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COLEÇÃO NORDESTINA CYRO DE MATTOS ALEILTON FONSECA (Seleção, Organização e Notas) O TRIUNFO DE SOSÍGENES COSTA (Estudos, Depoimentos e Antologia)

o Triunfo de Sosigenes Costa

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Sosígenes Costa

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  • C O L E O N O R D E S T I N A

    CYRO DE MATTOS

    ALEILTON FONSECA(Seleo, Organizao e Notas)

    O TRIUNFO

    DE SOSGENES COSTA(Estudos, Depoimentos e Antologia)

  • O TRIUNFO DE SOSGENES COSTA(ESTUDOS, DEPOIMENTOS E ANTOLOGIA)

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  • O TRIUNFO DE SOSGENES COSTA(ESTUDOS, DEPOIMENTOS E ANTOLOGIA)

    Seleo, Organizao e NotasCYRO DE MATTOS

    ALEILTON FONSECA

  • 2004 BY CYRO DE MATTOS E ALEILTON FONSECADIREITOS DESTA EDIO CEDIDOS

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    PRINTED IN BRAZIL ISBN - 85-7455-088-4

    FICHA CATALOGRFICAELABORADA POR SILVANA REIS CERQUEIRA

    CRB5/1122

    T839 O triunfo de Sosgenes Costa : (estudos, depoimentos e antologia) / Seleo,organizao e notas de Cyro de Mattos, Aleilton Fonseca. Ilhus, Ba :Editus/UEFS-Ed., 2004292p. : il. (Coleo Nordestina ; 41)ISBN 85-7455-088-4

    1. Costa, Sosgenes, 1901-1968. 2. Literatura Antologia. 3. Literaturabrasileira Depoimentos. 4. Ensaios Crtica. I. Mattos, Cyro de. II. Fonseca,Aleilton. III. Srie.

    CDD 809

  • SUMRIO

    REGISTRO9

    HELENA PARENTE CUNHAHOMENAGEM AO MAGO DAS IMAGENS FERICAS

    11

    I - ESTUDOS

    HEITOR BRASILEIRO FILHOSOSGENES COSTA: CENTENRIO, ILUSTRE E DESCONHECIDO

    27HLIO PLVORA

    SOSGENES COSTA E O MODERNISMO LITERRIO,UMA CRNICA DE ESCARAMUAS E AFAGOS

    39GERANA DAMULAKIS

    O CENTENRIO DO CASTELO DE MITOS51

    CYRO DE MATTOSINFORMAO DE SOSGENES COSTA

    71RUY PVOAS

    LINGUAGEM DE AFRO-DESCENDENTESEM SOSGENES COSTA SOB O OLHAR DE CYRO DE MATTOS

    83ALEILTON FONSECA

    SOSGENES COSTA: POETA DA VISIBILIDADE MODERNA91

  • FLORISVALDO MATTOSCALEIDOSCPIO XTASE FOSFREO

    105JORGE DE SOUSA ARAUJO

    VIRTUOSISMO E ESTESIA115

    MARIA DE FTIMA BERENICE DA CRUZCASE COMIGO, MARI - A BALADA LITORNEA DE SOSGENES COSTA

    131CID SEIXAS

    IARARANA, UM DOCUMENTO DOS ANOS 30143

    CELINA SCHEINOWITZ.POTICA E LINGUAGEM EM IARARANA

    157MARCOS AURLIO SOUZA

    A REINVENO ANTROPOFGICA DO DISCURSO EM IARARANA, DE SOSGENES COSTA183

    II - DEPOIMENTOS

    JAMES AMADOSOSGENES COSTA: A POESIA POR DESTINO

    197JORGE AMADO

    A POESIA DE SOSGENES COSTA E O ENSAIO DE JOS PAULO PAES205

    ZLIA GATTAIO AMIGO SOSGENES COSTA

    209WALDIR FREITAS DE OLIVEIRAPENSAMENTO POLTICO SEM VNCULO

    215

  • III - POEMAS DE SOSGENES COSTA(ANTOLOGIA)

    OBRA POTICA I

    A MAGNIFICNCIA DA TARDE225

    O PR-DO-SOL DO PAPAGAIO226

    CAIR DA NOITE227

    OBSESSO DO AMARELO228

    PAVO VERMELHO229

    VNUS NA ESPUMA230

    O MAR E O DRAGO231

    A CANO DO MENINO DO EGITO232

    NO JEQUITINHONHA233

    DORME A LOUCURA EM NFORA DE VINHO234

    BFALO DE FOGO237

    CANO DE AMOR242

    TEMPO ANTIGO245

    CASE COMIGO, MARI249

    A AURORA EM SANTO AMARO254

    CANTIGA BANTO256

  • 8OBRA POTICA II

    A MORTE DO SOL261

    PAVO AZUL262

    TEMA DA JUVENTUDE263

    A NNIA DO BEIJA-FLOR264

    ALECRIM DA BEIRA DGUA NO SE CORTA COM MACHADO265

    NAS ASAS VINDO O SONHO DE VERONA266

    A LIBERDADE EST MORTA267

    A MARCHA DO BUMBA-MEU-BOI269

    DOM GRILO270

    A NEGRA MINGORRA272

    DUDU CALUNGA274

    O EPITFIO DE CITERA277

    IARARANA (TRECHOS)CANTO V

    278CANTO VI

    281CANTO VII

    284

  • 9REGISTRO

    VRIAS HOMENAGENS FORAM prestadas em comemorao do cen-tenrio de nascimento do poeta Sosgenes Costa, 1901-2001, desta-cando-se entre elas a edio do alentado volume Poesia completapelo Conselho Estadual de Cultura da Bahia, com o apoio da Secreta-ria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, acatando uma iniciativada Fundao Cultural de Ilhus, e a publicao do livro Crnicas &poemas recolhidos, pela Fundao Cultural de Ilhus, com pesqui-sa, introdues, notas e bibliografia de Gilfrancisco.

    Artigos de professores universitrios e intelectuais concei-tuados foram publicados no suplemento cultural do jornal A Tarde ena revista Iararana, enquanto comunicaes e palestras acontece-ram em importantes instituies culturais da Bahia, reunindo especi-alistas na obra do poeta de Belmonte e Ilhus. Homenagens justaschegavam em momento oportuno para a avaliao, compreenso ereconhecimento de um texto potico dos mais ricos e originais denossas letras.

    Nesta coletnea sobre o autor dos admirveis Sonetos Pa-vnicos, os textos Sosgenes Costa: poeta da visibilidade, de Aleil-ton Fonseca, Impresses de Sosgenes Costa, de Cyro de Mattos, eVirtuosimo e Estesia, de Jorge Araujo, foram apresentados na

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    Semana de Sosgenes Costa promovida pela Fundao Cultural de Ilh-us, em novembro de 2001; Potica e Linguagem em Iararana, deCelina Scheinowitz, A Reinveno Antropofgica do Discurso em Ia-rarana, de Sosgenes Costa, de Marcos Aurlio Souza, A BaladaLitornea de Sosgenes Costa, de Maria de Ftima Berenice da Cruz,O Centenrio do Castelo de Mitos, de Gerana Damulakis, e Sos-genes Costa: Centenrio, ilustre e desconhecido, de Heitor BrasileiroFilho, participaram da revista Iararana 7 - Edio Especial Centen-rio de Sosgenes Costa, (novembro/2001 a fevereiro/2002); Calei-doscpio - xtase Fosfreo, de Florisvaldo Mattos, Sosgenes Costae o Modernismo Literrio, uma crnica de escaramuas e afagos, deHlio Plvora, e Pensamento Poltico sem Vnculo, de Waldir Frei-tas de Oliveira , apareceram no suplemento Cultural, do jornal ATarde, edio de 10.11.2001, enquanto Iararana, Um documento dosanos 30, de Cid Seixas, integrou, como palestra, o curso promovidopela Academia de Letras da Bahia sobre o poeta que fez da cor na suaarte uma obsesso.

    Em O Triunfo de Sosgenes Costa, pretende-se preservar aescrita e a fala desses professores universitrios e escritores que revi-sitaram a alma e a obra de um dos poetas mais importantes damoderna poesia brasileira, durante as homenagens prestadas em co-memorao do centenrio de seu nascimento. E, obviamente, fazercom que o poeta de Iararana alcance um nmero maior de leito-res, passando sua obra a ser objeto de avaliao e fruio por profes-sores, estudantes e amadores da nossa poesia.

    OS ORGANIZADORES

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    HOMENAGEMAO MAGO DAS IMAGENS FERICAS

    HELENA PARENTE CUNHA

    GUARDAR NA MEMRIA a lembrana dos grandes nomes que jno mais fazem parte do inventrio dos vivos um modo de preservara seiva que os nutriu, na esperana de tambm servir de alimento snovas geraes. H pouco tempo celebramos o centenrio de CarlosDrummond de Andrade, de Juscelino Kubitschek, de Ceclia Meire-les, alm do bicentenrio de Victor Hugo. No ano de 2001, ns,baianos, fazemos questo de comemorar os cem anos de nascimen-to do poeta de Belmonte, o mago das imagens fericas, o inventorde castelos e paisagens multicromticas, o vate das origens mticasde sua terra, Sosgenes Costa. Esta comemorao, embora pratica-mente limitada sua Bahia natal, se reveste de maior significado, porter sido o poeta pouco reconhecido enquanto viveu e longamente es-quecido aps a morte, em 1967.

    Em boa hora os escritores Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca,ligados mesma zona cacaueira do poeta, decidiram organizar O Triun-fo de Sosgenes Costa que por certo contribuir para a divulgao deum dos maiores nomes da literatura brasileira de todos os tempos.

    As autoras e os autores destes bem elaborados ensaios soreconhecidos escritores e/ou professores baianos, cujos minicurrcu-los precedem os respectivos textos. Entre os indiscutveis mritos

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    deste volume, avulta o de integrar o movimento de resgate da grande-za de um verdadeiro artista da palavra que, at a presente data, pos-sua apenas dois livros de estudo sobre sua riqussima produo, o deJos Paulo Paes, Pavo parlenda paraso (1977) e o de Gerana Da-mulakis, Sosgenes Costa - o poeta grego da Bahia (1996). Pratica-mente todos os ensaios deste livro fazem referncia aos dois volumespioneiros.

    O Triunfo de Sosgenes Costa est dividido em trs partesdistintas: os ensaios crticos, os depoimentos e a antologia. Farei umbreve resumo dos trabalhos da primeira parte.

    HEITOR BRASILEIRO FILHO fala de vrios dados biogrfi-cos do poeta de Belmonte, como sua chegada a Ilhus em 1926, ondefoi aprovado em concurso para telegrafista e, paralelamente, passa aexercer a funo de escriturrio da Associao Comercial de Ilhus, daqual s saiu aposentado, em 1953. H tambm referncias aos com-panheiros de juventude de Sosgenes que pertenciam "antiacade-mia" dos Rebeldes, fundada a fim de criar uma nova era literria.Entre os Rebeldes, figuram Jorge Amado, dison Carneiro, Dias daCosta, com quem Sosgenes, apesar do temperamento reservado,mantm correspondncia. No recm-fundado Dirio da Tarde, pu-blicou, de 1928 a 1929, crnicas sob o pseudnimo de Prncipe Azul.

    O primeiro e nico livro foi publicado em 1959, por inicia-tiva de alguns amigos, como Zora Seljan, Obra potica e, em 1978,veio a lume a segunda edio ampliada, Obra potica II, sob a res-ponsabilidade de Jos Paulo Paes, que tambm publicou o importantee aqui muito citado estudo Pavo parlenda paraso.

    Em 1954 muda-se para o Rio de Janeiro e, no ano seguinte,ganha viagem para visitar Europa e sia, particularmente a China.Viveu no Rio de Janeiro at a morte, em 1967.

    HLIO PLVORA enfatiza aspectos referentes Academia dosRebeldes que, apesar de ter surgido com idias demolidoras, reage con-tra os exageros inovadores da turma de So Paulo e Rio de Janeiro. Re-centemente descobriram-se crnicas de Sosgenes, entre as quais asque, em 1928, criticam ou ridicularizam as tendncias futuristas, como

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    a de 21 de maro: A poesia moderna toda assim, disparatada. Escan-galha-se a mtrica sem d, remete-se ao bom-senso uma patada ecompara-se a lua ao po-de-l.

