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Bases antropológicas da espiritualidade humana Introdução No contexto histórico em que vivemos, entre as diferentes experiências religiosas emergiu, tanto em ambiente evangélico como católico, uma forma mais calorosa de ser cristão que acentuou a presença do Espírito dado à Igreja e por esta razão foi denominado de “Renovação do Espírito”. Isto ocorreu justamente num contexto sócio-histórico que parecia tornar a religião algo irrelevante na vida humana ao mesmo tempo que pela revolução das comunicações tornava possível, no contato com outros paradigmas culturais, o encontro com outras tradições religiosas. O fenômeno provocou no seio das igrejas um grande debate sobre sua significação na atual conjuntura das igrejas, as questões válidas que levantava, as polêmicas que suscitava, por fim, reacendeu a discussão sobre a significação da espiritualidade, da experiência do Espírito no contexto da experiência cristã de Deus. Isto remete a uma questão anterior que é pressuposta: a significação da espiritualidade na vida humana enquanto tal, ou seja, de um pressuposto antropológico fundamental dos debates teológicos 1 a respeito que é a da própria constituição ontológica do ser humano. Antes de tratarmos expressamente desta problemática básica, tentaremos explicitar, por ser o ser humano essencialmente um ser histórico, os traços fundamentais do mundo humano em que estamos nós hoje inseridos 1 A respeito de uma consideração teológica da questão cf. FRANÇA MIRANDA M. de, A experiência do Espírito Santo_ abordagem teologica, in: Perspectiva Teológica, ano XXX, n. 81 (1998) 161-181. AQUINO JÚNIOR F.de, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento, São Paulo: Paulinas, 2014, p. 15-37. 1

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Bases antropológicas da espiritualidade humana

Introdução

No contexto histórico em que vivemos, entre as diferentes experiências religiosas

emergiu, tanto em ambiente evangélico como católico, uma forma mais calorosa de ser cristão

que acentuou a presença do Espírito dado à Igreja e por esta razão foi denominado de

“Renovação do Espírito”. Isto ocorreu justamente num contexto sócio-histórico que parecia

tornar a religião algo irrelevante na vida humana ao mesmo tempo que pela revolução das

comunicações tornava possível, no contato com outros paradigmas culturais, o encontro com

outras tradições religiosas. O fenômeno provocou no seio das igrejas um grande debate sobre

sua significação na atual conjuntura das igrejas, as questões válidas que levantava, as

polêmicas que suscitava, por fim, reacendeu a discussão sobre a significação da

espiritualidade, da experiência do Espírito no contexto da experiência cristã de Deus.

Isto remete a uma questão anterior que é pressuposta: a significação da espiritualidade

na vida humana enquanto tal, ou seja, de um pressuposto antropológico fundamental dos

debates teológicos1 a respeito que é a da própria constituição ontológica do ser humano. Antes

de tratarmos expressamente desta problemática básica, tentaremos explicitar, por ser o ser

humano essencialmente um ser histórico, os traços fundamentais do mundo humano em que

estamos nós hoje inseridos e que consequentemente marca consciente ou inconscientemente

toda a atividade do ser humano no mundo, portanto, também, suas expressões religiosas.

1. Situação da religião no contexto da modernidade tardia

Uma primeira característica da cultura da modernidade tardia é a universalização da

civilização técnico-científica2. Isto tornou possível uma humanidade una no sentido de que

cada povo se encontra hoje inserido numa rede de relações com os outros povos da terra e não

pode mais ser pensado isoladamente. Foi gerado um enorme alargamento do âmbito cultural

da vida humana: a civilização tecnológica possibilitou a coexistência e convivência dos

diferentes povos e culturas, uma história mundial. A tecnoesfera, uma segunda natureza,

produto da técnica moderna, vai substituindo a biosfera que o ser humano encontrou. O

resultado foi a alteração das proporções: a natureza não trabalhada se reduziu hoje a pequenos

1 A respeito de uma consideração teológica da questão cf. FRANÇA MIRANDA M. de, A experiência do Espírito Santo_ abordagem teologica, in: Perspectiva Teológica, ano XXX, n. 81 (1998) 161-181. AQUINO JÚNIOR F.de, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo. Espiritualidade como seguimento, São Paulo: Paulinas, 2014, p. 15-37. 2 Cf. OLIVEIRA M. A., Ética e Técnica, in: Ética, Direito e Democracia, São Paulo: Paulus, 2010, p. 39-76.

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espaços numa civilização toda tecnificada com gigantesca especialização e produção

sofisticada.

Aí onde avança o processo de modernização da vida social, modifica-se radicalmente

a cosmovisão tradicional e uma nova se vai fazendo hegemônica na nova civilização: o todo

da vida humana é configurado pela técnica, ou seja, articula-se um novo quadro interpretativo

de sua vida, seu lugar no universo, da realidade em seu todo. O horizonte funcional da técnica

se transformou no elemento decisivo de interpretação da vida humana individual e social.

Neste novo horizonte, o ser humano se entende a si mesmo como possuidor de enorme poder

e liberdade.

Transforma-se toda a significação da vida humana: nenhum setor da cultura

permanece intocado. Vivemos hoje numa forma de configuração da civilização técnico-

científica, a das sociedades pós-industriais, a era da “informação”. Neste contexto, o mercado

se transforma no mecanismo fundamental para a geração de riquezas e o conhecimento na

força produtiva decisiva3. As tecnologias, intimamente vinculadas ao conhecimento científico,

constituem, então, o suporte básico de garantia de eficiência na produção, na circulação e

oferta de produtos. Tudo isto provoca mudanças radicais no mundo do emprego e na

efetivação de direitos multiplicando as formas de exclusão uma vez que a busca do lucro é o

objetivo fundante. Há enormes massas perdedoras neste processo e a degradação ambiental se

expande4.

Um outro efeito da revolução tecnológica é a revolução comunicativa que rompe com a

comunicação espontânea nos mundos vividos através de meios técnicos que põem à

disposição uma quantidade enorme de informações e permitem a conexão imediata das

pessoas sem limites de distância. Consequência: 1)Os indivíduos são confrontados com

diferentes concepções da vida humana a partir de uma multiplicidade de fontes de sentido que

concorrem entre si; 2) Economia e comunicação se transformaram em processos inseparáveis

o que gera nova relação entre Estado, sociedade e economia. O processo comunicativo,

tecnicamente configurado, transforma-se em instrumento básico para a inclusão, de modo

desigual, de todos nas ofertas do mercado transformando a busca do bem-estar na meta última

e consequentemente o consumo no valor supremo. Desta forma, os produtos ofertados são

considerados portadores de felicidade e status social5.

3 Cf. PIMENTEL A. M., Racionalidades, culturas e globalização: a ação criativa e a rearticulação dinâmica das culturas, in: Síntese vo.42 n. 133(2015) 184: “ E, porque a ciência tornou-se componente essencial da força econômico-política de uma coletividade, a organização da pesquisa tende a tornar-se global, controlada direta ou indiretamente pela vontade do poder dos Estados nacionais”.4 Cf. PIKETTY Th., O Capital no século XXI, Intrínseca, 2014.5 Cf. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade, Documentos da CNBB , n. 105, 2016, p. 41.

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Um de seus traços característicos é a substituição da política pelo mercado no processo

de condução da vida social acelerando o processo de precarização da vida das pessoas e a

destruição do planeta no seio de um novo modelo de acumulação e regulação do capital6, a

globalização7, que na realidade não se reduz a uma reconfiguração da esfera econômica, mas é

uma realidade extremamente complexa, constituída por muitos fatores e dimensões. Este

constitui o pano de fundo que hoje marca e transforma fundamentalmente a vida dos povos,

suas instituições e seus modelos culturais8. No caso do Brasil, não se pode esquecer, além de

tudo isto, da enorme complexidade da sociedade brasileira que se caracteriza por abrigar em

seu seio a coexistência de diferentes épocas culturais: o pré-moderno, o moderno e o pós-

moderno.

Como se autocompreende o ser humano neste novo mundo? Para Ch. Taylor, a

primeira marca do ser humano em nossas sociedades é o “individualismo” que ele entende

como a posição em que o indivíduo possui privilégio em relação ao conjunto social e suas

instituições. Nesta perspectiva,

“Cada um tem o direito de desenvolver sua própria forma de vida, fundada sobre sua

própria percepção daquilo que é realmente importante ou tem realmente valor. Os seres

humanos são chamados a serem fieis a si mesmos e a buscar a própria auto-realização. Em

que isto consiste, cada um, homem ou mulher, deve em última análise decidir por si9”.

Esta postura atribui um valor fundamental à autonomia individual e em particular à

expressão dos sentimentos próprios o que manifesta que aqui o indivíduo busca em sua

própria interioridade os rumos fundamentais de sua vida. Por isto têm profundas ressalvas a

tudo que pareça diminuir sua liberdade individual, seu direito de escolher e abraçar as

convicções que orientam sua vida. Por isto os indivíduos numa sociedade moderna deixam de

identificar-se pura e simplesmente com a experiência pública de vida comunitária como

faziam nas sociedades tradicionais. O mundo deixa de ser aquela ordem em que todos

possuíam um lugar determinado que limitava a liberdade de cada um e estabelecia o sentido

maior de tudo aquilo que o indivíduo realizava em sua vida individual e social.

