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i JULIANO RICCI JACOPINI “O TEXTO TEATRAL (EN)CENA" CAMPINAS 2013

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JULIANO RICCI JACOPINI

“O TEXTO TEATRAL (EN)CENA"

CAMPINAS 2013

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À Isabel, minha mãe.

Leitora de minha cabeceira, personagem de minha vida inteira.

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AGRADECIMENTOS

Caminhos são feitos de nossos pés, porém não se pisa sozinho no chão. Agradeço tanto de

caminhada a tantos personagens que cruzei pela longa estrada.

À minha família, em especial a Isabel, Luiz e Matheus (minha mãe, meu pai e meu irmão):

os pés que aprendi a seguir e deram-me coragem para novas estradas.

Aos meus eternos amigos, Adriana De Nadai, Aline Périgo, Cristiane Campos, Daniel

Lopes, Ellen Candido, Lygia Nicolucci, Marianna Henrique, Noemi Lemes, Simone

Marcondes, Thiago França e Thiago Gardini: os pés que me acompanham há tempos e

que são ouvidos de ventura para toda nova história.

À Cia Labirinto de Teatro: os pés que mais acredito e que se permitem pisar novos

territórios ao meu lado.

Ao Grupo XIX de Teatro e Grupo Galpão: os pés ilustres e fundamentais dessa trajetória.

Às professoras da Graduação, Elaine Assolini e Bianca Correa: os pés que auxiliaram no

quanto meus pés poderiam alcançar.

Aos amigos hospitaleiros, Estela Almeida, Ester Monteiro, Ivelize Silva, Lívia Nicolucci,

Raphael Ricci e Rafael Kashima: os pés aconchegantes durante a jornada desta história.

Ao amigos do Grupo ALLE: os pés que sustentaram qualquer titubeio pela estrada.

Ao meu orientador, Ezequiel Silva: os pés de horizontes, de nortes, sul, leste, oeste.

As professoras Suzi Sperber, Norma Ferreira, Heloisa Matos e Raquel Fiad: os pés atentos

e possibilitadores da trajetória bem feita.

Ao CNPQ: os pés de aberturas do devir.

Aos meus pés: os pés que não cansam de caminhadas, de descobertas, de memórias, de

histórias... De novas histórias!

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“(O trem apita. Seu som se aproxima cada vez mais forte.)

II – É ele... De que lado será que vem?

III – Não importa, o que importa é que vem.

I – Eu quero ser...

(Black out. Apito ensurdecedor do trem... De chegada ou de partida: à pedida).”

Juliano Ricci Jacopini – “Vão”

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RESUMO

Caminhando. Assim se dá a trajetória dos acontecimentos, e nessa dissertação não seria diferente; ao contrário, assumidamente, o corpo desse trabalho apresenta uma trajetória que se sustenta por estradas já trilhadas, que vieram a ser e que ainda serão. O objetivo desse estudo é tatear possíveis maneiras que o texto teatral pode ser trabalhado em sala de aula. A proposta de adentrar o campo escolar com o texto dramático vem atrelada à questão da oferta da leitura pelo prazer, entendimento e interpretação, e não a leitura como, e apenas, decodificação de signos; a busca de fato é por uma leitura pela produção de múltiplos sentidos, por quais apreensões e significações nascem quando esta é possibilitada de forma ampla, pela interpretação vinculada à bagagem que o sujeito-leitor traz consigo em seu percurso sócio-histórico. Sob esse prisma, de que o sujeito é história, e traz em si suas histórias, cria/ tece na relação em sala de aula tantas outras histórias, o trabalho com o texto dramático possibilitaria a criação de outras tantas histórias. Assim, busca-se leituras ainda não lidas. Leituras pelos olhos de quem se lê ao tempo que lê, de quem se permite ler sem medo de interpretar, de quem se permite ler de forma polissêmica e que encontra no texto que lê várias vozes atravessadas, e que atravessam o leitor. O caminho se fez à luz de discussões e mapeamentos sobre a história da leitura e o leitor sócio-histórico (CHARTIER, 1996, 1999, 2002), sobre a Teoria da Interpretação e Hermenêutica (RICOUER, 1977; CORETH, 1973) e ainda sobre conceitos de gênero e dialogismo (BAKHTIN, 2003, 2004). Na caminhada encontramos novos caminhos e personagens importantes que passaram a fazer parte dessa trajetória, que são o Grupo XIX de Teatro e o Grupo Galpão, dois grupos de referência com trabalho teatral no Brasil e que foram entrevistados sobre as possibilidades para se ler o teatro, trazendo para as discussões presentes neste trabalho novos olhares sobre os caminhos que a leitura, bem como a arte, podem estar vivas e serem vividas no contexto escolar. Palavras-chave: texto teatral, prática de leitura, teatro, leitura.

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ABSTRACT

Moving. That is the course of the events, and in this dissertation it would not be different; on the contrary, on purpose, the content of this work presents a route that exists through ridden roads that come to be and still will be. The objective of this study is to search possible means by which the theatrical text (drama text) can be worked out in the classroom. The wish to enter the school field with the theatrical text is linked with the question of offering reading activities based on pleasure, understanding and interpretation, and not based on sign decoding only; our search aims at a type of reading that produces multiple meanings that are born when it is facilitated intensively by interpretation related to the background the reader has – a background built along his social historical life. From this point of view that the reader is history, and brings about stories, and weaves many other stories in the classroom, the work with the theatrical text would promote the creation of many other stories. So, we look for readings not read yet. Reading through the eyes of one who reads himself when he reads, of one that allows himself to fearless interpretation, of one that reads in a multiple way and that finds out in the text read various crisscrossed voices that cross the reader himself. The route was constructed in the light of discussions and the mapping of the history of reading and the socio-historical reader (CHARTIER, 1996, 1999, 2002) of interpretation Theory and Hermeneutics (RICOEUR, 1977; CORETH, 1973), including concepts of gender and interactionism (BAKHTIN, 2003, 2004). Along the way, we have found other ways and important characters that were added to our trip: Grupo XIX de Teatro and Grupo Galpão, two theatrical reference groups in Brazil – they were interviewed about the possibilities of reading the theater, bringing to the present dissertation new insights about the ways that reading and arts in general can be lived in schools. Key words: theatrical text, reading practice, theater, reading.

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SUMÁRIO

PRÓLOGO: O MAPEAMENTO.................................................................................21 PRIMEIRO SINAL.........................................................................................................24 Solilóquio do EU.................................................................................................24 SEGUNDO SINAL.........................................................................................................29 TERCEIRO SINAL.........................................................................................................34 PRIMEIRO ATO: A HISTÓRIA................................................................................35 CAMINHANDO DE CÁ PRA LÁ.................................................................................37 O “ser” leitor de teatro.......................................................................................39

Pelas colunas dórias, jônicas e coríntias............................................................52 Pelos ermos, vielas e catedrais............................................................................54 Pelas páginas, pautas e teclados.........................................................................56 Agora, de lá pra cá..............................................................................................57 SEGUNDO ATO: O TERRITÓRIO...........................................................................63 “DECIFRA-ME OU TE DEVORO”...............................................................................65 O que o olho vê?..................................................................................................68 Gerando outro, pelo outro...................................................................................74 Decifrou-me ou te devorei?.................................................................................84 TERCEIRO ATO: O CAMINHO................................................................................85 CALÇAR-SE “COM AMBAS AS MÃOS”...................................................................87 O(s) caminho(s)...................................................................................................88 XIX.......................................................................................................................98 Galpão...............................................................................................................104 Caminhar, caminhar, caminhar.........................................................................110 QUARTO ATO: O ENCONTRO..............................................................................113 A METALINGUAGEM DE LER LEITORES.............................................................115 Grupo XIX de Teatro.........................................................................................116 Grupo Galpão....................................................................................................119 Os novos passos, os novos olhos.......................................................................125 As pedras da seleção..........................................................................................130

As pedras do acontecimento..............................................................................133 As pedras da “verticalização”..........................................................................137 As pedras do coletivo.........................................................................................140

As pedras da plateia..........................................................................................142 As pedras do como.............................................................................................147 As pedras da escola...........................................................................................149

Breve Suspiro.....................................................................................................152

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EPÍLOGO: A EXPRESSÃO .....................................................................................155 CAMINHADO E AINDA ANDO!.............................................................................157 Pelo caminho das pedras amarelas...................................................................158 O coletivo...........................................................................................................160 As leituras..........................................................................................................161

As maneiras........................................................................................................162 As significações..................................................................................................164 As verticalizações..............................................................................................165 Te(x)tando..........................................................................................................166 Referências Bibliográficas ................................................................................175 ANEXO I................................................................ ......................................... 181 ANEXO II.............................................................. ...........................................183 ANEXO III............................................................. ..........................................193 ANEXOIV.............................................................. ..........................................201 ANEXO V.............................................................. ...........................................203

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Caminho é assim: construído e constitutivo. Pega-se pelas mãos de um, de outro e

se segue por aí, pelos novos territórios ao abrir de olhos, de tantos olhos pelo

mundo, pelos tantos mundos. O caminho está até ser pisado, pois quando o é, passa

a ser. Onde há horizonte, há estrada, há passo, há pegada, há sempre nova

caminhada feita de um que são todos, de todos que são um. Para caminhar é

preciso se perder, pois perdendo é que se acha, se encontra no encontro por

encontros já vividos e encontros que virão. A obra plástica de Pablo Picasso “A

Família de Saltimbancos” (1905) traz o encontro de caminhantes de longas

jornadas. Os olhos cansados de quem caminhou mostra que andar não é tão fácil

assim; cada olhar em um direção suscitam que o caminho é de escolhas e elas são

diferentes para cada um. Um encontro parado, mas vivo pelas direções que olham

na busca incessante em caminhar, pois sempre é tempo de buscar o novo, de novo.

Peguemos carona com essa caravana de artistas para andar por esta dissertação

revestida de novos olhos, de novas buscas, de novos quereres. O caminho é de

descobertas, armadilhas, encruzilhadas, escolhas... O caminho é de pisar, de criar,

de “infinitar”. Caminhemo-nos!

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PRÓLOGO

O MAPEAMENTO

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[É o fim de um dia. Vindo da esquerda, surge Bufo em passos lentos. Para, súbito

olhando assustado para os caminhos à sua frente. Olha para um lado, Olha para o outro.

Está visivelmente indeciso. Logo surgem, vindos do mesmo lugar, Lorde e Bela. (...).]

BUFO - E agora?

[Bela e Lorde olham em silêncio, sem entender a razão da interrupção e sem ter o

que responder. Durante esse momento de silêncio e vindo do mesmo lugar dos demais,

surge Roto, o último membro do cortejo (...). Está em cena a caravana da ilusão. São

quatro figuras exauridas pelo cansaço das longas caminhadas (...) melancólicas pela

nobreza envelhecida, envilecida e esfarrapada de suas roupas de cores, outrora fortes, mas

agora pálidas e que, apesar disso, conservam a altivez nas atitudes e a intensidade nos

sentimentos, movidos, quem sabe, pela fé e a esperança que lhes vêm no sangue desde

tempos imemoriais (...).]

BUFO - O caminho se bifurca...

LORDE – Não entendi.

BUFO - Chegamos a uma encruzilhada. Por onde seguir?

[A questão tem mais significado do que se aparenta. Todos se assustam como se

nunca tivessem sido colocados diante de tal situação. (...) A pergunta fica no ar, sem

resposta. Bufo tenta, olhando ao longe, descobrir para onde leva um e outro caminho. Seu

esforço parece inútil. Volta-se humildemente.]

BUFO – E então, Lorde? Qual dos dois caminhos seguir?

LORDE – Pergunte então qual dos três?

(Todos encaram Lorde como se ele tivesse profanado velhos dogmas. Bufo se

aproxima ofendido e sem entender. Lorde tenta, com humildade, explicar-se.)

LORDE - Há também o caminho da volta.

(A afirmação, aparentemente óbvia, revolve sentimentos profundos em toda a trupe.

Bufo controla explosivas energias enquanto encara ameaçadoramente Lorde.)

BUFO - O que está acontecendo com você, Lorde? (...) Você sempre soube que, pra

gente como nós, não há volta nem retorno!

[(...) Bufo olha para trás, para o caminho que já percorreu (...).]

BUFO – Para trás já conhecemos tudo, temos que ir para frente, mano.1

1 Trecho do texto teatral “Caravana da Ilusão”. (ARAÚJO, A. 1999: 15,16,17,18)

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PRIMEIRO SINAL2

Os ensaios estavam a acontecer desde uma vida inteira. Em meio às cortinas que se

estendem de uma ponta a outra dos palcos e beijam os tablados que estalam a cada novo corpo

que adentra com novas histórias por ruidosos caminhos de muitas andanças, os destinos vão

se tecendo. Entre encontros, brindes, evoés e epifanias, estendem-se pelos varais da memória

as marcas que tateiam o cerne-universo-paralelo de cada um e que significa sem percepções,

mas por espontaneísmo que nos forma em doses experimentais – dado algo que nos faça em

completude, pronto: estamos prontos para ousar pisar em novos palcos. São os quereres que

nos constroem pelas vivências. Não se planeja o querer, se quer e pronto! Ao menos perceber,

se está sendo, em gerúndio aclamativo de caminhando, ando, ando, ando... Até onde? Isso

cabe às pernas alcançarem ao alçarem sonhos.

Apresento-me nesse mais um ensaio da vida como o personagem “Eu”,

experimentador de caminhos, à luz de perspectivas e expectativas que cabem à busca e à

valoração da busca que almejo consciente e inconsciente; afinal, não temos o domínio sobre o

todo, e aí está a engrenagem da vida: a descoberta.

Solilóquio do Eu

Eu era tantos... Diversos. Engatinhei em primazia sobre universos de encantamento.

Era convidado por minha mãe para dormir em meio a lençóis, um teto estrelado e suas

palavras (ben)ditas saída das linhas de livros que ficavam sobre o criado-mudo de meu quarto.

Contos sobre chapéus, lobos, vovós, Joãos, Marias, bruxas, maçãs, sapatos, porcos, fadas, e

por aí vão numerosos convites que minha mãe me fazia para a imersão em mundos outros que

cabiam a mim imaginar. E eu deliciosamente os fazia: era eu um “fazedor” de mundos.

Pegava quase sempre um livro que ficava na estante da sala, com uma capa preta, com

várias pessoas na frente e alguns sinais de “x” vermelho que passavam sobre alguns rostos, e

dizia para minha mãe: “Quando vou ler sozinho esse?” Me deslumbrava com a imagem da

2 No teatro, são acionados antes de se dar início a uma apresentação, o Primeiro Sinal, Segundo Sinal e

Terceiro Sinal, preparando os atores para que saibam que se aproxima o momento de entrarem em cena.

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capa, com a quantidade de páginas, linhas, palavras e achava mágico pensar que alguém tinha

a magia nos olhos capaz de se por a ler tudo aquilo.

Ler era a primeira conquista, a primeira busca. Realizei-me ao ler. Quando comecei,

mais uma vez, minha mãe (a leitora dos meus sonhos) me levou a uma livraria e comprou três

livros para mim... Eram para mim! Recordo-me os nomes: “O caminho das nuvens”, “A

menina de trapos” e “O toró”. Foi quando descobri que toró era chuva forte, e daí qualquer

chuvisco para mim virara toró, só pra poder falar essa palavra nova que fazia parte de mim a

partir de então.

E daí caminhei, lendo e me tornando de “Felicidade clandestina”3 com os livros que

me chegavam às mãos “não mais uma garota e seu livro, mas uma mulher com seu amante”.

Talvez praticar assiduamente a leitura, fez-me apaixonar por escrever. Eram cartas e mais

cartas que corriam às mãos de minhas avós, tias, mãe... Um dia minha avó me chamou em seu

quarto e tirou de um baú que ficava na cabeceira de sua cama, junto as inúmeras cartas que

lhe mandava, um livro: “Esse minha professora me deu na primeira série.” Tinha a Branca de

Neve desenhada na capa e era composto por sete contos – eu adorava ler um que se chamava

“O Machado de Prata”. Dentro do livro, uma dedicatória da professora “Para a menina

Shirley, que tanto gosta de ler”. Mais uma vez a magia transbordava pelas páginas, queria eu

também receber de quem me ensinou a ler um presente como esse.

Talvez tanto querer ultrapasse de dentro da gente. No final de minha segunda série,

minha professora me presenteou com “Para no P da Poesia”, livro que eu pegava toda semana

na biblioteca da escola e praticamente o tinha decorado. Hipnotizava-me aquela leitura que

soava como música. Na primeira página do grande presente estava escrito “Para o Juliano,

que brinca de ser poeta”. Não sei se brincava de ser poeta, mas sei que passava grandes

relógios em busca de ler algo novo, algo mais, algo.

Na escola onde estudava havia uma professora que dava aula na quarta série e que

todo final de ano apresentava um peça de teatro com seus alunos. Então, desde minha

primeira série, no final do ano, estava eu sentado no anfiteatro da escola para assistir à peça

que a quarta série apresentaria. Sabia que uma hora seria eu que iria estar ali no palco; afinal,

eu iria chegar à quarta série.

Lembro-me da peça a que assisti quando eu estava na terceira série. Contava sobre a

história da cidade. Minha mãe estava do meu lado esse dia. Quando terminou, eu virei pra ela

3 Trecho da obra "Felicidade Clandestina" de Clarice Lispector.

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e disse “Ano que vem sou eu!”. Ela sorriu e foi falar com a professora que montava os

espetáculos na escola. “Dona Lygia, esse será seu aluno ano que vem. Ele está louco pra fazer

teatro”. E eu estava. Não sabia o que era, mas queria experimentar.

Enfim, o ano chegou, mas tantos quereres nos escapam. No ano que eu iria para a

turma da escola com a professora que fazia teatro, a turma se dividiu e eu não fiquei com ela.

Minha mãe tentou me mudar de sala, mas não teve jeito. Fiquei eu só com os olhos e as

vontades. Naquele ano montaram “Romeu e Julieta” da Ana Maria Machado, que era a

história de “Romeu e Julieta” do Shakespeare, mas os personagens eram borboletas. Eu,

sentado, assistia no final do ano com todo o desejo de estar.

Não foi um dia tão feliz. Chorei, pois queria estar lá e não cá, assistindo, pois por

direito era a minha vez. Saindo do teatro com minha mãe, ela passou da livraria e, quem sabe,

com a intenção de me fazer sorrisos, me deu um livro, o maior até então que tinha chegado

em minhas mãos: “Sonho de uma noite de Verão”, do Shakespeare, com tradução e adaptação

da Ana Maria Machado (tenho ele até hoje). Sorri, o abri, folhei, olhei, e... “Mãe, esse é

diferente!” Ela me disse, então, que era um livro de teatro. A dúvida veio instantânea. Queria

dizer ela que os teatros saem dos livros, seria isso? A grande descoberta daquele dia deixou de

ser que eu não haveria sido o ator da tarde, mas que os teatros nascem das linhas, dos livros,

aqueles dos quais era eu o “amante”.

Li o “Sonho” e sonhei com Titânia4 dormindo sobre a copa das árvores. Caminhei.

Dois anos mais tarde, após o encontro entre os livros e o teatro e buscar devorá-los onde me

competia a leitura até então, por obras de Maria Clara Machado, uma grande dramaturga de

minha infância/ adolescência/ vida, encontrei aos 11 anos um curso de iniciação teatral. Era o

momento de nova descoberta. Às terças-feiras, das 18 às 21 horas, me embebia do universo

teatral em passos de princípios de um gosto que era meu, mas o estava descobrindo de dentro

para fora. Algo que já me pertencia e que foi, paulatinamente, sendo despertado. Um ano de

oficinas se consolidou com a montagem do espetáculo “A Gata Borralheira” da minha grande

dramaturga, a Maria. Era eu João Jaca5 lá no palco, com um figurino vermelho de bolas

brancas que minha mãe havia costurado. Sempre minha mãe... Acho que fomos nos

descobrindo juntos.

4 Personagem da obra “Sonho de uma Noite de Verão” de William Shakespeare. 5 Personagem da obra “A Gata Borralheira” de Maria Clara Machado.

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De lá pra cá, não teve parada. Ingressei em um grupo de teatro de minha cidade

(Matão, que fica no interior de São Paulo), o grupo Pegando N’arte. Com o grupo nasci nos

personagens de um Burro, de Alonso, de José, de Uirapuru, até Jesus me passou por ali... Mas

a instabilidade desenha a vida. O diretor do grupo foi teatralizar em outras terras, ficamos nós

uma trupe sem chão. Enfraquecemos! Com as cabeças baixas não tínhamos força para gritar,

ficamos com “Um grito parado no ar”6 e nos perdemos por alguns anos. Na verdade fomos

nos encontrar em outros momentos que precisávamos para ganhar força e retornar, porém, não

sabíamos que isso aconteceria. Os caminhos e suas surpresas me fascinam.

Em 2006 ingressei na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto para cursar

Pedagogia e assim me mudei para Ribeirão Preto (cidade do interior de São Paulo). Tive

minha formação de Ensino Médio no CEFAM (Centro Específico de Formação e

Aperfeiçoamento do Magistério), o que me aproximou e me fez descobrir mais um querer: a

docência. Na universidade, me estreitei em pesquisas de leitura e práticas teatrais. E

concomitantemente, ingressei em um curso técnico de teatro na Ong Ribeirão em Cena, que

teve duração de um ano e meio. Encontrávamo-nos as segundas, terças e quartas-feiras, das

13:00 às 18:00 horas. Momentos de criação e evasão de sentires, onde pude experimentar e

me certificar: o teatro era meu, era para mim nessa e em outras vidas. Como conclusão do

curso montamos o espetáculo “A Casa de Bernarda Alba”, em que eu fazia a personagem

Bernarda. Um novo desafio. Tantas novas descobertas.

Em 2010 retornei a Matão e comecei a lecionar Língua Portuguesa em uma instituição

particular para 4º e 5º ano do Ensino Fundamental. Porém, mais uma descoberta estava por

vir. Os meus companheiros de teatro da jornada passada estavam lá: todos também haviam

dado continuidade a seus estudos e tinham nos corações a emergência pulsante do teatro,

como eu também sempre a tive e nunca deixei de pulsar. Retornamos com um novo grupo. As

mesmas pessoas, porém, outras, afinal, “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram

terminadas”7. Tínhamos a história de teatro vivida e impressa em nossos corpos, em nossas

memórias, mas tínhamos agora outros quereres, outros olhares. Nasceu a Cia Labirinto de

Teatro, formada por 11 integrantes. Em aproximadamente quatro anos a cidade de Matão

ganhou por excelência um grupo que pensa o teatro como responsabilidade social. Montamos

(e pluralizo o pronome, pois o trabalho no teatro nasce do coletivo, unicamente) “Valsa nº6”,

6 Espetáculo teatral escrito por Gianfrancesco Guarnieri. 7 Trecho da obra "Grande Sertão Veredas" de Guimarães Rosa.

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“Esperando... Um descalçar-se”, “Vão”, “A Cidade no Avesso”, “Rascunhos”, “A(r)risco: um

passo à frente”, “Bodas de Sangue” e “... it...”. E mais uma vez as descobertas me encontram:

fui convidado a dirigir o grupo; então, meu olhar de atuação passou para direção, mas na

verdade sempre se manteve na veemência pelo teatro, em essência e completude.

Durante essa nascente de produções e vidas novas que se atualizam todos os dias na

vida de quem vive a arte, tinha mais uma necessidade: estudar minhas paixões mais a fundo.

Decidi reunir meus grandes amores: a educação, a leitura e o teatro. Produzi um projeto de

pesquisa que intentava novas descobertas sobre essa “brincadeira conjunta”, e deu-se que no

final de 2010, ingressei no Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade

Estadual de Campinas, pelo Grupo ALLE (Alfabetização, Leitura e Escrita) aos olhares

descobridores do Prof. Dr. Ezequiel Theodoro da Silva.

E os caminhos foram se descobrindo, de novo, de novo, de novo,...

“A Gata Borralheira” (1998) “Intervenção Urbana”(2001) Curso de Iniciação Teatral Grupo Pegando N’arte

“A Casa de Bernarda Alba” (2007) “... it...” (2013) Ong Ribeirão em Cena Cia Labirinto de Teatro

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SEGUNDO SINAL

Apoiado por estudos, reflexões e discussões propiciadas durante as disciplinas que

realizei no curso de pós Graduação em Educação na Faculdade de Educação e no Instituto de

Artes da Universidade Estadual de Campinas, bem como pelas reuniões de explanação e

acompanhamento assíduo com meu orientador desta Dissertação de Mestrado, ainda,

atravessado pelas experiências vivenciadas anteriormente à entrada no curso de Pós

Graduação, pelas práticas teatrais e educacionais, e inspirado pelo tempo precioso em que

estive com os grupos envolvidos durante a coleta de dados que resultou em um rico material

para as análises que compõem essa dissertação, o caminho se fez.

Debruço-me sobre teóricos que conceituam reflexões sobre a educação, a leitura, o

teatro, a arte-educação e determinados eixos conceituais que compõem necessariamente e

com extrema importância para uma sustentação qualitativa deste trabalho. Estendo, assim, nas

páginas que correm esse estudo, uma tentativa de investigar as possibilidades de práticas de

leitura presentes em sala de aula com a utilização de textos do gênero dramático, a fim de

tatear maneiras da imersão do texto teatral no cotidiano das escolas, criando uma proximidade

com o universo teatral dentro do cenário escolar e novas significações de trabalhos com

leitura em sala de aula.

Viabilizando a escola como um grupo social (CANDIDO, 1985), ao talhar o corpo

desta dissertação, surge a ideia (e não poderia ser outra) de relacioná-la ao teatro, e suas

múltiplas formações que o estruturam (textos, modelos, formatos, que ilustram o corpo dessa

dissertação), pois o modo como todo esse percurso se sucedeu, desde o momento da escrita do

projeto de pesquisa para adentrar o Programa de Pós Graduação em Educação, deparei-me

com cenas, minimamente tecidas e vividas como se estivesse (fazendo parte) de um

espetáculo, com ciladas, momentos de angústia e alegria, ápices e desfecho. Segundo

HERINTAGE (2000)

Acreditar que o teatro é um lugar em que o significado é feito e nunca completo faz com que se veja o teatro – e consequentemente o mundo – como um local de mutabilidade e, assim, de transformação. [...] o teatro envolve-nos em um processo de desatamento do mundo e mostra que a mudança é possível. [...] Desatar o mundo é, na visão de Brecht, estabelecer uma relação dialética com a sociedade que vivemos. ( p.15)

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Assim também passo a enxergar a escola: um ambiente que se significa pelo mundo e

para o mundo, repleto de transformações que estão à margem da intervenção de seus

pertencentes. Tendo como premissa a noção de que o teatro só acontece pela coletividade,

também trago aqui a relação, pois, durante o processo, o coletivo se prostrou presente nas

ações; afinal, não teria eu minha formação-histórica se não fosse esta advinda da relação com

o outro. Isso se dá desde as leituras que minha mãe fazia para mim na hora de dormir,

perpassando as vivências teatrais e acadêmicas na graduação e pós-graduação, pelo

acompanhamento desse processo de pesquisa em conjunto com meu orientador e com o grupo

ALLE, e pelos grupos que se dispuseram para as entrevistas realizadas, tudo isso traça um

paralelo também pela busca atual de uma Educação Escolar qualitativa, por intermédio da

prática democrática e do trabalho coletivo.

Diante das inquietações que circunscrevem esta pesquisa (se se busca novos caminhos

é porque algo que parece estanque incomoda), nascem percepções de que, de um modo geral,

o texto teatral não é de grande circulação pelas mãos de pessoas que não estejam diretamente

ligadas ao teatro. Reconhecer o texto teatral como um gênero textual que compõe a história de

leitura é, necessariamente, encontrar caminhos para que ele possa se propagar pelos cenários

“mundos” afora, e não apenas cenários de quem vive o teatro no dia a dia, para montagem de

espetáculos e/ ou estudos das Artes Cênicas. Assim, um grande propagador do gênero

dramático poderia ser o ambiente escolar: lugar de excelência do conhecimento. Porém,

trabalhar com o texto teatral nas escolas, visa, do ponto de vista desse inquieto pesquisador a

quem leem, uma ideia de que este texto é vivo, e traz em si possibilidades tantas de leitura que

muitas vezes podem passar despercebidas, não por vontade própria de quem trabalha com a

prática de leitura nas escolas (os professores), mas por distanciamento – talvez por nem todos

os professores terem intimidade com práticas de leitura desse gênero textual e/ou ainda com o

teatro de maneira mais ampla.

Se tomarmos por base a leitura de um texto teatral por si só, já teríamos grandes

mudanças na sala de aula. Porém, se formos além, para o campo da preparação, do

direcionamento, da construção por intermédio de metodologias que concernem a um bom

trabalho com o texto teatral em sala de aula, então passaremos a enxergar uma necessidade.

Esse campo da preparação dos processos de ensinagem (ANASTASIOU, 1998) é dado

pelos professores, os propulsores do conhecimento em sala de aula. A busca pelo trabalho, no

caso, com leituras de vários gêneros, dentre eles o dramático, deve partir do professor,

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adequando seus métodos à realidade de seus alunos; suas formações sócio-culturais, pois “o

conhecimento se dá não apenas pela razão, mas pelo diálogo” (PIMENTA; ANASTASIOU,

2008, p. 221), e é no diálogo que o professor pode e deve desenvolver o interesse no aluno,

levando-o a apreciar essa modalidade de texto. O professor que percebe e busca inovar sua

prática é o professor crítico-reflexivo (LIBÂNEO, 2002). Ainda conforme o autor, as práticas

sociais cotidianas, dentre elas as da sala de aula, devem ser pensadas para “[...] um mundo

compartilhado, constituindo-se uma comunidade reflexiva de compartilhamento de

significados" (p. 69). É compartilhando significados que o professor irá preparar as suas aulas,

calcadas em conteúdos completos, atendendo aos conceitos, procedimentos e atitudes

adequadas (ZABALLA, 1998).

O professor deve estar preparado, deve ter competência para lidar com conteúdos e

procedimentos que fazem parte do currículo e atualizar-se, estando em contato perene com o

universo de seus alunos. Só assim podemos pensar em falar sobre uma docência de qualidade

(RIOS, 2001).

O teatro, em essência, é uma arte antiga de origem popular. A entrada, permanência e

fluência desse tipo de leitura no ambiente escolar aponta para um cenário de mudanças, pois

possibilitaria a aproximação de todas as camadas sociais com a arte que outrora fora do povo

e que hoje não atinge a todas as classes. A oferta em sala de aula com trabalhos abrangendo o

texto teatral em relação à prática de leitura pode elencar o teatro como fundamental na

educação e na formação integral do indivíduo.

A proposta de adentrar o campo escolar com o texto dramático vem atrelada à questão

da oferta da leitura pelo prazer, entendimento e interpretação, e não à leitura como, e apenas,

decodificação de signos: a busca, de fato, é por uma leitura pela produção de múltiplos

sentidos por quais apreensões e significações nascem por meio da leitura quando esta é

possibilitada de forma ampla, na busca pela compreensão de um texto vinculado “à bagagem

que o sujeito-leitor carrega, sua ideologia, seu contexto sócio-histórico” (PACÍFICO;

ROMÃO, 2006, p.10).

Sob esse prisma, de que o sujeito é história, e traz em si suas histórias, cria/ tece na

relação em sala de aula tantas outras histórias, afinal, “uma sala de aula constitui uma

minissociedade, onde as personalidades, tendências e necessidades dos alunos que a compõem

são diversificadas” (REVERBEL, 1997, p.40), o trabalho com o texto dramático possibilitaria

a criação de outras tantas histórias.

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Assim, o trabalho com o texto teatral visa oportunizar leituras ainda não “lidas”.

Leituras pelos olhos de quem se lê ao tempo que lê, de quem se permite ler sem medo de

interpretar, de quem se permite ler de forma polissêmica e que encontra no texto que lê várias

vozes atravessadas, e que atravessam o leitor (AUTHIER-REVUZ, 1998), cruzando-se e

tecendo para o leitor do momento uma interpretação de determinada história, que pode gerar

outra interpretação a outro leitor, em um mesmo lugar, em um mesmo momento, porém, com

outra formação sócio-histórica. A passagem de Silva (2005), transcrita a seguir, sintetiza estas

afirmações sobre ao ato de ler que

[...] inicia-se quando um sujeito, através da sua percepção, toma consciência de documentos escritos existentes no mundo. Ao buscar a intencionalidade, o sujeito abre-se para possibilidades de significação, para as proposições de mundo que os signos do documento evocam ou sugerem. Ao buscar a compreensão do texto, [...] o sujeito executa as atividades de constatação, cotejo e transformação [...]. (p.95)

Ao lermos nos aceitando como leitores produtores de sentidos, filiamo-nos ao que

acreditamos, já que "o(s) sentido(s) atribuídos a uma realidade, a um texto, a um fato,

corresponde(m) à verdade, e que essa verdade nos pertence" (CORACINI, 2005: 23).

Dessa forma, tomando um texto dramático para o trabalho com leitura em sala de aula,

temos um texto repleto de lacunas, que devem ser preenchidos, completados no imaginário do

leitor enquanto lê. Assim, o leitor do texto teatral acaba por se tornar um encenador virtual de

um espetáculo virtual (SANT’ANNA, 1995). Portanto, estamos falando de um texto aberto à

intervenção de seus leitores que o completarão segundo os seus respectivos imaginários.

O leitor de teatro percebe-se na necessidade de agitar sua imaginação, sob pena de

permanecer impermeável ao texto (MOISÉS, 1969). Ainda, à luz de Moisés (1969), cabe

afirmar que o texto teatral é um exercício constante de imaginação, de criação, pois sua

natureza está associada ao azo de encenar pelo modo que interpreta. Portanto, o leitor do texto

teatral acaba por realizar uma leitura significativa e criativa, sem medo de dialogar com suas

interpretações ou ainda com outros textos para que haja uma compreensão mais ampla.

Quanto ao diálogo com o texto teatral, podemos aqui suscitar questões de diálogos

possíveis que eles trazem. Pensando na estrutura de um texto que é uma peça de teatro, vemos

que ele é construído de modo diferente dos demais, pois ele traz diálogos (das personagens,

entre si) e as didascálias (as ações, emoções, sensações de que as personagens são tomadas e

que estão ditas entre parênteses no corpo do texto) que são também diálogos, e que oferecem

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a oportunidade de lermos o texto vendo-o sob vários ângulos, podendo conversar com o texto:

é como se adentrássemos o texto e pudéssemos passear por entre as linhas, ouvindo e vendo o

que acontece com as personagens antes mesmo que aconteça. Um verdadeiro privilégio.

Ubersfeld (1978, 1980) alude para a leitura do texto teatral como uma leitura que

prepara para as condições de produção de sentido. Assim, podemos levantar que tal leitura

oferece uma gama de origem de sentidos, que envolve não só quem escreve o texto, mas

quem o lê, quem o encena, quem vê a cena, enfim, que é capturado pela troca da produção de

sentidos.

A produção de sentidos se dá pelo diálogo com o texto aberto, e não com o texto

fechado, no caso, mostrado para os alunos, com sentido único. Conversando com o texto, o

leitor troca informações, acessando seus conhecimentos já obtidos, novos conhecimentos que

o texto lhe traz, e conhecimentos que conversam com outros textos, que podem estar dentro

do texto que está sendo lido. É o que Bakhtin (2004) chama de dialogismo na

intertextualidade.

Esse sentido de dialogismo é mais explorado e conhecido e até mesmo apontado como o princípio que costura o conjunto de investigações de Bakhtin. Ponto de intersecção de muitos diálogos, cruzamento de vozes oriundas de práticas de linguagem socialmente diversificada, o texto, assim concebido, tem sua melhor representação [...] (BARROS, 1994, p.4)

A intertextualidade para Bakhtin nasce do diálogo, da troca dentro do texto, e então,

reproduzindo e relacionando o texto lido com outros textos. Ainda, o diálogo é a ação

dramática, que se situa sobre o percurso da história e sobre outras linguagens e elementos que

estão no texto. É dessa relação de diálogos (do texto lido com outros já lidos, quiçá, vividos)

que serão transpostos para a encenação – no palco ou na imaginação – à interpretação dos

leitores.

Buscar caminhos da leitura do texto teatral na escola é uma busca pela existência do

teatro na escola e por novos olhares e possibilidades de se ler. De se permitir ser leitor e

criador de histórias. Assim, para encontrar meios desse trabalho com significação, buscou-se

por grupos de teatro (“Grupo XIX de Teatro”, da cidade de São Paulo e “Grupo Galpão”, da

cidade de Belo Horizonte) que vivem em contato direto com obras teatrais, a fim de conhecer

as formas, maneiras que a leitura acontece, no caso, com o intuito da verticalização do texto;

afinal, está ele nas páginas e quando se tornam espetáculos montados, saltam e se colocam em

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pé para a leitura dos espectadores. Estar com os grupos de teatro e buscar conhecer suas

leituras, foi uma tentativa de encontrar caminhos possíveis de leitura de textos teatrais que

podem ser vividos nas salas de aula. Porém, a intenção não é que todo texto de teatro

trabalhado na escola se transforme em uma montagem de espetáculo. É pela experiência que

se permite, frente à emergência o seu ser leitor (SILVA, 2005: 95). A intenção é que todo

texto teatral trabalhado na escola possibilite o descobrimento, o desvendamento, a criação e a

permissão de novos mundos que habitam cada um de seus leitores.

TERCEIRO SINAL

O espetáculo que consta nesta Dissertação de Mestrado se elenca: O MAPEAMENTO

– breve parecer de trajetória do personagem “Eu” diante do que o leva à busca pelos

questionamentos que fazem parte do corpo dessa Dissertação; A HISTÓRIA – percurso

panorâmico geral da história das práticas de leitura e do teatro ao longo dos séculos, desde a

Antiguidade até os dias atuais, e ainda, histórias de minhas práticas leitoras enquanto

professor/ ator/ diretor e leitor de teatro; O TERRITÓRIO – apresentação do embasamento

teórico que abarca as discussões dessa Dissertação, à luz da Teoria da Interpretação

(Hermenêutica) e dos Gêneros Textuais; O CAMINHO – descrição do percurso metodológico

que se estende desde a intenção primária dessa Dissertação até a realização da coleta e análise

de dados; O ENCONTRO – análises dos dados obtidos através das entrevistas realizadas, com

a finalidade de dialogar entre as falas, caminhos possíveis para o trabalho com o texto teatral

em sala de aula; A EXPRESSÃO – apresentação das impressões que surgiram e se firmaram

durante o processo desse estudo.

À guisa de finalizar essas considerações introdutórias para uma melhor compreensão

sobre como se dará o espetáculo, pontuo o sentimento de satisfação, este que vem acarretado

por valores agora embutidos de uma consciência de necessidades de transformações em

relação ao que e como se lê no ambiente escolar, na tentativa de, sempre, buscar caminhos

satisfatórios para a realização de uma prática de leitura profícua e de significação, e pela

aproximação do universo teatral e da leitura, por intermédio da prática de leitura bem

sucedida, com a escola - na realidade com o ser humano.

Tenham todos um bom espetáculo!

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PRIMEIRO ATO

A HISTÓRIA

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SÔNIA - (senta-se ao piano. Breve trecho da Valsa nº 6) Eu estava tocando a Valsa,

a pedido de alguém. (para a platéia) Foi, não foi? Então, esse alguém veio devagarinho,

pelas costas... (golpe no piano) E que mais, meu Deus? que mais? (fremente) Não havia

mais ninguém na sala. Só nós dois... (golpe no piano) Mas então eu tive um mau

pressentimento... Parei de to...... A pessoa pediu: CONTINUE! CONTINUE! (toca e pára)

Gritava: MAIS! MAIS! MAIS! SEMPRE MAIS! (toca e pára) E depois... (para a platéia)

Que aconteceu depois? (espantada) As lembranças chegam a mim aos pedaços. . . Ainda

agora, eu era menina. (muda-se em menina. Corre, pelo palco, trocando as pernas) Onde

está a Margarida, olé, oh, olá? (põe-se de joelhos para espiar as águas de imaginário rio)

Vejo restos de memória, boiando num rio, (aponta o chão) Num rio que talvez não exista...

(ri, feliz) Passam na corrente gestos e fatos. (apanha na água invisível, com as pontos dos

dedos, algo que teoricamente goteja) Eis um fato antigo. (aponta para o ar) Vejo também

pedaços de mim mesma por toda parte... ( numa revolta) Meu Deus, como era mesmo o

meu rosto, meus cabelos, cada uma de minhas feições? (para uma espectadora) Minha

senhora, esqueci meu rosto em algum lugar. (feroz) Mas eu não saio daqui, antes de saber

quem sou e como sou.8

CAMINHANDO DE CÁ PARA LÁ

O tempo deixa marcas. Nelson Rodrigues9 nos traz essa certeza pelo fragmento de

“Valsa nº 6”. Sônia está perdida em seu tempo psicológico; as memórias estão desconexas,

mas existem, e cabe a ela organizá-las para entender... Para se entender!

Na tentativa de caminhar com novos olhares sobre o cenário escolar, no que diz

respeito às práticas de leitura, torna-se necessário um movimento de antemão: conhecer

algumas trajetórias que me levaram a ler o teatro como o leio hoje e ainda, brevemente,

passear por percursos da história da leitura que foram, ao longo do tempo, modificando-se e

constituindo-se no que vemos (ou não) hoje nas escolas. Sabe-se que tem a escola grande

responsabilidade na formação global do indivíduo e, sendo assim, sob o prisma da leitura.

8 Trecho do texto teatral “Valsa nº 6”. (RODRIGUES, N. 2004: 159, 160) 9 Dramaturgo brasileiro.

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Kramer (2001) explana sobre a formação de leitores dentro da escola, que deve ocorrer

pautada na ideia de que

[...] alunos e alunas têm o direito de ler e escrever, têm o direito de gostar e de não gostar de ler. Precisam, pois, de acesso a textos dos mais diferentes tipos e a práticas de leitura e de escrita, práticas revestidas de significado e que se consolidem como experiências efetivas, e não como meros exercícios para prestar contas à contabilidade escolar e suas exigências burocráticas. [...] (p.192)

É plausível salientar que é necessário que sejam dadas condições de produção para a

realização de leituras culturais desde a educação infantil até o ensino superior. Assim, na

busca de encontrar os históricos por onde as formas e práticas de leitura passaram para se

firmarem no cenário de leitura atual, filiar-se aos conceitos de Chartier (1999) torna-se uma

necessidade imensurável, já que este a delineia uma ótica sócio-histórica, tomando a leitura

numa dinâmica de ser

[...] sempre apropriação, invenção, produção de significados (...). Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. (p. 77)

Os percursos da leitura não poderiam ser de outra forma que sobre caminhos tantos;

afinal, se ao tempo que lemos essa passagem já tornamo-nos outro, as formas e sentidos de se

ler também foram ao longo da história (vão) se tornando outros, mais tantos, e é aí que se

encontra a razão de ler... Sermos tantos.

Discorre-se a seguir uma passagem sobre meus caminhos como leitor/ ator/ professor/

diretor de teatro, na tentativa de tatear como cheguei às minhas indagações e de explanar

minhas percepções enquanto um praticante assíduo de leitura de textos teatrais.

Segundo, segue a tentativa de um quadro “geral”, sem a intenção de esgotar o assunto

– já que os apontamentos são meramente ilustrativos, com grandes saltos esquemáticos na

história da leitura - de um breve panorama sobre a evolução das práticas de leitura ao longo da

história, sobre alguns caminhos que a leitura trilhou para chegar na(s) forma(s) que a vemos

(lemos). Se bem que, ao falarmos em forma, damos um ar de formatação, e a leitura não se

vale disso. É o leitor que a sente por um viés próprio que o sustenta na assiduidade de seu ser

leitor.

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Portanto, não serão todos os caminhos os ditos por aqui, certamente; o todo nem existe

nas extensas bibliografias acadêmicas, por coadjuvante que seja. Alguma prática de se ler

pode ter pegado um caminho diferente, um atalho pela floresta, e se perdeu na história, e

ainda bem, senão não haveria porque ter história já que esta se sustenta além das evidências e

porque, para tê-las, é preciso a dúvida, a suposição, o “e se?”.

O “ser” leitor de teatro10*

Sou eu um leitor de teatro por excelência. Porém, pra mim, a leitura de teatro não se dá

apenas no ato de passar os olhos por um texto de gênero dramático, mas sim, por todo texto

que lhe peça uma peça, pregando-lhe uma peça de não ser teatro, quando na verdade o pode

ser.

Se somos história, cabe aqui tornar-me contador de minha história, a história de meus

olhos camaleônicos que foram se transformando ao longo de leituras vividas de textos

teatrais.

Atualmente, sou coordenador de um espaço cultural na cidade de Matão/ SP, a Casa

PIPA (Plataforma Internacional de Produção Artística), nessa casa é onde se encontra também

a sede do grupo teatral de que faço parte, Cia. Labirinto de Teatro, que existe na cidade há

aproximadamente quatro anos e é composta por onze atores (Caio Rodrigues, Ellen Candido,

Geovani dos Reis, Gizele Cordeiro, Juliano Jacopini, Mabê Henrique, Melissa Mel, Leila

Guerreiro, Patricia Campi, Simone Marcondes e Thiago Gardini). Grande parte dos

integrantes da Cia. Labirinto estão na estrada do teatro junto a mim há longas memórias...