    Todavia, entre as citaes de crnicas arroladas neste ensaio,verifica-se que SC nem sempre radical: Do futurismo de quem temtalento, eu gosto, afirma em 1 de outubro de 1928. Plvora observa:

    Apesar de suas escaramuas iniciais contra o movimentomodernista deflagrado em So Paulo, Sosgenes Costa, fer-renho adepto da velha lrica, que cultivou at o fim, erabastante sensvel e inteligente para saber que, mesmo sema forma modernosa, sem a forma novidadeira, ele era mo-derno, sua poesia tinha esprito moderno. Iararana, o po-ema indigenista descoberto por Jos Paulo Paes entre seusmanuscritos, pode ter um ponto de vista de "fundo de quin-tal", em relao ao receiturio modernista, mas adere temtica brasileira pregada nos manifestos que se segui-ram Semana de 22. (...) Sosgenes sabia, como ele pr-prio escreveu em 14 de janeiro de 1929, que "a verdade daarte , apenas, a verdade da beleza".

    GERANA DAMULAKIS, a autora de um dos dois livros bsi-cos dos estudos sobre o poeta, Sosgenes Costa - o poeta grego daBahia, bastante citado pelos autores deste volume, no presente en-saio optou por conjugar dois de seus trabalhos, Castelo de mitos(presente em cada poema) e Sosgenes Costa e o Barroco. Geranase refere aos vrios caminhos de uma obra de pluralidade reconhecida:

    Eles vo sendo encontrados nas partes da Obra Poticaque, enfim, definem o autor, ora como poeta social data-do, ora como aquele que mistura de modo inusitado oluxo barroco a sonetos parnasianos, na forma, descriti-vos na tcnica simbolista, os chamados sonetos pavnicos.

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    Ademais: do poeta fixado na sua admirao pelo mar, dopoeta que se serve do folclore e do poeta que constriuma saga para contar a origem do cacau em Iararana,ao poeta lrico (...).

    A ensasta menciona tambm a presena dos heris e dosepisdios da Bblia, da mitologia antiga, da Histria, do recurso aosarqutipos para a elaborao de metforas onde se envolvem reis edeuses.

    Igualmente est visto que as misturas de temas diversos,at mesmo os disparates que aparecem quando o poeta resolve-se porrimas difceis, que terminam sendo despropositadas, tambm atuampara manter e, inclusive, aumentar o interesse pelo processo mentalque associa, por exemplo, o pavo vermelho do soneto homnimo,com um correspondente como o sentimento de alegria.

    CYRO DE MATTOS destaca nesse poeta de paves e dra-ges, vinho e aroma, a vertente negra expressa em vrios poemas,alguns deles mais longos, como Iemanj, de 769 versos.

    Em Sosgenes Costa h uma fuso afetiva com o tema donegro brasileiro, na qual se destaca a espontaneidade dalinguagem, o uso autntico e reiterativo do vocabulrio afri-cano, o domnio na descrio de ritos e mitos, a revelaodo sentimento cheio de um dengue, de um sensualismo ti-picamente afro-brasileiro.

    oportuno lembrar que o elegante sonetista de gosto cls-sico e classicizante e de rica imagtica suntuosa, com explcita prefe-rncia pela metrificao e pela rima, tambm sabe instrumentalizar-se com registro popular na saga cacaueira glorificadora do ndio e nospoemas de inspirao afro-brasileira, em que recorre ao verso-livre e linguagem coloquial pontilhada de expresses tpicas.

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    Cyro associa a vertente afro-brasileira de Sosgenes s cria-es de Castro Alves, Jorge de Lima e Asceno Ferreira e defende aquesto da legitimidade do tema abordado por escritores de diversaorigem tnica, desde que exista uma real fuso afetiva que trans-posta pela imaginao e/ou vivncia para o significante e significadodo discurso.

    RUY PVOAS faz uma apreciao do estudo realizado porCyro de Mattos, a propsito do filo afro-brasileiro da poesia de Sos-genes Costa, concentrando-se na linguagem herdada dos escravos eque o poeta soube utilizar com tanta maestria. Pvoas destaca a ex-plorao da musicalidade, da sonoridade atravs de arranjos lexe-mticos e sintticos e revela como Sosgenes manuseava com desen-voltura e segundo as exigncias estilsticas do poema, o nag ou alngua de Angola, o que atesta a familiaridade do poeta com a vida e asprticas religiosas dos terreiros de candombl. Assim, a sua to co-mentada e louvada capacidade para a construo de parlendas,

    em funo de uma musicalidade e ritmos poticos, ofaz costurar pedaos de versos do hinrio afro-des-cendente, juntando-se a lexemas isolados e desconec-tados entre si e, ainda, somando a palavras portu-guesas cuja pronncia se assemelha a uma pronn-cia da lngua de Angola ou do nag.

    A partir da explicao dos vocbulos e da anlise de versos efragmentos escritos nesses dialetos, o autor enfatiza os recursos so-noros e musicais explorados por SC, alm de fazer referncias aoscultos, rituais e costumes do povo africano. No final, ele acrescentaum glossrio que servir de subsdio para possveis esclarecimentos.

    ALEILTON FONSECA trata inicialmente de questes relati-vas ao carter reducionista do cnone literrio, procurando explicar olugar discreto ocupado pelo poeta em relao ao panorama da poesiabrasileira do seu tempo. Provavelmente o culto excessivo de SC aos

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    modelos clssicos, superados na poca urea do nosso modernismo,teria contribudo para que seu nome no figurasse entre os astros deprimeira grandeza seus contemporneos.

    Aleilton, atravs da fundamentao terica baseada na ca-tegoria da visibilidade, via talo Calvino, volta sua ateno principal-mente para a potica visual:

    Sosgenes Costa um poeta imagtico por excelncia. Seuolhar se projeta sobre coisas, paisagens, ritos, situaes -e ele transmuta, alegoriza, ressignifica, plasmando emlinguagem lrica aquilo que visualiza - no real e na ima-ginao. (...) Observa-se, pois, que o processo de visibili-dade, uma vez acionado por um sujeito, tambm requeresforo de criar significaes. O esforo surge do compro-metimento volitivo e da vontade de dar forma ao conte-do da imaginao que alimenta e resulta do impulso decriar.

    O autor deste ensaio condena as classificaes que preten-dem enquadrar SC na estreiteza de algum ismo, ora como parnasianoou simbolista, ora modernista. Estes rtulos s se aplicam adjetiva-mente a procedimentos parciais de sua potica, mas no tm forasubstantiva quando aplicados unitariamente. Em resumo, graas obra multifacetada e inventividade, SC um moderno, em toda aextenso da palavra.

    FLORISVALDO MATTOS focaliza sobretudo a dimenso cro-mtica de SC que lhe confere singularidade capaz de se tornar umdiferencial no seu processo criativo:

    Conclu que o cromatismo da poesia de Sosgenes Costa(...) no possui carter meramente subsidirio, funcio-nando, ao contrrio como um atributo intrnseco da cri-atividade artstica, uma instncia paralela funo

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    abstrata e simblica da palavra, carregando-a de signi-ficados e servindo conformao e totalizao de umalinguagem, onde tempo e espao se traduzem em com-plexos jogos de luz e sombra, em xtase lrico e visual.

    Apesar dessa nfase nas cores e na apoteose visual emSosgenes, Florisvaldo chama a ateno para os demais sentidos, tan-tas vezes recaindo no jogo sinestsico ou no privilegiar das sensaesolfativas. Para o ensasta, o requintado gosto do poeta de Belmonte ealgumas de suas referncias irnicas poderiam levar a supor que elefosse contrrio s novas tendncias poticas, mas, na verdade, o queele no aceitava eram os exageros da vertente futurista. Basta que serecorde o nacionalismo da epopia cabocla Iararana. O modernis-mo em Sosgenes Costa, de brilhante, tornou-se fosfreo.

    JORGE DE SOUZA ARAUJO, em aluso variedade de tonsde SC, comenta sobre a ourivesaria de sua dico metrificada e rima-da, sobre seus ataques s modernosidades da Semana de 22, o queno impediu o tom prosaico de composies despojadas dos luxosimagticos. Araujo, a propsito do romance surrealista de Jorge deLima, O Anjo, aponta como o poeta baiano aceitava a recomendaodo poeta alagoano no tocante ao destino do homem que nasceu paracontemplar e, s por castigo, luta e trabalha, mostrando-se Sosgenesavaro dessa contemplao.

    Seu fabulrio e expressionismo verbais fundem o tosco dafala corriqueira com o refinamento aristocrtico e classista, a opuln-cia verbal com a singularidade do mito, o ocidente e o oriente, o con-tingente e o estelar, a mitologia cabocla/mestia/afro-nordestina, maiso universalismo de impresses temticas absolutamente originais.Tudo Sosgenes como o Jorge de Lima de Inveno de Orfeu.

    Jorge de Souza Araujo, atravs da apresentao de vriospoemas, faz ainda a associao de Jorge de Lima e SC, a partir dascoincidncias temticas e ideolgicas no tratamento do negro escra-vo, sem preconceitos etnocntricos.

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    MARIA DE FTIMA BERENICE DA CRUZ comenta o poemaCase comigo, Mari, reacendendo a discusso em torno do concei-to de poesia e da funo desta como difusora da cultura de um povo.Todavia, faz-se necessrio analisar o referido poema, enfocando o es-critor como aquele que soube, em seu tempo, articular elementos dacultura popular com os mitos da criao do universo, com a teoriados nomes, e at com conceitos contemporneos que nos falam deausncia de fronteiras entre as culturas.

    O poema institui o mito da criao potica, contextualizan-do-o no imaginrio popular brasileiro, povoado de reis e rainhas: Nosabes que o mar casado / com a filha do rei?

    Comparecem no poema outros mitos, como o das Sereias,o do peixe que, mais tarde, casa-se com Maria. Segundo a autora, SCrevive e reatualiza sempre o mito do texto literrio que se caracterizapor sua incompletude no instante em que a leitura se renova.

    CID SEIXAS focaliza outros aspectos de Iararana, poema queinaugura a temtica cacaueira e que, apesar de figurar ao lado dasoutras obras nativistas, ainda no recebeu o destaque reivindicadopelos mais recentes estudos revisionistas do poeta. Cid Seixas discutea diferena entre os ideais do grupo modernista de So Paulo e Rio deJaneiro impregnados das ressonncias europeizantes que haviam im-portado, em contraste com os jovens baianos da Academia dos Rebel-des em defesa das tradies nacionais e locais vistas e sentidas dedentro, ao invs do olhar que buscava o lado extico do primitivo eque j havia encantado os viajantes. Cid tambm discute a posio deJos Paulo Paes que, em 1979, apresentou ao pblico o poema deSosgenes e seu estudo, sustentando a idia recorrente de que o textodo poeta da roa est marcado por um carter anacrnico, uma vezque foi concludo s em 1933.

    Embora Iararana e Cobra Norato sejam consideradas epo-pias modernas, o poema de Raul Bopp continua sendo alvo de mai-ores deferncias, enquanto estudiosos baianos procuram fazer justiaao criador do mito mestio em meio s matas primitivas do Brasil.

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    CELINA SCHEINOWITZ dedica-se a uma anlise minuciosado longo poema pico Iararana, que apresenta um mito de origem parao cacau e alegoriza a formao tnico-cultural da regio, ao sul da Bahia.Acusado de se manter alheio ao movimento modernista, com esse poe-ma Sosgenes adere s novas tendncias nacionalistas, atravs da glori-ficao do heri indgena em detrimento do invasor portugus e do es-cravo africano. Celina chama a ateno para o uso de inmeros termosrelacionados terra dos ndios, com seus costumes, lendas, mitos, cren-dices, fala, o que contribui para a criao do clima nativista.

