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O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista. Defende que o fim de nossas ações é a felicidade e que o correto é definido em função das melhores consequências, que são definidas em função da maximização imparcial da felicidade dos afetados por nossas ações. Maximizar imparcialmente a felicidade significa promover a maior soma de felicidade possível para todos aqueles que sofrem de alguma maneira as consequências do que fazemos, independente de serem pessoas por quem temos afetos ou laços consaguíneos. Entre salvar um parente próximo de um incêndio e salvar quatro estranhos, dado que salvar quatro estranhos maximiza a felicidade, o padrão moral utilitarista defende que o certo é salvar os quatro estranhos ao invés de um parente próximo. Dado que, num acidente inevitável, a única forma de salvar a vida de todos os passageiros de um ônibus e assim maximizar a felicidade é o auto-sacrifício do motorista, o utilitarismo defende que o correto é o auto-sacrifício do motorista. Por exigir decisões desse tipo, a teoria utilitarista foi e ainda é mal compreendida e muito criticada. Para desfazer os equívocos em torno utilitarismo e contribuir para que fosse adequadamente compreendido e avaliado, John Stuart Mill (1806-1873) publicou Utilitarismo (1861), que se tornou um clássico da ética e influenciou decisivamente os utilitaristas posteriores. A edição da Porto Editora traz uma breve nota de apresentação; uma boa introdução que serve não só como introdução ao Utilitarismo de Mill, mas como bom

O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista

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Page 1: O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista

O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista.

Defende que o fim de nossas ações é a felicidade e que o

correto é definido em função das melhores consequências,

que são definidas em função da maximização imparcial da

felicidade dos afetados por nossas ações. Maximizar

imparcialmente a felicidade significa promover a maior soma

de felicidade possível para todos aqueles que sofrem de

alguma maneira as consequências do que fazemos,

independente de serem pessoas por quem temos afetos ou

laços consaguíneos.

Entre salvar um parente próximo de um incêndio e salvar

quatro estranhos, dado que salvar quatro estranhos maximiza

a felicidade, o padrão moral utilitarista defende que o certo é

salvar os quatro estranhos ao invés de um parente próximo.

Dado que, num acidente inevitável, a única forma de salvar a

vida de todos os passageiros de um ônibus e assim maximizar

a felicidade é o auto-sacrifício do motorista, o utilitarismo

defende que o correto é o auto-sacrifício do motorista.

Por exigir decisões desse tipo, a teoria utilitarista foi e

ainda é mal compreendida e muito criticada. Para desfazer os

equívocos em torno utilitarismo e contribuir para que fosse

adequadamente compreendido e avaliado, John Stuart

Mill (1806-1873) publicou Utilitarismo (1861), que se tornou

um clássico da ética e influenciou decisivamente os

utilitaristas posteriores.

A edição da Porto Editora traz uma breve nota de

apresentação; uma boa introdução que serve não só como

introdução ao Utilitarismo de Mill, mas como bom texto

introdutório à teoria utilitarista como um todo; um anexo útil,

no fim da edição, com notas explicativas, bibliografia e um

índice analítico.

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A tradução da Gradiva foi realizada a partir da edição de

1871 (a última a ser revisada pelo autor) e traz um breve

prefácio; uma boa introdução que engloba aspectos da vida,

obra e filosofia de Mill e do utilitarismo em geral; uma breve

cronologia da vida de Mill; e, no final, notas e bibliografia.

A teoria utilitarista foi defendida pela primeira vez por

Jeremy Bentham (1748-1832) em Uma Introdução aos

Princípios da Moral e da Legislação (1789). Até

oUtilitarismo de Mill a teoria era baseada no

hedonismo quantitativo: defendia-se que quanto maior a

duração e intensidade dos prazeres gerados por uma ação,

mais felicidade tendia a ser gerada por essa ação.

Mill defende em cinco capítulos uma versão mais

sofisticada de utilitarismo, que se baseia no

hedonismo qualitativo: durante a avaliação de uma ação,

além da intensidade e duração dos prazeres, devemos levar

em conta a qualidade dos prazeres gerados por ela, pois há

prazeres superiores e inferiores. São superiores os prazeres

do intelecto, das emoções, da imaginação e dos sentimentos

morais e são inferiores os prazeres corporais. Os prazeres

superiores são-no em função do maior bem que geram em

comparação com os inferiores. Confrontados por indivíduos

que tenham experiência de ambos, os do tipo superior

sobressaem-se como preferíveis, sendo então considerados

melhores (superiores) do que os outros.

