pourtant, et le public applaudissait aux passages soulignés par l’implacable claque .141

Essas duas óperas-cômicas são essencialmente dedicadas a um público burguês,

relacionadas ao divertimento dos espetáculos musicais ligeiros. Richard Coeur-de-Lion foi

composta para a Comédie-Italienne em 1784, por André Ernest Modeste Grétry. O libreto de

Michel-Jean Sedaine desenvolve a seguinte trama: Ricardo Coração de Leão foi preso em um

castelo inimigo, ao voltar da terceira cruzada, e sua amada, Marguerite, aciona um exército

para salvá-lo. Constam aí elementos tipicamente românticos, como a temática histórica, o

140 “Ele acabou por não acompanhar mais a peça; aliás, os cantores não tinham voz e se limitavam a avançar suas bocas redondas acima da ribalta, ao passo que a orquestra adormecia, cansada de tirar o pó dessa música. [...] Meu Deus! Como tudo isso é velho! [...] eles se levantaram enquanto o pano de boca caía, aplaudido por salvas da claque». HUYSMANS, Joris-Karl. À vau-l’eau. In :___. Romans I. Paris : Robert Laffont, 2005b, p. 511. 141 “O tenor se portava em cena como um faxineiro e cantava anasalado, quando, por acaso, escorria-lhe da boca um fio de voz. Figurinos, cenários, tudo era do mesmo nível [...] Entretanto a sala estava repleta e o público aplaudia nas passagens sublinhadas pela implacável claque». Ibidem, p. 512.

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cenário medieval e cenas de batalha. Por sua vez, Le Pré aux clercs é uma composição de

Ferdinand Herold, criada para a Opéra-Comique (salle des nouveautés) em 1832, com libreto

de François Antoine Eugène Planard, em que a rainha Margot ajuda sua dama de companhia a

casar-se com seu amado. Trata-se de uma “miniatura” da ópera Chronique du règne de

Charles IX (1829), de Prosper Mérimée.

De todo modo, ainda que Huysmans tenha descrito preferencialmente um palco

contrário às regras tradicionais da poesia dramática francesa, qual seja, o teatro de variedades,

sua apreciação pelo teatro de uma maneira geral é pouca, quase inexistente. Através de seu

protagonista de À vau-l’eau, o autor é categórico:

[...] M. Folantin s’indigna et, oubliant les réserves qu’il s’était promis d’observer, il déclara violemment qu’il ne mettait plus les pieds dans ce théâtre. - Mais pourquoi ? questionna M. Martinet. - Pourquoi? Mais d’abord, parce que s’il existait une pièce vivante et bien écrite –

et je n’en connais aucune pour ma part –, je la lirais chez moi, dans mon fauteuil, et ensuite parce que je n’ai pas besoin que des cabots, sans instruction pour la plupart, essaient de me traduire les pensées du monsieur qui les a chargés de débiter sa marchandise.142

As possíveis razões para tal predileção à margem esquerda, que podem vir a

estabelecer um posicionamento no campo de produção literária desse contexto, serão

discutidas no próximo capítulo, no qual os palcos aqui pesquisados serão trazidos novamente

à questão, dessa vez sob a luz da escrita huysmansiana.

142 “[...] O Sr. Folantin se indignou e, esquecendo as reservas que tinha prometido a si mesmo observar, declarou violentamente que não colocava mais os pés naquele teatro. - Mas por quê? Questionou o Sr. Martinet. - Por quê? Em primeiro lugar, porque se existisse uma peça vigorosa e bem escrita – e eu, de minha parte, não conheço nenhuma –, eu a leria em minha poltrona; e depois, porque eu não preciso que canastrões, sem instrução em sua maioria, tentem traduzir-me os pensamentos do senhor que os encarregou de vender seu produto”. Idem.

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4 – A ENUNCIAÇÃO HUYSMANSIANA E O TEATRO DE VARIEDADES

No último capítulo dessa pesquisa, temos como objetivo reconhecer a posição de

Huysmans no campo de produção literária dentro do recorte escolhido de sua carreira, apontar

seu posicionamento enunciativo na relação com outros enunciadores, analisar a cenografia

enunciativa dentro de um estado específico do campo e discutir certos elementos paratópicos

contidos em alguns de seus textos. Entretanto – antes de examinar detalhadamente o corpus

da pesquisa –, para o cumprimento das metas deste capítulo, é imprescindível determinar que

conceitos do quadro teórico serão empregados na análise dos textos huysmansianos.

Começando pelo conceito mais geral e mais antigo cronologicamente, a exposição do

quadro teórico acontecerá na sequência: “campo literário”, “capital”, “tomada de posição” e

“trajetória”, do sociólogo Pierre Bourdieu, sucedido pelos conceitos de “posicionamento”,

“cenografia enunciativa” e “paratopia”, do linguista Dominique Maingueneau, alguns já

anunciados nos capítulos anteriores .

4.1 – Campo literário, capital, tomada de posição, trajetória

Contrariamente às análises de obras literárias que tomam o texto como sistemas

fechados, alheios a determinantes histórico-sociais, Pierre Bourdieu apresenta um modelo de

crítica literária que considera a criação artística, sem deixar, porém, de analisar as forças

sociais que determinam a elaboração de tal obra. Isso não significa reduzir um ato criador a

um quadro socioeconômico no qual ele estaria inserido e pelo qual seria influenciado. A

crítica sociológica, segundo Bourdieu, vai de encontro ao idealismo do gênio criador, ao

mesmo tempo em que não está de acordo com um materialismo mecanicista que viu a criação

artística como um interesse de classe social.

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Segundo Bourdieu, o que diferencia o campo literário de um “economismo” seria o

desinteresse econômico, ou seja, há um mundo economicamente invertido, povoado por

produtores culturais (escritores e artistas) cujo interesse principal não está apenas na

remuneração. Por outro lado, os terrenos econômico e cultural não se dissociam por completo,

já que também existe uma lógica econômica no interesse estético dentro do campo literário e

o acesso ao lucro simbólico (o prestígio estético) pode reverter-se, após um certo tempo, em

capital econômico. É por homologia ao campo econômico que o campo literário é analisado

por Bourdieu.143

O campo literário se relaciona diretamente com o campo do poder. Bourdieu resume:

“O campo do poder é o espaço de relações de força entre agentes ou instituições tendo em

comum a posse de capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos

(econômico ou cultural, particularmente)”144. Isso quer dizer que a sociedade é um espaço de

diferenças em que agentes sociais incidem sobre outros através do capital que possuem,

naquela situação do espaço social. Esse grande terreno é formado por diferentes campos, que

funcionam como microcosmos em que, de maneira geral, agentes com determinada função

social estabelecem lutas em que há dominantes e dominados.

Bourdieu acredita que a estrutura geral do campo literário francês que conhecemos

hoje (seus traços mais característicos) está definitivamente estabelecida desde os anos 1880.

Nessa configuração, o sociólogo exemplifica os elementos pertencentes ao confronto básico

de tal estrutura, que seria a arte e o dinheiro:

A oposição entre a arte e o dinheiro, que estrutura o campo do poder, reproduz-se no seio do campo literário, sob a forma da oposição entre a arte “pura”, simbolicamente dominante, mas economicamente dominada – a poesia, encarnação exemplar da arte “pura”, se vende mal –, e a arte comercial, sob suas duas formas,

143 BOURDIEU, Les Règles de l’art, p. 354. 144 “Le champ du pouvoir est l’espace des rapports de force entre des agents ou des institutions ayant en commun de posséder le capital nécessaire pour occuper des positions dominantes dans les différents champs (économique ou culturel notamment)”. Ibidem, p. 353.

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o teatro de bulevar, que busca grande retorno financeiro e a consagração burguesa (a Academia), e a arte industrial, vaudeville, romance popular (folhetim), jornalismo, cabaré.145

Nesse campo de lutas, que funciona como um mercado de bens simbólicos, a

distribuição de capitais é o ponto de partida para o reconhecimento das posições dos agentes

no campo. Os capitais seriam, basicamente, de quatro tipos: capital econômico (representado,

logicamente, pelo dinheiro), capital cultural (a herança cultural, ou a cultura adquirida na

formação acadêmica), capital social (as redes e políticas sociais que geram alianças), capital

simbólico (o prestígio, o respeito).146

Desse modo, a fim de empregar os conceitos de Bourdieu para a análise da obra de

Huysmans, é necessário reconhecer com que outras forças e agentes as posições e os

posicionamentos huysmansianos se aliam ou rejeitam, pois será através dessas alianças e

oposições que o autor conquistará legitimidade para atuar no campo.

Como foi discutido até aqui, na linha teórica de Bourdieu, a análise das obras culturais

tem por objeto a homologia entre a estrutura da obra e a estrutura do campo literário, cujos

agentes estão em constante luta, a fim de conservar tal estrutura ou de subvertê-la. Nessa

dinâmica de luta, encontra-se a estratégia de um agente (dominante ou dominado) intitulada

“tomada de posição”, que se estabelece de acordo com a “posição” que esse agente ocupa

naquele estado do campo.

O conceito de posição está, portanto, relacionado com a distribuição do capital

simbólico, que pode legitimar um agente diante dos outros, e do espaço de posições estéticas

possíveis:

145 « L’opposition entre l’art et l’argent, qui structure le champ du pouvoir, se reproduit au sein du champ littéraire, sous la forme de l’opposition entre l’art « pur », symboliquement dominant mais économiquement dominé – la poésie, incarnation exemplaire de l’art « pur », se vend mal -, et l’art commercial, sous ses deux formes, le théâtre de boulevard, qui procure de forts revenus et la consécration bourgeoise (l’Académie), et l’art industriel, vaudeville, roman populaire (feuilleton), journalisme, cabaret ». BOURDIEU, Raisons pratiques, p. 73. 146 BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 154 et seq.

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É certo que a orientação da mudança depende do estado do sistema de possibilidades (por exemplo, estilísticas) que se encontram oferecidas pela história, e que determinam o que é possível e impossível de fazer ou pensar em dado momento do tempo em um campo determinado [...].147

Também em desacordo com a ambição de historicização na análise das obras

literárias, o conceito de “trajetória” desenvolve-se dentro da perspectiva da relação entre os

agentes e as forças que agem no campo. São postas de lado, portanto, as biografias que

consideram a trajetória de um autor como uma linha contínua e tomam o percurso de sua

carreira como um todo contínuo e unívoco:

É no interior de um estado determinado do campo, definido por um certo estado do espaço de possíveis que, em função da posição mais ou menos rara que ele ali ocupa, e que ele avalia distintamente de acordo com as disposições que ele deve a sua origem social, o escritor se orienta em direção a tais ou tais possíveis oferecidos [...] 148

Isso quer dizer que a trajetória é uma série de posições tomadas por um agente em

estados sucessivos do campo literário. Tais tomadas de posição existem em acordo com a

disposição que é atribuída a esse mesmo agente. Desse modo, aquilo que o agente possui

como capital permitirá que ele ocupe determinada posição e se direcione no sentido de manter

ou subverter o estado do campo. De um conjunto de tomadas de posições pode-se analisar a

trajetória de determinado agente, confrontando-a com outras tomadas de posição particulares

e não a partir de um suposto gênio criador que é influenciado puramente por seu caminho no

terreno social, ou seja, sua biografia.

Considerando como compreendido esse processo de lutas entre posições a fim de

conservar ou subverter o estado do campo em que se encontram, tal qual reflete Bourdieu, é

147 “Il est certain que l’orientation du changement dépend de l’état du système des possibilités (par exemple stylistiques) qui se trouvent offertes par l’histoire, et qui déterminent ce qu’il est possible et impossible de faire ou de penser à un moment donné du temps dans un champ déterminé ”. BOURDIEU, Raisons Pratiques, p. 70. 148 “C’est à l’intérieur d’un état déterminé du champ, défini par un certain état de l’espace des possibles, que, en fonction de la position plus ou moins rare qu’il y occupe, et qu’il évalue différemment selon les dispositions qu’il doit à son origine sociale, l’écrivain s’oriente vers tel ou tel des possibles offerts [...]”. Ibidem, p. 79.

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necessário partir para outro processo, que também se edifica dos choques entre posições, mas

que não terá mais uma abordagem essencialmente sociológica, porém uma visão discursiva.

4.2 – Posicionamento enunciativo, paratopia, cenografia enunciativa

O conceito de posicionamento, em Dominique Maingueneau, desenvolve-se a partir

das teorias de Pierre Bourdieu. Em primeiro lugar, Maingueneau compartilha com o sociólogo

uma análise da obra literária que desconstrói a individualidade criadora; portanto:

[...] a enunciação literária não escapa à órbita do direito. Fala e direito à fala se entrelaçam. De onde é possível vir legitimamente a fala, a quem pretende dirigir-se, sob qual modalidade, em que momento, em que lugar – eis aquilo a que nenhuma enunciação pode escapar.149

Maingueneau adota uma abordagem da Análise do Discurso em que “os escritores

produzem obras, mas escritores e obras são, num dado sentido, produzidos eles mesmos por

todo um complexo institucional de práticas”.150 O discurso literário, portanto, não é mera

consequência de um contexto social, mas é legitimado por estruturas do campo em que se

encontra e, por sua vez, redimensiona tais estruturas.

Diante desse terreno, o posicionamento enunciativo ramifica-se em algumas

particularidades, como a vocação enunciativa, os ritos genéticos, o investimento genérico.

Para posicionar-se dentro do campo, uma enunciação leva em consideração “a autoridade que

tem condições de adquirir, dadas suas conquistas e a trajetória que concebe a partir delas num

dado estado do campo”151, assim como a conduta social do autor, que percorre domínios “de

elaboração (leituras, discussões...), de redação, de pré-difusão, de publicação”152; e, também,

em que gênero um escritor investe e com que outros textos ele está dialogando: “Mediante os

149 MAINGUENEAU, op. cit., p. 43. 150 Ibidem, p. 53. 151 Ibidem, p. 152. 152 Ibidem, p. 155.

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gêneros mobilizados e excluídos, um dado posicionamento indica qual é para o escritor o

exercício legítimo da literatura [...]”.153

Ao analisar o posicionamento num recorte da trajetória de um escritor, então,

considera-se a memória da enunciação – ou seja, a que outros textos é atribuída uma filiação e

quais textos são negados categoricamente –, bem como as condições sociais que legitimam

um agente no campo a tomar a palavra. De qualquer maneira, existe uma dinâmica de

reversibilidade entre os elementos que estruturam um dado estado do campo e a enunciação: o

veículo da enunciação será, também, seu produto.

A enunciação problematiza o espaço literário como território estável dentro do espaço

social; portanto, ela negocia o lugar e o não-lugar da literatura em relação aos funcionamentos

tópicos da sociedade. Dessa forma, a paratopia, ou seja, o não-pertencimento a um lugar

estável, é própria do escritor: aquele que produz um discurso constituinte154 encontra-se entre

o interior e o exterior do espaço social.

Nas passagens escolhidas na obra de Huysmans, nesta dissertação, a sala de espetáculo

aparece como espaço de instabilidade em relação ao funcionamento do espaço econômico-

social burguês da Paris oitocentista, posto que serve como reduto dos que fogem da realidade

quotidiana, despendendo dinheiro em um divertimento ligeiro. Podemos relacionar tais

espaços sociais à análise de Maingueneau a respeito do café dos artistas, considerado um

elemento paratópico próprio do discurso literário:

O café é um dos principais lugares da vida de boêmio [...] implicando um confronto ambivalente entre o mundo burguês do trabalho e a reivindicação daqueles que eram na época chamados “artistas”. [...] O café se acha na fronteira do espaço social. Lugar de dissipação de tempo e dinheiro, de consumo de álcool e tabaco, ele permite que mundos distintos se encontrem lado a lado. Os artistas podem reunir-se nele em “bandos”, comungar na rejeição dessa sociedade

153 Ibidem, p. 168. 154 A noção de “discurso constituinte”, na Análise do Discurso de Maingueneau, abrange os discursos que se autorizam por si mesmos, ou seja, que são baseados em estatutos próprios, fundados pelos próprios discursos. Esses discursos legitimam-se ao refletir e tematizar sua própria “constituição”. Fazem parte dessa categoria, por exemplo, os discursos filosófico, religioso e literário. Ibidem, p. 59-62.

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burguesa que não os inclui nem exclui. Pois o artista é o perpétuo andarilho que acampa às margens da cidade [...]155

Entretanto, o enunciador não se encontra, em nenhum dos trechos da escrita de

Huysmans passados em teatros, completamente inserido naqueles ambientes, há sempre um

distanciamento crítico diante do espaço e do comportamento de seus frequentadores. Parece

haver uma dupla recusa por parte do enunciador: ele não tolera a companhia dos burgueses

bem colocados na sociedade, tampouco compartilha os códigos dos meios populares. Trata-se

de um posicionamento profundamente solitário dentro de um campo que oferece espaços

aparentemente incompatíveis com o enunciador.

Além dos ambientes e personagens paratópicos, relacionados à instabilidade do

escritor no espaço social, Maingueneau desenvolve a idéia de uma paratopia criadora, que se

produz no interior de uma obra e que está além da marginalização de um ambiente no espaço

social. Trata-se de paratopia vinculada a um projeto criador:

O escritor é alguém que não tem um lugar/uma razão de ser e que deve construir o território por meio dessa mesma falha. Não se trata de uma espécie de centauro que tivesse uma parte de si mergulhada no peso social e outra, mais nobre, voltada para as estrelas, mas alguém cuja enunciação se constitui através da própria impossibilidade de atribuir a si um verdadeiro lugar, que alimenta sua criação do caráter radicalmente problemático de seu próprio pertencimento ao campo literário e à sociedade.156

Conclui-se, dessa maneira, que a Análise do Discurso literário não coloca em questão

somente o escritor e a sociedade, mas estes dois últimos e o campo literário. O caráter

paratópico, inerente ao escritor e sua enunciação, é a posição “insustentável” que se torna, ao

mesmo tempo, o conteúdo e o motor de sua obra:

A enunciação literária é menos a manifestação triunfante de um “eu” soberano do que a negociação desse insustentável. Presente neste mundo e dele ausente, condenado a perder para ganhar, vítima e carrasco, o escritor não tem outra saída senão seguir em frente. É para escrever que preserva sua paratopia, e é escrevendo que pode se redimir desse erro.157

155 Ibidem, p. 97. 156 Ibidem, p. 108. 157 Ibidem, p. 115.

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Ora, é possível ser paratópico dentro do campo literário e tópico na sociedade.

Huysmans, por exemplo, recusava-se a dedicar suas linhas aos espetáculos burgueses, ao

mesmo tempo, trabalhou toda a vida como funcionário do Ministério do Interior.

Logicamente, sua posição no campo e no espaço social, bem como seus posicionamentos

enunciativos, não podem ser reduzidos à classificação “tópico” e “paratópico”, é necessário

compreender a situação “insustentável” na qual Huysmans se coloca para apoiar, por

exemplo, sua escolha por descrições das salas de entretenimento teatral dos meios populares

da margem esquerda do Sena. Ele não pertence totalmente àqueles espaços, ao mesmo tempo

em que não quer pertencer aos espaços burgueses. Em relação ao pertencimento e ao não-

pertencimento a esses espaços, Maingueneau reflete: “[...] é preciso ser e não ser desse

mundo, uma paratopia que não é a do etnólogo, observador e participante, mas a de um

homem, que deve aderir plenamente a esse mundo insuportável e afastar-se dele, não menos

plenamente”.158

Os conceitos descritos acima acabam por incluir a cenografia enunciativa. Este

conceito de Maingueneau está inserido na cena de enunciação, que intenciona ir além do

conceito semiológico de situação de enunciação, em que se descreve o local e as

circunstâncias de produção de um ato de enunciação, tal qual afirma Patrice Pavis.159 A cena

de enunciação, ao contrário, busca um processo de comunicação “do interior”, ou seja, da

encenação da fala e não “do exterior”, leia-se de um contexto puramente sociológico.160

A cena de enunciação é subdividida em cena englobante, cena genérica e cenografia

enunciativa. Como já foi dito no segundo capítulo, a cena englobante trata do tipo de discurso

– no caso de Huysmans, o literário; a cena genérica trata do gênero escolhido – aqui, o

158 Ibidem, p. 116. 159 Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 361. 160 Cf. MAINGUENEAU, op. cit., p. 250.

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romance, os poemas em prosa, a dramaturgia. A cenografia é o veículo, ou a maneira pela

qual o leitor recebe o ato da enunciação, chegando a ele antes mesmo das cenas englobante e

genérica. Na cenografia encontram-se a topografia, a cronografia e os estatutos de enunciador

e co-enunciador. Ela faz parte da obra literária e, também, a valida, torna-se seu resultado. Ela

traz à cena de enunciação não somente a escrita (em oposição à oralidade), bem como a

filiação a outras enunciações. Por fim, constrói-se nos processos de escrita e de leitura.161

Através da cenografia, as outras duas cenas não se reduzem a uma simples

categorização generalizada (“literatura” e “romance”, por exemplo). Um gênero não será mais

uma reprodução de uma fórmula de escrita tradicionalmente reconhecida, mas trará consigo a

memória intertextual, constituindo um posicionamento que impõe filiações a outros textos e,

também, rupturas. Por exemplo, Émile Zola, ao escrever Nana, escolhe como protagonista

uma prostituta e situa várias páginas de seu romance nas salas de espetáculo parisienses. Há,

nesse caso, um diálogo explícito com a Marthe de Huysmans, já que esta também se prostitui

e trabalha em um teatro musical. No entanto, há uma diferença entre os dois posicionamentos

quando Zola pretere as salas desconhecidas da margem esquerda do Sena, para debruçar-se

exclusivamente sobre o tout Paris dos grandes bulevares. Na cenografia enunciativa de Nana,

reconhecem-se muitos pontos em comum com o texto huysmansiano, mas também uma outra

topografia (o teatro burguês), outra cronografia (os escândalos do Segundo Império) e um

lugar diferente do enunciador (inserido naquele microcosmo burguês), o que modifica,

finalmente, o lugar do co-enunciador.