Desde quando iniciei meu primeiro curso de teatro, na Casa da Cultura de Matão, em 1998.

De lá pra cá, tive o privilégio de ter pelas minhas mãos, ou meus olhos, ou melhor, minha

vida, textos teatrais, e textos que se transformaram em teatrais; além de lê-los, tive a

oportunidade de assistir vários espetáculos que me tocaram, de toque e de prosseguir, de ir em

frente, frente sempre a novas buscas de olhares sobre o teatro.

10* Informações sobre a Cia. Labirinto de Teatro e sobre a Casa PIPA extraídas dos sites: www.cialabirinto.com.br - www.casapipa.art.br; As fotografias que constam neste capítulo foram tiradas por Matheus Ricci.

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Tenho a impressão de que é mais viável ser um “contador de antemão” - de trás pra

frente, de presente para passado – e para isso inicio minhas impressões, literalmente impressas

em mim, de leitor/ ator/ professor/ diretor de teatro. Nos últimos trabalhos que desenvolvi

junto à Cia. Labirinto, deparamo-nos como uma emergência de um teatro de pesquisa, que

nasça do coletivo, da tomada de vastos e vários sentidos para um trabalho a ser realizado. O

último trabalho, “... it...”, estreado em janeiro de 2013, dirigido pelo iraniano Khosro Adibi

(bailarino) traz para a cena um novo olhar sobre as pesquisas do grupo que está desdobrando

trabalhos sobre o corpo do ator, o corpo vivo que fala e que transmite o texto antes mesmo da

palavra, e, no caso desse espetáculo, um corpo sem palavras. “... it...” nasce como

experimento de um trabalho intensivo de pesquisa de teatro físico realizado em três semanas,

em um total aproximado de 200 horas de trabalho. Em 2012 tivemos a estreia de “Bodas de

Sangue” (em junho), do poeta e dramaturgo espanhol Federico Garcia Lorca, e a estreia de

“A(R)RISCO: um passo à frente” (em maio), baseado no poema “Passagem das Horas” de

Álvaro de Campos; em 2011 estreamos “Rascunhos” (em outubro), com texto de criação

coletiva, e também “A Cidade no Avesso” (em setembro), de minha autoria; ainda, no ano de

2010, estreamos “Valsa nº 6” (em junho), do dramaturgo Nelson Rodrigues. Cabe ressaltar

dois experimentos cênicos: “Vão” (julho de 2012), de minha autoria, e “Esperando... Um

descalçar-se” (julho de 2011), baseado na obra “Esperando Godot” de Samuel Beckett,

realizados durante o “Festival Fronteiras Brasil” que acontece na cidade de Matão, e reúne

arte-educadores do mundo inteiro para pensar e realizar arte-educação nas comunidades da

cidade, e que no ano de 2013, estará, em Matão, na sua quinta edição.

“... it...” (2013) “Bodas de Sangue” (2012)

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“A(R)RISCO: um passo à frente” (2012) “Rascunhos” (2011)

“A Cidade no Avesso” (2011) “Vão” (2011)

“Esperando... Um descalçar-se” (2011) “Valsa nº 6” (2010)

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Essas montagens fazem parte do repertório de espetáculos da Cia. Labirinto de Teatro,

que busca o profissionalismo em seu trabalho com o caráter de um teatro de pesquisa. Com

encontros que se contemplam em 16 horas semanais, buscamos a atualização contínua de

aperfeiçoamentos com cursos, leituras e práticas diversas para o trabalho de ator durante as

montagens de nossos espetáculos, que surgem advindas sempre do processo de pesquisa. Nos

quase quatro anos de existência filiamo-nos a uma busca identitária de nosso trabalho que se

amplifica com textos consagrados, ensaios textuais de nossa autoria e a dramaturgia do corpo.

Para isso, embasamo-nos em teóricos do teatro e outros que se acoplam a nossa busca, como

Jerzy Grotowski, Thomas Richards, Luís Otávio Burnier, Renato Ferracini, Antonin Artaud,

Eugenio Barba, Rudolf Laban, Peter Brook, Constantin Stanislavski, entre outros.

As propostas de exercícios de nossos encontros são debruçadas em uma prática

coletiva de expansão do conhecimento para o experimento. Assim, os exercícios se

concentram na busca de ações básicas que já compõem nosso corpo e que irão vir a corpor.

Um teatro corpóreo dialógico é o que buscamos na ânsia de mergulhar nesse corpo territorial

que acreditamos já o tê-lo, mapeando-o em todas as possibilidades. O corpo é mutação. Não

existem limites para ele. E sobre essa consciência buscamos a desterritorialização de nossos

corpos. Arraigados pela ideia de acontecimento, buscamos acontecer de todas as formas que

até então nossos corpos não conheciam, mas já existiam.

Assim, buscamos exercícios que liguem e atem os fios que estamos tecendo, e

apoiamo-nos em laboratórios estruturais para a criação e conscientização de um corpo que

fala sem palavras, de um corpo que age com estímulos sequenciais e racionalizados em

plasticidades emocionais, em fotografias em movimento.

A busca do corpo não isenta a palavra; ao contrário, torna-a mais forte. Em 15 anos

trabalhando com teatro, tive pelas minhas mãos textos não só de teatro, mas que em minha

cabeça (essa sim de teatro, afinal, como ator e diretor, sou um tecelão de imagens) se

transformavam em cenas, e que eu, como leitor que vai amadurecendo, fui transformando

minha ótica e me permitindo sempre novas formas de ler.

As palavras se permitem para os que as permitem. Um texto diz em suas linhas tantas

outras linhas para a possibilidade e o convite de leituras polissêmicas que cercam seus leitores

em processo de criação de tantos outros olhos. Os signos, os símbolos, as metáforas, os

versos, os diálogos, tudo é costurado à mão frouxa, para que nossos olhos atem suas linhas

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firmando uma realização de processo de criação significativo para quem participa e se

entrega.

Se tomar como exemplo algumas montagens de que participei junto à Cia. Labirinto

de Teatro, percebo o quanto meus olhos se permitiram ler de diversas formas, como quando,

na posição de diretor, ao ler um monólogo junto a Cia. e enxergar a possibilidade (ou

necessidade) de oito personagens em cena, desdobráveis da mesma, e que ainda são a mesma

lendo Nelson Rodrigues imbricando a psicologia Junguiana (“Valsa nº 6”, 2010), há também

quando Lorca e todo seu rito poético dramático me convida, ao passo que convido um elenco,

a dar vida a uma Lua e fazê-la a tecedora de toda uma trama trágica em suas tantas faces que

nos aparecem (“Bodas de Sangue”, 2012); ainda, quando uma poema vira corpo e se diz em

cada extremidade do ator com palavras não-ditas, mas vividas em “Passagem das Horas” de

uma vida inteira (“A(R)RISCO: um passo à frente”, 2012), ou quando convido um elenco de

mulheres para pensar o feminino, coletar depoimentos e desenvolverem suas dramaturgias

frente a eixos temáticos como o nascimento, o casamento, a solidão (“Rascunhos”, 2011).

Nos trabalhos acima citados tive a participação com o olhar de diretor (exceto “Valsa

nº 6”, de que participei com atuação e direção), porém ainda há dois outros trabalhos que

requerem atenção, e que fora mais um passeio de permissão em meu caminho, o espetáculo

infantil “A Cidade no Avesso” (2011) e o experimento cênico “Vão” (2011): em ambos

apresento-me como dramaturgo e diretor.

Os processos de pesquisa desses trabalhos são, por excelência, coletivos.

Tomando por base exemplos de leituras de dois clássicos da dramaturgia que tivemos

a oportunidade (a coragem) de montar, em “Valsa nº 6”, Sônia é a personagem do monólogo

de Nelson Rodrigues, que traz nas didascálias indicações de um cenário onde há um piano em

que a personagem toca a “Valsa” de Chopin. Em nossa montagem, ao lermos a necessidade

do desdobramento de Sônia em várias “Sônias” e suas sombras, colocamos oito personagens

em cena que dizem a Sônia de Nelson Rodrigues como os nossos olhos a veem; o figurino

mostra quem está se arrumando para o baile de 15 anos, com o vestido pérola, “e roupa de

baixo” encarnado na figura de um sutiã também pérola que muda de cor para o vermelho, em

uma representação simbólica do alvorecer de sua puberdade, bem como o sangue de seu

suposto assassinato.

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Cena de “Valsa nº 6” – Cia. Labirinto de Teatro

Em “Bodas de Sangue”, os personagens fortes e com seus dramas pessoais que Lorca

nos traz, convidou-nos para uma leitura de símbolos que os circunscrevem... O jeito cigana

com olhar de “oblíquo e dissimulado”11 composto pela Noiva; a liberdade selvagem de

Leonardo como um cavalo indomável, são corpos convidados a se pensar na composição para

a criação e construção das personagens. Nas rubricas de “Bodas de Sangue” Lorca elenca os

espaços cênicos com cores nas paredes dos aposentos, que por nós já é lido como janelas que

possibilitam as espreitas de olhos de uma sociedade tradicional, em uma arena de terra

vermelha, de campo, de trabalho, de labuta, de suor.

Cena de “Bodas de Sangue” – Cia. Labirinto de Teatro

11 Expressão extraída do livro “Dom Casmurro”, Machado de Assis.

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Os gestos de leitura são descobertos à medida que nós da Cia. vamos nos descobrindo

enquanto leitores, e assim, novas possibilidades vão se ditando e, ao serem experimentadas,

vão se firmando no corpo do espetáculo. É interessante ressaltar a necessidade e aparição

inúmera do plural quando me remeto ao trabalho com a Cia.; afinal, é dessa forma que nos

edificamos e buscamos sempre caminhar, apoiados uns aos outros, e assim, nas leituras uns

dos outros, portanto, ao ler, interpretar e experimentar textos em nossos corpos, somos muitos

olhos a passear entre as linhas e entrelinhas propostas pelos autores. Exemplo claro disso é de

que uma cena nunca é dirigida sem antes ser “experimentada” pela leitura e interpretação de

quem irá atuar nela; só assim chegamos (ao menos tentamos) em um lugar de múltiplas

possibilidades para quem vai nos ler ao nos assistir.

Os espetáculos “A(R)RISCO: um passo à frente” (com minha direção) e “... it...” (com

minha atuação) apresentam um outro tipo de leitura no processo de criação, onde o corpo fala

sem as palavras, o que não quer dizer que o texto não esteja lá... Ele fora base para toda a

construção cênica.

Em “A(R)RISCO” o poema “Passagem das Horas” de Álvaro de Campos, é o caminho para

toda nascente, composição e experimentação do que está em cena. Em encontros que tive com

o ator do espetáculo, buscamos as essências que nos tocavam no texto para que fosse levado

para o palco.

O percurso da vida é o enredo da história, contada de trás para frente, sobre memórias

de tentativas arriscadas ou ariscas com que nos deparamos durante a vida. As passagens, de

morte, velhice, juventude, infância e nascimento, são trazidas pelo corpo do ator que

experimentou de diversas formas como a vida pode ser desenhada, ou ainda, como

desenhamos nossa vida. A liberdade de escolher os caminhos talvez venha no final do

espetáculo, que fala do início, com a projeção de pássaros livres, que arriscam seus voos,

como todos temos a escolha de arriscar ou não nossos “voos”. Simbologia, mais uma vez.

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Cena de “A(R)RISCO: um passo à frente” – Cia. Labirinto de Teatro

O último trabalho da Cia. “... it...” vem fortemente marcado por uma pesquisa do

físico no teatro. Dirigido pelo bailarino iraniano Khosro Adibi, fomos convidados a pensar o

corpo antes da palavra, a lermos o que o corpo nos diz pelo que já vivemos. Porém, não

deixamos de ser leitores de nossas próprias histórias, já que, quem nos dizia era nosso corpo

que traz em si nossas histórias.

Ações do cotidiano, vividas, vistas, ou ainda, quistas, foram trazidas à tona na

pesquisa corporal. Assim, atrevo-me a dizer que fomos convidados a ler o que já era nosso e

por nossas memórias dialogar com as memórias do outro para as possíveis composições

cênicas. Em cena, trabalhadores, sonhadores, madames, crianças, todo tipo de pessoa saía de

nós para passear por nós mesmos, e convidar a plateia para novos passeios pelo que liam de

nossos corpos em ação.

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Cena de “... it...” – Cia. Labirinto de Teatro

Tantas experiências de leitura como ator e diretor de teatro me levaram também a

estender-me para aulas de teatro com dois grupos de pesquisa (Núcleo de Teatro

Experimental) que tenho em Matão. No ano de 2012, com os dois grupos, trabalhei processos

investigativos da leitura literária para a cena. Assim, com o grupo de iniciantes, com faixa-

etária entre 14 e 16 anos, contos, poesias, romances, tudo que interessava a eles sobre Clarice

Lispector foi o campo de pesquisa. Os alunos vinham com o quê em suas pesquisas lhes

agradava da escritora, e os exercícios cênicos eram desenvolvidos através de sua literatura,

que acarretou na construção do espetáculo “Sê, Clarice”, onde os textos mais significativos de

Clarice se cruzavam em uma história íntima sobre as personagens de Clarice e a própria

autora. A composição de cenário e figurino também advinham das leituras que tivemos e que

discutíamos, como por exemplo, de que o espaço para apresentação deveria lembrar um

quarto, e as nove meninas do elenco estarem de camisolas, para tornar a atmosfera mais

íntima, bem a gosto lispectoriano.

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Cena de “Sê, Clarice” – Núcleo de Teatro Experimental Ainda, o outro Núcleo de Teatro Experimental - composto por alunos, com idade

acima de 16 anos, que já haviam sido meus alunos - também desenvolveu, em 2012, um

trabalho debruçado na literatura brasileira. Optamos por uma lista de escritores cujos contos

eles leriam, e escolheriam um desses, com que mais tinham tido aproximação, que mais os

havia atravessado. Por fim, seis contos compuseram nossa pesquisa escolhidos por cada um

deles:

- “Uma História de borboletas”, Caio Fernando Abreu;

- “Eu era mudo e só”, Lygia Fagundes Telles;

- “História de uma fita azul”, Machado de Assis;

- “Negrinha”, Monteiro Lobato;

- “A galinha”, Clarice Lispector;

- “O grande-pequeno Jozú”, Hilda Hilst.

O processo de criação se deu da produção cênica desse conto. Cada aluno fez o seu

monólogo baseado nas leituras que o conto lhe trazia. Adaptaram o texto, pensaram o

figurino, o cenário, a trilha sonora... Transformaram-se assim, além de atores, em dramaturgos

e produtores de suas cenas. Uma experiência viva de “in: cont(r)os”.

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Cenas de “in: cont(r)os” – Núcleo de Teatro Experimental

Todavia, neste movimento de trás para frente em que trago minhas experiências

leitoras e “fazedoras” do texto teatral, o contato com esta prática, também com olhar de

diretor, se iniciou em 2005, quando comecei a trabalhar o teatro em escolas. Iniciado por

leituras debruçadas, durante um ano de pesquisa, com os alunos sobre a obra “A Arca de

Nóe”, de Vinicius de Moraes (trabalho realizado com alunos de 7 a 14 anos, do Projeto

Pequeno Cidadão da cidade de Matão). Seguido a isso, durante minha graduação em

Pedagogia na Universidade de São Paulo, na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo,

desenvolvi um trabalho de extensão que pesquisava a construção da identidade frente práticas

de teatro, e assim, durante dois anos trabalhei em uma escola de periferia com encontros

semanais com duas quartas séries, que repercutiram na criação de um espetáculo desenvolvido

pelos suportes da prática de leitura, intitulado “Tupi ou Guarani”, tendo como estudo durante

o processo a leitura de lendas indígenas.

Quando retornei a minha cidade natal (Matão), ingressei em um colégio particular para

lecionar Língua Portuguesa para quartos e quintos anos do Ensino Fundamental, além de

trabalhar com os quintos anos com um estudo sobre vida e obra da autora Maria Clara

Machado, que culminou na montagem de pequenas cenas de suas dramaturgias infantis.

Desenvolvi um estudo inicial reflexivo com os alunos do quarto ano debruçado em

“Macunaíma”, de Mario de Andrade, que culminou na adaptação coletiva do texto para um

pequeno experimento cênico intitulado “Herói sem caráter”.

Posteriormente, fui convidado pela diretora de cultura para assumir as aulas de teatro

da Casa da Cultura de Matão. Cabe ressaltar que a diretora de cultura é a Professora Lygia,

aquela com quem eu deveria ter estudado na minha quarta série, como relatei no Prólogo

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deste trabalho, e que foi, certamente, uma das pessoas que me “deu” o teatro de presente: pois

bem, viemos a nos encontrar mais à frente. Na Casa da Cultura assumi, além das aulas de

teatro, uma posição de referência na cidade no que diz respeito à arte, cultura e educação, que

me levou a ocupar, hoje, a coordenação artística da Casa PIPA (Plataforma Internacional de

Produção Artística). Pela Casa da Cultura desenvolvi trabalhos com leitura e teatro em

algumas associações:

“Entrelinhas” e “Cascos e Carícias”, foram trabalhos realizados na Associação dos

Moradores da cidade com crianças de 7 a 11 anos, e senhoras a partir de 40 anos, tendo como

estudo, durante os processos, os livros “Ou Isto ou Aquilo”, de Cecília Meirelles e os poemas

de Cora Coralina, respectivamente; “Nós” nasceu na Associação “Edo Mariani” com crianças

de 8 a 14 anos, tendo como estudo, durante o processo, o livro “Nós” de Eva Furnari;

“Flict´s” veio de um trabalho sensível vivido na Associação de Deficientes Visuais da cidade,

com alunos de várias idades, tendo como estudo durante o processo o livro “Flict´s” de

Ziraldo; e ainda há o trabalho “Shhh...” realizado no Centro Municipal de Surdos de Matão,

com alunos de 8 a 16 anos, tendo como estudo, durante o processo, os filmes de Charles

Chaplin.

Muitas foram às vivências para se chegar aos questionamentos a que cheguei.

Portanto, e afirmo por ter vivido isto, a escola para mim, foi o caminho inicial que trouxe a

magia do teatro, tanto, por exemplo, pelas práticas que me encantavam da Professora da

quarta série, referidas ao teatro, quanto pelos livros que me vieram às mãos, e eu, doravante,

pelos “varais”, passei a estender com minhas práticas sempre na tentativa de dialogar a leitura

e o teatro.

Os trabalhos se estendem numerosamente durante meu percurso de leitor/ ator/

professor/ diretor de teatro e é nítida a presença veemente das práticas de leitura, não apenas

de textos teatrais, mas de todo tipo textual, nas aulas/ encontros que desenvolvo com alunos e

também com Cia. Labirinto de Teatro.

Caminhos foram tantos. E, nestes tantos questionamentos e descobertas, fui levado a

esculpir uma busca que passou não mais a me tanger, mas a me atravessar, e que, resultou no

objetivo central deste trabalho que é tatear como a leitura do texto teatral pode acontecer

nas escolas?

Certamente os caminhos se abriram sobre esses moldes devido à minha formação e

meus interesses, e ainda, já que estou falando de gestos de leitura no teatro, as tantas leituras

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que tive dos inúmeros espetáculos que pude assistir em Matão, ou, ainda, em viagens e

festivais de que participei, têm grande influência nas buscas de minhas pesquisas, e na minha

formação leitora: Grupo Galpão, Grupo XIX de Teatro, Grupo Ventoforte, Cia. Armazém de

Teatro, Grupo Espanca!, Os Satyros, Parlapatões, Piafraus, Teatro de Vertigem, XPTO,

UzynaUzona, Grupo Lume, CPT, Giramundo, Théâtre du Soleil, Berliner Ensemble,

Kosztolányi Dezsõ Theatre, Open Program of Workcenter, entre outros grandiosos. Foi nessas

companhias que meus olhos puderam ler o teatro em diversas linguagens, e a cada novo olhar,

em diversas permissões de pensar e ir além nas minhas leituras.

Com 11 anos de idade, assisti “A História do Barquinho” do Grupo Ventoforte, na

cidade de Matão, e dali para diante não pude parar de navegar pelas águas à procura de

Irupê12 e de novos espetáculos para ler e assistir. Interessante como tudo que “li”, assistindo

essas peças teatrais, foi sendo acoplado às minhas novas ideias sobre as possibilidades de se

ler o teatro. Quando vi Shakespeare na rua, do Grupo Galpão com seu “Romeu e Julieta”

mambembe, tinha eu 15 anos e Shakespeare passou a ser mais próximo, mais possível de se

ler, ao mesmo tempo que os bonecos do Giramundo me engoliam em uma exposição no Sesc

da cidade de Araraquara, bonecos de mais de 4 metros de altura, me diziam tanto e tanto,

como dizia “Cobra Norato” no espetáculo. E meus olhos de permissões e buscas,

continuaram... “Hysteria”, do Grupo XIX de Teatro, me fez ler a necessidade de um teatro

próximo, íntimo... Já “Toda Nudez será castigada”, do Armazém, me fez ler um teatro

grandioso, imponente, forte... E ainda tem o Lume tão “Bem intencionado” que me fez ler a

emergência de um teatro de pesquisa, de estudos, de trabalho de ator como um ofício.

Dessa forma, a leitura perambula não somente nesta pesquisa, mas todo meu histórico

de trabalhos com teatro, e não se resume em, unicamente, trabalhos com textos teatrais, mas

textos que criam, no ato de ler, possibilidades para a cena, que se configuram em encenações

durante a própria leitura, abrindo caminhos para novas leituras.

Em um começo privilegiado com minha primeira montagem teatral, aos 11 anos de

idade, com “A Gata Borralheira” de Maria Clara Machado, passei depois por mais nomes

consagrados da literatura dramática, como Lorca, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Qorpo

Santo, Brecht, Beckett, Ibsen, Ionesco, Shakespeare, Gogol, Molière, Alcione Araújo, José

Vicente, Thornton Wilder, entre outros... E inúmeros textos literários que ofertaram para meus

olhos um teatro que escapa do texto de gênero dramático, mas que é possível, afinal. O teatro

12 Personagem do espetáculo “A História de um barquinho”

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é possível para quem o lê em profundidade, para quem o quer ler em descobertas, e ainda,

para quem o quer escrever, pois, no meio de tantas leituras, arrisquei-me ainda na dramaturgia

com “A Cidade no Avesso”, “Vão”, e por vir dois novos se encaminham: “Brincadeiras de

Papel” e “Abrolhos”.

E que tenhamos olhos, cada vez mais, para lermos o mundo teatralmente.

Pelas colunas dóricas, jônicas e coríntias

Ler é desde sempre. Se pensarmos que ler é passar alguma sensação, os corpos e os

olhos já se dizem antes de qualquer palavra. Nasce a linguagem, a comunicação, nasce a

palavra e o ato de ler vai se decodificando em sinais, signos e surgem os alfabetos. Cabe-nos

tatear dentro da prática de leitura as maneiras como ler foi se adaptando e se reinventando na

linha de Kronus13. Ler é acontecimento que se atualiza. Vamos, então, rememorá-lo na

tentativa de atualizá-lo.

A leitura aparece, em vozes de alto e bom tom e com maior sustentação, durante a

Antiguidade, quando leitura e livro tinham a função de manter, conservar o texto. Os gregos

durante a Antiguidade, informavam que a escrita fora uma criação de cunho servil para fixar

os textos e conservá-los.

Cavallo e Chartier (1998) apontam que as últimas décadas do século V a.C. estreitam

as diferenças entre o livro destinado à conservação do texto e o livro destinado à leitura.

Existem gravuras feitas em vasos dessa época que registram a transferência de livros sendo

utilizados como textos escolares; assim, textos com fins educacionais, e também cenas da

leitura propriamente dita. Cabe ressaltar que, em geral, nas gravuras, os leitores aparecem em

grupos, o que possibilita aludir que a prática de leitura, naquela época, representava práticas

sociais.

Havia, também, a leitura “interna”, realizada em silêncio (final do século V a.C.), que

remete a uma leitura individual e silenciosa, feita por uma voz leitora totalmente interiorizada

e, portanto, dirigida somente a si mesmo. Eurípedes nos ilustra essa situação em uma de suas

peças: “Quando a bordo do navio lia para mim mesmo a Andrômeda” (peça representada pela

primeira vez em 413 a.C.).

13Deus da mitologia grega responsável pelo tempo.

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Os séculos V e VI a.C. trazem uma leitura de percurso, que passeia, considera e

analisa o texto, passando a possibilitar para o leitor uma maior atividade, postura e relação de

intérprete do texto, uma primeira tentativa (ainda tímida), na sociedade helenística de se ser

autor. É na época helenística que o livro passa a desempenhar papel fundamental. Toda a

literatura da época depende agora da escrita e do livro, e a esses instrumentos são confiadas a

circulação e a conservação das obras.

A Biblioteca de Alexandria é ao mesmo tempo “universal” e “racional” (Cavallo e

Chartier, 1998). Universal porque é destinada à conservação dos livros de todo o mundo, e

racional porque nela os livros devem obedecer a uma ordem, entrar em um sistema de

classificação, serem organizados. Porém, as bibliotecas helenísticas não eram de leitura, pois

davam acesso somente para os eruditos e literatos, que, mesmo sendo proficientes em leitura e

escrita, não eram intérpretes, mas “repetidores” de sentidos, pois os sentidos eram

cristalizados; não tinham eles direitos (nem coragem) de “descristalizar” uma interpretação

dada pelo autor. Assim, temos o acesso tímido ao conhecimento, que era controlado pelas

instituições sociais.

Ao contrário da época clássica, “(...) estamos quase sempre diante de leituras

solitárias, como se tivesse sido estabelecida desde então uma relação mais íntima e particular

com o livro (...)” (Cavallo e Chartier, 1998), a leitura passa de ser para si mesmo, para

entendimentos e buscas interiores e não mais com caráter de vida social. Quando a leitura

passa a entrar em cena, em voz pelos seus leitores, temos uma emissão, um nascimento do

livro, como se as palavras pudessem se descolar das páginas e passearem, planarem no ar. O

livro ganha vida e as relações com seus leitores também mudam.

Com os sofistas e com Aristóteles nasce uma concepção artística de leitura, ligada à

prática teatral, e com isso novos olhares que tangem para a expressividade da voz no ato de

ler. Assim, cada leitura individual ou na presença do auditório deveria ser arraigada de

interpretações vocais e gestuais, visando expressar o gênero literário e as intenções do autor.

Surge o tatear pela hermenêutica durante a leitura, que buscava interpretar os indícios

oferecidos pelo texto e observá-los com o objetivo de conseguir uma leitura correta (para os

padrões do que seria correto).

Dando um salto na linha do tempo, trazendo a reflexão para o agora, o que envolvia

essa persuasão na “arte de convencer”, nos transfere para a busca pela existência das leituras

polêmicas no sistema de ensino atualmente. De acordo com Orlandi (2002), o discurso

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polêmico traz uma tensão entre a polissemia e a paráfrase, havendo a possibilidade de mais de

um sentido para uma dada leitura. Ainda, Assolini (1999) mostra que na escola o discurso

polêmico raramente é estabelecido, uma vez que o aluno é mantido em uma posição fixa de

ouvinte passivo, sem lhe ser aberto espaço para proliferação de seus sentidos.

Pois, se na Antiguidade a leitura era utilizada com o objetivo de tornar compreensível

o sentido de uma escrita sem o espaço entre as palavras, uso da pontuação e sem distinção

entre maiúsculas e minúsculas, hoje essa modalidade é usada na escola com a finalidade de

verificar se o aluno sabe ler (decodificar) ou não. Assolini (1999) aponta que a prática da

leitura oral constitui uma estratégia absolutamente automática e repetitiva, e por Kleiman

(1996) temos que a prática da leitura oral constitui uma forma de avaliação apenas de

capacidade de leitura e não de interpretação.

O cenário escolar pede outro gosto que extrapole as práticas da Antiguidade vistas até

então, pois os alunos precisam ser incorporados no porquê de se aprender a ler e escrever,

precisam lhes ser oportunizados os movimentos de leitura com significação de sentidos, onde

o aluno que o lê é um leitor veemente, senhor de sua interpretação e produtor de seus

pareceres frente às linhas do que lê, pois o leitor é um leitor histórico (CHARTIER, 1996),

que traz em suas interpretações as suas histórias.

Pelos ermos, vielas e catedrais

Das andanças pela Antiguidade, atravessamos a linha do antes para o depois de Cristo,

onde, no primeiro século o texto passa a ser escrito em pergaminhos, que substituem os

papiros, pois permitiam a impressão da escrita nos dois lados da folha. Giovaninni aponta que

[...] o livro, nos séculos compreendidos entre o fim da Antiguidade e a Alta Idade Média, e com ele, a escrita, sofrem um processo de transformação que o faz de instrumento de transmissão de cultura, como acontecia na Idade Clássica, para Símbolo Sagrado, que o povo pode venerar, mas não entender. (1987: 36)

Novamente, vale salientar que o saber não era compartilhado, mas sim distribuído, e

não da mesma forma para o acesso de todos. Havia os que tinham acesso aos bens culturais e

os que apenas podiam querê-los ter, “luzes”, essas, herdadas desde a Antiguidade.

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A igreja fora um grande “inquisitor” da leitura durante a Idade Média, seja através das

obras selecionadas para transcrição no pergaminho, seja através da prática usual de alterar o

conteúdo dos textos para que a leitura não pudesse ser concretizada. A escrita sofre um

desaparecimento no período das invasões bárbaras, junto com centros de formação e

concentrações culturais. Durante essa época, o número de pessoas com capacidade de

escrever diminui, e o acesso à cultura fica apenas para o mundo eclesiástico que reproduz

interpretações fidedignas das Sagradas Escrituras. (GIOVANINNI,1987)

A leitura silenciosa ganha a cena, e os sentidos do texto são trazidos sem o som. Nesse

período, poucas pessoas sabiam ler; decorre daí o fato de as leituras públicas serem bastante

comuns – os textos medievais apelavam à audiência para que “prestassem ouvidos” à história.

Saenger, conforme Cavallo e Chartier (1998), alude à ascensão da leitura silenciosa como

uma conquista gradativa. Os livros eram lidos para conhecer e agradar a Deus e para a

salvação da alma, de forma que deviam ser compreendidos, repensados e até mesmo

memorizados. Sendo assim, a compreensão dos autores clássicos da Antiguidade exigia do

leitor do século IX procedimentos mais complexos de leitura do que a mera reprodução da

palavra escrita. A leitura silenciosa ou no máximo murmurada proporcionava privacidade e

profunda reflexão. O leitor, pela leitura silenciosa, podia se relacionar sem restrições com o

livro e as palavras.

Até o século XII, a pedagogia medieval consiste em ler textos, e ler apenas, sem a

intenção de interpretá-los ou discuti-los. Na metade do século XIII, vemos um caminho

possível para a flexibilidade e indícios de se poder interpretar. Haroche (1992) mostra que

isso se dá devido ao fato de os teólogos verificarem que mais respostas são, às vezes,

possíveis. Porém, ainda, os atos de perguntar ou questionar eram vistos como um

reconhecimento de falha de quem o fazia.

É durante a Reforma, no século XVI, que o sujeito se liberta da Igreja. Sem a

submissão às escrituras, agora ele precisa de conhecimentos mais profundos da língua para

significar o que lê.

O sentido ambíguo passa a ser entre o homem e a língua, e não mais Deus. E se agora

a língua é a questão, temos que a sua relação entre a religião e o direito de interpretar se

imbrica, afinal, ler nos tempos onde as catedrais dogmatizam os sentidos severamente era ler

por baixo das cobertas. O século XVII é o século da expressão rigorosa das idéias, é o século

da literalidade, em que a língua tem de refletir o pensamento com precisão.

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Assolini (1999), em sua dissertação de mestrado, nos coloca frente à realidade de que

atualmente as práticas de leituras nos sistemas de ensino baseiam-se em propostas de

atividades que induzem o leitor à repetição de textos, cujos sentidos são aparentemente

transparentes e unívocos. Entende-se, assim, que essas atividades não permitem que haja

espaço para interpretações. Ainda, pode-se observar nas práticas escolares que a interpretação

de texto também é levada a efeito de práticas de leitura oral, que não passam de uma leitura

recitada, sem intenções ou interpretações. As atividades de linguagem e de leitura,

desenvolvidas atualmente nas escolas, estão fechando espaços de interpretação que impliquem

sentido para as supostas que abarcariam o não transparente, que conduz o sujeito para outros

possíveis gestos de leitura.

Pelas páginas, pautas e teclados

A técnica revoluciona os modos de reprodução de textos e de produção do livro na

metade do século XV. Com o surgimento da prensa de impressão, a cópia manuscrita não é

mais o único recurso disponível; porém, a função do livro mantém-se igual à dos modelos

históricos anteriores, com a finalidade de conservação e de memória.

Durante a Idade Moderna acontece a “revolução da leitura”:

[...] segundo uma tese clássica, na segunda metade do século XIII, à leitura “intensiva” ter-se-ia sucedido uma outra qualificada como “extensiva”, realizada antes da industrialização da fabricação do impresso. (CAVALLO, CHARTIER: 1998: 28)

Os intensos e extensos colocados acima preenchem posições de interpretação

diferentes; o leitor “intensivo” era limitado e fechado de livros, lidos e relidos, memorizados e

recitados, compreendidos e decorados, transmitidos de geração a geração. Os textos

religiosos, e em primeiro lugar a Bíblia, eram os objetos dessa leitura fortemente marcada

pela imposição de sentidos preestabelecidos. O leitor “extensivo” consome impressos

numerosos, diferentes, efêmeros; ele os lê com rapidez e avidez, submete-os a um olhar

crítico que não subtrai mais nenhum domínio à dúvida metódica. Uma relação com o escrito,

comunitária e respeitosa, feita de reverência e obediência, daria assim lugar a uma leitura

livre, desenvolta e irreverente, uma vez que os leitores subvertem os sentidos que estão

postos. (ASSOLINI, 2001)

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No final do século XVIII, outra “revolução da leitura” entra em nossa história com

grande representatividade em países da Europa como Alemanha, França e Inglaterra, com o

crescimento da produção do livro, que triplica e atinge com maior impacto uma população

que passa a ter maior acesso com livros.

Tempos ditos até então diziam sobre o livro, material à mão que se folheava e se ia e

vinha entre páginas e linhas, porém os livros foram às telas de computadores, e dando esse

passo largo na linha do tempo, encontra-se com transmissão eletrônica os textos, no final do

século XX e início do século XXI, que traz maneiras de ler que podem ser vistas como a

terceira “revolução da leitura”. O escrito sai do papel e vai para os fichários eletrônicos que

tornam a informação de maior e mais fácil acesso, paulatinamente, pois todo o sistema de

identificação e de manejo dos textos é transformado. O texto torna-se vertical, se desenrola

nas telas diante de nossos olhos, aludindo a memórias de pergaminhos em rolos da

Antiguidade.

Nessa leitura agora expressa pelos textos eletrônicos questões podem ser consideradas

quanto à limitação das possíveis intervenções do leitor no livro. Desde o século XVI o leitor

somente podia revelar suas impressões com sua escrita nos espaços livres do livro; o objeto

em texto eletrônico impõe sua forma, sua estrutura, seus espaços, que não pressupõem a

participação material, física, de quem o lê. Segundo Cavallo e Chartier (1998), com o texto

eletrônico acontece algo onde não somente o leitor pode submeter os textos a múltiplas

operações (ele pode indexá-los, anotá-los, copiá-los, deslocá-los, recompô-los, etc.), como

pode, ainda, tornar-se o co-escritor.

Agora, de lá pra cá...

Traz-se, para esta cena geral, o dizer de que as práticas de leitura mudaram ao longo

do tempo. Passamos por livros manuscritos, depois os livros impressos e, posteriormente, o

texto eletrônico. Assim, estas diferentes práticas de realizar leituras não são as mesmas, “cada

leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular” (CHARTIER, 1999,

p. 91), pois as condições de produção são variadas. A posição que o sujeito ocupa, a situação

em que se encontra, interfere na produção de significados, assim também na relação do leitor

com a leitura, podendo ser positiva ou negativa ao realizá-la.

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[...] a relação da leitura com um texto depende, é claro, do texto lido, mas depende também do leitor, de suas competências e práticas, e da forma na qual ele encontra o texto lido ou ouvido (...). O texto implica significações que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de forma determinada. (p.152)

Sobre o texto eletrônico, Chartier (1999) explica que este é um instrumento poderoso

para universalizar informações; entretanto, de acordo com o autor, pode “(...) delinear um

futuro bem diferente, no qual comunidades separadas, ou indivíduos isolados, não mais

compartilharão qualquer referência comum” (p. 133), já que pode haver uma diminuição do

uso das bibliotecas como fonte de pesquisas e, dessa forma, da realização de leituras em

livros.

Podemos notar que o que foi explicitado acima pode ser observado atualmente, pois a

Internet, sem dúvida, é um meio muito utilizado para pesquisas, um meio para acessar muitas

informações e, assim, depara-se com o movimento crescente de esvaziamento das bibliotecas,

que estão sendo deixadas de lado, com a justificativa de que a Internet é um instrumento mais

prático, já que as pesquisas podem ser feitas sem sair de casa e nos vários estabelecimentos de

lan house, e com a assertiva (neste caso, por meio de um genérico discursivo) de que “hoje

tudo se encontra na Internet”. Assim, não são necessários os livros, já que estes estão com as

suas páginas nas páginas da Internet.

Assim, tem-se por base, atualmente, uma formação discursiva voltada para o

imediatismo, para a praticidade, em que os livros estão ficando em segundo plano como fonte

de pesquisas. Faz-se necessário, assim, dizer que Chartier (1999) alerta sobre o risco de não

conservação dos livros que, como já foi dito, podem ser dispensados com a utilização das

várias janelas que se abrem durante a navegação pela Internet, frente às portas que podem vir

a ser fechadas pelas nossas bibliotecas.

O autor ainda afirma, a respeito da universalização com os textos eletrônicos, que “(...)

ao universal, prometido pelo intercâmbio dos saberes e informações, opõe-se a justaposição

de identidades singulares, voltadas para as suas diferenças” (p. 133). E ainda que

[...] É preciso assegurar a indestrutibilidade do texto pelo maior tempo possível, através da utilização do novo suporte eletrônico (...). Ao mesmo tempo, para todos os textos cuja existência não começou com a tela, é preciso preservar as próprias condições de sua inteligibilidade, conservando os objetos que os transmitiram. A biblioteca eletrônica sem muros é uma promessa do futuro, mas a biblioteca material, na sua função de preservação das formas sucessivas da cultura escrita, tem, ela também, um futuro necessário. (p. 153)

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Portanto, acedemos a Chartier na importância do texto eletrônico como um meio de

universalização de informações, já que, com o avanço da tecnologia, várias pessoas passam a

ter mais acesso à informação. Porém, é preciso ter ciência da importância do uso dos livros,

material em mãos que se folheia, da relevância de realizar leituras nestes e da utilização nas

bibliotecas, ambiente que oferta socialização de idéias entre os usuários, de troca e construção

de conhecimento e reflexões.

Chartier (1996) coloca na leitura “(...) o estatuto de uma prática criadora, inventiva,

produtora (...)” (p. 78); deste modo, a leitura não deve ser feita como se os sentidos

estivessem presos às palavras, como se estes fossem transparentes, neutros, como

decodificação do texto, já que os sentidos são marcados pela ideologia e pela historicidade, os

quais produzem vários efeitos de sentido, sendo que,

[...] os atos de leitura que dão aos textos significações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados no objeto lido, não somente pelo autor que indica a justa compreensão de seu texto, mas também pelo impressor que compõe as formas tipográficas, seja como um objeto explícito, seja inconscientemente, em conformidade com os hábitos de seu tempo. (p. 78)

Os atos de leitura produzem diferentes significados. O modo de ler, as condições de

produção, influenciam na produção de sentidos. Deste modo, por exemplo, ao realizar-se uma

leitura individualmente, esta pode significar de um jeito diferente do que se a lermos

coletivamente; se uma leitura é realizada na tela do computador, esta pode ter um significado

diferente da que se for realizada em textos impressos, já que para algumas pessoas ler na tela

pode ser cansativo, para outras o meio em que mais se realiza leituras. Dessa forma,

considera-se que a situação na qual o sujeito realiza a leitura, influencia na produção de

significados. As situações em que são realizadas as leituras mudam, “são historicamente

variáveis” (CHARTIER, 2001, p. 233); por isso, se faz necessário ter cuidado em não querer

universalizar os leitores, pois os hábitos de leitura mudam com o tempo.

Cabe destacar ainda que Chartier explica a leitura como prática cultural, sendo que,

segundo este autor, “entre as leis sociais que modelam a necessidade ou a capacidade de

leitura, as da escola estão entre as mais importantes(...)” (2001, p. 240), pois é nas instituições

escolares que se ensina formalmente a leitura.

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A leitura é levada à escola muitas vezes de maneira errônea, outorgando aos leitores

leituras únicas, de sentidos unívocos e, assim, é ensinada como decodificação de palavras, e

não como produção de sentidos. Se a escola interdita a interpretação dos alunos, sendo estes

obrigados a interpretar apenas os sentidos legitimados pela escola, como aponta Assolini

(1999; 2003), não se abrem caminhos; ao contrário, estreitam-se as passagens para as viagens

que a leitura possibilita(ria).

A leitura como prática cultural no Brasil, segundo Assumção (2008), é muito modesta,

pois esta não é incentivada ou se é, como acima citado, ocorre com vícios e sem liberdade ou,

ainda, sem produção de interpretações, sendo concebida por vários leitores, com diferentes

formações, com o mesmo sentido, ou, ainda, sem sentido algum. Assim, os alunos restringem

as suas leituras à formação escolar; afinal, para que estender um caminho árduo que não lhe

oferece prazer?

Orlandi (1998) aponta que toda leitura possui a sua história, já que

[...] para um mesmo texto, leituras possíveis em certas épocas não o foram em outras, e leituras que não são possíveis hoje serão no futuro. Isto pode ser observado em nós mesmos: lemos diferentemente um mesmo texto em épocas (condições) diferentes. (p. 41)

Isto ocorre porque a situação, a posição que o sujeito ocupa ao ler, influencia na

produção de efeitos de sentido.

Ainda conforme Orlandi (1999), “o ensino da leitura pode, dependendo das

circunstâncias pedagógicas, colocar a ênfase tanto na multiplicidade de sentidos quanto no

sentido dominante” (p. 46), o que faz refletir sobre as instituições de ensino, que, desde a

educação infantil até o ensino superior, legitimam os sentidos dominantes, que circulam

sócio-historicamente, ao invés de produzirem múltiplos sentidos, que podem e nascem da

troca experiencial, no ato de fato de uma leitura “com/ de vários olhos”. Porém, não são dadas

pela instituição escolar/acadêmica condições de produção para os alunos instaurarem,

inaugurarem sentidos; são eles interditados a realizarem suas interpretações; interditados a

ocuparem a posição de sujeitos intérpretes. Ao realizar uma leitura, entra-se em contato com

suas histórias passadas, participa-se enquanto se lê de um processo sócio-histórico em que são

produzidos sentidos, os quais, como já foi explicitado, sofrem com a influência do lugar que o

sujeito ocupa, bem como de uma determinada direção histórica.

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Ainda, de acordo com Assumção (2008), sobre a relação dos brasileiros com a leitura,

pode-se evidenciar que esta

[...] é recente e herdeira de uma história bastante problemática. Por exemplo: enquanto na França de 1890 cerca de 90% dos habitantes eram alfabetizados, e na Inglaterra de 1900 este número chegava a 97%, em Portugal havia apenas de 20% a 30% de alfabetização no mesmo período, ou seja, pouco menos de cem anos. (p. 85)

Conforme o autor alega, pode-se notar que a prática de leitura foi desenvolvida de

modo mais lento no país que colonizou o Brasil, bem como em alguns países que também

ocuparam este território, como por exemplo, a Espanha e a Itália; dessa forma, a evolução de

leitura do Brasil também foi lenta. Cabe dizer que Assumção não desconsidera a força da

oralidade; ao contrário, ele afirma que o país possui uma “rica cultura oral” (p. 86), porém

alerta sobre heranças do analfabetismo e da exclusão de partes da população. O acesso aos

níveis de conhecimento foram gradativos. Passou-se a apresentar um cenário com maior

abertura às classes populares com acesso a educação, ao letramento, ao pensamento científico

e humanístico, já que este acesso era voltado apenas para a elite (principalmente para as elites

paulistana, mineira, pernambucana, baiana e carioca), enquanto a população pobre era

excluída deste processo. É relevante assinalar que, atualmente, as populações pobres também

são excluídas do acesso da cultura, mas de forma mascarada, pois elas têm o acesso à escola,

mas geralmente a qualidade do ensino não é boa para a formação do aluno, e, tratando-se de

formação, esta engloba as vivências de práticas de leitura.

É também e principalmente pela escola que o sujeito terá a oportunidade de conhecer

(não só de ouvir falar) todos os gêneros textuais, entre eles, um gênero escasso no cenário

escolar: o gênero dramático.