Uma das várias objeções contra o utilitarismo que são

discutidas no livro é a acusação de que o utilitarismo é muito

exigente. Mill responde a essa objeção sustentando dois

argumentos. Um é que a não ser que alguém seja um

benfeitor público, não é necessário considerar a felicidade

detodas as pessoas ou de todos os seres sencientes, mas

apenas dos envolvidos na ação. Outro argumento é que

abster-se de praticar ações que sejam prejudiciais à

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sociedade é o que, de alguma maneira, todo sistema moral

exige. Antes desses, Mill parece defender ainda um terceiro

argumento, que não é tão claramente desenvolvido quantos

os dois anteriores. Este argumento sustenta que não é

preciso agir de acordo com um senso cego de dever, o que

consequentemente nos desobrigaria de promover sempre —

rígida e inquestionavelmente — a felicidade geral.

A primeira resposta de Mill talvez seja a mais

problemática. Primeiro, porque se aceitarmos que os

envolvidos nas nossas ações pertencem a um círculo

pequeno, que provavelmente envolverá aqueles com quem

nos relacionamos cotidianamente, ainda sim não escapamos

da obrigação do auto-sacrifício. Provavelmente serão muitas

as situações em que será necessário abdicar de nossa

felicidade individual em função da felicidade geral do grupo

restrito que sofre as consequências de nossos atos. Segundo,

porque na medida em que muitas de nossas ações têm

alcance global, como as que se referem à preservação

ambiental, o universo de indivíduos a serem considerados por

nossos atos cresce consideravelmente e, de fato, é muito

difícil levar sempre em consideração a felicidade geral numa

proporção tão alargada.

Mill trata também do problema da sanção moral.

Questões como “Qual a sua sanção?”, “Quais são os motivos

para lhe obedecer?”, “Qual a fonte de sua obrigação?” e “De

onde deriva a sua força vinculativa?” precisam ser

respondidas tanto pelo utilitarismo quanto por todas as

outras teorias éticas.

Uma sanção moral é aquilo que motiva ou obriga as

pessoas a agirem moralmente. Mill defende que a sanção

última do princípio de utilidade ou da maior felicidade é o

sentimento de empatia do homem para com seus pares ou

sentimento social que o leva a unir-se a eles e a ajustar os

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seus interesses com os interesses deles. Esse sentimento é

um tipo de sanção interna, isto é, um sentimento em nossa

mente de desaprovação perante a violação dos deveres e que

nos impede de violá-los. Por ser um sentimento, assim como

outras sanções internas, poderia ser negado. No entanto, Mill

argumenta que, pelo fato de esse sentimento de empatia

possuir uma base natural, não pode ser negado. O homem

possui uma natureza social. Naturalmente, deseja unir-se aos

seus semelhantes; e para que essa união seja possível é

preciso que exista igual consideração de interesses. Assim,

quanto mais imparcial for o homem e ajustar seus interesses

individuais aos interesses coletivos, melhor será para ele

mesmo.

Mill tenta também apresentar uma prova a favor do

utilitarismo em três etapas: demonstrar que a felicidade é

desejável; demonstrar que a felicidade geral é desejável,

demonstrar que a felicidade é a única coisa desejável como

fim, sendo tudo o resto desejável apenas como meio ou parte

desse fim. Este capítulo é alvo de muita discussão, pois a

prova que Mill apresenta parece falaciosa.

Na primeira etapa da prova, Mill usa as seguintes

analogias para demonstrar que a felicidade é desejável:

assim como provamos que um objeto é visível demonstrando

que as pessoas o vêem e provamos que um som é audível

demonstrando que as pessoas o ouvem, também provamos

que a felicidade é desejável demonstrando que as pessoas a

desejam. As expressões “é visível” e “é audível” significam o

mesmo que “pode ser visto” e “pode ser ouvido”. Assim,

considerando a analogia de Mill, “é desejável” deveria

significar “pode ser desejado”. De fato, a felicidade pode ser

desejada e podemos prová-lo verificando que as pessoas a

desejam.

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No entanto, o que Mill pretende defender é que “é

desejável” significa “é digno de ser desejado”. O que enfrenta

a objeção óbvia de que o fato de as pessoas desejarem uma

coisa, neste caso, a felicidade, prova que as pessoas a

desejam, mas não prova que seja digna de ser desejada.

Uma resposta possível a essa objeção é defender que o

que Mill pretende demonstrar com a analogia dos sentidos é

que recorremos à visão e à audição para estabelecer o que é

visível e o que é audível; da mesma forma, recorremos à

nossa capacidade de desejar para estabelecer o que é

desejável (ou seja, digno de ser desejado). Ao fazê-lo,

descobrimos que a felicidade é desejada e que nada há de

errado nisso porque é uma coisa boa, sendo então digna de

ser desejada.