A cenografia enunciativa articula os conceitos empregados nessa pesquisa; ela

evidencia a posição de um ato de enunciação no campo, dá forma a um posicionamento

161 Cf. Ibidem, p. 251-253.

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dentro de uma obra, instaura um espaço próprio à obra (distinto do espaço social) que

denuncia o não-lugar (paratopia) próprio do escritor.

4.3 – Cenas de teatro em Huysmans

Nos capítulos 2 e 3, observou-se o recorte espaço-temporal referente ao que

chamamos de “primeira fase da escrita de Huysmans” a fim de localizar as passagens dos

textos huysmansianos escolhidos. Para análise do espaço, tomou-se como objeto as diferenças

sócio-político-culturais entre as duas margens do rio Sena, bem como um breve estudo

histórico de algumas salas de espetáculo que ali se situavam. Para o recorte temporal, foi

escolhido o contexto parisiense entre 1874 e 1881, período que começa com a publicação do

conjunto de poemas em prosa intitulado Le Drageoir aux épices, até a publicação do único

texto dramático de Huysmans, Pierrot Sceptique, passando por seus dois primeiros romances

– Marthe, histoire d’une fille e Les soeurs Vatard – e pelos poemas em prosa que formam os

Croquis Parisiens.

Nas páginas que se seguem, intencionamos discutir não somente a posição de

Huysmans no campo literário e sua relação com as propostas literárias do Naturalismo e o

teatro parisiense, assim como os elementos que constroem as enunciações de cada um dos

textos escolhidos. A questão será observada, entretanto, destacando, por vez, um trecho da

escrita huysmansiana, ou seja, ao invés de analisar o teatro em Huysmans de maneira

homogênea, cada passagem de seus textos que contenha um acontecimento teatral será

evidenciada e decupada. Para tal, a escolha dos trechos seguirá a cronologia de publicações:

primeiramente o Drageoir, seguido de Marthe e assim por diante.

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4.3.1 - Le Drageoir aux épices

Como foi dito na Introdução, a primeira publicação de Huysmans aparece em 1874,

com o título de Le Drageoir aux épices. Trata-se de uma compilação de poemas em prosa

publicados separadamente em periódicos como a Revue mensuelle, muito frequentemente

relacionada aos Pequenos Poemas em Prosa, de Baudelaire.

Em uma carta de 1877, endereçada ao poeta belga Théodore Hannon, Huysmans

descreve seu primeiro livro como uma produção bem jovem : “Ça été ma première gourme,

un bric-à-brac de moderne et de Moyen-Age – Aujourd’hui, bien certainement si le volume

devait paraître, j’en supprimerais une bonne moitié”.162

Em uma dessas curtas narrativas, intitulada La Rive Gauche, Huysmans descreve os

arredores da Bièvre, um rio que vinha desaguar no Sena e que cortava o sudeste de Paris. Esse

rio foi poluído pelo processo de industrialização na segunda metade no século XIX e acabou

por ser aterrado no território parisiense. Em um passeio por essa região ao sul, triste e árida,

quase rural, banhada pela Bièvre, num domingo, o narrador depara-se com um velho cabaré,

na frente do qual alguns operários se embebedam. Um grupo de malabaristas sai do cabaré

para se apresentar diante dos clientes.

Quanto à arquitetura do cabaré, Huysmans não oferece muitos detalhes, posto que o

número acontece na parte no exterior. Mas pode-se supor que seja um estabelecimento como

aquele que aparece em Marthe, situado na Poterne des Peupliers, mesma região ao sul do 13º

distrito (tal passagem de Marthe será analisada mais adiante, neste capítulo). A descrição

162 “Foram minhas primeiras extravagâncias, um bricabraque moderno e medieval. Hoje, certamente, se o volume tivesse que ser lançado, eu suprimiria a metade”. HUYSMANS, Joris-Karl. Lettres à Théodore Hannon (1876-1886) (édition présentée et annotée par Pierre Cogny et Christian Berg). Saint-Cyr-sur-Loire : Christian Pérot, 1985, p. 55.

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topográfica, que toma a fachada como objeto, diz: “[…] un petit cabaret dont l’auvent est

festonné de pampers d’un vert cru et de gros raisins bleus […]”163

Da mesma maneira que será visto em Marthe, esse estabelecimento, cujo

funcionamento gira em torno da venda de vinho e não de apresentações cênicas, se encontra

em uma região periférica, com pouca circulação de pessoas. Há, além dos operários, mulheres

com cestos em uma mão e, na outra, crianças que puxam carrinhos de madeira. Há, ali,

também as muralhas construídas no governo de Louis-Philippe.164

Trata-se, primeiro, de um rápido número de corda esfregada com giz (provavelmente

para não escorregar) e sustentada em dois postes em “x”. Um cômico, muito feio, toca um

instrumento. Todos os saltimbancos desse número, três meninos e uma menina, são muito

jovens. Eles se lançam na corda, fazem contorcionismos e acabam por cair no chão, se

machucando: “Ils débutaient dans le métier et, après quelques tordions, ils s’épatèrent sur les

pavés au risque de se rompre les os”.165

A segunda apresentação é um número de força. O pai dos jovens malabaristas espera

que seu primogênito estenda um tecido no chão e que os outros tragam pesos de ferro, que ele

se curva para levantar do chão. A demonstração de destreza começa:

Il se redressa et jongla avec ces masses comme avec des balles de son, les recevant, tantôt sur le biceps, tantôt sur le dos, entre les deux épaules.[...] Quelques tours d’adresse, quelques sauts périlleux terminèrent la séance, la troupe entra au cabaret et se fit servir à boire.166

163 “[...] um pequeno cabaré cujo alpendre era ornado com guirlandas de vinhas de um verde cru e grandes uvas azuis [...]”. HUYSMANS, Le Drageoir aux Épices, p.132. 164 Ibidem, nota g de Patrice Locmant, p. 137. 165 “Eles começavam na profissão e, após algumas torções, chocaram-se contra a calçada com o risco de romperem os ossos”. Ibidem, p. 132. 166 “Ele se endireitou e fez malabarismos com esses pesos como se fossem bolas de farelo, recebendo-as por vezes nos bíceps, por vezes nas costas, entre os ombros. [...] Alguns números de destreza, alguns saltos perigosos terminaram a sessão; a trupe entrou no cabaré e foi beber”. Ibidem, p. 133.

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Quanto ao figurino, para o primeiro número, a única indicação é a de que os jovens

saltimbancos cobriam “le front d’une bandelette rose, lamée de papillons de cuivre”.167A

verdade é que não havia um figurino, as crianças estavam vestidas com suas próprias roupas

e, na frente do público, cingiam a testa com um tecido, o que afirma o caráter improvisado de

tal espetáculo.

Já o senhor musculoso tinha os braços “entourés, comme de menottes, de bracelets de

fourrure, et un léger caleçon, en imitation de peau de tigre, jaspé de paillettes d’acier, [qui]

enveloppait ses reins et le haut de ses cuisses”.168 Trata-se de um figurino bem circense, com

motivos selvagens, africanos, que para o século XIX europeu está diretamente ligado ao gosto

pelo exótico e às expedições a lugares perigosos.

Como de hábito, os frequentadores dos estabelecimentos mais populares são

trabalhadores que, nas narrativas de Huysmans, estão sempre sob forte efeito do álcool. No

caso desse relato, o acontecimento cênico se dá no exterior do estabelecimento, em frente à

entrada. Desse modo, há muitas crianças na rua, correndo para ver os saltimbancos; trata-se de

uma cena quase rural, típica das cidades de interior. Os arredores de Paris, nessa época, eram

regiões ainda muito ruralizadas: se, ao norte, havia as colinas de Montmartre, ao sul, a

planície por onde corria a Bièvre misturava campo e industrialização repentina.

Se os pequenos números de um cabaré pouco frequentado são compatíveis com uma

tarde de domingo nas margens da Bièvre, a noite necessita da animação das multidões

populares. Para tal dinâmica de circulação de público, nada melhor do que a rue de la Gaîté,

no bairro de Montparnasse; e é para lá que o narrador de La Rive Gauche se encaminha, ao

fim do dia.

167 “[...] a testa com uma faixa rosa, bordada com borboletas douradas”. Ibidem, p. 132. 168 “[...] envolvidos, como se fosse por algemas, de pulseiras de pele e um leve calção, imitando pele de tigre, salpicados com paetês de aço, [que] cobriam sua cintura e o alto de suas coxas”. Ibidem, p. 133.

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A rue de la Gaîté será um dos ambientes mais revisitados por Huysmans em seu

segundo romance, qual seja, Les Soeurs Vatard. Trata-se de um ambiente descrito sempre

com uma movimentada circulação de clientes, vozes altas, risos e, naturalmente, bebida

barata. Suas palavras a propósito dessa rua, em Les Soeurs Vatard (que serão discutidas mais

à frente), se aproximam muito daquelas usadas nas descrições de Le Drageoir aux épices,

aqui transcritas:

J’atteignis bientôt la rue de la Gaîté. Je sortais de chemins peu frequentés, et je tombais dans une des rues les plus bruyantes. Des refrains de quadrilles s’échappaient des croisées ouvertes ; de grandes affiches, placées à la porte d’un café-concert, annonçaient les débuts de Mme Adèle, chanteuse de genre, et la rentrée de M. Adolphe, comique excentrique [...] Cette rue justifiait bien son joyeux nom.169

Quanto à iluminação, o narrador nos lembra que se trata de gás, o que torna o

ambiente mais escurecido e enfatiza um caráter teatral na relação de forte contraste entre o

claro e o escuro, tal qual o café-concerto em que ele entra e assiste a um espetáculo de

chansons.

O tema do café-concerto popular parece ser uma constante, quase uma obsessão, nessa

primeira fase da trajetória de Huysmans. As frases que descrevem os números, os corpos e os

figurinos desse palco seguem o mesmo padrão, repetindo-se a cada livro, como se seu autor

tivesse visto um único espetáculo e fizesse pequenas variações sobre ele. As citações que

seguem poderão ser comparadas às de Marthe e Les Soeurs Vatard, mais adiante.

Uma sala grande ornada com várias “masques grimaçants”170, simbolizando a

comédia. As máscaras, aqui, têm a mesma função das esculturas que a personagem Désirée

observa em Les Soeurs Vatard, quando de sua primeira visita às Folies-Bobino. Assim como

o narrador de La Rive Gauche escolhe começar a descrição da sala pelas máscaras retorcidas

169 “Logo cheguei à rue de la Gaîté. Saía de caminhos pouco frequentados e ia cair numa das ruas mais barulhentas. Refrãos de quadrilhas escapavam das janelas abertas; grandes cartazes, colocados na porta de um café-concerto, anunciavam as primeiras apresentações de Mme Adèle, cantora de gênero, e a volta do Sr. Adolphe, cômico excêntrico [...] Essa rua justificava bem seu alegre nome”. Idem.170 “máscaras caramunheiras ». Ibidem, p. 134.

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de um “rouge brique avec des cheveux d’un vert criard”171, em Les Soeurs Vatard, Désirée se

espanta com as “statues de femmes couronnées de feuilles et tenant sur leurs bras des cornes

d’abondance, et toutes étaient disloquées, manchotes, essorillées ou borgnes ».172

Por vezes, parece tratar-se da mesma sala. Por exemplo, no Drageoir: “La salle était

grande [...] La scène était haute et spacieuse »173, enquanto que em Les Soeurs Vatard : « une

salle, spacieuse, avec une large scène »174. É possível que Huysmans tenha se baseado, para as

duas descrições, em uma mesma visita ao Bobino, já que ambas as salas se localizam na

mesma rua.

De qualquer modo, as descrições, nas passagens que tratam de salas de espetáculo em

Huysmans, começam sempre pela arquitetura de interior e estabelecem um duplo jogo em

relação ao mau gosto do arquiteto. O enunciador mantêm seu olhar distanciado, mostrando

que não pertence às classes populares (que, provavelmente, encontrariam beleza ou conforto

naquela mistura de estilos), não deixando, entretanto, de se maravilhar com o caráter onírico e

teatral que aqueles ambientes exalam. Há um gosto pelo artificial de tais cenários, assim como

Baudelaire exalta e repudia a representação da natureza:

Quando se empenha o Poeta em conceber agora Essas grandezas raras que ardiam outrora, No palco em que a nudez humana luz sem brio, Sente ele n’alma um tenebroso calafrio Ante esse horrendo quadro de bestiais ultrajes. Ó quanto monstro a deplorar os próprios trajes! Ó troncos cômicos, figuras de espantalhos! Ó corpos magros, flácidos, inflados, falhos, [...]175

171 “[...] vermelho-tijolo com cabelos de um verde vivo ». Idem.172 “[...] estátuas de mulheres coroadas com folhas e segurando em seus braços cornucópias. E todas estavam deslocadas, manetas, sem orelhas ou zarolhas.” HUYSMANS, Les Soeurs Vatard. In:____. Romans 1. Paris : Robert Lafont, 2005b, p. 138. 173 “A sala era grande [...] O palco era alto e espaçoso”. HUYSMANS, Le Drageoir aux épices, p. 134. 174 “[...] uma sala, espaçosa, com um palco largo ». HUYSMANS, Les Soeurs Vatard, p. 138. 175 “ Le Poète aujourd’hui, quand il veut concevoir / Ces natives grandeurs, aux lieux où se font voir / La nudité de l’homme et celle de la femme, / Sent un froid ténébreux envelopper son âme / Devant ce noir tableau plein d’épouvantement. / O monstruosités pleurant leur vêtement ! / O ridicules troncs ! torses dignes de masques ! / O pauvres corps tordus, maigres, ventrus ou flasques ». BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal (trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 128-129.

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Huysmans mantém a tradição oitocentista de busca pelo realismo da obra de arte,

preterindo a natureza pura, em prol de “paraísos artificiais”, como essas salas de café-

concerto. A relação mimética com a natureza, presente em todos os movimentos artísticos,

está, em Huysmans e seus colegas naturalistas, exacerbada na prática da escrita, ao mesmo

tempo em que a artificialidade moderna é exaltada. Isso quer dizer que o autor do Drageoir

está em consonância com a tendência oitocentista em descrever o que o escritor tem diante

dos olhos, priorizando, por sua vez, nos textos em questão, os ambientes artificiais, repletos

de simulacros, em que o homem faz a caricatura de si mesmo e da natureza. Huysmans

descreve de maneira realista espaços que contrastam com o “natural”, que são construídos de

pura artificialidade.

No café-concerto o principal é a canção, logo, o primeiro número descrito se

desenvolve através de uma canção aparentemente muito mal cantada por um primeiro tenor.

O artista, diante de uma orquestra de aproximadamente dez músicos, possui uma voz

estridente e parece ter muita empatia com a platéia, já que ambas as partes (público e artista)

se emocionam com as respectivas performances: por um lado, os espectadores pedem “bis”

com aplausos frenéticos, por outro, o artista regozija-se com tanta euforia e ainda volta para o

“bis”:

Cinq couplets défilent à la suite, puis il fait un profond salut, le bras gauche ballant, la main droite posée sur la poitrine, arrive à la porte du fond, se retourne, fait un nouveau salut et se retire. Des applaudissements frénétiques éclatent de tous côtés, on crie : bis, on frappe des pieds [...]”176

O narrador, acompanhado por um amigo pintor que acabara de encontrar, tem

dificuldade em compreender as palavras cantadas pelo artista no palco e exprime uma visão

muito categórica do que seria (ou não seria) música ao afirmar: “On applaudit et il semble

176 “Cinco cançonetas se seguem, depois ele faz uma profunda reverência, o braço esquerdo pendendo, a mão direita pousada sobre o peito, chega à porta do fundo, vira-se, faz uma nova reverência e se retira. Aplausos frenéticos estouram de todos os lados, gritam “bis”, batem os pés [...]”. HUYSMANS, Le Drageoir aux épices,p. 134.

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convaincu qu’il chante de la musique”177. Ao que parece, apesar de se divertir em

estabelecimentos dedicados aos prazeres cênicos populares, como aqueles da rue de la Gaîté,

o narrador deixa claro que não pertence completamente àquele ambiente, ao não compartilhar

as mesmas referências estéticas com o público ali presente. Essa crítica ao desempenho

musical no café-concerto se repetirá nos romances de Huysmans.

O segundo número do espetáculo estabelece clara correspondência com uma das

apresentações do café-concerto em que Marthe, personagem epônimo de seu primeiro

romance, trabalha. Trata-se de um clássico do espetáculo de cabaré: a mulher gorda que dança

e/ou canta, com roupa sensual. No primeiro filme de Marlene Dietrich, “O Anjo Azul”, que

tem como fundo o típico cabaré alemão da República de Weimar (gênero cênico que

redimensiona o cabaré francês do século XIX em espetáculo mais intelectual e político), há

uma cena na qual uma mulher obesa se exibe no palco com uma roupa bem próxima daquela

descrita por Huysmans em La Rive Gauche.

A entrada em cena é anunciada por um estouro de pratos e de tambor, abrindo-se uma

porta na rotunda (o fundo do palco) e, então, “[...] une femme obèse [...] s’avance jusqu’au

trou du souffleur, se dandine et braille, en gesticulant: Ah! Rendez-moi mon militaire”178, uma

canção idiota e vulgar, ao olhar do enunciador. A partir dessa opinião, apesar de somente esse

verso estar transcrito no texto, pode-se imaginar que os versos que seguem são frases de duplo

sentido e de riso fácil.

Quanto ao figurino, o primeiro tenor está vestido com um “[...] habit noir, orné de

gants presque propres”179. Ora, as luvas de gala são brancas, portanto fáceis de sujar e de

mostrar o desgaste do tempo. São muito recorrentes nas descrições huysmansianas imagens

177 “As pessoas aplaudem e ele parece convencido de que canta música”. Idem.178 “[...] uma mulher obesa [...] caminha até o buraco do ponto, balança desengonçadamente e berra, gesticulando: Ah! Devolvam-me meu militar”. Ibidem, p. 135. 179 “[...] fraque preto, ornado com luvas quase limpas”. Ibidem, p. 134.

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de vestimentas decadentes, fora do tamanho da pessoa que as usa e velhas, sobretudo quando

quem as usa é um artista de cabaré. Essa vontade, tipicamente naturalista, da descrição quase

escatológica do corpo aparecerá em seus dois primeiros romances. Em Les Soeurs Vatard,

inclusive, são as luvas que denunciam novamente o desgaste quando é escrito que a artista

“[...] regarda ses gants à huit boutons dont les pointes étaient roidies par l’empois des

sueurs”180; o suor descrito é o que secou de outras apresentações, naturalmente.

Quanto à cantora obesa, seu corpo é coberto por um corpete muito decotado e nada

mais é dito a respeito. Há, no entanto, correspondências que nos permitem estender um pouco

mais a discussão. Uma mulher obesa também aparece em cena exatamente antes da entrada de

Marthe. Da mulher gorda não se descreve o figurino, quanto à personagem Marthe, no

entanto, o enunciador constrói a imagem de uma mulher cujos quadris mal cabem dentro da

seda que ela mesma cortara para fazer seu vestido de cena.

Já foi dito que os aplausos são eufóricos, ou seja, os espectadores apreciam o que

assistem. Trata-se de um espetáculo que mantém boa comunicação com o público, ou este

último tem seu senso artístico alterado pela bebida. O enunciador parece ser desta opinião, já

que coloca em contraste a histeria dos aplausos e a má qualidade do espetáculo.

Os comentários a propósito da relação palco-platéia alternam entusiasmo exagerado

dos espectadores: “Des applaudissements éclatent à la galerie d’en haut, assez mal composée,

nous devons le dire”181; e descrições quase cruéis do caráter improvisado do espetáculo, como

o retrato do primeiro tenor: “[...] le teint livide, la bouche légèrement dépouillée de ses dents

[...]”182. A antítese do elogio desmesurado e a pobreza plástica encaminham o leitor a uma

dimensão construída para ser bizarra, para chocar.

180 “[...] olhou suas luvas de oito botões cujas pontas estavam endurecidas pela goma do suor”. Ibidem, p. 140. 181 “Aplausos estouram na galeria do alto, bastante mal composta, devemos dizer”. Idem.182 “[...] a tez lívida, a boca ligeiramente desprovida de dentes [...]”. Idem.

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O posicionamento do enunciador nesse texto, em relação ao caráter das canções desse

tipo de café-concerto, é identificado quando afirma:

Cette chanson est idiote et canaille ; eh bien ! à tout prendre, j’aime encore mieux cette ineptie que ces désolantes chansons où le petit oiseau fait la cour à la mousse et ou “ton oeil plein de larmes” se bat dans des simulacres de vers avec une rime tristement maladive.183

Esse posicionamento se encontra em um lugar curioso, entre o elogio e o não-

pertencimento ao terreno da canção popular e do espetáculo. Por um lado, o enunciador

assume seu caráter flaneur de simples observador, de alguém que recebe as informações da

cidade grande quase sem intenção de falar sobre elas; por outro, essa passividade de

espectador é posta de lado a partir do momento em que ele toma partido do gênero popular

em contraponto às canções lacrimosas dos antigos melodramas ou mesmo dos vaudevilles em

voga na margem direita da capital.