    Celina realiza exaustivo e paciente levantamento dos ter-mos relacionados com a flora e a fauna regional, expresses idiomti-cas, conectivos marcadores da conversao, interjeies, alm de as-pectos ligados pronncia e morfossintaxe, destacando ainda tra-os estilsticos. O ensaio se conclui com a reafirmao de Iararanaem posio de destaque no panteo do Modernismo brasileiro, aolado de Macunama, de Cobra Norato, ou de Martim Cerer.

    MARCOS AURLIO SOUZA concentra sua anlise na visoanticolonialista de Iararana, flagrando o lado violento da ao coloni-zadora presente no poema.

    [decorre] da sede desenfreada por riquezas advindas daproduo capitalista dessa cultura [em que] o explora-dor ao mesmo tempo um deus poderoso e um agressivomercenrio; a histria de ursurpao colonial do ndiobrasileiro mescla-se, ento, com a do trabalhador das ro-as de cacau e com a do indgena na Amrica espanhola.

    Para Marcos Aurlio, a crtica ao colonizador feita por SC,no deve ser entendida nos moldes de ingnua xenofobia ou tentati-va de retornar a uma pureza racial cabocla, conforme sugerira JosPaulo Paes. O longo poema acena, simbolicamente, para o(re)estabelecimento daquilo que pode ser chamado de uma pocaurea, o que no , todavia, uma tentativa de retorno ao perodo pr-colonial. Isso porque a defesa do discurso sosigenesiano pelo

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    hibridismo e no pela crena ingnua de reconstruo de um mun-do puramente indgena. Sob essa tica, ao invs de epgono do mo-dernismo, SC deve ser considerado precursor de uma nova viso dahistria, bem diversa das magnanimidades oficialmente narradas, se-gundo a ideologia do colonizador.

    A segunda parte de O Triunfo de Sosgenes Costa consta dedepoimentos: do amigo de sempre, Jorge Amado, no ensejo da pu-blicao da nova edio revista e ampliada da Obra potica e dolivro de Jos Paulo Paes, Pavo parlenda paraso, primeiro estudode conjunto da obra do poeta baiano. O segundo depoimento deWaldir Freitas Oliveira que lamenta o pouco conhecimento que setem do poeta, de sua vida, seus estudos, sua correspondncia e pu-blica uma carta que SC havia dirigido a Clvis Moura. A carta de-monstra que Sosgenes no concordara com a crtica que Clvis Mou-ra lhe fizera, a respeito de sua falta de experincia de luta ou de umpassado revolucionrio. O poeta argumenta que a inteno, nessecaso, redimiria a insuficincia. Tambm discorda da afirmao de ques se pode fazer literatura revolucionria atravs de uma viso marxistados fatos: No me considero possuidor desta qualidade eminente. Epor isso lhe envio um exemplo de minha poesia e nela poder V. consta-tar o que afirmo.

    Em seu depoimento, James Amado, referindo-se poesiacomo destino, narra poeticamente a verso mtica de SC sobre as ori-gens do cacau, transformado em riqueza para os recm-criados grapi-nas, gente nova e livre de crimes antigos. James fala da atividadedo poeta como telegrafista e do seu gosto pela vida solitria, mas pre-enchida de flores raras e pssaros, que recebiam seus cuidados. Nestedepoimento tambm temos notcia de seu desempenho de pianistaque executava msicas no piano de meia-cauda, alternando peasclssicas e populares. James transcreve um poema de Sosgenes,em que ele revela sua simpatia por Freud e Marx e pela quebra dashierarquias.

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    Helena Parente Cunha professora emrita da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro. Contista, romancista, poeta e ensasta, j publicou vrios livros e conquistoudiversos prmios literrios de expresso nacional.

    Zlia Gattai declara sua admirao pelo poeta, amigo deJorge e depois tambm dela. E assim o define: Pessoa discreta, cala-do, sempre bem posto, Sosgenes preferia ouvir, prestar ateno e sor-rir em vez de participar de grandes papos e gargalhadas. Zlia trans-creve o Bilhete comeado pelo boa-noite, enviado por SC a umadona de penso. Um dia eu contei a Sosgenes que o lamos em vozalta, nos momentos de lazer.

    Vocs gostam mesmo? - Riu ele encabulado. Uma beleza! interveio Jorge. Veja s: Queria man-

    dar-lhe um peixinho espetado numa flor... Eu quis ainda saber se a dona da penso era bonita,

    mas ele no respondeu. Apenas riu.

    Na terceira parte, os organizadores incluram uma antolo-gia, onde os leitores podem deleitar-se com os poemas mais represen-tativos da obra sosigenesiana. Cyro de Mattos e Aleilton Fonseca estode parabns pela iniciativa de homenagear Sosgenes Costa, o magoque transformava a plida realidade corriqueira em suntuosidadesprincipescas, mas tambm sabia trocar os requintes do vocabulrioulico pela simplicidade dos falares regionais, os faustos da realezapelos fascnios dos mitos afro-brasileiros ou indgenas. De parabnsestamos todos ns, brasileiras e brasileiros, por termos cada vez maisacesso s revelaes do poeta sabedor de fulgores estelares e durezade cho, conhecedor de espinhos do mato e cintilares de paves.

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    I - ESTUDOS

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    HEITOR BRASILEIRO FILHO

    Nascido em Jacobina, Bahia, aps viver em Salva-dor foi se estabelecer em Ilhus, onde reside desde 1994.Elaborou e coordenou o projeto Prmio Sosgenes Costade Poesia, da Fundao Cultural de Ilhus. Poeta, licencia-do em Letras, concluiu o curso de Especializao em Estu-dos Comparados em Literaturas de Lngua Portuguesa, naUniversidade Estadual de Santa Cruz. Seus textos foram pu-blicados na revista Iararana e no suplemento Cultural,do jornal A Tarde, de Salvador, bem como na imprensa doSul da Bahia.

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    SOSGENES MARINHO DA COSTA nasceu na cidade de Belmonte,no sul da Bahia, em 14 de novembro de 1901. Aps o ano de 1926,quando deixou Belmonte e foi morar na cidade de Ilhus, s retornoupara breves visitas sua cidade natal, conforme Ana Rosa Maria Car-valho Moreira da Costa, sobrinha do poeta, que ouviu alguma notciade "Nisinho", como era conhecido na intimidade, atravs de antigosfamiliares. Na prpria cidade em que nasceu, pouco se sabe sobre asua vida e a sua atividade literria. Garimpando alfarrbios, sabe-seapenas que exerceu a funo de professor pblico numa localidadeconhecida como Bolandeira, prxima a Belmonte (PAES. Glossrio.In: Iararana. So Paulo: Cultrix, 1979, p. 108), alm de ter publicadopelo menos o poema Caminhos Beirados de Lrio, em 1924, narevista O Phanal, (Salvador: abril-maio de 1924, ano 5, n 17-18).

    Em 1926, aos 25 anos, Sosgenes chega a Ilhus, aprova-do atravs de concurso para exercer a funo de telegrafista no Depar-tamento de Correios e Telgrafos e, paralelamente, passa a exercer afuno de escriturrio da Associao Comercial de Ilhus, da qual ssaiu aposentado em 1953. Comps grande parte de sua obra em Ilh-us, colaborando com relativa freqncia no jornal Dirio da Tarde e,esporadicamente, em outros peridicos de Salvador, Rio de Janeiro eSo Paulo. Em 1928, a convite de Jorge Amado, ingressa na Academia

    SOSGENES COSTA: CENTENRIO, ILUSTREE DESCONHECIDO

    HEITOR BRASILEIRO FILHO

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    dos Rebeldes, sediada em Salvador, onde esteve no mais que duasvezes, declara por telefone, ao autor deste texto, o escritor JamesAmado, amigo de Sosgenes.

    A Academia dos Rebeldes foi criada em 1927 e atuou at1931. Seguia uma linha independente e no tinha maior influnciano cenrio baiano da literatura que, apesar dos esforos de gruposinfluenciados pelo Modernismo e munidos com revistas prprias, comoSamba e Arco & Flecha (1928), era dominado pelas hostes acadmi-cas, reconhecidamente conservadoras. Como era costume na poca,artistas e escritores reuniam-se em cafs. As sedes da Academia dosRebeldes eram, praticamente, o Caf das Meninas e o Bar Brunswick.Seu lder, o poeta Pinheiro Viegas, epigramista temido e jornalista ex-periente, com passagem pelo Rio de Janeiro, onde atuou na campa-nha civilista com Ruy Barbosa, conforme Jorge Amado, em declaraode 1992, ento o nico integrante vivo do grupo, Ns, os rebeldes,tnhamos um ponto de vista: queramos uma literatura nacional, mascom um contedo capaz de universalizar. Tivemos a revista Meridia-no, que s saiu um nmero e onde est o nosso manifesto. Querdizer, vivemos o esprito do Modernismo - mas tnhamos uma certadesconfiana desse movimento, aquela coisa de paulista, de lnguainventada. Os modernistas no conheciam a linguagem popular (Riode Janeiro/Braslia: Philobiblion/INL, 1986, p. 15).

    Da antiacademia que foi criada com a pretenso devarrer com toda a literatura do passado - rarssimos os poetas e ficci-onistas que se salvariam do expurgo - e iniciar uma nova era, declaraJorge Amado numa pgina de Navegao de cabotagem dedicada aesses Rebeldes e, seguidamente, faz um saldo da produo do grupo:A Obra potica e Iararana de Sosgenes Costa: sua poesia, nossaglria e nosso orgulho; a obra monumental de dison Carneiro, pio-neiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnlogo eminente, crti-co literrio, o grande dison; os Sonetos do malquerer e os Sonetosdo bem querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traou nossos cami-nhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Cano do beco,

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    Mirante dos aflitos; os dois romances de Clvis Amorim, O Alambi-que e Massap; o romance de Joo Cordeiro (...), Corja; as coletne-as de poemas de Aydano Couto Ferraz; a de sonetos de Da Costa An-drade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema - some-se commeus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, positivo.

    Adiante Amado retoma o tom, alternando serenidade eimodstia. Em sntese, expe sua concluso, no apenas das ativida-des dos Rebeldes, mas de todos os ativistas da nova corrente, naque-les inocentes e agitados anos 20 em Salvador: No varremos da lite-ratura os movimentos do passado, no enterramos no esquecimentoos autores que eram o alvo predileto da nossa virulncia: Coelho Net-to, Alberto de Oliveira e em geral todos os que precederam o Moder-nismo. Mas sem dvida concorremos de forma decisiva - ns, os Re-beldes, e mais os moos de Arco & Flecha e de Samba - para afastaras letras baianas da retrica, da oratria balofa, da literatice, para dar-lhe contedo nacional e social na reescritura da lngua falada pelosbrasileiros (So Paulo: Record, 1992, p. 84-85).

    O contedo aludido est presente na urdidura da potica so-sigenesiana, principalmente nos poemas de ndole participativa, de ins-pirao folclrica e nos combativos, ditos interessados, que compem,em sua maioria as segunda e terceira partes do livro Obra potica (Riode Janeiro: Leitura, 1959), e est presente entre os 70 poemas que com-plementam Obra potica II (Itabuna/So Paulo: Pacce/Cultrix, 1978),alm do fenomenal Iararana (So Paulo: Cultrix, 1979), de filiaomodernista, reforando o carter universal da rica obra sosigenesiana.

    Antes, porm, no limiar dos anos 20, curtindo isolamentovoluntrio, mais por temperamento do que pela circunstncia demodesto escriturrio de uma Associao Comercial e telegrafista doDepartamento de Correios e Telgrafos, Sosgenes vivia em Ilhus adevorar livros da biblioteca que, pertencente prpria Associao ondetrabalhou, ele ajudou a montar e se dispunha, nas horas excedentes,a materializar o imaginrio com a criao literria, portanto, nuncacompletamente alheio s novidades. Entretinha-se com seus Sonetos

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    pavnicos, adornados de pedrarias, cores, aromas exticos e, sob omanto do Prncipe Azul (ou Ssmacos, autodenominado nefeli-bata e pernstico) espcie de alter ego de Sosgenes e que com eledialoga, divertindo-se com a crnica de costumes em Ilhus que, ele-vada condio de cidade em 1881, nos anos de 1920 a 30, aindamantinha uma aura de capitania hereditria vislumbrada com o pro-gresso econmico da elite do cacau.