Essa resposta é problemática porque as pessoas desejam

muitas coisas prejudiciais para elas. Se o que desejamos

determinar é o que é digno de ser desejado, teremos que

admitir que viver num mundo de mentiras é digno de ser

desejado porque muitas pessoas desejam viver num mundo

de mentiras.

A segunda etapa da prova é demonstrar que a felicidade

geral é desejável: Mill argumenta que se cada pessoa deseja

a sua própria felicidade, consequentemente todas as pessoas

desejam a felicidade de todas as pessoas. Mas essa

generalização é um tipo de falácia da generalização

precipitada: uma amostra pequena é usada para sustentar

uma conclusão tendenciosa. Nada garante que quem deseja a

sua própria felicidade venha a desejar a felicidade de todas

as pessoas.

Outra interpretação possível do argumento de Mill é que

na medida em que as pessoas promoverem a sua própria

felicidade, a felicidade geral será promovida. Esse argumento

enfrenta o problema de ser incoerente com o utilitarismo. O

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utilitarismo defende a promoção imparcial da felicidade, o

que em alguns momentos implica na renúncia da felicidade

individual para a promoção da felicidade geral.

A terceira etapa da prova é demonstrar que a felicidade

é a única coisa desejável como fim e que o resto é desejável

apenas como meio ou parte para a felicidade. Mill argumenta

da seguinte forma: admite o fato de as pessoas desejarem

outras coisas diferentes da felicidade, como a virtude, por

exemplo. Admite que a virtude é digna de ser desejada e que

deve ser desejada por si mesma e acrescenta que tanto a

virtude quanto outros ingredientes da felicidade (a música, a

saúde, etc.) não são radicalmente distintos ou separados da

felicidade. São inegavelmente meios para ela e quanto mais

estiverem associados à felicidade, mais se tornam, além de

meios, parte da felicidade, sendo então desejados por si

mesmos. Esta resposta de Mill também não é muito

convincente, pois se há coisas que são desejadas por si

mesmas, mesmo por serem associadas com a felicidade, a

felicidade não pode ser considerada a única coisa desejável.

Assim, temos muitas indicações de que a prova de Mill seja

falaciosa, embora seja preciso um exame mais atento para

demonstrá-lo com maior precisão.

Mill termina o livro tentando demonstrar que o

utilitarismo não é incompatível com a justiça. Defende que a

justiça não está dissociada da felicidade e que a promoção da

felicidade passa pela justiça. A relação da justiça com o

utilitarismo consiste no fato de as regras morais da justiça

estarem diretamente relacionadas ao que há de essencial na

promoção da felicidade humana. São elas que proíbem os

homens de se prejudicarem, preservam a paz entre eles e os

pune quando as desrespeitam. A imparcialidade e a

igualdade, virtudes ou obrigações da justiça, são partes

essenciais da utilidade. Por tudo isso, as regras morais da

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justiça são mais imperativas do que as outras, embora a sua

observação admita exceções.

Pelo fato de admitir certos tipos de exceções o

utilitarismo é frequentemente acusado de ser uma teoria

incompatível com a justiça. No entanto, podemos acrescentar

à argumentação de Mill que a flexibilidade do utilitarismo

pode ajudar-nos a ter uma noção mais adequada de justiça.

Basear a justiça em regras engessadas pode ser uma ponte

para a injustiça. A princípio, matar, roubar, mentir ou forçar

alguém a fazer o que não quer seria errado e injusto. No

entanto, emcircunstâncias especiais pode ser mais justo

revogar as regras morais da justiça que condenam essas

atitudes para evitar que uma injustiça maior seja cometida.

Há casos particulares em que pode ser necessário revogar os

princípios gerais da justiça em função da maior felicidade

geral: utilizando exemplos do próprio Mill, para salvar uma

vida pode ser necessário roubar ou tomar pela força comida,

remédios ou um médico.

Muitas são as críticas levantadas contra a teoria

utilitarista de Mill. Mas ao contrário do que acontece a

outras teorias que se enfraquecem mediante as objeções que

lhe são levantadas, o utilitarismo tem demonstrado cada vez

mais a sua força. A discussão em torno de seus princípios

tem erguido um debate vivo e tem impulsionado seu

aperfeiçoamento e gerado versões mais refinadas da teoria.

Para compreender os fundamentos desse debate, leia-se

atentamente oUtilitarismo de Mill, clássico obrigatório para

estudiosos de ética, mas não só. Com escrita clara e fluente,

Mill discute questões importantes relacionadas com o bem-

estar individual e coletivo, que são também relevantes para a

filosofia política e para outras áreas das ciências humanas.