O elogio à autenticidade da canção popular em confronto com a artificialidade das

canções melosas traz à luz a paratopia enunciativa desse texto que, ao escolher descrever um

café-concerto cujo primeiro tenor desenvolve sua canção agredindo todas as normas da

técnica tradicional de canto, sugere um “maravilhamento crítico” com seres tão acessíveis

socialmente e tão absurdos esteticamente.

4.3.2 - Marthe, histoire d’une fille

Marthe só foi publicado na França em 1879, por Derveaux, ilustrado com águas-fortes

de Jean-Louis Forain. Sua primeira publicação se deu na Bélgica, em 1876. Esse livro, que é o

primeiro romance publicado de Huysmasn, foi censurado na França por seu suposto caráter

pornográfico: “Ce volume Marthe vient de paraître à Bruxelles. Il a été arrêté immédiatement

183 “Esta canção é idiota e licenciosa; Mas ora! Considerando os prós e os contras, ainda prefiro essa imbecilidade a essas canções desoladoras em que o passarinho faz a corte ao musgo e em que “seu olho cheio de lágrimas” luta em simulacros de versos com uma rima tristemente doentia”. Ibidem, p. 135.

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en France comme outrageant la morale publique”184. Na ocasião de sua publicação na Bélgica,

em 1876, Huysmans escreve a Edmond de Goncourt, talvez para se justificar em relação ao

tema do livro, semelhante ao de La Fille Elisa (1877), que Goncourt ainda não havia

publicado, e lamenta a censura imposta a Marthe:

Je ne comprends pas. J’ai cru, en mon âme et conscience, faire une oeuvre d’art, morale et anti-érotique. Enfin, quoiqu’il en soit, j’ai pensé, Monsieur, que cette malencontreuse aventure pourrait vous intéresser. A la demande que j’ai adressée à la censure de faire mettre des cartons, il fut répondu : C’est inutile le sujet même est suffisant pour justifier la saisie du livre.185

Após afirmar desconhecer o fato de que Goncourt havia escrito La Fille Élisa e de

descrever o contexto em que se desenrolava Marthe, Huysmans faz muitos elogios à obra de

Goncourt. Entretanto, justificar-se em relação à semelhança dos dois livros não parece ser a

principal finalidade da carta. Nas palavras que seguem, a tentativa de conquistar protetores no

campo de produção literária começa a tornar-se evidente, como um pedido de apoio:

Et puis, quand un auteur s’imagine avoir fait oeuvre d’artiste, et qu’il se trouve condamné sous prévention de pornographie, il ne peut qu’en appeler aux maîtres qu’il aime, les suppliant de lire son livre et de le défendre, de vive voix, contre les accusations insanes qui pèsent sur lui.186

Sua iniciativa parece ter sido bem sucedida, posto que, na segunda carta que envia a

Goncourt, oito meses mais tarde (portanto, em junho de 1877), Huysmans usa um tom menos

formal, mudando o tratamento “Monsieur” por “cher maître”. No entanto, é curioso que, em

abril do mesmo ano, Huysmans escreve a Théodore Hannon maldizendo Goncourt: “[...] pour

184 “Esse volume, Marthe, acaba de ser lançado em Bruxelas. Ele foi censurado imediatamente na França por ultrajar a moral pública”. HUYSMANS, Joris-Karl. Lettre Inédites à Edmond de Goncourt (publiées et annotées par Pierre Lambert et présentées par Pierre Cogny). Paris : Nizet, 1956, p. 47. 185 “Não compreendo. Acreditava, em minha alma e consciência, ter feito uma obra de arte, moral e anti-erótica. Enfim, o que quer que seja, pensei, senhor, que essa malfadada aventura poderia interessar-lhe. Ao pedido que enderecei à censura para embalar em cartolina, foi-me respondido: É inútil, o próprio assunto é suficiente para justificar a apreensão do livro”. Idem.186 “Além disso, quando um autor imagina ter feito uma obra de arte e encontra-se condenado sob prevenção de pornografia, ele só pode recorrer aos mestres de que ele gosta, suplicando-lhes para ler seu livro e para defendê-lo, em alto e bom som, contra as acusações insanas que pesam sobre ele”. Ibidem, p. 48.

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vous dire l’entière vérité, nous sommes carrément embêtés – Nous ne sommes absolument

soutenus que par Zola ! Goncourt est un égoïste qui se moque de nous »187.

De fato, no fim do ano de 1876, Huysmans começou a frequentar os encontros na casa

de Émile Zola, no 17º distrito de Paris, tendo sido introduzido no grupo de jovens naturalistas

por Henry Céard. À época, Zola começava a desfrutar do sucesso de L’Assommoir e sentia-se

com disposição para liderar um grupo de jovens escritores, interessados em publicar seus

próprios textos. Tal sucesso, na verdade, estava relacionado ao público leitor, e não à crítica

ou aos editores. Huysmans resume a situação dos naturalistas em Paris nessa época em uma

carta a Théodore Hannon: “[...] les grands journaux et les revues soi-disant sérieuses nous

ferment leurs portes avec une admirable entente, nous reprochant d’écrire un français

inintelligible ».188

Huysmans, investindo claramente nesse grupo, publica artigos sobre Zola em jornais e

revistas literárias da Bélgica189. Para mostrar sua devoção ao mestre, escreve-lhe perguntando:

[...] Me permettez-vous de dire une bonne fois [...] que vous êtes un homme extraordinaire, vivant en marge de la société. Je vous envoie sous ce pli, la première partie de l’article qui vous concerne – vous plaît-elle ? voulez-vous que je la change ? – je ferai ce qu’il vous plaira.190

No momento em que tem seu romance Marthe recusado pelos editores e jornais

franceses, Huysmans vislumbra a possibilidade de se impor no campo através de um núcleo

de escritores, que, liderados por Zola, levantavam a bandeira naturalista da literatura. Não será

187 “[...] para dizer-lhe a inteira verdade, estamos realmente aborrecidos – Só somos absolutamente apoiados por Zola! Goncourt é um egoísta que nos desdenha [...]”. HUYSMANS, Lettres à Théodore Hannon (1876-1886), p. 54. 188“[...] os grandes jornais e as revistas supostamente sérias fecham-nos as portas com uma admirável cumplicidade, repreendendo-nos por escrever num francês ininteligível”. Ibidem, p. 38. 189 Ver a esse respeito: CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Huysmans critique de Zola. Excavatio.International Review for Multidisciplinary Approaches and Comparative Studies related to Emile Zola and his Time, Naturalism, Canada: University of Alberta / AIZEN, nº 14 (1-2), june 2001, p. 244-254. 190 “Permita-me dizer de uma vez por todas [...] que o senhor é um homem extraordinário, vivendo à margem da sociedade. Envio-lhe, nesse envelope, a primeira parte do artigo que lhe concerne. Ela lhe agrada? Quer que eu a mude? Farei o que for de seu agrado”. HUYSMANS, Joris-Karl. Lettres Inédites à Émile Zola (publiées et annotées par Pierre Lambert, avec introduction de Pierre Cogny). Genève/Lille : Droz/Giard, 1953, p. 7.

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por acaso, portanto, que encontraremos referências comuns, nas obras desse período, entre

Huysmans e seus colegas.

Foi nos arredores do Jardim do Luxemburgo que Joris-Karl passou sua infância e

juventude. Essa região, no 6º distrito da capital, está presente em todo seu primeiro romance

publicado, Marthe, histoire d’une fille. Muitas das descrições vêm da rotina que levou durante

anos nesses arredores, dos quais conhecia detalhes da arquitetura, o cheiro das pessoas e das

comidas:

Georges amava esses lugares de passagem, essas amizades de um dia, calorosas e entusiastas, esses espaços transitórios que a cidade tolerava em certas datas, os campos de feira, esses music-hall plantados nos cruzamentos dos bairros populares, esses teatros precários onde artistas desconhecidos enganavam o público com seus figurinos de strass e de paetê.191

A primeira cena de Marthe, histoire d’une fille, assim como a de Nana192, está

ambientada numa apresentação teatral em que a protagonista, ao entrar em cena cantando,

desencadeia grande admiração e animação do público masculino. Esta reação não possui

nenhuma relação com seu talento artístico, o frenesi é causado por seu corpo insinuado sob o

vestido e seu requebrado. Ambas as protagonistas vivem do “amor” para se sustentar, cada

uma a sua maneira. Enquanto Nana é mantida por homens casados, pertencentes à classe da

alta burguesia, Marthe pertence aos níveis sociais mais baixos da sociedade parisiense e

continua, do começo ao fim, na miséria.

Através da imagem do palhaço decadente, o narrador de Marthe traz à memória a

escrita de Baudelaire, que flana pelos espetáculos populares das ruas de Paris duas décadas

191 “Georges aimait ces lieux de passages, ces amitiés d’un jour, chaleureuses et enthousiastes, ces espaces transitoires que la ville tolérait à dates fixes, ces champs de foire, ces music-hall plantés aux carrefours des quartiers populaires, ces théâtres précaires où des artistes jetaient de la poudre aux yeux dans leurs costumes de strass et de paillettes”. VIRCONDELET, op. cit., p. 50.192 O romance Nana, de Émile Zola, o nono livro da célebre série que conta a saga da família Rougon-Macquart,foi publicado em 1880, quatro anos mais tarde do que a primeira publicação, na Bélgica, de Marthe, de Huysmans.

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mais cedo. Em Huysmans o clown – que morre por causa do alcoolismo no final –, está

sempre tentando esquecer, na bebida barata, a crueza de sua realidade:

[...] Ginginet s’était teint, depuis l’après-midi, la gargamelle d’un rouge des plus vifs; il prétendait avoir dans la gorge des dunes qu’il arrosait à grandes vagues de vin.[...] et ému jusqu’aux larmes, Ginginet accentua son soliloque par un vigoureux coup de poing sur la table, qui fit moutonner le vin dans son verre et éclaboussa son vieux masque pelé de larges gouttes rouges.193

Em Baudelaire, o comediante de gesto está à margem da sociedade e parece invisível

no meio da multidão:

[...] Eu vi um pobre saltimbanco, curvado, caduco, decrépito, uma ruína de homem, encostado contra um dos esteios de sua cabana [...]. Aqui, a miséria absoluta, a miséria fantasiada, para o cúmulo do horror, com trapos cômicos, onde a necessidade, bem mais que a arte, havia introduzido o contraste. Mas que olhar profundo, inesquecível, ele percorria sobre multidão e as luzes, cuja vaga ondulante parava a alguns passos de sua repulsiva miséria! 194

É sobre essa atmosfera decadente e popular que se debruça Huysmans em Marthe. É a

imagem de um teatro frequentado por estudantes e artistas que gritavam todo o tempo da

platéia interrompendo a peça; já nas coxias, histriões mortos de frio que se aqueciam

próximos à chaminé. O Théâtre du Luxembourg, localizado à rue de Fleurus, pouco tem de

espetáculo teatral e muito de divertimento histérico, tal qual é descrito por Huysmans:

A n’en pas douter, le spectacle le plus intéressant n’était pas sur la scène, mais bien dans la salle. Le théâtre de Bobino, dit Bobinche, n’était point rempli, comme ceux de Montparnasse, de Grenelle e des autres anciennes banlieues, par des ouvriers qui voulaient écouter sérieusement une pièce. Bobino avait pour clientèle les étudiants et les artistes, une race bruyante [...].195

193 “Ginginet tinha tingido a goela, desde a tarde, com um tinto dos mais fortes; ele dizia ter na garganta dunas que ele regava com grandes ondas de vinho [...] e emocionado até as lágrimas, Ginginet acentuou seu solilóquio com um vigoroso soco na mesa, que fez agitar o vinho em seu copo e salpicou sua velha máscara descascada com grandes gotas vermelhas”. HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 14-15. 194 “[...] Je vis un pauvre saltimbanque, voûté, caduc, décrépit, une ruine d’homme, adossé sur un des poteaux de sa cahute [...]. Ici la misère absolue, la misère affublée, pour le comble d’horreur, de haillons comiques, où la nécessité, bien plus que l’art, avait introduit le contraste. [...] Mais quel regard profond, inoubliable, il promenait sur la foule et les lumières, dont le flot mouvant s’arrêtait à quelques pas de sa répulsive misère ! ». BAUDELAIRE, Le Spleen de Paris, petits poèmes en prose, p. 94. 195 “Sem dúvida, o espetáculo mais interessante não estava sobre o palco, mas na sala. O teatro de Bobino, chamado de Bobinche, não era frequentado, como os de Montparnasse, os de Grenelle e dos outros antigos subúrbios, por trabalhadores que queriam ouvir seriamente uma peça. Bobino tinha por clientela os estudantes e os artistas, uma raça barulhenta [...]» HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 13.

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A equipe do espetáculo descrito no texto conta com a presença de um velho mestre de

cerimônias, meio palhaço, meio cabaretier, cujo rosto está coberto por uma máscara de

maquiagem pesada. Esse personagem diz as primeiras palavras do livro, ao dar uma aula de

como se portar em cena, já advertindo Marthe por ela não estar ainda suficientemente vulgar:

[...] tu ne chantes pas mal, tu es gracieuse, tu as une certaine entente de la scène, mais ce n’est pas encore cela. Écoute-moi bien, c’est un vieux cabotin, une roulure de la province et de l’étranger qui te parle, un vieux loup de planche, aussi fort sur les tréteaux qu’un marin sur la mer, eh bien ! tu n’es pas encore assez canaille ! ça viendra, bibiche, mais tu ne donnes pas encore assez moelleusement le coup des hanches qui doit pimenter le « boum » de la grosse caisse.196

É claro o jogo de referências entre a prostituta pobre de Huysmans e aquela sustentada

por burgueses descrita em Nana, de Zola. Se Marthe recebe esse conselho do velho cômico de

um teatro da margem esquerda, Nana é anunciada pelo diretor do Théâtre des Variétés como

uma mulher que não precisa conhecer as técnicas cênicas, já que possui sua sedução feminina:

Será que uma mulher precisa saber interpretar e cantar? Ah, meu querido, você é muito bobo... Nana tem outra coisa, por Deus! E algo que substitui tudo. Eu a farejei, é terrivelmente forte nela, ou o meu nariz é como o de um imbecil... Você vai ver, você vai ver, bastará ela aparecer que a sala inteira ficará de quatro.197

O elenco conta, também, com dançarinas audaciosamente decotadas, que fazem a

alegria do bombeiro. A figura do régisseur, espécie de diretor de cena, está presente e marca

bem o período exatamente anterior ao aparecimento do metteur-en-scène:

Le pompier de service était à son poste et, bien qu’à moitié mort de froid, il avait des flambes dans les yeux quand il regardait le dessous des jupes de quelques danseuses égarées dans cette revue. Le régisseur frappa les trois coups, la toile se leva lentement, découvrant une salle bondée de monde.198

196 “[...] até que você não canta mal, é graciosa, tem certo entendimento do palco, mais ainda não é isso. Escute-me bem, é um velho canastrão, uma marafona da província e do estrangeiro que te fala, um velho lobo dos palcos, tão bom no tablado quanto um marinheiro no mar, ora bolas. Você ainda não está suficientemente vulgar! Você vai conseguir, lindinha, mas você ainda não está dando com bastante malemolência a requebrada que deve apimentar o “bum” do tambor”. Ibidem, p. 12. 197 “Est-ce qu’une femme a besoin de savoir jouer et chanter? Ah ! mon petit, tu es trop bête... Nana a une autre chose, parbleu ! et quelque chose qui remplace tout. Je l’ai flairée, c’est joliment fort chez elle, ou je n’ai plus que le nez d’un imbécile... Tu verras, tu verras, elle n’a qu’à paraître, toute la salle tirera la langue ». ZOLA, Nana, p. 26. 198 “O bombeiro de serviço estava em seu posto e, ainda que em parte morto de frio, tinha chamas nos olhos quando olhava as anáguas de algumas dançarinas perdidas naquela revista. O régisseur bateu os três toques, a

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O régisseur não é um profissional cujo ofício é o de conceber, junto aos profissionais

de cada área, todos os elementos do espetáculo, tal qual fará o encenador. Ele,

frequentemente, fazia parte do elenco e ajudava a ensaiar e a colocar em ordem os atores.

Ainda hoje existe esse ofício, mesmo com o advento da encenação. Patrice Pavis o define: “O

diretor de cena se encarrega da organização técnica da maquinaria e da cena, enquanto o

encenador gerencia o resultado da operação dos diversos materiais e cuida de sua

apresentação estética”.199 Entre os profissionais descritos, o ponto (aquele que sopra, de

dentro de uma abertura no chão do palco, o texto aos atores que o esquecem) aparece

rapidamente: “Soutenue par le souffleur et par Ginginet, Marthe fut applaudie à outrance”.200

O gênero de espetáculo apresentado é a revista: há o comediante-comentador, há

números cantados e moças seminuas dançando. A fim de deixar claro que se trata de um

estabelecimento popular, o narrador resume que o repertório do Théâtre du Luxembourg é

constituído por melodramas exagerados e loucas revistas. Na verdade, o espetáculo descrito

em alguns detalhes parece uma opereta decaída, no sentido que se assemelha bastante às

produções de Offenbach, descritas posteriormente em Nana, porém com um nível financeiro e

social bem mais baixo (se considerarmos que no romance de Zola o público que assiste à

protagonista sobre o palco faz parte do Tout Paris).

Em Nana, a arquitetura teatral pressupõe que as escalas sociais se organizam de

maneira inversa àquela do gráfico de uma pirâmide social, ou seja, ao invés das classes

detentoras do capital econômico ocuparem a ponta superior, no teatro, elas encontram-se no

nível do chão – platéia, frisas e camarotes. Isso pode ser observado quando todos os

cortina levantou-se lentamente, revelando uma sala entupida de gente”. HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 12. 199 PAVIS, op. cit., p. 100. 200 “Apoiada pelo ponto e por Ginginet, Marthe foi aplaudida freneticamente”. HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 13.

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personagens se cumprimentam antes do espetáculo, trata-se da alta burguesia parisiense, e

todos se encontram entre platéia e camarotes:

Mignon e Steiner estavam juntos, em uma frisa, com os punhos apoiados sobre o veludo da ribalta, lado a lado. Blache de Sivry parecia ocupar sozinha um camarote do procênio. Mas la Faloise examinou sobretudo Daguenet, que tinha um lugar na platéia, duas fileiras à frente do seu”.201

Quando mira o balcão, um andar acima do nível do palco, o personagem Fauchery

reconhece uma senhora que, segundo sua descrição, não tem as origens tão dignas: “Você não

conhece Gaga?... Ela fez as delícias dos primeiros anos do reino de Louis-Philippe. Agora, ela

arrasta a filha consigo para todos os lados”202.

Já quando o narrador em Marthe descreve a arquitetura da sala, não parece haver

verdadeiramente grande diferença entre o público abaixo ou acima, já que existe, de maneira

geral, um caráter popular e festivo na sala do Bobino:

Le peintre qui siégeait aux stalles en bas, et l’étudiant en vareuse rouge qui nichait en haut, au poulailler, s’égosillèrent de plus belle, en lazzis et en calembredaines, à la grande joie des spectateurs que la pièce ennuyait à mourir.203

Os espelhamentos entre essas duas personagens não encontram um sentido único,

como se um autor fizesse referência ao outro – o que poderia levar à suposição que Zola havia

se inspirado em Marthe para escrever Nana, já que o romance de Huysmans havia sido

publicado quatro anos antes; eles se constroem, sobretudo, numa rede de referências que

constitui a enunciação naturalista. Um exemplo disso é o quadro de Édouard Manet, intitulado

Nana, de 1877 e a crítica da arte de Huysmans para tal pintura no mesmo ano. A tela de

Manet foi recusada pelo júri do Salão de 1877, sendo exposta, assim, na maison Giroux.

201 “Mignon et Steiner étaient ensemble, dans une baignoire, les poignets appuyés sur le velours de la rampe, côte à côte. Blanche de Sivry semblait occuper à elle seule une avant-scène du rez-de-chausée. Mais la Faloise examina surtout Daguenet, qui avait un fauteuil d’orchestre, deux rangs en avant du sien.” ZOLA, Nana, p. 31. 202 “Tu ne connais pas Gaga?... Elle a fait les délices des premières années du règne de Louis-Philippe. Maintenant, elle traîne partout sa fille avec elle.” Ibidem, p. 32-33. 203 “O pintor que se sentava nas poltronas em baixo e o estudante de uniforme vermelho que se aninhava em cima, no poleiro, gritavam cada vez mais forte piadas maldosas e jocosas, para grande alegria dos espectadores que a peça entediava sobremaneira.” HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 14.

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Huysmans declara: “Le sujet du tableau, le voici: Nana, la Nana de L’Assommoir se poudre le

visage d’une fleur de riz. Un monsieur la regarde”204, e completa :

Manet a donc eu absolument raison de nous représenter dans sa Nana, l’un des plus parfaits échantillons de ce type de filles que son ami et que notre cher maître, Émile Zola, va nous dépeindre dans l’un de ses plus prochains romans.205

Huysmans anuncia a publicação de um romance sobre Nana, personagem que aparece

rapidamente, como uma criança, no romance L’Assommoir. Dessa maneira, evidencia a

circulação de idéias e posicionamentos comuns entre os naturalistas. É possível imaginar não

só o quanto de Marthe e da Nana de Manet existe na Nana de Zola, bem como o quanto do

que Zola pretendia apresentar em 1880 faz parte do primeiro romance de Huysmans e do

quadro de Manet.