A consequência é que os indivíduos se vão cada vez mais concentrando em suas

próprias vidas, seus próprios projetos, na satisfação de seus desejos, em seu bem-estar com o

6 Cf. HOBSBAWM E., Globalização, democracia e terrorismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.7 Cf. ORTIZ R., Mundialização e Cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994; ARRIGHI G., O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens do nosso tempo, São Paulo: Unesp, 1996. SANTOS B. S., A globalização e as ciências sociais, 2ª. Ed., São Paulo: Cortez, 2002. CHESNAIS F., A Mundialização do Capital, São Paulo: Xamã, 1996. OLIVEIRA M. A. de, Desafios éticos da Globalização, São Paulo: Paulinas, 3a. ed., ?8 Cf. OLIVEIRA M. A., A religião na sociedade urbana e pluralista, São Paulo: Paulus, 2013, p. 7.9 Cf. TAYLOR Ch., The Ethics of Authenticity, Cambridge: Harvard University Press, 1992, p. 14.

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risco de perder qualquer interesse pelos outros, pela sociedade o que conduz a uma

indiferença frente às necessidades e aos direitos dos outros. O Eu se torna o único ponto de

referência e as questões que nos transcendem como indivíduos perdem qualquer interesse.

Neste contexto, as relações face a face entre as pessoas são em grande parte substituídas por

relações instrumentais das instituições o que gera a tendência de assumir uma postura

instrumental em relação a todos os aspectos da vida. A questão mais grave e mais profunda

neste mundo da civilização técnico-científica em que a eficácia se apresenta como valor

decisivo é que parece impossível articular um horizonte global de sentido capaz de abarcar a

totalidade da existência. Neste mundo os horizontes de sentido se revelam todos como

profundamente problemáticos10 o que faz com que as pessoas percam suas certezas e se

sintam desorientadas.

Pode-se dizer, como faz Lyotard11, que isto constitui a característica da assim chamada

“pós-modernidade” o que leva o pensamento a uma ruptura radical com a forma de pensar da

metafísica da tradição. Efetiva-se um rompimento com toda pretensão de articulação do

sentido do todo. Isto conduz, por consequência, ao reconhecimento da “mudança” de sentido

que é simplesmente incontrolável. Neste contexto adquire importância fundamental a

categoria de “diferença” que exprime precisamente uma situação em que não há metadiscurso

e assim passam para o primeiro plano a multiplicidade irredutível ao invés da identidade e a

singularidade dos “jogos de linguagem”. Todas as metanarrativas carecem hoje de

credibilidade e se fizeram inaptas para salvaguardar o vínculo social: a partir daqui, o

pensamento pós-moderno se entende a si mesmo como um processo de libertação do uno, do

imutável e do eterno para a diferença, para a pluralidade, para a mudança, para o contingente

e o histórico12.

Numa direção oposta vai a ontologia elaborada por certas posições da filosofia da

mente e as teorias do todo articuladas no âmbito das teorias físico-cosmológicas que tratam da

origem, do desenvolvimento e da estrutura de todo o universo físico13. A ontologia que aqui

está em jogo é uma ontologia materialista na medida em que se afirma uma tese geral sobre a

realidade enquanto tal: todo e qual ente no universo é um ente físico. Daí a denominação de

fisicalismo: toda realidade individual existente é coisa física14. Por esta razão é possível

10 Cf. RIBEIRO E. V., Reconhecimento ético e virtudes, São Paulo: Loyola, 212, p. 49-70.11 Cf. LYOTARD J-F, La Condition postmoderne. Rapport sur le savoir, Paris: Éditions de Minuit, 1979. 12 Cf. HABERMAS J, Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwölf Vorlesungen, 2a.. ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985.13 Por reduzir toda a realidade a um único domínio, o domínio do físico, Laydman defende que o tópico Deus está de antemão excluído da metafísica. Cf. LADYMAN J. et alii, Every Thing Must Go: Metaphysics Naturalized, Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 235. 14 Cf. INWAGEN P. van, Metaphysics, Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 151.

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pesquisar tudo o que existe através das categorias e dos procedimentos das ciências naturais

(naturalismo epistemológico).

Esta perspectiva que obscurece a peculiaridade do ser humano abre o espaço para a

auto-manipulação como é o caso no trato com embriões, no domínio do comportamento

humano através de agentes químicos que podem induzir o controle de processos psíquicos, na

possibilidade de interferir nos processos químicos que são decisivos no envelhecimento

orgânico, na manipulação tecnológica dos processos genéticos efetivando o sonho de

planificação e produção da vida humana em laboratório.

Que lugar e que função tem a religião neste contexto? Há muitas divergências a

respeito da análise de nossas sociedades e de modo especial a respeito de como interpretar a

presença do fenômeno religioso nestas sociedades. Há, contudo, um grande consenso: a

análise do fenômeno religioso é fundamental para a compreensão das sociedades da

modernidade tardia uma vez que nela ocorre a emergência espantosa de fenômenos ligados à

esfera da religião15 que podem ser os mais diversos e contraditórios e que podem, contudo,

levar as pessoas a junções de diferentes elementos. A disputa básica aqui é a respeito do papel

das religiões neste contexto societário.

O pensador francês M. Gauchet16 articula uma interpretação provocadora das

sociedades atuais e do lugar das religiões no seio do espaço público democrático e da

“República Laica”. Para ele a questão fundamental na compreensão das sociedades modernas

e ultramodernas é a interpretação do processo de secularização e laicização de nossa vida

coletiva. O que aconteceu foi na realidade uma passagem do poder exercido em nome dos

deuses para o poder exercido em nome dos homens, ou seja, a questão de fundo é a da

dessacralização do poder. A democratização das sociedades ocidentais só pode ser

compreendida a partir de um processo de “saída da religião”: a religião deixa de ser o fator

determinante da integração social.

A religião continua existindo no nível pessoal, privado, mas a vida coletiva e suas

regras constituem um produto da vontade humana. A compreensão do novo deste fato

pressupõe que se compreenda que a religião é uma maneira de ser da sociedade, um modo de

instituição da sociedade, ou seja, ela é primordialmente uma forma de organizar a vinculação

entre os seres humanos que se faz na dependência em relação a algo invisível ou sobrenatural:

há religião quando a definição da ordem mundana se dá através da suspensão a uma realidade

15 Chegou-se mesmo a falar de “dessecularização do mundo”. Cf. BERGER P., A dessecularização do mundo: uma visão global, in: Religião e Sociedade, v.21, n.1 (2001) 14. 16 Cf. GAUCHET M., Un monde désenchanté ?, Paris: Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières, 2004.

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de outra ordem, anterior e superior. Neste sentido religião é essencialmente heteronomia,

porque se funda numa desigualdade ontológica básica. Há o sagrado quando há uma

manifestação do invisível fundador no visível: a heteronomia se encarna de forma sensível. O

poder é um dos lugares privilegiados desta encarnação, ele é sagrado porque é mediador.

Como fica a religião neste mundo emancipado, autossuficiente? O problema

fundamental não é se as pessoas continuam ou não a crer em Deus, mas de saber qual o lugar

desta crença neste mundo social. A autonomia da ordem terrestre deixa completamente em

aberto a questão dos fins e do sentido último do mundo humano que agora aparece como

nunca em sua finitude radical17. É possível pensar em algo de absoluto no interior do mundo

humano? Precisamente aqui emerge o que Gauchet chama a “necessidade da espiritualidade”

que é forte em nossos dias e que cresce mais aí onde é maior o movimento de “saída da

religião” e as igrejas perdem credibilidade.

Pode-se dizer que o grande canal, que introduz as pessoas neste mundo novo, é a

cultura eletrônica de massa, que gera um número crescente de espectadores e consumidores

de imagens, enche-lhes a vida com a obsessão do consumo infinito. Abre-se, então, o espaço

para toda forma de mimetismo, que significa a imitação da forma de vida dos ricos e dos

países ricos, o que é uma forma nova de violência, uma vez que a sociedade moderna, com

seus fascínios, permanecerá um sonho irrealizável para a maior parte deles além das novas

formas de dominação que se radicam nos próprios valores e ídolos da modernidade18.

Esta sociedade midiática produz um processo objetivo de desculturalização com perda

de sentido da identidade cultural e da diminuição de identificação com suas comunidades de

origem. A consequência imediata é o afrouxamento dos vínculos culturais de origem, que

ocorre tanto por meio das migrações intensas como através da invasão cotidiana de imagens

que alimentam o universo simbólico através do meios modernos de comunicação social e que

conduz ao que se pode chamar a “crença no relativo”, que transforma tudo em provisório e

passageiro, uma vez que o desenraizamento ataca as imagens estáveis do mundo, a memória

coletiva e a cosmovisão, que permitem aos indivíduos se sentirem em casa em seu mundo e

17 Habermas defende a tese de que uma das características do saber pós-metafísico que nos marca hoje é que, a partir da racionalidade procedimental que se tornou hegemônica, o saber humano é considerado como permanentemente aberto, provisório e progressivo, numa palavra, finito. A filosofia por esta razão para poder continuar a existir na cultura contemporânea tem assumir esta falibilidade fundamental e renunciar a tematizar as razões últimas, teóricas e práticas de nossa vida. Cf. HABERMAS J., Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2a. ed., 1988, p. 45 e ss. 18 Cf. COMBLIN J., O Cristianismo no limiar do terceiro milênio, in: CALIMAN Cl.(org.), op. cit., p. 147: “Em nome desses valores, o que se cria é um sistema de dominação, privilégios, exploração do ser humano pelo ser humano”.

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provoca uma emancipação do indivíduo de suas tradições19. “A afetividade, que se realiza na

relação pessoal de mútuo respeito e acolhida, é permanentemente recalcada na sociedade

moderna pobre. Pesa sobre os pobres o fardo do silêncio, da contenção dos próprios

sentimentos e desejos20”.