SÔNIA – Mas, Paulo, eu me lembro de ti e de mim. E de mais nada. Porém, duas

pessoas não podem existir sem fatos. (num espanto feliz) Fatos! Sim, é isso! Isso mesmo!

(excitada, para a plateia) Fatos... Bem que eu sentia falta de alguma coisa. Era deles, os

fatos! (frenética)14

Fim do Primeiro Ato

14 Trecho do texto teatral “Valsa nº 6”. (RODRIGUES, N. 2004: 156)

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SEGUNDO ATO

O TERRITÓRIO

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BABY – Do fundo das trevas só o silêncio nos responde, irmãos. Acho que podemos

instalar aqui nossos domínios. (Tira uma vela do bolso, acende e deposita em cima do

móvel. A luz aumenta). Aqui, por exemplo, podemos colocar uma cortina de veludo cor de

vinho. Com franjas douradas, é claro, igual aquela que tinha na casa da tia Nenê. Aqui no

canto acho que ficará de extremo bom-gosto um aparador com tampo de mármore, igual

aquele que tinha na casa da vó Manca. E claro que teremos sempre flores. Rosas. Não,

rosas não, muito vulgar. Melhor tulipas. Importadas diretamente dos Países Baixos.

Tulipas da Antuérpia. Ou papoulas. Assim poderemos fabricar nossa próprio ópio.

Hmmmm, I like so much. What you think about, my fellow?

[…]

JOÃO – Deixa de ser besta, Leo. Você acha que alguém pode viver no meio desse

lixo todo?

BABY – Ué, e nós não vamos viver?15

“DECIFRA-ME OU TE DEVORO”

A estamparia desse território é buscar conhecer. O fragmento da peça de Caio

Fernando Abreu16, nos dita encontros de quereres entre as multiplicidades humanas – que

constituem o homem – no caso, dentro de uma casa, para que convivam confinados, até antes

do amanhecer...

Os territórios estão aí, para serem descobertos. Para tanto, é preciso pisar; a questão

em si não é saber pisar, mas se permitir pisar em campos desconhecidos intentando conhecê-

los. Conhecer também não se dá assim, de um pisar para o outro, é preciso andança, de passos

de antes e dos que virão. Conhecer está mais bem dito na ideia de reconhecer, de criar,

configurar um mapeamento territorial que se constrói ao tempo em que se pisa. Os territórios

virão, e cabe aos pés as novas permissões.

Ao buscar conhecer, ou melhor, reconhecer os caminhos possíveis do trabalho com o

texto teatral em sala de aula, tem-se firmada a ideia de que o fato de adentrar o território

15 Trecho do texto teatral “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora” (ABREU, C. 2009: 64,65). 16 Jornalista e escritor brasileiro, autor do fragmento citado acima, extraído da obra “Pode ser que seja só o

leiteiro lá fora”.

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escolar com esse tipo textual, adentra-se em uma nova história, em uma nova busca de olhos

que passeiam pelas linhas desse universo amplo que traz o texto teatral, universo dotado de

interpretações tantas que podem nascer através da leitura do mesmo, e, assim, a necessidade

de buscar novas maneiras de trabalhar com tal gênero textual no ambiente escolar.

Algum modelo pronto e acabado de leitura e interpretação não cabe nessas questões,

isso falando-se não apenas da leitura do texto dramático, mas da leitura de qualquer gênero

textual; o conceito não pode ser universal, ele se reconstrói na história do tempo. É sempre

processo de acoplamento do que já foi com o devir, então, ao ler, lemos com nossos olhos e

com olhos de outrem.

Deleuze e Guattari (2012), em seus escritos sobre o pensamento e a produção de,

ilustram a ideia de “pensamento rizomático”, que, se transferirmos para a prática da leitura de

um texto, seria este (o texto) a raiz central, e nossas interpretações as ramificações dessa raiz:

de qualquer lugar pode nascer algo. Se se possibilita leituras frente a pensamentos

estratificados, filia-se a um suporte interpretativo de representação, e não de criação, sendo

que é no encontro (no caso, do texto com seu leitor) que se produz uma outra cartografia, um

outro caminho, talvez ainda desconhecido, mas que merece ser percorrido, pois traz em sua

trajetória vivências históricas de seu leitor. Seria isso o intento em desterritorialização para

territorialização que nunca termina: eu me aproprio de algo que existe e ressignifico frente

meus gestos de leitura, pela interpretação. Busca-se, assim, uma reorganização disso mesmo.

A única coisa que se repete na vida é a diferença.

Ter sempre o pedaço de nova terra (DELEUZE, 2012). A “nova terra” é conquistada a

cada linha lida, a cada texto concluído, a cada vida nova que se tateia em si mesmo pelas

interpretações que nascem de nós mesmos. Ao interpretar, somos organização a pensar a

diferença sobre um modelo e, se todos os modelos são possíveis no plano da consciência;

portanto, não há modelos. Não terminamos, e não terminaremos de experimentar o que podem

nossas interpretações.

O texto de teatro passeia pelos seus, seus ditos aqui “os leitores”. Utilizar o pronome

possessivo “seus” não é em vão. Afinal, tem-se a percepção de captura, de pertença: ler uma

peça de teatro e pegá-la para si, ter com ela uma relação de relações que não se finda e que se

transmuta de leitor para leitor. Ora, um espetáculo teatral é formado de atores, diretor,

produtores, técnicos, cada qual com seu olhar sobre a obra; afinal, são antes de serem o que

são, leitores da obra, que significam seus olhares para darem vida à mesma.

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Artaud (1984) em sua obra “O teatro e seu duplo” nos coloca a questão durante toda a

leitura (ao menos a mim, leitor de territórios) “O que é uma obra de arte?”, e indagar sobre tal

questão nessas linhas desse momento, certamente, oferece a você, leitor do agora, a suscitação

pelo mesmo questionamento, pois, afinal, “O que é uma obra de arte?”. Tal indagação vem

acoplada também do que é considerado arte, pois cabe um esclarecimento de antemão que

está imbricado à coluna dorsal dessa dissertação: ler é uma arte, interpretar é uma obra de

arte. Porém, “O que é uma obra de arte?” mantém-se em suspensão de respostas para os novos

olhos que hão de vir (em relação a questões relacionadas à prática de leitura) após passeios

sinuosos em tímidos pareceres de um leitor de territórios, pois é preciso sempre criar um

terreno. Colocar seus gestos de interpretação, potencializando-os.

Os terrenos são formados por micro-percepções, assim, de grão em grão, teremos

sempre novos terrenos. Porém, o terreno não precisa estar construído para ser pisado: são

ações concomitantes – construir e pisar, para que se tenha possibilidades e permissões de

olhar e não apenas de ver.

Ver e olhar não são a mesma coisa. GIL (2004) nos concede (ver ou olhar) a ideia de

que ver é uma síntese da consciência – ao ver, percebe-se o mundo; olhar já está relacionado à

ideia de compor, de ser atravessado – ao olhar, cria-se com o mundo. Desconstruir e construir

o novo sob o decompor/ recompor. Aquilo que já é passa a ser pela forma como o olho. Mais

uma vez, tal situação sobre a ótica da prática de leitura significa como as permissões de

interpretações que damos e que nos damos, pois interpretar com seus olhos é presentear-se a

cada descoberta e sentir-se descobridor que busca sentidos. Qualquer tipo de busca de

organicidade é experimentar relações e a única forma é experimentar com técnica qualquer,

pois experimentar é dar tempo à própria experiência. Querer foge da relação de receber e

receber é uma abertura para si mesmo.

Não se sabe quantos grãos precisa-se para pisar pelos territórios, os territórios não são

precisos, porém precisamos deles. Para tanto, seguem pontuações e reflexões que buscam

“cartografar” territórios no campo das práticas de leitura, mais precisamente da leitura do

texto teatral nas escolas, suas possibilidades e ofertas. Assim, questões da Hermenêutica e de

Gênero à luz de Paul Ricoeur (1977), Coreth (1973) e Bakhtin (2003) serão trazidas a fim de

possibilitar maior firmeza no terreno em construção.

“Territorializemos” ou “desterritorializemos”, talvez.

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O que o olho vê?

Território desconhecido é difícil de ser pisado. Vai-se tateando pelas beiradas até

sentir-se pronto para estar em completude, porém a completude nem sempre é alcançada,

tendo em vista que a cada passo dado, novo território é traçado, e assim é sempre: iludimo-

nos do alcance para atingir um novo alcance, e os alcances se dão à medida que aceitamos e

acreditamos onde estamos pisando.

Ao buscar trazer as questões da hermenêutica para o quadro que compõe a sustentação

teórica dessa dissertação, deparamo-nos com a filosofia da linguagem, ao ponto em que a

linguagem passa a ser para nós, “pisantes” de territórios a serem descobertos, um lugar de

filosofar. Ser alguém em um território é ter consciência e possibilidades de acessar esse

território. Paul Ricoeur (1977) é um dos “pisantes” que acredita que a filosofia está imbricada

aos caminhos de ser do ser. O discurso filosófico está sob múltiplas possibilidades, ainda que

os limites de finitudes estejam postos sobre a perspectiva sobre o que se pretende. Paul

Ricoeur assim, ao debruçar-se sobre a linguagem, nos coloca a sensação de querer desvendá-

la em totalidade.

Reconhecer a Hermenêutica como uma teoria da compreensão frente à interpretação

de textos é o ponto de partida para nossa intenção em explaná-la (dentro de minhas limitações

de leitor de territórios) a fim de encontrar interfaces plausíveis que balizem questões da

interpretação e o trabalho com o texto teatral em sala de aula.

A linguagem é algo efetivo nos vieses da interpretação, e assim, a hermenêutica possui

relações fortes relacionadas à linguagem (RICOEUR, 1977). Relações de imediatismo não

estão ligadas à linguagem, que, ao contrário, traz pelas palavras a polissemia. O mediador da

linguagem e de seu(s) sentido(s) é quem interpreta e participa - como leitor ou falante - e

percebe, e coloca “univocidade de um sentido através da polissemia das palavras” (SANTOS,

160: 2004).

Para Ricouer (1977), a linguagem nasce e está em funcionamento desde os diálogos

corriqueiros e informais, porém, quando se dá corpo textual a esses diálogos, tornando-se

texto, está aí a necessidade de uma teoria da compreensão, e assim, pode-se dizer que a

hermenêutica se dá como uma teoria do texto, como uma “teoria das regras que presidem a

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uma exegese, isto é, à interpretação de um texto singular ou de um conjunto de signos

suscetível de ser considerado como um texto”. (RICOEUR, 19: 1977)

Todavia, e é o esperado, que um texto ao ser lido expresse-se de formas diferentes

para seus leitores, pois cada leitor traz consigo suas bagagens leitoras que são ativadas e dão

sentido ao tempo que significa o que se lê, e os sentidos postos também não são perenes. Eles

oscilam até mesmo na significação de um único leitor, que pode gerar novas interpretações

daquilo que lê em determinado tempo, espaço e circunstância. Portanto, a linguagem

interpretada está à margem do duplo sentido e a “interpretação é a inteligência do duplo

sentido” (RICOEUR, 18:1977). Portanto, se é o duplo sentido, a possibilidade de não isto para

o aquilo, que circunscreve o debruço do campo hermenêutico, parece que interpretar vem

acarretado do problema dos símbolos. “(...) o símbolo é uma expressão linguística de duplo

sentido que requer uma interpretação; a interpretação é um trabalho de compreensão visando a

decifrar os símbolos”. (RICOEUR, 19:1977)

Se o símbolo é a figura do duplo sentido que necessita de interpretação, então a sua

função no texto atribui ao leitor dizer algo que não é o dito, que é diferente do esperado, do

que se lê sobre as linhas, mas sim que está nas entrelinhas.

Em todo signo um veículo é portador da função significante que faz com que ele seja válido para outra coisa. Contudo, não direi que interpreto o signo sensível quando compreendo o que ele diz. A interpretação se refere à estrutura intencional de segundo grau que supõe que um primeiro sentido seja construído onde algo é visado em primeiro lugar, mas onde esse algo remete a outra coisa visada apenas por ele. (RICOEUR, 21:1977)

A linguagem é constitutiva e se dá por aproximação, buscando sentidos mais

próximos das experiências pessoais. Paulatinamente, vai ela, a linguagem se impondo e

construindo-se natural e convencionalmente. Por esse meio Ricoeur busca a racionalidade do

fundamento do símbolo que se configura como algo difícil de ser atingido, pois se concretiza

pela aproximação e não pelo que se está acostumado a usar. Assim, a construção do símbolo

se dá de forma diferente, pois funciona diferente do modelo convencional de interpretação, o

que dá a ele, o símbolo, o caráter enigmático que faz pensar. (SPERBER, 2011)

Ainda conforme Sperber (2010), o caráter enigmático do símbolo está na vida, em

expressar, compreender como se foi afetado por algo.

O teatro é feito de símbolos textuais, corporais, cênicos, enfim, é composto de um

amálgama de símbolos que nascem de experimentações e de olhares que criam com o mundo

inserido durante o processo de construção de um espetáculo, pois elencado um texto para

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montagem, os envolvidos imergem em outro mundo, dando vida às vidas presentes no texto.

Pois bem, se estamos falando de símbolos e das nascentes de interpretações por eles, cabe

aludir à forma de chegada de um texto teatral para um grupo de teatro. Atores leem e

significam, diretor lê e significa, e assim se vai, significando caminhos e encontrando

símbolos dentro de símbolos. Se assistirmos a uma peça de Tchekhov, teremos traços de um

clima cinza, chuvoso, onde os barulhos de goteiras não nos surpreenderão (símbolos cênicos),

ou ainda, se assistirmos a uma peça de Nelson Rodrigues, mulheres passivas e andando de

quatro com suas nádegas apontadas para o ar fazem parte do universo do autor (símbolos

corporais) e serão símbolos presentes para uma montagem. Todavia, esses símbolos nascem

dos sentidos (duplos) que o texto traz em si. Ao ler um texto de teatro se passeia pelas

entrelinhas, ativando possibilidades que o verticalizem para a interpretação cênica. O caminho

das páginas para o palco é revestido de símbolos, estes que tocam os espectadores com, e

também, seus duplos sentidos, e assim se vai encadeando símbolos que criam símbolos e

tornam-se sentidos pelas interpretações de univocidade. Sempre haverá símbolos enquanto se

produz signos para o sentido, que se cansa do mesmo sentido e produz novos que só serão

atingidos pelo enfoque de cada um.

A hermenêutica nasce para restaurar sentidos destinados. O movimento que me

conduz ao sentido segundo, que não é o explícito, mas o implícito, relaciona-me ao dito. A

interpretação não é só descobrir o segundo sentido das coisas, mas universalizar também esse

sentido para a reflexão. Uma interpretação advém de várias interpretações que se reúnem

substancialmente para a reflexão. Temos, assim, que é a própria hermenêutica e a situação de

interpretar interpretações que possibilita a reflexão.

Levar à compreensão pelos caminhos singulares (que são tão plurais) de cada ser. A

singularidade da caminhada dita aqui não se estreita à ideia de um único sentido, mas do que

te faz sentido. Se somos a história que nos forma, trazemos em nós traços que significaram

durante nosso percurso e ressignificamo-nos ao ato que interpretamos aquilo que no momento

está em nossas mãos, “(...) porque precisamente não se alcança o verdadeiro sentido, quando

se quer separá-lo do fato histórico” (CORETH, 17: 1973). O fato histórico que é o que dialoga

com o texto que estamos lendo e que dialoga com nossas formações.

Emerich Coreth (1973) atenta à questão da compreensão apresentada por Heidegger

analisando-a na ideia de um “círculo hermenêutico” e conduz a ideia de que

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Toda compreensão apresenta uma “estrutura circular”, visto que só de dentro de uma totalidade já dada de sentido uma “coisa” se manifesta como uma “coisa”, e uma vez que toda interpretação – como elaboração da compreensão – se move no campo da compreensão prévia, pressupondo-a portanto como condições de sua possibilidade. (CORETH, 23:1973)

Para produzir compreensão, a interpretação deve saber o que vai interpretar. Ao

termos um texto em mãos, no caso, de gênero teatral, temos muitas possibilidades de

interpretação, porém, a compreensão fica instável até se firmar em uma ideia coesa. Se

tomarmos por exemplo a estreia de um espetáculo teatral, nela poderá haver cenas, textos,

situações que apareçam e que já no segundo dia de apresentação não estejam mais, isso

porque, a partir do momento em que se coloca uma interpretação para outras interpretações,

se recebe de volta essa interpretação com outros olhares passados por ela; então, pode ocorrer

de determinada cena ter surtido um efeito outro, no caso, nos espectadores, ou, ainda, não ter

surtido efeito nenhum, daí se compreende de outra forma, e assim o é sempre... Um

espetáculo teatral não é acabado em si, ele está sempre em mudança, pois sempre está à prova

de outras compreensões que o vão formando e modificando. Se uma peça teatral se engessa,

daí surgirá um erro; afinal, um espetáculo estanque não está em funcionamento, está em

reprodução, e ao reproduzir, não se recebe, tampouco se passa interpretações e/ou

compreensões. Não há imediatismos em interpretações, estas estão em constante mutação.

A constante da interpretação advém do fato de que ao significarmos, na tentativa de

interpretar, acionamos o subjetivo e o objetivo que não são propriamente puros; eles vêm

arraigados de toda uma trajetória já vivida e que se mantém viva a ponto de podermos

encontrá-las e torná-las existentes para nossa compreensão no ato de interpretar. A

compreensão age junto, atua com, na tentativa de apreender o sentido da “coisa”. (CORETH,

1977)

Compreensão pela perspectiva da hermenêutica se funda pelo pensamento racional

(mediação) e pela visão intelectual (imediatez). Coreth (1973) se ancora em Hegel e explicita

que dentro da hermenêutica compreender significa a imediatez, que apreende o sentido,

enquanto interpretar seria a mediação, que se enquadra como uma imediatez de compreensão

prévia. Há “coisas” que devem ser explicadas, porém outras que devem ser compreendidas.

Explicar seria uma retomada do que já é, enquanto compreender se estreita em ter acepção à

“coisa” que ultrapassa o sentido que já é dela. Ao afirmamos a compreensão de algo que fora

ouvido ou lido, estamos apreendendo o seu sentido. “Compreender significa apreensão de

sentido”. (CORETH, 50, 1973)

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A formação do sentido pode nascer pelo homem, que sustenta o sentido com intenções

perante algo, objetivo este de mediar para a compreensão. Porém, a formação do sentido

também pode nascer em si, pois o sentido pode se desvincular daquele que o cria e tornar-se

independente (CORETH, 1973). Por exemplo, tomemos a questão que muitas vezes aparece

em livros didáticos: o aluno em sua posição de leitor lê um texto proposto pelo livro didático

e, junto ao texto segue um questionário onde aparece muitas vezes a pergunta “O que o autor

quis dizer com esse texto?” Ora, se somos nós sujeitos ativos, interpret(ativos), que mediamos

nossa leitura para a compreensão pela apreensão do sentido, deveríamos ter a liberdade de ler

com nossos olhos, e não preocupados com os olhos de quem escreveu.

Claramente, os símbolos estão presentes no texto (como discorremos acima) e eles

oportunizam o acionamento de recursos exequíveis ao que se está lendo no momento, porém,

o sentido, ganhando independência, está à mercê de tantas possibilidades de existência, e

questionar “o que o autor quer dizer” torna-se um tanto quanto errôneo, na perspectiva de que

o dizer pode dizer tantas coisas e tantas “coisas”.

Os significados estão para serem usados ou, ainda, para serem inventados, e, porque

não, para serem reinventados. Vagando pelo mundo os significados procuram encaixe para

significarem, e o mundo está para o homem em total relação, “não há para o homem auto-

realização sem realização do mundo, auto-experiência sem experiência do mundo, nem

autocompreensão sem compreensão do mundo” (CORETH, 62:1973), é do ser humano ser e

ter o/ um mundo.

Experimentar o mundo é essencial. Criar relações e vivenciar com o mundo abre

caminhos às significações de sentidos e valores, e a experiência humana se realiza em

grandiosidade. Experienciar o mundo é um ato teórico-prático, é preciso vivê-lo para

interpretá-lo. Para interpretar trazemos à tona nosso mundo e mundos outros que talvez não

tenhamos vivido, mas já ouvimos falar, porém, a assimilação de nosso mundo vivido com o

mundo ouvido se torna presente que passamos a ter a sensação de que outros mundos também

são nossos e assim compreendemos por nós através de outros. Uma constante troca de nós

com nós mesmos para compreender mundos.

A compreensão é um acontecimento de muitas camadas que vai se edificando por nós

e pelos outros que estão em nós. “(...) nunca posso colocar-me dentro do outro, mas estou

circunscrito a suas palavras, seus gestos, seu comportamento, pelos quais se faz entender”

(CORETH, 58:1973). Colocar-se no outro é uma questão que tange a várias outras ditas até

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então. Eu sou eu mais o que o outro me constrói, então, por mais que não me coloque no

outro, há traços do outro em mim que possibilitam à construção interpretações muitas vezes

vistas de primeira instância como não possíveis, ou ainda, vistas primeiramente como alguma

“coisa”, mas com sentido transferido após outra “coisa”.

O outro preenche as . É como se estivéssemos em um assentamento instável. A cada

momento somos um, somos um outro e falamos de posições diferentes por aquilo que

falamos. Um padre ocupa um lugar na sociedade, diferente de um professor, diferente de um

ator, diferente de um mecânico, porém, um padre pode dar aulas de Teologia, um professor

pode ler uma peça teatral, um ator pode trocar um pneu, um mecânico pode ler a bíblia, cada

qual com suas formações, capacitações e limites, porém, para isso, acionam vivências vividas

ou ouvidas para se fazerem melhores na “coisa” que se propõem fazer. Um ator lerá o texto de

teatro com um fim, diferente da finalidade do professor, porém, não com menos ou mais

interpretação, mas com seus gestos próprios diante de seu interesse sobre aquilo.

O texto de teatro dentro das escolas não precisa tornar-se sempre que lido uma

montagem de espetáculo. A questão é outra! O texto de teatro é lido a ponto de verticalizar-se,

sair das páginas para os palcos, virar uma montagem de espetáculo, porém, não são todas as

pessoas que têm formação, ou se arriscam para de fato montarem um peça teatral, e isso não

deve ser um empecilho, não deve ser um motivo para não trabalhar a leitura teatral nas

escolas. O texto não deve ser colocado de lado, a ponto de ser pensado com um texto existente

apenas para ser lido por atores, diretores e ligados diretamente às artes cênicas, pois, se assim

o for, o contato nunca existirá e ficarão os leitores das escolas como aqueles sem bagagens

para ler e assistir teatros, pois não terão práticas, e quando forem a um teatro, não terão por

onde acionar interpretações para suas compreensões. O teatro deve ser vivido por todos, e seu

texto também.

Ler um texto dramático em sala de aula pode possibilitar a abertura de caminhos

outros. Não que outros textos trabalhados na escola não possibilitem tais caminhos, mas,

como o dito, somos instáveis, em assentamentos instáveis... Territórios novos sempre são bem

quistos e bom de serem pisados, mas para isso é preciso coragem e a coragem é dada pela

vivência... De que forma? É o que tentaremos tatear no quadro de análises.

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Gerando outro, pelo outro

Para um novo território cabem sempre mapeamentos. O que vem de antes também

auxilia na compreensão, dando possibilidades maiores de como e onde pisar, ou ainda, onde já

se está pisando. Gerar é assim: pegar daqui e de lá e buscar o entendimento de porquês

estendidos nos varais. Há porquês de todos os tamanhos, de todos os gostos, de todos os

todos; cabe a nós enxergar por múltiplas visões o que temos, ou não, para nossos olhos. Olhar

o mundo de um ponto de vista outro, daquilo que não está posto no varal, mas está lá

escorrendo pelas roupas que estão a secar e que gota-a-gota fundem e semeiam o território de

pisar... Território de tudo e de todos, plural e diverso, dialógico e de signos.

O que está e não está depende do foco de um olhar... De um tanto de olhar!

Buscando discorrer sobre o texto teatral em sala de aula, suas possibilidades de

práticas e leitura, destacamos do varal “de todos os todos” a questão de gênero na linguagem

para, quem sabe, estender pelo varal mais prendedores por aí.

O estudo de gêneros, sua descrição, discussão e proposição ganha forte presença,

atualmente, em projetos pedagógicos escolares no que tange ao ensino de leitura e a produção

textual. Sobre a perspectiva de Bakhtin algumas percepções serão traçadas a fim de plainar

esses estudos, intentando encontrar lugares de possíveis territórios a serem pisados para o

trabalho com o texto teatral em sala de aula.

Bakhtin (2003) traz a problemática do gênero com grande assiduidade em seus

escritos, como quando defende o romance como gênero literário; apresenta a ideia de gêneros

intercalados com plurilinguismo no romance; relação do discurso literário com outros

gêneros; o romance polifônico em Dostoiévski; os gêneros nos estudos marxistas da

linguagem; a extensão da noção de gêneros para práticas além das artes; defesa da

constituição ideológica dos gêneros e da língua; relação dos gêneros com o enunciado; estudo

de cultura e gêneros para a obra de Rabelais; gêneros com força para estratificação da língua;

enfim, inúmeros prendedores são postos ao varal sob o prisma das discussões de gênero frente

à perspectiva bakhtiniana.

Sperber (2010), aponta que o conceito de plurilinguismo de Bakhtin é útil para a

análise da linguagem, "[...] é o discurso de outrem, na linguagem de outrem, que serve para

refratar a expressão das intenções do autor”. (BAKHTIN, 1990 apud SPERBER, 2010). O

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discurso do outro se relaciona a quem está enunciando, são incorporações de experiências

adquiridas.

Bakhtin (2003), quanto ao estudo de gêneros, alude que na literatura a análise sempre

esteve direcionada para a ótica artístico-literária, para e apenas as questões e limites da

literatura, e assim, os estudos acabam por analisar os gêneros separados do social, não

possibilitando as formações discursivas. E ainda, quanto à Retórica, o autor também aponta

que os estudos e direcionamentos encobriram a natureza comum dos gêneros.

Os gêneros textuais são fenômenos históricos vinculados à vida cultural e

social, que contribuem para fruir as atividades comunicativas do dia-a-dia. Porém, tendo os

gêneros uma apresentação de poder interpretativo das ações humanas em qualquer contexto

discursivo, não são eles instrumentos estanques e fixos da ação criativa, pois são

acontecimentos textuais flexíveis que nascem emparelhados a atividades socioculturais.

Para Bakhtin, a linguagem é caracterizada por diferentes gêneros do discurso. Na

noção de gênero discursivo proposta por Bakhtin (2004), a linguagem é um fenômeno social,

histórico e ideológico. Assim, o autor define os gêneros do discurso como formas estáveis de

enunciados elaborados de acordo com as condições específicas de cada campo da

comunicação verbal. Tal definição alude à situação sócio-histórica de interação que envolve o

tempo, o espaço, os participantes e os fins do discurso, portanto, cada círculo social produz

seus próprios gêneros.

As atividades humanas, em geral, se utilizam da linguagem, que efetua-se em forma de

enunciados (orais e escritos), realizados pelos sujeitos desse ou daquele campo da atividade

humana. (BAKTHIN, 2003: 261)

Bakhtin ainda aponta que o discurso existe circundado de enunciados que são unidades

da comunicação discursiva. Comunicação é onde o interlocutor assume diante do enunciado

uma ação responsiva.

Então, temos que a enunciação é o resultado da interação entre um locutor e um

interlocutor. Dá-se, nesse sentido, que a palavra tem duas faces: é determinada por quem fala

e para quem se fala, sendo um território comum do locutor e do interlocutor. Nessa

perspectiva “o centro organizador de toda a enunciação, de toda a expressão não é interior,

mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo.” (BAKHTIN, 2004:118)

Quem fala, ao falar, traz sua fala atravessada pelas palavras de outro, seria essa

situação uma situação dialógica. O dialogismo é a característica do funcionamento discursivo

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em que se encontram inúmeros dizeres de inúmeros falantes que constituem a dimensão

polifônica do discurso.

Na construção do enunciado deve-se levar em conta a situação social e as condições

específicas de sua constituição, pois eles, os enunciados, têm origem nas plurais camadas

sociais e as condições de sua construção são refletidas pelas condições de quem enuncia.

A comunicação verbal só existe por intermédio de algum gênero discursivo. Essa

premissa é defendida por Bakthin e pelos estudiosos que trabalham sob o prisma da

linguagem em aspectos enunciativos e discursivos, e não em suas formalidades, pois trazem

em seus estudos a língua como atividade social. Assim, as formações dos “gêneros

discursivos, são correias de transmissão entre história da sociedade e história da linguagem”

(BAKTHIN, 268: 2003).

Em cada época de evolução literária, o tom é dado por determinados gêneros do discurso, e não só gêneros secundários (literários, publicísticos, científicos) mas também primários (determinados tipos de diálogo oral – de salão, íntimo, de círculo, familiar-cotidiano, sociopolítico, filosófico, etc.). Toda ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas extraliterárias da língua nacional está intimamente ligada à penetração da linguagem literária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísticos, de conversação, etc.), em menor ou maior grau, também dos novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e renovação mais ou menos substancial dos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 268:2003)

Atentando-se ao pressuposto elencado na citação acima no que diz respeito a gêneros

primários e secundários, desvelamos na leitura de um texto, o que por hora chamaremos de

“emaranhado”. Essa palavra é posta aqui para significar, metaforizar o que está presente em

um texto, que traz si muitas vezes o dito primário e secundário no mesmo corpo, ainda mais

se colocarmos a análise de um texto teatral. Um texto de teatro traz em si o que será,

literalmente, dito em uma montagem – as falas – e também informações que perpassam o não

dito – as didascálias (as ações e sensações que o texto traz entre parênteses) – o que contém

nas didascálias é vivido em corpo, em intenção, não em texto dito, digo texto dito com

palavras, pois o corpo em cena traz em si uma tessitura de dramaturgia do corpo, já que lemos

as ações que o corpo manifesta. O corpo em cena também é texto, porém sem palavras.

Retomando a questão do emaranhado de gêneros dentro de um texto teatral, podemos

exemplificar, aqui, com uma passagem do espetáculo “Bodas de Sangue” de Federico Garcia

Lorca: (2009: 54,55)

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CRIADA: Vou pôr-te a coroa. NOIVA: (Sentando-se) Apressa-te que já devem estar chegando. CRIADA: Já terão percorrido pelo menos duas horas do caminho. NOIVA: Qual a distância daqui até a igreja? CRIADA: Duas horas corridas pelo riacho; pela estrada é o dobro. (A Noiva se levanta e a Criada se entusiasma ao vê-la.) CRIADA: Desperta a noiva Na manhã da boda. Que os rios do mundo Levem sua coroa. NOIVA: (Sorridente) Vamos. CRIADA: Que desperte com o ramo verde do amor florido. Que desperte pelo tronco e pelos ramos dos lauréis! (Ouvem-se umas aldrabadas.) NOIVA: Abre! Devem ser os primeiros convidados. (Sai. A Criada abre e fica surpresa.)

Esse fragmento extraído da obra de Lorca traz um diálogo de duas personagens,

diálogo que precede um acontecimento importante do cerne da história: um casamento.

Temos a exemplificação de que em prosa aparecem os diálogos que poderiam ser ditos como

de gêneros primários.

O texto de teatro traz em suas páginas, frequentemente, diálogos que seriam do dia-a-

dia. Isso se dá, pois o teatro representa a vida. Então, é cabível e de suma importância a

utilização do recurso de diálogos presentes no corpo do texto. Lorca faz uso, nesse caso, da

ativação do texto em forma poética em meio à prosa, desde sua estrutura, bem como com as

metáforas, sugerindo assim a ideia do emaranhado, de que um texto pode não ser “um”

gênero, mas gêneros que o constituem.

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Mais um recurso de significação para o caso pode ser visto nas didascálias. Na ação

descrita “(A Noiva se levanta [ação] e a Criada se entusiasma [sensação] ao vê-la.)” quem diz

essa situação é o corpo, porém impulsionado pelo comando do texto. A ação “se entusiasma”

pode vir seguida, quem sabe, por um “caco”. O “caco” no teatro é a palavra, a frase, a oração,

a interjeição dita que não está no corpo do texto, mas que, pela ação do corpo, pode

propulsionar algo dito durante tal ação. Se pensarmos que o entusiasmo da Criada pode vir

acoplado à interjeição “Minha menina!” com intenções de satisfação, de quem está orgulhosa

em ver uma menina, que criou a vida toda, minutos antes do seu casamento e se orgulhar da

situação, o intertexto se faz presente, e pode sair pelas palavras. Aciona-se, assim, agora mais

piamente, um gênero primário de diálogo cotidiano que dessa vez não está no corpo do texto,

mas no corpo do personagem, frente a construções possíveis, de leituras possíveis que um ator

pode ter na composição do mesmo.

A exemplificação com o texto de teatro vem ancorada na tentativa de buscar tatear o

lugar do texto teatral em meio aos gêneros discursivos, para se pensar no trabalho com este

nas salas de aula. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN’s)

trazem preocupações, atualmente, quanto aos gêneros e tipos textuais que serão trabalhados

nas salas de aula, atrelados à prática de ensino e produção de texto, porém, a preocupação

além dos textos que serão trabalhados deve ser a forma como o serão. Brait (2000), apoiada

em estudos bakhtinianos, clarifica que um trabalho de flexibilidade com textos em sala de

aula, tomando as formas de circulação e recepção de um texto frente a conceitos de gêneros

discursivos e tipologias textuais, apontando as diferenças dos diálogos que os constituem,

contribuem para um trabalho eficaz e significativo no âmbito da língua e da literatura.

Um texto na mão de um leitor se ressignifica pela significação que aquele lhe dá,

advinda de seu referencial histórico formativo. Assim, uma análise de um texto pode pegar

um caminho inesperado e, mudando as formas de circulação, produção e recepção, o texto

sendo ele ainda o mesmo, pode passar a pertencer a outro gênero discursivo. Bakhtin nos

convida “a estudar o texto como um espaço aberto à simultaneidade das visões.”

(MACHADO, 132: 2005)

A produção da linguagem é constante. A dinamicidade se dá pela produção de sentidos

que despertam no leitor a capacidade de construir diálogos com o texto, e, a partir de suas

particularidades (do texto e do leitor), surpreender-se como o novo que é trazido pela língua

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através do interdiscurso, pela ativação das memórias por intermédio da interação benemérita e

possível, frente às permissões, de leitor e texto.

O conto “Chapeuzinho Vermelho” é uma obra clássica muito antiga e reproduzida em

vários países. Porém, muitas releituras já foram destinadas a esse conto. A matriz do texto é

que uma menina, Chapeuzinho Vermelho, pelo pedido de sua mãe, vai visitar sua avó que está

doente e que mora do outro lado do bosque. O conselho da mãe é que ela vá pelo caminho

mais longo que é menos perigoso, pois se ela pegar o atalho do bosque, ela estará à mercê de

perigos, como o de encontrar o lobo-mau. Chapeuzinho desobedece sua mãe, vai pelo bosque,

encontra com o lobo que lhe engana para chegar antes a casa da vovó. O lobo chega à casa da

vovó, a come, e se disfarça de vovó para esperar Chapeuzinho, que chega com um dos

discursos mais conhecidos dos contos de fadas:

- Vovó, por que esses olhos tão grandes?

- É pra te ver melhor, minha netinha!

- E por que esse nariz tão grande?

- É pra te cheirar melhor!

- E por que essas orelhas tão grandes?

- É pra te ouvir melhor?

- Vovó, mas por que essa boca tão grande?

- É pra te comer!

Chapeuzinho percebe que é o lobo, grita por socorro e é salva por um caçador da

floresta, que abre a barriga do lobo, tira a vovó de dentro e coloca pedras no lugar.

Toda essa narrativa do conto “Chapeuzinho Vermelho” foi propositalmente extraída

de minha memória; afinal, os sentidos dessa história já são parte de minhas bagagens

discursivas, e, portanto, narrá-la torna-a mais próxima do que mais ficou impresso e

significativo em mim.

Guimarães Rosa e Chico Buarque de Holanda têm obras que possivelmente foram

inspiradas no conto “Chapeuzinho Vermelho” são elas, respectivamente: “Fita verde no

cabelo” (1992) e “Chapeuzinho Amarelo” (2009).

Guimarães nos convida a conhecer uma “Nova Velha Estória”, “pelos moldes reais”

através das metáforas que nos são apresentadas em “Chapeuzinho Vermelho”. Coloca-nos em

uma aldeia com “velhos e velhas que velhavam” e que todos tinham juízo exceto uma menina

que saiu da vila um dia com “uma fita verde inventada no cabelo”. Regionaliza os sabores da

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avó a ser visitada que ganhará uma cesta levada pela menina com doce em calda e

framboesas. Torna humano o caminho que ao invés de lobos havia lenhadores que “tinham

exterminado o lobo”. A escolha do caminho se dá no fragmento:

A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê,

e das horas, que a gente não vê que não são. E ela resolveu escolher tomar este caminho de cá,

louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de asas ligeiras, sua sombra vindo-lhe

correndo, em pós.

A menina opta pelo desejo, pelo sonho, pela vontade de se seguir por suas “asas

ligeiras” (isso frente aos olhos do leitor que lhes escreve) e toma caminhos em sua vida,

caminhos de amadurecimento de menina para mulher, como quando percebe que perdeu sua

fita verde no bosque assim que chega a casa de sua avó e a encontra, depois do “tempo

perdido”, quiçá, do seu “tempo escolhido”, prestes a morrer. O diálogo vem:

- Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!

- É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta... – a avó murmurou!

-Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!

- É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta... – a avó suspirou.

-Vovozinha, e que olhos tão fundo e parados, nesse rosto enconvado, pálido?

- É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha... – a avó ainda gemeu.

Fita-Verde se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou: - Vovozinha,

eu tenho medo de lobo!...

Mas a avó não estava mais lá, sendo que, demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste

e tão repentino corpo.

O tempo tem dessas coisas de homem.

Ainda, tomemos a obra “Chapeuzinho Amarelo”, uma menina “amarelada de medo”,

contrária a coragem de “Chapeuzinho Vermelho” e as escolhas de “Fita-Verde no Cabelo”.

Chapeuzinho Amarelo tinha medo de tudo, mas dentre seus medos o maior era o de topar um

dia com o lobo e, esse dia chegou:

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(...) um dia topou com ele que era assim: carão de Lobo, olhão de Lobo, jeitão de Lobo, e

principalmente um bocão que era capaz de comer duas avós, rei, princesa, sete panelas de

arroz e um chapéu de sobremesa.

O encontro gerou o inesperado. O lobo gritava “sou um lobo” e “Chapeuzinho dava

risada”. O lobo decepcionado com a situação passa a gritar tantas e tantas vezes seu nome de

“lobo lobo lobo lobo lobo lobolobolobolobolo bolo bolo bolo bolo bolo” e Chapeuzinho

percebe que seu lobo na verdade era um bolo, “um bolo de lobo fofo” e passa a brincar com

todos seus medos.

Além dos exemplos expostos há também, já que o mote dessa dissertação se debruça

em textos teatrais, o texto “O Chapeuzinho Vermelho” (2001) escrito por Maria Clara

Machado.

De primeiro contato já nos surpreendemos com o nome dos personagens e o

acréscimo de alguns à história: Dona Chapelão Vermelho, a mãe; Tinoco, o anjo da

vovozinha; Chapeuzinho Vermelho; O Caçador; O Lobo; A Coelha; Dona Quinquinhas, a

vovozinha; As Árvores; O Tronco.

A história se passa embasada nos pressupostos de senso da original, narrada acima,

porém com as “pitadas” de uma dramaturga infantil. Duas passagens serão trazidas a seguir

para, também, dar mais corpo as reflexões que estamos à buscar:

(O Lobo dá um salto e começa uma espécie de dança entre eles, inclusive as árvores, como se o Lobo procurasse fugir e os outros não deixassem, dois passos para um lado e dois para o outro. Vovozinha pensa que eles querem dançar e começa a marcar uma quadrilha, ao som de um acordeon que se ouve nesse momento. Todos dançam animadamente.)

VOVÓ – Dois pra lá... Dois pra cá... En avant... en arrière... changez de dames… changez de place… (Ao som de uma pancada de tambor a música cessa bruscamente e todos param, voltando à posição de ataque, salvo a vovó, que continua a dançar animadamente e se põe na frente do caçador.)(p.130)

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(Vovó e Chapeuzinho continuam dando adeus até que o pano se abre e as árvores cantam:)

ÁRVORES: Vamos passear no bosque, enquanto seu Lobo não vem... Vamos passear no bosque, enquanto seu Lobo não vem... (p. 133)

Os quatro exemplos ditos acima conversam entre si, embebidos no conto que já

ouviram falar “Chapeuzinho Vermelho”. Ouviram falar, pois certamente não fora do mesmo

livro, da mesma boca que essa história saiu para os ouvidos e olhos de Guimarães, Chico e

Maria Clara, e, ainda bem que não o foram, pois possibilitaram tantas outras leituras para nós,

que vieram pela significação – recepção/compreensão – que cada um teve da obra e que

inspirou para nos inspirar.

Diálogos nascidos de diálogos e que possibilitam novos diálogos. O livro possibilita

discussões ativas sob a forma de diálogo e, existe para ser lido de maneira ativa. O que está

escrito nasce de uma ideologia formativa e vai para o leitor, que o lê com veemência,

atravessá-lo também por suas formações ideológicas. O diálogo acontece no externo, pela

relação com o outro (texto/ autor) e no interno, pela relação com o eu (minhas formações que

vem carregadas também de outrem). Bakhtin (2003) considera o diálogo como as relações que

ocorrem entre, no caso, leitor e texto, uma ação histórica compartilhada que se realiza em um

tempo e local específicos, mas sempre mutável, pois o contexto muda.

Os diálogos ditos até agora são os concebidos por Bakhtin, como dialogismo que é

constitutivo da linguagem.

O conceito de gênero segundo a abordagem dialógica de Bakhtin é

instância de criação e acabamento do objeto estético. Por isso, acabamento e criação são temas fundantes da estética geral através das quais Bakhtin formulou o dialogismo. Nele, Bakhtin desenvolve pontos de vista para a análise da estética da obra de arte verbal enquanto signo no conjunto da cultura humana. O gênero organiza a manifestação e promove seu acabamento. Quer dizer: o gênero mobiliza relações entre aspectos internos e externos da manifestação estética. (Machado, 133:2005).

O dialogismo está presente nos gêneros. Os textos inspirados no conto “Chapeuzinho

Vermelho” conversaram com o mesmo para poderem existir, e agora conversam com os

leitores que ativam a lembrança da matriz (no caso, “Chapeuzinho Vermelho”) com esses

textos e com outros que podem compor esses textos. O suprarregionalismo de Guimarães

Rosa que leva a vovozinha framboesas, os medos de Chico Buarque que amarelam a

Chapeuzinho, são traços de memórias vividas, de diálogos com outras formações que

imbricam as informações de “Chapeuzinho Vermelho”.

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Ainda, se pensarmos na vovozinha cantando e direcionando passos em outra língua, e

ainda em uma nomenclatura específica do balé, e nas árvores cantoras de paródia de Maria

Clara Machado, acionamos mais um conceito de Bakhtin ligado ao dialogismo: a polifonia,

que traz vozes polêmicas para o discurso.

O balé tem sua nomenclatura para se aprender às movimentações da dança. A

vovozinha, trazendo essas vozes para o discurso do momento, pode nos levar a interpretar

que, possivelmente, tenha sido ela uma dançarina, ou alguém que se interessa muito por dança

de salão, no caso, as quadrilhas.. Bem como as árvores trazendo a cantiga de roda “Vamos

passear na floresta, enquanto seu lobo não vem” adaptando a palavra floresta,

contextualizando-a para bosque, o tão temido por todas as histórias em que passam nossas

meninas de Chapéus e Fitas, nos leva ao lugar da infância, e também e como não, ao lugar de

nossa infância. Há vozes que são dissonantes no discurso dialógico.

Podemos pensar em uma estruturação de diálogos de gêneros para possíveis trabalhos

na escola, como por exemplo, um trabalho com o conto “Chapeuzinho Vermelho” entrelaçado

com “Fita Verde no Cabelo”, “Chapeuzinho Amarelo” e o “Chapeuzinho Vermelho”.

Certamente, uma possibilidade de contato com tantos tatos possíveis abririam novos

territórios para o trabalho com leitura em sala de aula, ainda, se pegarmos um outro conto

qualquer, e atermo-nos a novas visões sobre o presença do texto teatral em sala de aula, que

pode nascer das percepções dos alunos, adaptando, inserindo, construindo, significando novos

horizontes por seus horizontes de antes e que virão sobre determinada obra, estruturando e

fazendo surgir, pela criação vivida e experienciada, um texto de teatro repleto de diálogos

presentes em si, e entre si, afinal, “cada unidade de pensamento é um nó potencializador de

muitas questões, um cenário de complexas relações de linguagens” (MACHADO, 139:2005)

emaranhadas e que devem e são, quando possibilitadas, encontradas e desatadas para novas

visões de ter e ler... De se ter o que se lê como seu, pelo outro... Pelo encontro.