O teatro que Marthe, histoire d’une fille expõe, portanto, não é longamente

desenvolvido ao longo do romance, entretanto traz ricas descrições dos artistas, do público, da

arquitetura e das técnicas cênicas de um teatro musical popular que provavelmente o escritor

frequentou desde sua juventude nos arredores do Jardim de Luxemburgo, em meio às escolas,

à Universidade e aos teatros decadentes, herdeiros das feiras. O posicionamento

huysmansiano já aponta para uma identificação com os personagens paratópicos,

transformados em heróis urbanos, ao mesmo tempo em que ainda se mostra incipiente em

relação às passagens de salas de espetáculos, em textos posteriores.

Em Marthe, o olhar da protagonista é jovial e inocente, expondo a própria fragilidade

e ignorância sobre a brutalidade da estrutura social metropolitana; mas também há o olhar dos

jovens amantes em relação à prostituta, denunciando a inexperiência e o fascínio do próprio

204 “O tema do quadro é o seguinte: Nana, a Nana de L’Assommoir empoa o rosto de pó-de-arroz. Um senhor a observa.” HUYSMANS, J.-K. La Nana de Manet. In: ___. Écrits sur l’art.1867-1905. Éd. Établie, présentée et annotée par Patrice Locmant. Paris: Bartillat, 2006, p. 77. 205 “Manet estava absolutamente certo em nos representar em sua Nana, uma das mais perfeitas amostras desse tipo de raparriga que seu amigo e nosso mestre, Émile Zola, vai nos descrever em um de seus próximos romances”. Ibidem, p. 79.

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enunciador em relação àquele mundo ambíguo, no qual o “lixo humano”, ao invés de ser

escoado para fora da cidade, mistura-se aos estudantes que flanam pela rive gauche.

4.3.3 - Les Soeurs Vatard

Les Soeurs Vatard é, provavelmente, a obra de Huysmans mais marcada por sua

relação com o grupo naturalista, capitaneado por Émile Zola. O caráter pictórico de sua

literatura, os retratos de tipos sociais, a “pintura” de grupo, a paisagem ao ar livre, todas essas

qualidades já presentes em Marthe, potencializam-se no romance posterior. À Rebours, que

Huysmans publica em 1884, é considerado por muitos como o romance que rompe

definitivamente com a rede de cooperação entre Zola e Huysmans, permitindo a este último

uma escrita mais imaginativa e autoral, filiada mais à pintura que às supostas regras de

composição literária naturalista. Pedro Paulo Catharina, entretanto, chama atenção para o fato

de já haver uma grande relação entre o Huysmans naturalista e a transposição pictórica na

literatura:

Ora, os autores da tribo naturalista de Huysmans dão, em geral, um forte peso às descrições e à pintura em seus romances. Huysmans não dá asas a sua imaginação romanesca como ocorre em À Rebours ou em En rade, romances que rompem de uma certa maneira com o rigor da observação naturalista; entretanto, ele adapta a técnica da transposição à ampliação do Descritivo em relação ao Narrativo, contida na proposta estética do Naturalismo. Além disso, os críticos reconhecem que Huysmans nunca foi um escritor que usasse da pura imaginação para a confecção de seus textos, preferindo sempre se basear no fato vivido e na documentação – característica inerente a toda sua obra.206

O próprio escritor, na carta endereçada a Théodore Hannon em 20 de abril de 1877, se

reconhece como parte de um grupo de artistas que ganha força por se encontrar marginalizado

dentro do campo artístico-literário e perante o campo do poder, um grupo composto por

escritores naturalistas e pintores impressionistas:

206 CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Quadros Literários fin-de-siècle, um estudo de Às avessas de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: FL-UFRJ/7letras, 2005, p. 109.

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L’on nous appellerait volontiers les artistes de la plèble littéraire et les communards de la littérature – de même que ces malheureux peintres impressionnistes sont accusés de communarder la peinture, nous sommes réputés vouloir chambarder tous les beaux sentiments, tels que pleurs d’amours, patriotisme, illusions sur les maîtresses, etc...207

Christine Escoffier, apesar de acreditar que “[...] a emoção de sentimentos sublimados

deixa entrever as falhas que abrirão ao autor horizontes cristãos”208, mesmo em Les Soeurs

Vatard, concorda que é clara a filiação às regras sistematizadas por Zola para a escrita

naturalista:

A ausência de elementos romanescos tradicionais, a insipidez da intriga, o lado quase puramente funcional dos personagens, o valor sociológico, a impessoalidade do autor, faziam das Soeurs Vatard um romance naturalista evidente e da mesma veia que L’Assommoir.209

Ou seja, ainda que Escoffier perceba elementos que já apontam uma mudança de

direção na escrita huysmansiana, que vai na direção do que será visto posteriormente em sua

obra, não se poderia deixar de reconhecer uma posição de discípulo em que se coloca

Huysmans, em relação a Zola, quando escreve o romance das irmãs Vatard.

O conjunto de correspondências escritas e recebidas por Huysmans nesse período

evidencia o percurso galgado por ele para adquirir legitimidade, a fim obter reconhecimento

no campo literário, junto com os naturalistas. A Edmond de Goncourt, Huysmans agradece o

apoio relacionado ao editor Charpentier. Com um romance publicado pela editora de

Charpentier, o autor de Les Soeurs Vatard avançava em direção do uma nova posição no

campo:

207 “Chamar-nos-iam, de bom grado, os artistas da plebe literária e os partidários da Comuna da literatura – assim como esses pobres pintores impressionistas são acusados de “comunardar” a pintura, consideram que queremos devastar todos os belos sentimentos, tais como choros de amor, patriotismo, ilusões com as amantes, etc...” HUYSMANS, Lettres à Théodore Hannon (1876-1886), p. 51. 208 “[...] l’émotion des sentiments sublimés laisse entrevoir les failles qui ouvriront à l’auteur des horizons chrétiens ”. ESCOFFIER, Christine. “Les Soeurs Vatard ” : un petit “Assommoir ” ? Bulletin de la Société J.-K. Huysmans. Paris : nº 81, 1988, p. 17. 209 “L’absence d’éléments romanesques traditionnels, la platitude de l’intrigue, le côté presque purement fonctionnel des personnages, la valeur sociologique, l’impersonnalité de l’auteur, faisaient bien des Soeurs Vatard un roman naturaliste évident et de la même veine que L’Assommoir ”. Ibidem, p. 14.

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Charpentier m’a enfin donné une réponse. Il prend mon roman. Grâce au bienveillant appui que vous avez bien voulu leur prêter, mes petites brocheuses sont assurées maintenant de se promener vers la mi-automne, en belle robe jaune, dans les vitrines des librairies. J’ai tenu à vous annoncer cette bonne nouvelle, sachant qu’elle vous ferait plaisir et je saisis cette occasion pour vous exprimer toute ma gratitude et pour renouveler au grand artiste l’assurance de ma bien respectuese et sincère admiration.210

A Zola, Huysmans dá mais detalhes:

Mon cher maître at ami, Je suis allé chez Charpentier. Il a lu les deux premiers chapitres, il a avalé le lait de poule mais il n’a pas encore croqué les grains de poivre des chapitres qui suivent – je lui ai demandé quand il aurait fini de me lire. Il m’a répondu : bientôt, mais du reste c’est sans importance pour vous – c’est une affaire entendue – je prends le livre et l’envoie à l’impression au mois de septembre.211

Devido a alguns problemas da impressão, o romance só aparecerá nas livrarias no ano

de 1879. Através das duas irmãs, funcionárias de um atelier de costura de lombadas de livros,

o narrador faz um retrato do meio operário durante o dia e dos divertimentos baratos durante a

noite. Céline, a irmã mais velha, tem, no início, um namorado chamado Anatole; em seguida,

vai morar com Cyprien, um pintor impressionista, mas o abandona para retomar a relação

com o primeiro. A mais nova, Désirée, sonha com o casamento e termina por casar-se com

um homem que não lhe instiga tanto a paixão.

A trama não mantém nenhum grande conflito, deixando para as descrições dos

espaços e dos grupos sociais o destaque do romance. Dessa maneira, é possível analisar o

ambiente cênico da margem esquerda do Sena, à época. Há, no romance, passagens que se

210 “Charpentier me deu, enfim, uma resposta. Ele aceita meu romance. Graças ao amável apoio que o senhor bem quis lhes dar, minhas pequenas brochadeiras estão agora certas de passear por volta da metade do outono, com um belo vestido amarelo, nas vitrines das livrarias. Fiz questão de dar ao senhor essa boa notícia, sabendo que ela agradaria; e aproveito essa oportunidade para expressar toda minha gratidão e para renovar ao grande artista a certeza de minha muito respeitosa e sincera admiração”. HUYSMANS, Lettres Inédites à Edmond de Goncourt, p. 52. 211 “Meu caro mestre e amigo, fui ao escritório de Charpentier. Ele leu os dois primeiros capítulos, engoliu a gemada, mas ainda não mastigou os grãos de pimenta dos capítulos que seguem – perguntei-lhe quando terminaria de ler-me. Ele me respondeu: logo, mas de resto é sem importância para o senhor – o negócio está fechado – fico com o livro e o envio à impressão no mês de setembro”. HUYSMANS, Lettres Inédites à Émile Zola, p. 12-13.

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desenrolam tanto no subúrbio leste de Paris, quanto numerosas descrições da rue de la Gaîté,

no bairro de Montparnasse.

Quando Huysmans escreve, em uma carta de abril de 1877, a Théodore Hannon “[...]

je crois que certains passages du susdit bouquin vous plairont – entr’autres une mirifique foire

aux pains d’épices [...] ”212 o escritor se refere à feira nos arredores de Vincennes, descrita no

capítulo cinco, onde as protagonistas, entre outros divertimentos, assistem a números cênicos.

A passagem do quarto para o quinto capítulo do romance acontece de maneira

cinematográfica. Enquanto um termina com o fim da jornada de trabalho de Désirée, que

sonha com um príncipe encantado, o capítulo seguinte, como em um corte de edição de

película, inicia-se com os gritos de um lutador de feira, um homem musculoso como o

Hércules já analisado acima no Drageoir aux épices. O lutador berra suas qualidades – já que

a propaganda gritada é o principal veículo de lucro financeiro nos espetáculos de feira –,

enquanto cúmplices do charlatanismo se oferecem para entrar na arena de luta:

- Allons, ravale ta salive, fourre-toi les doigts dans le nez si tu veux, mais tais-toi – Trêve la plaisanterie, la lutte va commencer, c’est moi que je suis Marseille, le seul Marseille, c’est moi que j’ai combattu, lors de la grande exposition de 1867, dans l’arène de le rue Le Peletier, contre les plus fameux lutteurs de l’Europe, et aucun de ceux que j’ai tenus entre mes mains ne peut se vanter d’être resté débout, – etdes compères, semés dans la foule, criaient : – Un gant ! passez-moi un gant ! – À qui ! à toi, petit ? – Oui, oui ! Et la foule d’applaudir, de trépigner, de se précipiter dans la baraque. – Entrez ! entrez ! criait l’athlète dans son porte-voix, et les trombones soufflaient à faire péter leur cuivre, la cloche derlinait à toute volée, les cymbales claquaient désespérément, les fifres piaulaient déchirants, aigus, et, dans ce tumulte d’enfer, calmes et mâchant des chiques, se tenaient droits sur l’estrade, bombant leurs torses velus, faisant sauter dans leurs bras la boule de leurs biceps, des hercules énormes. Des piaffes, des poussées, des cris de ralliement, des sifflets, éclataient de toutes parts. – Ohé les enfants ! Viens donc, Paul ! hé Louis ! par ici, vieux ! – Et, comme une poussée d’eau sale, la foule battait la cahute sur laquelle, époumoné, rouge, suant, éperdu, Marseille vociférait sans rêlache : – Entrez ! entrez !213

212 “[...] acredito que certas passagens do sobredito livro lhe agradarão, entre outras, uma mirabolante feira de pães de mel [...]”. HUYSMANS, Lettres à Théodore Hannon, p. 50. 213 “Vamos, engula sua saliva, enfie os dedos no nariz se quiser, mas cale-se! – Basta de brincadeira, a luta vai começar, sou eu que sou Marseille, fui eu que combati, por ocasião da grande exposição de 1867, na arena da rua Le Peletier, contra os mais famosos lutadores da Europa; e nenhum dos que tive entre as minhas mãos pode se gabar de ter ficado de pé, – e os ajudantes embusteiros, espalhados na multidão, gritavam: – Uma luva! Me passe uma luva! – Para quem? Para você, menino? – Sim, sim! – E a multidão aplaudia, batia com os pés, precipitava-

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Quanto à frequência de público nesse número de luta, o narrador oferece as seguintes

informações:

Mesdames et messieurs, nous allons avoir l’honneur de vous offrir une seconde représentation ! pour cette fois, pour cette fois seulement, les places seront diminuées, 50 centimes les premières, 25 centimes les secondes et 15 centimes pour messieurs les militaires !214

Não só há uma hierarquia contida na arquitetura da arquibancada, em que aqueles que

pagam mais possuem melhor visão do espetáculo, como os militares têm regalias. A estrutura

arquitetônica desse ambiente teatral modesto está inserida, a sua maneira, numa dinâmica

comercial, tanto quanto aquela dos teatros burgueses da margem direita do Sena. A diferença

está no capital econômico e simbólico. Não há luxos, não há burgueses entre os espectadores,

mas a lógica econômica é o que estrutura essa prática cênica e é compreendida na relação

palco-platéia.

Como exemplo de tal relação, que se insere na rapidez da sociedade industrial e no

movimento das massas, o enunciador, qual um pintor, esboça rapidamente o comportamento

das irmãs Vatard diante da variada oferta de entretenimento da feira de Vincennes:

Colombel gigotait, transporté d’une joie folle. – Voyons, dit-il, nous allons entrer, je paie la place aux dames ! – Mais les dames préféraient s’échapper au travers de le foire plutôt que de rester assises, pendant plus d’un quart d’heure, à écouter une pièce. Force fut aux hommes de les suivre.215

se para dentro da barraca. – Entrem! Entrem! Gritava o atleta em seu megafone e os trombones sopravam fazendo vibrar o metal, o sino badalava vigorosamente, os címbalos batiam desesperadamente, os pífaros piavam lacerantes, agudos e, nesse tumulto infernal, calmos, mastigando tabaco, mantinham-se eretos no estrado, inflando seus troncos peludos, fazendo saltar em seus braços a bola de seus bíceps, hércules enormes. Batidas de pés, empurrões, gritos de aprovação, assobios espocavam por todos os lados. – Eh crianças! Venha logo, Paul! Eh Louis! Por aqui, meu velho! – E, como um jato de água suja, a multidão inundava a barraca diante da qual, esfalfado, vermelho, suado, transtornado, Marseille vociferava sem descanso: – Entrem! Entrem!”. HUYSMANS, J.-K. Les Soeurs Vatard, p. 113-114. 214 “Senhoras e senhores, teremos a honra de lhes oferecer uma segunda apresentação! Dessa vez, somente dessa vez, abaixaremos os preços, 50 centavos para as primeiras filas, 25 centavos para as segundas e 15 centavos para os militares”. Ibidem, p. 114. 215 “Colombel saracoteava, tomado por uma alegria louca. – Ora, disse ele, vamos entrar, eu pago a entrada das damas! – Mas as damas preferiam escapar pela feira a ficar sentadas, durante mais de quinze minutos, escutando uma peça. Os homens foram forçados a seguirem-nas”. Idem.

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Através das descrições da relação do público com as barracas de entretenimento na

feira, o narrador desvela semelhanças com outras enunciações huysmansianas, sobretudo no

que diz respeito à inversão dos valores sociais propostos por ele em seus romances, poemas

em prosa e em sua única peça de teatro. Ainda em Les soeurs Vatard, na sequência do

movimento da feira, vemos:

Une foule épaisse coulait le long des baraques; des ventrées d’enfants turbulaient, soufflant dans des trompettes, barbouillés de pain d’épices, éveillés et morveux. D’autres étaient portés sur les bras et ils agitaient, en dansant dans leurs langues, des menottes poissées par le sucre d’orge. On se marchait sur les pieds, on se poussait, des galapiats jouaient du mirliton et gambadaient, faisant halte devant les tirs à la carabine, s’essayant à casser un oeuf perché sur un jet d’eau. Il y avait, ici et là, des huttes encombrées de gens : haussés sur la pointe de leurs bottines, appuyés sur les épaules les uns des autres, cherchant à voir par les créneaux des têtes, des massacres d’innocents, des poupées costumées en paysans, en mariées, en princes, qu’on abattait à coups de balles.216

Não somente o enunciador dá relevo ao caráter animalesco das massas populares

quando se movimentam violentamente (como se existissem mais pessoas do que espaço nas

cidades) e devoram guloseimas (alimentos supérfluos como doces que se assemelham aos

números de teatro de variedades, já que funcionam como pura fuga da realidade para uma

classe sobrecarregada de dificuldades no espaço social), mas também, através de uma

inocente brincadeira de tiro ao alvo, nos é exibido o fuzilamento de camponeses, de noivas e

príncipes.

Tal fuzilamento, que na feira acontece materialmente, impõe-se metaforicamente

sobre os personagens de Marthe (como Ginginet, que vem do interior e morre de problemas

relacionados ao alcoolismo), nos números de clown do poema Les Folies-Bergère en 1879

(em que os palhaços, representando nobres, matam-se em um duelo) e, também, em Pierrot

216 “Uma multidão espessa escorria ao longo das barracas; ninhadas de crianças turbulavam, soprando nos trompetes, sujos de pão-de-mel, astutos e melequentos. Outras eram levadas nos braços e agitavam, dançando em suas línguas as mãozinhas meladas de açúcar caramelado. Pisavam uns nos pés dos outros, empurravam-se, moleques tocavam bigofone e saltitavam, parando diante das barracas de tiro ao alvo, tentando quebrar um ovo suspenso num jato de água. Havia, aqui e acolá, cabanas lotadas de gente: na ponta das botinas, apoiadas sobre os ombros dos outros, tentando ver entre as cabeças, massacres de inocentes, bonecas vestidas de camponesas, noivas, príncipes, que eram abatidos a tiro”. Ibidem, p. 114-115.

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Sceptique (quando o protagonista ateia fogo contra a personagem Sidônia, que é uma espécie

de bailarina-princesa romântica).

Na sequência das animalidades cênicas do evento, os dois casais vão olhar uma das

várias mulheres-colosso que se espalhavam pela feira, cuja atração era a abundância de carne

e músculos do próprio corpo: “[...] seins comme des boules d’haltères, aux jambes comme des

tours, et tous ces monstres avançaient sur un coussin vermeil l’énorme jambon de leurs

cuisses”.217

Os curiosos personagens decidem visitar a tenda de uma mulher-colosso estrangeira, a

bela Barbançonne:

La femme reposait sur une strade, élevée de deux marches ; elle avait une robe verte, outrageusement décolletée, deux globes comme des ballons roses, trois fausses lentilles près des tempes. Elle se leva, dit qu’elle était originaire de Bruxelles, qu’elle était âgée de vingt-deux ans, tendit le bras au-dessus du shako d’un pioupiou qui lui regardait, extasié, l’aisselle, et finit sa petite histoire par la phrase consacrée : - Je vous remercie bien, j’espère que vous reviendrez et que vous en ferez part à vos amis et connaissances. Anatole exprima le désir de palper le mollet. La grosse femme s’y prêta d’assez mauvaise grâce. Elle leva un peu sa jupe et, quand le jeune homme lui eut fourragé dans le gras des jambes, elle grogna : - En voilà assez, mon petit, ça suffit.218

Trata-se de um número de exposição física, aparentemente sem técnicas especiais, o

público paga para ser instigado por algo fora de seu quotidiano. O que há de teatral é a

maneira onírica como é tratado todo o acontecimento, que no fundo é sem grandes interesses:

o mistério criado em torno da mulher, a cenografia da tenda, o figurino, por fim, trata-se de

um pequeno número de efeitos de maravilhamento.

217 “[...] seios como bolas de halteres, com pernas que pareciam torres e todos esses monstros avançavam sobre uma almofada vermelha o enorme presunto de suas coxas [...]”. Ibidem, p. 115. 218 “A mulher descansava sobre um estrado elevado por dois degraus; tinha um vestido verde, ultrajantemente decotado, dois globos como bolas rosa, três falsas pintas perto das têmporas. Ela se levantou, disse que era originária de Bruxelas, que tinha vinte e dois anos, estendeu o braço sobre o shako de um soldado que olhava, extasiado, sua axila, e finalizou sua historinha com o chavão: - Eu lhes agradeço, espero que voltem e que contem aos amigos e conhecidos. Anatole exprimiu o desejo de apalpar sua batata da perna. O mulherão deixou, de muito má vontade. Ela levantou um pouco a saia e, quando o jovem lhe apertou a gordura da perna, grunhiu; - Já chega, meu filho, basta”. Ibidem, p. 116.