Estes meios de comunicação fazem chegar até eles a concorrência ilimitada de

propostas de sentido, cada um tentando impor-se como sentido englobante da vida, que

caracteriza o clima espiritual de nosso século, revelando a efetivação da ruptura da unidade

simbólica, que caracterizava as sociedades tradicionais. Difunde-se o relativismo em relação a

todas as posições, a impossibilidade de decidir racionalmente as questões fundamentais da

existência, uma oposição radical à absolutização da razão na vida humana. Fala-se neste

contexto de “colapso das ideologias tradicionais com o agudo relativismo de valores culturais

e religiosos21”...

Por esta razão emerge como a atitude mais conveniente para a vida humana uma

espécie de “ceticismo pragmático” não explícito que nos deixa afinal em paz em relação à

verdade de nossa vida teórica e prática na medida em que se renuncia a toda possível utopia

de unidade na existência humana, reconciliação ou harmonia universal. Isto significa dizer

que crenças importantes que canalizaram as energias da humanidade no passado perdem sua

credibilidade. As grandes causas, sobretudo as promessas modernas de liberdade, igualdade,

progresso e desenvolvimento, parecem perdidas para sempre e neste contexto as atenções se

voltam para as pequenas causas, para o fragmentário e instantâneo da vida cotidiana. Esta

sociedade gera, por um lado, muita insegurança e muita incerteza, por outro lado, uma busca

de respostas utilitárias e imediatas para os problemas humanos22.

Este processo que, tem produzido desvalorização das tradições culturais, massificação

e anonimato, tem levado a formas de reação social através da formação de identidades grupais

não mais simplesmente pelas organizações sociopolíticas, mas através da etnia, da religião, do

gênero, etc. Isto tem suscitado uma crítica forte à cultura dominante23 e uma afirmação de

valores e padrões de comportamento recuperados do passado. “É sob o impacto destas

19 Cf. PACE E., Religião e Globalização, in: ORO A P./STEIL C.A(orgs.), Globalização e Religião, Petrópolis, 1997, pg.25-42.20 Cf. LIBÂNIO J.B., Fascínio do Sagrado, Belo Horizonte (mimeo), 1999, p. 5.21 Cf. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade, op. cit., p. 47.22 É por esta razão que há autores que se perguntam ou negam que se trate propriamente de religião. Cf.: ANTONIAZZI A., O Sagrado e as Religiões no limiar do terceiro milênio, in: CALIMAN C.(org.), A Sedução do Sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, Petrópolis, 2a. ed., 1999, pg. 13: “Não é a busca de Deus ou da verdade que anima estas experiências religiosas; é a satisfação das necessidades pessoais”.23 Que Ladrière em virtude da hegemonia da ciência chama de “ Hiper-racionalismo”. Cf. LADRIÈRE J., Les enjeux de la rationalité: le défi de la science et de la technologie aux cultures , Paris: Aubier-Montaigne/UNESCO, 1977, p. 185.

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inseguranças que se firmam os diversos “muros protetores” e as seduções dos absolutismos e

dos fundamentalismos24”.

Por outro lado, para Habermas25, neste contexto faz-se claro que a configuração

estrutural da sociedade, o Estado de Direito Democrático e suas instituições, radica-se

unicamente numa razão humana comum e desta forma se legitima através de argumentos que

não dependem de tradições religiosas26. É isto que se denomina a “sociedade secular” em que

tanto as estruturas jurídico-sociais como os valores e as criações culturais não se articulam

mais a partir de um horizonte religioso.

Numa palavra, esta saída da religião da vida pública faz com que a configuração das

instituições que regem a vida coletiva não se subordine mais à autoridade religiosa. Isto

significa dizer que nossas sociedades se tornaram essencialmente pluralistas, marcadas por

diferentes interpretações da realidade que emergiram de diferentes situações, e o indivíduo se

sente livre para compor seu universo de crenças em nível privado de acordo com suas

experiências, sua história, seus desejos, suas aspirações e interrogações27.

O pluralismo, hoje cada vez mais visto como valor irrenunciável, provoca a ruptura

com um universo religioso monolítico o que implica a perda de hegemonia da visão religiosa

da realidade. Isto abre espaço em primeiro lugar para uma religiosidade difusa28 que

frequentemente se revela ambígua e indeterminada29: há hoje, como diz Hervier-Léger, a

religião por toda parte30. Daí a enorme complexidade que marca hoje as diferentes

experiências religiosas e muitas vezes sua grande vitalidade e dinamismo. No entanto, umas

das consequências desta nova situação é que a vida social enquanto tal se configura sem

referência religiosa explícita, ou seja, a religião não é mais a força estruturante da organização

social e isto gera um vazio espiritual na vida das pessoas.

A religião se configura agora como uma busca pessoal na esfera do privado, do

afetivo, do familiar, separada da vida pública o que se contrapõe fortemente à concepção da

tradição que via o sagrado em tudo: a religião era um modo de vida que englobava toda a 24 Cf. TEIXEIRA F., Cristianismo e Diálogo Inter-Religioso, São Paulo: Fonte Editorial, 2014, p.36.25 Cf. HABERMAS J., Entre Naturalismo e Religião. Estudos Filosóficos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.26 Para A. Giddens, em nosso contexto societário, a tradição não perdeu sua razão de ser, mas foi radicalmente re-interpretada a começar pela fato de que ela não é mais considerada inquestionável uma posição que também J. Habermas defende. Cf. GIDDENS A., Para além da esquerda e da direita, São Paulo: Unesp, 1996, p. 13, 99.27 Cf. FRANÇA MIRANDA M. de, Existência cristã hoje, São Paulo: Loyola, 2005, p. 97 e ss. 28 Cf. BENEDETTI L.R., Entre a crença coletiva e a experiência individual: renascimento da religião, in: FABRI dos ANJOS M. (org.), Sob o Fogo do Espírito, São Paulo, 1998, p. 63.29 Cf. FRANÇA MIRANDA M. de, Existência cristã hoje, op. cit., p. 150: “o indivíduo moderno, marcado pela cultura individualista e pela mentalidade utilitarista… busca na religião o que a cultura atual não lhe oferece, movido principialmente pelo seu próprio bem-estar”.30 Cf. HERVEU-LÉGER D., La Religion en mouvement. Le pélerin et le converti, Paris: Flammarion, 1999, p. 22.

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existência humana, agora ela é excluída da vida pública numa sociedade organizada em torno

da produção e do consumo de bens31 profundamente marcada por injustiças. Neste contexto a

comunidade de fé emerge, como diz F. Teixeira, como “o espaço essencial de reconstituição

do tecido humano e social32” e a “experiência” pessoal e comunitária de Deus ocupa cada vez

mais um lugar decisivo e determinante na vida religiosa que deixa os vínculos com as

instituições religiosas em segundo plano como também a elaboração teológica da religião.

“A religião se vê, assim, situada na esfera das preferências subjetivas, na esfera íntima

e privada da pessoa, fonte de sentido da vida individual, fruto de opções que não necessitam

de qualquer justificação racional. Portanto, não importa a verdade, mas a busca de algo que

possa dar sentido à vida individual, corresponda aos sentimentos de cada um e possa

satisfazer a suas aspirações33”. Cada um procura seu próprio caminho a seu modo e, muitas

vezes, em nossas sociedades de tradição cristã a saída é encontrada fora do cristianismo.

Como diz Congar, “em parte, por reação contra a impessoalidade quase insuportável

da urbanização demente e de organizações suprarracionais e programadas, os homens

procuram agrupamentos livres e calorosos, onde possam estar juntos sem obrigatoriedade34”.

No plano religioso, para ele, isto vai provocar o surgimento de grupos autogerados com muita

espontaneidade e diversidade muito visível no que diz respeito às orações, às crenças e ao

estilo de vida. Pode-se certamente dizer que tudo isto conduziu a uma vivência religiosa de

caráter imediato, espontâneo, concreto, não conceitualizado, capaz de comunicar uma

experiência muito atraente e acessível.

Mas há, também, em nossas sociedades a perda de referenciais últimos35 sem os quais

é impossível tomar posição séria em relação às questões fundamentais da vida humana : a

questão do mal, do sentido radical da vida, da salvação. Os seres humanos se alimentam

também de significados, desejos e sentidos36 e isto se torna mais premente num mundo que

renunciou a qualquer sentido englobante37, onde a dúvida deixou de ser um esforço filosófico

e se transformou num destino da civilização38. Neste contexto a saída para muitos é um 31 Cf. WALLERSTEIN L, The rise and future demise of World Capitalist System: Conception for comparative analysis, in: The Capitalist World Economy, Cambridge, 1979. PORTO-GONÇALVES C. W., A globalização da natureza e a natureza da globalização, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.32 Cf. TEIXEIRA F., Cristianismo e Diálogo Inter-Religioso, op. cit., p. 28.33 Cf. OLIVEIRA M. A., A religião na sociedade urbana e pluralista, op. cit., p. 12.34 Cf. CONGAR Y., “Ele é o Senhor e dá a vida”, São Paulo: Paulinas, 2005, p. 200.35 Cf. BOFF L., O Espírito Santo. Fogo interior, doador de vida e Pai dos pobres, Petrópolis: Vozes, 2013, p. 19-22.36 Cf. BATAILLE G., Teoria da religião, São Paulo, 1973, p. 21.37 Numa pesquisa realizada numa favela do Rio de Janeiro, o historiador M. Alvito procurou mostrar como os cultos evangélicos são fundamentais na reconstrução do significado “de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal”. Cf. ALVITO M., As cores da Acari. Uma favela carioca, Rio de Janeiro: FGV (2001) 179.38 Cf. FRAIJÓ M., Fragmentos de esperança: notas para uma filosofia da religião, São Paulo, 1999, p. 52.