O texto dramático é composto de verdades gerais, diálogos, pensamentos... Como o

discurso que coloca no mesmo espaço discursivo verdades que não são ditas nem dadas do

mesmo modo. Todavia, temos que se não podemos elencar fidedignamente os gêneros,

também não poderemos fazê-lo com a quantidade de “mundos” que nos completam por aí.

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Decifrou-me ou te devorei?

Não caiamos no esquecimento! A questão suscitada no início desse “território” sobre

“o que é uma obra de arte?” perambulou todos esses escritos, visto que a arte está no homem,

em seus gestos de interpretação, em seus encontros, em seus bons dias, em seus sonhos, em

seus eus.... E continuará perambulando, e ainda bem, e que assim seja, pois se um dia

encontrarmos a resposta para isso, estaremos fechando as portas para o devir dos encontros

nos novos territórios a serem pisados, nos novos olhares a serem lançados, nos novos passeios

por dentro e por fora.

Assim seja ela, então, a arte: um finito que tem que tender para o infinito.

ALICE – Ei, acabo de ter uma idéia sensacional: cada um que beber faz um pedido

em voz alta. Primeiro nosso hóspede: Angel.

ANGEL (Bebendo) – Yo quiero solo llegar a Peru. Y quiero tanbién que sea todo

muy hermoso. Las llamas blanquitas, las yerbas mágicas y las vibraciones de Macchu –

Picchu.

[...]

MONA – Eu só quero uma coisa: que baixe um disco-voador e me leve para longe

desta mesma ci-vi-li-za-ção de pessoas cinzentas.

LEO (Hesitando) – Eu... eu acho que eu queria conseguir ver as coisas um pouco

mais...

MONA (Tentando ajudar) – Bonitas?

LEO (Com um suspiro) – É. Bonitas. (Bebe). 17

Fim do Segundo Ato

17 Extraído de “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora” (ABREU, C. 2009: 81).

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TERCEIRO ATO

O CAMINHO

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(Estrada no campo. Árvore. Entardecer.

Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas mãos,

gemendo. Para, exausto; descansa ofegante; recomeça. Mais uma vez.

Entra Vladimir.)

ESTRAGON (desistindo de novo) – Nada a fazer.

VLADIMIR (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) – Estou

quase acreditando. (Fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Vladimir, seja razoável,

você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. [...] 18

CALÇAR-SE “COM AMBAS AS MÃOS”

Caminhar... E ver que vale a pena. O trecho extraído da obra “Esperando Godot”19,

permite que configuremos durante nossa narrativa que discorrerá por esse capítulo, quantas

idas e vindas foram necessárias. Cabe aqui então refletir sobre uma analogia possível que a

citação nos permite, sendo que o fragmento se trata de um texto escrito por um dos grandes

nomes do Teatro do Absurdo. Vladimir e Estragon representam o homem em uma eterna

espera: espera do que está por vir... E virá?

Ao observar o comportamento humano e o colocar em cena, o Teatro do Absurdo

esmiúça a relação das pessoas e seus atos em tais relações. Existencialista ao extremo, essa

forma de teatro critica a falta de criatividade do homem, que condiciona sua vida àquilo que

julga ser o mais fácil e menos perigoso, se negando a ousar e a outras formas de pensar

(BRECHT, 2005). Diante desse paralelo, passa-se a pensar no movimento, no qual tenta-se

(sem descalçarmo-nos com ambas as mãos) buscar um significante para a prática de leitura

nas escolas por intermédio do texto teatral; algo diferente, que de diferentes formas acarretou

a criação de caminhos.

18 Trecho do texto teatral “Esperando Godot”. (BECKETT, S. 2005: 17, 18) 19Obra de teatro escrita por Samuel Beckett, dramaturgo de grande representação do teatro do absurdo.

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O(s) caminho(s)

Caminhar sempre é bom. Ainda mais quando se quer pisar com vontade. “Dorothizar”

e seguir caminhos de pedras amarelas é sempre uma boa pedida, mostra viva temos em “O

Mágico de Oz”20: ao tempo que Dorothy caminha, abre novos e tantos horizontes que

convidam e nos convidam a querer mais, ainda mais quando se ouve de caminhos há tantos

bons anos.

Para tratar do caminho, então, caminhemos!

O caminho inicial não tinha placas. Vir para a Faculdade de Educação da UNICAMP

era um caminho desconhecido, um rumo novo de novo a ser dado. Bem, nos caminhos

encontramos caminhantes já com longas jornadas, comigo não foi diferente: encontrei (ou ele

me encontrou, ou, nos encontramos... Encontros) e esbarramos, e espalhamos de nossas

mochilas novos olhares. Lembro-me da entrevista para entrar no mestrado quando meu futuro

orientador caminhante me perguntou “A arte é meio ou finalidade para a educação?” sorri

com os olhos, e, ao recolhermos os espalhados de nossas mochilas, trocamos sem querer

alguns pertences e estamos ainda e ainda bem a nos destrocar.

Caminhos têm pedras, Drummond já nos tropeçou em versos sobre elas e não são elas

mais surpresas, são esperas. O caminho continuou, pois começar talvez ele nunca comece e

nunca termine, ele se faz caminhando, ando, ando, e salve o gerúndio para nessa hora

expressar tão bem o caminho.

A pergunta para tanta perna sempre foi: “Como pode o texto teatral estar em cena nas

salas de aula?”, porém, os caminhantes que queríamos encontrar no caminho é que foram

mudando. De início, a ideia era levar textos de teatro para uma sala de 4º ano da rede pública

de ensino e, por jogos e vivências teatrais, viver esses textos com leituras diferenciadas

(também não sabia ainda como seria, afinal, estava caminhando), para depois evidenciar se a

produção textual dos alunos envolvidos com tais atividades teria alguma mudança com

produções anteriores.

Mudamos o caminho!

Então, apareceu durante um trabalho realizado em uma disciplina da Pós-Graduação

de Seminários com o grupo ALLE (vem à minha boca o gosto do bolo de laranja dessas aulas

20 Filme lançado em 1960, baseado na série de livros de L. Frank Baum.

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deliciosas), durante um levantamento bibliográfico, o conhecimento de que existe um

programa na Secretaria do Estado de Educação, intitulado “Programa de Apoio ao Saber”21

que oferta a alunos (do 5º Ano ao 3º Ano do Ensino Médio) da Rede Estadual de Ensino, logo

no início do ano, um kit com três livros de literatura e, para nossa surpresa, esses kits eram

compostos por textos de gêneros dramáticos. Bom, isso nos deu um ar maior; afinal, que

maravilha era saber que textos de teatro estavam circulando nas escolas, e principalmente nas

mãos de cada aluno que levava para sua casa esses livros. Mas, ao mesmo tempo que o ar

tornou-se leve, também faltou. Afinal, como estariam sendo trabalhados, se estavam, os textos

teatrais com os alunos na escola? Na verdade, essa é uma questão que ultrapassa o gênero

dramático, pois como está a leitura sendo trabalhada nas escolas é um caminho com pedras e

mais pedras a percorrer, mas, como nos atentávamos ao texto teatral, nossa indagação firmou-

se aí. O caminho passou então a ser na ideia de encontrar caminhantes que trabalhassem com

esses textos nas escolas. Nas salas de aula os alunos estavam sendo presenteados com livros

de autores consagrados, atenho-me a elencar alguns títulos de gênero dramático que

circularam nas escolas no ano de 2010:

· 7ª ANO - PROMETEU / ALCÉSTE – ÉSQUILO, EURÍPEDES;

· 8º ANO: O TARTUFO OU O IMPOSTOR – MOLIÈRE;

· 9º ANO: O PAGADOR DE PROMESSAS – DIAS GOMES;

· 1ª SÉRIE ENSINO MÉDIO: MORTE E VIDA SEVERINA – JOÃO CABRAL DE

MELLO NETO;

· 2ª SÉRIE ENSINO MÉDIO: ELES NÃO USAM BLACK-TIE – GIANFRANCESCO

GUARNIERI;

· 3ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO: CASA DE BONECAS – HENRIK IBSEN.

É bom, em meio a pedras, tropeçar em flores pelo caminho, e ao me deparar com

títulos assim e sabê-los no cenário educacional, certamente minhas pernas ganharam mais

força para caminhar. Queríamos saber ao certo quais títulos além desses estariam (pois a partir

do momento que tivessem estado não deixariam o ambiente mais, em essência) nas escolas,

afinal, o programa “Kit Apoio ao Saber” está em funcionamento desde o segundo semestre de

21 Programa do Governo do Estado de São Paulo que distribui livros para alunos do Ensino Fundamental (Ciclo

II) Ensino Médio, desde o ano de 2010.

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2008. Ligações para Secretaria de Educação do Estado de São Paulo foram feitas, junto com

trocas de emails em primeira instância para pedir exemplares dos livros que compõem o “Kit

ao Saber”. Fora dado um direcionamento para que essa petição fosse feita para a Secretaria

mais próxima de minha cidade, no caso a Secretaria de Educação de Araraquara (cidade

vizinha à Matão). Estive pessoalmente na Secretaria. Algumas pilhas de livros do Programa

existiam, isso até mesmo de anos passados, mas não podiam ser cedidos; alegou-se que tal

material era de destinação das escolas e seus alunos. Com o sopro de poeira que voara dos

livros empilhados e silenciados nas estantes, voltei o caminho em marcha ré com os olhos

embaçados. Então, o contato retornou à Secretaria de São Paulo. Por três emails solitários,

monólogos diria eu, enviei pedindo apenas o título dos livros que incorporaram até então o

“Kit”. Silêncio! Mais silêncio! E ecoou um vazio de respostas. Caminhos têm dessas coisas.

Depende do lugar que você grita, você só ouve a si mesmo, resquícios de um Eco Tagarela

mitológico por aí.

Caminho dado é pra ser caminhado! Continuamos... O rumo não mudara, mesmo

diante dos rumores... Porém, dentro daqueles pertences trocados entre as mochilas minhas e

de companheiro, o caminhante de longa jornada, parei pra tomar sombra embaixo de uma

árvore dessas aí, e não seria senão em um livro, a abertura de um novo caminho. Roger

Chartier nos deu nova passagem. Alías, honra nossa sermos caminhantes ao lado de um

edificador de caminhos. Em seu livro “Do palco à página” passei meus olhos saborosamente

em momentos de se ver a transposição do teatro descolado das linhas para a vida, e trombei

com Molière que me disse assim:

Il n’est pas nécessaire de vous avertir qu’il y a beaucoup de choses qui

dépendent de l’action: on sait bien que les comédies ne sont faites que pour être jouées; et je ne conseille de lire celle-ci qu’aux personnes qui ont des yeux pour découvrir dans La lecture tout le jeu du théâtre. (2002: p. 53, 54)

Sou caminhante de poucas línguas, mas Chartier o traduziu para mim.22

Tomado minha sombra! Levantei, mas não consegui sair do lugar. Minhas pernas não

me diziam de ir nem vir. Fincaram-se! Ali! Talvez minhas pernas já sabiam o caminho de

seguir, mas eu ainda não. Abri o livro, olhei firme nos olhos de Molière e Chartier soprou nos

meus ouvidos: “É por ali!”. Desloquei-me e fui à rumo, com olhos fechados sabia o lugar.

22 É desnecessário adverti-los que existem neste texto muitas passagens que dependem da atuação. É sabido que

as peças só são feitas para serem representadas, e eu só aconselho a leitura desta às pessoas que têm olhos para descobrir, pela leitura, todo o jogo teatral.

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Trombei com meu companheiro caminhante e disse: “Foi de você que peguei esse caminho,

vamos por ali?” Como o tinha feito no primeiro encontro, dessa vez fora ela quem sorriu com

os olhos. Novo de novo caminho!

Se queríamos falar de como trabalhar textos de teatro nas escolas, Molière nos fez

pensar, através de Chartier, de que ninguém melhor para tratar sobre como se lê o teatro do

que quem trabalha em contato direto com ele: grupos de teatro.

E é então que me refiro sobre “quando se ouve de caminhos há tantos bons anos” nas

primeiras linhas desse relato. Eu vivo teatro desde meus 11 anos de idade, de lá pra cá,

sempre busquei conhecer e me banhar de tantos grupos e palcos por todo esse Brasil. A

oportunidade de caminhar rumo aos trilhos de grupos de teatro e conhecer seus processos de

produção teatral, desde o primeiro contato com um texto até a finalização da montagem de um

espetáculo, realmente me deixava em êxtase. Pensamos, então, em três grupos de teatro muito

significativos e com trabalhos ricos e interessantes que, certamente, alimentariam a nossa

estrada. O Grupo XIX de Teatro (SP), O grupo Ventoforte (SP) e o Grupo Galpão (BH). A

primeira ideia era atentarmos para uma produção específica de cada grupo. Entraríamos,

então, sobre estudos dos seguintes processos de montagem: “Arrufos” (Grupos XIX de

Teatro), “História do Barquinho ou Um Rio que vem de Longe” (Grupo Ventoforte) e

“Romeu e Julieta” (Grupo Galpão), porém, e deliciosamente porém, os caminhos mudam.

Ao entrar em contato com os grupos para agendar as possíveis entrevistas com os

diretores de cada espetáculo de imediato, senti-me abraçado. Os vários e vários emails

trocados com Janaina, Juan e João23 dariam por si um grande espetáculo e fomos então

ilustrando meu calendário com as datas coloridas que foram ao lado de pessoas que respiram

criação.

No início de abril de 2011 caminhei para São Paulo. Instalei-me na casa de uma amiga

que já havia caminhado comigo há muito tempo atrás, quando fazíamos cursinho para

ingressar na universidade. Com ela já havia compartilhado tantos sonhos e ser recebido nas

escadas do metrô Consolação com seu sorriso já foi um grande combustível para os dias que

viriam. Ivi (minha amiga caminhante de tempos atrás) me cedeu um cômodo do seu

apartamento que se tornou meu “lar doce lar” por duas semanas. Junto a tudo que estava

agendado para coleta de dados com os grupos XIX de Teatro e Ventoforte, São Paulo me

23 Janaína é atriz e produtora do Grupo XIX, Juan é ator e produtor do Grupo Ventoforte e João é produtor do

Grupo Galpão.

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ofereceu vários espetáculos que assisti, e a produção na busca pelas ruas do Brás e Três Rios

atrás de brechós e lojas de tecidos que comporiam os figurinos dos personagens do espetáculo

“Bodas de Sangue” que dirigia e que estrearia dali a dois meses com a Cia Labirinto Teatro,

na cidade de Matão.

Em uma tímida sexta-feira com a garoa cartão postal, trilhei rumo ao Belém,

Belenzinho. Aos poucos, a São Paulo que nos engole foi desaparecendo e em cada rua que eu

virava não havia mais prédios, poucos carros, uma charrete passando, pássaros pudiam ser

ouvidos... Estava eu na Vila Maria Zélia, ou estava eu no século XIX? Estava eu às portas da

sede do Grupo XIX, um vilarejo onde haviam morado operários e no Galpão Armazém n. 09

o cheiro de café com rosquinhas de confeito açucarado me diziam bom dia, junto ao Lubi,

Janaína e Juliana.24

Fachada da sede do Grupo XIX de Teatro

Na cozinha com as meninas conversamos muito sobre o XIX, sobre teatro, educação,

enfim, sobre linhas que enviesavam as linhas do que queria saber, se bem que, a essa altura,

querer saber era um tanto quanto pretensão, queria ouvir e ouvi vozes de verdade que falam e

pensam um teatro de verdade.

Me despedi com uma sessão de fotos e um convite para retornar no domingo para,

além da entrevista com Lubi, assistir ao espetáculo “Aquilo que meu olhar guardou para

24 Lubi (Luiz Fernando Marques) é diretor e cocriador dos espetáculos do grupo XIX e Janaína Leite e Juliana

Sanches são atrizes do grupo XIX.

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você” de um grupo de Recife que estava sendo dirigido pelo Lubi. Convite mais que aceito.

No domingo, agora com sol, retornei com um amigo (Daniel, também de tantos caminhos

atrás) que me acompanhou nas empreitadas culturais por São Paulo. Então o convidei para ir

ao teatro no XIX comigo. Sol baixando e a Vila Maria Zélia aparecendo sem arranha-céus...

Uma São Paulo do XIX se pintava mais uma vez.

Lubi, na correria de se apresentar às 19:00 horas, ainda conversou comigo por quase

duas horas anteriores à apresentação. Um diálogo de descobertas que me abriram tantos

outros olhos além dos que eu já havia chegado e que renderam em análises do próximo

capítulo que, além de estarem estreitadas teoricamente, esvaem sentires meus, de além

pesquisador, mas educador, artista e, acima de tudo, ser humano.

Uma noite de lua branca, que fechou com uma apresentação teatral que falava São

Paulo e que nos tirou o ar em uma cena memorável onde todo o ar do mundo estava em um

sapo inflável... Teatro tem dessas coisas... Dessas mágicas!

Em meio aos encontros com o XIX, lá no SESC Ipiranga, do outro lado do mapa o

vento soprava. Fazia tempo que não era embalado pelos tambores do Ventoforte, a última vez

que os tinha visto foi em 1999 em Matão. “As quatro chaves” abria caminhos e convidava,

embaixo de alguns pés de árvores, crianças e adultos a se sentarem no cair da tarde e

procurarem por tantas chaves que os trancam dentro de si mesmos. O Ilo25 estava lá, o grande

caminhante, agora já com três pernas, mas em cena, ele levava as crianças para um lugar que

nós adultos não conhecemos: só elas e o Ilo sabem chegar lá. Fim do espetáculo, na verdade

não, existem espetáculos que não têm fim, eles vão embora com a gente pra casa, e esse foi

assim, pois bem, fui conhecer o Juan e abraçar o Ilo. Marcamos nossos dias na semana lá na

Casa Ventoforte.

25 Ilo Krugli é fundador, ator e diretor do Grupo Ventoforte.

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Fachada da sede do Grupo Ventoforte

Dias marcados, chuva e chuva e chuva... Acompanhei a ensaios da “História do

Barquinho ou Um rio que vem de longe” e também, processos de criação de “Alameda da

Saudade”. No final de todos ia falar com Ilo, queria marcar nossa entrevista. Ele dizia que

queria tempo, que queria e tinha tanto pra falar... Tanto tempo escapou e eu voltei de São

Paulo, marcando retorno apenas para fazer a entrevista com ele, um dia certo, exato.

Retornei. Chuva e chuva e chuva... Cheguei ao Ventoforte e não havia ninguém...

Muito vento sopra longe... Talvez Ilo já tenha me dito muito só com olhos e eu infelizmente,

fiquei sem tê-lo no meu quadro de análises, pois a academia nos concede relógios. E Ilo não

tem um caso terreno com ponteiros. Os deles são diferentes. Ficou à vontade, o desejo pela

palavra, mas a satisfação de ter vivido momentos ao lado.

De São Paulo para Belo Horizonte. Cheguei com passos tímidos na casa de amiga

(ainda bem que eles existem, os amigos), Ester, que, em todo almoço, me oferecia uma

especiaria mineira pelas mãos mágicas de Ivete. Ester é das artes, então nossa língua se

afinava. Saímos, fomos a teatros, museus, danças... E um dia, no marcado, subi a ladeira da

Rua Pitangui em um dia de agitação... Estamos agora tratando de estrelas de 30 anos, e eu

cheguei no Galpão na semana das festividades.

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Fachada da sede do Grupo Galpão

Entrei na sede do grupo e o João, meu amigo de longos emails, me recebeu com todo

carinho, apresentando-me a toda equipe. Era o dia da cobertura da imprensa sobre os 30 anos

do Galpão. Todos os atores estavam lá e dos táxis não paravam de descer jornalistas do rádio,

de jornais e televisão. Eduardo26 abre as palavras e eu em meio a câmeras, flashs e luzes,

sentei-me e senti-me um privilegiado de antemão. Uma hora e meia de cobertura finalizadas

com pães de queijo, sorrisos e abraços.

No dia seguinte não tinha mídia. Era eu, os atores e os ensaios de Romeu e Julieta.

Pelos cantos da sede do Galpão sempre estava em pequenas conversas com os atores. Era eu o

“gatinho” de Teuda Bara, que contava aos quatro ventos histórias de suas andanças, delícias

para os ouvidos. Inês Peixoto queria saber do trabalho que estava desenvolvendo e por aí

fomos. De canto em canto descobrindo encantos.

Ao vê-los humanos, aquecendo-se para o ensaio, corpo, voz e alma, quando ouvi “Flor

minha flor, flor vem cá, flor minha flor, laialaialaia” percebi naquele meu cantinho destinado

aos quatro dias que os acompanhei nos ensaios de Romeu de Julieta, senti que todas as flores

eram pra mim, as fiz tornarem-se especialmente para mim.

Além dos presentes até então, deram-me mais um: convidaram-me para viajar com

eles para uma cidade vizinha (Bom Despacho) onde iriam apresentar o espetáculo “Till: a

26 Eduardo Moreira é um dos fundadores, ator e diretor do Grupo Galpão.

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saga de um herói torto”. Não pensei duas vezes e fui. Fiz minha reserva no mesmo hotel que o

deles e fui de ônibus com todo o elenco. Eduardo estava sem tempo para a entrevista,

também, fui eu chegar na semana de comemorações, então, nossa conversa se deu no ônibus,

indo pra Bom Despacho. Bom, despachamo-nos pela estrada, liguei o gravador e

conversamos. Eduardo tem um brilho nos olhos, mesmo cansados, quando fala de teatro e do

Galpão. É fascinante vê-lo em entrega diária para a arte, e com ombros cansados, hasteia a

bandeira e a trepida com força. Me contou sobre os caminhos do Galpão, sobre os novos

caminhos nascentes durante toda a trajetória, sobre idas e vindas, ganhos e perdas, dores e

alegrias... Sobre a vida em funcionamento como somente a arte e seus artistas conseguem vê-

la. Fez-me olhar como pesquisador e também como artista... Assumir e aceitar as pedras do

caminho na tentativa de sempre removê-las ou ainda de viver com elas. Trouxe um olhar

sobre a educação basilar no viés artístico e fez com que eu respirasse mais ainda a crença da

arte e educação caminhantes aos pares.

Chegamos a Bom Despacho. Almoçamos. Teuda me deixava com água na boca,

lembrando-se do cozido que havia feito e deixado em casa. Simone Ornellas fora uma grande

prosa. Trocamos várias vivências e ela me fez acreditar na arte viva no interior dos estados.

Devo quem sabe a ela um novo olhar sobre o teatro nascente no interior. Chegamos à praça,

testaram o som, os instrumentos, microfones e foram para o camarim, e eu junto, sempre

junto, insistentemente junto. Maquiaram-se, trocaram-se, aqueceram-se e na hora da rodinha

antes de irem pra cena, me chamaram para a troca de energia. Sorri e corri. Ao lado de Teuda

e Inês sentia a energia de todos, de um grupo, de um Galpão que se consolida em uma força

coletiva. Sorte mesmo era a minha de estar com eles por uma semana.

Apresentados. Jantamos. Simone e eu tomamos uma caipirinha que nos faria dormir

por três dias seguidos. Teuda contava do tempo que dava aulas, uma revolucionária que

burlava até mesmo o café e o levava de casa para a sala dos professores. Fomos dormir... Eu

não! Fui sonhar!

Amanhecemos com um digno café da manhã com três tipos de pães de queijo, coisas

de Minas. Partimos. Na volta conversei com Teuda, que trouxe um depoimento sobre uma

estrada de Galpão que nos saltam aos olhos. Cada palavra sua era um pedaço de sua vida bem

sentida. Relatou sobre as mudanças de Romeu e Julieta, sobre quando Wanda Fernandes

sofreu um acidente e veio falecer. Sobre os novos olhos que se mudam a toda montagem e

que “o espetáculo nunca pode parar”. Arildo de Barros trouxe uma conversa branda, pontual e

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digna de reconhecer como a arte transforma... Enfim, senti-me membro de uma família. Os

filhos dos atores no ônibus brincavam de bola e todos eram uma família... A família Galpão,

que tive o prazer de ser um primo distante que visita nos finais de outono.

Caminhei e caminhar é descobrir, redescobrir. Os passos foram mudando, as pernas

ficaram fracas, fortificaram-se, tudo seguindo o rumo normal da vida, as surpresas...

Surpreendi-me com tanto e também surpreendi. No retorno passei pelo caminhante de longa

jornada e na troca das figuras, percebemos que tínhamos dois materiais ricos e tão ricos eram

mais por trazerem grandes diferenças. O Grupo Galpão transporta o teatro da página para o

palco, o Grupo XIX inverte, faz o texto sair dos palcos e ir para as páginas.

Uma pesquisa convida aos pesquisadores, pesquisados e leitores, um traslado de longa

viagem empreendida por um sujeito cujo olhar vasculha lugares muitas vezes já visitados.

Nada de absolutamente original, mas com um olhar único; afinal, ao pesquisar debruça-se

sobre uma própria ótica arraigada de tantos outros olhos. Assim, são novos olhos, que serão

lidos por outros olhos.

O ato de escrever um relato de pesquisa, como essa dissertação de mestrado, nunca

trará em si toda a sinestesia proporcionada para quem a viveu de fato. Cheiros, gostos, toques,

sorrisos ficam na memória de quem viveu, e viver uma pesquisa de tato de (con)tato, ainda

mais com artistas, como o caso do objeto de estudo em questão, a efemeridade se torna

factual, e sente-se a todo tempo ao tempo que se recorda.

Essa é uma pesquisa qualitativa e as entrevistas têm caráter semi-estruturado, outro

caminho seria uma emboscada, afinal, se vamos lidar com educação e arte com artistas,

pontuamos já da efemeridade do momento, tudo está a todo tempo a par de mudanças, de

sentires, a engrenagem dos artistas e, porque não, a engrenagem da humanidade.

BOGDAN & BIKLEN (1994) aludem a este tipo de pesquisa em seus estudos, e torna-

se significativo oferecer aos leitores dessa pesquisa, a visão desses pesquisadores sobre a

relação que se estabelece entre o investigador e o sujeito entrevistado (termos que os próprios

elencam):

O objectivo do investigador é o de compreender, com bastante detalhe, o que é que (...) pensam e como é que desenvolveram os seus quadros de referência. Este objectivo implica que o investigador passe, frequentemente, um tempo considerável com os sujeitos no seu ambiente natural, elaborando questões abertas (...) registrando as respectivas respostas. O carácter flexível deste tipo de abordagem permite aos sujeitos responderem de acordo com a sua perspectiva pessoal, em vez de terem de se moldar a questões

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previamente elaboradas. Na investigação qualitativa não se recorre ao uso de questionários. Ainda que se possa, ocasionalmente, recorrer a grelhas de entrevista pouco estruturadas, é mais típico que a pessoa do próprio investigador seja o único instrumento, tentando levar os sujeitos a expressar livremente as suas opiniões sobre determinados assuntos. (p. 14)

A entrevista pode ser considerada uma forma de interação entre duas ou mais pessoas.

Um diálogo, uma conversação dirigida a um jogo de representações que não se findam na

conversa do momento que ela acontece, vai além. Vai ao ponto do depois, do contato com o

texto transcrito e ressignificado por percepções que se tangem à guisa do que se busca a

priori, e se descobre frente ao que se apresenta a posteriori. É uma forma de interação social

que valoriza o uso da palavra, símbolo e signo privilegiados das relações humanas, por meio

da qual os atores sociais constroem e procuram dar sentido à realidade que os cerca (Flick,

2002; Jovechlovitch & Bauer, 2002).

Passo, então, a dar o gosto do processo de coleta de dados, que se estreitam nos

escritos acima de Bogdan & Biklen: processo de troca e construções de tessituras dialógicas,

que passeavam pelos ares e foram capturadas no momento – efêmero – como não poderia

deixar de o ser.

XIX

Elenco: Entrevistador/ Lubi/ Janaína/ Juliana/ Amigo

Primeiro Ato

(A cena se passa na Vila Maria Zélia, antigo bairro e um dos primeiros de operários fundado

na cidade de São Paulo, no bairro do Belenzinho. Lá é hoje uma São Paulo de ontem. Não se

vê prédios e se escuta o canto dos pássaros. É o dia 13 de abril de 2012. Vindo ansioso de

uma ânsia que não se sabe de, vem o Entrevistador, acaba de deixar o ônibus circular que

pegara ao sair da Estação de Metrô “Belém”. O entrevistador pede informação para um

jovem, indagando-o sobre onde fica a sede do Grupo XIX de Teatro. O jovem indica com a

mão direita pra seguir em frente, na mão esquerda segura seu currículo, pois participará dali a

pouco de uma entrevista de emprego, está ansioso. Agora são dois ansiosos na Rua dos

Prazeres, tanta ansiedade suscita o pedido de um cigarro. Cada um segue para seu lado. O

Entrevistador adentra uma guarita, pede a certificação do local que lhe é cedida por um

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guarda. Várias construções antigas, como se fossem fábricas configuram o ambiente. Uma

praça tem dois senhores jogando cartas, algumas crianças cruzam a cena em uma corrida para

brincar no balanço de uma árvore. Um encontro de senhoras acontece ao lado da Capela,

lembra uma novena, há bolos, devem estar festejando algum dia santo. Ao lado, um portão de

madeira com cadeado passado tem acima o letreiro “Armazém Nº 9. O Entrevistador senta no

banco da praça, apreensivo e começa a testar seu material de trabalho. Câmera fotográfica, de

filmagem, gravador de áudio. Um cheiro de café fresco invade a cena. São 10 horas da

manhã).

Entrevistador: (desajeito com seu material) Dez horas! A Janaína marcou dez e meia

(Revendo um papel em sua mão, lendo). Discussão, pontuações, questionário geral,

específicos...

(Acende um cigarro. Olha o tempo passar de uma cidade paralela a São Paulo, com trejeitos

de um tempo onde o tempo existia. Barulhos de correntes cortam a pasmaria do vilarejo. A

corrente da porta “Armazém Nº 9” balança. Aparece Lubi).

Entrevistador: (levantando) Oi! Bom dia! Você é o Lubi, certo?

Lubi: Sim! Bom dia!

Entrevistador: Eu sou o...

Lubi: O aluno da Unicamp, certo?

Entrevistador: Isso! Juliano.

Lubi: Isso, Juliano! Janaína falou... Elas devem estar chegando... Entre aí, se quiser sentar,

fique a vontade, preciso arrumar umas coisas pro ensaio que vou ter a tarde, mas fique à

vontade.

Entrevistador: Obrigado!

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(Lubi sai. O Entrevistador começa a olhar o que está em sua volta. Fotos, cartazes, figurinos,

adereços, quadro de horário de ensaios, tudo parece ter carinho, como se fosse feito com

carinho e esse se tornou e se tomou por si. Senta em um sofá antigo com algumas almofadas

coloridas. O tempo começa a entrar em espécie de aceleração. Como se tudo fosse muito pra

ver, como se o momento merecesse ser eterno. Entra Janaína e Juliana, trazem alguns

confeitos nas mãos).

Janaína: Bom dia, bom dia!

Entrevistador: Janaína? (Janaína acena com a cabeça que sim) Sou o Juliano...

Janaína: Prazer, Juliano! (trocam beijos de cumprimento) Conseguimos marcar, então. Ainda

bem. Essa é a Ju. (Entrevistador e Juliana trocam beijos de cumprimento).

Juliana: Tudo bem? Você já conheceu o Lubi?

Lubi (em off) Já!

Juliana: Que bom... Vamos fazer um café, trouxe uns docinhos, daí a gente conversa mais à

vontade.

Entrevistador: Maravilha! Adoro um cafezinho.

(Entrevistador, Janaina e Juliana vão a cozinha. Juliana prepara o café com leite enquanto

Janaína arruma a mesa).

Janaína: Essa bolachinha é uma delícia. Experimenta! (Dá uma ao Entrevistador).

Entrevistador: (comendo) Boa mesmo. Ela derrete na boca.

(Juliana e Janaína conversam sobre editais, viagem que farão à Itália para apresentações,

enquanto preparam o café. O Entrevistador está sentado assistindo à cena que parece

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cotidiana, com o assunto cotidiano, com o café cotidiano. Terminam de arrumar a mesa do

café. Os três sentam-se e se servem).

Juliana: Você estuda teatro?

Entrevistador: Não... Bem, na verdade estudo teatro há 14 anos, faço teatro há 14 anos, sou

também pedagogo, e estou fazendo mestrado na Unicamp em Educação na área de leitura e

assim trabalhando com texto teatral.

Janaína: Lembro que você me escreveu o email falando isso. Que bom! Vamos lá... Vamos

conversar sobre tudo isso aí, e tudo isso daqui também.

(Sobe a música. Durante o diálogo que dura aproximadamente uma hora trocam

conhecimentos e reflexões sobre a educação, o teatro, a leitura, o texto teatral, o teatro na

escola, a prática de leitura dramática nas escolas... Aparentam proximidade e permissão de

pontos de vista que se completam advindos de parcelas formativas díspares, mas que suscitam

um diálogo que se homogeniza ao longo da conversa. O café e os biscoitos vão desaparecendo

da mesa ao tempo que novas questões aparecem em suas cabeças, soltas e capturadas no ar).

Entrevistador: E o Lubi. Será que consigo falar com ele ainda hoje?

Janaína: Não sei... Ele está meio atarefado com ensaio pra hoje à tarde. Ele tem apresentação

amanhã e domingo... Mas vamos lá ver.

Entrevistador: Que delícia conversar com vocês.

(Abraçam-se. Parece que se agradecem pela troca de informações e de sensações. Vão a outra

sala, a sala de espetáculos. Algumas arquibancadas espalhadas pelo espaço. Lubi está sentado

em uma cadeira e faz apontamentos em algumas páginas que tem as mãos. Está concentrado

no que faz).

Janaina: Lubi... Juliano queria te entrevistar. Tem como hoje?

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Lubi: (de cabeça baixa) Hoje não dá.

Janaína: E quando pode ser?

Lubi: Semana que vem... Terça-feira.

Entrevistador: Tenho entrevista a partir de segunda-feira com o Ventoforte.

Lubi: Domingo. Antes da apresentação. (Levanta e vai ao encontro do Entrevistador) Você

vem aqui lá pelas cinco da tarde, a gente conversa e daí você já assiste a peça.

Entrevistador: Ok! Domingo estou aqui.

(Abraços, fotos, diálogos tantos entre figurinos e personagens que rondam em essência a cena.

O entrevistador pega o caminho de volta para São Paulo, porque ali onde estava poderia ser

qualquer coisa que não lembrasse São Paulo dos dias de hoje).

Fim do Primeiro Ato

Segundo Ato

(É 15 de abril de 2012. O sol começa a findar ao tempo que o Entrevistador junto de um

Amigo deixam a Rua Augusta com destino ao Belenzinho. Descem na mesma estação de dois

atrás, pegam o circular com o mesmo motorista de dois dias atrás, que não cobra uma das

passagens por sabe lá Deus o que. Descem na Rua dos Prazeres rumo à Vila Maria Zélia. A

cena é deslumbrante. Andorinhas cortam o céu de uma fiação a outra bailando em aplausos o

sol que se despede lindamente no fim daquela tarde de domingo. Chegam na Vila e tudo é

silencioso. Os dois sentam no mesmo banco. Uma senhora atravessa a cena, levando um prato

de alguma guloseima para a vizinha. As folhas das árvores dão os acordes da noite que se

aproxima. Venta muito, assobios titubeantes no ar oscilam e brincam de se compor em um

lugar, lugarzinho, onde São Paulo ainda pode ser visto devagar, em detalhes. Lubi estaciona

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seu carro vermelho abre as portas do “Armazém Nº 9”, vê o Entrevistador, acena um “oi” e o

convida pra entrar. O Entrevistador diz ao Amigo para esperar e entra. Lubi está ao telefone,

sentado.

Lubi (ao telefone): Isso, às 19:00 horas. Reservado. Beijos.

Entrevistador: Oi, Lubi. Boa noite!

Lubi: Juliano, tudo bem? Sente aí... Precisamos começar rápido, os meninos estão ensaiando

ao lado... Vamos ter que conversar na correria. Eles ensaiando, telefone tocando, eu

atendendo, gente chegando, tem problema?

Entrevistador: Não, nenhum! Posso arrumar o material da entrevista?

Lubi: Claro! Fique à vontade.

(O Entrevistador tira o gravador e a filmadora de uma bolsa, ajeita sobre a mesa, testa o

material. Enquanto isso, Lubi atende o celular).

Entrevistador: Pronto! Podemos começar?

Lubi: Vamos lá!

(Sobe a música. Durante aproximadamente quarenta minutos os olhos do Entrevistador

brilham diante do percurso e da percepção sensível que Lubi mostra em suas palavras, pela

arte e pela educação, pelos pareceres emergenciais de leitura não apenas na escola, mas no

Brasil. Pela vinda bem vinda do texto teatral nas escolas, pela vida bem vinda de quem vive

arte em completude. ANEXO II).

Lubi: Você fica pra assistir à peça, não é?

Entrevistador: Sim! Já comprei meu ingresso.

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Lubi: Bom, nos vemos agora lá, então. Obrigado. Espero ter ajudado.

Entrevistador: E como. (Se abraçam. Já disseram tudo).

(Lubi vai para a sala de apresentação e o Entrevistador para a praça. Senta ao lado do Amigo).

Amigo: E aí... Como foi?

Entrevistador (inerte): Foi!

(Os dois conversam sobre a entrevista e se apressam para entrarem na sala do teatro. Um

vídeo passa no saguão de espera antes de entrarem para a sala de apresentação. Esse vídeo

(ANEXO IV) traz imagens da trajetória do Grupo XIX, em meio a barulhos de porcelana que

se estalam em xícaras de café e pires que os telespectadores têm às mãos e degustam antes de

assistirem ao espetáculo. Vão assistir a um espetáculo dirigido por Lubi “Aquilo que meu

olhar guardou para você”, com um grupo de Recife. As portas do teatro se fecham, vai

começar o espetáculo. Tantas outras portas se abrem, vai começar o espetáculo).

Fim

GALPÃO

Personagens: Entrevistador/ João/ Eduardo/ Teuda/ Mulher

Primeiro Ato

(A cena se passa em Belo Horizonte, mais precisamente na Rua Pitangui, localizada no bairro

Sagrada Família. É dia 07 de maio. Uma chuva anuncia a chegada ainda timidamente. São

duas horas da tarde, porém o dia se diz cinza em nuvens carregadas de anunciação. Uma rua

íngreme é avistada pelo Entrevistador. Íngreme em proporção de dar a sensação de falta de

gravidade, onde a qualquer passo próximo se possa tombar para trás. Está frio. Pessoas cortam

a cena com passos rápidos, enquanto um grupo de homens toma cerveja e come pastel no bar

da esquina. Um prédio antigo e de um azul cintila chama a atenção no início da rua. Tem em

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sua parede, em azulejos trabalhados com lembranças barrocas, a descrição “Galpão Cine

Horto”. O Entrevistador adentra o espaço, e é recebido por uma fotografia do tamanho de

meia parede. Na foto, uma mulher se maquia em tons preto e branco e sorriso pueril. Leve e

convidativa a fotografia parece te dizer “Seja bem vindo”. Uma Mulher se aproxima).

Mulher: Pois não?

Entrevistador: Boa tarde! Grupo Galpão é aqui?

Mulher: Sim, é aqui. Mas aqui é o Cine Horto. Eles ensaiam lá em cima. Aqui na mesma rua,

mas duas quadras pra cima.

Entrevistador: Ah, sim... Obrigado!

(Um sorriso responde à informação. O Entrevistador olha a rua que irá subir. Aquela que lhe

transmitia a sensação de queda caso a gravidade lhe faltasse. Toma fôlego e passos. Uma

senhora estende roupas íntimas no varal em frente a sua casa, em vão, afinal a chuva se

prenuncia. Dois quarteirões andados com a fadiga de um quilômetro, novamente surgem os

azulejos barrocos, agora com a descrição “Grupo Galpão”. As portas estão abertas. Um lugar

simples, mas que emana energia desde sempre. Fotografias na parede tentam dar cronologia a

uma história, uma longa história. Troféus se multiplicam em um balcão. Tudo muito junto,

muito próximo, muito barroco. Não há ninguém, mas há presença o tempo todo de algo, de

alguém, de sabe-se lá o que. Risos cortam a cena advindos de outro lugar ao tempo que o

barulho de passos apressados também são ouvidos. Há uma escada no lado. Dela desce João

que topa com o Entrevistador).

João: Opa! Bom dia!

Entrevistador: Bom dia! Eu sou o Juliano, aluno da Unicamp... Falei com o João do Grupo

Galpão...

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João: Olá, Juliano! Eu sou o João. Então, você é o Juliano. Seja bem vindo. Fez boa viagem?

Chegou hoje?

Entrevistador: Sim, fiz boa viagem, sim. Não, não cheguei hoje, não. Cheguei na sexta-feira.

João: Maravilha! Então, Eduardo está aí... Espere aí que vou chamá-lo para te apresentar.

(João sobe as escadas. O Entrevistador fica um tempo sozinho, hipnotizado pelas fotografias

que formam um papel de parede nostálgico e histórico pelo pequeno corredor. Cruza a cena

Teuda).

Teuda: Olá, gatinho!

Entrevistador: Oi, Teuda. (trocam um beijo de cumprimento.) Tenta entra na sala de ensaios e

o Entrevistador se deslumbra mais por ter de primeira vista já trombado com Teuda: um

começo de sorte. Mais passos na escada, agora dobrados, duas pessoas descem. Eduardo se

aproxima com a mão estendida).

João: Esse é o Juliano, Eduardo.

Eduardo: Muito prazer, Juliano. Seja bem vindo.

Entrevistador: Eduardo, obrigado.

João: Então, Eduardo... O Juliano precisa agendar uma entrevista com você pra falar sobre o

grupo, sobre o “Romeu e Julieta”...

Eduardo: Sim, claro. É que assim, Juliano. Você nos pegou em uma semana daquelas. O

grupo está fazendo 30 anos, estamos cheios de entrevistas e matérias de jornais agendadas,

ainda mais porque o grupo vai voltar pro Goble Theatre27 semana que vem, temos

apresentação do “Till” nessa sexta-feira. Não sei... Bom... Você fica aqui até quando?

27 Teatro de Londres idealizado por William Shakespeare.

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Entrevistador: Até o próximo sábado, dia 12.

Eduardo: Bom, vem vindo aqui e a gente encontra o horário. Essa semana vamos ensaiar o

“Romeu e Julieta” todo dia a tarde, está convidado pra acompanhar. Ah, na sexta tem a

apresentação do “Till” em Bom Despacho, se quiser, pode vir com a gente e amanhã tem

cobertura, uma entrevista coletiva com televisão, rádios e jornais pra falar dos 30 anos do

grupo, e todo o grupo estará aqui. Venha também. Quem sabe pode te ajudar.

Entrevistador: Nossa, Eduardo. Fico imensamente feliz pela abertura. Sim, vamos fazer assim:

vou me programar pra tudo e a gente encontrar a entrevista no meio desse tudo, então.

Eduardo: Ótimo. Bom, fique a vontade aí, o João te ajuda se precisar de algo. Eu preciso ir

agora, temos reunião.

(Abraçam-se. Eduardo entra na sala de ensaios. Juliano e João ficam).

João: Você vai gostar de acompanhar o grupo essa semana.

Entrevistador: Eu tenho certeza.

João: Olha, tem esses livros que eu separei pra você. Um conta os quinze primeiros anos do

Galpão e o outro vem com a trajetória dos trinta anos. Lá no “Cine Horto” tem o arquivo de

memória do grupo, se precisar de algo mais, como fotos, gravações, texto, pode pegar lá.

Amanhã eles começam o ensaio às duas da tarde.

Entrevistador: Ok! Vou dar uma passada lá no “Cine Horto” e amanhã estou aqui.

João: Sim, às duas da tarde o ensaio, mas a cobertura com a imprensa às oito da manhã.

Entrevistador: Cedinho já estou por aqui. João, muitíssimo obrigado.

João: Imagine! Precisando de algo, me fale. Até amanhã.

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(Abraçam-se e se despedem. Sobe a música. O Entrevistador sai, mas fica. Traz em si toda

uma energia, e deixa lá toda uma paixão. Desce a ladeira da Rua Pitangui, talvez com

sensação agora de gravidade reversa, como estado de flutuação, de leveza, afinal está em uma

atmosfera convidativa para a realização plena frente ao primeiro contato embutido de tantos

convites e boa recepção pelas pessoas do Grupo Galpão. Entra na sala de arquivos no “Cine

Horto”, passa em média duas horas sentado vendo e revendo fotografias, teses de mestrado

que falam sobre o grupo e vídeos de espetáculos e trabalhos mil realizados todos cedidos pelo

bibliotecário do espaço. Se transborda de informações e imagens que transferem vontades

maiores à vontade já existente de conhecer um pouco mais a fundo o trabalho do Grupo

Galpão. Duas horas passadas, alguns materiais vão com o Entrevistador para sua casa, outros

voltam as prateleiras como o mais valioso diamante. A foto da entrada do “Cine Horto” sorri

mais uma vez e sorrirá sempre. O Entrevistador retribui o sorriso com tantos outros sorrisos e

sai. A chuva lava e transparece a ladeira da Rua Pitangui e o Entrevistador. Dois barcos de

papel descem a enxurrada. O Entrevistador se vai para o ponto de ônibus, ao som da chuva e

luzes que se cruzam na avenida).