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A busca pelo exotismo leva os personagens à tenda da encantadora de serpentes, uma

mulher do sul, maquiada como uma Jezebel, “[...] vêtue d’une blouse de soie rose, de collants

cachou, de bottines à glands d’or”.219 Entre os répteis que tira de uma caixa, para o frisson da

multidão, encontra-se um crocodilo:

Celui-ci c’est Baptiste, un jeune crocodile de vingt et un ans, cria-t-elle, en tirant un saurien d’une couverture, et elle le mit sur sa gorge, lui tapa les mâchoires, les lui ouvrit de force, montrant au public une large gueule mal piquée de crocs. Puis, elle rejeta le tout par terre, et, tandis que le tas grouillait et se mouvait, rentrait dans ses caisses, elle salua la société, se rassit et regarda en l’air [...]220

Parece haver, no número descrito, uma alusão ao personagem bíblico de Salomé, não

somente por sua relação com a sinuosidade das serpentes que por ali se espalham, mas,

sobretudo, por nomear seu crocodilo de Batista. A peça de Oscar Wilde não havia ainda sido

escrita, mas Gustave Flaubert, que estava presente em várias reuniões dos jovens naturalistas

e era considerado um mestre para todos os discípulos de Zola, já havia publicado sua

Hérodias, em 1876.221

Ainda há, por fim, uma menção a espetáculos teatrais e ao circo: “Colombel insinuait

qu’après le dîner on pourrait aller voir le théâtre de la famille Legois, ou Delille, ou le cirque

Corvi [...]”222. Trata-se, provavelmente, de típicas companhias de teatro de rua ou feira,

compostas por membros da mesma família que passam suas técnicas para as gerações mais

novas. Os quatro personagens não vão, entretanto, a nenhum desses espetáculos, e decidem ir

embora. Para confirmar que os números da feira são apenas um microcosmo da própria feira,

219 “[...] vestida com uma blusa de seda rosa, meia-calça avermelhada, botinas com pingentes dourados”. Ibidem,p. 118. 220 “Este aqui é Batista, um jovem crocodilo de vinte e um anos, gritou, tirando o sáurio de uma coberta, e ela o colocou sobre seu colo, bateu em suas mandíbulas, abriu-as à força, mostrando ao público uma boca grande e meio banguela. Depois, ela largou tudo no chão e, enquanto a massa se agitava e se movia, voltando para suas caixas, ela saudou o grupo, voltou a sentar-se e olhou para o nada [...]”. Idem. 221 O próprio Huysmans reavivará o mito de Salomé no capítulo V de À Rebours (1884), quando seu protagonista observa telas de Gustave Moreau. Na verdade, trata-se de um mito representado inúmeras vezes ao longo do século XIX; entre outros escritores que se debruçam sobre ele, podemos citar Stéphane Mallarmé e Jules Laforgue. 222 “Colombel insinuava que, após o jantar, poderiam ir ver o teatro da família Legois, ou Delille, ou o circo Corvi [...]”. Ibidem, p. 120.

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possuindo a mesma dinâmica de velocidade, entretenimento, encantamento e fugacidade, as

palavras do enunciador mostram toda a efemeridade dessa festa quando afirma que todo

aquele evento explosivo se desfaz mais rápido do que se imagina, no movimento do público

que vem e que vai:

Il se raffermirent sur leurs jambes et descendirent le cours de Vincennes. Le brouhaha des voix, les détonations des carabines, le tintin des cloches allaient s’affaiblissant; il ne restait plus çà et là, échelonnés sur la route, que des misérables éventaires.223

Os personagens mal se afastaram da feira e já não existe mais nada, nada do que

parecia ser tão físico e material há minutos atrás pode ser então apreendido. Isso remete à

velocidade da vida moderna, que é também a do espetáculo de variedades.

O capítulo VIII de Les soeurs Vatard desvela em deliciosas descrições a rua mais

festiva dos escritos huysmansianos, como também uma casa de espetáculos cujo nome ainda

vive na atualidade. A rue de la Gaîté, nesse período de trajetória de Huysmans, ambienta as

passagens mais alegres e festivas do romance. Em Les soeurs Vatard a rua ganha status de

personagem, encarnando a fuga da realidade do quotidiano. Dentro de uma linguagem

pitoresca, as cenas descritas na Gaîté exibem o movimento das multidões populares, sejam

famílias, sejam os que buscam desesperadamente diversão ao fim da semana de trabalho.

Essa rua parece, no entanto, um oásis de entretenimento em meio à paisagem desértica

da vida noturna na margem esquerda do Sena. Através das palavras de Huysmans, pode-se

construir a imagem contrastante entre a rue de la Gaîté (nome que, em francês, significa “rua

da alegria”, “do divertimento”), repleta de casas de espetáculos e vendedores ambulantes, e a

vizinhança, sombria e sem vida: “Si cette rue mérite son nom, la chausée du Maine est en

223 “Eles se firmaram sobre as pernas e desceram a Avenida de Vincennes. O zumzum das vozes, as detonações das carabinas, o tilintar dos sinos iam enfraquecendo; aqui e acolá, restavam apenas, espalhados pela estrada, miseráveis tabuleiros”. Idem.

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revanche d’une tristesse lugubre. Il y fait noir comme dans un four et les boutiques sont closes

dès huit heures”.224

Ao contrário do Théâtre du Luxembourg, no romance Marthe, em que o autor constrói

uma ambiência onde há menos festa e mais baderna, em Les Soeurs Vatard, talvez para servir

de contraponto com a cansativa rotina de trabalho das protagonistas, os momentos de lazer

estão sempre relacionados a uma grande diversão. Quando não se trabalha, faz-se a festa.

A sala das Folies-Bobino têm um preço mais alto do que o das outras salas de

Montparnasse (“Comme prix c’était cher, par exemple, quinze sous d’entrée et la

consommation en sus”225), obviamente mais caro do que o teatro em Marthe também, que

parece ser do mais baixo nível. Não é apenas, entretanto, no capítulo VIII, no qual esse

estabelecimento aparece descrito, que se tem esse dado sobre o preço. A importante

informação (que é de fato relevante, já que os personagens não têm dinheiro suficiente para se

entregar a todos os prazeres parisienses) é precedida de dois capítulos (capítulo VI) e será

reforçada dois capítulos depois (capítulo X). Primeiramente, quando ir a Bobino é apenas uma

promessa, a protagonista Désirée se mostra íntima do repertório do café-concerto da sala da

Gaîté, mais acessível que Bobino; a fim de fazer-lhe a corte, o namorado Auguste “lui parla

de Bobino qu’il prétendait être mieux monté, mais elle déclara n’y être jamais allée parce que

les places étaient plus chères;”.226 Após o programa feito no estabelecimento, dias depois,

Auguste se encontra com o amigo Alfred. Descobre-se, então, como Auguste conseguiu

dinheiro para ir a Bobino: “Il devait de l’argent à ce copain.[...] Il réclama à Auguste, qui avait

224 “Se essa rua merece seu nome, a chausée du Maine é, ao contrário, de uma tristeza lúgubre. Lá, é escuro como dentro de um forno e as butiques fecham às oito horas”. Ibidem, p. 137. 225 “Como preço, era caro, por exemplo, quinze tostões de entrada além da consumação”. Ibidem, p. 139. 226 “[Auguste] lhe falou de Bobino que ele afirmava ser de melhor qualidade, mas ela declarou nunca ter ido porque a entrada era mais cara”. Ibidem, p. 128.

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trente-cinq centimes en poche, les deux francs qu’il lui avait prêtés pour conduire Désirée aux

Folies-Bobino”.227

O narrador distancia-se socialmente de Bobino logo na entrada. A protagonista fica

envolvida pelo caráter encantatório da arquitetura que, por sua vez, desagrada o narrador:

“Elle admira fort l’entrée qui est d’une architecture des plus compliquées, du Siamois, du

Japonais, du je-ne-sais-quoi, mâtiné avec l’imbécile fantaisie d’un architecte.”228

O distanciamento crítico do enunciador está presente também nas passagens que

descrevem as técnicas de canto – na verdade não apenas em Les Soeurs Vatard, mas em todas

as passagens aqui analisadas o enunciador considera de péssima execução os números

cantados. Nesse caso, uma mulher sobe ao palco e canta: “Elle dégoisait un couplet à gauche

de la scène, un autre à droite. Ses yeux se fermaient et se rouvraient, suivant que la musique

qu’elle rabotait devait toucher les âmes ou les égayer”229 ; e, mais adiante, ela continua “ [...]

gueulant de toute sa voix [...] ”.230

A figura dessa mulher faz parte do conjunto de artistas de variedades que aparecem

tanto em Le Drageoir aux épices, quanto em Marthe, e que já foram citadas anteriormente;

são mulheres que entram em cena repentinamente, cobertas por um vestido muito justo ou

muito decotado: “Elle était enveloppée d’une robe rose très décolletée, et ses bras nus et

encore rouges étaient blanchis par la poudre”.231 Essa cantora de Bobino recebe, ainda, como

que em pinceladas, um rápido detalhe de caráter muito pictórico: “Son menton projetait une

227 “Ele devia dinheiro a esse amigo. [...] Ele pediu a Auguste, que tinha trinta e cinco centavos no bolso, os dois francos que ele lhe havia emprestado para levar Désirée nas Folies-Bobino”. Ibidem, p. 155. 228 “Ela admirou muito a entrada, que é de uma arquitetura das mais complicadas, siamês, japonês, um je-ne-sais-quoi, misturado com a imbecil fantasia de um arquiteto”. Ibidem, 139. 229 “Ela cuspia uma cançoneta à esquerda do palco, outra à direita. Seus olhos se fechavam e se reabriam, se a música que ela destruía devia tocar as almas ou alegrá-las.” Ibidem, p. 140. 230 “[...] berrando com toda a força [...]”. Idem.231 “Ela estava envolvida em um vestido rosa muito decotado e seus braços nus e ainda vermelhos estavam brancos de pó-de-arroz”. Ibidem, p. 139.

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ombre sur le bas de son cou”.232 Aqui, evidencia-se a relação entre a literatura naturalista e a

pintura, podendo-se relacionar essa descrição a uma tela de Degas ou de Manet.

Não se pode deixar de notar, novamente, os laços que entrecruzam o palco descrito por

Huysmans e a Nana de Zola. Há uma obsessão pelo movimento de quadris das mulheres em

cena. Se em Nana, o narrador acha graça quando afirma: “Alors, sans s’inquiéter, elle donna

un coup de hanche qui dessina une rondeur sous la mince tunique [...]”233, em Les Soeurs

Vatard, a cantora “[...] faisait onduler par le remuement de sa hanche sa robe [...]”.234

A ironia em relação aos anseios de divertimento e emotividade das classes populares

segue seu rumo diante dos aplausos entusiasmados da platéia, com o fim da canção:

Désirée était pâle d’admiration. D’abord ces couplets étaient poignants ; il y avait une femme qui pleurait son enfant mort et maudissait la guerre, et l’on n’entend pas des choses aussi émouvantes sans que les larmes vous montent aux yeux, puis la chanteuse lui paraissait belle comme une reine, avec ses bracelets, ses pendeloques et la queue mouvante de sa jupe; elle se rendait bien compte que les joues étaient recépies et les yeux bordés, mais aux lumières, dans cet éblouissement du décor, cette femme enchantait quand même avec son luxe de chairs mastiquées et de soies peintes.235

Após outro número de canção, dessa vez estrelado por um homem, os personagens

assistem a um sainete, espécie de esquete feito para entreatos, que finaliza o espetáculo:

Une saynète devait clore la représentation, l’éternelle saynète à trois personnages, une jeune fille du monde qui se déguise en bonne pour éprouver son prétendu, marivaude avec un autre pour stimuler sa jalousie et finit par l’épouser sur une ronde finale braillée en choeur par les intéressés et par le public.236

232 “Seu queixo projetava uma sombra na base de seu pescoço”. Idem.233 “Então, sem inquietar-se, ela deu uma requebrada que desenhou uma curva sob a fina túnica [...]”. ZOLA, Nana, p. 40. 234 “[...] fazia ondular, pelo movimento de seu quadril, seu vestido [...]”. HUYSMANS, Les Soeurs Vatard, p. 140. 235 “Désirée estava pálida de admiração. Em primeiro lugar, aquelas canções eram emocionantes; havia uma mulher que chorava seu filho morto e maldizia a guerra, e não se ouve coisas tão comoventes sem que as lágrimas cheguem aos olhos; além disso, a cantora lhe parecia bela como uma rainha, com seus braceletes, seus penduricalhos e a cauda ondulante de sua saia; ela se dava conta de que as faces estavam rebocadas e os olhos escurecidos, mas sob as luzes, naquele deslumbramento do cenário, aquela mulher encantava de qualquer maneira, mesmo com seu luxo de carnes recauchutadas e de sedas tingidas”. Idem.236 “Um sainete devia fechar a apresentação, o eterno sainete com três personagens, uma jovem da alta sociedade que se fantasia de empregada para testar o amor de seu pretendente, flerta com outro para estimular seu ciúme e acaba por esposá-lo, em uma ronda gritada em coro pelos próprios e pelo público”. Ibidem, p. 141.

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O capítulo XIX do romance se passa no Théâtre de Montparnasse. Em meio a todo o

frenesi da multidão que parece tomar inteiramente a rue de la Gaîté, encontrava-se esse

teatro. O tipo de circulação de público, na verdade, não parece variar entre os

estabelecimentos dessa rua, seja em um cabaré para beber, seja no baile des Milles Colonnes,

seja no teatro. É como se as atrações fossem as mesmas, sem diferença de gênero, e de fato

não há, se tomarmos as descrições relativas ao comportamento do público: bebe-se da mesma

maneira que se ouve música, cruza-se a multidão na calçada de forma igual a que se assiste a

um espetáculo de music-hall.

Em relação ao espetáculo que os personagens Céline e Cyprien vão assistir, pode-se

notar que a disposição frontal palco-platéia mantém o que se espera de uma apresentação

artística, sem inovações ou quebras dos padrões tradicionais. Mesas diante do palco não

permitem quase nenhuma mobilidade do público, gerando uma platéia estática, mais próxima

dos palcos realistas do que do acontecimento de feira. No lugar dos vários golpes de bastão

advindos da tradição de Molière, ao começar o espetáculo, são soados, no piso do palco,

apenas três sinais.

Sob outro aspecto da relação do público com o artista em cena, observa-se a filiação

ao evento de feira, já que o diálogo é direto entre os dois, sem ilusionismos, como o da quarta

parede. Nesse desacordo com o teatro realista – no qual os atores ficam circunscritos na caixa

cênica –, pessoas pedem músicas sem nenhum constrangimento. Não há registro, entretanto,

nesse texto, de artistas que se endereçam à platéia de maneira igualmente debochada, como

acontece com o personagem Ginginet, em Marthe (“Il salua gracieusement ceux qui

l’interrompaient, conversa avec eux, entremêlant son rôle de boutades à l’adresse des

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braillards: bref, il se fit applaudir”.237), fazendo supor que os palcos do Luxemburgo fossem,

talvez, mais “baratos” que os de Montparnasse.

O enunciador mantém seu posicionamento por uma descrição que atribui ao ambiente

qualidades de grotesco e de mau gosto. Desse modo, a entrada na sala de variedades parece

uma descida ao inferno:

Quand ils arrivèrent, toutes les places étaient déjà occupées; ils durent reculer au-delà des portes, enfiler un couloir, descendre quelques marches, suivre un corridor, badigeonné de chocolat, de vert pomme, et tout imprégné des odeurs salines des urinoirs.238

Os músicos também não parecem de boa qualidade, formam uma equipe lamentável

sentada nas frisas. Trata-se de números de canções que, mais uma vez incitam um

posicionamento distanciado daquele ambiente, uma escolha enunciativa pelo humor cáustico,

um enunciador que parece ironicamente penalizado pela miséria daquela classe social:

Cyprien se remit à goûter à une chanson étonnante dont une dame ravageait les strophes aux acclamations de la foule. [...] Le chapelet de sottises continuait à s’égrener sur la scène. Des hommes succédaient aux femmes et des femmes aux hommes, et les unes entraient à gauche et les autres à droite. Placés comme ils étaient, Cyprien et Céline assistaient aux misères des costumes, aux défilés des gants défraîchis, des poches éculées, des souliers de porteurs d’eau sous la tenue de bal. Toutes les imperfections, tous les vices des têtes : les yeux éraillés, les joues gravées par la petite vérole, les cicatrices, les bouquets d’herpès aux coins des lèvres, les chairs flasques, les bras canailles [...].239

O olhar sombrio presente nos textos huysmansianos – que é consonante com um

pessimismo naturalista, mas também muito legítimo e singular na escrita de Huysmans –

237 “Ele cumprimentou graciosamente aqueles que o interrompiam, conversou com eles, entremeando seu papel com tiradas espirituosas endereçada aos gritalhões: enfim, ele se fez aplaudir”. HUYSMANS, Marthe, histoire d’une fille, p. 13. 238 “Quando chegaram, todos os lugares já estavam ocupados; tiveram que recuar além das portas, passar por um corredor, descer alguns degraus, continuar por um corredor, pintado de chocolate, verde-maçã, e completamente impregnado dos odores salinos dos mictórios”. HUYSMANS, Les Soeurs Vatard, p. 213. 239 “Cyprien voltou a saborear uma canção surpreendente da qual uma senhora arrasava as estrofes, sob as aclamações da multidão. [...] O rosário de idiotices continuava a se desenrolar no palco. Homens se sucediam às mulheres e mulheres aos homens, e elas entravam pela esquerda e eles pela direita. De onde estavam, Cyprien e Céline assistiam à indigência dos figurinos, aos desfiles das luvas desbotadas, dos bolsos puídos, dos calçados de carregadores de água sob o traje de baile. Todas as imperfeições, todos os vícios dos rostos: os olhos inflamados, as faces marcadas pela sífilis, as cicatrizes, os buquês de herpes nos cantos dos lábios, as carnes flácidas, os braços vulgares [...]”. Ibidem, p. 214-215.

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distorce a figura humana dentro do labirinto da sala de espetáculo, tornando-a não apenas

monstruosa, mas também fragmentada:

Des ombres énormes se découpaient derrière ce rideau de vapeur comme, derrière un papier huilé, des ombres chinoises. Des joueurs mettaient du blanc à leur queue de billard et le circuit rapide du bras évoquait je ne sais quel étrange écrasement à ce jeu de lumière qui déformait et rendait immense tout mouvement, toute pose ; puis des gestes cassés, des torsions de reins, des penchées de corps, des profils bizarres, des chapeaux exagérés s’estompaient sur ce transparent en de noires ébauches que brouillaient les silhouettes monstrueuses des garçons courant.240

Essa fragmentação, atrelada a técnicas pictóricas, parece introduzir-se na plástica das

passagens descritivas sobre o teatro em Huysmans pelo confronto entre a fragilidade do corpo

humano e a agressividade do ambiente das variedades, que se compõe de artifícios e da

circulação exagerada de uma multidão ávida por distrações ligeiras.

A arquitetura da sala parece odiosa e circense ao personagem Cyprien. Há duas

galerias superpostas. A primeira, de um vermelho amarronzado, envernizada e iluminada pela

luminária a gás, sustentada por colunas drapejadas até a metade de veludo vermelho. A outra,

mais acima, dividida em camarotes, como gaiolas com barras para guardar animais. No teto,

losangos, ramagens, formas de palmeiras. O palco tem boas dimensões de profundidade e

largura, ornado, nas laterais, de tecidos florais e relevos e máscaras careteiras:

Cyprien n’avait rien vu à cet échange de regards. Il contemplait la salle tandis qu’un turlupin émiettait, dans une sauce rebattue de musique, du patriotisme et de l’amour. Il jugea odieuse cette moitié de cirque avec ses lourds guillochis d’or, ses deux galeries superposées ; l’une teinte en cachou, vernissée et roussie par le feu des gaz, étayée par des colonnes de fonte, drapées jusqu’à mi-corps de velours rouge ; l’autre plus élevée, divisée en des sortes de cages, munies, comme pour enfermer les bêtes, de barreaux peinturlurés de cet horrible vert-bronze, réservé d’ordinaire aux poêles. Le plafond avec ses losanges, ses ramages, ses palmettes qui le faisaient ressembler à ces cachemires de camelotte qu’on fabrique en France, lui donna des nausées [...] [La scène] ne lui parut ni moins attristante, ni moins minable que le reste. Suffisamment profonde et large, elle était garnie, de chaque côté, de panneaux de

240 “Sombras enormes se desenhavam atrás dessa cortina de vapor como sobras chinesas por detrás de uma folha de papel-manteiga. Jogadores passavam giz em seus tacos de bilhar e o trajeto rápido dos braços evocava um achatamento qualquer nesse jogo de luz que deformava e tornava imenso todo movimento, toda pose; em seguida, gestos quebrados, torções de quadris, curvadas de corpo, perfis bizarros, chapéus exagerados se esfumavam sobre essa transparência em negros esboços que as silhuetas monstruosas dos garçons correndo turvavam”. Ibidem, p. 213.

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fleurs et d’attributs en relief, durement rendus, écrasés encore par d’ignobles masques qui grimaçaient au-dessus. 241

Em todas as cenas de Les Soeurs Vatard passadas em acontecimentos teatrais, chega-

se a conclusão que o divertimento popular parece nada ter a ver com os padrões de qualidade

artística dos quais compartilha não somente o enunciador, mas o próprio Huysmans. O

espetáculo não parece o mais importante, os cantores desafinam, há miséria e improviso por

toda parte; todavia a sala está lotada.