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sincretismo subjetivo. “A religião enquanto “teia de sentidos” firma-se com vigor nesse tempo

de incertezas e inseguranças... O religioso aparece, assim, como... um “escudo contra o terror”

da carência de significado39”.

Abre-se, desta forma, o espaço para uma espécie de subjetivação da fé que leva,

muitas vezes, a pessoa a construir seu mundo religioso a partir de elementos de diferente

procedência de acordo com preferências puramente subjetivas sem pertença a qualquer

instituição eclesial ou com passagem permanente de uma instituição a outra ou mesmo com

adesão parcial a uma delas. Com isto a religião tende a se transformar numa convicção

interior, invisível40, com forte insistência na dimensão emocional/afetiva/festiva separando

fortemente o ato de crer e seu conteúdo que se torna irrelevante. Vai-se impondo a concepção

de religião como um processo terapêutico pela busca de curas e de soluções para problemas

individuais, familiares e profissionais e sua configuração ocorre em formas muito

diferenciadas. Como nos disse Antoniazzi41:

“A religião atual....Não é tanto servir a Deus, quanto, em certo sentido, servir-se de

Deus. Ela se transforma num lugar de solução de problemas, de cura dos nossos males, de

consolo ou compensação”.

2. As estruturas antropológicas fundamentais

A espiritualidade é em primeiro lugar um componente fundamental da constituição

ontológica do ser humano. Assim, antes de qualquer consideração sobre a dimensão religiosa

da espiritualidade e suas diferentes formas de expressão na história faz-se necessário

compreendê-la em si mesma em seu significado e seu lugar na configuração do ser pessoal.

2.1 O ser humano enquanto ser corporal-orgânico-espiritual

As ciências empíricas nos revelam o ser humano como aquele ente em que os três

campos fundamentais do ser real se encontram, ou seja, o mundo objetivo, o mundo subjetivo

e o mundo intersubjetivo42. Trata-se numa reflexão filosófica sobre o ser humano da

reconstrução sistemático-conceptual destas categorias e esta começa com considerações de

ordem descritiva sobre o comportamento do ser humano a partir dos dados fornecidos pelas

ciências.

39 Cf. TEIXEIRA F., Cristianismo e Diálogo Inter-Religioso, op. cit., p. 14.40 Cf. LUCKMANN Th., A religião invisível, São Paulo: Olho D’Água, 2014.41 Cf. ANTONIAZZI A., op. cit., p. 16. 42 Cf. a respeito da distinção dos mundos: HÖSLE V., Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der Philosophie. Transzendentalpragmatik, Letzbegründung, Ethik, München: Beck, 1990, p. 213 e ss.

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Esta reconstrução é articulada aqui a partir do quadro teórico de uma filosofia que

assume como tarefa articular uma compreensão abrangente da realidade e que se propõe

explicitar as conexões entre todos os seus componentes temáticos, portanto, uma forma de

conhecimento de caráter universal, abrangente43. Compreender, entender, explicar, articular

algo é a tarefa específica de todo empreendimento teórico, ou seja, trata-se numa teoria de

exprimir a inteligibilidade de algo o que implica sempre algo conceitual linguisticamente

articulado. Por isto, parte-se numa teoria filosófica da explicitação das pressuposições de toda

teoria, ou seja, da linguagem (toda teoria se articula numa linguagem específica)e seus

componentes, que são as estruturas fundamentais de expressão de tudo o que se pensa. Aqui

se distinguem fundamentalmente dois tipos de estruturas: as formais (lógicas e matemáticas) e

as de conteúdo (semânticas e ontológicas). Elas constituem a dimensão estrutural fundamental

e sem elas nada se pode compreender, tudo permanece vago e indeterminado.

Uma análise destas estruturas torna possível uma crítica à ontologia tradicional44

correspondente à semântica composicional, cuja tese básica é que o significado de uma

sentença é o resultado da composição dos termos sub-sentenciais. A ontologia que

corresponde a esta semântica é a ontologia substancialista, cuja afirmação básica é que a

categoria de “substância” é categoria fundamental para entender qualquer entidade: o mundo

é o conjunto de objetos com suas propriedade e relações. A crítica consiste fundamentalmente

em mostrar que esta categoria, eliminados todos os seus atributos, é ininteligível.

Esta crítica abre o espaço para a articulação de uma proposta de uma semântica

alternativa, a semântica contextual baseada no “princípio do contexto de Frege” e,

consequentemente, uma ontologia alternativa, uma ontologia contextual que tem na categoria

de “Fato” sua única categoria ontológica em nível mais fundamental45. Fato é tudo o que é

expresso numa sentença e está, existe ou acontece e, portanto, possui aqui um significado

abrangente que não se limita ao empírico. Neste sentido, toda entidade que é um componente

do mundo em seu todo constitui um fato. Os fatos se diferenciam entre fatos simples e fatos

complexos. Na realidade, não ocorrem fatos simples, mas só fatos complexos o que Puntel

denomina “configurações” como é o caso de entidades concretas como por exemplo um

animal, mas, sobretudo, um ser humano.

43 Cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser. Um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008, p. 1.44 Cf. OLIVEIRA M. A., A ontologia em debate no pensamento contemporâneo, São Paulo: Paulus, 2014, p. 217-243. 45 Cf. PUNTEL L. B., O Conceito de categoria ontológica: um novo enfoque, in: Kriterion, n. 104 (2001)23.

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Por esta razão, a substância da tradição não é aqui simplesmente substituída

diretamente por um fato simples, mas por uma configuração que é um fato complexo que

pressupõe uma pluralidade de elementos, eles todos igualmente fatos simples ou complexos.

Trata-se em nosso caso específico de pensar o indivíduo humano enquanto um fato altamente

complexo, portanto, uma configuração de fatos heterogêneos simples e complexos, uma tese

que de antemão se contrapõe a todas as visões unilaterais do ser humano como os diferentes

tipos de monismos ou dos dualismos que se manifestam com muita força no debate sobre a

espiritualidade46. Assim, a tarefa filosófica neste nível teórico consiste basicamente em

esclarecer a questão de como deve ser concebida a configuração que constitui o indivíduo

humano.

Para Puntel o melhor meio de se chegar a uma concepção do que seja a configuração é

”considerá-la como uma determinação mais precisa do conceito bem geral de unidade.

Indiscutivelmente existe uma quantidade muito grande de formas e graus de unidade, de

modo correspondente uma quantidade muito grande de configurações47”, por exemplo, um

amontoado, um conglomerado, uma teoria científica, um ser orgânico, um ser pessoal. Como

pensar o ser pessoal como uma configuração de fatos interconectados? Como pensar a

unidade específica dos fatos que o constituem? Quais são basicamente estes fatos, ou seja, os

elementos que constituem o indivíduo humano?

O ser humano se capta a si mesmo como uma unidade altamente complexa. Ele se

mostra antes de tudo como uma realidade material-orgânica e enquanto tal como uma parte da

natureza, o cosmo é seu lugar insuperável. Ele emerge no mundo, é um fenômeno entre outros

fenômenos integrantes do mundo e de sua evolução, portanto, um ser natural, um corpo

orgânico, caracterizado por uma determinada configuração corporal-biológica.

O ser humano possui sem dúvida a capacidade de se pôr de alguma forma frente a seu

corpo que se pode fazer, desta forma, objeto de suas intervenções. É isto que justifica a

expressão: o ser humano tem corpo. Mas originariamente ele não é algo que se contrapõe a

nós, mas que nós mesmos somos: o ser humano é corpo48, assumido na interioridade do

propriamente humano. Enquanto tal, o corpo constitui condição essencial de possibilidade

tanto da consciência e da autoconsciência como da intersubjetividade. Portanto, a

corporalidade é mediação irrecusável das relações dos seres humanos entre si e dos seres

humanos com o mundo: a corporalidade é o próprio homem em seu envolvimento no mundo

46 Cf. AQUINO JÚNIOR F. de, Viver segundo o espírito de Jesus Cristo, op. cit., p. 17-18.47 Cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser, op. Cit., p. 353.48 Cf. MARCEL G., Être et Avoir, Paris: Aubier, 1935.

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da alteridade49. Por isto se justifica a afirmação: o ser humano é o seu corpo, sua

corporalidade é fator essencial de seu ser, seu corpo é o corpo orgânico de um sujeito, que

está no mundo enquanto corporal e por isto pode intervir na natureza para transformá-la.

Desta forma ele experimenta sua transcendência sobre a natureza como igualmente sua

dependência dela para a satisfação de suas necessidades naturais. O ser humano pertence,

assim, ao mundo objetivo50 e é portador das qualidades que caracterizam os seres materiais e

das estruturas próprias dos organismos51. Numa palavra, é a mesma vida que através de toda a

natureza orgânica se eleva até o ser humano. O ser vivo se caracteriza basicamente por sua

abertura ao outro de si52, ele não pode assegurar sua autopreservação no ser sem aceitar o

outro e operar sobre ele. Todos os seus órgãos estão a serviço da sobrevivência do todo o que

o revela como um sistema autorreferencial.