    Mas apesar da distncia e do temperamento reservado,Sosgenes manteve correspondncia com alguns associados da Acade-mia dos Rebeldes, como dison Carneiro, Dias da Costa e Jorge Ama-do. Em 1954 muda-se para o Rio de Janeiro e, em 1955, novamentepor intermdio de Jorge Amado, ento um dos responsveis pela edi-o do jornal Paratodos, do qual SC tambm foi colaborador, ganhouviagem para visitar Europa e sia, em particular a China.

    Em 1959, aceita a cadeira de nmero 5, porm semjamais ocup-la, na Academia de Letras de Ilhus, a convite do seucriador e um dos fundadores, o poeta Abel Pereira, mas com a condi-o de no fazer discursos, revela em entrevista exclusiva ao autordestas linhas, o haicaista Abel Pereira. O Rio de Janeiro foi a cidadeonde SC viveu at o dia 5 de novembro de 1968, quando, vitimado porcarcinoma na prstata, veio a falecer dessa enfermidade. Durante todaa sua existncia Sosgenes sempre foi um homem reservado. Mas di-ante do sopro da flauta da morte o poeta conheceu a maldio dossolitrios, que tem paralelo tanto no jovem Rimbaud quanto no coes-taduano Carlos Ansio Melhor, assistido apenas por raros e nobilssi-mos amigos. Sob a batuta da dor, uma sinfonia de silncio.

    A atividade literria de Sosgenes Costa mais intensa apartir de 1928, com a divulgao de crnicas e poemas no jornal Di-rio da Tarde, em Ilhus. Coincidncia ou no, no mesmo ano em queingressa na Academia dos Rebeldes a convite de Jorge Amado.

    Com a fundao do Dirio da Tarde em fevereiro de1928, Sosgenes passa a assinar, sob o pseudnimo de Prncipe Azul,uma coluna denominada Dirio de Ssmacos o Ssmacos

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    tirado da contrao anagramtica de seu nome completo -, vindo as-sim a publicar, de 28 de fevereiro de 1928 a maro de 1929, cerca de260 textos, recuperados pelo professor Gilfrancisco Santos que, empesquisa sobre o modernismo baiano, trouxe a lume esses escritos deSC, sendo alguns em forma de verso e outros em prosa, na maioriacrnicas de singular prosa potica. Os textos foram publicados, em2001, pela Fundao Cultural de Ilhus, no livro Crnicas & PoemasRecolhidos, graas ao ento presidente Hlio Plvora, que afirma:so gravuras, vinhetas, rendilhados amenos e graciosos em torno decrepsculos, cores, estados de espritos, cenas urbanas e pessoas, emprosa elegante que trai um bizarro toque wildeano (Itabuna: A Re-gio, 16.11.1998).

    Nesse volume de textos identifica-se, entre outras curio-sidades, a presena de sonetos na sua estrutura mais tradicional, comrimas terminais enfeixando os dois quartetos e os dois tercetos, dis-postos linearmente em forma de prosa, o ritmo e a disposio dasimagens, sobretudo, denunciam a natureza poemtica. Os primeiroscontatos com o Futurismo (at ento confundido com o nosso Moder-nismo) foram registrados nessa prosa exercida de 1928 a 1929, per-odo em que SC teve notcias do movimento modernista, aqui no Bra-sil iniciado por volta de 1916, com maior repercusso a partir da Se-mana de Arte Moderna de 1922, em So Paulo. Mas, conforme rascu-nho de uma entrevista encontrado por Jos Paulo Paes entre manus-critos do poeta, SC admite, s em 30 entendeu de fato os seus princ-pios (PAES. O Modernismo visto do quintal. Op. Cit., p.5).

    A modernidade da potica sosigenesiana, porm, se fazpresente desde a primeira fase de sua lrica, dispersa em peridicos eposteriormente reunida em Obra potica e Obra potica II. Nessafase so reconhecveis as influncias parnasiana e simbolista, comelementos do barroco, antes da adeso do autor ao Modernismo Bra-sileiro, que fora patenteada, entre outros textos significativos, no poe-ma narrativo Iararana, escrito entre 1933-34, certamente o mais re-presentativo poema da linha modernista da sua obra.

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    Alm dessas colaboraes com o Dirio da Tarde e O Pha-nal, h notcia de que SC foi editado em outros veculos do seu tem-po, a saber: O Jornal, jornal O Amigo do Povo, revistas nica (SAN-TOS. Exu: 1990, 21-22) e Caderno da Bahia, sediados em Salvador,este ltimo dirigido pelo contista Vasconcelos Maia, empenhado emdivulgar a literatura e a arte moderna na Bahia, nos anos 40-50. Eainda, revista Clima, de So Paulo, e jornal Paratodos (SANTOS, ibi-dem) editado por Jorge Amado, com distribuio entre Rio e So Pau-lo, publicaes ocasionais em peridicos de vrias procedncias, ra-ros veculos que se dispunham a publicar literatura, todos esses jextintos e de poucos exemplares conservados graas iniciativa dealguns colecionadores particulares e ao zelo de prestimosos arquivos.

    O seu primeiro e nico livro publicado em vida, em 1959,nove anos antes do seu falecimento, surgiu por iniciativa de alguns ami-gos, como Zora Seljan, que datilografou os originais, e Barbosa Mello,da Editora Leitura, do Rio de Janeiro, que apoiou o projeto e lanou ovolume Obra potica, com 99 poemas e tiragem inicial de 200 exem-plares, hoje uma raridade bibliogrfica merecedora de reedio.

    Na contracapa da primeira edio, h um indicativo da pu-blicao de Obra potica II, o que de fato s veio a ocorrer em 1978,por iniciativa de Jos Paulo Paes, e, ainda, um volume de sonetos pr-intitulado O Pavo e o papagaio, a ser editado pelas Edies Macu-nama, de Salvador. Embora anunciado, o projeto no logrou xito.

    Obra potica, com capa de Percy Deane, retrato do autorem desenho de Carlos Scliar e nota editorial com breve notcia bio-grfica do autor, foi dividido em quatro partes, ou captulos: SonetosPavnicos e Outros Sonetos, O Vinho e os Aromas, Versos de Uma EraExtinta e Belmonte Terra do Mar. Apesar da pequena tiragem e tmi-dos comentrios da crtica, o livro foi agraciado com dois significati-vos prmios, o Paula Brito e o Jabuti, da Cmara Brasileira do Livro.

    A resistncia de SC veio a ser vencida tambm em Ilhus,onde houve lanamento de Obra potica, pela Academia de Letraslocal que, de acordo com o convite, teria sido no dia 29 de maro de1960, s 14h, na Associao Comercial de Ilhus, mas houve mudana

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    no programa devido ocorrncia de fortes chuvas, conforme ElianaSabia Ribeiro que colheu informao sobre esse lanamento no Di-rio da Tarde, edies de 28.03.1960, p. 4 e de 30.03.60, p. 4. BarbosaMello apresentaria o livro e Antnio Olinto, em palestra, discorreria so-bre O Panorama literrio nacional. Ambos integravam a CaravanaSosgenes Costa, que inclua ainda Adonias Filho, Zora Seljan, ris Bar-bosa Mello, Dias da Costa, Jorge Emlio Medauar e Osrio Borba, todosprocedentes do Rio de Janeiro. Jorge Amado, amigo de Sosgenes e entu-siasta da sua obra, inicialmente escalado para compor a Caravana So-sgenes Costa, no esteve presente por motivo da chegada do escritor ecrtico de cinema, Georges Sadoul ao Brasil, mas teve o cuidado de envi-ar do Rio de Janeiro terna Mensagem que, estampada no Dirio daTarde, dizia: Considero que esse lanamento importante na nossavida literria. No s de sua obra, (...) porque, ao apresentar o seu livroaos intelectuais e ao povo de Ilhus Sosgenes retorna sua grandefonte de inspirao, terra onde esto plantadas as razes de sua poe-sia. Poeta universal como contedo, Sogigenes Costa , ao mesmo tem-po o poeta da zona do cacau, de Belmonte a Ilhus, de Itabuna a Cana-vieiras. Sua poesia est interligada a essas praias e a essas matas, a essepovo. Foi aqui que o poeta cresceu e se fez voz poderosa e doce (..). Meudesejo era encontrar-me nessa festa de alegria e cultura.

    A segunda edio de Obra potica, denominada Obrapotica II veio a lume, como j dito, sob os cuidados de Jos PauloPaes, graas a uma parceria do Projeto de Atividades Culturais Cacau(PACCE), com a Editora Cultrix e o Instituto Nacional do Livro. Trata-se da edio de 1978, revista, acrescida de 70 poemas. Jos Paulo Paesesteve em Ilhus e Itabuna para examinar o acervo de documentos elivros do poeta doado pelo seu irmo Octavio Marinho da Costa e, da suacolheita de dados, resultou o ensaio Pavo Parlenda Paraso - o pri-meiro, em livro, sobre Sosgenes Costa. Seguiu-se-lhe, em 1996, Sosge-nes Costa: O poeta grego da Bahia, de Gerana Damulakis. Esses, at omomento, so os nicos livros de ensaio sobre a obra de SC.

    Jos Paulo Paes, presena constante nesses estudos, tam-bm em edio pstuma, preparara o livro Iararana composto de

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    um longo poema narrativo, na linha primitivista de Cobra Norato, deRaul Bopp, e Martim Cerer, de Cassiano Ricardo, mas, como afirmaAfrnio Coutinho em Enciclopdia da literatura brasileira (s/i), comindependncia e identidade prpria. Iararana tem ilustraes deAdemir Martins, introduo de Jorge Amado e do prprio Jos PauloPaes, que tambm cuidou do rico glossrio com diversos termos deorigem indgena e africana pinados da oralidade dessa regio da Bahiaonde ambientado o poema. Iararana causa espcie por sua origina-lidade, pela cor local e universalismo do tema, diferindo da produomodernista do gnero, quando se vale de elementos da mitologia gre-ga e recria, com humor prprio e sob o manto da mitologia indgenada regio sul-baiana, mais que uma epopia grapina da origem docacau, mas como definiu Cid Seixas, Iararana , principalmentepelo seu enfoque metonmico, uma moderna epopia brasileira (Sal-vador:1996, 54).

    Entretanto h inmeras composies de carter moder-nista de comprovada grandeza como O Dourado papiro, escrito em1935, em que aprimora o estilo, alm de Iemanj, Negro sereio,Sereno de Santo, Aurora de Santo Amaro, Cantiga bantu, entreoutras. Poemas em que Sosgenes, com dicco prpria, esprito comba-tivo, exprime solidariedade, preocupao com a pesquisa histrica, re-velando outrossim um rico vocabulrio que no dispensa o coloquia-lismo natural da gente do povo, fruto da vivncia e da pesquisa determos de orgem tnica indgena e africana, as duas raas mais sacri-ficadas na constituio do povo brasileiro. Tambm no favor reco-nhecer-lhe o sentimento de alteridade, de compromisso com a integri-dade do homem de seu tempo, de sensibilizao com causas coletivas.Mas na poesia sosigenesiana, no h o menor resqucio de estridnciapanfletria populista, tratando-se de arte literria na acepo do termo.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AMADO, Jorge. Mensagem. Dirio da Tarde. Ilhus, 30 mar. 1960, p. 4.AMADO, Jorge. Bahia, 1928 - A Academia dos Rebeldes. In: Navegaode cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 276-277.AMADO, Jorge. A Academia dos Rebeldes. In: Literatura baiana 1920-1980. Org. Valdomiro Santana. Rio de Janeiro/Braslia: Philobiblion/INL, 1986, p. 11-20.COSTA, Sosgenes. Obra potica, Rio de Janeiro: Leitura, 1959.COSTA, Sosgenes. Crnicas & poemas recolhidos. Fundao Culturalde Ilhus, Bahia, 2001. (Pesquisa, introduo, notas e bibliografia deGILFRANCISCO)COUTINHO, Afrnio. Introduo literatura brasileira. 14 ed.Rio deJaneiro: FAE/INL.COUTINHO, Afrnio. Enciclopdia de literatura brasileira, Rio de Ja-neiro: FAE/IN, 1989, 2v. il.PAES, Jos Paulo. Pavo parlenda paraso - Uma Tentativa de Descri-o Crtica da Poesia de Sosgenes Costa. So Paulo: Cultrix/PACCE, 1977.SANTANA, Valdomiro. Literatura baiana 1920-1980, Rio de Janeiro:Philobiblion/INL, 1996.SANTOS, Gilfrancisco. Reviso Revista de Sosgenes Costa. Exu, Ano I,n 3, Salvador: nov./dez.