Fim do Primeiro Ato

Segundo Ato

(A cena se dará com a ideia de “flashs” que a compõem durante toda uma semana, que se

consolidam em uma cobertura de imprensa, quatro ensaios do espetáculo “Romeu e Julieta” e

uma viagem de ônibus para uma cidade vizinha a Belo Horizonte, a saber, Bom Despacho. O

primeiro quadro de cena se constitui com uma grande movimentação de jornalistas chegando,

junto ao Entrevistador, à sede do Grupo Galpão, várias cadeiras dispostas para que se sentem,

e 13 cadeiras a frente que serão gradativamente compostas pelo elenco do Grupo Galpão.

Câmeras de filmagem, fotográficas e gravadores são ajustados e é dado inicio a coletiva de

imprensa ministrada por Eduardo. É passado um vídeo (ANEXO V) com os últimos trabalhos

do Grupo Galpão. Todos estão atentos e anotam cada palavra que signifique para seu enfoque

enquanto entrevistador, ouvinte, apreciador ou amante do Grupo Galpão. A coletiva tem em

torno de uma hora e trinta minutos e se finda sabiamente com um banquete de sucos, bolos e

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pães de queijo. Um blackout é dado e surge nova cena, agora de ensaio. No centro está uma

Veraneio vermelha, a quem carinhosamente, chamam de “Esmeralda”. Os atores fazem

aquecimento de voz, corpo, sobem em pernas de pau, afinam os instrumentos e dão inicio aos

ensaios. O Entrevistador acompanha tudo, sentado ao canto esquerdo com seu material de

gravação e seu coração cada vez mais vivo. Seus olhos não piscam. Encantamento! Essa

situação cênica se repete por quatro vezes com a utilização de blackouts, significando os

quatro ensaios de “Romeu e Julieta” em que o Entrevistador esteve presente. Mais um

blackout. Em cena agora está um ônibus do lado de fora da sede do “Grupo Galpão”. É dia 11

de maio. São nove horas da manhã. O sol brinca de se esconde-esconde pelas nuvens de um

belo dia inspirador. Os atores do “Grupo Galpão” sobem no ônibus com malas e alguns com

seus filhos. Chega o Entrevistador que cumprimenta a todos, agora já com apresentações

feitas; então, com mais espontaneidade de ações. Sente-se, humildemente, parte daquela

trupe, e multiplica seu sentir em muito, pois passada uma semana tudo será lembrança do

vivido. Senta-se em um dos lugares do ônibus, sozinho. O ônibus parte. Todos estão muito

cansados. A semana fora exaustiva com ensaios e entrevistas. O Entrevistador se aproxima de

Eduardo).

Entrevistador: Eduardo, podemos conversar?

Eduardo: Claro, vamos lá.

(Sobe a música. Os dois sentam-se ao lado um do outro na mesma poltrona do ônibus. Vão

para o fundo para poderem ficar mais à vontade. O Entrevistador retira seu material da bolsa e

o ajusta, desajeitadamente, entre as próprias pernas e encostos da poltrona. O ônibus segue

viagem em trepidação das pistas simples de Belo Horizonte. A entrevista segue viagem em

efusão e consolidação de perspectivas. Eduardo está com o olhar cansado, mas vivo a todo o

instante. Fala de sua trajetória no teatro com apropriação conquistada, de quem vive

intensamente o que faz e faz acontecer com intensidade. Brilha e faz brilhar o Entrevistador

quando se coloca frente às questões educacionais referentes à leitura, mais precisamente a

leitura de texto teatral nas escolas. Mostra preocupação com o cenário escolar por ser este

formativo e propulsor de veiculação de conhecimento, de troca. Faz nascer durante sua fala

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possibilidades de novos olhares sobre a leitura nas escolas por intermédio do gênero

dramático. ANEXO III).

Eduardo – Agora dormir um pouquinho, porque ainda tem apresentação hoje.

Entrevistador: Eu já assisti “Till”, em Araraquara, no ano de 2010.

Eduardo: Maravilha!

Entrevistador: Ah, mas agora são outros olhos que vão assistir.

Eduardo: E também é outro espetáculo. Nunca é o mesmo.

Entrevistador: Nunca somos os mesmos.

(A viagem se vai. Chegam a Bom Despacho. Descem do ônibus. Almoçam. Descansam.

Começam a se preparam no camarim improvisado na praça da cidade. Figurinos, maquiagem,

pães de queijo (esses não podem faltar), a cidade começa a chegar, toda a cidade começa a se

aproximar e toma os mais de dois mil lugares da praça. “Till, a saga de um herói torto” está

em cena. Grupo Galpão mais uma vez está em cena. O Entrevistador está em cena, pensando

nesta e em tantas outras cenas que virão).

Fim

Caminhar, caminhar e caminhar...

Sem dúvida o gosto maior da vida está em descobrir, em redescobrir os caminhos. Eu,

como viajante de caminhos tenho interesses pessoais nos estudos que realizo. E como

caminhar é aprender, nasce gradativamente em mim a certeza de que uma boa investigação

nasce da vivência, e não apenas e sumariamente de resultados específicos. Procedimentos e

técnicas existem e são necessários, mas a incerteza traz em si novas possibilidades e assim

novas certezas. Uma investigação se baseia antemão à coleta de dados, há teorias,

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questionamentos e inquietações que levam para o caminho que se escolhe trilhar. Ao

caminhar, como já foi dito, novos caminhos aparecem e devem ser experimentados; afinal, só

se sabe dos gostos quando se experimenta e uma investigação se consolida na amálgama

estruturada de conhecimentos que te conduzem à, e conhecimentos que te firmam em. Só

assim as análises serão fornecidas com permissões de gerarem novos resultados.

Contudo, para os investigadores o sucesso é definido por realizarem o que se

caracteriza por boa investigação, e não por conteúdos ou resultados específicos. Outro aspecto

em que o investigador e o professor diferem é que o investigador foi treinado no uso de um

conjunto de procedimentos e técnicas, desenvolvidos ao longo dos anos, com o objetivo de

recolher e analisar dados. Muitos destes procedimentos e técnicas encontram-se descritos ao

longo do presente livro. Finalmente, o investigador baseia-se em teorias e resultados.

O que um caminhante de pesquisa qualitativa faz é tentar

(...)estudar objectivamente os estados subjectivos dos seus sujeitos. Ainda que a ideia de que os investigadores sejam capazes de ultrapassar alguns dos seus enviesamentos possa, inicialmente, ser difícil de aceitar, os métodos que eles utilizam auxiliam neste processo. (...) O investigador passa uma quantidade de tempo considerável no mundo empírico recolhendo laboriosamente e revendo grandes quantidades de dados. Os dados carregam o peso de qualquer interpretação, deste modo, o investigador tem constantemente de confrontar as suas opiniões próprias e preconceitos com eles. (...) Os dados recolhidos proporcionam uma descrição muito mais detalhada dos acontecimentos do que mesmo a mente mais criativamente preconceituosa poderia ter construído, antes do estudo ser efectuado. (BOGDAN & BIKLEN, 1994: 67)

É como se o material que serve de alimento para elaborar os argumentos já estivesse

lá, em algum ponto da viagem, separado e pronto para ser coletado e analisado; como se os

“dados da realidade” se dessem a conhecer, objetivamente, bastando apenas dispor dos

instrumentos adequados para recolhê-los. A definição do objeto de pesquisa assim como a

opção metodológica constituem um processo tão importante para o pesquisador quanto o texto

que ele elabora ao final. De acordo com Brandão (2000), a tão afirmada, mas nem sempre

praticada, “construção do objeto” diz respeito, entre outras coisas, à capacidade de optar pela

alternativa metodológica mais adequada à análise daquele objeto. Se nossas conclusões

somente são possíveis em razão dos instrumentos que utilizamos e da interpretação dos

resultados a que o uso dos instrumentos permite chegar, relatar procedimentos de pesquisa,

mais do que cumprir uma formalidade, oferece a outros a possibilidade de refazer o caminho

e, desse modo, avaliar com mais segurança as afirmações que fazemos.

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Com o caráter de um estudo recomendativo, na cena seguinte análises frente às falas

de Lubi e de Eduardo se cruzarão na tentativa de buscar o que essas vozes mostram na

caminhada que seja importante para novos olhares quanto à forma de se ler o texto teatral e

assim, de se trabalhá-lo nas escolas sem "descalçar-se com ambas as mãos".

ESTRAGON – [...] Vamos embora.

VLADIMIR – A gente não pode.

ESTRAGON - Por quê?

VLADIMIR – Estamos esperando Godot.

ESTRAGON - É mesmo. (Pausa) Tem certeza que era aqui?

VLADIMIR – O quê?

ESTRAGON – Que era para esperar?

[...]

ESTRAGON – E se ele não vier?

VLADIMIR – Voltaremos amanhã.28

Fim do Terceiro Ato

28 Trecho do texto teatral “Esperando Godot”. (BECKETT, S. 2005: 27, 28, 29)

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QUARTO ATO

O ENCONTRO

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AUGUSTO - A proposta! A proposta! A proposta!

AMANDA - Um momentinho... Olha, Fernando, você pode achar tudo isso que você

falou, mas que está escrito, não está não. A gente pode por. Mas que está no texto não está.

FERNANDO - Claro que está! Ou será que não perceberam que o autor pretende

muito mais do que o enredinho... A historinha é simplérrima, pequena, apenas o fio

condutor, a espinha da peça... Agora, o que ele consegue através desse fio é muito maior...

Ou não dá pra perceber....29

A METALINGUAGEM DE LER LEITORES

"Um grito parado no ar"30. O fragmento acima fora extraído desse texto, e é trazido

para esta cena, pois o mesmo é considerado como um teatro de resistência, que se funda pela

supressão da liberdade, já que tem como pano de fundo o período em que foi escrito – a

Ditadura Militar (1973). A liberdade que se defende aqui é pelos novos caminhos da prática

de leitura nas escolas, pelos novos caminhos da acepção do teatro no ambiente escolar, e

assim, pelos novos caminhos participativos de sujeitos que vivem o que leem e que se

permitem tatear o que os circunscreve, com olhares mais analíticos e sensíveis por intermédio

do conhecimento ampliado e sensível trazido pelos textos teatrais.

De antemão, torna-se significante apresentar um breve portfólio dos grupos que

fizeram parte desse caminho de pesquisa; afinal, pela breve descrição, pode-se já ter uma

grande projeção do que faz, pela vivência, com que as entrevistas ocorram como se

sucederam: com abertura de novos caminhos, e isso se dá pelo olhar de quem abriu tantos

caminhos para poder trilhar.

29 Trecho do texto teatral “Um Grito Parado no Ar”. (Guarnieri, G.. 1973: 47) 30 Espetáculo escrito por Gianfrancesco Guarnieri: ator, diretor, dramaturgo e poeta.

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Grupo XIX DE TEATRO31*

O Grupo XIX de Teatro nasce na efervescência do movimento de teatro de grupo na

cidade de São Paulo, e realiza desde 2001 um trabalho contínuo. Em seu repertório traz três

primeiros espetáculos “Hysteria”, “Hygiene” e “Arrufos”, que consolidaram o trabalho na

perspectiva colaborativa tendo como eixos de criação, sobretudo, a pesquisa temática e o

desenvolvimento de uma dramaturgia própria, a intervenção e exploração de prédios

históricos com espaços cênicos e a interatividade como elementos narrativos fundamentais da

dramaturgia. E ainda, há o quarto espetáculo, “Marcha para Zenturo”, em conjunto com o

Grupo Espanca! de Belo Horizonte.

Desde 2004, o tem a sua residência artística na Vila Maria Zélia, antiga vila operária

do bairro do Belém na Zona Leste de São Paulo, e tem conseguido chamar a atenção e manter

em constante atividade os prédios históricos que estavam fechados, em completo abandono,

há quase 40 anos.

Como eixo de trabalho, o grupo desenvolve o projeto dos Núcleos de Pesquisa,

oficinas de longa duração orientadas pelos integrantes do grupo, que desenvolvem pesquisas

próprias que são partilhadas e aprofundadas por jovens artistas da cidade em busca de espaços

de troca e desenvolvimento artístico.

Recentemente, o grupo lançou o projeto “Armazém 19” sustentado pela ideia de que a

Vila deve ser cada vez mais um espaço onde os grupos e artistas de diversas áreas possam

ensaiar, mostrar seus trabalhos, criar suas redes de trocas.

31* Informações e fotografias extraídas do site www.grupoxix.com.br

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“Hysteria” (2001) “Hysteria” (2001)

“Hysteria” (2001) “Hygiene” (2005)

“Hygiene” (2005) “Hygiene” (2005)

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“Arrufos” (2008) “Arrufos” (2008)

“Arrufos” (2008) “Marcha para Zenturo” (2010)

Marcha para Zenturo” (2010) “Marcha para Zenturo” (2010)

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Grupo GALPÃO32*

No ano de 1982, o Grupo Galpão nasce da união de Teuda Bara, Eduardo Moreira,

Wanda Fernandes e Antônio Edson, que se encontram em oficinas de teatro dos alemães Kurt

Bildstein e George Froscher. Lá trabalharam técnicas corporais e jogos teatrais, além de

exercícios de respiração e voz inspirados no teatro de Grotowski e na interpretação

brechtiana. Iniciam a montagem de “E a noiva não quer casar”, que segue para uma longa

estrada experimental de várias linguagens teatrais.

Seguem em 1983 e 1984 com as montagens “De Olhos Fechados” e “Ó Procê na

Ponta do Pé”, espetáculo que estoura com o grupo Galpão, que passa a ser conhecido em

Minas Gerais e viajar pelo Brasil.

Em 1985 montam “Arlequim, Servidor de Tantos Amores”, baseado em um clássico

da commedia dell’arte, e em 1986 “ A Comédia da Esposa Muda”, que leva os atores de volta

às ruas.

Em 1987 e 1988, o Galpão viaja intensamente e passa a ter contato com grupos

nacionais e internacionais e torna-se um representante do teatro no Brasil. Participam de uma

oficina dirigida por Eugenio Barba, no Peru, durante o Encontro Internacional de Teatro de

Grupo. Estreiam “Foi por amor” em espaços alternativos e participam de “Triunfo, um Delírio

Barroco” superprodução da Fundação Clóvis Salgado que une dança clássica, música e teatro.

No ano de 1989 encontram-se com Grotowski e Peter Brook, na Itália, e, retornam ao

Brasil decididos a se fortalecerem enquanto estrutura mais sólida, assim, adquirem seu espaço

sede que é o mesmo até hoje.

Em 1990, o Galpão salta da comédia das ruas para a tragédia dos palcos com a

montagem de “Álbum de Família” e passa a cumprir temporadas em grandes centros teatrais

do país.

Em 1991, 1992 e 1993 surge o grande casamento do Galpão com Shakespeare e

Gabriel Villela na montagem de “Romeu e Julieta”, uma linguagem única que tece

cuidadosamente o texto de Shakespeare com influências do barroco e da literatura de

Guimarães Rosa. Com “Romeu e Julieta” o Galpão recebe vários prêmios e caminha o mundo

com seu espetáculo.

32* Informações e fotografias extraídas do site www.grupogalpao.com.br

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Wanda Fernandes, a intérprete de Julieta e uma das fundadoras do grupo, em 1994,

sofre um acidente automobilístico, vem a falecer e passa a encantar com as estrelas. O grupo

busca forças na dor. E, ainda em 1994, junto a 1995 e 1996 casa novamente com Villela e

estreia “A Rua da Amargura”, um espetáculo melodramático de circo-teatro que narra a vida

de Jesus Cristo.

Viajam por dois anos pelo Brasil, América Latina e Europa com “Romeu e Julieta” e

“A Rua da Amargura”, surge no ano de 1997 o espetáculo “Um Molière Imaginário” e ainda,

no ano de 1998, com a comemoração de 15 anos de existência do Grupo inauguram o “Galpão

Cine Horto”, um centro cultural de criação, pesquisa e intercambio aberto à comunidade. E,

em 1999 estreia o espetáculo “O Partido”.

Em 2000 “Romeu e Julieta” volta à cena para ser apresentado no Globe Theater de

Londres, e ainda, estreia o espetáculo “Um Trem Chamado Desejo”. É em 2001 que Paulo

José inicia trabalhos com Galpão e em 2002, na comemoração de 20 anos do grupo, entram

em cartaz com seus cinco últimos espetáculos.

“O Inspetor Geral” com direção de Paulo José, surge em 2003 e se estende em 2004,

porém, Paulo José continua com o grupo, e em 2005 estreiam “Um Homem é um Homem”.

Durante 2006 o último espetáculo circula pelo Brasil e iniciam os primeiros estudos

com o diretor Paulo de Moraes para a nova montagem que estreia, em 2007, “Pequenos

Milagres”.

O cinema entra na vida do Galpão em 2008, quando filmam “Moscou”, porém nova

pela estreia em 2009 “Till, a Saga de um Herói Torto”. Os trabalhos não param e em 2010 e

2011 estreiam “Eclipse” e “Tio Vânia” ambos advindos de estudos do grupo sobre Tchecov, e

ainda, no ano de 2012, em comemoração aos 30 anos do Galpão, “Romeu e Julieta” renasce

junto, sempre, ao amor do Grupo Galpão pelo teatro.

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“E a Noiva não quer casar” (1982) “De Olhos Fechados” (1983)

“Ó Pro Cê Vê na Ponta do Pé” (1984) “Arlequim Servidor de Tantos Amores” (1985)

“A Comédia da Esposa Muda” (1986) “Triunfo, um Delírio Barroco” (1986

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“Foi por amor” (1987) “Corra Enquanto é Tempo” (1988)

“Álbum de Família” (1990) “Romeu e Julieta” (1992 – 1ª montagem)

“A Rua da Amargura” (1994) “Um Molière Imaginário” (1997)

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“Partido” (1999) “Um Trem Chamado Desejo” (2000)

“Romeu e Julieta” (2002 – 2ª montagem) “O Inspetor Geral” (2003)

“Um Homem é um Homem” (2005) “Pequenos Milagres” (2007)

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“Till, a Saga de Um Herói Torto” (2009) “Tio Vânia, aos que vierem antes de nós” (2010)

“Eclipse” (2011) “Romeu e Julieta” (2012 – 3ª Montagem)

Sem dúvida, caminharam e caminharam e caminharam a perder de pés os grupos que

compõem essas análises, tem-se tal evidência por um simples passeio de olhos em seus breves

portfólios aqui apresentados, e ainda, na significante coleta de material que discursam seus

pareceres no decorrer das entrevistas, que resgatam a vida ao tempo que atualizam suas

reflexões.

Atualizar as reflexões é preciso. Para isso, a seguir, fazendo uso das entrevistas

realizadas, seguem análises de fragmentos que possivelmente dialogam entre si e que

dialogam comigo, na tentativa de buscar objetivar a pergunta básica desta pesquisa: como a

leitura do texto teatral pode acontecer nas escolas?

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Os novos passos, os novos olhos

Durante as entrevistas com os dois interlocutores na fase de coleta de dados para esta

dissertação, fiz várias leituras que me levaram a recorrer a tantas outras já existentes, a outras

adormecidas, a outras ainda inexistentes, e outras que talvez existam, mas nem eu mesmo as

saiba. O interessante de todo esse percurso fora a permissão e a intenção reveladora de

conhecer e tatear um abstrato que não nos cabe nas mãos; afinal, cada olho vê o mundo de

uma forma e o constrói pela ótica que lhe traduz. Assim, conhecer como a leitura de textos

teatrais acontece pelos olhos de quem vive o teatro em completude, e vivê-lo é sê-lo, tem a

intenção pura de conhecer e recomendar, e jamais de postular ou encontrar uma receita de

como o texto deve ser lido, pois se se encontrasse essa receita pronta – em doses, colheres e

xícaras –, então estaria eu cometendo grande equívoco, pois ler é criar tuas medidas e

experimentar os gostos de cada sabor que te agrada.

A escola e o teatro são palcos de atuação e criação.

O teatro vai além da encenação e, se trabalhado na escola, além da divulgação cultural

e apropriação cênica, torna-se um grande propulsor de desenvolvimento da criação e

imaginação, e, se pensarmos criação e imaginação, não podemos deixar de nos ater à

linguagem que está relacionada ao pensamento artístico. O ambiente no qual o sujeito

vivencia as suas experiências, além de recurso de linguagem, torna-se fonte. Um sujeito

alimenta ao outro, há troca, e isso é um pressuposto de natureza social. A linguagem é

multimodal, ela existe quando se ou não se fala, ela permeia e circunscreve o externo e o

interno e nos gera a significação surgindo “(...) num primeiro momento, com construção de

atividade “consciente”, e depois (num sentido reflexivo), com seu instrumento – o que coloca

Vygotsky entre os que relacionam internamente linguagem e pensamento” (MORATO, 1996,

p.18).

Ainda, apoiados em Morato (2000) quanto à construção da linguagem e pensamento,

[...] não há possibilidades integrais de conteúdos cognitivos ou domínios do pensamento fora da linguagem, nem possibilidades integrais de linguagem fora dos processos interativos humanos. Este postulado parece ser concebido sob inspiração humboldtiana e já anuncia o papel da linguagem frente ao nosso processo de percepção ou interpretação do real. Não é à toa que, ao descrever o processo de desenvolvimento linguístico-cognitivo da criança, a linguagem surge, [...] num primeiro momento como construção da atividade

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“consciente” e depois (num sentido reflexivo), como seu instrumento – o que coloca Vygotsky entre o que entendem que a relação entre linguagem e cognição (e não apenas “pensamento”) passa pela noção de significação [...]. (p.154)

Assim, temos em vista que a linguagem não é pura interpretação do verbal, existe

também a interpretação do não dito, pois os sentidos vão dizendo (gestos, expressões, tensões,

intenções), pois a linguagem entra nas questões da imaginação/ criação através de um

pensamento artístico, onde o signo tem função de instrumento simbólico e cultural. A função

da linguagem não é linguagem, é a função de se auto criar. Alias, não é função, ela é!

Se pensarmos na prática com um texto teatral trabalhado em sala de aula de maneira a

proporcionar criação para os envolvidos, a significação não será, pois serão significações

inúmeras, uma grande teia de sentidos que serão lançados, sentidos que devem ser trabalhados

polissemicamente com a intenção de valorar o sentido individual (mesmo se sabendo que este

está arraigado de todo um percurso sócio-histórico) e relacioná-lo a um (tantos sentidos)

coletivo(s). Afinal, se tratamos de arte, em âmbitos gerais, não podemos atrelá-la a um sentido

unívoco, pois a arte não se copia: ela nos capta ao tempo que permitimo-nos ser captados por

ela... Van Gogh não copia a natureza, ele a capta: traz as significações que repercutem em si

para o externo.

Assim, numa obra de arte, frequentemente encontramos justaposições de traços distantes uns dos outros e aparentemente desconexos, que, todavia, não são estranhos uns aos outros, como a ideia de dor de dente e de casamento, mas unidos por uma lógica interna. (VYGOTSKY, 2009, p. 34)

Pela perspectiva marxista, o materialismo histórico dialético, sob o conceito de

produção imaginária, tem vínculo com o sentido estético: quem/ o que produz. São objetos

fabricados pelo homem abarcados pela produção imaginária e pelo sentido estético, que,

[...] são questões que nos remetem, cada uma à sua maneira, a determinadas características constitutivas do modo de ser humano do homem. A primeira nos remete à capacidade criadora dos seres humanos, adquirida no processo evolutivo, que lhes permite assumir o rumo da própria evolução. Ela constitui um dos pilares do processo de humanização. A segunda nos remete à transformação da sensorialidade biológica – herdada do mundo animal – ocorrida nesses seres humanos, num rico e variado elenco de sentimentos que constituem a sensibilidade humana, a qual tem tudo a ver com as novas formas de sociabilidade que os homens criam e que marcam sua história. Não é difícil perceber que, afinal de contas, o que está em jogo no debate dessas questões é a constituição humana do Homem. (PINO, 1990, p.48;49)

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A produção imaginária, como obra/ experiência/ prática do homem, supõe-se (na

linha do materialismo – na perspectiva evolutiva) que o imaginário se constrói ao longo da

espécie sapiens. Se ativermo-nos a princípios biológicos práticos, enxergarmos que a história

de cada espécie define a evolução da mesma pela necessidade. Tal princípio se estende à

formação humana já que esta ocorre dentro do processo de transformação do mundo sob

efeito de ciclo: para que haja cultura tem que haver produção, cultura para a formação do

homem – transformando, ele se transforma (PIN0, 1990). À medida que o homem transforma,

ele cria suas condições de existência. É preciso, assim, que haja espaço para transformar, e

isso se estende as questões nessas reflexões as questões que indagamo-nos sobre as

possibilidades de práticas de leitura com textos teatrais nas escolas, que precisam ganhar

espaço para transformar... Espaço para o texto adentrar, e espaço para o aluno interpretar.

A atividade humana utiliza como paradigma o trabalho social como forma humana de

agir sobre a natureza; é nas questões, nas bases de todas as funções (ações) que está o modelo

de produção. Um trabalho alienante produz homens alienados. Trabalho é ação de um homem

singular, não individual, cada homem é um homem. O indivíduo que produz, se realiza o

processo, além de querer, tem gosto por, se sente algo ao realizar, todavia que, o que se sente

é o ato de sentir. O sentido indica uma direção, é algo que se forma, que se constitui função. A

estética funciona como processo de valorização, significação.

Se se faz sentido, significa, e significa de várias maneiras, de acordo com a bagagem

com a qual o indivíduo dialoga. Assim, dá-se a produção imaginária, que é a verdadeira, pois

vem derramando criação e atravessamento de sentidos - quem manda no imaginário é o

próprio ser. Vygotsky (2009) aponta que “A imaginação origina-se desse acúmulo de

experiência. Sendo as demais circunstâncias as mesmas, quanto mais rica é a experiência,

mais rica deve ser também a imaginação” (p. 22). Assim, podemos dizer que, de certa forma,

a patologia do imaginário é o limite.

Se formos pensar no cenário educacional, ao que nos referimos em parte na tentativa

de estreitá-lo à prática em questão, o uso do texto de teatro em sala de aula como recurso

pedagógico e metodológico para vários desenvolvimentos, dentre eles, o da permissão de criar

e imaginar, temos que o próprio sentido estético é resultado do processo educativo, pois os

sentidos precisam ser educados.

O caminho é titubeante e cheio de experimentações durante o processo histórico do

que a arte é, e/ou pode ser, ou vir a ser, porém a ideia que se deve sustentar é que a educação

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escolar é a única que f(ô)rma a educação, mas, por ser uma estrutura organizada, é a única que

deforma a educação. É preciso “ampliar a experiência da criança, caso se queira criar bases

suficientemente sólidas para a sua atividade de criação” (VYGOTSKY, 2009, p. 23), dessa

forma, o professor deve criar condições para ativar a sensibilização do sensibilizador (quem

irá criar), tendo a consciência de que a riqueza da variedade cultural é importante, porém a

fixação dela, não. É preciso abrir o outro, porque nós somos fechados em nós mesmos, e essa

possibilidade é gerada por uma educação basilar arraigada na permissão de produções de

sentidos, sem serem estes engessados; é preciso significar para significar com o agregado de

valores, para encontrarmos o sentido da estética.

Assim, cabe ainda salientar, dentro destes escritos, o papel da memória nessa teia de

significações: se “[...] sou meu passado, e isto é possível porque sou um ser que se põe em

questão, de forma a poder “representar” este passado por um processo psicológico, como por

exemplo, “lembrar” de alguma coisa” (MAHEIRIE, 2006, p.147), temos que o sentido se

produz pela significação que atribuímos a ele, esta (a significação) está atrelada a nossas

memórias; afinal, há marca da cultura e de contexto na lembrança do sujeito. A memória é um

fio da memória coletiva, nós não temos memória, temos lugares de memória, o passado é

interpretação do sujeito, discursivamente. Memória não é só o que se vive, mas o que se

conta, daí vem o poder da palavra que a torna mais forte que o acontecimento. É pela

possibilidade de criar que o sujeito acessa a memória coletiva, que age de forma diferenciada

em cada sujeito. Ao contar, criam-se formas.

Minhas impressões seguem pelas falas dos entrevistados, arraigado além de por seus

depoimentos que me fora presenteado os ouvidos, por ser um leitor assíduo de textos teatrais

desde 1998 (quando iniciei meu primeiro curso técnico de Artes Cênicas), trarei minhas

leituras com tantos e tantos que a mim cabem, olhos de leitor, de pedagogo, de ator, de

diretor, de pesquisador, de humano.

Assim, tomo como propulsor desse meu “faz-de-conta” a ideia de que os primeiros

caminhos quando pegamos um texto literário em mãos é fazê-lo extrapolar sentidos nossos

que vão sendo impressos na leitura e, quando tratamos especificamente sobre textos

dramáticos, podemos pensar que estes são escritos para nascer. Por seus caminhos

descobrimos vidas que lá percorrem e que cabe a nós, leitores, dar vida a ele, talvez seja por

isso que ele não cabe nas páginas e vaza para o plano de materialização, afinal,

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[...] o teatro tal como concebemos no ocidente está ligado ao texto e por ele limitado. Para nós, no teatro a Palavra é tudo e fora dela não há saída; o teatro é um ramo da literatura, uma espécie de variedade sonora da linguagem, e se admitimos uma diferença entre o texto falado em cena e o texto lido pelos olhos, se encerramos o teatro nos limites daquilo que aparece entre as réplicas, não conseguimos separar o teatro da idéia do texto realizado. (ARTAUD, 1984: 90)

A palavra no teatro ocidental é de grande representatividade. Ela é basilar para a

consolidação de um trabalho, porém essa consciência toma alguns novos rumos com a ideia

de que o teatro é além palavra, mas corpo, então poderemos pensar que a palavra é corpo, é

extensão do corpo, afinal, ao irmos assistir a uma peça de teatro, lemos além do texto que se

atira da boca das personagens, vamos a fundo, como na vida, lemos os corpos, as reações, os

sentimentos que são expressos com todo o corpo. O texto gera um norte, e o corpo, construído

para dialogar juntamente com a palavra, gera a completude. Artaud (1984) traz em seus

escritos essa preocupação latente do que poderíamos dizer “corpo textual” que diz antes

mesmo do texto:

[...] não se trata de saber se a linguagem física do teatro é capaz de chegar às mesmas resoluções psicológicas que a linguagem das palavras, se consegue expressar sentimentos e paixões tão bem quanto as palavras, mas de saber se não existe no domínio do pensamento e da inteligência atitudes que as palavras são incapazes de aprender e que os gestos e tudo aquilo que participa da linguagem no espaço conseguem captar com mais precisão do que elas. (p. 93)

Para Chartier (1996) há distinção da palavra falada (ouvida) e da palavra lida.

Dependendo a situação com a qual funcionalizamos o momento em relação à palavra, nossa

interpretação pode ser e é outra. Talvez essa consciência de que o teatro acontece como

representação da vida torne a leitura necessária do texto com um olhar que o extrapole, que o

configure em gestos, em movimentos; afinal, se pensarmos na constituição lógica de um texto

de teatro, no mínimo se este for um monólogo, ao menos um personagem transmite e dá

enredo à história, e pode ser este um ser humano, um animal, um objeto... Mas é algo que

conta, que vive a situação cênica, transpondo-a para uma suposição real, e para isso usa da

criação, criação esta que advém de nossa capacidade de produzir situações que poderiam ser

reais.

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Seguem, então, diálogos entrelaçados de leitores, de leitores de leitores, de outros

tantos leitores que leram e se colocaram para que eu os lesse, e assim o fiz: os li com olhos

bem abertos e desarmados.

Se estou falando de ler pelos meus olhos e pelos olhos de outrem, cabe em primeira

instância uma colocação que ilustra essa busca do olho do outro, das impressões do outro, do

que o outro diz, ou já disse para que se faça efeito,

A gente chama isso muito de se embriagar do tema. Então, cada um se embriaga com a sede, com a bebida que lhe convém, e aí tem coisas que a gente traz pros outros experimentarem (...). (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

Pisar em um território de preciosidades é encontrar brilho e valor a cada passo.

Durante as entrevistas, cada palavra bem dita me ocasionava efeitos tantos que, agora,

encontro-me na difícil tarefa de “garimpar dentre as pedras preciosas dessa mina” quais delas

virão a brilhar mais o caminho que pretendo ladrilhar. Para isso, alguns recortes das

entrevistas foram selecionados na tentativa de refletir através deles em uma trajetória que se

dita desde o fazer teatral vivenciado e experienciado pelos grupos XIX e Galpão, até seus

apontamentos sobre as possibilidades do trabalho com o texto teatral nas escolas.

No fragmento acima, Lubi se refere ao início das montagens teatrais, onde o grupo

XIX de Teatro se “embriaga” do tema que escolhem trabalhar para iniciar seu processo de

montagem, e, ao ouvir o dito, me embriaguei da ideia, da metáfora tão bem colocada que

traduz a meu ver o processo de qualquer tipo de leitura: é preciso se embriagar de tanto para

se poder, se permitir ler.

Embriaguemo-nos!

As pedras da seleção

Quando ambos entrevistados foram questionados sobre como são selecionados os

textos que trabalham para suas montagens, foram obtidas as seguintes informações:

(...) às vezes acontece uma coisa, aquilo gera encantamento, os outros vão, se apropriam, então... A gente não tem uma preocupação assim: “agora estamos”... Eu sei que nunca mais foi uma escolha externa visando uma lógica, assim: “Não! O grupo agora precisa trabalhar um clássico, o grupo agora”... Essa lógica, meio... Nunca imperou. Acho que sempre foi uma das

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inquietações, das loucuras dos artistas envolvidos. (extraído da entrevista realizada com Lubi) (...) Tem processos que a gente cria o texto, tem processos que a gente já, já por exemplo, adaptou romance. Tem um que é o mais comum: a gente pegar textos prontos, ou também, agora, por exemplo, essa montagem do Tchekhov, adaptação de contos, né... Então, não tem uma forma pronta, varia muito, desde criação de texto próprio até adaptação da forma literária para a forma dramática, ou pegar um texto, um clássico pronto e adaptar, criar o próprio texto, então, não existe um formato único, né... Varia muito. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Gerar. Encantamento. Acredito que aquele verbo casado com este substantivo significa

qualitativamente o que deve ser o ato da leitura de um texto teatral “aquilo gera

encantamento”. As leituras nas escolas avançam para uma oferta dos mais variados gêneros

textuais, e estes devem gerar encantamento. Se se oferta leitura, mas essa não “embriaga” seus

leitores, não lhes faz sentido, não os toca, sua oferta fica meio que estanque, e cai em um

abismo onde atores e diretores, e no caso que estamos esmiuçando, referente à leitura na

escola, nem alunos e professores sabem os reais motivos de se ler.

O Grupo XIX de Teatro e o Grupo Galpão se apresentam com trabalhos bem distintos

em seus processos do fazer teatral. Portanto, é de suma importância salientar que o Grupo

XIX, até então com suas montagens, tem um movimento peculiar a outros grupos: os textos

que trabalham nascem no final de seus processos; assim sendo, a última coisa a ser feita e a

impressão do texto no papel, pois a dramaturgia vai nascendo de acordo com as vivências que

vão tendo durante o processo; trabalham assim com “temas” que sustentam e dão vazão para

suas criações cênicas e dramatúrgicas. Quanto ao Grupo Galpão, este já experimentou

diversas formas de selecionar o texto que irão trabalhar em uma montagem, desde a própria

autoria de textos, como trabalho com clássicos e adaptações.

Assim, temos que no fazer teatral de grupos que vivem o texto dramático em sua

finalidade maior – a montagem de um espetáculo – variam os seus processos de escolha.

O encantamento é o que gera. Se encantar é a relação, colocada por Lubi, que o Grupo

XIX tem sobre um tema sobre o qual se debruçam para os estudos que darão vazão às cenas

de um espetáculo, bem como a toda a dramaturgia. Tomando como base o espetáculo

“Arrufos” do Grupo XIX, que trata das relações de amor, tem-se que tudo que é lido, que é

trazido para servir de repertório e inspiração para a construção cênica, ganha valor e

simbologia para a montagem, e ainda é vasto, pois são várias pessoas trazendo informações

sobre como veem o amor para que todos juntos possam “se embriagar” do tema:

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(...) A gente não vê repartido assim, tipo: discurso, texto, emoção. (...) Se a gente vai brincar com isso, então o que é? Ah, então vamos colocar as pessoas sentadas de dois em dois? Então vamos fazer uma alcova, vamos fazer uma coisa fechada? Vamos trabalhar tudo que é pequeno, então é o abajur, é a caixinha, é o “caminhozinho”, é tudo pequenininho, é tudo íntimo. (...) E também cada um tem o seu repertório, tem pessoas que são mais das letras, tem gente que é mais do audiovisual, tem gente que é mais da vida, do diário, das coisas, é super livre não ter hierarquia, assim, então, assim... A velhinha da vila falando de amor, e Freud falando de amor (...) está no mesmo lugar... São pontos de vista que vão se cruzar. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

Também o Grupo Galpão em suas tantas leituras teatrais realizou diversos tipos de

montagem, e parecido ao estilo de trabalho do Grupo XIX de Teatro citado acima, aconteceu

com a montagem do espetáculo “Um trem chamado desejo” onde, pelas palavras de Eduardo:

(...) existiu uma ideia de um tema, que era falar sobre o próprio teatro, falar sobre uma companhia de teatro musical brasileiro na década de vinte, trinta, isso... A partir desse tema a gente foi criando, desenvolvendo situações, personagens, e criamos o texto, né, então, é uma coisa que varia muito, mas é claro que essa leitura, a leitura de textos sempre nos alimenta muito nesse processo. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Eduardo exemplifica o tipo de montagem de “Um trem chamado desejo”, mas ainda

nos oferece o parecer de suma importância que dá de sempre estarem se alimentando de

outros textos, e isso se dá pelos exemplos acima: por um eixo temático que escolhem, ambas

as companhias se “embriagam” e se “alimentam” de textos, imagens, enfim, de leituras que os

atravessam e que acreditam ter relação com o que pretendem trabalhar.

Assim, temos que um texto teatral também pode nascer de outros textos, da conversa

com outras leituras já feitas e que vão se compondo até formarem uma dramaturgia. Ainda,

como Eduardo colocou, o Grupo Galpão trabalha com clássicos (“Tio Vânia: aos que vierem

depois de nós”, “O Inspetor Geral”), com adaptações de clássicos (“Romeu e Julieta”), com

outros tipos textuais que se transformam em texto dramático (“Eclipse”, “Pequenos

Milagres”), o que orienta a nossa atenção para tantas possibilidades de trabalho com a leitura

nas escolas.

Pensando no trabalho com o texto teatral, enaltece-se: que diz respeito à necessidade

de leitura criadora no ato de ler. Esse tipo textual não traz em seu cerne uma apresentação de

antemão de como são, por exemplo, esses personagens que entrarão em cena. Contrário a isso,

as características das personagens vão sendo descobertas enquanto se lê o texto teatral,

enquanto se depositam interesses e envolvimento pela leitura que está sendo realizada. São as

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personagens que vão, aos poucos, apresentando-se para seus leitores, pontuando as suas

características físicas e psicológicas que podem se alterar ou não. Ball (2005), a este respeito,

diz que a fala das personagens não traduz uma verdade fidedigna, absoluta, antes, ela traz

contradições e ambiguidades próprias do discurso, do diálogo. Essa manifestação da

personagem por meio do discurso, é o que nos leva, paulatinamente, à percepção de que ela (a

personagem) é um ser com “vontade própria”, e que se traduz pela leitura de seu leitor. Esse

movimento é o que instiga. A descoberta. Afinal, o teatro estando em cena, ou apenas em seu

texto, dispensa o “preparar o leitor”, abrindo, assim, possibilidades para o surgimento de

imagens em ação e em transformação, o que envolve o leitor.

As pedras do acontecimento

Buscando conhecer o fazer teatral dos grupos entrevistados, (e permito-me chamá-los

de grupo mesmo tendo sido apenas um o entrevistado de cada grupo, pois em ambas as

entrevistas o sentido do coletivo foi enaltecido pelas vozes nos depoimentos coletados de

Lubi e Eduardo) na tentativa de trilhar os caminhos do trabalho de leitura destes grupos, a

questão referida que segue diz respeito às maneiras como a leitura acontece nos processos de

montagem.

O teatro nasce em engatinhos desequilibrados pela experimentação, e com a leitura

dramática não seria diferente. A embriaguez pelo texto se dá em primeira instância pelo

interesse que se deposita em ler e, em consequência, pelo estado quimérico que o texto

possibilita para que os sentidos passeiem. As interpretações devem ganhar espaço, vez e voz

em suas variadas possibilidades de existirem. Se pensarmos, então, que uma proposta

pedagógica para a prática de leitura deve acolher o que existe entre oral e o escrito (TFOUNI,

2005), cabendo assim interpretações pelo que se viveu com o que se está vivendo,

entrelaçando-as, a prática de ensino aconteceria menos rígida, e os alunos se entenderiam

enquanto sujeitos que podem ter vez e voz na sala de aula, porém isto depende da forma como

o professor trabalha, e não necessariamente do gênero textual que está sendo usado.

Se pensarmos a leitura como deveria acontecer, os fazeres pedagógicos são postos em

questão; afinal, a interpretação de qualquer texto acontece (ao menos deveria) pelas vozes que

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ecoam em cada leitor. As experiências com leitura estão em cada leitor de forma única. Não

há como cobrar dos alunos um sentido único, sendo que nem mesmo o professor sabe ao certo

qual o sentido do autor que escreveu determinado texto. Perguntar: “o que o autor quis dizer

com isso?”- e lhe cobrar um sentido parafrástico, é castrar do aluno as suas leituras. Reverbel

(1997: 20) observa que “Quando é criado um clima de liberdade em sala de aula, o aluno

expressa seus sentimentos e sensações sem medo de censura”.

Portanto, a inserção do trabalho com texto teatral pretende que o leitor interatue com o

texto, em sua versão impressa e, por consequência, com a atividade dramática que se projeta,

a partir do texto. Assim, conseguimos atravessar pelo texto, pelas Artes Cênicas, pela

literatura dramática e pela leitura – em sentidos vastos.

Sabemos que o texto precisa interessar, precisa tornar-se e fazer-se parte de quem o lê.

Porém, como saber o texto que se enquadre para determinada grupo de teatro, e ainda, para

nossa questão central, uma sala de aula que é composta heterogeneamente?

Eduardo, do Grupo Galpão coloca um caso interessante de experimentação frente à

primeira montagem de “Romeu e Julieta”, espetáculo que se tornou uma pérola do grupo e

referência de teatro no Brasil:

Esse processo da leitura coletiva é sempre um processo fundamental. Todo mundo lê o texto junto e a gente discuti o texto até chegar na conclusão de que é o texto que satisfaça aquilo que a gente quer dizer naquele momento, então, enfim... É esse processo coletivo, ele é muito importante, e às vezes existem muitos diálogos, debates assim pra saber se é... E é claro, é muito difícil a gente conseguir um texto que é unânime, que todos queiram montar. Então, a gente vai assim pela maioria, às vezes é indicação de um diretor, as vezes é indicação do grupo, então, talvez exemplificando fica mais fácil: Quando nós fomos fazer “Romeu e Julieta” nós trabalhamos com cinco possibilidades de montagem, trabalhamos com “Romeu e Julieta”, trabalhamos com “Morte e vida Severina” de João Cabral de Mello Neto, trabalhamos também com musical brasileiro, que é um tema, por exemplo, que depois vai dar num outro espetáculo do grupo, o “Um trem chamado desejo”, trabalhamos com Guimarães Rosa, que de certa maneira estava presente, está presente no “Romeu e Julieta” também, que foi a “Primeiras Histórias” dos contos do Guimarães Rosa, e trabalhamos com Caldéron de La Barca “O grande teatro do mundo”. Então, a gente fez workshops, a gente fez trabalhos cênicos em cima dessas cinco ideias, e a partir desses exercícios a gente optou por “Romeu e Julieta”, então, é um processo que sempre ele acontece muito por aí. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Esse recorte traz duas questões de importância: a relevância do coletivo para a escolha

do texto, e que este seja significativo para o grupo.