Seu espaço de ação, no entanto, é restrito a este meio-ambiente, eles não podem ir

além de suas fronteiras e isto define sua constituição ontológica. Tudo isto constitui a

dimensão psicofísica do ser humano através de que o ser humano se situa na esfera da

particularidade do espaço-tempo do mundo natural. Por esta razão Puntel chama, numa

consideração modal, o fator corporalidade como um fator relativamente ou historicamente

essencial (necessário) pelo fato de ser um fator que nunca pode faltar, mas que é dado

exclusivamente com uma concretização, por exemplo, ter corpo pressupõe um determinado

lugar, um determinado tempo etc.53

No entanto, uma consideração atenta de seu comportamento nos pode revelar que

momentos decisivos deste comportamento não são simplesmente explicáveis através de

estruturas corporais ou biológicas. As operações do ser humano revelam uma estrutura

singular e justamente por esta razão os antropólogos do século XX destacaram o que eles

nomearam de sua “posição excêntrica54": a capacidade que ele possui de se distanciar de tudo

e de ampliar com isto as possibilidades que lhe são abertas. Suas perguntas, que se estendem

em princípio a todos os domínios, manifestam que sua vida não se restringe simplesmente ao

49 Cf. OLIVEIRA M. A de, Filosofia Transcendental e Religião. Ensaio sobre a Filosofia da Religião em Karl Rahner, São Paulo: Loyola, 1984, p. 235.50 Cf. MERLEAU-PONTY M., Phénoménologie de la perception, Paris: Gallimard, 1945, p. 171: “Le corps est notre moyen général d´avoir un monde”.51 Cf. JONAS H., Organismus und Freiheit, Göttingen, 1973; Theorie des Organismus und Sonderart des Menschen, in: Philosophische Untesuchungen und metaphysische Vermutungen, Frankfurt am Main/ Leipzig: Insel Verlag, 1992, p. 9-100.52 Cf. ARISTÓTELES, De Anima III, 2.53 Cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser, op. cit., p. 364.54 Cf. PLESSNER H., Lachen und Weinen, 3a. Ed., Bern/München, 1961. SCHELER M., Die Stellung des Menschen im Kosmos, 11a. ed., Bonn, 1988. VOSENKUHL W., (ed.), MÜLLER M., Philosophische Anthropologie, Freiburg/München: Karl Alber, 1974, p. 70 e ss. OLIVEIRA M. A de, Filosofia transcendental e Religião. Ensaio sobre a filosofia da religião em Karl Rahner, São Paulo: Loyola, 1984, p. 206.

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imediato, pois ele pode em princípio ultrapassar a imediatidade de suas intuições por pôr tudo

em questão e com isto elevar-se acima de tudo numa reflexão radical sobre tudo. Por isto é

aberto a todo e qualquer estímulo, tudo pode ter significação para ele.

Assim, por exemplo, para o animal só algumas coisas de acordo com a espécie se

manifestam: as que lhe são úteis ou que o prejudicam. O ser humano ao contrário é a instância

de expressabilidade de tudo55. Desta forma ele é capaz de desligar-se, “descolar-se” de tudo

inclusive de si mesmo, de suas representações, motivações, seus impulsos, padrões de

comportamento etc., de pôr uma diferença entre si mesmo e tudo mais enquanto conteúdo de

suas diferentes ações e neste sentido se contrapor a tudo, estar sempre para além de tudo,

inclusive para além de si mesmo enquanto este ser finito e limitado.

É a partir deste quadro teórico que se pode compreender que a pertença do ser humano

à esfera do biológico é constitutiva, mas de certo modo paradoxal: por um lado, uma

determinação biológica é um fator constitutivo de seu ser como de qualquer ser orgânico; por

outro, ele não se identifica pura e simplesmente com esta determinação, pois pela pergunta

transcende a esfera do imediato e se aparta de tudo, o que revela uma característica que não é

encontrável no biológico, pois seu alcance intencional é absolutamente universal. Esta é a

razão que nos permite afirmar que com isto se revela algo especificamente humano. Os

fatores constituintes do espírito são o intelecto, a vontade e a consciência /autoconsciência

que por isto são os fatores mais importantes entre os fatores absolutamente essenciais

(necessários) que constituem o ser pessoal.

O ser humano emerge, então, como o ser da abertura ao ser em seu todo, como o ser

da totalidade56, que encerra simplesmente tudo, o que implica a negação de qualquer limite e

exterioridade57: o ser da subjetividade se revela coextensivo com o ser em seu todo, inserido

no todo, determinado pelo todo, mas em princípio aberto a este todo por ser a instância que

expressa o todo. Numa palavra, ele emerge como a instância da expressabilidade universal,

portanto, a instância que tudo situa na esfera do sentido e por isto pode distanciar-se de tudo

pela reflexão crítica. Sem dúvida, enquanto sujeitos constitutivamente marcados pela

particularidade nos estamos sempre numa “situação determinada.

55 Cf. MÜLLER M., Philosophische Anthropologie, op. Cit., p. 77 e ss.56 Esta é uma tese básica da tradição da filosofia ocidental, embora aqui como abertura restrita aos entes. Assim, Aristóteles afirma do espírito ou do pensamento que ele de certo modo é tudo. Cf. De anima III. 8. 431 b 21: ή ψυχή τά όντα πω̃ς έ̀στι πάντα.E que o sábio sabe tudo. Met. A 2 982 a 8. Cf. a respeito: MÜLLER M., Philosophische Anthropologie, op. Cit., p. 43 e ss. Para Leibniz o ser humano é uma mônada, cuja especificidade consiste em espelhar ou representar o todo. Cf. LEIBNIZ G.W., Monadologie, Französisch/Deutsch, Stuttgart: Reclam, 1998, 62, 63, 83.57 Cf. JOLIF J. Y., op. cit., p. 147: “…havendo Totalidade, não existe outro, pois tudo o que é afirmado está contido no seu próprio interior”.

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Compete, então, ao sujeito enquanto espírito, na linguagem de Puntel, uma

coextensionalidade intencional com o universo ou com o ser em seu todo58, não só com o

universo existente, pois a potencialidade do espírito vai além do universo existente na medida

em que ela inclui todas as possibilidades de infinitos outros universos não realizados59

precisamente enquanto são inteligíveis. O animal não tem a ver com a totalidade, mas

somente com aquilo que tem a ver com sua espécie de acordo com sua organização

específica60.

Pensar, então, significa sempre pensar tudo (πάντα νοει̃ν): pelo pensar estamos em

princípio abertos a tudo, pois tudo é em princípio pensável, inteligível, cognoscível,

expressável61 assim que se deve dizer que o ser em seu todo é simplesmente dado com a

estrutura e o estatuto ontológico do pensamento humano62. O pensar é sempre orientado para a

totalidade, pois tudo é pensável, o horizonte do pensamento é ilimitado. Pensar significa

integrar e considerar algo no horizonte do todo, no horizonte da totalidade. Numa palavra, a

coextensividade intencional com o ser enquanto tal é um constituinte fundamental do espírito

humano e enquanto tal é uma dimensão do ser, do mundo abrangente.

Como pensar, então, a unidade que caracteriza esta forma de configuração que é o ser

humano? Esta configuração não é nem um conjunto, nem uma soma, nem uma conjunção,

mas uma totalidade singular caracterizada por um “ponto de unidade”, ou seja, um centro ou

um cerne63. Trata-se, então, de um laço de união, de um fator configurador que não só está

presente em toda parte, abrangendo todos os elementos, mas também possui um

direcionamento bem determinado justamente a partir de um ponto que constitui o início da

unidade e mediante o qual ela é possibilitada e sustentada. Este ponto se articula no dizer

“eu”.

Normalmente se fala de um ser humano como um ente espiritual espaciotemporal ou

expressões semelhantes para exprimir toda a complexidade do ser humano o que significa

dizer que o ser humano é uma configuração de muitos fatos. Quando se consideram apenas os

fatores materiais entre os componentes que constituem o ser humano, o ponto de unidade se

restringe ao imediatamente material ou físico. Quando se introduz o grande complexo

58 Cf. PUNTEL L. B., Kann es gelingen, innerhalb eines Systems als Raum und Zeit zu einer “Gesamtschau der Dinge” zu gelangen?, München (mimeo), 2002, p.10. LIMA VAZ H. C. de, Antropologia Filosófica I, op. cit., p. 223: “…a universalidade do espírito é, no homem, uma universalidade intencional, o que denota a finitude do homem como ser entre os seres, ou como ser situado. No homem o espírito é formalmente idêntico ao ser universal, sendo capaz de pensá-lo. Mas é realmente distinto dos seres na sua perfeição existencial”.....59 Cf. PLANTING A, The nature of necessity, 2a. ed., Oxford: Clarendon Press, 1982.60 Cf. SCHERER G., op. Cit., p. 72.61 Cf. MÜLLER M., Philosophische Anthropologie, op. cit., p. 49 e ss.62 Cf. PUNTEL L. B., op. cit. p. 29. Cf. HEIDEGGER M., Sein und Zeit, op. cit., p. 14.63 Cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser, op. cit., p. 365 e ss.

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biológico, o ponto de unidade se estende ao meio ambiente, pois plantas e animais possuem

um determinado “meio ambiente”. A peculiaridade própria ao ser humano é que ele enquanto

ente corporal/espiritual é o único ente a possuir um “mundo” no sentido irrestrito. É neste

sentido que o ser humano enquanto ser espiritual é intencionalmente coextensivo com

simplesmente tudo, com o universo, com o ser em seu todo o que significa dizer que intelecto,

vontade e consciência/autoconsciência são coextensivos com o universo.

Ora, a configuração que constitui o indivíduo humano enquanto ser pessoal é em

primeiro lugar o ponto de intersecção de todos estes fatores que por isto se encontram todos

em um ou dentro de ou como um ponto em que consiste a unidade da pessoa e que

precisamente se expressa no dizer eu, ou seja, o dizer eu é a expressão deste ponto que

constitui essa unidade original. Este ponto de unidade é um ponto original no sentido de que é

um “ponto sistemático”, ou seja, ele se situa a si próprio no sistema enquanto se situa em

relação a todos os outros pontos do sistema e, assim, em relação ao sistema como um todo.