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    HLIO PLVORA

    Na fazenda de cacau Mirabela, no municpio deItabuna, nasceu Hlio Plvora, em 2 de outubro de 1928.Fez jornalismo no Rio de Janeiro e ali passou por todas asredaes de jornais com destacada atuao como redator.Foi editorialista do Jornal do Brasil, alm de crtico liter-rio da revista Veja, Jornal do Brasil e Correio Braziliensedurante anos. Contista, cronista, tradutor e crtico literriode renome nacional. Da estria com Os Galos da aurora,1958, at hoje, publicou 25 ttulos, com destaque para OGrito da perdiz e Mar de Azov, volumes de contos, ambospremiados com o primeiro lugar na Bienal Nestl de Lite-ratura. Tem contos publicados em antologias no Brasil eexterior. Como presidente da Fundao Cultural de Ilhuscoordenou as comemoraes do centenrio de nascimentode Sosgenes Costa, que resultaram, em 14 de novembro de2001, na edio de trs livros, incluindo a Poesia comple-ta, com mais de 500 pginas, sob o patrocnio da Secreta-ria da Cultura e Turismo, uma edio especial da revistaIararana, um CD com 28 poemas sosigenesianos e inau-gurao, em Ilhus, de placas em prdios onde residiu opoeta, alm da instituio do Parque temtico Iararana,na mata atlntica do povoado de Olivena. Integrou vriascomisses julgadoras de concursos literrios, revelando no-vos escritores da moderna literatura brasileira. Pertence Academia de Letras da Bahia e ao Conselho Estadual de Cul-tura da Bahia.

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    SOSGENES COSTA E O MODERNISMO LITERRIOUMA CRNICA DE ESCARAMUAS, IRONIAS E AFAGOS

    HLIO PLVORA

    O MODERNISMO literrio no Brasil - seus antecedentes, a Se-mana de Arte Moderna e suas imediatas conseqncias - foi uma guerrafranca, de peito aberto, em que muitos saram feridos e todos salva-ram-se. Salvou-se at - quem esperava? - o combatido parnasianismo(embora com feridas expostas), porque a poesia quer ser apenas dequalidade. Se a tem, transcende modelos e escolas. Um poeta de in-discutvel grandeza estar sempre acima de modas e momentos.

    Enquanto durou a guerra pela renovao da linguagem, dastemticas, das vises de mundo e sobretudo da gramtica, grassou oespanto e cresceu o medo. Atesta Menotti del Picchia, um dos maisardorosos soldados do futurismo, que escritores novos hesitaramem perfilhar o futurismo. E que, no embate do que se chamava onovo contra o velho, parecia estourar em So Paulo um antrazliterrio.

    Mais de meio sculo depois, e ancorados no comodismocrtico que somente o tempo nos d, ficamos a pensar nas reaes deum jovem e bizarro poeta, mestre da mtrica e, sobretudo, da rima, obelmontino-ilheense Sosgenes Costa. No incio, de forma alguma sedeixaria arregimentar pelas hostes futuristas. Certamente causaram-lhe escndalo, mais que o artigo agressivo de Monteiro Lobato, "Para-nia ou Mistificao", sobre a nova expresso plstica em Anita Malfatti,

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    as revises duras, diretas, petulantes de um dos epgonos da novacartilha, Mrio de Andrade, sobre a poesia de Olavo Bilac, RaimundoCorreia, Alberto de Oliveira (a sagrada trindade parnasiana...), Fran-cisca Jlia e Vicente de Carvalho.

    Um escndalo, uma ignomnia. Investir contra tais dolos,derrub-los do seu pedestal, no deixar pedra sobre pedra, era crimede lesa-majestade. Assim h de ter pensado, primeiro em Belmonte edepois em Ilhus, o poeta tmido, recluso, de maneiras finas e elegan-tes, de cravo na botoeira, admirador de Oscar Wilde e Baudelaire - ogrande lrico Sosgenes Costa. As escaramuas que antecederam a Se-mana e sucederam-se atravs de artigos, polmicas, manifestos e ca-ricaturas teriam de encontrar ecos nele, ainda que atrasados, pois ofuturismo, que era no princpio a designao genrica do movimento,demorou a infiltrar-se na Bahia, sendo alvo das zumbaias at mesmona Academia dos Rebeldes, grupo que vicejou em torno de PinheiroViegas, e repercutiria mais tardiamente em Ilhus.

    Para sermos mais exatos, o movimento modernista chegou Bahia em 1924, antes, portanto, da revista Arco & Flecha, que datade 1928 e circulou sob a batuta do crtico Carlos Chiacchio. Seu emis-srio foi Joaquim Inojosa, que retornou de So Paulo ao Recife, a 17de outubro de 1922, com estranhos objetos na bagagem: um nmeroda revista Klaxon, sob a orientao de Mrio de Andrade, e dois livros,Paulicia desvairada, do mesmo Mrio, e Os condenados, de Oswaldde Andrade.

    Era dinamite pura, que no passaria, hoje, pelas rigorosasrevistas de bagagens e passageiros nos aeroportos.

    Quer isso dizer que a Bahia recebeu os primeiros e fortesvagidos do Modernismo via Pernambuco. A revista Mauricia, de 10de novembro de 1923, a segunda mais velha da revoluo modernistabrasileira, j traz versos livres naquela edio, como atesta pesquisade Gilfrancisco Santos, no livro Reviso de Pinheiro Viegas, a ser edi-tado. Um ano depois, Inojosa, insatisfeito com as suas arremetidasanteriores em favor da nova esttica, dirige carta revista Era Nova,

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    da Paraba, e nela conclama a juventude literria a filiar-se. A longacarta foi acolhida nas pginas do Jornal do Comrcio, Recife, e, trans-formada em folheto, chegou s mos de Aluzio de Carvalho Filho,enviada por seu amigo Inojosa, a 20 de outubro em 1924. O folhetointitulava-se A Arte Moderna. A reao de Aluzio foi pronta: publicouo artigo adesista "Gente do Norte" e, em correspondncia a Inojosa,chamou-o de "batalhador da Nova Idia".

    Data ainda de 1924 a filiao do gordo poeta Ascenso Fer-reira, aquele dos versos sobre a decantada preguia nordestina: Horade comer -comer. Hora de dormir - dormir. Hora de vadiar - vadiar.Hora de trabalhar- papo pro ar que ningum de ferro. Em julho da-quele ano, o poeta Vicente de Carvalho recitava no Teatro Santa Isabel,no Recife, o seu poema Raa. Era o proselitismo em marcha batida.

    Mas nem tudo era adeso eufrica. A artilharia do tradici-onalismo estava assestada e tambm cuspia fogo. A Academia dos Re-beldes, que nascera com o germe do anti-academicismo puramenteornamental, engrossa a vaia. Jorge Amado um dos que apupam asprimeiras manifestaes dos moos inovadores de So Paulo e Rio deJaneiro. Alves Ribeiro, no artigo Um Poeta com P Maisculo (sobreSosgenes Costa), em O Jornal, 11 de janeiro de 1930, diz que a penade Amado parecia constantemente embebida em vitrolo, e dele citaeste aforismo:

    Prosa ou verso?Verso ou prosa?Nada disto: Poema...

    Pela mo de Sosgenes, amigo de Amado, a quem esteprotegeu, Ilhus entrou na pndega que Mrio da Silva Brito, na suaHistria do Modernimo no Brasil, mais especificamente no volumededicado aos Antecedentes da Semana de Arte Moderna, rene comocaricaturas, quadrinhas, stiras, sonetos humorsticos, zombarias detoda a sorte, enfim.

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    Na crnica Gangorras, de 12 de maro de 1928, estampa-da no Dirio da Tarde, Ilhus, e recuperada por Gilfrancisco Santosno volume prestes a sair, Crnicas & poemas recolhidos,* com 392pginas (edio da Fundao Cultural de Ilhus, para o centenrio denascimento do poeta), Sosgenes investe sem disfarces contra os mo-dernistas de todos os costados. Diz ele:

    Como vos disse, todos os espritos modernos que sobemao trapzio do dinamismo subjetivo, ao primeiro ato de acrobaciaesttica perdem as estribeiras e rolam partidos das costelas pela arenadas escolas literrias, contorcionando-se, rbidos de dor, em cmicosesgares que, fazendo a platia rir esgargalhadamente, os desmoralizae cobre de vexame.

    E em seguida: Vem da, com certeza, a causa dos versosfuturistas serem inacabados, desarticulados, quebrados dos ps, chei-rando a catstrofe e a arroubos interrompidos.

    Em crnica de 16 de maro de 1928, no mesmo Dirio daTarde, de Ilhus, intitulada Hbitos de Silvcola, escreve SosgenesCosta, sob o pseudnimo de Prncipe Azul, no seu Dirio de Ssmacos:

    Lancei h pouco uma seta ao futurismo. Embebendo-a noarco, aos ares ejaculei-a Voou algera, que aos prncipes azuis tam-bm apraz, como aos tupinambs vermelhos, atirar o dardo e o ven-bulo disparar. [] Algera voou a minha seta, embora adiante rolasseinglria. Que importa? Persistirei a assete-lo, que isso me d gosto.E neste trecho adiante: Inimigo irreconcilivel de vesgas bruxarias,continuo a empolgar o arco e a flecha despedir aos mgicos, se bemque com lamentvel impercia que os deixa ilesos, j que ventura nopossuo. A luta prosseguir renhida, todavia. O poeta fecha a crnicalamentando, mais uma vez, que os seus ferres caiam distantes dos

    * In: Crnicas & poemas recolhidos, de Sosgenes Costa, Fundao Cultural deIlhus, Bahia, 2001. Edio comemorativa do centenrio de nascimento do poeta deBelmonte e Ilhus, com extensa memria sobre a Academia dos Rebeldes. Trata-sede livro fundamental para aferir-se a evoluo da potica do autor de Belmonte,Terra do Mar, com pesquisa, introdues, notas e bibliografia de GILFRANCISCO(Nota dos organizadores).

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    alvos dos alquimistas, igualmente distantes, at hoje, da generosafonte donde jorra e deflui a argentina caudal das obras-primas.

    O poeta mais direto e contundente em crnica datada de21 de maro de 1928, quando escreve: A poesia moderna toda as-sim, disparatada. Escangalha-se a mtrica sem d, remete-se ao bomsenso uma patada, e compara-se a lua ao po-de-l. No entanto,Sosgenes sabe que a sua potica, apesar da forma parnasiana e daextrema musicalidade simbolista (os modernistas pouparam, de cer-to modo, o Simbolismo, dos quais se consideravam seguidores), temesprito novo, moderno e qui futurista. Veja-se a crnica metrifica-da e rimada de 15 de junho de 1928: Sou passadista, embora noparea. Minha musa velhssima, Afonsina, apesar de gostar de sertravessa e fazer muita coisa de menina. No dia seguinte, meio debrincadeira, meio a srio, confessa: Se fazem futurismo, tambmfao; apesar de saber que uma pinia, e que me leva at a ser devas-so a futurista musa lambisgia. (...) Mas o fao ao meu modo... passadista. E fecha a crnica com um disparo de fogo de artifcio:Com cara de palhao a lua bia. No pega o estilo. Guerra a GraaAranha. - Futurismo, hs de arder como ardeu Tria!

    O futurismo, a essa altura, se lhe tornara uma idia se nofixa, pelo menos permanente no trapzio do crebro. Sua crnica de 29de abril exclama: Lagartixa Almofadada Melindrosa que o futurismoestpido pariu. A 19 de junho, Sosgenes Costa dirige-se, em outra cr-nica, aos futuristas, a quem diz: Modernos, no sabeis cantar o belo.Vinde ver, cano do verso antigo, este doce crepsculo amarelo.