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O teatro só se dá em relação e assim também se faz o aprendizado e, ainda assim,

também se faz o leitor, na relação. A forma como Eduardo suscita a leitura coletiva, traz uma

percepção de um trabalho calcado na coletividade, nas diferenças que permeiam as discussões

até se encontrarem em comum acordo. E se pensarmos na diferença, temos que vê-la como

edificação e formadora de novos sentidos, isto porque cada sujeito tem sua formação que

constrói ao longo de sua história, sua identidade que o enviesa para as suas escolhas. Para

coletivizar um trabalho, é preciso levar em conta a diferença que se evidência no coletivo

frente à questão da identidade, bem como da multiculturalidade, trazido por Silva (2000),

como condição de “respeito para com a diversidade e a diferença”. (p. 73)

Muitas vezes a identidade é vista como aceitação daquilo que se é, em contraposição à

diferença, como aquilo que o outro é. Há, entretanto, certa dependência quando tratamos de

identidade e diferença, pois só afirmamos algo que somos em relação ao que não somos. É na

legitimação de certas culturas que encontramos de forma saliente a questão do poder, porém,

quando estamos pleiteando a busca pelo gosto coletivo, trazemos com outra ótica essa relação

de poder; nos grupos, seja de teatro, seja nas escolas, os sujeitos que agem pela lógica coletiva

trazem ideais de novos rumos para seu trabalho, como aponta Rios (1992):

[...] um trabalho coletivo e participante, por exemplo, tenho como pressuposto (parto de, tomo como princípio) que o trabalho que se realiza com a participação responsável de cada um dos sujeitos envolvidos é o que atende de forma mais efetiva às necessidades concretas da sociedade em que vivemos. (p.74)

Muitas vezes, a escola apresenta-se com caráter autoritário na maneira como visa

passar o conhecimento. Tal realidade repercute em face impeditiva, sustentada pelos docentes

que não abrem caminhos para a ação e o interpretar múltiplo, quanto mais o coletivo.

Leitura é construção. Construir caberia talvez mais em gerúndio quando se diz do ato

da leitura de um texto dramático... Construindo. O trabalho que o Grupo Galpão realiza até se

consolidar na escolha pelo texto “Romeu e Julieta” é um trabalho de experimentação, de

tomada de gosto. Quando se lida dessa forma a fim de tanger os envolvidos em um processo

pelo que mais lhes atravessa, ganha-se, benemeritamente, qualidade e entrega maior no

trabalho a se envolver, além de, como no caso, passear por diversas linguagens, diferentes

óticas e temas que autores trazem impressos em seus textos. Só se pode trabalhar “Romeu e

Julieta” enviesado, atrelado à literatura de Guimarães Rosa, por se ter pesquisado onde estava

a pisar. Antes tatearam Guimarães Rosa por seus próprios gostos para então coincidirem com

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a possibilidade do entrelaçamento da linguagem de Shakespeare com a de Rosa. Isso não se

dá sem finalidades reais. A montagem de um texto monta os olhos de quem o lê... Se

pretendiam uma montagem de um Shakespeare na rua, próximo, que falasse do Brasil

adentro, Rosa era a honra que os abraçaria para tal sustentação, com seu suprarregionalismo,

neologismo e forma de contar a vida com cheiros e sinestesias.

O ato de nos debruçarmos para ler traz consigo as possíveis leituras que, a priori,

buscamos quando vamos ler, e também, ao ler nos imergimos em leituras que outrora já

lemos, fizeram parte de nós e repercutem até então em nossas leituras, já que

[...] ler pode ser definido pelo olhar: perspectiva de quem olha, de quem lança um olhar sobre um objeto, sobre um texto, seja ele verbal ou não. Esse olhar pode ser direto, atravessado ou enviesado, conforme o leitor, o espectador, o observador, sua bagagem de vida, o contexto social no qual se insere: momento e espaço (lugar), suas expectativas, que alguns denominam projeto, intenção ou objeto. (CORACINI, 2005: 19)

Semelhanças de processos de escolha de texto acontecem com o Grupo XIX, que visa

experimentar e somar outras leituras à leitura que está sendo realizada. Fazemos isso a todo o

tempo. Enquanto lemos, sempre nos remetemos a outras leituras, que já nos formaram; somos

sujeitos históricos e trazemos sempre para nossos olhos leitores bagagens de outras leituras

que já fizeram sentido e que possibilitam um caminhar mais confiável onde nos arriscamos

interpretar:

Eu acho que tem uma questão um pouco de tentar revelar o ponto de vista, e a questão de uma prática um pouco também de, de já levantar um pouco... Não sei se cenicamente, mas... Meio atmosfericamente! Então a gente trabalha muito com seminários temáticos, tirar coisas só de uma leitura mais lógica e tentar trazer pra uma... Porque um texto teórico ele tem muitas portas, né. E às vezes se você transforma esse texto teórico numa dinâmica, ou você traz isso somado a uma pintura, ou uma maneira que você apresenta isso, isso já revela o seu ponto de vista, porque no fundo eu acho que o que está em jogo sempre não é esse texto de outrem, e sim o que aquilo te agrada, o que aquilo passa por você, né... O que te passa, o que te move. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

Lubi constrói em seu depoimento uma atmosfera para falar dessa própria atmosfera.

Quando afirma a busca pelo “o que te passa, o que te move” temos a sensação de pertença, de

termos necessariamente que fazer parte desse universo paralelo que nos imergimos para

realizar uma leitura, e isso é mais necessário e claro na leitura real e digna de um texto

dramático.

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Quando Lubi utiliza da palavra jogo, oferta para essa análise sentidos maiores do ato

de jogar, que imbrica piamente as relações que estabelecemos uns com os outros a todo o

momento. Jogar é estar, fazer e ser parte.

O jogo nasce com aporte de significações. Joga-se por algum sentido que se prostra

acima de necessidades físicas e/ ou biológicas. O ato de jogar vai além dele próprio: está

circunscrito de intensidades para além da evasão de energias, ou ainda por ações mecânicas.

O jogo diverte, mas prepara para ações e concepções da formação sóciohistórica de quem está

a jogar.

Além de o jogo estar implicado entre os seres humanos, esse também se faz presente

em outras esferas, como por exemplo, entre os animais; dá-se então, uma característica de que

na concepção de um jogo, até mesmo jogar, não cabe apenas a racionalidade, mas a relação

que nasce e o que nasce na relação. Assim, tem o jogo uma função social.

No jogo se tem a liberdade, ele não está preso à “vida real”. “Ele se insinua como

atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma

satisfação que consiste nessa própria realização”. (HUIZINGA, 2001, p.12)

Assim, o jogo se diferencia da “vida real” no tempo e no espaço. Enquanto o jogo está

em cena, tudo muda, constantemente, até que se finda, e não há continuação, e sempre na

próxima “vez”, inicia-se outro jogo.

Construir sentidos pela leitura do texto dramático é uma busca de entendimentos por

vários elementos que ele oferece.

O teatro é um jogo constante. Encenação, direção, atribuição de sentidos... Tudo está

em jogo e é o jogar com o outro que garante a hipótese do trabalho. Não se joga sozinho. É

preciso o outro, e é na relação que nascem os resultados mais ricos, que, no caso, pensando no

trabalho com o texto teatral, jogando com o mesmo, a leitura fica mais “fina” e diversificada,

e vai, ao tempo que se joga, sendo mais envolvente.

As pedras da “verticalização”

E se estamos a jogar, cabe salientar que no percurso da caminhada dessa pesquisa, foi

tomada a imagem ilustrativa e didática de que a leitura do texto teatral acontece a tal ponto

que o texto salta das páginas para o palco, verticalizando-se. Porém, deparamo-nos também

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com a possibilidade inversa, onde a horizontalidade do texto pode ser ao último

acontecimento de um processo (quando o texto nasce nos processos de montagem e só depois

vai para uma possível impressão). Dois recortes das entrevistas trazem esses apontamentos:

(...) A gente raramente senta pra escrever. Às vezes os atores sentam pra escrever o que eles vão fazer com a primeira cena, né. Se a dinâmica for essa, quer dizer, a dinâmica é: traga uma cena que... Mas é... Aí escreve alguma coisa pra não esquecer e tal, mas aí grava às vezes também, enfim... Mas não é essa preocupação assim, não existe, a gente nunca resolve a coisa no computador, num texto, nunca. A coisa é assim, vai ser ensaio, você apresenta... Inclusive se resolve na cena, e se resolve sobretudo no momento da encenação, no ato da representação. Quer dizer, assim, a gente abre muito nossos processos, e eu sobretudo tenho essa, essa dinâmica assim, eu gosto de assistir e falar: ah, isso é assim. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

(...) no “Tio Vânia”, nós pegamos as situações, nós dividimos a cena, a peça em vários fragmentos, né. E, a partir dessa divisão de fragmentos a gente procurou, de um processo assim, puxado até de um russo que é o Varsilia, ele que nos passou esse processo, que é da análise ativa, que é você pensar o que é o acontecimento principal desse fragmento, discutir o acontecimento principal desse fragmento, e como é que ele se conclui pra gerar um outro fragmento, um outro acontecimento principal. Então, a partir dessa discussão, dessa definição é, a gente improvisa sem estar com o texto memorizado, e aí essas improvisações dessas situações ou desses fragmentos, elas começam a gerar nos atores, a causar nos atores, um conhecimento grande dessas situações, das relações entre as personagens, do próprio personagem da vida desse personagem, então a peça inteira antes da gente memorizar as falas, a peça inteira fora improvisada a partir desse estudo de cada fragmento, de cada acontecimento principal e da conclusão desse acontecimento principal, desse método de análise ativa e a partir daí a gente fez esse processo durante quase dois meses, sem memorizar, e a partir daí, os personagens de certa maneira eles já tinham vida. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Eduardo e Lubi nos apresentam formas de “jogar” com o fazer teatral, e dentre isto,

formas de jogar com o texto teatral. Quando Lubi nos coloca que os atores escrevem possíveis

cenas, isso se dá diante do repertório de trocas que tiveram no momento de se “embriagar” do

tema; as cenas nascem desta “embriaguez” que conduz para a construção dramatúrgica, ou

não, conduz para a construção cênica de uma vez, porém, em cena ou no papel, o que entra

em jogo são as interpretações e compilações de leituras realizadas sobre determinado tema

para edificar o que cada ator quer dizer com a sua construção de representação.

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Eduardo nos coloca outra forma de jogar com o texto, fragmentando-o e a partir do

fragmento selecionado, criar possibilidades novas de cenas que antecedem ou procedem a

cena do fragmento, no método que chama de “análise ativa”. As cenas que podem se imbricar

ao fragmento que está sendo estudado para o jogo da cena certamente traz nas improvisações

de antes e depois referências de leituras outras que constituem e se enquadram, fazem uma

espécie de “ligamento” na encenação virtual de cada ator para jogar na improvisação com

outro. Jogam, assim, no ato de jogar da cena improvisada, com memórias suas, que os

atravessam e que vão vir a atravessar o ator com quem atua.

Em um texto teatral há elementos que não são descritivos, como muitas vezes

encontramos em um texto literário. Então, cabe ao leitor criar essa descrição, por em exercício

sua criatividade, ancorado em sua formação sociohistórica para dar vida ao drama, em

primeira instância para ele próprio, por seu entendimento; então nasce um tempo, um espaço,

personagens que não são rotulados, mas que surgem do imaginário: da leitura de quem está a

ler. Segundo Cagliari (1998),

Quando lemos, precisamos interpretar algo pensado e formulado linguisticamente por outrem [...] Ao nos apropriarmos do texto, na leitura, após a decifração, normalmente acrescentamos nossa opinião, nossa meditação, nossos devaneios e, às vezes, até modificamos o literal do texto. Isso tudo ocorre na nossa mente [...] (p.81).

Devemos levar em conta que somos história e que nos atualizamos a cada novo

movimento do ponteiro do relógio. Somos cingidos e atravessados pelo que nos circunscreve.

Ir a grupos de teatro conhecer suas histórias de leitura e trazê-las na tentativa de enxergar

caminhos que o texto teatral pode ser trabalhado nas salas de aula faz com que busquemos

mais um novo caminho da história, como aponta Koudela (2008: 106) “O texto teatral, criado

através do ato artístico coletivo, é materializado cenicamente, historicizando a

weltanschauung (visão de mundo) nos participantes”. Criar o texto pode apresentar-se em

mais um sentido: criar com a intenção de inventar uma história, e criar com a intenção de

reinventar, pois como já dissemos, o texto de teatro é vivo e precisa ser vivido, para isso é

preciso lê-lo reinventando-o pela sua própria história.

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As pedras do coletivo

Como já enaltecido acima, a importância do coletivo tange esses grupos de teatro em

todos os processos que compartilham:

(...) o processo é compartilhado por todos. (...) a gente tenta, eu acho que é uma coisa assim, que é um processo que todos, todos estão muito (...) uma coisa que é importante, não existe ensaio só com um, não existe... É sempre o coletivo vivendo essa experiência, assim. As peças são resultado de uma experiência de ensaio (...). (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

A fala de Lubi acentua para a importância de um trabalho coletivo, pois sem ele o

fazer teatral não aconteceria. Se se vive coletivamente, as experiências se tornam

compartilhadas e edificam homogeneamente os envolvidos. Claro que para cada participante

de um processo os acontecimentos atravessam de diferentes formas, porém, para a chegada de

um consenso (ou não, pois a divergência produz novos sentidos) um grupo que cresce junto

tem mais condições de chegar a um ponto em comum, ou ainda, de se adaptarem a novas

perspectivas que estão ou podem estar por vir.

Temos claro esse jogo de acontecimento na fala de Eduardo no fragmento a seguir,

relacionado à quando foi indagado sobre a mudança de atores para um mesmo personagem no

espetáculo “Romeu e Julieta”:

(...) O Gabriel sugeriu essa leitura até pela própria formação da Fernanda. A Fernanda é de formação bailarina, então ele achou que tinha uma coisa meio que de “Lago dos Cisnes” da morte dela e fez essa... E foi uma maneira que a Fernanda trouxesse uma contribuição dela pra montagem. (...) Acho que ele procurou mudar um pouco a estrutura da personagem, da cena, então acho que vem tudo muito aí dentro desse contexto, e claro, uma coisa muito importante acho que é formação da própria Fernanda como bailarina. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Fernanda Viana, atriz do Grupo Galpão, entrou no espetáculo “Romeu e Julieta” para

interpretar Julieta, na segunda montagem. Em sua interpretação novas leituras surgiram,

advindas, conforme Eduardo nos coloca, das indicações de Gabriel Vilela33 e também frente à

sua formação como bailarina. Tal situação merece destaque devido à valoração que o diretor

33 Diretor brasileiro que dirigiu “Romeu e Julieta” com o Grupo Galpão.

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dá às novas (possíveis) leituras de uma nova atriz para interpretar uma personagem já vivida

por outra. Assim o fazendo, o espetáculo ganha uma nova roupagem de leitura e interpretação

coletiva, pois junto a esse movimento, a mãe de Julieta, interpretada por Inês Peixoto também

sobe em sapatilhas, e todo o grupo, coletivamente, começa a ler o espetáculo com novos

olhos, com novas formações, o que acarreta em novas leituras para a composição de seus

personagens:

Muda, é diferente... A relação muda, muda sim. Acho que é uma outra leitura, e claro que a interpretação dela provoca em mim reações também diferentes, então é diferente do que era com a Wanda na primeira versão.(extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Eduardo interpreta Romeu há 20 anos nesse espetáculo do Grupo Galpão. Contracenou

com Wanda e com Fernanda e afirma que são novas leituras advindas do trabalho em cena

com outra atriz. Isso se dá, pois é outra interpretação que a cena ganha, todavia, outro jogo se

inicia, e ainda bem, pois o teatro deve ser vivo. Qualquer estado de “estável” quando sentido

para quem o faz ou quem o assiste (se bem que quem o assiste também o faz) leva para um

lugar não existente no querer do teatro: o engessado.

Engessar um espetáculo teatral é um grande risco que correm os grupos de teatro,

principalmente quando essa obra é apresentada várias vezes. O ator sabe que determinada

ação dá certo e passa a repeti-la sempre, porém, a essência vai se desgastando e em

determinado momento, o que o ator faz é puramente técnico, sem essência, sem o diálogo

com a plateia, e então, a plateia, o leitor-espectador, não mais é atravessado pelo que assiste, e

nada passa a ter sentido, pois a obra passa a ser apenas de quem está a apresentar.

(...) você manter intacta essa poesia, fazendo quase trezentas apresentações já, é uma coisa que você tem que tomar muito cuidado, fazer com que essa poesia permaneça viva. Acho que é sempre o desafio do teatro mesmo, essa coisa de manter uma peça, um espetáculo como uma estrutura viva, uma coisa que acontece ali, naquele momento de maneira intensa, viva e não que seja uma mera reprodução de uma coisa já aprendida, meio morta, nesse sentido. E o “Romeu e Julieta” é isso, ele tem uma poesia profunda, uma história de amor, mas acima de tudo ele tem uma coisa poética desse nascimento do homem moderno, do homem que se contrapõe à sociedade, à violência da sociedade, um herói moderno mesmo, burguês nesse sentido de individualmente pleno. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

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O teatro tem disso: a multiplicidade de sentidos, o multiplicar-se pelos sentidos.

Voltando a explanar sobre a montagem “Romeu e Julieta” do Grupo Galpão, o espetáculo está

em sua terceira montagem, ocorrida desde sua estreia em 1992, há 20 anos o espetáculo está

na estrada. Mantê-lo vivo deve realmente ser um grande desafio, porém, se durante esses vinte

anos o diálogo fora mantido e reativado e atualizado sobre os pareceres deles próprios, atores

(leitores primeiros de sua obra) e de seus espectadores, certamente a poesia estará viva... E

está! Durante a primeira montagem em 1992, a atriz que fazia Julieta era Wanda Fernandes.

Seguido a ela, veio a Julieta de Fernanda Vianna, que traz em si outra proposta na construção

da personagem (como citado acima), como por exemplo: a Julieta de Wanda era descalça, a

de Fernanda usa sapatilhas de ponta. Cada atriz teve sua leitura sobre a personagem, ou ainda,

o próprio diretor teve sua leitura sobre a mesma personagem que seria outra, porém, com a

mesma essência da Julieta de Shakespeare, pois essa essência não muda. Wanda trazia uma

Julieta mais criança, inocente... Já Fernanda, uma Julieta mais madura, determinada e que nos

convida para voar com seus sonhos ao tempo que nos embala sobre as sapatilhas e alça voos

sobre a Veraneio34 do cenário.

Esse é um exemplo grandioso de não engessar nem a obra, nem os personagens... Não

só os atores mudam e dão outra leitura a uma obra, o público também muda e mudam as suas

invenções interpretativas. O espetáculo sempre será outro, como os personagens, como os

espectadores, como eu, como você... Estamos a todo tempo “sendo” e tornando-nos outro(s).

As pedras da plateia

Quanto aos gestos de leitura sobre uma obra durante os processos de criação, chamou

a atenção o movimento que ambos os grupos têm em relação com a plateia, que é a grande

leitora dos “textos verticais”.

Um texto em mãos abre jornadas. A cada nova linha lida, novos mundos vão sendo

criados pelas possibilidades que abrimos ao nos entregarmos ao que estamos lendo. Na

verdade, a sensação ora é de descoberta, ora de descobrir-se, de revelar sentidos. O texto

precisa significar, fazer parte e caminhar pelos sentidos de seu leitor, produzindo

34 Automóvel da Chevrolet usado no cenário.

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interpretações, modificando o leitor que passa a ser outro a cada nova experiência de leitura,

afinal, a todo tempo estamos em busca de ser um novo, ou ainda, sem percebermos estamos

sendo um novo a cada novo instante. Perceber-se novo é aceitar acontecer. “É que ela própria,

por estranhar-se, estava sendo. (...) disse-lhe bem baixo: - Estou sendo... (...) Ficaram calados

como se os dois pela primeira vez se tivessem encontrado. Estavam sendo”. (LISPECTOR,

2011: 71, 72)

Clarice sempre (ben)dita oferece um de seus fragmentos para ilustrar os dizeres

quistos para essa reflexão; perceber-se estar sendo causa estranhamento... A sensação de ser

gerúndio perene tira-nos da zona de conforto, que nos estabiliza e nos dá garantia, porém, ao

mesmo tempo, nos deixa estanques, atônitos em relação ao devir. No texto de Clarice, Lóri e

Ulisses estão se descobrindo e percebem-se “sendo” em estado de epifania. Se transferirmos

essa relação para um leitor e o texto, percebemos que de primazia o contato com o novo

repele, não te faz sentir parte... É ainda um texto e um leitor, porém, na medida em que se vai

permitindo ser, e isso se dá por diálogos que só o leitor do momento tem com seu texto; pois

bem, à medida que se vai permitindo ser, conhecer, experimentar o texto, temos um estado de

“estar sendo” de leitor e texto, pois o texto também só estará sendo se for motivado e

convidado a ser.

Agora, focando a relação de “estar sendo” entre leitor e o texto de teatro, temos essa

dinâmica mais acentuada ainda. O teatro não nasce, ele está a todo o tempo nascendo. Uma

pessoa que pegue um texto teatral em mãos está sendo, constante, a cada nova fala, a cada

nova cena, a cada novo personagem. Se atentarmos ainda para a questão que os grupos de

teatro entrevistados aludiram em algumas passagens, temos, no caso do leitor de teatro, outro

tipo de leitor - o leitor-espectador - aquele que lê a leitura feita por um grupo sobre

determinado texto com a finalidade da montagem de um espetáculo.

Eduardo do Grupo Galpão, durante a entrevista, traz uma passagem interessante que se

entrelaça a essa questão, a do leitor-espectador, quando explicita o processo de montagem de

“Romeu e Julieta”:

(...) primeiro a gente queria fazer um espetáculo pra rua, isso já é bastante determinante pra uma porção de coisas, por exemplo, dar uma “enxugada”

no texto, porque, se a gente fosse montar o “Romeu e Julieta” original seriam três horas de montagem e ficaria excessivo pra rua, a rua exige uma certa concisão, cenas mais rápidas, né, então, isso aí já foi um elemento determinante. E a gente queria fazer um espetáculo, nas palavras do Gabriel, do diretor, um espetáculo voltado, assim, muito pro interior, um Brasil do interior, um Brasil profundo, vamos dizer assim, tanto é que a gente foi

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ensaiar numa cidade muito pequena do interior, chamada Morro Vermelho, a gente ensaiou junto com essas pessoas dessa cidade que acompanharam os ensaios, isso deu elementos muito importantes para cortar algumas coisas ou não... E aí, tinha essa coisa, né, de usar a música, uma história de amor... E a gente pegou certas referências musicais, principalmente das serestas, das modinhas, da música da belle époque brasileira, então, isso tudo foi criando assim uma ambiência pra obra, pra adaptação, que obviamente a gente trabalhou o tempo inteiro com um dramaturgo, que era o Cacá Brandão, que acompanhou todo o processo, que não foi só fazendo nossa assessoria teórica, pra nos dar elementos teóricos do teatro elisabetano, do barroco e colocando dentro disso, esses elementos da cultura popular brasileira. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

O processo de montagem que o Grupo Galpão passa juntamente com o diretor Gabriel

Vilella no espetáculo “Romeu e Julieta” mostra, pelos ditos de Eduardo, uma preocupação

com a plateia, com o leitor-espectador. Se tratando de um texto que, se trabalhado

integralmente, passaria do aconselhável para um espetáculo de rua, afinal era essa a intenção

desde o início da montagem, construir o espetáculo para a rua, tem-se aí a primeiro embate

que exigiu uma adaptação profícua para acolher os pressupostos que se queria atingir com a

montagem da obra: um espetáculo de rua lida com fatores não costumeiros a um apresentado

em um teatro tradicional; na rua o clima oscila, as pessoas oscilam, o espetáculo “concorre”

com outros atrativos que estão na rua e também com fatores que podem prejudicar o trabalho,

como, por exemplo, os sons do urbano (carros, conversas, alto-falantes, entre outros). O

tempo na rua é outro, e precisaria ser outro para atender aos leitores-espectadores que

estariam assistindo à peça.

Ainda, e isso vem diretamente ligado às questões dessa dissertação, o texto precisaria

se aproximar dos leitores, ou, o espetáculo dos espectadores. O teatro em cena é o texto em

cena. Os espectadores são os leitores desse texto verticalizado e são eles que estarão “sendo”,

junto à apresentação, durante o momento efêmero em que o espetáculo acontece. Construir o

espetáculo junto às leituras dos espectadores, certamente trouxe a dosagem necessária para a

consolidação de uma obra completa.

Já que a intenção era por ter uma montagem de “Romeu e Julieta” mais interior - e aí,

ouso empregar a dubiedade do interior geográfico, e do interior do ser humano, que nada mais

são, ambos, do que a descoberta dos novos territórios - ir para a cidade de Morro Vermelho,

no interior de Minas Gerais, culminou em viver as “Minas Gerais Particulares” dos atores

junto à comunidade local, que possibilitou a expansão de interiores.

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O olhar do outro revela. Cada um lê embalado por sua formação sócio-histórica

(CHARTIER, 1996). Portanto, construir leituras para leitores junto a eles realmente não só dá

margem para múltiplos novos olhares, como além da margem, convida a mergulhos

profundos no universo do outro, aquele a quem se quer tocar, aonde se quer chegar.

O teatro é a arte do encontro. Ao ler uma peça, estando em cena ou como espectador,

mudam-se as interpretações, pois é diferente o lugar de onde se lê, e ainda a intenção de se ler

(CHARTIER, 1996). A prática muda porque, como exemplo, um ator/diretor que lê oferece

uma leitura ao seu público, que relê, agora com seus olhos, de outro lugar, do lugar que

ocupa.

Lubi do Grupo XIX de Teatro, também explicita claramente essa âncora dos atores em

seu público, o leitor-espectador:

(...) como é que esse material tá atravessando essa plateia. E às vezes os cortes se dão por, por, por diversos motivos, assim, tanto numa lógica de “não, vamos cortar porque tá grande e as pessoas vão ficar dispersas” ou, tem muito isso “nossa, isso abre uma porta que não leva a plateia a lugar nenhum”, percebe que o texto essa hora leva pro labirinto, ou ele tá confuso, ou fazia muita lógica no processo, mas na peça é um, um peso morto, aí, mais uma vez a gente tem que responder pela, pela cena, né. Ele vai se impondo, o espetáculo se impõe, né? Ele vai se impondo dramaturgicamente, ele vai dizendo “não, isso é daqui!” por mais que você insista, ele vai se impondo. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

O teatro é feito para quem o assiste; portanto, ninguém melhor que quem o lê em

acontecimento, em estágio de “sendo” por outros no palco, para “estar sendo” em si: leitor-

espectador. Lubi é perspicaz ao usar o “atravessando a plateia”, pois essa realmente deve ser a

intenção: é um contínuo acontecimento. Durante o espetáculo, ou depois, o público deve estar

sempre sendo atravessado e atravessando, junto aos atores em cena, o texto, a história, o

acontecimento. Se algo em cena cair no passado, ou ainda, cair no nada, quem pode dar esse

olhar é o leitor-espectador, que foi convidado para viver essa nova leitura, e, se isso acontecer,

corre-se o risco de não se “estar sendo”.

O espetáculo ir “se impondo dramaturgicamente” se dá pela realidade de acepção que

o outro faz da leitura da obra em confluência com a leitura de atores/ diretores que leram a

obra em prima instância para montá-la. O texto precisa significar na obra como um todo... É o

texto de teatro que abre caminhos para construir a obra geral... Iluminação, cenografia,

figurinos, adereços, personagens... Todas essas linguagens se unem dinamicamente durante a

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leitura do texto que vai abrindo possibilidades de outras leituras, e que, ao ser apresentado,

agora verticalmente, está para novos olhos.

A questão aqui não é se está ou se não está bom, mas se está ou se não se está “sendo”.

Esta relação com o outro que parece dar uma espécie de feedback para os grupos que estão em

processo de montagem de um espetáculo se estreita piamente aos conceitos de dialogismo e

polifonia ancorados em Bakhtin (2003) no corpo dessa dissertação. Dialógico porque se

concebe num espaço de interação com o outro e se constrói por meio dessa mesma interação

de acordo com os interesses do leitor (atores do grupo) e das imagens que este (leitor-

espectador) faz do texto. Polifônico porque, apesar de proferido por um sujeito específico, é

perpassado por outras vozes, outras visões.

Quando Eduardo coloca sobre os elementos que o outro oferece e que cria uma

“ambiência pra a obra”, leva-nos lá, para o interior de Minas Gerais, para as arquiteturas

marcantes da obra barroca, para as cantigas de roda cirandadas em meio às ruas por crianças

com os pés descalços, para o detalhe sutil das flores de plástico que adornam os altares, para o

interno na adaptação do tempo de “Romeu e Julieta” do Grupo Galpão dialogando com a

estilística literária de Guimarães Rosa que nos conta o sertão mineiro.

O espetáculo é tecido por uma musicalidade pueril que vem para cantar o amor

proibido pelo ódio de duas famílias européias. A cantiga “Flor minha flor, flor vem cá, flor

minha flor, laia-laia-la-ia” é o arauto que nos convida a fazer parte dessa história que iremos

começar a “ser”. Ativamos logo de entrada relações com nossa juventude, com as cantigas

que cantávamos quando crianças e que nos embalam até hoje, fazendo com que nos

conectemos e que façamos parte do que estará por vir.

Tezza (1988) esclarece, apoiado em Bakhtin, sobre a relação com o outro na

constituição de um discurso, (no caso, de uma montagem e apresentação de uma obra teatral)

que não é uma obra fechada e acabada feita por um indivíduo apenas, mas é um processo

heterogêneo, que acopla discursos que estou “sendo” e que o outro está “sendo”. Em um

discurso, o dito não é nosso, é transmutável: o dito é daqui, por intermédio dali e de acolá. O

discurso se constrói, cria morada, mantêm estadia e se vai, se esvai para outros mundos, novos

mundos, que vão recebê-lo com novos sentidos. O dialogismo é a relação que se dá pelo

diálogo e traz em si a polifonia, entendida como “o efeito obtido pela sobreposição de várias

linhas melódicas independentes, mas harmonicamente relacionadas” (TEZZA, 2002, p. 90).

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Um discurso passa por outro compondo uma harmonia; é a polifonia que harmoniza as tantas

vozes presentes no discurso, possibilitando caminhos para as interpretações.

Enquanto leitor-espectador, cruzo o que já é meu com o que estou recebendo e crio por

esse emaranhado, uma teia de conexões que podem vir a dar sentido ou não, que fazem com

que, ao ler uma peça de teatro verticalmente, eu esteja “sendo” no momento da apresentação.

As pedras do como

Ainda, se estamos desde o início da tentativa desse “ladrilhar” buscando caminhos de

como o fazer teatral acontece relacionado à leitura de textos, cabe evidenciar como esses

leitores, que já passaram os olhos por tantas peças de teatro, articulam seus gestos de leitura

com um texto de teatro em mãos, além de outras configurações textuais.

(...) Eu acho que quando você pega um texto, ele também tem uma questão que é de época assim, também, né. Nós somos de uma geração, de um tempo, não é nem geração, de um tempo onde a palavra tá num outro lugar, né, então, naturalmente eu acho que qualquer espetáculo teatral escrito nos últimos anos ele tem menos impacto na leitura, do que um espetáculo... Porque no fundo teve um tempo que o teatro era a palavra mesmo, não tinha... Era dado aquilo, e aquilo fazia um sentido enorme pra aquela sociedade, né, e não era nem um estranhamento. (...) o nosso tempo é o tempo em que inclui imagem, inclui as outras coisas, então é claro que eu me ressinto muito, assim, quando eu leio um texto , e também a leitura, assim, ela te abre um porta, você vai pra um lugar, mas eu tenho, às vezes quando eu leio, eu tenho que encenar pra ler, senão não consigo assim, se eu não vou encenando na minha cabeça... Senão ele vira uma experiência literal pra mim, aí, é como se eu tivesse lendo um livro, mas geralmente o texto de teatro vai me... Então eu já vou criando cenário, já faço um “mini casting”, entendeu, e vou colocando... Mas ao mesmo tempo eu acho riquíssimo que isso seja registrado, acho que não é à toa, a gente tem um livro que enfim... Acho que é interessante, inclusive interessante esse desafio de perceber, mais recentemente, porque eu já encontrei muitas pessoas que dizem: já li “Hysteria”, mas nunca vi. É estranhíssimo pra mim. Eu tenho vontade de dizer assim: então você não viu. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

O fragmento de Lubi ilustra e dá vazão para as inquietações de um leitor assíduo de

textos de teatro. Consciente de que na sociedade atual a palavra está cada vez mais perdendo

sua vez, firma a ideia de que um texto lido não é a mesma coisa que um texto vivido, tanto

para os atores quanto para a plateia. A leitura é outra. Um texto de teatro é escrito com a

finalidade de se transformar em uma montagem.

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(...) o teatro é uma coisa oral, ele é feito pra ser lido, lido em voz alta, quer dizer, ele tem uma oralidade, o que importa é a fala, né, por isso que às vezes é tão difícil você traduzir uma peça de teatro, porque não basta você expressar claramente a ideia do que o personagem está dizendo, mas tem a ideia de como o personagem diz, e isso de certa maneira, cada ator vai fazer o personagem de uma maneira dele, específica dele, então, é uma coisa muito difícil, teatro no papel ele ainda não é teatro, ele ainda não é personagem, então, ele é uma fala na folha de papel, e dar vida a isso, aí cabe ao ator fazer isso, né, é um pouco isso, assim. Não existe um “Hamlet” abstrato, existe um “Hamlet” concreto que o ator vai encarnar, enfim, vai fazer ele e isso eu acho que é uma coisa inevitável, essa transposição do papel para a vida concreta é a missão do ator, humanizar isso. (extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

Acima, Eduardo, no fragmento selecionado, aponta para, como Lubi, a necessidade do

teatro vivo. Vivido. Traz veementemente, a ideia de que o teatro no papel ainda não é teatro

propriamente dito, e ainda, direciona o papel do ator no teatro, com a missão de concretizar a

vida dos personagens, situação que não escapa dos leitores, que são os atores propriamente

ditos, ou ainda, os espectadores de uma peça, e também, os leitores simplesmente, de textos

teatrais.

O teatro no papel tem uma atuação diferente, para o leitor, do teatro “verticalizado”,

em cena. Uma leitura outra. Porém, uma situação não nega a outra, ao contrário, elas se

completam. Um bom leitor de textos teatrais sempre estará mais apto para receber leituras de

peças teatrais, e diante delas, interpor suas leituras sobre o que está assistindo (lendo).

“A great part of the Grace of this (…) lay in Action; yet can no Action ever be gracious, where the decency of the Language, and Ingenious structure of the Scene, arrive not to make up a perfect Harmony.” 35A leitura é a única maneira de atingir a plena compreensão desta perfeição estética e desta ingenuidade dramática. (CHARTIER, 2002: 72 - trecho em inglês publicado na revista “The Devil´s Law-Case”, 1623)

Chartier (2002) utiliza-se de uma colocação da revista “The Devil´s Law-Case” de

1623, para consolidar a ideia de que a linguagem circunscreve a obra de teatro em cena, e é

esse fator que redobra a importância de se ler bem um teatro “horizontal” para se ler bem um

teatral “vertical”. É pelas vivências que se tem que se atribui sentidos ao que vive. Para dar

vida a personagens, para, durante a leitura, ter o privilégio de ir imaginando cenas enquanto se

lê, é preciso ter uma bagagem histórica que permita acionar esses referenciais vividos, para

que então, sejam vividos para se ler um bom teatro (impresso ou interpretado).

35 Grande parte da graça de uma peça depende de sua representação. Entretanto, uma representação nunca será

graciosa sem que a decência da linguagem e a engenhosidade da encenação se unam em perfeita harmonia.

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As pedras da escola

Com as conversas realizadas com Lubi e Eduardo, caminhamos até chegar a um

questionamento que não nos escaparia: “Como a leitura do texto teatral pode acontecer nas

escolas?” Traz-se dois recortes, cada um de um dos entrevistados, que explicitam e aludem a

tal questão:

Eu me lembro que, na escola eles colocaram “Vestido de Noiva” na minha mão, e eu me encantei, porque de uma maneira o teatro, o texto dramático, ele cria, de uma maneira ele já descreve um, um cenário, eu fico imaginando que isso vira um jogo pra ele... É uma coisa que você pode ler com namorado, com namorada, com amigos, diferente do... Não faz sentido eu ler “Dom Casmurro” com você, e já um texto desse eu acho que é um,

eu acho que tem uma porta muito legal, porque, “Ah, então vamos ler nós

seis amanhã em casa?” Ele mesmo quase que já propõe uma atividade, assim... Eu fico imaginando que deve gerar um pouco isso, assim. Claro que as professoras poderiam incentivar, e incentivar não só na perspectiva de fazer uma montagem, mas de brincar com essa leitura, né, a leitura dramática inclusive que as pessoas colocam geralmente como um... A leitura dramática no Brasil é meio que assim, um ensaio mais ou menos, né, quando não, ela é algo em si, esse ato da leitura, esse ler junto, ler em voz alta, que é uma coisa que o brasileiro tem pouquíssima tradição, sobretudo de escutar. Eu acho que a pessoa categoricamente até lê alto, mas parar e escutar, ter esse exercício, e isso é atividades muito comuns, assim, que no Brasil vi pouquíssimas vezes, de encontros pra ler, por exemplo, “Dom Casmurro”, não, “Dom Casmurro” não... O exemplo que eu vi lá na França era o “Dom Quixote”, então falava assim: Gente, começa meio-dia e acaba a hora que acabar. E são as pessoas lendo, você leva o seu “Dom Quixote” e aí é o lugar que vende bebida, vende comida, e as pessoas ficavam lá lendo, e cada um interrompia o outro a hora que quer, aí as vezes falam duas vozes, as vezes um voz só, e as pessoas tão lá escutando... O que me assustava era as pessoas escutarem, porque aqui no Brasil acho que não daria a questão da escuta, né, porque o problema nosso acho que é um pouco criar ouvidos, né, porque olhos temos muitos e bocas bastante, mas ouvidos nenhum, então, acho que olhar com, com essa relação com o ouvir seria belíssima. (extraído da entrevista realizada com Lubi, grifos meus).

(...) fazendo com que os alunos leiam o texto, quer dizer, leiam em voz alta. Claro que pra isso é importante que eles leiam, conheçam a peça, conheçam a situação, conheçam as relações que existem entre as personagens daquela história tratada na peça, leituras individuais podem ajudar, mas eu acho que como efetivar essa, esse fenômeno teatral, fenômeno dramático, isso tem que ser uma leitura em voz alta, e enfim, que as pessoas procurem se relacionar, quer dizer, o que um lê de certa maneira afeta o que o outro vai ler também, de certa maneira que exista diálogo nesse sentido e não monólogos isolados, mas exista de fato diálogo, criar esse diálogo. (Extraído da entrevista realizada com Eduardo, grifos meus).

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Ambos os recortes pensam em possibilidades da prática de leitura no cenário escolar.

Temos nos depoimentos que o texto dramático firma-se enquanto na prática pela relação, a

construção dos sentidos por intermédio de, retornando, um jogo teatral. Esse que nasce na

perspectiva de por em cena as experiências pessoais com as do grupo, na improvisação, pela

troca formativa. O jogo possibilita, assim, conhecer o outro e, por ele, fazer parte... Leituras

em grupos, leituras em voz alta, com entonações e ainda pesquisa acerca do que se está lendo,

ou seja, uma leitura “puxando” a outra... Relacionando-as (-se).

Na escola, as leituras coletivas, em voz alta, além de serem de suma importância para

o trabalho com o texto teatral, geram um outro exercício: o da escuta. Ao ouvir se lê de nova

forma, com outros sentidos que vão sendo atribuídos, sentidos que vão gerando novas

possibilidades de interpretar um texto. Ler, assistir a uma peça, ouvir um texto, cada tipo

funcional dialógico atinge o receptor de uma forma diferente, e ainda bem, pois assim os

caminhos vão tornando-se vários.

Em sociedade, na comunhão da convivência, temos as relações que fazem cruzar

diferentes formações culturais, que trazem em seu âmago características da cultura primitiva

constitutiva, e essas características trazem o lúdico, que está em seu cerne e se processa no

ambiente onde o jogo acontece.

A arte necessita do jogo em sua constituição, pois o jogo abre caminho para a criação,

para a expressão, e a arte se pluraliza em radiações de voz, dos que querem falar sobre algo.

Esse passeio que o jogo permite, de deslocamento do real para o lúdico, alimenta o artista que

produz segundo o que lhe constitui; assim, passa a constituir o apreciador de sua arte.

As práticas propostas por Eduardo e Lubi, apontam para a “fluidez” de jogar que o

próprio texto oferece. Ler com amigos, em voz alta, enaltece valores na escola de ouvir ao

outro, de expor-se ao outro, e ainda, de refletir frente à leitura de outrem entrelaçando-a sua

leitura.

Temos que a cultura adquire “novas culturas” a todo o tempo. E, diante dos

apontamentos até então, está a cultura constituída por diversas relações advindas do jogo.

Joga-se a todo o instante. As relações nascem no ato de jogar, com o outro, para o outro, pelo

outro.

Assim, em práticas com o texto dramático por esse viés proposto pelos entrevistados,

traz-se à tona o que podemos chamar de sedução: como somos (ou não) seduzidos pelo que

nos envolve, pelo meio que nos tange e nos preenche. Nas vivências teatrais, está constante o

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ideário da sedução, na construção das personagens, na plateia que prestigia, no ato da cena.

Seduz-se de maneira a arraigar o outro de sua história, envolvendo-a nela. Há troca! O

personagem seduz o ator, o ator seduz a plateia por intermédio da personagem, e isso se dá na

ação, pois os personagens se seduzem para seduzir. E, para construir a sedução, que se

encadeia em processo de “fagocitose”, aos poucos, com suas (nossas) histórias, se conquista o

outro, persuadindo-o a crer na sua verdade, que jamais é absoluta: ela titubeia à medida que

outras seduções passem a seduzir... Filiamo-nos assim, então.

O jogo, na relação de formações simbólicas, ganha importância no prisma de que ele

possibilita o caminhar pelo simbólico, tendo como via de regra, não postulações de

arbitrariedade, mas de destino, de efusão. O jogo também traz a sedução, que transborda em

aparências, em fascínios de duais. Se tratarmos de jogo, temos que ter. Frente aos jogos que

um trabalho com o texto teatral permite, cabe uma colocação de Barba (2010), que afirma que

[...] o ator aprende a utilizar um texto não só como meio discursivo, mas como arma de ataque. Ele se exercita, portanto, para obter toda uma gradação de ritmos crescentes e decrescentes, de nuanças e timbres de voz, de rouquidão, de tremulações, de entonações artificiais, de modulações, inspirando-se especial na tradição sonora litúrgica, até ser capaz de compor exatamente, e em plena consciência, cada gesto, cada movimento, cada expressão mímica, cada palavra, cada silêncio do papel que interpreta. Porque para ele atuar significa executar uma exata partitura física e vocal que terá minuciosamente ajustado por meses inteiros. (p.98, 99)

Constrói-se no ato de jogar, e a palavra brinca de ser para se tornar. Toda formação,

filiação, vem de uma construção social, que, a partir de que se faz parte, pode ser alterada. A

filiação vem das possibilidades às quais nos adequamos, pela ancestralização que nos cerca e

nos constitui e pela vertente filosófica a qual nos tangenciamos.

Os valores que se atribui aos signos também são historicamente construídos; antes de

pensar sobre o pensamento, deve-se pensar quem pensa o pensamento, o que atravessa quem

pensa para pensar e valorar como valora. O ato de permitir-se adentrar outros territórios gera a

caracterização de territórios novos, que condizem com o que, por exemplo, o corpo quer

dizer. Se forma em várias formas, pois se permite ser arraigado por novos conceitos que

tornam possível a fluidez do ser. Quando se pensa nessa aglutinação de territórios, se coloca à

mesa toda a ancestralidade que carrega e engendra a formação de culturas. A ancestralidade é

assim um espaço que, na urdidura, se edifica e verticaliza o tempo das gerações. A memória é

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recurso significativo, pois abre espaço para a tessitura contextual que reconstitui ao tempo que

cria. É esse tempo que constrói a identidade.

O ambiente escolar é um espaço potenciador para a tessitura da identidade, pois

precisamos do outro. A relação com o outro diz tudo, preenche tudo. É pelo outro que

identificamos o que já somos, e o advir de ser. Nas práticas teatrais com viés educacional o

cruzamento das bagagens formativas é condição basilar. É preciso coletar, unir, contar

histórias, para que se possa contar tantas outras.

Essa temática certamente possibilita um contato mais profundo com as questões que

influenciam na formação sócio-cultural dos indivíduos, abrindo caminhos para a dúvida

quanto a estigmas traçados do que é fazer parte de um grupo social valorizado pela sociedade.

Antes disso, é preciso haver a valorização do eu enquanto sujeito constituído em certa

formação cultural.

Somos em retalho. Emendamos, atamos, damos nós, que podem ser frouxos, ou não,

mas eles existem, e nos fazem assim, existir: termos história, trajetória. Nossa história advém

de outras, se engendra e nos engrena. Nosso corpo, todavia, é histórico. O gesto e o

movimento dizem com voz de outro lugar, de outro alguém para aquém. Essa possibilidade de

experimentar as traduções e transfusões do corpo que se comunica possibilita, de antemão,

passeios históricos internos, para tornarem-se externos, para os que, sabiamente, se permitem

entrar no jogo.

Breve suspiro

Certamente, não se esgotaram as possibilidades de entrelaçamento das falas dos entrevistados

com as possibilidades que buscamos: o texto teatral na escola. Todavia, por hora, temos

reflexões que nos transbordam sobre esse olhar, olhar intencional que busca uma didática

“recomendativa” que valore as práticas de leitura e o trabalho com diferentes gêneros textuais

nas escolas, dentre eles, o gênero teatral.