4.3.4 - Les Folies-Bergère en 1879

Três anos após ter escrito Marthe, histoire d’une fille, Huysmans se voltou novamente

em direção à cena do teatro de variedades – dessa vez na margem direita do rio Sena –, para

descrever um dos mais célebres cabarés do mundo: as Folies-Bergère. O poema em prosa de

Huysmans, que faz parte do livro Croquis Parisiens, se desenvolve como um croqui

desenhado. Em uma carta a Zola, datada por volta de 20 de maio de 1880 – portanto, um mês

após a publicação das Soirées de Médan –, Huysmans declara:

Mon cher Zola, Vous recevrez ces jours-ci mon bouquin à eaux-fortes242 des Croquis Parisiens. Après l’Abbé Mouret243 qui est le superbe et grand poème de la prose – j’aurais voulu faire de petits sonnets, de petites balades, de tout petit poèmes, sans le cliquetis de rimes et dans une langue aussi chantante que celle du vers.244

241 “Cyprien nada vira dessa troca de olhares. Ele contemplava a sala enquanto um histrião triturava, num molho insosso de música, patriotismo e amor. Ele julgou odiosa essa espécie de circo com seus guilhochês de ouro, suas duplas galerias superpostas; uma pintada de catechu, envernizada e avermelhada pelo fogo do gás, sustentada por colunas de ferro fundido, drapejadas até a metade com veludo vermelho; a outra, mais elevada, dividida por espécies de gaiolas, munidas, como se fosse para encerrar animais, de barras sarapintadas com esse horrível verde-bronze, reservado normalmente aos fogareiros. O teto com seus losangos, suas ramagens, suas palmas que faziam com que parecesse com essas caxemiras vagabundas que se fabricam em França, provocou-lhe náuseas. [...] [O palco] não lhe pareceu nem menos decepcionante, nem menos medíocre que o resto. Suficientemente profundo e largo, era guarnecido, de cada lado, com paineis floridos e ornamentos em relevo, pessimamente executados, sacrificados ainda mais por infames máscaras que faziam caretas no alto.” Ibidem, p. 213-214. 242 Os Croquis Parisiens foram ilustrados, em água-forte, pelos artistas Rafaëli e Forain. No entanto, Huymans parece designar seus próprios escritos quando fala da técnica da gravura. 243 La Faute de l’abbé Mouret, publicado em 1875, é o quinto livro da saga dos Rougon-Macquart, de Émile Zola.244 “Meu caro Zola, você receberá por esses dias meu livro com águas-forte dos Croquis Parisiens. Após o Abbé Mouret, que é o espetacular e grande poema da prosa – eu queria fazer pequenos sonetos, pequenas baladas,

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Nessa mesma época, Huysmans havia recebido o convite do diretor do jornal Le

Gaulois, Arthur Meyer para escrever algumas crônicas intituladas Les Mystères de Paris,

enquanto o jovem Guy de Maupassant deveria escrever sobre Les dimanches d’un canotier.

Huysmans dá a notícia a Zola da seguinte maneira:

Je ne comprends guère sur cette affaire là – Meyer m’étant apparu comme un très parfait imbécile qui veut des paysages parisiens qui instruisent le lecteur et l’émeuvent par des peripéties dramatiques [...] Enfin – je vais essayer toujours ces articles, sous ce titre « Mystères de Paris » – ( !!!) qui n’est pas choisi par moi – je vous prie de le croire .245

Menos de dois meses depois, Huysmans declara a Zola sua saída do Gaulois com o

argumento de que o Ministério do Interior tinha-o repreendido por trabalhar em um jornal que

fazia críticas ao governo. Através das notas de Pierre Lambert, compreendemos que se trata

de decretos do governo para expulsar congregações de jesuítas criticados em uma série de

artigos pelo Gaulois.246

Parece que não havia apenas uma pressão do Ministério em relação aos artigos

críticos, mas pela própria posição da gestão de Meyer nesse jornal. Philippe Barascud,

responsável pela edição dos Mystère de Paris, publicada em 2009, explica:

Monarquista desde sua criação, Le Gaulois conhece um breve período republicano em 1881-1882. Arthur Meyer (1844-1924), nomeado diretor em 1879, é afastado nesse período, depois retoma seu posto, que conserva até sua morte, fazendo do Gaulois um dos principais jornais conservadores da Terceira República.247

pequeninos poemas sem o retinir das rimas e em uma língua tão melodiosa quanto aquela do verso”. HUYSMANS, Lettres à Émile Zola, p. 35. 245 “Não entendo nada desse negócio – Meyer me tendo parecido um perfeito imbecil que quer paisagens que instruam o leitor e o emocionem em peripécias dramáticas! [...] Enfim – vou me aventurar nesses artigos com o título “Mistérios de Paris” – (!!!) que não é escolhido por mim – peço que acredite”. Ibidem, p. 36. 246 Cf. Ibidem, p. 40. 247 “Monarchiste depuis sa création, Le Gaulois connaît une brève période républicaine en 1881-1882. Arthur Meyer (1844-1924), nommé directeur en 1879, est écarté à cette période, puis retrouve son poste, qu’il conserve jusqu’à sa mort, faisant du Gaulois l’un des principaux journaux conservateurs de la Troisième République”. Apresentação de Philippe Barascud in : HUYSMANS, J.-K. Les Mystères de Paris. Paris : Manucius, 2009, p. 12.

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Com isso, Huysmans posiciona-se no campo literário ao mesmo tempo contra a

oposição à república – instaurada após muitos conflitos políticos, sociais e físicos no território

parisiense – e a favor do emprego que lhe proporcionava segurança financeira.

Os croquis literários de Huysamns aparecem, portanto, segundo essa dinâmica de

escrita jornalística, rápida, própria da crônica, própria da metrópole. O autor escreve como se

pintasse uma cena de gênero; são pequenas passagens, momentos esboçados. Cada capítulo

curto descreve um cenário, ou um canto do edifício, ou uma parte de um número apresentado

em cena. Tudo está em detalhes, em pedaços, já que o enunciador reproduz rapidamente o que

testemunha: detalhes de corpos (“[...] dans le créneau formé par deux bouts d’épaules et par

deux têtes [...]”248), detalhes de vestimentas (“[...] le glacé des cheveux pommadés d’hommes,

les chapeaux de femmes rayonnent avec leurs plumes et leurs fleurs partant de tous les côtés,

en gerbes”249), detalhes de arquitetura (“[...] la scène du théâtre vous apparaît coupée au

milieu du rideau par la masse plafonnante du balcon”250), detalhes de propagandas

(“Réclames de bonbons, de corsets et de bretelles [...]”251).

A década de 1870 foi favorável ao teatro de variedades e vê as casas de espetáculo

ligeiros se multiplicarem em Paris. Evidentemente, o público descrito em Les Folies-Bergère

en 1879 não é o mesmo das Folies-Bobino, do Théâtre du Luxembourg ou do Théâtre de

Montparnasse. Localizadas na rue Richer – como o Théâtre de Variétés de Nana –, vizinhas

da Ópera e dos grandes bulevares, as Folies-Bergère não são frequentadas exatamente pelo

mesmo Tout Paris do período do governo de Napoléon III, tampouco por jovens arruaceiros,

como os que aparecem em Marthe. O enunciador de Les Folies Bergère en 1879 sinaliza a

248 “[...] na fenda formada por duas pontas de ombros e duas cabeças [...]”. HUYSMANS, Croquis Parisiens,p.12. 249 “ [...] o acetinado dos cabelos com brilhantina dos homens, os chapéus das mulheres brilham com suas plumas e suas flores partindo de todos os lados, em ramos”. Idem.250 “[...] o palco do teatro aparece cortado no meio da cortina pela massa da estrutura superior do balcão”. Ibidem, p. 11. 251 “Propagandas de balas, de espartilhos e de suspensórios [...]”. Ibidem, p. 15.

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mistura dos dois mundos que compõem esse ambiente ao mencionar a postura de gala dos

“messieurs assis”252 e o comportamento “suspeito” das damas:

Elles sont inouïes et elles sont splendides, lorsque dans l’hémicycle longeant la salle, elles marchent deux à deux, poudrées et fardées, l’oeil noyé dans une estompe de bleu pâle, les lèvres cerclés d’un rouge fracassant, les seins projetés en avances sur des reins sanglés [...]. On regarde, ravi, ce troupeau de filles passer [...] L’on hennit, en suivant le travail de ces dos de femmes se coulant entre les poitrines des hommes [...]253

Trata-se de um mundo formado por homens de várias camadas da burguesia e algumas

prostitutas que não são nem as amantes sustentadas por homens ricos, nem as mais pobres,

cujos sótãos são interditados pela administração sanitária.254 Através de um anúncio de

máquina de costura, parte do programa do espetáculo, é atribuído a esse grupo de mulheres

um comportamento específico:

Une seule chose interloque: une annonce de machines à coudre. On comprend encore celle d’une salle d’armes, il y a des gens si bêtes ! Mais la Silencieuse et la Singer ne sont pas les outils dont se servent d’ordinaire les travailleuses d’ici ; à moins pourtant que cette annonce ne soit placée là comme un symbole d’honnêteté, comme une invite aux labeurs chastes.255

Apesar da circulação de público na sala da margem direita ter características distintas,

há, na enunciação de Les Folies Bergère en 1879 e Les Soeurs Vatard, certas semelhanças

entre as salas das duas margens do Sena, sobretudo no que concerne à representação do corpo

humano. Nas passagens do romance das irmãs Vatard citadas anteriormente nota-se, nas

Folies-Bobibo, uma cantora decadente que encanta a personagem Désirée com sua saia

ondulante, assim como, no Théâtre de Montparnasse, há uma fumaça que projeta silhuetas

252 “senhores sentados”. Ibidem, p. 11. 253 “Elas são incríveis e elas são esplêndidas quando, no hemiciclo ao longo da sala, avançam duas a duas, empoadas e maquiadas, o olho mergulhado num sombreado de azul pálido, os lábios contornados por um vermelho chamativo, os seios projetados para frente sobre cinturas apertadas [...]. Olhamos, encantados, esse rebanho de meninas passar [...] Relinchamos ao seguir o trabalho dessas costas de mulher escorregando entre os peitos dos homens [...]”. Ibidem, p. 17-18. 254 Cf. PARENT-DUCHÂTELET, Alexandre. La prostitution à Paris au XIXe siècle. Paris : Seuil, 1981, p. 133. 255 “Apenas algo desconcerta: um anúncio de máquinas de costura. Dá para entender um de uma sala de armas, há pessoas tão tolas! Mas a Silencieuse e a Singer não são as ferramentas das quais se servem, em geral, as trabalhadoras daqui; a menos, no entanto, que esse anúncio esteja ali colocado como um símbolo de honestidade, como um convite aos labores castos”. HUYSMANS, Croquis Parisiens, p. 15.

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humanas. No croqui literário de Huysmans, o que se observa é, por um lado, as “[...] femmes

dont les traînes bruissent, en serpentant sur les marches [...]”256; por outro “ Une vapeur

chaude enveloppe la salle, mélangée d’exhalaisons de toute sorte, saturée d’une âcre poussière

de tapis et de siège qu’on bat. L’odeur du cigare et de la femme s’accentue [...]”.257

O caráter variado desse espetáculo é destacado pela escrita huysmansiana desde as

primeiras linhas do poema em prosa, já que, quando o narrador entra no estabelecimento e se

depara com a caixa cênica, já existe um número de acrobacia acontecendo no palco. A entrada

e a saída do público, assim como nos outros textos, determina uma informalidade em relação

à apresentação. Diante de uma festividade histérica, o sétimo capítulo se conclui:

Il faut ici de la musique pourrie, canaille, quelque chose qui enveloppe de caresses populacières, de baisers de la rue, de gaudrioles à vingt francs la pièce, le lancé des gens qui ont copieusement et chèrement dîné, des gens las d’avoir brassé des affaires troubles [...] 258

Quanto ao número de dança, o balé, que representa um palácio de um sultão otomano,

traz moças vestidas de persas. Dentre elas, uma parece destacar-se, aquela fantasiada de

oficial persa:

Elle dansait comme une chèvre, mais elle était adorable et ignoble, avec son képi galonné, sa taille de guêpe, son gros derrière, son bout de nez retroussé, sa mine gentiment canaille et luronne. Telle quelle, cette fille évoquait des barricades et des rue dépavées, exhalait un fumet de trois-six et de poudre, dégageait un épique de populace et une emphase de guerre civile, mitigée par des noces crapuleuses, en armes.259

Nesse momento, então, a enunciação de Les Folies Bergère en 1879, evoca, de uma só

vez, a ambiguidade da mulher do cabaré – descrita em Marthe e em Les Soeurs Vatard, e

256 “[...] mulheres cujas caudas farfalham, serpenteando sobre os degraus [...]”. Ibidem, p. 14. 257 “Um vapor quente envolve a sala, misturado de exalações de toda sorte, saturado por uma poeira acre de tapetes e de poltronas batidos. O odor do charuto e da mulher se acentua [...].” Ibidem, p. 12. 258 “É preciso, aqui, ter música ruim, vulgar, algo que envolva com carinhos do populacho, com beijos da rua, com libertinagem a vinte francos, a turba das pessoas que jantaram copiosamente, pagando caro, pessoas cansadas de lidar com negócios escusos [...]”. Ibidem, p. 37. 259 “Ela dançava como uma cabra, mas era adorável e ignóbil, com seu quepe galonado, sua cintura de vespa, seu grande traseiro, seu nariz arrebitado, sua aparência gentilmente vulgar e alegre. Como estava, essa moça evocava barricadas e ruas sem paralelepípedos, exalava um odor de aguardente e de pólvora, produzia um heroísmo de populacho e uma grandiloquência de guerra civil temperada com diversão devassa, nas armas”. Ibidem, p. 28-29.

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também em Nana – e a pintura histórica do começo do século XIX, que representou muitas

vezes as revoluções na França. Isso é relembrado quando, continuando a descrição da

bailarina, o enunciador reflete: “Invinciblement, on a songé devant elle à ces époques

surexcitées, à ces soulèvements où la Marianne de Belleville lâchée se rue pour délivrer une

patrie ou défoncer une tonne”.260

Um casal realiza um número de trapézio que rompe com o espaço tradicional de um

teatro, representado pela estrutura rígida da caixa cênica. Os trapezistas fazem uma

performance para amarrar cordas por toda a sala, tirando do palco frontal a hegemonia do

olhar do espectador:

La toile se lève, la scène reste pourtant vide, mais des hommes vêtus de blouses de toile grise à parements et à collets rouges courent dans tous les coins de la salle, tirant des cordes, défaisant des crampons, arrangeant des noeuds. Le vacarme reprend, deux ou trois hommes se démènent sur la scène, tandis qu’un mieux mis les regarde. On s’apprêtre à tendre un immense filet, au milieu de la scène, par dessus l’orchestre. Le filet oscille, quitte les parois du balcon où il est roulé, puis, courant sur ses anneaux de cuivre, il bruit comme une mer qui joue avec des galets.261

O casal de trapezistas evoca uma imagem que aparecerá muito forte na única peça de

teatro escrita por Huysmans, Pierrot Sceptique. O enunciador atribui-lhe “Le fixe sourire des

sydonies tournantes des coiffeurs [...]”262, que é um personagem importante na peça de 1881.

O personagem da Sydonie, como será visto a frente, é um autômato que gira na vitrine de um

cabeleireiro e é aniquilada por Pierrô. Como será observado na análise de Pierrot Sceptique,

Huysmans escreve sua peça teatral após essa visita às Folies Bergère e após ter assistido ao

260 “Irrefutavelment, evocamos diante dela essas épocas irrequietas, as rebeliões em que a Marianne de Belleville, liberta, avança para libertar uma pátria ou destampar um tonel.” Ibidem, p. 29. 261 “O pano de boca levanta, o palco fica, no entanto, vazio, mas homens vestidos com jalecos de linho cinza com adornos e colarinhos vermelhos correm por todos os cantos da sala, puxando cordas, despregando grampos, dando nós. A balbúrdia recomeça, dois ou três homens se movem no palco enquanto um mais bem posicionado os observa. Preparam-se para estender uma imensa rede, no meio do palco, sobre a orquestra. A rede oscila, corre da parede do balcão onde está enrolada, depois, deslizando em suas argolas de cobre, faz um ruído como o do mar que joga com os cascalhos”. Ibidem, p. 20. 262 “O sorriso fixo das sidônias giratórias dos cabeleireiros. ”Ibidem, p. 21.

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número dos mímicos ingleses Hanlon-Lees. Esse número de clowns ingleses, que é sombrio e

violentamente histriônico, será analisado na peça Pierrot Sceptique.

4.3.5 – Pierrot Sceptique

A relação entre Joris-Karl Huysmans e o teatro de sua época constrói-se

preferencialmente de rupturas e dissonâncias do que de harmonia e parcerias; o escritor não

costumava frequentar as salas de espetáculo parisienses, nem escrever para montagens

teatrais. Essa posição conflituosa de Huysmans e a circulação no espaço teatral são

explicitadas em sua afirmação introdutória da crítica de arte Le salon officiel de 1884:

Ma haine pour le ‘tout Paris” et ma répulsion pour le “public des Premières” sont telles que j’ai désir de causer avec mon concierge, d’écouter la narration de ses bas déboires et de ses plates joies, plutôt que d’entendre les idées reçues de cette foule soi-disant élégante qui perruche à propos d’une oeuvre d’art et délaye dans une médiocre sauce mal sucrée par les réflexions généralement saugrenues des dames, les opinions affirmées par les journaux qu’elle approuve.263

Enquanto Émile Zola, com quem Huysmans havia estabelecido uma relação de mútua

cooperação estética desde os anos 1870, convergia seus interesses de legitimação no campo

de produção literária em direção à dramaturgia, Huysmans recusava-se até mesmo a inserir

em seus romances a temática da cena burguesa.

Para Zola não se tratava apenas de reverter o quadro de críticas a seus romances, mas

de conquistar a fatia do campo de produção literária que mais multiplicava os capitais

263“Minha raiva pela elite de Paris e minha repulsa pelo “público de estréia” são tais que tenho vontade de conversar com meu porteiro, de escutar a narração de seus dissabores vulgares e suas alegrias insossas, bem mais do que ouvir os lugares-comuns dessa multidão que se considera elegante, que palra sobre uma obra de arte e dilui, em um medíocre molho mal açucarado pelas reflexões geralmente absurdas das senhoras, as opiniões dos jornais que ela aprova.” HUYSMANS, Joris-Karl. Le salon de 1884. Originalmente publicado na Revue indépendante (1884). Disponível no site http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32860109n/date.r=salon+1884+huysmans.langPT (acessado em 1º de março de 2010).

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econômico e simbólico, qual seja, o teatro. Em seu manifesto O Naturalismo no teatro, Zola é

categórico:

Não se pode esquecer o poder maravilhoso do teatro, seu efeito imediato sobre os espectadores. Não existe melhor instrumento de propaganda. Portanto, se o romance é lido perto da lareira, várias vezes, com uma paciência que tolera os mais longos detalhes, o dramaturgo deverá convencer-se, sobretudo, que não tem nada a tratar com esse leitor isolado, mas com uma multidão que precisa de clareza e concisão. 264

No final dessa primeira fase de sua trajetória, tal qual consideramos nessa pesquisa,

em que assume posições num determinado estado do campo, no qual experimenta uma

aproximação com o grupo de escritores próximos de Zola e toma partido da estética

naturalista, Huysmans escreve, junto com Léon Hennique, um texto dramatúrgico intitulado

Pierrot Sceptique. O sobressalto que se possa ter com a escrita dessa peça por um autor que

expressava publicamente seu desprezo pela arte teatral desfaz-se ao reconhecermos tal

literatura dramática como uma pantomima. Ora, esse gênero cênico é caracterizado pelo gesto

em detrimento da fala, trata-se de um teatro que muito pouco tem de literatura, concentrando-

se nas técnicas corporais do mímico e na prática com o público.

A pantomima de Huysmans ocorre em um único ato dividido em treze cenas. A trama

pode ser resumida da seguinte maneira: A mulher de Pierrô está morta e um alfaiate prepara

um terno para o viúvo. Pierrô, ao invés de pagar-lhe pelo serviço, prende o alfaiate no

armário. Apesar de ser calvo, Pierrô vai o cabeleireiro e, após ter sua cabeça “engraxada” com

uma pomada negra (devido a seu luto), agride também o cabeleireiro. No cortejo fúnebre, o

viúvo ri às gargalhadas e expulsa os convidados, para ir beber no cabaré, de onde sai bêbado e

com o nariz vermelho de palhaço. Na vitrine do cabeleireiro encontra uma mocinha com

264 “Il ne faut point oublier la merveilleuse puissance du théâtre, son effet immédiat sur les spectateurs. Il n’existe pas de meilleur instrument de propagande. Si donc le roman se lit au coin du feu, en plusieurs fois, avec une patience qui tolère les plus longs détails, le dramaturge naturaliste devra se dire avant tout qu’il n’a point affaire à ce lecteur isolé, mais à une foule qui a des besoins de clarté et de concision”. ZOLA, Émile. Le Naturalisme au théâtre. In : NOËL, Edouard & STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique (T. 4). Paris : Charpentier, 1878, p. XLVIII.

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quem, já em sua casa, negocia sexo em troca de comida. Após várias agressões, Pierrô coloca

fogo em sua cama, já que a mocinha não cede a seus caprichos masculinos, e foge com uma

mulher de papelão que avista no armarinho em frente.

Apesar de ser o único exemplo de literatura dramática atribuído a Huysmans, não foi a

primeira vez que o tema do personagem Pierrô constou nos escritos huysmansianos. O poema

em prosa Les Folies-Bergère en 1879, que integra os Croquis Parisiens, foi escrito após uma

visita a esse estabelecimento teatral. Huysmans foi acompanhado de Léon Hennique, a quem

dedicou um dos capítulos do poema em prosa. Na ocasião desse passeio pelo teatro de

variedades, os dois jovens escritores assistiram aos números dos célebres mímicos ingleses

Hanlon-Lees, descritos no poema sobre as Folies-Bergère.

Muitas são as semelhanças entre a descrição do número de pantomima no poema em

prosa e a peça Pierrot Sceptique: em ambos os espetáculos Pierrô está vestido de luto; nas

Folies-Bergère, a cena começa no cemitério e, na peça, com o caixão da senhora Pierrô. A

agressividade do corpo que luta também está presente nos dois casos; no poema, dois Pierrôs

disputam um duelo até a morte, enquanto na pantomima de Huysmans e Hennique o

protagonista agride fisicamente todos aqueles que se aproximam dele. Tais semelhanças

pressupõem uma utilização do espetáculo inglês visto na sala das Folies na escrita

huysmansiana, para a constituição da peça.