    Mas, para ele, h futuristas e futuristas... Do futurismo dequem tem talento, eu gosto, admite em 1 de outubro de 1928. Umavez que o futurismo seja fruto de engenho robusto, pode ser lido eadmirado. (...) Mesmo porque apreciar o futurismo no ainda paraa boca de toda a gente. Creio que cedo. No o atacar nem o defender,eis o que a discrio aconselha, no momento.

    Variam em Sosgenes os estados de nimo acerca do movi-mento oriundo de So Paulo. A crnica de 16 de outubro de 1928 traz

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    o ttulo Barbaridades e comenta: Nestes tempos de indispensvelfuturismo, no l muito mau preparar a gente, de vez em quando,um flamante disparate literrio e, aceso em fogos de bengala e emgirndolas de efeito, atir-lo pirotecnicamente s massas.(...) E pensae faz muito tempo a sabedoria futurista, porque o Brasil essencial-mente brbaro e, como tal, est visto que no pode apreciar e com-preender a arte na grande expresso a serenidade clssica. Para osbrbaros, a barbaridade.

    Mas essas cutiladas contra uma tentativa de expresso novajamais afastaram o poeta de Belmonte e Ilhus do seu conceito deArte, que no deve basear-se na Arte pela Arte dos estetas voluptuo-sos da inteligncia., nem limitar-se ao dogmatismo da Arte a servioda Moral, mas comprometer-se, isto sim, com a Arte fora das torres-de-marfim, a Arte em Consrcio com a Vida. Este debate, sob formade fbula, ele o descreve em crnica de 20 de dezembro de 1928, como ttulo de A arte.

    Pelo menos mais quatro vezes, nas suas crnicas, o poetaSosgenes refere-se a Graa Aranha. Numa delas, para atestar que o l.Em outra, para louvar os produtos de sua filosofia e do seu credo.Em outra, sobre as beldades que desfilavam de tanga no footingilheense, escreve: Eis o sonho ideal de Graa Aranha realizado pelamoda hodierna. Abandonando as clssicas, ridculas correntes eu-ropias - verdadeiras criaes teratolgicas, xipfagas - regressamosaos usos dos silvcolas, abraando as correntes antropfagas. Ain-da nessa linha, ele assim conclui uma crnica (26 de junho de1928): Cantar teu corpo delgado, delcia da inspirao/ no estilodesengonado desse estranho futurismo/ que merece batizado depedante barbarismo. E, por fim, confessa s moas elegantes de Ilh-us: No velho estilo dos lricos que eu gosto de cantar-te, tecer-temeus panegricos no estilo da velha arte (mesma crnica).

    As ironias de Sosgenes prosseguem. Em 17 de setembro de1928, ele alfineta: Gozo que tal, no mais para o bico da sociedadecontempornea, que, apesar de futurista e de servil imitadora da ex-

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    travagncia ianque, anda mais rasteira que o ventre das tartarugas...Em um dilogo escrito a 4 de agosto de 1928, Sosgenes havia ironiza-do a mulher moderna: Segues ento a escola futurista? Oh! Comcerteza. A escola to simptica! Recebi de So Paulo uma revista, e oque diz ela vou botar em prtica.

    O autor de Cana, Graa Aranha, que andava pela Europa naantevspera da Semana, retornou em outubro de 1921 e alistou-se logono movimento. Para Cndido Motta Filho, em artigo sobre Esttica daVida, ele trazia uma lio integral de arte. Na opinio de Menotti delPicchia, o romancista maranhense era um dos espritos mais flgidosda nossa raa. Um ano depois chegava outro modernista ilustre, Oswaldde Andrade. Veio para agitar. Foi a ponta-de-lana, o provocador, o ico-noclasta, o maior moleque literrio de 1922 e anos seguintes. Deve terabalado o belmontino-ilheense Sosgenes Costa ao definir Castro Alves,suprema glria baiana, como o batateiro pico da lngua.

    Na efervescncia dos anos 20, primrdios da forte industri-alizao paulista, o Brasil agitava-se entre o liberalismo americano, onazi-fascismo e o comunismo. O Brasil vivia vido de novidades. No de admirar que espritos menos conturbados, como Afrnio Peixotoe Jackson de Figueiredo, se deixassem seduzir, em parte, pela polticacontra a gramtica portuguesa - pregao que mais tarde, quando apoeira havia assentado, Mrio de Andrade reduziu a suas exatas e ra-cionais propores. Andrade Muricy, autor de volumoso estudo sobreo Simbolismo brasileiro, declarava, em 1918, que do nosso parnasia-nismo e do simbolismo tinham ficado apenas as inovaes materi-ais, e ainda assim mal compreendidas e aproveitadas.

    Oswald de Andrade, a quem Sosgenes Costa no se refere,trouxe na bagagem o Manifesto Futurista; lanado em Paris, a 20 defevereiro de 1909, no Le Figaro, pelo poeta e romancista italiano Fili-ppo Tommaso Marinetti (1876-1944), que anunciava uma Idia Nova,uma arte livre capaz de acompanhar a velocidade da tcnica e do pro-gresso. A cultura tradicional era rejeitada. Endeusava-se a dinmica, atecnologia, a vida urbana e a guerra como profilaxia. Propunha-se o

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    verso livre. Adotavam-se no verso as palavras soltas, em liberdade.Carlos Drummond de Andrade, que nada teve a ver com Marinetti eseu iderio, diz, alis, num poema, que no rimar sono com outono,rimarei com a palavra carne, ou qualquer outra, que todas me con-vm. As palavras no nascem amarradas, etc. O manifesto marinet-tiano foi traduzido no Brasil, pela primeira vez, no Jornal de Notciasde 30 de dezembro de 1909 - mas passou despercebido.

    As idias fascistides fariam de Marinetti, mais adiante, ummilitante convicto do credo de Mussolini. A essa altura, os moos daSemana paulista cuidaram de desvincular o seu movimento de certascaractersticas radicais da esttica de Marinetti, ajustando-as, depura-das, a um modelo brasileiro, mais especificamente o figurino paulis-tano, j que So Paulo era a locomotiva que puxava os vages do restodo pas - a locomotiva alimentada com os subsdios oficiais negadosao Nordeste ou daqui retirados. Quando as tinturas ideolgicas se tor-navam mais ntidas, Menotti del Picchia definiu o movimento deSo Paulo como derivado das experincias renovadoras europias, no-tadamente as de Marinetti, Papini, Govoni e Gino Rocca, sem, contu-do, apegar-se aos dogmas dessa escola estrangeira, segundo anotouMrio da Silva Brito. Mas, na opinio do autor de Juca Mulato, Mari-netti era um fetiche genial.

    No pretendemos aqui dizer que do futurismo marinettia-no nada restou. H de ter ficado pelo menos um pequeno osso. Mari-netti esteve em 1926 no Rio e em So Paulo. Teria vindo da Itlia nomesmo navio que trouxera uma primeira leva de nibus encomenda-da em Salvador pelo pai de Sante Scaldaferri - da, provavelmente, onome de Marinetti dado a esses veculos de transporte coletivo, po-ca grande novidade, e que foram desembarcados em Salvador, en-quanto o literato italiano seguia para Santos. No seu romance Dadosbiogrficos do finado Marcelino, o baiano Herberto Sales diz a certaaltura: Quando chegamos Cidade Baixa ... vi uma marinete no ponto,com passageiros introduzindo-se nela em respeitvel fila. Marinettino conseguiu nos impor o seu fascismo, mas deu-nos o brasileiris-mo marinete, pelo menos na Bahia e em Sergipe.

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    Mas, alm do seu fascismo incubado e logo depois ostensivo,Marinetti tinha a capacidade de seduzir com as novas idias estticasuma sociedade desabituada a pensar. Cativou o grande poeta russo Mai-akvski, que o perfilhou, a princpio. O epigramista Pinheiro Viegas, quehabitualmente no se deixava enganar, escreveu no artigo F.P. Marinetti(O Imparcial, Salvador, 23 de junho de 1926): Filippo Marinetti, omximo profeta da arte nova em nosso pequeno planeta subsolar, veioh pouco ao Brasil. Foi a passagem, rpida e brilhante de um mateiro.[] O aparecimento do revolucionrio poeta italiano em terras brasilei-ras deixou de ser um grande triunfo acessvel para todos os cultores doindividualismo pugnaz e sempre vitorioso na hodierna arte universal.[] A juventude intelectual, ou, antes, a jumentude do Rio de Janeiro eSo Paulo, como todos sabem, recebeu-o hostilmente, barbaramente, apedradas e aos assobios com o informe ridculo de um espetaculosavaia formidvel. Pelo visto, nem tudo foram flores na turn ltero-ideo-lgica de Marinetti. Este registro consta da Reviso de Pinheiro Viegas,pelo pesquisador e professor universitrio Gilfrancisco Santos.

    Que Sosgenes Costa, na sua Ilhus de longos crepsculosmulticores, no tinha apreo por Marinetti, est mais do que claro.Leia-se a crnica A Faceira e o Pedante, de 28 de maro de 1928, noDirio da Tarde. uma das crnicas poemticas em que ele foi des-tro e que, referindo-se a uma moa elegante, diz: Quando no baileest pintando o sete, ou rebolando os quadris Marinetti... Por essano esperaria o autor do absurdo ensaio Guerra, nica Higiene do Mun-do, agora em prtica contra o Afeganisto, a pretexto de erradicar oterrorismo, mas, em verdade, para usar msseis com o prazo de valida-de esgotado e, depois de destruir o pas, emprestar dinheiro a juros.

    Apesar das suas escaramuas iniciais contra o movimentomodernista deflagrado em So Paulo, Sosgenes Costa, ferrenho adep-to da velha lrica, que cultivou at o fim, era bastante sensvel e inteli-gente para saber que, mesmo sem a forma modernosa, sem a for-ma novidadeira, ele era moderno, sua poesia tinha esprito moder-no. Iararana, o poema indigenista descoberto por Jos Paulo Paes

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    entre seus manuscritos, pode ter um ponto de vista de fundo dequintal, em relao ao receiturio modernista, mas adere temticabrasileira pregada nos manifestos que se seguiram Semana de 22. Opoeta de Belmonte e de Ilhus fez na poesia o que Joo GuimaresRosa fez na sua prosa sertanista: transps mitos, deuses e entidadesdiversas da mitologia e das literaturas antigas para a terra grapina.Foi, acima de tudo, um recriador, um alquimista, nesta sua contribui-o ao modernismo literrio. Alis, ele j trazia no sangue da suapotica o cantar espontneo do povo, as caudas pavnicas dos coquei-ros, o rudo dos remos nas guas do Jequitinhonha, o pedido de casa-mento a Mari, as sereias, as agonias lentas do pr-do-sol, a roxa flordo cacau. Sosgenes sabia, como ele prprio escreveu em 14 de janei-ro de 1929, que a verdade da arte , apenas, a verdade da beleza.

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    GERANA DAMULAKIS

    Exerce a crtica e a ensastica, assinou a colunaLeitura no Caderno 2 do jornal A Tarde (1999-2003), eda revista Neon, seo Livros. Faz parte do Conselho Edi-torial da Coleo Selo As Letras da Bahia, da FundaoCultural do Estado da Bahia e da Comisso Editorial darevista Iararana. autora dos livros: Sosgenes Costa: Opoeta grego da Bahia (Salvador: Secretaria da Cultura eTurismo, FUNCEB, 1996) e O Rio e a ponte (Salvador:Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB, 1999). Partici-pa dos livros O Mar na prosa brasileira de fico (Ilh-us: Fundao Cultural/ Editus, 1999) com o ensaio OMar na Crnica e Brasil 500 Anos - Encontros na Bahia(Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2000) com oensaio O Moderno em Sosgenes Costa.

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    NO PODERIA HAVER MELHOR oportunidade do que esta para fa-zer figurar num nico texto a juno de dois outros: Castelo deMitos e Sosgenes Costa e o Barroco. Isto porque a revista Iarara-na uma homenagem constante ao nosso poeta Sosgenes Costa, desdeseu nome, que o ttulo do grande poema modernista do poeta deBelmonte. Esto, pois, aqui reunidos e guardados os textos comemo-rativos do centenrio de nascimento de Sosgenes Costa, o castelo demitos presente em cada um dos poemas.