Pedras, animais, por exemplo, não podem situar-se a si mesmos em relação à teoria da

relatividade de Einstein enquanto o ser humano possui a capacidade de elevar sua própria

situalidade no sistema à condição de auto-situalidade no sistema uma vez que ele é

coextensionalidade intencional com o sistema, isto é, com o Ser em seu todo. Desta forma, o

fator configurador que caracteriza o ser humano enquanto uma configuração é precisamente

este lugar intencional-sistemático.

2.2 A coextensividade com o ser em seu todo implica abertura ao Ser enquanto tal

e a Deus

A pergunta que agora se põe é: como compreender a relação mesma entre as duas

dimensões que aqui estão em jogo: a dimensão teórica e a dimensão do mundo? A conexão

entre elas só é possível se entre ambas as dimensões for pressuposto algo fundamental em

comum, uma unidade que possibilite a conjunção entre ambas.

Trata-se aqui, então, de tematizar explicitamente a relação mesma entre as duas

grandes dimensões antes consideradas, a dimensão estrutural e a dimensão do mundo e não

apenas os relatos que se relacionam, ou seja, trata-se de pensar a esfera que abrange as duas e

torna esta interrelação possível e que é sempre pressuposta quando se fala dos dois relata.

Com isto perde radicalmente a centralidade a “relação sujeito/objeto” que foi fundamental em

todas as variantes do pensamento moderno. Esta é a tarefa última e mas importante da

filosofia sistemático-estrutural, a articulação de uma Teoria do Ser entendido como esta

unidade abrangente pressuposta.

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Precisamente esta meta-dimensão abrangente é denominada por Puntel a dimensão do

Ser Primordial (para distinguir do emprego da palavra ser para designar o que foi chamado de

“mundo” enquanto a interconexão de todos os domínios do mundo objetivo) como a

interconexão absolutamente universal ou a interconexão de todas as interconexões, a

conectividade absolutamente abrangente. Afirmar que o espírito humano é coextensivo ao Ser

enquanto tal é dizer que ele já sempre atingiu o ponto de chegada desse processo, ou seja, que

ele é em si mesmo essa transcendência ao Ser em seu todo e enquanto tal.

Compete, então, ao sujeito enquanto ser espiritual na linguagem de Puntel uma

coextensividade intencional com o universo irrestrito do discurso ou com o Ser64, com aquele

“todo que abrange simplesmente tudo65”. Nesse sentido “o ser humano é aquela “coisa” (no)

do mundo que se distingue por ser intencionalmente coextensiva com o mundo todo, com o

universo66”.

A explicação da dimensão originária do Ser ocorre para Puntel em duas fases: a)

Enquanto pergunta pelo Ser enquanto tal, isto é, pelas características do Ser enquanto tal; b) A

pergunta pelo Ser no todo, ou seja, pergunta pelo Ser levando em consideração que a

dimensão originária inclui tudo a que de alguma forma compete ser67.

No nosso contexto aqui importa considerar a questão da compreensão da totalidade

enquanto tal: como entender o Ser em seu todo? O Ser primordial é a dimensão que abarca

todos os entes, como interconexão de todos os entes. Então, como entender o Ser em sua

relação com os entes e a que consequências conduz uma consideração adequada desta

relação? De onde pode o filósofo encontrar inspiração para o esclarecimento desta

problemática? O peso central do argumento de Puntel é a tese de que as modalidades

(necessidade, possibilidade, contingência)68 são elementos irrenunciáveis de uma teoria

filosófica e de modo muito especial na questão central de uma teoria do Ser em seu todo.

O ponto de partida de sua proposta reflexiva é a tese hoje muito divulgada, inclusive

entre cientistas e filósofos muitas vezes explicitamente, no mais das vezes implicitamente, do

“onicontingentismo”: “tudo é contingente”. Com “tudo” é compreendido ou pressuposto o

que a filosofia sistemático-estrutural denomina Ser em seu todo. Neste caso , teríamos que

64 Cf. PUNTEL L. B., A Totalidade do Ser, o Absoluto e o tema “Deus”: um capítulo de uma nova metafísica, in: IMAGUIRE G./ALMEIDA C. L. S. de/OLIVEIRA M. A. de (orgs.), Metafísica Contemporânea, op. Cit., p. 191-222. LIMA VAZ H. C. de, Antropologia Filosófica I, São Paulo: Loyola, 1991, p. 223: “… a universalidade do espírito é, no homem, uma universalidade intencional, o que denota a finitude do homem como ser entre os seres, ou como ser situado. No homem o espírito é formalmente idêntico ao ser universal, sendo capaz de pensá-lo. Mas é realmente distinto dos seres na sua perfeição existencial”.....65 Cf. PUNTEL L. B., A Totalidade do Ser, op. Cit., p. 200.66 Cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser, op. Cit., p. 468.67 Cf. PUNTEL L. B, Estrutura e Ser, op. Cit., , p. 559.68 Cf. PUNTEL L. B, Estrutura e Ser, op. Cit., , p. 587.

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afirmar que seria também contingente o Ser enquanto tal e em seu todo. O argumento de

refutação desta tese, ou seja, o procedimento que tem como resultado a afirmação positiva da

tese contraposta, a tese de que nem tudo é contingente, é uma “prova indireta” de acordo com

a figura do “modus tollens”: “se p, então q; ora, se não q, então não p69”. O cerne da

demonstração pode exprimir-se segundo L. B. Puntel assim: “Se tudo (o Ser como tal e em

seu todo) fosse contingente, então, o nada absoluto (nihilum absolutum) seria possível. Ora, o

nada absoluto não é possível. Logo, nem tudo é contingente70”.

Sendo que entre contingência e necessidade não pode haver um terceiro segue-se

daqui a exigência de aceitação de uma dimensão absolutamente necessária do Ser. A prova

para Puntel é uma argumentação altamente abstrata que tematiza unicamente as relações

conceituais-modais no campo da dimensão do Ser sem fazer quaisquer pressuposições fora do

campo das modalidades puras. O argumento articula, assim, em primeiro lugar, uma

consequência absolutamente fundamental da tese do onicontingentismo: admitir a tese de que

tudo é contingente implica admitir a possibilidade do “nada absoluto”, ou seja, isso significa

dizer que se o Ser como tal e em seu todo fosse contingente, então, poderia ter sido que nem o

Ser enquanto tal nem qualquer ente viesse a ser. O objetivo do argumento consiste antes de

tudo em mostrar que a tese da contingência de tudo não é capaz de escapar dessa implicação.

É de importância decisiva que se considere o fato de que o argumento aqui se restringe

estritamente à modalidade “possibilidade”: “então, o nada absoluto seria possível”. A pura

possibilidade do nada absoluto faz revelar-se a contradição ínsita na tese de que tudo é

contingente. Com isto se mostra que a tese onicontingentista implica uma consequência

absurda e é, por esta razão, inadmissível de onde se segue imediatamente que não se pode

entender o Ser em seu todo sem afirmar uma dimensão absolutamente necessária. Articula-se,

assim, a tese da dupla dimensionalidade da dimensão do Ser que constitui o ponto de partida

para a articulação de uma teoria abrangente do Ser.

O argumento modal nos conduz à afirmação necessária de uma dimensão necessária

do Ser primordial que é “absolutamente” necessária. Absoluto significa independência

completa de algo distinto de si, não condicionalidade. Ora isso é derivável do conceito de

necessário. “Com efeito, o Ser necessário não pode a partir de si mesmo em nenhuma

circunstância não ser, sendo, assim, totalmente independente do que quer que seja. Mas disto

se segue que o Ser necessário não está e não pode estar condicionado por algo distinto, não

69 Cf. PUNTEL L.B, Ser e Deus, op. Cit., p. 214 e ss. 70 Cf. PUNTEL L. B., Ser e Deus, op. Cit., p. 215.

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sendo, assim, relativo a algo diferente. Mas é precisamente isso que o conceito de absoluto

articula71”.

Numa palavra, a experiência da contingência radical e a exigência de inteligibilidade

são a mediação para afirmação de uma dimensão absolutamente necessária como condição de

possibilidade para a compreensão do Ser como tal e em seu todo72. O Ser Primordial é Ser em

plenitude, o ponto de chegada da concepção plenamente desdobrada do Ser, Ser em sentido

pleno.

2.3. Como interpretar filosoficamente o fenômeno religioso no horizonte da

constituição ontológica do ser humano?

A religião tem a ver com a questão decisiva para a inteligibilidade da realidade em seu

todo e por isto está aqui em jogo o sentido da vida humana e seu destino o que não significa

afirmar que o ser humano não possa viver sem pôr explicitamente esta questão. Com isso se

manifestou que a forma adequada de se falar do Ser absolutamente necessário e

consequentemente da religião é uma concepção abrangente da realidade: o Ser absolutamente

necessário emerge como o ponto final de uma teoria filosófica do Ser em si mesmo e em seu

todo.

Numa palavra, o fenômeno religioso só é compreensível a partir da constitutividade

estrutural do ser humano73 e da compreensão do Ser em si mesmo e em seu todo. Isto

precisamente, como diz Pannenberg, em virtude da fala sobre Deus que é absolutamente

central na religião, pois onde Deus e a Totalidade do real não são pensados em seu pertencer

mútuo e no apontar um para o outro a fala sobre Deus permanece uma palavra vazia74.

Enquanto ser inteligente, prático e estético, o ser humano é radicalmente relacionado à

dimensão absolutamente necessária.