O enunciador de Les Folies-Bergère en 1879 assume uma postura de entusiasmo

diante do número de pantomima, diferenciando-o do terreno teatral quotidiano que, segundo

seu olhar, é vulgar:

L’impression produite par l’entrée de ces hommes est glaciale et grande. Le comique tiré de l’opposition de ces corps noirs et de ces visages de plâtre

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disparaît ; la sordide chimère du théâtre n’est plus. La vie seule se dresse devant nous, pantelante et superbe.265

Pode-se afirmar que Huysmans tenha escrito Pierrot Sceptique após o entusiasmo de

uma apresentação no ambiente festivo de uma sala de espetáculos que se dedicava às

variedades. No entanto, seria insuficiente considerar que apenas a satisfação diante de uma

peça levasse um escritor que cultivava tamanho desprezo pela sociedade dos espetáculos a

produzir um texto sem falas.

Em primeiro lugar, um texto escrito para não ser ouvido confronta-se com um terreno

teatral em que o centro do poder econômico e simbólico encontra-se, respectivamente, no

teatro burguês e na tradição dos clássicos franceses, ambos baseados na literatura dramática.

Em segundo lugar, Huysmans é reconhecido por pesquisadores de literatura francesa como

um escritor extremamente preocupado com o léxico, que fundamenta sua arquitetura textual

combinando expressões populares, o francês precioso e neologismos.

Huysmans está, indubitavelmente, relacionado ao conjunto de textos que formam a

literatura naturalista da Terceira República. De acordo com Pierre Jourde: “Quando escreve

Pierrot sceptique ele ainda é naturalista. [...] O mímico concentra a atenção no corpo das

coisas e dos seres, em sua materialidade. É nesse sentido, igualmente, que a pantomima é

naturalista”.266 De fato, conforme o desenvolvimento das rubricas ao longo da peça de

Huysmans e Hennique, os objetos se multiplicam, bem como as descrições dos corpos.

Por um lado, os objetos mostrados em cena (moedas, uma fatura de mil francos, uma

seringa, tesoura, pente, garrafa, etc.) assumem funções como se fossem corpos em cena. Por

outro, os corpos dos personagens são descritos como objetos. Por exemplo, a seringa da

265 “A impressão produzida pela entrada desses homens é glacial e grandiosa. A comicidade advinda da oposição desses corpos negros e desses rostos de gesso desaparece; a sórdida quimera do teatro não existe mais. Apenas a vida se erige diante de nós, palpitante e espetacular”. HUYSMANS, Croquis Parisiens, 1994, p. 31. 266 “Lorsqu’il écrit Pierrot Sceptique, il est encore naturaliste. [...] Le mime concentre l’attention sur le corps des choses et des êtres, sur leur matérialité. C’est en ce sens également que la pantomime est naturaliste”. JOURDE, Pierre. Huysmans et le mime anglais, la mécanique de la grâce. In : VIRCONDELET, Alain (dir.). Huysmans, entre grâce et péché. Paris : Beauchesne, 1995, p. 54-55.

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defunta senhora Pierrô transforma-se em metralhadora na mão do protagonista, que atira o

líquido contido em seu êmbolo sobre os convidados do enterro. Por sua vez, o cabeleireiro

engraxa a cabeça de Pierrô como se fossem botas. Há, ainda, o personagem da Sidônia, um

autômato que ganha vida e passa a agir como ser humano. Existe uma dissolução dos limites

entre o corpo humano e o objeto em cena em que um assume a função do outro.

Na versão definitiva de O Naturalismo no teatro (1881), do mesmo ano de Pierrot

Sceptique, Émile Zola dedica um de seus capítulos à pantomima dos Hanlon-lees, fazendo-

lhes muitos elogios como: “[...] esses mímicos maravilhosos [...]”267 e “[...] eles têm a finesse

e a força [...]”268. Zola, ao discorrer a respeito dos números da trupe de mímicos, legitima, de

certa maneira, a peça de Huysmans e Hennique dentro da cena genérica naturalista. As

descrições feitas por Zola das cenas dos Hanlon-Lees aproximam-se muito da ação descrita

em Pierrot Sceptique, reservando-lhe, assim, um lugar entre os escritos naturalistas.

Georges Charpentier, conhecido como o editor dos naturalistas, publica, entre 1875 e

1912, os Annales du théâtre et de la musique – crítica anual das peças de todas as casas de

espetáculos parisienses, cujos volumes mencionamos anteriormente. Na edição de 1878

(mesma edição na qual Zola publica, como um prefácio, sua primeira versão de O

Naturalismo no teatro), os autores Edouard Noël e Edmond Stoullig escrevem a propósito de

uma pantomima que estava em cartaz na sala das Folies-Marigny:

Essa alegre farsa [...] manteve Paul Legrand, que retomou o duplo papel de Pierrô e de Pierrette, nos quais, apesar de sua idade, ele é inimitável. Não há, em nossa opinião, comparação a estabelecer entre o talento tão fino, tão espirituoso e tão variado dos Debureau e dos Paul Legrand e a loucura epilética dos Hanlon-Lees das Folies-Bergère e outras pantomimas inglesas do Alhmabra de Londres. Tanto esses nos parecem monótonos e irritantes em suas contínuas saraivadas de tapas e de chutes, quanto aqueles eram alegres, divertidos e verdadeiramente cômicos. A

267 “[...] ces mimes merveilleux [...]”. ZOLA, Émile. Le Naturalisme au théâtre, les théories et les exemples.Paris : Charpentier, 1881, p. 327. 268 “[...] ils ont la finesse et la force [...]”. Ibidem, p. 333.

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pantomima francesa é repleta de sal e graça; aquela dos ginastas ingleses é fria e, apesar de sua turbulência, frequentemente triste e insignificante. 269

Ao descreverem o número da pantomima francesa que havia sido inserido no

vaudeville intitulado En classe, mesdemoiselles!, Noel e Stoullig confrontam-no, com um

olhar severamente crítico, com a pantomima dos Hanlon-Lees, em voga, à época, em Paris.

Por se tratar de listagem oficial do teatro francês, os Annales possuem um índice em que a

hierarquia de prestígio perante a crítica e o público está explícita. No alto da lista, encontram-

se a Opéra-Palais Garnier e a Comédie-Française, seguidas dos teatros nacionais, ou seja,

aqueles que recebem subvenções do governo. Trata-se, portanto, de uma crítica teatral cuja

posição naquele estado do campo se encontra centralizada, em contraponto com os

espetáculos populares, aos quais Huysmans dedica algumas linhas em seus romances e

poemas em prosa.

O lugar que o grupo comandado por Zola ocupa em vista do terreno teatral, nessa

configuração, parece construído não apenas por oposições ao teatro burguês, mas por

negociações. Ora, a posição que os Annales assumem está inteiramente consonante com o

palco tradicional e burguês. No entanto, essa publicação compartilha o mesmo editor dos

naturalistas, que busca um teatro de oposição àquele produzido por e para a burguesia

parisiense. Na verdade, a pantomima está inserida no manifesto de Zola mais como parte de

um histórico do teatro francês do que como objeto da luta por mudanças do campo. Esse

almejado lugar, no texto zoliano, é ocupado pelo teatro naturalista, de caráter tão textual

quanto o teatro tradicional francês.

269 “Cette joyeuse farce [...] a gardé Paul Legrand, qui a repris le double rôle de Pierrot et de Pierrette, où, malgré son âge, il est inimitable. Il n’y a pas, selon nous, de comparaison à établir entre le talent si fin, si spirituel et si varié des Debureau et des Paul Legrand et la folie épileptique des Hanlon-Lees des Folies-Bergère et autres pantomimes anglaises de l’Alhambra de Londres. Autant ceux-ci nous semblent monotones et agaçants dans leurs giboulées continuelles de gifles et de coups de pied, autant ceux-là étaient gais, amusants et vraiment comiques. La pantomime française est remplie de sel et d’esprit ; celle des gymnastiques anglais est froide, et, malgré sa turbulence, le plus souvent triste et insignifiante.” NOËL & STOULLIG, Annales du théâtre et de la musique (T. 4), p. 528-529.

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A cenografia enunciativa de Pierrot Sceptique parece estabelecer um posicionamento

que prefere impor-se através de uma cena genérica (caracterizada pela pantomima) muito

reconhecida no ambiente de espetáculos populares, mas inexistente no terreno teatral detentor

do poder. Além disso, a escolha de um protagonista que, através da ação do roteiro, denuncia

uma impossibilidade de comunicação no espaço social, remete o leitor a uma equivalência

entre o isolamento em que se coloca Huysmans perante as forças que agem no terreno de

produção de literatura dramática e o caráter paratópico dos personagens de Pierrot Sceptique.

Os personagens que compõem a trama são todos tipos dos meios populares, como o

coveiro, o engraxate, a velha bêbada, etc. Em contraponto com eles, há personagens

burgueses que participam menos da trama. O protagonista é essencialmente um marginal:

Pierrô abandona o cadáver da esposa para beber, luta com todos os demais personagens, tenta

estuprar a boneca que vira pessoa e é misógino. É a negação, o negativo, o não. Em tudo

Pierrô está relacionado ao avesso: seu luto no figurino e na pintura do crânio, suas atitudes

mefistofélicas que são enfatizadas pela rubrica “Um silêncio – a orquestra toca a Área das

jóias de Fausto”270 remetem à sedução de Mefisto sobre Margarida, a amada de Fausto, para

corrompê-la com jóias. O caráter não-humano ou material, que é próprio dos mímicos, traz

algo de autômato para todos aqueles que estão em cena, como se fossem marionetes, matéria,

cadáveres.

Pierrô, na última cena, ao fugir com uma mulher de papelão, assume uma postura de

afastamento definitivo de qualquer relação social e, através do caráter paratópico de um

protagonista que abandona a convivência social, o autor parece querer expressar sua própria

paratopia no campo de produção de literatura dramática, ou seja, reafirma o que para ele é a

literatura dramática e o que não é.

270 “Un silence – L’orchestre joue l’Air des Bijoux de Faust”. HUYSMANS, Pierrot Sceptique, In:___. Oeuvres Complètes de J.-K. Huysmans. Vol IV. Genève: Slatkine, 1972, p. 114.

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A topografia da pantomima de Huysmans e Hennique se constrói em vários estágios.

Em primeiro lugar, um cenário em meia-lua onde vários ambientes se justapõem: um

armarinho, um cabeleireiro, uma igreja, um cabaré e a casa de Pierrô, ou seja, um palco que

descreve plasticamente os bairros pobres dos arredores parisienses da segunda metade do

século XIX. Em segundo lugar, a sala das Folies-Bergère, para a qual, provavelmente, os

escritores pensaram a peça. Trata-se de um ambiente dedicado ao teatro de variedades, um

espetáculo barulhento e festivo. Em terceiro lugar, a localização dessa sala de espetáculos na

topografia parisiense supõe um público específico. O estabelecimento encontra-se no 9º

distrito de Paris e, apesar da frequência de público contar com burgueses (homens,

naturalmente), não possuía a circulação mais “nobre” da vida teatral parisiense, já que a

prostituição estava, ali, profundamente arraigada.

Quanto à cronografia, tratando-se de uma trama absurda, de atmosfera onírica e

fantástica, pode-se dizer que estabelece um espaço-tempo próprio do protagonista, como se o

tempo que conhecemos fosse redimensionado ao estado de nevrose de Pierrô. O que existe é o

tempo cênico e este não supõe passagens de tempo que não se vêem, ou seja, a trama

desenvolve-se no momento presente, ao mesmo tempo em que a platéia assiste à peça: não há

rubricas avisando “passou-se um dia” ou “algumas horas mais tarde”.

No que concerne às rubricas, o enunciador que ali se expressa apropria-se de um

caráter irônico em relação às regras socialmente aceitáveis. Por exemplo, ao descrever o

cenário da floricultura, diz: “A loja do florista exibe todos os ridículos emblemas das dores

humanas: guirlandas de sempre-vivas, coroas de pérolas com mãos de gesso enlaçadas no

centro [...]”.271 Mais adiante, quando o personagem título recusa os cumprimentos de

pêsames, o enunciador profere a seguinte observação: “Ele não precisa das simpatias

271 “Le magasin du fleuriste étale tous les ridicules emblèmes des douleurs humaines: des cerceaux d’immortelles, des couronnes en perles avec de mains de plâtre enlacées au centre [...]” Ibidem, p. 99.

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dolorosas de ninguém. Se sua mulher cometeu a besteira de morrer, ele não é de forma

alguma responsável por isso”.272 Na cena final, ao atear fogo em sua própria casa e queimar a

Sidônia, a eloquência da rubrica aumenta, manifestando a satisfação do enunciador diante da

destruição do espaço social ali construído:

A ce moment, le tocsin s’ébranle, monte, tonne. Des pompiers, une foule arrive de toute part. Et tandis que les pompiers pomperont, tandis que les bourgeois feront la chaîne, que les femmes pousseront des cris de détresse, tandis que les rumeurs grandiront mêlées au lourd vacarme du tocsin, Pierrot, le sceptique Pierrot, sur la place, se rue dans la boutique de la mercière et victorieusement il en sort, tenant entre ses bras la femme en carton, Thérèse ! et l’embrassant éperdument, il fuit avec elle loin du sinistre273

É possível reconhecer na cenografia enunciativa edificada na pantomima Pierrot

Sceptique uma apresentação do tema, do espaço e dos personagens que denota um

posicionamento indo de encontro às forças dominantes que agem no campo literário, tal qual

ele se mostra em 1881. Afinal, o teatro de bulevar, a opereta e o drama burguês sustentam a

economia teatral e Huysmans não compartilha desse capital econômico encontrado em salas

tradicionais como a Comédie-Française, o Odéon e a Opéra-Comique.

Por outro lado, apesar de, ainda nesse momento, o autor de Pierrot Sceptique aderir

aos princípios do grupo naturalista e usufruir da conquista territorial que tal grupo estabelece

no campo, Huysmans vai, pouco a pouco se distanciando das intenções naturalistas no que diz

respeito ao teatro. A partir dos anos 1880, aumentam os esforços por parte dos naturalistas a

fim de estabelecer um outro teatro que se contrapõe ao burguês. Trata-se do surgimento do

teatro naturalista que apresentará um novo momento na história dos espetáculos, com o

advento da figura do encenador. A partir desse período, Joris-Karl Huysmans não estará mais

272 “Il n’a pas besoin des sympathies douloureuses de personne. Si sa femme a commis la bêtise de mourir, il n’en est en aucune façon responsable”. Ibidem, p. 106. 273 “Nesse momento, a sirene começa a soar, aumenta, troa. Bombeiros; uma multidão chega de toda parte. Enquanto os bombeiros bombearão, enquanto os burgueses farão uma corrente humana, que as mulheres gritarão de aflição, enquanto os rumores crescerão misturados ao barulho forte da sirene, Pierrô, o cético Pierrô, na praça, atira-se no armarinho e vitoriosamente sai segurando em seus braços a mulher de papelão, Teresa! E, beijando-a perdidamente, foge com ela para longe do sinistro”. Ibidem, p.127.

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diretamente engajado na luta de Zola, que almeja o capital simbólico, ou seja, o prestígio da

legitimação como autor teatral.

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5 - CONCLUSÃO

A partir de um percurso que parte de um espaço extremamente amplo – o mapa de

Paris intramuros entre 1874 e 1881 – e que vai reduzindo seus limites até chegar em espaços

teatrais específicos dentro de determinadas passagens de textos produzidos por Joris-Karl

Huysmans, esta dissertação buscou reconhecer um repertório de elementos formadores das

cenografias enunciativas que constroem e são construídas nas passagens em questão.

A topografia parisiense analisada no capítulo 2, que traz à luz o campo social e

literário no qual Huysmans se impõe como agente, é estudada não como espaço construído

unicamente pelo escritor, mas como terreno edificado ao longo de, pelo menos, todo o século

XIX. Através de alguns dos grandes nomes da literatura francesa oitocentista, é possível

reconhecer uma topografia de Paris criada, recriada e redimensionada dentro do discurso

literário e que se torna objeto acessível a Huysmans, na segunda metade do século, com uma

divisão geral muito clara: o confronto entre a margem direita (rive droite) e a esquerda (rive

gauche) do Sena, o rio que corta a capital.

Nesse segundo capítulo é sugerido, tendo como base algumas críticas de arte de

Huysmans, uma posição no campo literário contrária à arte e à literatura cultuadas pela

burguesia do início da Terceira República, grupo social que funciona como uma continuação

do tout Paris do governo anterior, o Segundo Império. Tudo leva a crer, nessa primeira parte

da dissertação, que as enunciações huysmansianas estabelecem diálogos perfeitamente

harmônicos com os ideais naturalistas de Émile Zola e o grupo de jovens escritores que

parece segui-lo. Os diálogos entre Huysmans e escritores envolvidos com uma literatura que

apresenta características em comum e que, muitas vezes, é intitulada “naturalista”, são

problematizados no capítulo 4.

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Em seguida, para preparar o terreno de reflexão sobre as passagens específicas que

compõem o corpus, foi necessário observar como algumas salas de espetáculo funcionavam

em Paris no período entre os anos 1874 e 1881, quer dizer, foram pesquisadas localizações,

arquiteturas teatrais, técnicas cênicas e circulação de público nesses ambientes. Em

contraponto às salas populares de variedades, preferidas por Huysmans, foi preciso olhar para

duas outras manifestações teatrais: de um lado, o teatro burguês – mantenedor de uma

tradição dramática que alternava clássicos franceses e vaudevilles muito rentáveis

economicamente –, de outro, o teatro naturalista que deu início a um redimensionamento da

poética teatral no século XX – e perpetuou a figura de André Antoine como precursor da era

dos encenadores.

Quanto à primeira manifestação, em nenhum momento de sua trajetória Huysmans

pretendeu compartilhar simbólica ou economicamente de seus capitais, tendo desprezado

integralmente esse gênero. Pela segunda, se quisesse lutar, teria aliados de peso como Antoine

e o próprio Zola, que gostariam de contar com dramas de sua autoria. No entanto, Huysmans

dá as costas a ambas não apenas por não escrever para elas, mas também se recusando a situar

passagens de seus romances e poemas em prosa em tais ambientes, como fez, ao contrário,

com o teatro de variedades.

Completando o mapeamento do espaço pesquisado nessa dissertação, encontramo-nos

diante das rápidas passagens que tratam de ambientes teatrais nos poemas em prosa La Rive

Gauche (parte da coletânea Le Drageoir aux épices, de 1874), Les Folies Bergère en 1879

(parte dos Croquis Parisiens, de 1880) e dos romances Marthe, histoire d’une fille (1876) e

Les Soeurs Vatard (1879). Debruçamo-nos, também, sobre a pantomima Pierrot Sceptique

(1881), uma exceção no conjunto da obra de um escritor que se recusava a escrever para o

teatro.

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Ao efetuar uma leitura detalhada de tais passagens, descobrem-se enunciadores que,

independentemente da linguagem – poética ou romanesca – deixam-se maravilhar pelo

onirismo a que se propõem os espetáculos do cabaré, do café-concerto, do music-hall, enfim,

das variedades. Quase por inteiro porque há sempre, e não por acaso, um distanciamento

crítico entre enunciador e espetáculo observado que deixa claro o abismo entre a herança

cultural do primeiro e o escárnio e a precariedade em relação à tradição dos quais lançam mão

tais teatros.

Ora, a descrição dos defeitos técnicos dos artistas em cena, sobretudo no que concerne

ao canto, é revivida a cada novo texto dessa fase. Em La Rive Gauche, o primeiro tenor; em

Marthe, a protagonista; em Les Soeurs Vatard, a cantora das Folies-Bobino. Parece uma

obsessão dos escritores que são englobados pelo título de naturalistas a má qualidade vocal.

Zola também enfatizará, em Nana, a falta de talento da protagonista, que tem um péssimo

desempenho na opereta La Blonde Vénus.

Logicamente não param por aí as semelhanças e referências compartilhadas entre

Huysmans e Zola. O gosto pelo vocabulário rebuscado, misturado a expressões populares e,

ainda, neologismos, cria uma espécie de rede de palavras compartilhadas entre os escritores,

tais como “brouhaha” (para traduzir o burburinho da multidão), “coup de hanches” (para o

movimento lascivo da região sexual feminina que enfeitiça o público) e, para continuar na

atmosfera das prostitutas, as axilas femininas também liberam odores e expressões

compartilhadas entre os dois escritores.

Na verdade, assim como a topografia parisiense foi herdada da tradição oitocentista de

divisão das margen do Sena, também a heterogeneidade da língua literária vem a ser um

legado dos mestres cultuados por Huysmans:

Merecendo tanto e mais que qualquer outro o epíteto de “colecionador de palavras raras”, Huysmans sentiu que, após Baudelaire, Flaubert e os Goncourt, que com os

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ensinamentos da poética de Mallarmé, o futuro da escrita artista residia na frase. [...] Huysmans não refez por conta própria o trabalho de milhares de anos. Ele dispõe da língua que lhe foi legada274.