Lubi e Eduardo. Grupo XIX de Teatro e Grupo Galpão. Por mais que dois

entrevistados apareçam nessas reflexões, são eles construídos por seus grupos, pela vivência

coletiva que afirma o trabalho em busca de significações, encantos, sabores, jogos, e por aí

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vão, e vem para trazer-nos mais territórios a serem pisados, na tentativa incessante de fazer a

arte viva nas escolas, o teatro presente na vida das pessoas, e a leitura uma multiplicidade de

sentidos.

AMANDA - Tá bom, tá bom, tá bom... Mas e daí...

FERNANDO - E daí pra mim as coisas estão muito ligadas... Seu personagem não é essa

coisa morna que você está pensando...

AMANDA - Mas a troco de que ele vai ser tão bacana, tão inquieta, tão "procurativa" de

integrações...

AUGUSTO – Procurativa, olha aí!

AMANDA – Não enche! Por que ele vai ser assim? Não tem motivação para isso... É uma

mulher, como milhões de outras, que se enche, e, talvez, se encha pelo simples fato de ser mulher,

de viver nas condições de mulher.

FERNANDO - Também, também... Mas não só... Pra que essa mania de simplificar tudo,

reduzir tudo a sim e não? Não é bem assim... Vamos procurar que a gente encontra. [...] Olha, a

minha proposta é seguinte. Vamos partir do relacionamento do casal. Vocês podem usar qualquer

elemento. Não precisam se restringir ao que está no texto. Os outros vão se integrar no exercício...

Da forma que sentirem... [...]36

Fim do Quarto Ato

36 Trecho do texto teatral “Um Grito Parado no Ar” (Guarnieri, G.. 1973: 47, 48, 49).

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EPÍLOGO

A EXPRESSÃO

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SEGISMUNDO - ¿Qué os admira? ¿Qué os espanta,

si fue mi maestro un sueño,

y estoy temiendo, en mis ansias,

que he de despertar y hallarme

otra vez en mi cerrada

prisión? Y cuando no sea,

el soñarlo sólo basta;

pues así llegué a saber

que toda la dicha humana,

en fin, pasa como sueño,

y quiero hoy aprovecharla […] 37

CAMINHADO E AINDA ANDO!

Leitor do agora, peço licença para uma descrição cênica:

Um “elipsoidal pino”38 no palco transfere a plateia, os leitores desse momento, a

silhueta, meio sombra meio em foco, do caminhante primeiro dessas páginas, o eu, um ser

que era tantos… Diversos, e que dá vida a Segismundo, em um solilóquio de “A vida é

Sonho” de Calderón. Respiração alta, vê-se nítidamente seu diafragma em ação. Suores

escorregam pelo dorso e o olhar sobe lentamente para o encontro da plateia, um olhar de

primeira baixo, duvidoso, tímido, de quem pede licença para… para sonhar.

37 “SEGISMUNDO - O que você admira? O que assusta você,/ se o meu professor era um sonho,/ e eu estou

com medo, na minha ânsia/ Eu tenho que acordar e encontrar-me/ novamente fechado em minha/ prisão? E se não for,/ o sonho apenas o suficiente;/ Eu vim a saber bem/ que toda a felicidade humana,/ em suma, vai como um sonho,/ e hoje eu quero aproveitar (...)” (Trecho do texto teatral “La vida es sueño”. LA BARCA, C. 197)

38 Tipo de iluminação usada para espetáculos.

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Pelo caminho das pedras amarelas

A passagem de “La vida es sueño”39, configurada pelo solilóquio40 de Segismundo é

uma escolha de necessidade para a abertura das reflexões sobre o epílogo dessa história. O

solilóquio traz em seu cerne a complexidade do pensamento, pois é um atrito de reflexões

entre o eu e o eu mesmo. Na peça em sua íntegra, o autor valora a liberdade, a expressão e os

caminhos para se chegar a ela. Certamente, embutido pelos pensamentos de Platão, que

podem ser encontrados no texto “Alegoria da Caverna”, onde o homem é prisioneiro em um

primeiro momento, o autor configura toda a tessitura textual em um sonho... Na escuridão, até

tomar caminhos para chegar à luz (MARCONDES, 2005), afinal, na primeira parte do

espetáculo, Segismundo está trancafiado em uma prisão, e a luz aparece metaforicamente em

alusão à consciência de suas capacidades.

Vamos então, em busca de luz, ou ainda, de luzes.

Tudo sempre se inicia com engatinhos desequilibrados e com o tempo, com a

insistência, prática e perseverança, se ganha confiança, as pernas ganham força e se passa a

andar, ainda, logo que se aprende, a andar sem confiança, depois se corre, salta, dá

cambalhotas e chega a hora de escolher os caminhos.

Iniciar os estudos dessa dissertação de mestrado seguiu a lógica de se aprender a

andar, como tudo que se inicia, vai, carecendo de se aprender a. Com a confiança adquirida

pelo caminho, novas setas foram surgindo, atalhos, desfiladeiros, matas fechadas, rodovias,

enfim, todo tipo de caminho se permitiu aqui estar e também por eles andar.

Durante os dois anos de trabalho dedicados à busca contida neste estudo do que, como

e o porquê do texto teatral presente e vivo na escola, tive oportunidades ímpares que se

atrelaram ao que tanto me completa em essência: o teatro e a leitura. Li, assisti e vivi

experiências com grupos de teatro, com pesquisadores da educação e arte, com colegas da

academia através das quais pude aprender e trocar muito durante a caminhada, a ponto de os

ensinamentos adquiridos transbordarem essa dissertação e serem usados para toda uma vida

inteira, e que satisfatoriamente ecoam nesse solilóquio em estandartes de reconheicmentos.

39 Texto teatral escrito por Pedro Calderón de la Barca – escritor, poeta e dramaturgo espanhol do período

Barroco. 40Quando o ator fala consigo mesmo.

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E das buscas incessantes do caminho, e de encontros que não eram buscas, mas foram

descobertos, fica a pairar a questão que tomo como espinha dorsal desse trabalho: como a

leitura do texto teatral pode acontecer nas escolas de forma significativa? E por esse

solilóquio de percepções e reflexões, são gerados alguns pareces, certamente, e não poderia

ser por outro viés, apoiado sobre as falas dos entrevistados que enriqueceram as reflexões

sobre essa questão.

Na busca por responder o que me instigava no início da longa jornada trilhei por

vários caminhos: teóricos do campo da interpretação, da linguagem, da arte e educação;

grupos de teatro que vivem o fazer teatral em essência; e ainda, caminhos meus, rememorados

e novos de práticas sobre o que já fiz e estimulo-me a ainda fazer.

O teatro não tem seu lugar. Ele pode (e deve) estar em todos os lugares. Ainda, se

pensarmos que o lugar do possível teatro seja a escola, temos uma necessidade. A escola é o

campo do conhecimento por excelência; onde se troca, se aprende, se ensina as diversas

linguagens que formam o ser humano. Fazer teatro na escola é torná-la, ainda mais, um

território de movimento, de criação, e fazer não está aqui no sentido único de encenar uma

peça, mas de estar em cena com o teatro – sua história, suas práticas, espetáculos, e, para este

caso, a sua dramaturgia.

A presença e circulação de textos teatrais na escola é um fato que foi evidenciado e

descrito no Ato 3 dessa dissertação, porém não sabemos as formas como o texto teatral

acontece na escola. Mais uma vez, tomo necessário explicar o verbo: no caso de acontecer na

escola, não estou referindo-me à leitura para montagem de uma peça, mas para se viver o

teatro em suas amplas possibilidades. Pois bem, quais seriam então essas possibilidades?

Nas falas dos entrevistados surgem dados que merecem destaque e que sustentam essa

busca. Pilares do fazer teatral e dramatúrgico que podem ser bem encaminhados na escola,

todavia que para se fazer teatro na escola é preciso ter orientações do fazer. Pois então,

orientemo-nos!

Alguns recortes das entrevistas, mais uma vez, serão trazidos para estas páginas pela

necessidade de exemplificar entremeios do “fazer teatral” que podem ser trabalhados nas

escolas no que diz respeito à prática de leitura.

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O coletivo

(...) o processo é compartilhado por todos. (extraído da entrevista realizada com Lubi)

Esse processo da leitura coletiva é sempre um processo fundamental. Todo mundo lê o texto junto e a gente discute o texto até chegar na conclusão de que é o texto que satisfaça aquilo que a gente quer dizer naquele momento (...) (extraído da entrevista realizada com Eduardo)

Os fazeres teatrais dos entrevistados apresentam grande relevância sobre o coletivo. A

importância de coletivizar as experiências é um grande trunfo que permite aos envolvidos

uma pluralidade de sentidos para se chegar a algum lugar. Compartilhar o conhecimento e as

reflexões para poder discutir. Lubi e Eduardo se referem às práticas do processo de seus

fazeres teatrais, no caso, relacionados à escolha de uma leitura e, dentro desse aspecto,

ressaltam então o coletivo, tanto para a escolha do texto quanto para a leitura em si

propriamente dita. Assim, temos uma primeira abordagem recomendativa de como pode ser a

escolha do texto teatral a ser trabalhado nas escolas: o professor pode levantar temas que

interessem aos alunos, ou ainda, algo que já esteja sendo trabalhado no decorrer do ano, e

então, selecionar textos condizentes com esses temas; feito isso, os alunos optam pelos textos

que mais lhes agradam e isso se dá pela leitura realizada em grupo.

Coletivizar ainda se estende enquanto prática de possibilidades da escolha de um texto

teatral:

Tem processos que a gente cria o texto, tem processos que a gente já (...) adaptou romance. Tem um que é o mais comum: a gente pegar textos prontos, ou também, agora, por exemplo, essa montagem do Tchekhov, adaptação de contos(...) (extraído da entrevista realizada com Eduardo)

“Hysteria” já teve escolas que montaram, teve grupos, meninas que montam, e, já teve gente que faz exercícios assim, (...) era encaixar aquilo num prédio moderno e ver essa coisa (...) (extraído da entrevista realizada com Lubi)

Eduardo aponta que o Grupo Galpão opta por várias maneiras como o texto pode ser

trabalhado, e essas maneiras, mais uma vez, podem se estender às escolas. Com um texto em

mãos, o professor pode propor atividades outras como acontece com as produções de

adaptações textuais do Grupo Galpão: transformando contos, romances e outros gêneros

textuais em peças de teatro, ou, ainda, como Lubi coloca ao exemplificar uma prática de

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“Hysteria”, espetáculo escrito pelo Grupo XIX de Teatro que é contextualizado no século

XVIII e que foi trabalhado em escolas na tentativa de ser recriado em prédio moderno, ou

seja, ler a obra com outros olhos, adaptando-a a outro tempo no espaço, a outra realidade, e

assim, tudo muda; as interpretações, as buscas, os referenciais, toda a “embriaguez” vai para

outro lugar de fontes, e isso se dá de forma qualitativa quando se envolve todo um grupo –

quando se coletiviza o processo.

Adaptar um texto de teatro, ou ainda, um texto para teatro é um exercício de criação

valioso que valoriza percepções e sentidos atribuídos diante das interpretações realizadas

pelos leitores; no caso, pelos alunos que são instigados ao serem convidados a essa prática

desafiadora e gozar do privilégio de poder criar.

As leituras

(...) quando eu leio um texto, e também a leitura assim ela te abre um porta, você vai pra um lugar, mas eu tenho, às vezes, quando eu leio, eu tenho que encenar pra ler, (...) Senão ele vira uma experiência literal pra mim (...) (extraído da entrevista realizada com Lubi) (...) o teatro é uma coisa oral, ele é feito pra ser lido, lido em voz alta, quer dizer, ele tem uma oralidade (...) (extraído da entrevista realizada com Eduardo)

A leitura abre portas. Durante toda a caminhada pelas reflexões desta pesquisa esta

bandeira trepidou com enaltecimento. A multiplicidade de sentidos que a leitura proporciona

corrobora a liberdade criadora de quem se permite ler com tantos olhos. Pelas vozes dos

entrevistados que vivem, assiduamente, a leitura teatral, vê-se uma necessidade constante de

vivê-lo.

Ao tempo que Lubi lê e encena no ato de ler, ativando o que já apontamos neste

trabalho como “encenação virtual” (SANTA’NNA, 1995), permitindo, ou caberia mais neste

caso, necessitando, dar vida ao texto que está sendo lido e que vai se construindo em imagens,

em ações, em cores, em vida na imaginação do leitor, Eduardo nos chama a atenção para a

oralidade do texto teatral, feito, e mais uma vez, para ser vivido, ser dito, se espalhar pelos

ares para ser ouvido, pois foi construído com a finalidade de alçar vôos, na ideia de

verticalizar-se, e não ficar apenas nas páginas para não se tornar uma experiência literal.

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A leitura nas escolas recebe assim mais força e apoio em relação à liberdade de se ler.

Interpretar, fazer sentido, dar sentido, são emergências leitoras que a escola precisa permitir

para os alunos construírem enquanto leitores ativos e vivos. O texto teatral vem para

corroborar essa perspectiva que se estende dele; todo gênero textual trabalhado nas escolas

deve ser plural e ser aceito como plural. Aceito como criador de sentidos e estimulado como

tal.

Encenar o teatro durante sua leitura não é escapismo involuntário, mas sim

necessidade, porém isso só é possível, só é possível imaginar se se tem abertura para, e se se

tem bagagem para, e isto pode e deve ser concedido pelas práticas de leituras nas escolas.

As maneiras

(...) tentar revelar o ponto de vista (...) então a gente trabalha muito com seminários temáticos (...) e às vezes se você transforma esse texto teórico numa dinâmica, ou você traz isso somado a uma pintura, ou uma maneira que você apresenta isso, isso já revela o seu ponto de vista (...) o que te passa, o que te move. (extraído da entrevista realizado com Lubi)

(...) na escola eles colocaram “Vestido de Noiva” na minha mão, e eu me encantei, porque de uma maneira o teatro, o texto dramático, ele cria, de uma maneira ele já descreve um, um cenário, eu fico imaginando que isso vira um jogo pra ele... É uma coisa que você pode ler com namorado, com namorada, com amigos (...) “Ah, então vamos ler nós seis amanhã em casa?” Ele mesmo quase que já propõe uma atividade, assim. (...) Claro que as professoras poderiam incentivar, e incentivar não só na perspectiva de fazer uma montagem, mas de brincar com essa leitura (...) esse ler junto, ler em voz alta (...) acho que olhar com, com essa relação com o ouvir seria belíssima. (extraído da entrevista realizada com Lubi) (...) “Tio Vânia”, nós pegamos as situações, nós dividimos a cena, a peça em vários fragmentos (...) e, a partir dessa divisão de fragmentos a gente procurou (...) esse processo, que é da analise ativa, que é você pensar o que é o acontecimento principal desse fragmento, discutir o acontecimento principal desse fragmento, e como é que ele se conclui pra gerar um outro fragmento, um outro acontecimento principal. Então, a partir dessa discussão, dessa definição é, a gente improvisa sem estar com o texto memorizado, e aí essas improvisações dessas situações ou desses fragmentos, elas começam a gerar nos atores, a causar nos atores, um conhecimento grande dessas situações, das relações entre as personagens, do próprio personagem da vida desse personagem (...) (extraído da entrevista realizada com Eduardo) (...) fazendo com que os alunos leiam o texto, quer dizer, leiam em voz alta. Claro que pra isso é importante que eles leiam, conheçam a peça, conheçam a situação, conheçam as relações que existem entre as personagens daquela história tratada na peça, leituras individuais podem ajudar, mas eu acho que

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como efetivar essa, esse fenômeno teatral, fenômeno dramático, isso tem que ser uma leitura em voz alta, e enfim, que as pessoas procurem se relacionar, quer dizer, o que um lê de certa maneira afeta o que o outro vai ler também, de certa maneira que exista diálogo nesse sentido e não monólogos isolados, mas exista de fato diálogo, criar esse diálogo. (extraído da entrevista realizada com Eduardo)

Eduardo e Lubi enriquecem nossas vidas apontando caminhos vividos por eles

trabalhando com textos teatrais, tanto no fazer teatral propriamente, como em nortes possíveis

para a sala de aula. Exemplificam em suas falas quatro possíveis “contatos” de se trabalhar

com o texto: seminários temáticos, leitura em grupo, análise ativa e leitura em voz alta.

As quatro propostas encontradas se imbricam sempre na presença do coletivo para a

ação leitora, o diálogo com outras fontes formativas e a criação.

Nas escolas, para atuar com essas possíveis vertentes propostas, o professor deve

ampliar o campo de conhecimento do aluno, estimulando-o a buscar novos horizontes dentro

do que está sendo lido. Quando Lubi traz os seminários temáticos, se refere à famosa

“embriaguez” tanto reiterada nesta dissertação; assim, sob um tema, como “as relações de

amor” em “Arrufos”, o ator traz referências de suas vidas sobre como vê as relações de amor,

para então compor com outras pessoas do grupo, que têm outras formações e visões sobre as

relações de amor, um norte para a pesquisa, que no caso se estendeu no espetáculo “Arrufos”.

Com muitas informações fortifica-se um amálgama do grupo, rico de diferentes olhares.

Ainda, Lubi explicita sua experiência com “Vestido de Noiva” na escola que nos

clarifica um fato óbvio: o texto de teatro por si só propõe um jogo, uma atividade. Ao realizar

uma atividade de leitura dramática na escola, o professor pode oferecê-la em primeira

instância com a proposta de Eduardo: uma leitura em voz alta; e seguida da proposta de Lubi:

cada um ler uma personagem. Ao lerem juntos e em voz alta, o coletivo se firma mais uma

vez na prática, e isso embute em si novos valores como a alteridade, afinal, ao ler em voz alta,

expressivamente, todavia, seguindo as indicações das didascálias, que torna a atividade ainda

mais interessante, eu reconheço o gesto interpretativo de leitura do outro, e posso me

reconhecer nele, ou não, o que infere a discussão e a formação crítico-reflexiva.

Das maneiras possíveis, outra que instiga é a relatada por Eduardo, dita como “análise

ativa”. Um exercício desse nível, se trabalhado nas escolas, abre margens para a pluralidade

de sentidos e a criação, mais uma vez. O ato de concatenar junções de cenas imaginadas com

fragmentos selecionados já existentes induz e seduz para a invenção, a dedução, que convida

a imaginar. Os alunos podem, além de pensar em cenas pré e pós o fragmento, trabalhar com

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nuances das personagens, que podem aparecer com diferentes sensações em cada montagem

pensada. Outro exercício que pode nascer daí é um grupo de alunos criar para outro grupo a

proposta que eles terão que interpretar. Enfim, possibilidades são infindáveis, quereres

também; é preciso espaço criativo e valoração de produção intelectual dos alunos para esta

prática de viver o teatro, em essência.

As significações

(...) Se a gente vai brincar com isso, então o que que é? Ah, então vamos colocar as pessoas sentadas de dois em dois? Então vamos fazer uma alcova, vamos fazer uma coisa fechada? Vamos trabalhar tudo que é pequeno, então é o abajur, é a caixinha, é o “caminhozinho”, é tudo pequenininho, é tudo íntimo (...) (extraído da entrevista realizada com Lubi) (...) a gente queria fazer um espetáculo pra rua, isso já é bastante determinante pra uma porção de coisas, por exemplo, dar uma “enxugada” no texto (...) E, a gente queria fazer um espetáculo (...) voltado assim muito pro interior, um Brasil do interior, um Brasil profundo vamos dizer assim, tanto é que a gente foi ensaiar numa cidade muito pequena do interior, chamada Morro Vermelho, a gente ensaiou junto com essas pessoas dessa cidade que acompanharam os ensaios, isso deu elementos muito importantes para cortar algumas coisas ou não... E aí, tinha essa coisa, né, de usar a música, uma história de amor... E a gente pegou certas referências musicais, principalmente das serestas, das modinhas, da música da belle époque brasileira, então, isso tudo foi criando assim uma ambiência pra obra (...) (extraído da entrevista realizada com Eduardo)

Se a todo o tempo desse trabalho defende-se os significados que circulam uma leitura

e o que estes podem gerar em propostas criativas, Lubi e Eduardo aportam o nascimento dos

símbolos na leitura, símbolos que criamos e que buscamos relacionar para dar maior sentido e

fazer mais sentido as nossas produções interpretativas. Em “Arrufos” trabalhar o pequeno, o

mínimo, o íntimo, ilustra as verdades condizentes aos estudos e às significações que chegam e

que querem atravessar a plateia com isto. Cria-se assim, além de um espetáculo, toda uma

atmosfera que vai envolvendo os espectadores, que logo ao entrar no teatro, se sentam de dois

em dois, acendem abajures, ouvem caixas de música, tudo que remete a relações de amor para

o grupo que propõe uma leitura e que convida a plateia a acionar tais relações dentro da

atmosfera em que irão imergir.

O mesmo acontece com os signos e símbolos presentes e nascentes em “Romeu e

Julieta”. Inspirar-se para transpirar-se e fazer-nos um “respirar”. Adaptar o texto para a rua, ir

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à Morro Vermelho, adornar o cenário de flores de plástico, ser mambembe a ponto de encenar

sobre uma veraneio com a ideia de serem eles viajantes, contadores da história de amor mais

conhecido do mundo, conversar com Guimarães Rosa para tornar o espetáculo mais “interior”

e, porque não, mais inteiro, pescar estrelas, luas, dançar sobre pernas de pau ao som de uma

sanfona e seresteiros com modinhas e cirandas da infância, enfim, uma gama simbológica que

nos faz ser parte de toda a história, que deixa de ser de Shakespeare, que deixa de ser do

Grupo Galpão, mas passa a ser de quem a lê e se transborda durante a apresentação.

Significar uma obra dialogando com outras obras, músicas, adereços, com tudo que

faz sentido e que dá sentido e constrói junto a cada gesto da atuação uma nova leitura

convidativa para a interpretação dos leitores verticais, pode ser mais um tipo de proposta de

trabalho nas escolas, onde os alunos, em contato direto com uma obra, podem ser convidados

a relacioná-la com outras fontes suas e tudo, então, vai compondo e gerando a atmosfera que

significa a quem faz e a quem vê, enfim, a quem quer viver uma obra de teatro.

As verticalizações

(...) não levo em consideração quando diz: só li “Hysteria” porque pra mim tem um lugar em que a gente ainda não se encontrou, ainda, no satisfeito (...) (extraído da entrevista de Lubi) (...) se você pensar que ele escreveu no século XV, século XVI, não... Século XVI, começo do século XVII, como é que você pega esse texto e traz ele para os dias de hoje, pra esse público do mundo de hoje. (extraída da entrevista com Eduardo)

Dentre o todo já discutido, vem agora o referido apoteótico da ação do poder de ser

leitor que verticaliza o texto teatral. A fala de Lubi completa qualquer lacuna duvidosa da

necessidade de, no caso do texto teatral, vivê-lo em “matéria”; quando afirma que um leitor

dos textos do Grupo XIX, mais precisamente, do espetáculo “Hysteria”, necessita ler o

espetáculo verticalmente, pois só assim há o “encontro” de fato. Ler teatro, como já dito

algumas vezes nesse trabalho, extrapola as páginas ao contrário, o “encontro” não acontece.

Ainda, aludindo à fala de Eduardo quando diz sobre “tirar” um texto de seu lugar e “trazê-lo”

para outro, no tempo, a preocupação com a plateia leitora, que precisa viver e participar para

poder se “encontrar”, é perene. O mundo de hoje necessita de um olhar para as realidades do

hoje para que haja “o encontro”.

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Trabalhar com teatro na escola é uma tentativa de encontros, de encontrar caminhos

para a vez e voz da arte no cenário escolar, da vez e voz na produção criativa do aluno; assim

sendo, é preciso verticalizar as obras que passam pelas mãos dos alunos. A afirmação dessa

necessidade não dogmatiza aos professores o cargo de serem produtores teatrais, mas o

convite de serem “arautos” das artes, facilitadores do fazer criativo/ artístico/ teatral na escola:

o lugar, por excelência. de “encontros”.

Te(x)tando

Tomadas as falas dos entrevistados, engendrando-as às práticas que já vivi e que refleti

perante todo esse percurso, tomo, uma explanação de algumas “quimeras” de se tatear o texto

teatral nas escolas:

A leitura de um texto teatral fornece imagens que vão, ao tempo que se lê, sendo

encenadas em súbito na imaginação de seus leitores. Tomemos um exemplo:

Interior de uma capela. Paredes brancas com algumas manchas negras, como as de um

incêndio. Ao fundo, uma cruz enorme, negra. No chão, a sombra de uma cruz luminosa onde

as mulheres se movem. Um vitral, ou uma grande escultura representando a figura de um

anjo, talvez semelhante ao Anjo velho de Odilon Redon, ou um anjo que dê a impressão do

que nos fala Marcel Brion: “Que reste-t-il à un ange qui a perdu jeunesse et beauté, attributs

de son angelisme? Ses ailes sont incapables de le soulever et de le ramener vers le ciel.

L’ange dÉchu est dejâ envahi par la banalité, la laideur, la mediocrité”.

O cenário deve ter dois planos. É preciso que se veja o interior da capela e, ao mesmo

tempo, em certos momentos, uma cerca que estaria a alguns metros de um muro que jamais se

vê.

Na capela, alguns castiçais, um banco e uma pequena janela.

As freiras estão em círculo, ajoelhadas e, ao lado de cada uma, um pequeno chicote de três

cordas.

A Superiora está de pé, afastada das outras. (p.103)

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Esta é uma didascália que descreve como deve estar o palco, como o cenário deve

estar composto para a primeira cena da peça “O rato no muro” de Hilda Hilst. Esse fragmento

da peça foi tomado como exemplo por estar repleto de informações que, certamente,

convidam o leitor a várias imagens. Sem perceber, tenha a nítida certeza de que você, leitor

do momento, ao ler essa descrição, foi imaginando, criando em sua cabeça as imagens e

compondo, passo a passo com elementos que a autora vai nos dando e que vão enriquecendo

e gerando desde já supostas histórias que virão. Além da composição detalhada do espaço que

o leitor vai, sem perceber, construindo, a autora ainda dialoga com assuntos que puxam

outros interesses, como a imagem “Anjo Velho” de Redon e o texto em francês que descreve

um anjo, do Brion. Com essas informações trazidas na didascália de “O Rato no Muro” é

preciso acessar outras: uma obra plástica e a língua francesa. Ainda é interessante pensar na

curiosidade que nos é despertada no decorrer da leitura. “Cruz, negra”, “chicotes de três

cordas”, são objetos cênicos que nos convidam a criação de hipóteses antes mesmo de

conhecer a história, sobre o que vai acontecer com tais objetos, ou ainda, o porquê deles. A

imaginação entra em funcionamento e vai se permitindo ao poucos, vai ganhando força, para

ler além do que aparece escrito.

A didascália é uma grande preciosidade do texto teatral que deve ser valorizada no

trabalho com de leitura em sala de aula. Aqui, usando ainda o fragmento de Hilda Hilst, uma

possibilidade é pedir para que os alunos desenhem a forma que imaginaram enquanto leram a

passagem, que escrevam o que pensam que vai acontecer com os chicotes de três cordas, que

pesquisem o “Anjo Velho” de Redon, e ainda quem é Redon, enfim, inúmeras possibilidades

de trabalho em uma primeira página de um texto que ainda nem iniciou o diálogo entre as

personagens.

Continuemos em busca de luzes.

Irmã G: Seria um rato sobre o muro. Olhando para o alto, pode ver o mais fundo.

Irmã C: E olhando para baixo.

Irmã G: Você quer dizer para dentro de si mesmo?

Irmã C: Assim como eu tenho feito sempre.

Irmã G: Pode ver sangue. Mas no alto, saberá resistir.

Irmã B (repensando): De qualquer forma, ser rato é: Primeiro: sendo branco, ficar entre as

tramas de alguns homens de branco.

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Irmã H: Segundo: ser escuro e emoldurado conforme suas heranças e seu patriarcado, mas

tentar subir, subir sempre. (sorrindo) Imaginar que é homem e nunca desistir.

Irmãs I, A, B, C (fazendo um gesto vertical com a mão distendida): Assim? (p.133)

Agora, um fragmento de “O Rato no Muro” que apresenta diálogo entre as personagens.

A saber, a história se passa em um convento com dez freiras que não têm nomes, se tratam

por letras do alfabeto apenas. A passagem acima traz também, e outras, possibilidades de se

trabalhar com o texto teatral na escola. A mais clara, e que também foi dita por um dos

entrevistados desse trabalho, é que cada aluno leia, em voz alta, o texto de uma das

personagens, tornando assim a leitura mais dinâmica e com mais lógica para quem está lendo,

portanto, mais interessante. Outro convite a ser feito é que, no ato de ler, o aluno siga as

indicações de sensações e ações expressas nas didascálias (repensando, sorrindo, fazendo um

gesto vertical com a mão distendida); ainda há outras questões que podem surtir discussões e

reflexões como, indagar os alunos sobre o que seria “dizer para dentro de si mesmo” e então,

discutir o porquê dá “Irmã C” ter isso sempre, como é se sentir assim, e se eles (os alunos) já

se perceberam nesse movimento, o de “dizer para dentro de si mesmo”; outra abordagem

nessa pequena passagem diz respeito ao gênero homem/ mulher, que pode gerar discussões de

valores, respeitos e lugares sociais. Portanto, o texto extrapola o que está escrito.

Certamente, o texto teatral ainda pode abranger práticas com jogos teatrais, que

trabalhem a expressão corporal dos alunos, como por exemplo dizer uma passagem que foi

lida sem palavras. Também, (ainda usando de exemplo “O Rato no Muro”) é possível criar

novas cenas frente ao que foi lido:

- Trazendo-as para outro contexto (se não fosse um convento, onde poderia ser?);

- Mudando as personagens (se não fossem freiras, quem poderiam ser?).

Em determinadas passagens, pedir para os alunos que tragam elementos que acreditem

dialogar com essas passagens:

- Qual música se encaixaria aqui?

- Qual poesia você acha que conversa com esse trecho?

Outro exercício interessante é pensar na produção do espetáculo, que não precisa ser na

íntegra, pode ser feito uma releitura da peça, ou ainda, um resumo, porém sendo mantida a

essência.

Enfim, vai-se construindo mundos novos dentro de um mundo que é um texto teatral.

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Possibilidades não faltam para que o texto teatral se multiplique nas escolas; todavia, a

grande questão está que muitas vezes a arte entra na escola “didatizada”, o que a desvia de

sua natureza, e assim, o processo altera o produto, o contexto altera o sentido por não haver

uma liberdade esperada e necessária para esse tipo de trabalho. Talvez, pela formação docente

não acentuada para lidar com as artes e toda sua efervescência múltipla e criadora que rompe

com normativas enquadradas ao tempo que precisa ganhar espaço durante o processo - pois a

criação ao ganhar asas, voa sem rumos e sem prévias paradas – faz com que os professores

temam inserir no rol de suas atividades de ensino trabalhos como esse, que suscitem uma

amplitude de novos olhares para a arte na escola. Às vezes, por não se sentir preparado, o

professor isenta de suas aulas o trabalho com texto teatral, também, por não ser ele um leitor

de teatro, digo aqui leitor nos dois caminhos possíveis, o horizontal (que lê os textos

impressos) e o vertical (que assiste a peças de teatro).

Para o aluno, se ele desde o início de sua formação for um leitor que lê teatro, será uma

plateia que também lê teatro. Ao inibir as práticas de criação, as escolas abolem a relevância

do coletivo, do aprendizado com o outro, e assim, dificulta o percurso que se constrói

coletivamente para esse tipo de leitura e interpretação, afinal o sentido se organiza na ação do

pensar coletivo. Um texto de teatro em mãos sem as atividades acima elencadas, e outras

tantas que podem surgir, bloqueia a interpretação dos alunos, e, portanto, todo o sentido e o

prazer de ler e conhecer esse tipo textual.

Como defendido durante todo percurso dessa dissertação, a leitura é prazer, o texto

(...) quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. (BARTHES, 2002: 81,82)

Barthes (2002) faz a metáfora digna para o que buscamos nas escolas com o trabalho

com textos de teatro: uma dissolução na qual leitor e texto se teçam juntos a ponto de estarem

juntos, perdidos um no outro, sendo um do outro. Ao pensar o texto como algo findo e

acabado nele próprio não se está pensando em leituras, mas reproduções, mecanicismos, sem

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brechas para a criação e a construção de sentidos. “O sentido não vem anterior ao texto. (...)

A verdade do texto é sua intenção, o pretexto; e a leitura, para alcançar a verdade, deve

eliminar o texto”. (BARTHES, 1987: 56)

A escola é relacionar-se. A ação coletiva a prescreve e é necessária para todo tipo de

trabalho e valor que visa desenvolver. Ler também pode ser uma ação coletiva, criar sentidos,

criar verdades, criar interpretações... criar pode ser uma ação coletiva, e torna-se mais

interessante se pensada nos âmbitos da arte que estamos trazendo para discussão. O fazer

teatral acontece pelo coletivo, primazia disto se dá que se se faz um espetáculo, é para que

alguém o assista. O valor do coletivo deve ser alimentado junto às práticas de leitura na

escola, pois faz conhecer além dos gestos próprios de leitura, os gestos de outrem, e as

interpretações vão ganhando força, modificando, ajustando-se e, dessa forma, nunca

terminando, sempre está novo e em acontecimento, como pede uma boa leitura dramática.

Um aluno, com um texto de teatro nas mãos precisa vivê-lo. Lê-lo sozinho, sentado na

carteira, em silêncio, com destino de questionários sobre a leitura, não lhe trarão as tantas

vidas presentes nele (aluno e texto). Chartier (2002) aponta para uma passagem relevante que

se estreita a essas reflexões, apoiado a Lope:

La fuerza de las historias representadas es tanto mayor que leida, cuanda diferencia se advierte de la verdad a la pintura y del original al retrato [...]. Pues com esto nadie podrá negar que las famozas hazãnas o sentencias, referidas al vivo com sus personas, no Sean de grande efecto para renovar la fama desde los teatro a las memorias de las gentes [...] (LOPE apud CHARTIER, 2002: 75, 76)41

Durante a leitura, a peça de teatro salta das páginas, mantê-la lá, apenas lá, é impedi-

la de respirar. Mais uma vez retorno na ideia de que deixá-la respirar não é necessariamente

realizar uma montagem, mas vivê-la, permitir-se viajar para onde ela te convidar.

Assim, a caminhada começa a chegar a um fim. Não o fim, mas um dos. O caminho

disse muito e irá continuar dizendo; as idéias e indagações irão em gerúndio permanecer, pois,

alimentado agora por uma perspectiva diferenciada em relação à prática de leitura e a

vivacidade do teatro nas escolas, culmina em mim uma necessidade de buscar ações

emergentes para contribuir em contextos como estes. Grandiosa foi a oportunidade de

41 A força das histórias é maior quando são encenadas do que quando são lidas, do mesmo modo com que se

diferenciam a realidade da pintura, e o original do seu retrato [...]. Sendo assim, ninguém poderá negar que as façanhas e as sentenças referidas no teatro, ao vivo com seus personagens, não sejam de grande efeito para renovar a fama na memória das pessoas [...]

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deparar-me com autores tão significativos, com pesquisadores tão atentos e generosos, com

grupos de teatro tão vivos que compõem toda essa trajetória. Vivenciar esta pesquisa

possibilitou relacionar a teoria com a minha prática que se estende há longos passos pelo

campo do teatro na educação, mais precisamente da leitura e do teatro, para constatar que são

reais os problemas com leitura e artes enfrentados pela escola, mas também que são possíveis

formas de buscar novos caminhos para eles.

Contudo, frente a todas essas reflexões, parcerias e vivências durante a caminhada

dessa dissertação, que se entrelaçam as caminhadas que já tinha feito e que ainda virão, fica a

emergência do trabalho nas escolas com textos teatrais, apostando nos alunos, por suas

criações à vida, ou melhor, às vidas que irão emanar de suas permissões ao ler e estender para

outros olhos as suas leituras. Serão os alunos “semideuses” do palco escolar, que darão vida a

tantas histórias, com Godots, Segismundos, Cantoras Carecas, Pagadores de Promessas,

Madames Clessys, Bocas de Ouro, Plufts, Compadecidas, Prometeus, Caravanas de Ilusões...

com visões, tantas outras novas.

Fica o gosto de um trabalho bem realizado, ou melhor, um espetáculo bem

apresentado, que conseguiu se relacionar com aqueles que pedem o “bis” ao final da

apresentação sem fim. Caminhemos!

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SEGISMUNDO: Es verdad; pues reprimamos

esta fiera condición,

esta furia, esta ambición,

por si alguna vez soñamos;

y sí haremos, pues estamos

en mundo tan singular,

que el vivir sólo es soñar;

y la experiencia me enseña

que el hombre que vive, sueña

lo que es, hasta despertar.

[…]

Yo sueño que estoy aquí

de estas prisiones cargado,

y soñé que en otro estado

más lisonjero me vi.

¿Qué es la vida? Un frenesí.

¿Qué es la vida? Una ilusión,

una sombra, una ficción,

y el mayor bien es pequeño;

que toda la vida es sueño,

y los sueños, sueños son.42

Fim do Epílogo

42 ‘Segismundo: Isso é verdade, então reprimir/ esta condição feroz/ essa raiva, essa ambição,/ você sonhar;/ e

sim/ o que fazemos, porque nós/ neste mundo único,/ que viver só é sonhar;/ e experiência me ensina/ que o homem que vive, sonhos/ isto é, até despertar./ [...]/ Eu sonho que estou aqui/ dessas prisões carregados/ e sonhei que em outro estado/ Eu era mais lisonjeiro./ O que é a vida? Um frenesi./ O que é a vida? Uma ilusão,/ uma sombra, uma ficção,/ e o maior bem é pequeno;/ que toda a vida é um sonho,/ e os sonhos, sonhos são.” (Trecho do texto teatral “La vida es sueño”. (LA BARCA, C. 161, 162, 163)

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LORDE – Está certo, Bufo. Mas peço-lhe: não venha por este caminho. A cidade

tem muitos atrativos e muitas tentações... E, infelizmente, somos fracos... Inventaram por lá

uma sedução diabólica e irresistível chamada Glória.

BUFO – E o que é a Glória?

BELA – Uma mulher, Bufo! Fico feliz, Lorde!

LORDE – Não, não é uma mulher! É difícil explicar, mas a sensação é a mesma de

fazer amor o dia todo, fazer amor a vida toda...

BUFO – E artista, Lorde? Ainda há por lá?

LORDE – Claro. Há os glorificados, como eu, e os que lutam pela glória. Talvez

existam outros, mas deconheço.

BUFO – E por que não devemos seguir seu caminho?

LORDE – Porque é preciso preservar artistas como vocês. Vocês são a esperança de

ressurreição da arte depois do Apocalipse. Não devem se contaminar. Vocês e a arte são

uma única coisa, pura, simples, bruta, indestrutível. Lá, a Glória fez os artistas maiores que

a arte. E depois do Apocalipse, os que se salvarem só saberão ensinar a glória, não a arte.43

O aplauso fica a gosto.

Fecham-se as cortinas.

43 Trecho do texto teatral “Caravana da Ilusão”. (ARAÚJO, A. 1999: 44, 45)

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ANEXO I

Roteiro de Entrevista

Características de possibilidades de leituras impressas no texto teatral. - Partindo de práticas de leituras realizadas por grupos de teatro, à saber, Grupo XIX (SP), Grupo Ventoforte (SP) e Grupo Galpão (BH) com a finalidade de montagem de espetáculo. DISCUSSÃO SOBRE O QUÊ PERGUNTAR:

· Como é selecionado o texto para se tornar uma montagem teatral? · Quais as formas que a leitura acontece nos grupos de teatro que intentam em transferir

o texto teatral das páginas para os palcos? · Como se trabalha com as diferentes interpretações que nascem frente a um mesmo

texto? · Como o texto teatral pode entrar nas escolas e salas de aulas? PONTUAÇÕES PARA ELABORAÇÃO DE QUESTÕES PARA A ENTREVISTA: · Caracterização da forma que são selecionados os textos para leitura e escolha de qual

se tornará montagem teatral; · Reconhecimento das formas de leitura que são transpassadas pelo texto até que o

mesmo chegue aos palcos; · Caracterização do processo que leva o texto das páginas para os palcos; · Associação de atividades de dramatização propostas que correspondem a justificativas

das diferentes leituras de um mesmo texto; · Como os atores e diretores concebem a construção da personagem e da produção

cênica por completo frente as suas leituras e as leituras de seu grupo. ENTREVISTA (QUESTIONÁRIO GERAL)

1. Como acontece a seleção da obra dramática que irão montar? 2. A obra escolhida é lida individualmente e/ ou em grupo? 3. O que vocês visam nas atividades de leitura realizadas com a obra que irão montar? 4. Quais recursos (técnicas) utilizados para a leitura de um texto teatral? 5. Como acontece a “leitura branca” feita com um texto teatral? 6. Escolhido o texto, como são lidas e entrelaçadas as interpretações realizadas por atores

e diretor? 7. Quando há interpretações diferentes no texto, como se chega a uma possibilidade

interpretativa que tanja igualitariamente as partes envolvidas? 8. Em que momento o texto começa a sair das páginas e ir para o palco? Quais atividades

nascem em primeira instância para que haja esse movimento? 9. Se, como surgem as adaptações no texto?

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10. Durante o processo de montagem existe a possibilidade de novas leituras surgirem, leituras que foram despertadas por exercícios? Se se surge novas leituras, como se lida com mais um novo horizonte interpretativo estando em processo?

11. Vocês acreditam que o texto teatral existe com a mesma força no papel e no palco? 12. Pensando na leitura do texto teatral cm o intuito de trabalhá-lo para a montagem de

um espetáculo, como vocês acreditam que o texto teatral pode entrar no ambiente escolar?

13. Como a leitura do texto teatral pode acontecer nas escolas?

ENTREVISTA (QUESTÕES ESPECÍFICAS PARA CADA GRUPO) 1. Como e por que foi escolhido para o trabalho o texto

- A HISTORIA DE UM BARQUINHO; - ARRUFOS; - ROMEU E JULIETA.

2. Como foram realizadas as leituras pelo grupo e diretor de: - A HISTORIA DE UM BARQUINHO; - ARRUFOS; - ROMEU E JULIETA.

3. Como surge a proposta de: - UM GÊNERO NARRATIVO SE TRANSFORMAR EM GÊNERO TEATRAL; -UMA OBRA PLÁSTICA SE TRANSFORMAR EM MONTAGEM TEATRAL; - UMA TRAGÉDIA ROMÂNTICA DO SÉCULO XVI SER ADAPTADA PARA O TEATRO DE RUA.

4. Como se deu esse processo? 5. Quais as maiores dificuldades? 6. Quais as grandes descobertas? 7. Como vocês leram o espetáculo para que ele tornasse como é?