71 Cf. PUNTEL L. B., Ser e Deus, op. Cit., p. 218.72 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendência: Experiência histórica e interpretação filosófico-teológica, in: Síntese Nova Fase, v. 19, n. 59 (1992)448: “...concluamos que a evidente finitude do nosso espírito, situado na contingência do Mundo e da História, só pode compor-se com a sua também evidente infinitude intencional, atestada no pensamento do Ser, se aceitarmos obedecer à exigência lógica e existencial de afirmar o Transcendente como Absoluto do ser”.73 Cf. FRANÇA MIRANDA M. de, Religiões e promoção da justiça, in: ULMANN R. A (org.) Consecratio Mundi. Festschrift em homenagem a Urbano Zilles, Porto Alegre: Edipucrs, 1998, p.148: “Portanto a experiência básica do ser humano é que fundamenta e determina sua religiosidade. Ao acolher o transcendente que lhe oferece sentido e salvação, realizando tal acolhimento na profissão de fé e na vida, vive ele a religião como atitude fundamental de sua existência”.74 Cf. PANNENBERG W., Filosofia e Teologia. Tensões e convergências de uma busca em comum, São Paulo: Paulinas, 2008, p. 13 e ss.

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Esta é a razão porque suas perguntas, seus conhecimentos, suas atitudes existenciais,

suas tomadas de posição enquanto humanos são essencialmente relacionados a tudo, portanto,

relacionados à dimensão absolutamente necessária que assim emerge como o ponto de

referência fundamental da intencionalidade espiritual humana75. Essa é a razão porque em

princípio a religião perpassa todas as dimensões da vida humana e interpreta toda a realidade

contingente a partir de sua relação ao ser absolutamente necessário.

Nesse caso, não tem sentido falar sobre o ser humano e o cosmos sem referência

última à dimensão absolutamente necessária. Isto significa dizer, como o diz Lima Vaz76, que

“a figura do absoluto, multiforme e única, habita o universo intencional do homem e

acompanha como uma sombra todas as suas formas de auto-expressão, da sua auto-posição

como sujeito pela qual ele se faz presente entre os seres”.

Assim, para Puntel a explicação maior da dimensão absolutamente necessária consiste

em mostrar que ela é determinada enquanto Ser pessoal espiritual absolutamente necessário,

ou seja, como um ser dotado de inteligência, de vontade e liberdade, portanto, como um ser

espiritual capaz de conhecer e amar. Desta forma, ela não pode ser entendida como uma força

cega que atua por necessidade. Não se trata de um ente a mais nem um ente supremo ou

primeiro de modo que está eliminada de antemão a possibilidade de interpretar esta posição

como uma variante da “onto-teologia”.

Isto é decisivo para pensar a relação fundamental entre as duas dimensões. A

dimensão absolutamente necessária pensada como Ser espiritual ou pessoal absolutamente

necessário deve ser pensada mais precisamente como liberdade absoluta de tal modo que a

questão aqui é de como deve ser compreendida a relação entre o Ser livre absolutamente

necessário e a dimensão contingente dos entes. Foi anteriormente afirmado que a dimensão

contingente é totalmente dependente da dimensão absolutamente necessária. Isto significa

dizer que os entes contingentes não são necessariamente, eles não são a partir de si mesmos,

ou seja, o fato de que “eles são” não é explicável a partir deles mesmos. Se os entes

contingentes não vieram a ser a partir de si mesmos ou através de si mesmos, eles vieram a ser

a partir de outro fator que só pode ser de acordo com tudo o que já foi dito o Ser

absolutamente necessário.

75 A respeito da interpretação agostiniana desta tese fundamental da tradição metafísica cf. LIMA VAZ H. C.de, Mística e Política: a experiência mística na tradição ocidental, in: Síntese Nova Fase, v. 19, n. 59 (1992)497: “No mais íntimo da mente _aditum mentis _ e que é também a sua fina ponta _ apex mentis _ o Absoluto está presente na sua radical transcendência _superior summo _ e na sua radical imanência _ interior intimo”. 76 Cf. LIMA VAZ H. C.de, Mística e Política, op cit., p. 500.

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Por ser o Ser absolutamente necessário ”Liberdade Absoluta” a dimensão contingente

do ser veio a ser através da liberdade absoluta do Ser absolutamente necessário. “O absoluto-

pôr-no-Ser-efetuado-pelo-Ser-absolutamente-necessário-livre-visando-à-dimensão-

contingente, no sentido aclarado, é o que significa a ideia da criação adequadamente

articulada77”. Até aqui pode chegar a reflexão que parte da práxis histórica humana na direção

de suas raízes últimas, a filosofia. Tendo sido o Ser absolutamente necessário pensado como

absoluto-criador a questão que se põe agora é se possível avançar na explicitação de suas

determinações.

A pergunta, por tudo o que já foi exposto, se articula assim: é possível explicitar mais

determinadamente a liberdade absoluta78? Uma resposta a esta questão parte da consideração

do próprio ser humano como ser de liberdade. Como se explicitam as determinações do ser

humano livre? O caminho aqui é a consideração da história de suas decisões livres.

Analogicamente se pode afirmar que o caminho para a explicitação das determinações mais

amplas da liberdade absoluta é o mesmo: elas se explicitam através da consideração da

“história” de sua liberdade. Dessa forma, não há outra possibilidade de manifestação do

sentido do Absoluto ao ser humano a não ser a de sua manifestação a partir da história

humana. Sendo assim, a filosofia nos lança na direção da própria história para aí recolher as

tentativas de explicitação do sentido da liberdade absoluta e neste horizonte as religiões se

revelam como portadoras da pretensão de tematizar a auto-manifestação da liberdade absoluta

no processo histórico.

Neste horizonte, as religiões emergem como atividades que levam às últimas

consequências a autoconsciência da história, pois tematizam a instância de unificação, a

experiência fundante de toda a práxis histórica que torna possível interpretar o mundo a partir

de sua origem na dimensão absolutamente necessária. Por sua vez as teologias das diferentes

religiões são neste sentido uma determinação maior do sentido do Absoluto a partir da

experiência histórica dos seres humanos. No caso, por exemplo, do cristianismo, a história da

liberdade absoluta é interpretada como uma auto-comunicação livre de Deus enquanto história

da salvação: “A partir do próprio Deus se anuncia ao homem o sentido definitivo da totalidade

de sua realidade79”. A fé consiste na aceitação desse sentido que se exprime no seio da

religião numa linguagem simbólica e teologicamente numa linguagem conceitual.

77 Cf. PUNTEL L. B., Ser e Deus, op. cit., p. 229.78 Cf. PUNTEL L. B., Ser e Deus, op. cit., p. 246 e ss.79 Cf. OLIVEIRA M. A de, Mediação filosófica no trabalho teológico, in: A Filosofia na crise da modernidade, São Paulo: Loyola, 3ª. Ed, 2001, p. 179.

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A palavra da filosofia não é, portanto, tudo o que se pode dizer do Absoluto,

fundamento e referencial último do contingente, porque a filosofia não pode simplesmente dar

conta da história e muito menos da livre auto-comunicação do Absoluto enquanto salvação do

ser humano. O Absoluto tem uma história de liberdade: a história da auto-comunicação à

liberdade finita e essa história determina mais as determinações do Absoluto conseguidas pela

simples reflexão filosófica. A aceitação de uma determinada articulação desta maior

determinação do Absoluto é consequentemente uma decisão livre do ser humano.

Isto abre espaço para um novo saber: o saber de Deus, isto, do Absoluto livremente

revelado em sua história de liberdade, para a teologia, no caso do cristianismo, enquanto

articulação teórica da fé cristã, uma hermenêutica da palavra de Deus, portanto, sua

elucidação compreensiva e crítica com a intenção de situar no horizonte de uma fé refletida a

práxis histórica dos cristãos no mundo.

Nessa perspectiva se deve dizer que a teologia filosófica (teoria do Absoluto) e a

teologia das religiões (teoria de Deus) possuem uma unidade temática, ou seja, falam em

última instância da mesma realidade, e uma diferença de horizonte uma vez que uma trabalha

esta realidade fundamental somente a partir da reflexão humana e a outra tematiza as

determinações maiores desta mesma realidade a partir da história humana enquanto o espaço

de uma possível manifestação do Absoluto e, sobretudo, no caso do cristianismo, da

afirmação da auto-comunicação do Absoluto.

Pode-se agora afirmar, e essa é a afirmação fundamental nessa reflexão: a religião tem

sempre a ver com o universo, com o ser em seu todo80, com a interpretação da totalidade do

ser. Assim, sua compreensão da história, do indivíduo, da sociedade, da dor, do sofrimento e

da injustiça, do bem e do mal, da fluidez do tempo, da vida e da morte, da felicidade e do

sofrimento, do universo, da totalidade do ser, numa palavra, das perguntas radicais do ser

humano, brota de sua referência à dimensão absolutamente necessária do Ser81 numa forma

determinada de especificar a compreensão desta dimensão da totalidade e de seu

relacionamento com ela. É no horizonte desta referência explícita e especificada a esta

realidade fontal que o homem religioso encontra uma reposta ao porque e para que do Ser em

seu todo e a partir desse horizonte motivos para viver e lutar.

Na medida mesma em que o ser humano é fundamentalmente coextensivo

intencionalmente ao Ser enquanto tal, ele é estruturalmente aberto à dimensão absolutamente 80 Cf. PUNTEL L.B, Estrutura e Ser, op. Cit. p. 436 e ss.81 Cf. FRANÇA MIRANDA M. de, Religiões e promoção da justiça, op. cit., p. 148: “A experiência religiosa se compreende fenomenologicamente como a tematização da forma de transcendência constitutiva da existência. O religioso não é determinação contingente da transcendência humana, mas a forma que atualiza sua estrutura essencial”.