    Autor de um nico livro publicado em vida, Obra potica(Rio de Janeiro: Leitura, 1959), Sosgenes Costa marcou, ainda as-sim, sua presena na poesia baiana do sculo XX. Seja pela originali-dade dos poemas contidos nas quatro partes que compem o volu-me, seja pela riqueza que est encerrada em cada via tomada paralevantar um estudo e propiciada por esta poesia, o fato que o poetaficou nas nossas letras como uma dessas grandes rvores isoladasque se destacam na floresta, como bem escreveu Jorge Amado noprefcio O Grapina Sosgenes Costa, do livro Iararana (So Pau-lo: Cultrix, 1979).

    Temos diversos caminhos que do na contemplao destarvore destacada na floresta. Eles vo sendo encontrados nas partesda Obra potica que, enfim, definem o autor, ora como poeta social

    O CENTENRIO DO CASTELO DE MITOS

    GERANA DAMULAKIS

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    datado, ora como aquele que mistura de modo inusitado o luxo bar-roco a sonetos parnasianos na forma, descritivos na tcnica simbolis-ta, os chamados sonetos pavnicos. Ademais: do poeta fixado na suaadmirao pelo mar, do poeta que se serve do folclore e do poeta queconstri uma saga para contar a origem do cacau em Iararana, aopoeta lrico de um soneto como Emendando um Soneto, colocado aseguir, est assegurado o juzo de estarmos tratando de uma poesia dealta qualidade.

    Eu matei meu amor e foi bom que o matasse.Meu amor era um lrio e eu no gosto de lrio.Se ele fosse a madona, eu talvez me casassepara o amor me adorar e eu gozar-lhe o delrio.

    Eu matei meu amor sem beij-lo na face.Meu amor era um lrio e eu no gosto de lrio.Se ele fosse o meu anjo, eu talvez me casassepara v-lo fumando e descendo do empreo.

    Ningum sabe quem foi meu amor que matei.Era o anjo da morte? Era a filha de um rei?Este crime um mistrio... e bonito o mistrio.

    Este segredo azul pus num cofre sidreomas em suma eu fiz bem em matar meu amor,porquanto ele era um lrio e eu no sou beija-flor.

    Mas so tantas as marcas sosigenesianas. So tantas as sin-gularidades aproveitadas ao mximo pelo poeta, trazendo as caracte-rsticas que formam a pluralidade to reconhecida. Ele explora a so-noridade da letra, ou ele cria um jogo rtmico para enfatizar a conota-o imagtica, ou e, ainda, imprime seu trao ldico, como quandolana mo de rimas disparatadas para compor o soneto. Um bomexemplo est em O Enterro:

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    O ENTERRO

    O rei de mirra nos dar verbenapara o lenol dessa beleza morta.E a beleza to plida e serenano enterro sair por esta porta.

    Vendo o lenol de mirra, Madalenacair desfalecida l na horta.Sentindo a mirra h de chorar de penao rei que amava essa beleza morta.

    Vir pra o enterro mais verbena em pranto.E antes que o sol se esconda no paulenterraremos, no no campo santo,

    mas no jardim do bem-amado encantoo amado corpo to sereno e santo,envolto em mirra no lenol azul.

    A Obra potica da Editora Leitura, como j foi dito, com-posta de quatro partes: Sonetos Pavnicos e Outros Sonetos, O Vinhoe os Aromas, Versos de Uma Era Extinta e Belmonte, Terra do Mar.Os 90 textos devidamente enquadrados em suas partes, mostram que opoeta desejou guardar a afinidade que h entre eles e, desta maneira,seja pelo tema, seja pela forma, cada unidade da diviso encerra-se per-feitamente e estabelece uma ligao direta com o ttulo que a enfeixa.

    Jos Paulo Paes, em seu ensaio crtico seguido de uma pe-quena antologia, Pavo parlenda paraso (So Paulo: Cultrix, 1977),deu da poesia sosigenesiana uma viso panormica capaz de desper-tar a apetncia do leitor e motiv-lo para a leitura da Obra potica.Segundo o prprio Jos Paulo Paes, ao explicitar aqueles que conside-rou os temas e as particularidades formais mais caractersticas da

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    obra de Sosgenes Costa, a forte singularidade do poeta estaria firma-da no quadro da poesia brasileira moderna. Assim fez o ensasta epoeta. Incansvel quando se tratava da produo do grapina de Bel-monte, reuniu poemas inditos e entregou ao pblico a Obra poticaem segunda edio, revista e ampliada (Cultrix, 1978), intitulando osinditos de Obra potica II. Alm de realizar o que, na folha de rostoda edio de 1959 da Leitura, era apenas uma promessa, Jos PauloPaes, tambm pela Editora Cultrix e o MEC, publicou o poema moder-nista Iararana (1979), antecedido de um ensaio descritivo e crtico.

    Da em diante, os admiradores foram tornando suas leitu-ras mais atentas e surgiram ensaios, tanto sobre o modernismo naobra de Sosgenes Costa, quanto sobre os poemas mais conhecidos,os chamados sonetos pavnicos. Tratar do grande poema modernista"Iararana", ou tratar dos sonetos, ou das peas de motivo folclrico,ou dos poemas que formam um ciclo de poesia crtica, corresponde-ria a tratar de uma poesia maior. interessante, portanto, colher en-tre tantas opes, a impregnao barroca presente em certos sonetos,quando mais no fosse pela peculiaridade de Sosgenes Costa nestetocante, seria pelo aprofundamento em uma marca presente nos tex-tos da primeira parte da Obra potica.

    Impregnao preponderante, j dizia Jos Paulo Paes, mai-or do que a simbolista, a sonetstica sosigenesiana traz as marcasfortes do barroco, as quais conferem uma originalidade to surpreen-dente a ponto de se associar tal fator grandeza desta poesia. A sensu-alidade, as cores, o perfume das flores e os aromas orientais, as pe-dras preciosas, enfim, toda uma atmosfera de luxo criada nos sone-tos e ligam-se ao barroco de Gngora, mestre da caracterstica sensu-al na poesia de sua poca.

    Pelo imediatismo das impresses sensoriais que alcaname pelo artifcio do ornamento, o resultado o jogo entre o ser e oparecer e o que h de admirvel na mescla de elementos contraditri-os. O escritor barroco no procura o significado direto e linear, mas aexpresso que encerra polivalncia de significados e que rene valorescontrastantes, conforme diz o texto Periodizao e Histria Literria,

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    de Helena Parente Cunha, em Manual de teoria literria, organizadopor Rogel Samuel (Vozes, 1985). Nos textos de Sosgenes Costa, sendotal vertente da escola barroca a expresso adequada para sua poesia, ogongorismo achou terreno propcio.

    Atributo essencial da poesia sosigenesiana, o luxo metafori-zado como processo literrio da expresso da realidade pela via docaleidoscpio de imagens, encontra ainda no gongorismo o estilo opu-lento, que lhe compatvel. Os sentidos so chamados para que par-ticipem da leitura, a sinestesia atingida pela gama de cores e objetos,pelos perfumes e pela sensualidade, contribuem calculadamente paragerar um certo torpor, o qual a meta da viso gongrica do mundo:o cume da exuberncia e da fantasia.

    Dentre os sonetos que formam ciclos, destaca-se o ciclo doamarelo, o qual se contrape ao ciclo dos sonetos crepusculares, es-tes ltimos mais prximos do simbolismo. Desde o ttulo barroco, opoema O Triunfo do Amarelo expe o leque das pedras preciosas,como o topzio e o berilo, levanta uma luta entre as cores: o amareloluta contra o verde, com o fim de tecer uma paisagem e a sinestesiacriada para invadir a conscincia do leitor.

    O TRIUNFO DO AMARELO

    Luta o amarelo contra o verde, agora,no esforo de venc-lo e confundi-lo.E assim derrama, esdrxulo, na floraspia, topzio, abbora, berilo.

    Transforma o bronze e anula o jade; e aquiloque verde-negro, aurfero, colora.No esforo de venc-lo e confundi-lo,luta o amarelo contra o verde, agora.

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    Aves azuis se pintam chinesmentede jade. E a prpria flor da rubra amoratoda se pinta de mbar louro, ardente.

    E a luz do sol, sinfnica e sonora,dos cus rolando, em mgica torrente,a gama inteira do amarelo explora.

    No que toca s flores, estas se acham particularizadas, poisa flor aparece chamada pelo nome, participa da festa e ao poema indispensvel. Mas as flores no concorrem sozinhas para causar aimpregnao almejada. No soneto abaixo, por exemplo, a rosa e o lilsesto presentes, ao tempo em que os perfumes orientais - sndalo emirra - contribuem tambm para o ambiente de fausto particular que,ao fim e ao cabo, predomina sobre a dita paz.

    UMA GLRIA DA CHINA A PORCELANA

    O azul celeste dessa paz da Chinacintila no esplendor da porcelana.Nem rosa, nem lils e nem boninaa formosura dessa luz empana.

    Tambm na laca e em seda, soberana,como o drago no jade, a paz domina.Dispensa o bronze e a pedra a paz da Chinaporque prefere o cu da porcelana.

    E a paz do cu no templo de cipreste,quando da laca passa porcelana,do prprio azul da glria se reveste.

    Sndalo e mirra para a glria humana.Torre de laca para a paz celeste.Longevidade para a porcelana.

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    A flor tem um lugar to importante nestes sonetos de Sos-genes Costa, chegando a ter casa em Na Casa da Aucena, quando apresena de reis vem acentuar outra tendncia do poeta: o uso dosheris e dos episdios da Bblia, da mitologia antiga e da Histria. Osarqutipos vindos para servirem na elaborao de metforas que en-volvem reis e deuses, heris e rainhas, so colocados na poesia visan-do ao entendimento imediato pelo tanto de simblico que encerram.Mas h outros usos de personagens com sentidos menos evidentes, oque, de resto, acrescentam uma nota inslita e surpreendente na peapotica, bem ao gosto do autor.

    O barroco e o simbolismo podem combinar-se para resul-tar numa mistura inusitada. O primeiro soneto pavnico, primeiropor ordem de feitura, tece uma paisagem de fim de tarde - crepuscu-lar, comum aos simbolistas - que culmina num espetculo, fazendo-se o poeta, ele mesmo, um soberano, quando a princpio era apenasum rei fictcio (Cf. na seo Sonetos Pavnicos, pg 28 desta edio):

    Maravilhado assisto das janelasOs coqueiros, paves de um rei fictcio,abrem as caudas verdes e amarelas,ante da tarde o rtilo suplcio.

    Igualmente em Os Pssaros de Bronze, a trivial revoadade pssaros est pintada com as fortes tintas barrocas num caminhometafrico que pode ser seguido passo a passo. A cor domina, dobronze cor do vinho, da cor do mar e do sangue azul nos rubrospassarinhos, os quais o bronze abrasa. Soneto visual, onde no sa natureza d o show, mas o poder do barroco expresso nas relaescom o luxo da realeza, fazem com que, no andamento do poema,sejam criadas imagens sucessivas e ascendentes, atravs do rei e docardeal - figuras que so ttulos ao mesmo tempo - e atravs do pintorBronzino e dos reis do ocaso, estes dois ltimos verdadeiros artistas,os passarinhos e o homem, cada um a seu modo.

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    OS PSSAROS DE BRONZE

    Bronze no ocaso e vinhos no horizonte.E o mar de bronze e sobre o bronze os vinhos.No rei das aves o poder do arcontee o sangue azul nos rubros passarinhos.

    No meu telhado eu vejo em vossa fronte,meu cardeal, o rubro entre os arminhos.Pintou Bronzino esses trs reis da fonte:bronze nas asas, no diadema os vinhos.

    O bronze imperial l est na ponte.E o bronze voa e esses trs reis sozinhos.Bronzes ao longe e outros no mar defronte.

    E o bronze abrasa os pssaros marinhos.E os reis do ocaso, as aves de Belmonte,cantando ostentam seus brases e arminhos.