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ANEXO II

Transcrição de entrevista realizada no dia 15 de Abril de 2012 com Luis Fernando Marquês, 34 anos, diretor do GRUPO XIX DE TEATRO

E- Entrevistador L- Entrevistado

E - Há quanto tempo você dirige teatro? L - Eu comecei a dirigir no grupo XIX, se o grupo tem 10 anos, há 10, 11 anos. E- E sua formação, qual é? L – Eu sou formado em audiovisual, nível superior, e fiz EAD. Não fiz até o final, mas a formação mais teatral é a EAD. E- Começando a perguntar, assim, eu acho que algumas coisas vão distorcendo a pergunta, porque vocês têm um processo de criação coletiva do próprio texto, então, como acontece a seleção da obra que você vão montar, no caso, então, o tema que vocês vão abordar? L- É um sentimento assim, a gente vai... Passado um tempo as coisas vão criando uma certa lógica, assim: que “Hysteria” tinha essa questão ligada a casa, então a gente começou a visitar muitas casas, então essa questão das casas, parecia que a moradia foi ficando presente no próprio... Eu acho que sempre é fruto do que o grupo tá vivendo, né. Então eu sinto um pouco essa, essa relação. Pra mim foi muito isso, assim. Então “Hygiene” foi encontrar essa casa, essa moradia. Depois “Arrufos” foi... Aí durante “Hygiene” a gente tinha que entrar na casa das pessoas pra pedir autorização pra fazer a peça, aí “Arrufos” eu acho que a gente vai pra dentro da casa das pessoas, a gente vai falar do privado, do amor. E “Marcha” como também é um trabalho do encontro, porque tem outro grupo junto, eu acho que ele mesmo tem essa atmosfera, esse encontro, as relações, o tempo, enfim, acho que sempre vem dessas angústias, assim. Até é uma coisa que com o passar do tempo fica mais difícil, porque são várias pessoas, e a gente tem essa questão de fazer um trabalho coletivo, então não é um trabalho feito só, a gente tenta chegar nesse lugar, então... Mas existe isso, às vezes acontece uma coisa, aquilo gera encantamento, os outros vão, se apropriam, então... A gente não tem uma preocupação assim: “agora estamos”... Eu sei que nunca mais foi uma escolha externa visando uma lógica, assim: “Não! O grupo agora precisa trabalhar um clássico, o grupo agora”... Essa lógica, meio... Nunca imperou. Acho que sempre foi uma das inquietações, das loucuras, dos artistas envolvidos. E – Então, quando vocês escolhem um tema, na verdade aqui eu perguntaria sobre uma obra e não é uma obra que é escolhida, é um tema. E pra esse tema tudo que é lido, pesquisado, ele é comum a todos, ou não? Cada um vai pra um ramo, cada um... L – A gente chama isso muito de se embriagar do tema. Então, cada um se embriaga com a sede, com a bebida que lhe convém, e aí tem coisas que a gente traz pros outros

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experimentarem, digamos assim... (Acho que chegaram as primeiras pessoas) Então, tem coisa que realmente a gente compartilha, e tem coisas que a gente fica só no ponto de vista de um. Mas a gente sempre tenta trazer mais esses temas que a gente leu pro meio da cena, quer dizer, isso acaba entrando... Aquilo que me compõe, aquilo que é meu ponto de vista de um tema, ele aparece na primeira improvisação, nos temas, nas coisas... E – Quando vocês visam atividades de leitura, por exemplo, leituras em grupo. O que vocês mais visam nessas atividades? Por exemplo, quando vocês vão trabalhar processos de leitura de algum texto em que o grupo está reunido, o que vocês mais visam... Quando vocês pegam um texto que vai servir de referência para algum exercício... L - Entendi! Eu acho que tem uma questão um pouco de tentar revelar o ponto de vista e a gente a questão de uma prática um pouco também de, de já levantar um pouco... Não sei se cenicamente, mas... Meio atmosfericamente! Então a gente trabalha muito com seminários temáticos, tirar coisas só de uma leitura mais lógica e tentar trazer pra uma... Porque um texto teórico ele tem muitas portas, né. E as vezes se você transforma esse texto teórico numa dinâmica, ou você traz isso somado a uma pintura, ou uma maneira que você apresenta isso, isso já revela o seu ponto de vista, porque no fundo eu acho que o que está em jogo sempre não é esse texto de outrem, e sim o que aquilo te agrada, o que aquilo passa por você, né... O que te passa, o que te move. Por isso a gente tem esse preocupação assim, né: Ah, vamos nos jogar em cima dessa teoria, desse cara. Mas não: O que essa teoria passou por mim que isso mexeu comigo. E – E, quando vocês escolhem o tema, assim... Esses textos, toda essa forma que vocês procuram aí de se embriagar, com textos, com referências dentro desse tema, como que as diferentes interpretações que surgem, por exemplo de uma mesma obra, ou de um mesmo texto que surgem várias interpretações... Como que é, com o que isso é entrelaçado entre os atores e a direção? L- Olha, a gente tenta buscar... Isso é até uma coisa que eu acho engraçado. A gente tenta... Tem uma hierarquia entre direção e atores, ela é muito... Aqui, no fundo, no fundo, ela não é uma hierarquia, ela é uma função. A única diferença assim, nós, nós saímos em pé de igualdade pra todos os processos. A diferença é que os atores vão ter como... (Tá! Tá muito cedo, eu não tenho mais de uma hora de vídeo, eu tenho que esperar) então, entre eu e os atores não tem diferença, por isso essa entrevista comigo, com eles, ela é muito parecida, cada um tem o jeito de cada um, mas nas abordagens não é. A questão é que eles vão poder atacar esse projeto como atores e eu ataco ele como diretor, mas não uma: agora o diretor vai parar, tal... Isso é muito misturado. De alguma maneira eu acredito que eles dirigem um pouco a peça e eu atuo um pouco na peça, mas... Então não tem muito: ah, como trazer as coisas pra mim, então as coisas vão muito, muito... A tentativa dessa união de pontos de vista, que é a pergunta, é uma tentativa meio que orgânica e pela cena, isso é muito importante para nós, o que cena traga... (Fita crep? Tem durex, ta bom?) Então, acho que é isso. E – Então, quando tem várias interpretações, pra gente conseguir um fio aí...

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L – É! É claro que aí tem um dilema, certo. A gente pode cair num nó, as vezes a gente pode cair numa coisa terrível que é uma certa, uma certa democracia burra, enfim, já cai em várias, tem várias ciladas possíveis, isso não é orgânico todos os momentos, mas se existe uma balisa, isso é um pouco a cena, a gente tenta resolver na cena, quer dizer, se são dois pontos de vista, é uma cena que tem dois pontos de vista, é um pouco por aí, assim. Acho que “Arrufos” tem isso um pouco claro, então assim, né: Ah, tem o seu ponto de vista de amor, mas tem esse aqui também. E – Na verdade, então, o texto não saí da página pro palco, né? L – Ele nasce no palco e vai pra página. E – Do palco ele vai pra página, é um processo... L – Com certeza, sempre ao contrário. Ninguém, assim... A gente raramente senta pra escrever. As vezes os atores sentam pra escrever o que eles vão fazer com a primeira cena, né. Se a dinâmica for essa, quer dizer, a dinâmica é: traga uma cena que... Mas é... Aí escreve alguma coisa pra não esquecer e tal, mas aí grava as vezes também, enfim... Mas não é essa preocupação assim, não existe, a gente nunca resolve a coisa no computador, num texto, nunca. A coisa é assim, vai ser ensaio, você apresenta... Inclusive se resolve na cena, e se resolve sobretudo, no momento da encenação, no ato da representação. Quer dizer, assim, a gente abre muito nossos processos, e eu sobretudo tenho essa, essa dinâmica assim, eu gosto de assistir e falar: ah, isso é assim. Que nem esse espetáculo que você vai assistir, eu assisti ontem, o que mais tenho coisas pra dizer pra eles é hoje, muito mais que muito processo. (Desculpe! Grupo XIX. Boa noite! Tenho sim, você quer que eu faça a reserva? Qual seu nome? Renata! É só você Renata? Tá! Renata e mais um, é isso? Tá reservadíssimo Renata, pode vir. Obrigado, viu! De nada! Tchau, tchau!). E – Durante o processo de montagem de vocês, é... Vocês estão aí, numa linha, e de repente surgem novas leituras frente aquilo: “Acho que surgiu outra coisa, outro olhar, acho que não é por aí”. Como que, que vocês lidam com esses novos horizontes que surgem aí, desses novos olhares que estão lendo a cena? L – Tem uma ideia um pouco de, de que o processo é compartilhado por todos. Geralmente, essas dúvidas se dão coletivamente, a gente vai percebendo isso junto, nunca é uma coisa assim: “Nossa!” Quando a gente vê, a gente foi fazendo uma curva assim, sabe, daí tá todo mundo nessa. Dái a gente lembra: nossa, você lembra que a gente tava em outro lugar? Sabe, assim, é quase uma maré nesse sentido assim, é uma coisa. Pode existir, assim, eu acho que eu não lembro, assim, tipo, um embate, assim, profundo assim, mas é um pouco por aí, assim, a gente tenta, eu acho que é uma coisa assim, que é um processo que todos, todos tão muito, isso pra mim é uma coisa que deixa muito claro, com o que eu fiz de ator na EAD, sabe, esse projeto ta na cabeça do diretor, aí eu fico ali tentando: gente, por que será que isso é aquilo, né? E não existe isso aqui, entendeu. Porque por mais que, as vezes não ta formulado, as vezes eu falo assim: gente... ou mesmo o ator fala: Lubi, eu vou fazer isso aqui, não sei ainda o por quê. Ou, as vezes até eu lá de fora, de ajudante assim, falo: gente, to imaginando assim

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uma correria aí, um corre-corre atrás, não sei bem porquê. Aí depois vai: Ah, acho que era isso, entendeu. Então é um pouco por aí, assim. Mas de novo, assim, né, uma coisa que é importante, não existe ensaio só com um, não existe... É sempre o coletivo vivendo essa experiência, assim. As peças são resultado de uma experiência de ensaio, né, acho que essa... E – Quando vocês chegam aí num, num... Acredito que não é um fim, né, os processos... L – Não tem fim. Ah, até que, que chega um hora que a gente para, né, tipo droga, mas: eu vou parar aqui, porque você podia continuar, né. E – E daí, por exemplo, é... Como eu conversei com as meninas e elas falaram de um... Que nesses processos de vocês, as vezes tem muita coisa, aparece muita, muita, muita, muita coisa... E como que vai podando... Não sei se é podando a palavra... L – É, mas é a palavra mesmo. E – Até consolidar o texto? L – É... Na verdade é de novo isso, a gente tem um fator que é importante que é o público, né, por isso que a gente abre os processos, e a gente abre os processos e tenta escutar o que esse público também ta aprendendo disso tudo. Não aprendendo da... Mas apreendendo, tipo, como é que esse material tá atravessando essa plateia. E às vezes os cortes se dão por, por, por diversos motivos, assim, tanto numa lógica de “não, vamos cortar porque tá grande e as pessoas vão ficar dispersas” ou, tem muito isso “nossa, isso abre uma porta que não leva a plateia a lugar nenhum”, percebe que o texto essa hora leva pro labirinto, ou ele tá confuso, ou fazia muita lógica no processo, mas na peça é um, um peso morto, aí, mais uma vez a gente tem que responder pela, pela cena, né. Ele vai se impondo, o espetáculo se impõe, né? Ele vai se impondo dramaturgicamente, ele vai dizendo “não, isso é daqui!” por mais que você insista, ele vai se impondo. E – Deve ser bem dolorido pra vocês, chegar numa formatação de texto? L – Eu não tenho muito essa dor, assim. O grupo tem as pessoas que sofrem mais, e as pessoas que sofrem menos, aí, eu não sou dá turma do apegado, não, eu sou da turma da vida, então, eu não sofro muito, não. Porque no fundo, no fundo, eu sou apegado com plateia, apegado àquilo ta rolando, àquilo estar acontecendo. Então se em nome disso... Que nem, a gente acabou de cortar duas cenas desse espetáculo, de ontem pra hoje, entendeu, sou tranquilíssimo com isso, entendeu. Então é pra mim... E – E se precisar entrar uma nova cena, também entra? L – Sim, sim. É mais raro. Geralmente a gente corta, e talvez adapta, tal... Porque como já são excessivos, criar mais uma a gente acha que, melhor não. E – Como você vê a sua crença no texto teatral? A força dele no papel e no palco? Como é um texto teatral lido, apenas lido, e como é um texto teatral no palco? Quais são essas forças diferentes?

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L – São das experiências, né? Eu acho que quando você pega um texto, ele também tem uma questão que é de época assim, também, né. Nós somos de uma geração, de um tempo, não é nem geração, de um tempo onde a palavra ta num outro lugar, né, então, naturalmente eu acho que qualquer espetáculo teatral escrito nos últimos anos ele tem menos impacto na leitura, do que um espetáculo... Porque no fundo teve um tempo que o teatro era a palavra mesmo, não tinha... Era dado aquilo, e aquilo fazia um sentido enorme pra aquela sociedade, né, e não era nem um estranhamento. Se você for comparar com outra linguagem, é só você olhar o cinema antigo, né, falo essa questão da verossimilhança do cinema antigo, né, você pega um filme velho, e fala “gente, olha, que cenário patético!” a pessoa quase que vê o prego, as portas balançando, mas se você para pra ver aquela relação, daquela época, ninguém achava falso, era super real, achava aquilo exatamente... Então isso, essa noção, então, tem coisas que não dá pra pensar em você mudar porque faz parte daquela sociedade. Então, o nosso tempo é o tempo em que inclui imagem, inclui as outras coisas, então é claro que eu me ressinto muito, assim, quando eu leio um texto , e também a leitura assim ela te abre um porta, você vai pra um lugar , mas eu tenho, as vezes quando eu leio eu tenho que encenar pra ler, senão não consigo assim, se eu não vou encenando na minha cabeça... Senão ele vira uma experiência literal pra mim, aí, é como se eu tivesse lendo um livro, mas geralmente o texto de teatro vai me... Então eu já vou criando cenário, já faço um “mini casting”, entendeu, e vou colocando... Mas ao mesmo tempo eu acho riquíssimo que isso seja registrado, acho que não é à toa, a gente tem um livro que enfim... Acho que é interessante, inclusive interessante esse desafio de perceber, mais recentemente, porque eu já encontrei muitas pessoas que dizem: já li “Hysteria”, mas nunca vi. É estranhíssimo pra mim. Eu tenho vontade de dizer assim: então você não viu (tem como colocar o sonzinho lá? É que o computador ... Coloca o seu pen então que eu... ). E – Então é estranho pra você saber que alguém leu “Hysteria” mas não assistiu “Hysteria”? L – Não, não é que é estranho, é que assim, eu não levo em consideração, não levo em consideração quando diz: só li “Hysteria” porque pra mim tem um lugar em que a gente ainda não se encontrou, ainda, no satisfeito, mas acho incrível que isso... E – Alguém já quis montar alguma obra do XIX, por exemplo, o “Hysteria” e o “Hygiene” que estão impressos, né? L – “Hysteria” já teve escolas que montaram, teve grupos, meninas que montam, e, já teve gente que faz exercícios assim, né, pega um trecho e fazem, tipo, teve um pessoal que pegou “Hygiene” e o barato, até mesmo o lance daquilo em direção, era encaixar aquilo num prédio moderno e ver essa coisa, enfim, aí eu acho divertido assim, pra mim é uma coisa como se eu tivesse jogado no vento e não me importo com isso, nem faço... Pra mim não existe nem esse negócio de direito autoral, mas eu sei que sou voto vencido nesse sentido, mas eu sei que o que é que for ser feito, vai ser outra coisa, por mais que a pessoa copie tal qual, né, porque eu acredito muito no, nas pessoas que estão fazendo.

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E – Certo! Agora pensando no teatro na escola, no texto de teatro na escola. Como você vê que um texto de teatro, ou uma proposta, como o Grupo XIX, por exemplo, trabalha em cima dessa coletânea... L – Você ta falando escola mesmo, ou escola faculdade de teatro? E – Escola, escola... L – Eu não fiz isso. Por que, existe isso? Existe leitura dramática na escola? E – A leitura do texto dramático... Se ela existe na escola? Existe uma lei do Estado que coloca na mão das crianças, do 5º até o Ensino Médio, do 6º Ano até o Ensino Médio, todas as crianças ganham três livros, que podem ser de gêneros como dramático, narrativo, poético... Todos os anos, então, durante sete anos os alunos passam aí com livros que já circularam como “Prometeu Acorrentado”, “Eles não usam Black-tie”, “Casa de Bonecas”, então, esses textos estão chegando nas mãos das crianças, mas como eles tão sendo trabalhados a gente não sabe, e acho que é uma grande interrogação... L – Mas acho engraçado que, porque, eu acho que nesse sentido ele sai numa vantagem. Eu me lembro que, na escola eles colocaram “Vestido de Noiva” na minha mão, e eu me encantei, porque de uma maneira o teatro, o texto dramático, ele cria, de uma maneira ele já descreve um, um cenário, eu fico imaginando que isso vira um jogo pra ele... É uma coisa que você pode ler com namorado, com namorada, com amigos, diferente do... Não faz sentido eu ler “Dom Casmurro” com você, e já um texto desse eu acho que é um, eu acho que tem uma porta muito legal, porque: Ah, então vamos ler nós seis amanhã em casa? Ele mesmo quase que já propõe uma atividade, assim... Eu fico imaginando que deve gerar um pouco isso, assim. Claro que as professoras poderiam incentivar, e incentivar não só na perspectiva de fazer uma montagem, mas de brincar com essa leitura, né, a leitura dramática inclusive que as pessoas colocam geralmente como um... A leitura dramática no Brasil é meio que assim, um ensaio mais ou menos, né, quando não, ela é algo em si, esse ato da leitura, esse ler junto, ler em voz alta, que é uma coisa que o brasileiro tem pouquíssima tradição, sobre tudo de escutar. Eu acho que a pessoa categoricamente até lê alto, mas parar e escutar, ter esse exercício, e isso é atividades muito comuns, assim, que no Brasil vi pouquíssimas vezes, de encontros pra ler, por exemplo “Dom Casmurro”, não, “Dom Casmurro” não... O exemplo que eu vi lá na França era o “Dom Quixote”, então falava assim: Gente, começa meio-dia e acaba a hora que acabar. E são as pessoas lendo, você leva o seu “Dom Quixote” e aí é o lugar que vende bebida, vende comida, e as pessoas ficavam lá lendo, e cada um interrompia o outro a hora que quer, aí as vezes falam duas vozes, as vezes um voz só, e as pessoas tão lá escutando... O que me assustava era as pessoas escutarem, porque aqui no Brasil acho que não daria a questão da escuta, né, porque o problema nosso acho que é um pouco criar ouvidos, né, porque olhos temos muitos e bocas bastante, mas ouvidos nenhum, então, acho que olhar com, com essa relação com o ouvir seria belíssima. E – Agora, indo um pouquinho pro “Arrufos”... Por que foi escolhido o tema amor no “Arrufos”?

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L – Não é bem o amor, né. Eu acho que “Arrufos” ele fala das relações do amor, é... Nesse sentido ele é quase o tema do “Hygiene” olhado pelo ponto de vista do privado, né, então, como esse poder externo normativa inclusive a sua forma de amar. Quer dizer, na verdade ele é uma discussão sobre a forma de amar, quer dizer, como é que a gente amava, e aí tinha essa discussão, né, o amor é esse... Porque as pessoas tendem a olhar o amor como algo abstrato, que nasce com o ser humano e tal... E se você analisa isso historicamente, não... Cada época amava de uma maneira, chamava o amor de uma forma , né, e quando você faz um casamento sobre tudo, casal, isso muda muitíssimo de século pra século, de cultura pra cultura, então, existia uma possível diferença, não sei se a gente cumpriu, mas um pouco de colocar isso em xeque assim, né, ou se perceber se se isso é uma construção, a nossa construção, então vamos desconstruir, porque parece que ta posto assim, né “Não! Amar é isso, amar é casar é dividir uma casa é morar junto... Se não é isso não é amor. É ser eterno, é ser duas pessoas”, então acho que a gente tava a fim de discutir assim, se você for colocar isso numa situação real, você vai ver o que vira a discussão, tem um monte de questão, né. Agora, se você começar a encarar isso como “Não! Como você ama hoje é uma construção” então você tem aí uma brecha para a criação que acho que aí, na minha opinião, falta muito, essas pessoas amam muito tipo, “Nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” tipo assim, “por quê?” e daí, se você for pensar no caso gay, então, é mais assustador assim, tipo “Bicha, por que que você repetiu um padrão heterossexual, por que bicha?” É uma outra dinâmica que reproduz tudo, aí vai lá faz passeata, pede os mesmos direitos, sendo que existia uma chance enorme de se reinventar aí, né... Quem disse que é dois? Quem disse que é três? Quem disse que é quatro? Quem diz que é pra sempre, né? E quem diz que tem que ser igual pra todos? Então, é uma discussão, assim. E – E aonde que entra a obra plástica “Arrufos” nesse processo? L – Ela entra como elemento, assim. A gente vê as coisas muito como um todo. A gente não vê repartido assim, tipo: discurso, texto, emoção... A gente faz as mesmas perguntas, tudo que entra em cena responde as mesmas perguntas, então é um pouco isso, assim: Ok! Se a gente vai brincar com isso, então o que que é? Ah, então vamos colocar as pessoas sentadas de dois em dois? Então vamos fazer uma alcova, vamos fazer uma coisa fechada? Vamos trabalhar tudo que é pequeno, então é o abajur, é a caixinha, é o caminhozinho, é tudo pequenininho, é tudo íntimo, é também a transformação, então, se a gente de falando de construção e transformar, então, o espaço tem que se transformar todo momento, então, a gente tenta pra todos os lugares, pra tudo que entra em cena, que responda as mesmas perguntas... (tem que comprar, né, mas eu vou lá comprar, é um minuto. Tava derretido, ontem? Então, ta bom. Vou comprar no mesmo horário. Tá finalizando... Tá faltando muito?Tá!) E – E... Os textos, as leituras do “Arrufos” por exemplo, toda essa coletânea aí, ela é trazida por todo mundo? Todo mundo vem e... L – É! E também cada um tem o seu repertório, tem pessoas que são mais das letras, tem gente que é mais do áudio-visual, tem gente que é mais da vida, do diário, das coisas, é super livre não ter hierarquia, assim, então, assim... A velhinha da vila falando de amor, e Freud

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falando de amor, pra mim é a mesma merda, assim, ta no mesmo lugar... São pontos de vista que vão se cruzar. E – E o processo se dá como todo trabalho do XIX, então? Vocês vão, se reúnem, vai esmiuçando, construindo... L – É claro que assim, por isso é difícil falar assim... As coisas são muito vivas, né, então às vezes quando eu dou uma entrevista que tem que falar do XIX assim, tipo é uma abstração, assim... Nenhum processo foi igual ao outro, não existem... Agora existe um jeito que vai se transformando e que nem percebe que está se transformando, né. Eu por exemplo to vislumbrando o processo novo do XIX, vislumbrando não porque não to imaginando ser isso, a gente já tá caminhando com ele, que ta indo pra um outro lugar, mas tudo bem, ninguém ta em crise com isso, assim. É isso que eu falo assim, a gente não tem... Isso é uma coisa muito característica do grupo, a gente não tem essa pegada do, da metodologia, tudo isso que tá muito ligado à academia de certa forma, que tenta... Hoje eu não sei como ta, mas quando eu estava tinha um pouco esse valor, assim, tal pessoa faz as coisas assim, ligando uma lógica de teatro de pesquisa a uma lógica de experiência, né... E que segue um padrão e que chega em certos resultados. Eu acho que a gente tá menos preocupado com isso, a gente ta mais na vida e na loucura. E – Dentro do “Arrufos” durante o processo, o que foram as maiores dificuldades, o que você acha? L – (É na outra porta, por favor, e sua próxima aqui) Desculpe! Fale! E – Não, das dificuldades durante o processo do “Arrufos”... L – Ah, todas as dificuldades disso, é um parto, de parir... Tem dia que dói demais, tem dia que dói as costas, é a dificuldade de se propor a essa empreitada da criação. Eu acho que no caso específico do “Arrufos” talvez, é... A gente sofreu um pouco com excesso de material e também é uma coisa que a gente ainda não aperfeiçoou e também que a gente começou a perceber, como é que a gente lida com contradição? Como é que a gente lida com opiniões diferentes? Como é que a gente consegue realmente fazer esse exercício de colocar em cena, isso sem ser tosco de dizer “Então tem a sua e tem a minha”, a gente fala que a gente é de uma geração, de um país que não sabe fazer oposição, né, oposição no Brasil sempre é igual a guerra, a destruição, sempre errado, né, agora esse exercício quase retórico de se opor é muito pouco trabalhado na vida brasileira. Eu tenho uma relação de vilania, né... Aquilo que me oponho é o vilão, é meu contrário, meu inimigo, então: Ah, não... Somos um grupo, somos sócios, somos uma empresa, então, eu não posso me divergir com ele, imagine! Então, eu acho que naquela época a gente um pouco desse receio, hoje a tem mais a manha de falar “não”, e esse não ser um começo e não uma racha. E – E as maiores descobertas do “Arrufos”? L – Descobertas? Foi de que os festivais não suportam mais peças com cenários... Pesado eles não gostam! Acho que foram as descobertas que estão aparecendo hoje, assim... Talvez as

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mesmas, assim. Acho que pro bem e pro mal eu acabei de te falar as dificuldades, assim, e de ser bem isso, assim, que é essa dinâmica e tudo mais. E – E “Arrufos” se tornou “Arrufos” no final, assim... Como que vocês chegaram e falaram... O espetáculo pronto. L – Nesse, nessa coisa muito de abrir pra plateia e ir sentindo. Ele era dividido, sempre foi dividido desde o começo a ideia de fazer o amor nos três atos, nos três séculos, né. A gente abria... ( A minha mochila... Eu acho que vocês colocaram no porta-mala) A gente abriu cada século, né... A gente ia abrindo pra plateia e escutava... Cada século tinha 50 minutos pra plateia, você imagina. Então, foi cortando e vendo onde as coisas podiam se sobrepor, podíamos conversar... E – E o nome foi definido “Arrufos”... L – “Arrufos” por causa do quadro que foi importante em determinado momento, e tinha essa coisa da brincadeirinha assim... Uma palavra que ninguém sabe o que é, e se pergunta porquê, e a tradução é tão bonitinha, foi... Talvez na falta de algo melhor ... É difícil nomear as coisas, é difícil. Mas meio que ficou... Foi rápido até, a gente foi deixando assim, e acabou ficando mesmo. E – Então é isso. L – Obrigado! E – Você quer falar mais algo? L – Não, não... Só isso! E- Lubi, muito obrigado! L – Obrigado você!

(30 minutos e 23 segundos)

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ANEXO III

Entrevista realizada no dia 11 de Maio de 2012 com Eduardo da Luz Moreira, 51 anos, ator e diretor do GRUPO GALPÃO

E – Entrevistador Ed – Entrevistado

E – Primeiro seu nome, idade, formação... Ed – É Eduardo da Luz Moreira, tenho 51 anos, minha formação é... Eu fiz minha universidade em Filosofia, e aí comecei a trabalhar com teatro na Universidade, e aí, quer dizer, não tenho o curso de teatro, fiz workshops, oficinas, cursos isolados e a minha formação é mais na prática mesmo. E – Você fundou o Galpão? Ed – Eu sou um dos fundadores, em 82. E- Então, assim: eu vou pra uma parte de perguntas sobre o texto e a gente vai mudando os caminhos aí, da conversa. Então, eu queria saber como que vocês selecionam o texto, assim, quando vocês querem que ele vire uma montagem teatral, como é a escolha do texto? Ed – Bom, aí depende, a gente tem... Tem processos que a gente cria o texto, tem processos que a gente já, já por exemplo adaptou romance. Tem um que é o mais comum a gente pegar textos prontos, ou também, agora por exemplo essa montagem do Tchekhov, adaptação de contos, né... Então, não tem uma forma pronta, varia muito, desde criação de texto próprio até adaptação da forma literária para a forma dramática, ou pegar um texto, um clássico pronto e adaptar, criar o próprio texto, então, não existe um formato único, né... Varia muito. E – Daí, quando vocês escolhem assim um texto como que passa esse processo de conhecer o texto do elenco, assim? Quais as formas que a leitura, ela vai acontece no grupo, pra que vocês assim, na intenção do texto sair das páginas para o palco... Quais são processos de leitura, se todo mundo escolhe o texto junto, se uma pessoa escolha o texto e chega, se vocês começam a trabalhar a leitura, se todo mundo lê junto, como se dá isso? Ed – É, as vezes as pessoas sugerem texto, daí a gente lê o texto juntos, mas é um processo que a gente vai sempre, é... Esse processo da leitura coletiva é sempre um processo fundamental. Todo mundo lê o texto junto e a gente discutir o texto até chegar na conclusão de que é o texto que satisfaça aquilo que a gente quer dizer naquele momento, então, enfim... É esse processo coletivo, ele é muito importante, e às vezes existem muitos diálogos, debates assim pra saber se é... E é claro, é muito difícil a gente conseguir um texto que é unânime, que todos queiram montar. Então, a gente vai assim pela maioria, as vezes é indicação de um diretor, as vezes é indicação do grupo, então, talvez exemplificando fica mais fácil: Quando nós fomos fazer “Romeu e Julieta” nós trabalhamos com cinco possibilidades de montagem,

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trabalhamos com “Romeu e Julieta”, trabalhamos com “Morte e vida Severina” de João Cabral de Mello Neto, trabalhamos também com musical brasileiro, que é um tema, por exemplo, que depois vai dar num outro espetáculo do grupo, o “Um trem chamado desejo”, trabalhamos com Guimarães Rosa, que de certa maneira estava presente, está presente no “Romeu e Julieta” também, que foi a “Primeiras Histórias” dos contos do Guimarães Rosa, e trabalhamos com Caldéron de La Barca “O grande teatro do mundo”. Então, a gente fez workshops, a gente fez trabalhos cênicos em cima dessas cinco ideias, e a partir desses exercícios a gente optou por “Romeu e Julieta”, então, é um processo que sempre ele acontece muito por aí. São textos que as pessoas trazem, as vezes temas, por exemplo esse espetáculo “Um trem chamado desejo”, existiu uma ideia de um tema, que era falar sobre o próprio teatro, falar sobre uma companhia de teatro musical brasileiro na década de vinte, trinta, isso... A partir desse tema a gente foi criando, desenvolvendo situações, personagens, e criamos o texto, né, então, é uma coisa que varia muito, mas é claro que essa leitura, a leitura de textos sempre nos alimenta muito nesse processo. E – Quando vocês chegam em pontos, assim, em partes do texto, no processo, onde as interpretações se divergem, assim. Como vocês lidam pra buscar uma homogeneidade na interpretação do texto? Ed – É, acho que isso é um papel mais do diretor, né. O diretor aí tem um papel preponderante mesmo de amarrar essa discussão dos pontos de vista, e o próprio ponto de vista do diretor é um ponto de vista que pesa mais, né, afinal de contas ele que tem o... Vamos dizer assim, o fio da meada da encenação. Então, há que se dar um maior poder ao diretor nesse sentido, claro que isso tudo é sempre muito discutido, mas a concepção da encenação ela tem uma mão, e essa mão é do diretor e ela tem que ser respeitada, então, quando acontece esse tipo de coisa o papel do diretor é um papel muito importante. E – E quando que o texto... Qual o momento em que todo esse processo de estudos, de pesquisa do texto.. Qual é o momento que vocês percebem que o texto passa a sair da pagina para se transferir ao palco? Como vocês, como as primeiras atividades nascem? Ed – É, por exemplo, na, no “Tio Vânia”, nós pegamos as situações, nós dividimos a cena, a peça em vários fragmentos, né. E, a partir dessa divisão de fragmentos a gente procurou, de um processo assim, puxado até de um russo que é o Varsilia, ele que nos passou esse processo, que é da analise ativa, que é você pensar o que é o acontecimento principal desse fragmento, discutir o acontecimento principal desse fragmento, e como é que ele se conclui pra gerar um outro fragmento, um outro acontecimento principal. Então, a partir dessa discussão, dessa definição é, a gente improvisa sem estar com o texto memorizado, e aí essas improvisações dessas situações ou desses fragmentos, elas começam a gerar nos atores, a causar nos atores, um conhecimento grande dessas situações, das relações entre as personagens, do próprio personagem da vida desse personagem, então a peça inteira antes da gente memorizar as falas, a peça inteira fora improvisada a partir desse estudo de cada fragmento, de cada acontecimento principal e da conclusão desse acontecimento principal, desse método de análise ativa e a partir daí a gente fez esse processo durante quase dois

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meses, sem memorizar, e a partir daí, os personagens de certa maneira eles já tinha vida, e quando a gente voltou pra concluir a encenação nos dois últimos meses de ensaio, aí sim pra memorizar as falas, pra ter o texto, os personagens já, de certa maneira, eles já estavam vivos, eles já tinham saído do papel e ganhado vida, apesar da encenação não estar pronta. Já tinha pelo menos um esboço bem claro de cada um dos personagens. E – Então, na verdade é como se o personagem entrasse no texto, né? Ed – É! Exatamente! E – Durante esses processos, Eduardo, por exemplo, o processo de direção, o espetáculo está sendo montado e tal, já tem cenas que foram marcadas e de repente surge uma nova leitura de uma parte do texto, assim... Um “click” um insight de uma nova leitura em que dizem “Não, não é isso, tem que ser outra coisa”, como que se lida com essa, com esses imprevistos de diferentes formas de interpretação mesmo, de caminhos que o texto está seguindo e que a montagem está seguindo? Ed – Ah, é normal. Acho que essas, essas mudanças de percurso assim, elas acontecem e é normal que aconteça. Às vezes você descobre outras coisas, né. Não é nada que seja surpreendente. É claro que existem momentos e existem processos de montagens que você, às vezes você cai num vazio maior, assim, de uma crise maior. Você vê que não era por aqui, que tem que ir por ali. Mas, acho que esses, esses, essas mudanças de percurso faz parte do processo, né. E – Aí vocês lidam super bem com essas mudanças, vocês são super abertos. Ed – É, tentamos lidar, né. Nem sempre, mas acho que tentamos lidar como uma coisa natural do processo, né. E- Você acredita que o texto de teatro tem a mesma força no papel e no palco? Ed – São diferentes, né. Quer dizer, o teatro é uma coisa oral, ele é feito pra ser lido, lido em voz alta, quer dizer, ele tem uma oralidade, o que importa é a fala, né, por isso que as vezes é tão difícil você traduzir uma peça de teatro, porque não basta você expressar claramente a ideia do que o personagem está dizendo, mas tem a ideia de como o personagem diz, e isso de certa maneira, cada ator vai fazer o personagem de uma maneira dele, específica dele, então, é uma coisa muito difícil, teatro no papel ele ainda não é teatro, ele ainda não é personagem, então, ele é uma fala na folha de papel, e dar vida a isso, aí cabe ao ator fazer isso, né, é um pouco isso, assim. Não existe um “Hamlet” abstrato, existe um “Hamlet” concreto que o ator vai encarnar, enfim, vai fazer ele e isso eu acho que é uma coisa inevitável, essa transposição do papel para a vida concreta é a missão do ator, humanizar isso. E – Agora pensando assim: a gente tentar levar o teatro e o texto, o texto enquanto forma de texto teatral mesmo, pensar ele na escola, que seria onde a leitura tem uma grande propagação, uma grande difusão, uma grande presença da leitura na escola... O texto de teatro se ele entra na escola, pensando nessa proposta de que ele, o texto de teatro é pra ser lido ao

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vivo, vivo, né... Deve ser lido em voz alta... Como que um texto de teatro ele poderia entrar num ambiente escolar, de uma forma boa, de qualidade, como que você acha? Ed – Eu acho que fazendo com que os alunos leiam o texto, quer dizer, leiam em voz alta. Claro que pra isso é importante que eles leiam, conheçam a peça, conheçam a situação, conheçam as relações que existem entre as personagens daquela história tratada na peça, leituras individuais podem ajudar, mas eu acho que como efetivar essa, esse fenômeno teatral, fenômeno dramático, isso tem que ser uma leitura em voz alta, e em fim, que as pessoas procurem se relacionar, quer dizer, o que um lê de certa maneira afeta o que o outro vai ler também, de certa maneira que exista diálogo nesse sentido e não monólogos isolados, mas exista de fato diálogo, criar esse diálogo. E – Agora vindo um pouquinho pro processo do “Romeu”... Primeira questão você já explicou que é como foi escolhido o texto pro trabalho do “Romeu e Julieta”... Essa adaptação do texto, é uma adaptação, poderia chamar assim? Ed – É, tem uma adaptação. E – Ela surge de qual necessidade, assim, essa mudança do texto, essa forma que acho que vocês colocam até no, dentro das coisas que eu li, de tentar “abrasileirar” Shakespeare, e além de “abrasileirá-lo”, essa característica mineira que é dada pro Shakespeare de vocês, como que nasce essa intenção, essa demanda e surge essa realidade desse texto novo aí? Ed – Quer dizer, eu acho que a gente foi, primeiro a gente queria fazer um espetáculo pra rua, isso já é bastante determinante pra uma porção de coisas, por exemplo, dar uma “enxugada” no texto, porque, se a gente fosse montar o “Romeu e Julieta” original seriam três horas de montagem e ficaria excessivo pra rua, a rua exige uma certa concisão, cenas mais rápidas, né, então, isso aí já foi um elemento determinante. E, a gente queria fazer um espetáculo, nas palavras do Gabriel, do diretor, um espetáculo voltado assim muito pro interior, um Brasil do interior, um Brasil profundo vamos dizer assim, tanto é que a gente foi ensaiar numa cidade muito pequena do interior, chamada Morro Vermelho, a gente ensaiou junto com essas pessoas dessa cidade que acompanharam os ensaios, isso deu elementos muito importantes para cortar algumas coisas ou não... E aí, tinha essa coisa, né, de usar a música, uma história de amor... E a gente pegou certas referências musicais, principalmente das serestas, das modinhas, da música da belle époque brasileira, então, isso tudo foi criando assim uma ambiência pra obra, pra adaptação, que obviamente a gente trabalhou o tempo inteiro com um dramaturgo, que era o Cacá Brandão, que acompanhou todo o processo, que não foi só fazendo nossa acessória teórica, pra nos dar elementos teóricos do teatro elisabetano, do barroco e colocando dentro disso, esses elementos da cultura popular brasileira. A música, sem dúvidas, foi um elemento fundamental, um ponto de partida. A utilização da música dentro dessa adaptação. E – Então primeiro, a ideia era já fazer um espetáculo de rua?

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Ed – A gente faria, antes de optar por “Romeu e Julieta” a gente sabia que faríamos um espetáculo de rua, sabíamos que faríamos um espetáculo usando a Veraneio, e aí a partir desses exercícios, desses workshops, nós optamos por “Romeu e Julieta”. E – Dentro do espetáculo, e acho que isso é uma coisa muito interessante, ele ta na terceira versão, seria terceira versão? Ed – Seria, de certa maneira, seria terceira versão. E – Como se dá assim a mudança de atores, esse, como acontece esse processo de mudar atores, do tempo que são outros corpos, agora, talvez até outras leituras dentro das cenas, como isso se constrói? Ed – É, acho que se constrói, bom, o ponto de partida é a versão do original, é claro que, acho que com um outro “time”, com outra qualidade de energia, o que a gente tá fazendo é o desenho original da peça. Tem uma substituição, o Paulo André entrou no lugar do Chico, mas existe, claro, que é diferente, é diferente... Tem uma passagem do tempo que é significativa e acho que a execução ela seja diferente. Eu tenho uma certa dificuldade de te dizer exatamente o que é, porque eu to fazendo, então é uma coisa complicada pra eu ter esse distanciamento, pra, eu ter um poder de analisar o que acontece. Eu acho muito interessante uma coisa que a Francesca, que é uma preparadora vocal italiana, ela trabalha muito com o Gabriel e ela veio assistir uns ensaios, e ela falou assim, que ela sentia na encenação uma nostalgia por um futuro que não se realiza, que é a essência do “Romeu e Julieta”, o casal que potencialmente se, é apaixonado, se ama e acaba que não consegue realizar um futuro, existe uma nostalgia de um futuro que não se realiza, e que ela via na nossa maneira de fazer uma nostalgia de um passado que já foi embora, que ela via atores com cinquenta anos fazendo esses personagens e que ela sentia essas duas nostalgias, uma voltada, apontada pro futuro, que é a história do “Romeu e Julieta” e uma nostalgia apontada pro passado, que é de um tempo que não volta mais. E – Eu não assisti a primeira montagem do “Romeu” mas eu vi a segunda, e eu vi uma coisa que me chamou muito a atenção e queria saber sobre... Porque pra mim parece uma outra leitura, não sei também, é uma percepção que eu queria compartilhar... A Julieta, na segunda montagem com a Fernanda, ela usa a ponta, a sapatilha, na primeira não tinha isso. E como surge essa nova Julieta, que agora é outra proposta, ela vem na ponta do pé e antes não tinha isso... Por que essa leitura nova? Ed – Eu acho que assim, O Gabriel sugeriu essa leitura até pela própria formação da Fernanda, a Fernanda é de formação bailarina, então ele achou que tinha uma coisa meio que de “Lago dos Cisnes” da morte dela e fez essa... E foi uma maneira que a Fernanda trouxesse uma contribuição dela pra montagem... Quer dizer, quando a Wanda saiu, saiu de uma maneira traumática, né, até pra gente poder tocar de novo nessa obra, acho que foi uma coisa muito inteligente da parte dele, muito sábia. Acho que ele procurou mudar um pouco a estrutura da personagem, da cena, então acho que vem tudo muito aí dentro desse contexto, e claro, uma coisa muito importante acho que é formação da própria Fernanda como bailarina.

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E – E isso muda pra vocês também, como o personagem do Romeu, essa mudança dela, por exemplo... Não da atriz, mas da personagem? Ed – Muda, é diferente... A relação muda, muda sim. Acho que é uma outra leitura, e claro que a interpretação dela provoca em mim reações também diferentes, então é diferente do que era com a Wanda na primeira versão. E – Dentro desses vinte anos de “Romeu e Julieta” as maiores dificuldades de tudo isso, o que é que você pontua? Ed – É um espetáculo que assim, ele tem toda uma poesia muito profunda, né... Quer dizer, você manter intacta essa poesia, fazendo quase trezentas apresentações já, é uma coisa que você tem que tomar muito cuidado, fazer com que essa poesia permaneça viva. Acho que é sempre o desafio do teatro mesmo, essa coisa de manter uma peça, um espetáculo como uma estrutura viva, uma coisa que acontece ali, naquele momento de maneira intensa, viva e não que seja uma mera reprodução de uma coisa já aprendida, meio morta, nesse sentido, E o “Romeu e Julieta” é isso, ele tem uma poesia profunda, uma história de amor, mas acima de tudo ele tem uma coisa poética desse nascimento do homem moderno, do homem que se contrapõe a sociedade, à violência da sociedade, um herói moderno mesmo, burguês nesse sentido de individualmente pleno. Então, não é um espetáculo fácil, além de ser fisicamente um espetáculo puxado, você tem uma cena que é uma cena muito intensa fisicamente, essa coisa das pernas de pau, essa coisa do próprio cenário, subir, descer, pular, correr, fisicamente ele é um espetáculo muito intenso que é também difícil. E – E as grandes descobertas de “Romeu e Julieta” pra vocês enquanto grupo, pra você enquanto ator? Ed – Eu acho que o “Romeu e Julieta” ele teve uma coisa, uma descoberta importante que foi essa coisa da, do poder da palavra na rua, foi acho que talvez o primeiro espetáculo que a gente usou de fato um texto tão, tanto texto falado de uma forma poética na rua, é claro que nós tivemos que encontrar uma solução técnica pra isso que foi a utilização de microfones sem fio, pra que as pessoas pudessem entender o texto sem que o ator tivesse fazendo um sobre esforço, mas acho que esse poder da poesia e da palavra na rua foi uma descoberta bastante essencial do “Romeu e Julieta”. E – Qual que é o poder... Isso me encantou, essa sua fala “o poder da palavra na rua”, como que, qual que é o poder da palavra na rua pra você? Como que é esse poder da palavra? Ed – Eu acho que é aquela coisa assim, quer dizer, uma palavra mata, né, ela tem essa capacidade de instaurar toda uma realidade, que a partir daquilo que você fala, daquilo que você diz é muito significativo, é uma coisa muito intensa. Eu acho que é isso, é de instaurar uma atmosfera, uma situação, uma verdade, como é que a partir da palavra o público entra, viaja para um outro universo, uma outra situação, uma outra realidade, ali se transfere uma outra coisa, e acho que a palavra é um poder fundamental dentro disso.

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E – E tornar o Shakespeare assim tão próximo das pessoas, porque acaba se tornando... Shakespeare, pra quem assiste “Romeu e Julieta” do Galpão, passa a ter uma aproximação muito grande com o texto, com o teatro, com o próprio Shakespeare, é uma aproximação bem grande. Ed – É, acho que tem essa coisa que a montagem ela resgata muito essa, esse espírito popular do teatro do Shakespeare, um teatro muito comunicativo, muito inteligente e ao mesmo tempo muito popular, que todo mundo entende as situações, os personagens são profundos e muito claros. É um teatro extremamente comunicativo... E aí é claro, se você pensar que ele escreveu no século XV, século XVI, não... Século XVI, começo do século XVII, como é que você pega esse texto e traz ele para os dias de hoje, pra esse público do mundo de hoje. Peter Brook fala uma coisa interessante, que ele acha que o único lugar hoje, no mundo de hoje, que reproduziria o, essa coisa tão heterogênea do público, do teatro elisabetano, ele só veria isso na rua, no mundo contemporâneo, assim. E é bem interessante isso, eu acho que por exemplo quando a gente montou o “Romeu e Julieta” a gente foi buscar muitas referências desses grandes mestres. O próprio Peter Brook, como que ele trabalhou por exemplo no “Sonho de uma noite de verão”, como é que ele colocou os atores numa situação física para que eles não recitassem, sabe? Mas para que essas palavras, essa poesia do Shakespeare saísse de uma maneira viva. Então, por exemplo ele colocou os atores fazendo essa coisa de circo, o trapézio. Eles faziam muito trapézio e que isso, esse despende dessa energia física falando o texto, impedia com que os atores ficassem recitativos, dizendo poesia, é uma coisa assim, não é dizer a poesia, mas é viver a poesia. E, acho que essa dica, vamos dizer assim, do Peter Brook, ela foi muito importante porque pra nós também foi uma coisa assim, fisicamente, a gente começou a trabalhar um pouco da corda bamba, a corda bamba imaginária, esse exercício de andar numa pinguela, num caminho, numa coisa de madeira há um metro e meio assim do chão, falando o texto, cantando, meio que com o perigo de cair, se equilibrando assim num lugar instável, essa instabilidade física ela foi muito importante pra, vamos dizer assim, vivenciar essa poesia do Shakespeare, não ficar uma coisa muito recitativa. E – Bom, é isso... Você quer falar mais alguma coisa? Ed – Não, não... Acho que tá bom. Acho que a gente falou bastante. E – Então está ótimo. Obrigado, Eduardo. Ed – Falou, Juliano. Obrigado!

(34 minutos e 03 segundos)

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ANEXO IV

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ANEXO V