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necessária sem o que o Ser em seu todo é ininteligível. Isto significa dizer que a religião pensa

a unidade do universo a partir de uma referência explícita e especificada à dimensão

absolutamente necessária e da busca de comunhão com esta realidade que ela denomina Deus.

Neste contexto, o homem religioso concebe o sentido do processo da própria vida humana

individual e coletiva, isto é, articula sua compreensão própria do sentido e do valor da vida

humana e de todas as coisas. Neste sentido, a religião é a atividade através da qual o ser

humano busca explicitar e configurar essa relacionalidade ao Absoluto que é constitutiva de

seu ser e que está implicitamente presente em todas as suas atividades e, por conseguinte,

procura de alguma forma entrar em comunhão explícita com esta realidade originária.

Ora, a dimensão religiosa como fenômeno na vida humana significa que o ser humano

entende esta dimensão absolutamente necessária do Ser em seu todo não simplesmente como

uma dimensão abstrata qualquer, mas como a dimensão determinante de toda a sua vida de tal

maneira que a religião emerge como o esforço de configuração de toda a existência humana

em todas as suas dimensões a partir da referência fundamental a esta realidade fundante82,

numa palavra, ela se dirige à totalidade da pessoa e diz respeito, em princípio, a todas as suas

dimensões. Pode-se, então, dizer que a religião é uma expressão da experiência oniabrangente

como experiência humana fundamental em que o homem se descobre essencialmente referido

à totalidade do real e nesta referência à dimensão absoluta.

3. Riscos característicos da configuração atual das expressões religiosas

Se consideramos juntas a análise que nos fornecem as ciências sobre o mundo

contemporâneo e a forma que assumem neste contexto as expressões religiosas e a reflexão

filosófica sobre a constituição ontológica do ser humano e da atividade religiosa temos

elementos que abem espaço para um discernimento crítico das expressões religiosas que

marcam nosso mundo hoje dentro do quadro teórico específico de uma reflexão filosófica.

Levo em consideração apenas três aspectos que revelam posições unilaterais na consideração

do humano.

3.1 Uma postura anti-intelectual

Vimos na análise da religião em sua presença nas sociedades da modernidade tardia

que se acentua a primazia de uma vivência religiosa de caráter imediato, espontâneo,

82 Cf. ESTRADA J. A., Imagens de Deus. A filosofia ante a linguagem religiosa, São Paulo: Paulinas, 2007, p.26: “A religião é filha do desejo, da carência e da esperança e não só uma construção da razão”. É neste sentido que Estrada fala de uma dupla dinâmica, intelectual e afetiva da religião, o que explica a “capacidade de interpretar o conjunto da personalidade humana e seu enorme potencial de fascínio...” Cf. op. Cit., p. 31.

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concreto, não conceitualizado, capaz de comunicar uma experiência muito atraente e

acessível. Certamente são recuperadas aqui dimensões da vida humana que podem ter sido de

certo modo esquecidas em outras formas de vivência religiosa, mas há aqui claramente a

tendência a considerar a racionalidade humana como algo que pode faltar na vivência

religiosa como se ela fosse uma espécie de apêndice que se pode deixar de lado. Põe-se aqui

a centralidade na esfera de uma pretensa experiência imediata, intuitiva, não conceitualizável

que conduz a um contato imediato com a realidade divina de caráter pré-conceitual que por

isto torna inútil o esforço intelectual na compreensão do conteúdo da fé.

Com isto se propõe uma dicotomia fundamental no ser humano entre uma dimensão

intuitiva, imediata, pré-conceitual e originária e uma dimensão conceitual, mediata, posterior

que constitui apenas uma possibilidade, mas não um componente essencial, portanto,

necessário, da constituição ontológica do ser humano uma vez que se o fosse cairia a

dicotomia e teríamos que afirmar que a dimensão conceitual não pode ser concebida como

algo completamente independente dos outros fatores que constituem a configuração do ser

humano. Assim, nada há na atividade humana enquanto atividade humana que não seja

acompanhado por pensamento. O pensamento não pode ser deixado de lado simplesmente

porque é um componente essencial do espírito humano. Em todas e quaisquer atividades

humanas as pessoas agentes sabem o que estão dizendo, fazendo, etc. Este “saber” tem um

conteúdo, o que sabem é o que concebem, o que concebem é um conceito, tal conceito é

expressável e enquanto tal é caracterizado por linguisticidade.

Admitir, então, um contato imediato, não-conceitualizável, na realidade, significa que

não se compreende a realidade com que se entra em contato, pois o conceito, enquanto

expressão de inteligibilidade, é pressuposto em que qualquer compreensão humana, ou

melhor, qualquer compreensão implica elementos conceituais. Se fosse possível conceber

uma compreensão completamente não-conceitualizável a pergunta primeira é que teria a ver o

conceito com algo que já aconteceu sem ele? A dimensão do conceitual perderia qualquer

função na vida humana. Esta tendência não só se contrapõe à concepção do ser humano como

uma configuração extremante complexa, ou seja, uma unidade de muitos fatores co-

constitutivos, mas terminaria por aceitar que a religião não pode ter qualquer lugar numa

sociedade radicalmente racionalizada o que conduziria a um conflito insuperável entre razão e

fé, de modo especial entre razão e ciência que vai muito além das críticas necessárias ao

encurtamento da razão em sua concepção atual e se aproxima da aceitação de uma

incompatibilidade estrutural entre as duas atividades.

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3.2 “Espiritualização” radical do ser humano

O ser pessoal é uma configuração de fatos interconectados e o primeiro destes fatos é

sua corporalidade: ele é um ser natural, um corpo orgânico, caracterizado por uma

determinada configuração corporal-biológica. Nas expressões religiosas recentes há uma

formidável recuperação da corporalidade pela profusão de gestos corporais, pela utilização

muito frequente do canto e da dança na liturgia, pelo falar em línguas, pelo cultivo das

emoções etc. No entanto, em certas manifestações e atitudes se revela uma grande suspeita em

relação à sexualidade.

Termina-se por reduzir a sexualidade humana a uma função puramente

corporal/biológica e o corporal humano não é visto em sua unidade fundamental com a

dimensão espiritual o que leva a uma separação radical entre sexualidade e amor. Isto legitima

um certo pessimismo antropológico83 ou pelo menos uma vinculação exclusiva entre

sexualidade e procriação. Com isto não se concebe que toda existência humana é marcada

pela sexualidade que é componente essencial da configuração humana. Precisamente aqui se

mostra uma outra dicotomia que se contrapõe à unidade na multiplicidade das inúmeras

dimensões que caracteriza o ser humano.

3.3 Visão encurtada da sociabilidade humana

Os mundos históricos, que são formas diferenciadas de estruturar as relações

intersubjetivas constituintes do nosso ser, são construídos pela linguagem, pelas formas de

produzir e pelas relações de trabalho, pelos costumes, pelo direito, pelas relações originadas

nas interpretações simbólicas do mundo etc. Os seres humanos só são eles mesmos através

destes conjuntos específicos de relações que os condicionam e determinam no mais profundo

de suas vidas individuais.

Compreender o ser humano como um ser essencialmente social e histórico implica

compreender que a vida humana é um processo de condicionamento recíproco entre

indivíduos e estruturas da vida social, isto é, entre sujeitos e a forma de configuração dos

elementos que constituem os todos históricos em que eles se situam. Estas formações só

existem graças aos atos espirituais de vários indivíduos em interação, que produzem “obras

históricas” como, por exemplo, instituições, sistemas econômicos e políticos, obras de arte,

teorias, etc. Ora, se o sujeito só é sujeito numa rede de relações entre sujeitos, isto significa

dizer que estas relações constituem seu ser, elas são a mediação necessária para a conquista de

sua humanidade. Assim, a conquista do ser humano se revela como um processo que atinge

83 Cf. VIDAL M., Dez palavras-chave em moral do futuro, São Paulo: Paulinas, 2003, p. 169.

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seu grau supremo de efetivação na aquisição da subjetividade dos sujeitos84 na esfera do

mundo das relações sócio-políticas construído pelo ser humano85.

Ora, a tendência das experiências religiosas de nossa época é reduzir a

intersubjetividade à esfera interpessoal inclusive com grande dedicação ao trabalho

assistencial aos mais pobres. Isto significa que há grande dificuldade de entender o que

podemos chamar a dimensão institucional, estrutural da intersubjetividade, o que implicaria

engajamentos apropriados na direção de uma transformação estrutural de nossas sociedades

em que uma minoria aproveita das enormes chances abertas à humanidade pela civilização

técnico-científica enquanto a maioria é perdedora numa globalização que se efetivou

combinando o máximo de eficiência com o máximo de iniquidade social e ecológica.

Entender isto implica entender os pobres como empobrecidos, explorados e oprimidos

justamente por um mundo estrutural injusto que também destrói sistematicamente o planeta.

Ora a libertação da miséria e de um mundo insustentável exige que saibamos aprender das

análises que nos explicam a natureza destas estruturas e um engajamento crítico no mundo à

altura dos desafios estruturais que ele levanta.

84 Hegel explicitou este processo através da parábola do senhor e do escravo. Cf. SALGADO J.C., A idéia de Justiça em Hegel, São Paulo: Loyola, 1996, p. 255: “O significado mais profundo da dialética do senhor e do escravo é mostrar a emersão do homem, do seu mundo natural e biológico, para o mundo da cultura e espiritual, sua morada como ser livre”.85 Que para Hegel constituem uma segunda natureza posta pelo ser espiritual. Cf. HEGEL G. W. F., Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), Hamburg: Felix Meiner, 1959, & 513, p. 402.

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