    Por fim, a sensualidade barroca pode ser ilustrada com umdos mais belos, seno o mais belo soneto de Sosgenes Costa: Abriu-se um Cravo no Mar. Alm da presena do cheiro forte de cravo, dapalidez de lrio da lua cheia e das cores que a noite vai tomando noprocesso mesmo de anoitecer, encontramos a animalizao da paisa-gem. Como quer Jos Paulo Paes, o sensualismo do processo meta-frico, fazendo do mar a uma s vez touro, co e pombo, animaisemblemticos da potncia amorosa e da lascvia estabelece um es-tatuto de igualdade entre o natural e o fabuloso, povoando a realidadede figuras mticas como o drago e a sereia.

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    ABRIU-SE UM CRAVO NO MAR

    A noite vem do mar cheirando a cravo.Em cima do drago vem a sereia.O mar espuma como um touro bravoe como um co morde a brilhante areia.

    A noite vem do mar cheirando a cravo.Com palidez de lrio, a lua cheiasurge brilhando e a gua do mar prateiae o mar cintila como um pombo flavo.

    O odor de cravo pela noite aumenta.A noite, em vez de azul, est cinzenta.Sente-se o aroma at no lupanar.

    O mar atira no rochedo o aoite.Aquele aroma aumenta pela noite. o cravo que o drago trouxe do mar.

    O barroco serviu perfeio para a composio da maioriados sonetos de Sosgenes. Incoerncia ou no, em pleno sculo XX,floresceu uma sonetstica com impregnao barroca que se firma pelaoriginalidade. Tanto se fala deste poeta, cada vez mais, porque vai sereconhecendo o valor fora do comum da sua poesia; ela no repetefrmulas, ela busca misturas para ter um caminho prprio. Conferin-do, como foi mostrado, um conjunto de sonetos nico, pode-se acen-tuar o lugar que Jos Paulo Paes tanto reivindicou para esta produopotica, o lugar indubitvel de Sosgenes Costa na poesia brasileira.

    Castelo, como ele mesmo se rotulou, o poeta guarda mi-tos extrados da natureza porque h nela mesma seus vnculos comos arqutipos. O crtico N. Frye, diz que os ritmos poticos tm forteligao com o ciclo natural, dada a sincronia com os ritmos da

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    natureza, como o ano solar. Caro ao poeta Sosgenes Costa, o pr-do-sol, arqutipo da stira, evidencia no poema Tornou-me o pr-do-solum nobre entre os rapazes o tom com o qual o poeta caracterizatantos sonetos. Este, que clama pelo castelo que h nele, no deixade ser uma espcie de desejo de criar um sinnimo para a poesia,tendo como base a ironia retirada dos mitos. Talvez seja a sua arspotica. H a fixao pelo aroma, lembrando aqui o soneto onde anoite vem do mar cheirando a cravo. Tem-se agora o perfume de sn-dalo e o incenso na vereda, enquanto a tristeza anda ao longe, e asaudade uma rosa de espinho: mais uma vez a flor. Vem o sonho e,logo, o poeta castelo dos mitos. E entre os tanques do rei, o dele o mais profundo; entre os ases da flora, os lrios do poeta so lilases eseus paves cor-de-rosa so os nicos do mundo. Da sua unicidade,sua originalidade? O poeta repete que castelo pelas sugestes trazi-das pela natureza; no caso, o pr-do-sol. A potica do ocaso, seria a docaos. E o caos seria fazer-se castelo de mitos variados. Neste poemaso enfatizados os smbolos naturais. Mais um pouco: um tanto depersonagens da mitologia antiga e o uso de passagens da Bblia e ter-amos toda a gama que abarca as fixaes sosigenesianas.

    Queima sndalo e incenso o poente amareloperfumando a vereda, encantando o caminho.Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.A saudade no ocaso uma rosa de espinho.

    Tudo doce e esplendente e mais triste e mais beloe tem ares de sonho e cercou-se de arminho.Encanto! E eis que j sou o dono de um castelode coral com portes de pedra cor de vinho.

    Entre os tanques dos reis, o meu tanque profundo.Entre os ases da flora, os meus lrios lilases.Meus paves cor-de-rosa os nicos do mundo.

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    E assim sou castelo e a vida fez-se osispelo simples poder, pr-do-sol fecundo,pelo simples poder das sugestes que trazes.

    Os sonetos pavnicos, de descrio simbolista, juntam ori-ginalidade e refinamento, mas no prescindem de causar estranhezahaja vista a j to comentada impregnao do luxo barroco patente nosbronzes, lilases e lrios, mirra e canela, acompanhada de certo tom ir-nico, uma piscadela de olho, como se, falando de flores e aromas, nofosse possvel caber a grande marca da modernidade: a ironia. O Sone-to ao Anjo carrega no perfume desta ironia sosigenesiana:

    Por tua causa o meu jardim fechou-ses mulheres que vinham buscar lrios,quando o poente cor-de-rosa e docepunha paves nos capitis assrios.

    Teu beijo como um pssaro me trouxeo mais azul de todos os delrios.Por tua causa o meu jardim fechou-ses mulheres que vinham buscar lrios.

    S tu agora colhes azaliae os cintilantes cachos da azuria,mgica flor que em meu jardim nasceu.

    S tu vers os lrios cor de aurora.Meu pavo dormir contigo agorae o meu jardim dourado agora teu.

    Sosgenes Costa escreveu seu primeiro soneto em 1921 econtinuou tecendo sonetos at os primeiros anos da dcada de 60,jamais abandonando o gosto pela forma fixa. Houve, porm, o mo-mento de encantamento pelo Modernismo, exemplificado nos poe-

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    mas O Dourado Papiro e Iararana; este ltimo um dos smbolosda escola, tais como Martim Cerer, de Cassiano Ricardo, ou CobraNorato, de Raul Bopp.

    J os poemas populares, encontrados nas redondilhas demotivos folclricos e nas cantigas de roda, trazem a poesia de umpovo. Bom exemplo est em A Marcha do Menino Soldado, algumasestrofes do conta das associaes semnticas e sonoras usadas commaestria:

    Marcha soldado,cabea de papelo,pequenino espadachim,ordenana de capito.Marcha direito.No marche como D. Quixote,o espelho de Napoleo.Marchar para trs, soldado, um sonho quixotescoem crebro de papelo.Para marchar direitono siga Alexandre Magnoque marchava a contramo,com mania de grandezae seus sonhos de invaso.

    soldadinho de chumbocom o crebro de papelo,no sei se voc se lembra:armado de varapau,cabea de papelo,soldadinho de Caifsprendeu Jesus no jardim,num golpe de reao.

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    Cabea de papelops na cabea de Cristouma coroa de espinhoscolhidos na sara ardente,espinhos de coroa-de-frade,suplcio da Inquisio.(...)

    J est visto que os personagens histricos, os personagensda Bblia e a mitologia grega aparecem adiante para criar efeitos hila-riantes, acrescentando poesia seu tanto de brincadeira, como amarchinha do soldado. Igualmente est visto que as misturas de te-mas diversos, at mesmo os disparates que aparecem quando o poetaresolve-se por rimas difceis, que terminam sendo despropositadas,tambm atuam para manter e, inclusive, aumentar o interesse peloprocesso mental que associa, por exemplo, o pavo vermelho dosoneto Pavo Vermelho, com um correspondente como o senti-mento da alegria.

    Voltando o olhar para o envolvimento com o social e o pol-tico, constatamos o comprometimento do poeta. Desta feita, quandoo negro trazido para o poema, como em Negro Sereio, Sosgenesfaz-se negro e apanha de chicote. Mais um exemplo: ao levantar abandeira do revolucionrio, o poeta torna Cristo um mrtir da revolu-o. Seguindo adiante, revela-se que, voltando-se para a sua terra na-tal, Belmonte, esta cantada pelo momento que viveu. o descobri-mento do Brasil e a chegada do colonizador nestas terras que soencontrados nos poemas O Descobrimento Sacrossanto e A He-rldica da Missa Campal, sendo o local onde tudo aconteceu situa-do ao redor da terra do poeta. Em Iararana, d-se a mesma fixa-o pelo momento da descoberta e pelo local. O passado mtico re-flete o momento da descoberta cabralina, enquanto o tempo impor-ta para que seja contada a saga do cacau atravs de um mito grego,

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    Tup-Cavalo, que vem do Olimpo. A est o castelo de mitos, o cria-dor e guardador da mitologia, pois que Sosgenes cria um mito para achegada do cacau, como o cacau entrou na vida dos nativos e comotransformou essas vidas. Participao mstica uma expresso usadapor Jung para descrever o estado da criao artstica, quando o poetavai alm de toda e qualquer fronteira de sua personalidade para ex-pandir as vivncias de seu povo. Regional, fazendo a apologia grapi-na em versos, o poeta cantou sua terra, criou os mitos para esta terra,entronizou-os e plasmou, assim, sua experincia regional.

    toda a gama de alternativas para se voltar o olhar em setratando da poesia de Sosgenes Costa, veio a ser includa na Obrapotica II, a coleo de pardias da dico condoreira de Castro Al-ves, dentro de um ciclo de poemas crticos onde h diatribes a outrospoetas, tais como a Byron, ao Fernando Pessoa saudosista, a Joo Ca-bral de Melo Neto. Fica evidente a vastido de temas que encantaramou so encantados pelo poeta. Os que lhe prestam homenagem tmuma enorme quantidade de emblemas que podem usar para traduzira poesia de Sosgenes: pavo, drago e sereia, bfalo, lrio e accias, olupanar, os personagens da Bblia, da mitologia grega e da Histria.Uma festa! Mais do que uma festa o poema Duas Festas no Mar.

    Abarcando os ideais psicolgicos e sociais numa linguagemsimples e direta, inclusive com economia de palavras na linha do poucoque diz muito, possvel exemplificar o castelo de mitos com estapea potica reveladora, porque fica bastante claro o desejo sosigene-siano de lidar sempre com os mitos. Os mitos fascinam o poeta, elejoga com estes arqutipos, diz atravs deles, mitifica a poesia mesmae, por fim, define a poesia: a ironia do mito.

    O castelo de mitos usa como arqutipos de sua poticapersonagens no apenas da mitologia grega, mais fceis de simboli-zar significados que o Ocidente conhece de perto, mas o poeta usatambm animais emblemticos, passagens da Bblia, at para fazera confrontao com culturas longnquas como a da sia. O que sed em cada poema uma mistura inusitada que converge para o

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    coloquial-irnico, satisfazendo a propenso ldica ao reunir vriasespcies de tempo num jogo de contrastes.

    A crtica mitolgico-ritual, um dos ramos da nova crtica,produzida do junguismo e do ritualismo, forma uma pliade de crti-cos que v a literatura moderna tendendo mitologia. Northrop Frye,em Anatomia da crtica (So Paulo: Cultrix, 1989), chega a conside-rar os trabalhos de Jung sobre os smbolos a base da anlise literria:o mito seria a essncia da arte verbal, sendo a unio do ritual e dosonho em forma de comunicao.

    Todo o aparato terico resulta na interpretao da poesiasosigenesiana como aquela que se vale de uma gama de mitos paraencerrar os significados especficos de cada um no contexto. O pavo,vaidade e beleza, ou Apolo, o homem belo, ou mesmo Cristo e o sacri-fcio, esto nos sonetos e nos demais poemas quase sem exceo. EmLira de Apolo, dedicado a seu amigo James Amado, a primeira es-trofe diz: Mrmore de Paros, Demtrio de Faros/ exibe o corpo grego/amado por Apolo.

    As flores e o mar, elementos naturais, figuram com tama-nha assiduidade que, para os que gostam de colher nas palavras da-dos biogrficos do autor que as usa com regularidade, d-se um en-contro destes smbolos com o homem afeito s cores e aos perfumes,enfim, aos espetculos da natureza, seja a noite que vem do mar chei-rando a cravo, ou seja no lrio, smbolo da pureza, que o poeta rejeitapor no ser um beija-flor.

    no poema O Dourado Papiro que a crtica estabele-ce o lugar prprio para as interpretaes mitolgico-ritualsticas acom-panhadas da anlise psicolgica. A primeira estrofe diz:

    A serpente me viu e ficou louca de a