Em relação à situação da língua literária por volta de 1880, Cressot localiza Huysmans

como parte de um grupo de escritores que :

[...] goza de uma liberdade completa. É-lhe permitido criar palavras, rejuvenescer aquelas que caíram em desuso, pegar emprestado dos vocabulários técnicos, dos dialetos, da língua do dia-a-dia, da gíria, das línguas estrangeiras. É-lhe permitido associar-lhes um sentido que elas perderam ao longo das eras, ou mesmo um sentido “inaudito” sugerido por uma etimologia recorrentemente aproximativa.275

Nos dois primeiros romances é notável o progressivo saborear das palavras e da frase

como pratos de um banquete. Se em Marthe, Huysmans traz uma língua complicada

desenvolvida nos bastidores do café-concerto dos arredores do Luxembourg, em Les Soeurs

Vatard, o deliciamento de cada vocábulo toma proporções grandiosas nos âmbitos do teatro,

das vestimentas, dos meios operários, tal qual pode ser constatado nos excertos do capítulo 4.

Huysmans não somente amadurece sua prosa, como parece tirar proveito da tomada de

posição que lhe permitiu enunciar a partir do capital compartilhado com os mestres

“naturalistas”. Além da necessidade de retratar a fala do povo tal qual ela era à época, existe,

ainda, o interesse em se atingir a mestria de um estilo próprio, dentro do grupo. Assim,

inscreve-se na filiação da chamada écriture artiste, da qual Flaubert e, sobretudo, os irmãos

Goncourt são os grandes mestres, mas também naquela do poeta Charles Baudelaire dos

Petits poèmes en prose.276

274 “Tout en méritant, autant et plus que tout autre, l’épithète de « collectionneur de mots rares », Huysmans a senti qu’après Baudelaire, Flaubert et les Goncourt, qu’avec les enseignements de la poétique de Mallarmé, l’avenir de l’écriture artiste résidait dans la phrase. [...] Huysmans n’a pas refait pour son compte le travail de milliers d’années. Il dispose de la langue qui lui a été léguée». CRESSOT, Marcel. La phrase et le vocabulaire de J.-K. Huysmans, Contribution à l’Histoire de la Langue Française pendant le dernier quart du XIXe siècle.Genève : Slatkine, 1975, p. 83-84. 275 « […] jouit d’une liberté complète. Il lui est loisible de créer des mots, d’en rajeunir qui sont tombés en désuétude, d’en emprunter aux vocabulaires techniques, aux dialectes, à la langue de tous les jours, à l’argot, aux langues étrangères. Il lui est loisible de leur associer un sens qu’ils ont perdu au long des âges, ou même un sens « inouï » suggéré par une etymologie souvent approximative ». Ibidem, p. 3. 276 Cf. Ibidem, p. 9.

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A grande tomada de posição dirigida à legitimação de sua escrita ao lado dos

naturalistas foi a publicação de seu segundo romance por Charpentier, cuja editora, nas

palavras de Bourdieu “[...] é um dos lugares de agrupamento da vanguarda literária e

artística”277. Isso quer dizer que, nessa posição que Huysmans passa a assumir no campo

literário, o autor de Les Soeurs Vatard se engaja em uma opção ideológica filiada não apenas

a Zola, mas a mestres como Flaubert e os Goncourt. Tal engajamento, dentro do prisma

bourdieusiano, é elemento constituinte do próprio processo de autonomização do campo

literário na segunda metade do século XIX, já que, sobretudo com Baudelaire e Flaubert, o

domínio editorial é dividido entre edição comercial e edição de vanguarda, transformando o

circuito dos editores em um sistema homólogo àquele dos escritores.278

O lançamento de Les Soeurs Vatard marca, portanto, não apenas uma luta pessoal de

seu autor – que espera mais de um ano para que Charpentier finalize o processo inteiro de

impressão e publicação –, mas do grupo capitaneado por Zola, que encontra na ambição de

um jovem escritor no grupo, um elemento de fortalecimento dos interesses comuns de

legitimação no campo e perpetuação dos valores naturalistas. Assim, o romance possui a

seguinte dedicatória: “À Émile Zola, son fervent admirateur et dévoué ami”279.

Mas a relação de Huysmans com os naturalistas – com todas essas filiações e lutas –

não deve ser considerada um encontro incondicional de ideais comuns, mas um interesse de

conquista da possibilidade de enunciar, de ganhar voz no campo. Em primeiro lugar, as trocas

dos jovens escritores com Zola não se constroem em mão única, como se o autor de

L’Assommoir fosse um protetor que tivesse acolhido jovens marginais. David Baguley lembra

que a idéia de uma nova escola literária criada pelo mestre de Médan é uma ilusão, já que

277 “[...] est un des lieux de rassemblement de l’avant-garde littéraire et artistique ». BOURDIEU, Les Règles de l’art, p. 117 (note 35). 278 Cf. Idem.279 “A Émile Zola, seu fervoroso admirador e dedicado amigo”. HUYSMANS, Les soeurs Vatard, p. 83.

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“[...] Zola, ao invés de formar um grupo de discípulos, é, antes, adotado por um grupo já

existente, que adere em conjunto à defesa do autor de L’Assommoir”.280

Além disso, o percurso estrategicamente pensado no sentido de uma posição no campo

– em contraste com as diferenças ideológicas de Huysmans com o próprio grupo – é

enfatizado pelo duplo jogo que estabelece com Edmond de Goncourt, que pode ser

comprovado em suas correspondências. No capítulo 4 dessa dissertação isso já foi

mencionado, quando Huysmans escreve a Théodore Hannon reclamando da falta de apoio de

Goncourt ao grupo. Mas essa não é a única crítica ao autor de La Fille Élisa. Quinze anos

após ter publicado Marthe, Huysmans descreve seu primeiro romance como um “[...] velho

ovário de juventude fecundado por um espermatozóide perdido de Goncourt”281.

Em terceiro lugar, o próprio objeto dessa dissertação induz à ideia de uma divergência

com Zola, na medida em que este parecia almejar, mais do que qualquer outra conquista

literária, tornar-se um reconhecido autor teatral e construir uma escola naturalista de

dramaturgos, ao passo que Huysmans não frequentava o Théâtre-Libre de André Antoine, não

escreveu sobre esse teatro, e pode-se afirmar que nunca escreveu para tal teatro, já que Pierrot

Sceptique é uma ironia para com a escrita dramática.

Huysmans vislumbra estrategicamente, então, no início de sua trajetória, uma posição

que lhe permita enunciar junto ao jovem grupo de escritores que adotaram Zola como

comandante. Dessa maneira, ele se encontra, durante um certo período, engajado na luta

contra as críticas que maldiziam L’Assommoir e o repertório de textos que o circundavam.

Essa luta, que teve seu êxito dentro da lógica de choques entre agentes do campo, traz

resultados em via dupla. De um lado, o grupo que se auto-intitula naturalista conquista

280 “[...] Zola, au lieu de former lui-même un groupe de disciples, est plutôt adopté par un groupe déjà existant, qui se ralliera de concert à la défense de l’auteur de L’Assommoir ». BAGULEY, op. cit., p. 22. 281 “[...] un vieil ovaire de jeunesse fécondé par un spermatozoïde de Goncourt ». Carta de Huysmans a Ernest Raynaud (julho de 1890) citada in : HUYSMANS, Lettres Inédites à Edmond de Goncourt, p. 50.

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territórios nos domínios da edição (que tem em mãos o poder da produção técnico-artística do

livro, sua mediação e difusão e a medida de seu valor econômico), da crítica de arte (posto

que muitos de seus integrantes escreviam para periódicos) e, sobretudo, na midiatização que

fazem de si mesmos (publicações em conjunto, celebrações, manifestos, alianças, polêmicas

que chamam atenção para si para lembrar que existem, enfim, a tentativa de criação de uma

“lendária” escola naturalista). De outro lado, Huysmans se legitima como escritor, sendo

considerado um dos mais talentosos do grupo de Médan.

No sentido contrário, o engajamento em um grupo marcado pelas obras de Flaubert e

dos Goncourt e guiado pela atitude de Zola não se mostra total e incondicional. O primeiro

motivo está claro, Huysmans recusa ser um aliado na conquista do território dramatúrgico no

qual está inserido Zola. Em segundo lugar, um certo conforto em sua vida quotidiana, ainda

que medíocre, por gozar de um cargo público no Ministério do Interior, parece atenuar a

urgência de pertencimento a uma corrente ideológica e, sobretudo, comercial. Em sua

correspondência, o trabalho em um cargo burocrático não aparece como segunda opção.

Embora não o aprecie, o pouco ambicioso Huysmans parece não ter a intenção de

negligenciá-lo. Em uma carta de julho de 1877, a Zola, Huysmans se justifica por não

cooperar com muitos textos para o grupo:

Il fait chaud à en mourrir ici, un temps à dormir et à ne pas travailler, puis, comme circonstance atténuante, les 2 boultes que je traîne aux jambes, le Ministère et la maison de commerce, ont pesé plus que d’habitude [...]. Je n’ai point grandes nouvelles à vous donner, car je mène la vie la plus monotone qui se puisse voir.282

Já em 19 de maio de 1879, outra queixa contra o trabalho no Ministério: “Je

n’arriverai jamais à vous écrire aujourd’hui. Je suis à mon bureau et toutes les 3 minutes on

282 “Faz um calor de matar aqui, um tempo para dormir e não trabalhar, além disso, como pretexto, os dois pesos que arrasto nas pernas, o Ministério e o estabelecimento comercial, pesaram mais que de hábito [...]. Não tenho grandes novidades a lhe dar porque levo a vida mais monótona que pode haver”. HUYSMANS, Lettre Inédites à Émile Zola, p. 8-9.

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m’apporte des paquets de travail bête. Voilà 3 fois que je reprends cette lettre décousue »283.

Ultrapassando a visão do espaço social como sendo exterior à obra, pode-se pensar

como as enunciações das passagens de teatro dentro das obras de Huysmans entre 1874 e

1881 constroem um posicionamento. Em primeiro lugar, a mobilização dos gêneros poema

em prosa e romance “naturalista” evidencia o que para esse enunciador é legitimamente a

literatura. São trazidas à tona a escrita baudelairiana – escrita poética impregnada de boemia e

fugacidade – e a escrita do romance naturalista – que, de Balzac a Zola, traz consigo a

descrição, o movimento das massas na cidade e a heterogeneidade da linguagem que se

apropria do discurso científico, sociológico, artístico, etc...

Ao legitimar tais enunciações, o discurso huysmansiano, numa dinâmica de

reversibilidade, é também legitimado. Isso quer dizer que se impõe, nesse estado do campo,

uma vocação enunciativa, dando-lhe autoridade para, inclusive, denunciar seu pertencimento

problematizado no campo. Essa instabilidade entre o pertencimento e o não-pertencimento,

em que se encontra a “paratopia”, faz-se cada vez mais evidente nos textos de Huysmans, à

medida que sua vocação enunciativa se constitui naquele contexto.

Essa posição inevitavelmente paratópica está presente, sobretudo, nos personagens,

nos anti-heróis huysmansianos que vivem em um regime oposto ao da lógica burguesa de

concentração de capitais. Prostitutas, bêbados, trabalhadores buscando a fuga da realidade, e,

sobretudo, artistas famintos do teatro de variedades arrastam-se pelos redutos da diversão

ligeira parisiense. Redutos que visitou o escritor em seus passeios solitários.

Os passeios que fez Huysmans – e que este impõe a seus enunciadores – contaminam

o caráter paratópico de sua enunciação à medida que se afastam daquilo que parecia “valer a

pena ser mostrado” para o tout Paris daquele contexto social. Onde estão os grandes

283 “Não conseguirei nunca escrever-lhe hoje. Estou no meu escritório e a cada três minutos trazem-me embrulhos de trabalho tolo. É a terceira vez que retomo essa carta descosida”. Ibidem, p. 23.

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bulevares? Onde estão os primeiros distritos de Paris? Onde estão as salas de espetáculo

dedicadas à opereta, ao drama burguês, ao vaudeville, ao teatro clássico francês? A topografia

huysmansiana é prioritariamente desvinculada do centro do poder econômico, social e

cultural.

O afastamento progressivo do escritor no campo social e também no campo literário

reverte-se em uma cenografia enunciativa do distanciamento, no interior da obra. O

enunciador mantém a identificação com os personagens priorizados em seus textos e que

estabelecem uma travessia social em direção à fuga do mundo burguês. Marthe abandona o

teatro e vê seu professor e amante, o clown Ginginet, morrer de problemas ligados ao

alcoolismo. Céline Vatard, em meio às loucas noites em Montparnasse, pretende escapar de

sua realidade iniciando e terminando relações amorosas de maneira quase desesperada. Pierrô

incendeia o próprio lar para fugir com uma amante não-humana.

Les Folies Bergère en 1879, dentro do recorte proposto nesta dissertação, é o único

exemplo de descrição de uma sala na margem direita do Sena. Trata-se, portanto, de outro

palco, desenvolvem-se outros números, fala-se a outro público. O espetáculo é variado, assim

como no Bobino e na feira de Vincennes, mas parece existir um entretenimento mais

tecnológico, de estrutura mais dispendiosa. O caráter feérico dos espetáculos dos primeiros

romances e, sobretudo, daqueles observados em Le Drageoir aux épices, é consideravelmente

menor do que nas Folies-Bergère. Lá, os números eram quase todos individuais, no piso do

palco e baseados no controle do artista em relação à platéia. Aqui, há acrobatas voando sobre

o público, balés, mímica inglesa.

No entanto, a postura do enunciador diante da experiência não difere. Há o mesmo

maravilhamento e o mesmo distanciamento estabelecido com a arquitetura e a atmosfera

criada pela relação palco-platéia, quer dizer, a relação de reversibilidade entre o que se quer

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vender (espetáculos divertidos no palco e passeios com moças charmosas pelos corredores) e

a quem se dirige (o público, sobretudo masculino, que busca fuga, mas com uma ilusão de

luxo). O enunciador, que é levado pela multidão que não para de se movimentar, observa o

mal gosto de tudo aquilo, mas se rende as delícias das variedades ao concluir:

[...] ce théâtre, avec sa salle de spectacle dont le rouge flétri et l’or crassé jurent auprès du luxe tout battant neuf du faux jardin, est le seul endroit à Paris qui pue aussi délicieusement le maquillage des tendresses payées et les abois des corruptions qui se lassent. 284

Ao terminar a apresentação dos acrobatas, o som da rede sendo retirada do palco faz

com que o enunciador deixe de lado a descrição do ambiente (vemos o emprego do pronome

“on”, que é carregado de impessoalidade) para se permitir mergulhar nos próprios estados

d’alma, empregando o pronome “je”:

Et voilà que je songe à Anvers maintenant, au grand port où dans un roulement pareil s’entend le « all right » des marins anglais qui vont prendre le large. C’est ainsi pourtant que les lieux et les choses les plus disparates se rencontrent dans une analogie qui semble bizarre, au premier chef. On évoque dans l’endroit où l’on se trouve les plaisirs de celui où l’on ne se trouve pas. Ça fait tête-bêche, coup double. C’est la courte joie que le présent inspire, déviée à l’instant où elle lasserait et prendrait fin et renouvelée et prolongée en une autre qui, vue au travers du souvenir, devient tout à la fois plus réelle et plus douce.285

Nesse momento, a enunciação huysmansiana se distancia da objetividade naturalista

para se aproximar de um caráter mais intimista, que reflete sobre os próprios processos

emocionais, um caráter apontando para o encerramento de uma sequência de posicionamentos

enunciativos (e de tomadas de posição no campo), que culminará com a pantomima Pierrot

Sceptique.

284 «[...] esse teatro, com sua sala de espetáculos cujo vermelho desbotado e o ouro sujo contrastam com o luxo novinho em folha do jardim artificial, é o único lugar em Paris que fede tão deliciosamente à maquiagem das carícias pagas e aos latidos das depravações que se cansam. HUYSMANS, Croquis Parisiens, p. 39. 285 « Sonho, então, agora, com Anvers agora, com o grande porto onde, em um rufo semelhante, ouve-se o “all right” dos marinheiros ingleses que vão para o alto-mar. É assim, no entanto, que os lugares e as coisas mais disparates se encontram em uma analogia que parece estranha, à primera vista. Evocamos, no lugar em que nos encontramos, os prazeres daquele em que não nos encontramos. É um por cima, outro por baixo, dois coelhos com uma cajadada só. É a curta alegria que o presente inspira, desviada no instante em que ela cansaria e chegaria ao fim, e renovada e prolongada em uma outra que, vista através da lembrança, torna-se ao mesmo tempo mais real e mais doce”. Ibidem, p. 26.

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Huysmans, no que se refere ao teatro, coloca-se em oposição às posições dominantes

presentes no campo. Em primeiro lugar, em consonância com Zola, ele se opõe à arte da

burguesia e da pequena-burguesia.

O mais próximo que Huysmans chegou da arte industrial foi através das descrições das

Folies-Bergère, que são frequentadas por um público burguês e pequeno-burguês dentro de

uma dinâmica comercial e ligeira – mas numa perspectiva crítica. Em segundo lugar, em um

distanciamento em relação a Zola, Huysmans não se deixa seduzir pelas previsões que o

mestre faz, na primeira versão de Le Naturalisme au théâtre, ao nomear os grandes nomes da

tradição naturalista no romance, esperando que seus seguidores concretizem suas conquistas

também na arte dramática:

Basta relermos Balzac, o senhor Gustave Flaubert e os senhores de Goncourt, isto é, os romancistas naturalistas. Espero que coloquem de pé, no teatro, homens de carne e osso, tomados na realidade e analisados cientificamente, sem uma mentira. [...] Espero, enfim, que a evolução ocorrida no romance se concretize no teatro [...].286

Em 1878, Zola publica três peças em um volume intitulado Théâtre. A propósito desse

lançamento, Huysmans escreve-lhe, mostrando um olhar sobre o teatro não muito condizente

com seu desprezo por essa arte:

J’ai passé la soirée, hier, à lire le volume de votre théâtre et je sors tout enfiévré. Thérèse Raquin m’a réempoigné comme jadis. [...] Quant aux Héritiers, je m’étonnerai toujours qu’ils n’aient pas eu grand succès. Il y a là dedans des grandes scènes d’un comique énorme. [...] J’arrive maintenant au Bouton de rose,et je vous dis sincèrement les réflexions qu’il me suggère. A ne point mentir je préfère les 2 autres.287

286 “Nous n’avons qu’à relire Balzac, qu’à relire M. Gustave Flaubert et MM. De Goncourt, en un mot, les romanciers naturalistes. J’attends qu’on plante debout au théâtre des hommes en chair et en os, pris dans la réalité et analysés scientifiquement, sans un mensonge [...] J’attends enfin que l’évolution faite dans le roman s’achève au théâtre [...] ». ZOLA, Le Naturalisme au théâtre, p. XXXIX – XL. 287 “Passei a noite de ontem lendo o volume de seu teatro e estou completamente exaltado. Thérèse Raquin me emocionou como outrora. [...] Quanto a Héritiers, sempre me surpreenderei que não tenha tido grande sucesso. Há, ali, grandes cenas de uma comicidade enorme. [...] Chego agora em Bouton de rose e lhe digo sinceramente as reflexões que ele me sugere. Sem mentir, prefiro as outras duas [...]”. HUYSMANS, Lettres Inédites à Émile Zola, p. 17-18.

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No fim da carta, Huysmans parece estar engajado na luta de ocupação do território

dramatúrgico pelos naturalistas: “[...] je crois, en mon âme et conscience, que lorsqu’on a

trouvé des scènes aussi poignantes, des effets aussi originaux, on peut manier le théâtre

comme on veut, le débarrasser des formules où il se débat, lui infuser un sang absolument

nouveau »288. Não foi o que aconteceu com esse teatro, não foi essa a luta na qual Huysmans

se engajou.

Entretanto, diante de Pierrot Sceptique, o leitor pode trazer à memória as passagens

em acontecimentos teatrais encontradas nos romances e poemas em prosa do período de 1874

a 1881 e, assim, contribuir na construção de cenografias enunciativas que revelam o que, para

Huysmans, poderia ser reconhecido como legitimamente teatral. Do repertório de

acontecimentos legitimados pelo autor, o drama encontra-se excluído. Por outro lado, as artes

do espetáculo em seu viés mais popular, filiadas aos eventos das antigas feiras e dos

divertimentos ligeiros de estrutura fragmentada, encontram lugar de destaque como se o

enunciador, sob o prisma naturalista, descrevesse as classes populares tal qual elas se

mostram no quotidiano; e, sob um prisma mais intimista, exaltasse o desligamento do mundo

por desconfiar que nada faz realmente sentido.

Dessa forma, a cenografia enunciativa de sua única peça de teatro propõe a

ambiguidade de uma enunciação, por um lado, ainda filiada aos jovens escritores que

adotaram Zola como capitão na luta pela inversão do campo literário, por outro, que pretende

assumir definitivamente um não-pertencimento a escolas literárias.

Finalmente, Huysmans, ainda que despreze a arte teatral, não tendo a intenção de

promover este ou aquele gênero cênico (ou, talvez, justamente por declarar seu horror ao

teatro) aponta algumas vezes nesse primeiro período de sua produção literária a busca pela

288 “[...] acredito, em minha alma e consciência que, a partir do momento em que encontramos cenas tão emocionantes, efeitos tão originais, podemos manejar o teatro como queremos, livrá-lo das fórmulas em que ele se debate, infundir-lhe um sangue absolutamente novo”. Ibidem, p. 19.

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natureza da arte teatral. Ao criticar a relação entre o palco e o público, Huysmans acaba por

suscitar uma reflexão sobre o fazer cênico em contraponto com a poesia dramática, discussão

que será tão fundamental ao século seguinte, resultando na dissolução dos limites entre a

literatura, o palco e as diferentes disciplinas artísticas.

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6 – REFERÊNCIAS

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