Odette de Saint-Maurice - Um Rapaz as Direitas

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Ttulo: Um Rapaz s Direitas. Autora: Odette de Saint-Maurice. Dados da Edio: Estante Editora, 1990. Coleco: Estante Juvenil, 1. Gnero: juvenil. Digitalizao e correco: Dores Cunha. Numerao de pgina: rodap. Estado da obra: corrigida. Sem autorizao expressa do editor, no permitida a reproduo parcial ou total desta obra desde que tal reproduo no decorra das finalidades especficas da divulgao e da crtica. Ficha Tcnica Coleco: Estante Juvenil, 1 Ttulo: UM RAPAZ S DIREITAS Autor: Odette de Saint-Maurice Capa: Jos Antnio Moreira Edio: LIVRARIA ESTANTE EDITORA Av. 5 de Outubro, 47-49 Telef. 25794 - 3800 AVEIRO Data: Novembro/90 Execuo grfica: GRAFESTAL - Grfica de Estarreja Av. Visconde de Salreu, 196 Telef. 43010 - 3860 ESTARREJA Depsito legal:

41765/90 ODETTE DE SAINT MAURICE

O Pedro no entrou em casa como um p-de-vento. Nem sequer assobiou ao Frufru da Dona Ester do primeiro andar, um cozinho fox travesso e brincalho que latiu alegremente, como sempre, ao reconhecer-lhe os passos. Dirigiu-se para o quarto e no reclamou o lanche. Sentou-se escrevaninha, de olhos meios fechados e queixo entre as palmas das mos. A Anita veio espreit-lo porta e, surpreendida, fez uma careta. De tal modo o estranhou que no se atreveu a dizer palavra, retirando-se pelo mesmo caminho. O Salta-Pocinhas, felizmente, no dera por ele. Devia andar na varanda, de triciclo, porque de vez em quando ouvia-se o guinchar irritante de uma roda, a arranhar o mosaico. E nada mais. Pedro ficou para ali, amarrado a um desgosto qualquer, decerto muito forte, porque no era hbito dele fraquejar por aborrecimentos sem importncia. Toda a gente o considerava um rapaz s direitas, valente, estudioso, sincero, cheio de boas qualidades. Bom, s vezes tinha as suas coisas... mas l isso, tambm... quem perfeito... perfeito? Mas o Pedro contava-se entre os melhores, sem favor. Por exemplo, no havia memria de que ele se atrasasse nas ruas, no trajecto entre o lar e o Colgio em tagarelices ou brincadeiras que lhe prejudicassem as horas de trabalho! Foi por isso que a Me principiou a preocupar-se. A Me estava na saleta da costura, a fazer trcot para o Salta-Pocinhas. Uma camisola s riscas azuis e encarnadas, igual do Pedro. O Pedro! ? A Me viu as horas e alarmou-se a srio. Voltou-se para a Anita, agora entretida com os lpis de cor a colorir o melhor possvel (e no ficavam nada mal!) as estampas de um livro de histrias. - Seis e meia e o teu irmo sem chegar! Queira Deus no lhe sucedesse alguma coisa! A Anita virou-se para a Me, admirada. - O Pedro? Mas h que tempos que ele entrou, Mezinha.

Rosa Maria - a Rosinha-Me, como os pequenos amorosamente lhe chamavam - deixou cair a futura camisola do Salta-Pocinhas e levantou-se. - Entrou? Tens a certeza disso? - Tenho, sim, Mezinha. - E eu no o ouvi? Nem veio falar-me? Onde est ele? Aparando cuidadosamente o lpis verde, no fosse quebrar-lhe o bico, Anita respondeu: - Fechou-se no quarto. Fui espreit-lo e ele nem deu por mim. Rosa Maria abandonou a saleta imediatamente. Atravessou o corredor e penetrou nos aposentos dos seus rapazes, onde a cama do Salta-Pocinhas era ainda e apenas metade da cama do irmo. - Pedro! -chamou logo, notando a singular atitude do filho. - Pedro, que te aconteceu? Que tens tu?... Pedro no disse nada. Mas a Me abraou-o, afagou-o e, passando os dedos pela cara do pequeno, compreendeu que as lgrimas nela tinham corrido em fio. Ora o Pedro no chorava por d c aquela palha. Os seus doze anos varonis, desempoeirados. O corao da Rosinha-Me apertou-se enquanto, raciocinando, tentava descobrir de onde proviria o desgosto do seu homenzinho. Uma idia imps-se-lhe. Estavam praticamente no fim do primeiro perodo. As notas deviam ter sado j... Sim, era isso, com certeza! O Pedro fraquejara. Ele, o primeiro da classe durante o ano anterior, havia baixado as classificaes... e sofria! Contudo ele estudara, estudara sempre, no merecia censuras, no caso de um falhano desse gnero. Se fora a pouca sorte, devia aceit-la com resignao. Ela, a Me, ajud-lo-ia a conformar-se. E, acariciando as madeixas rebeldes do cabelo claro, disse-lhe: - Vamos l, Pedrinho, no chores mais. Descansa, meu filho. E vem comer qualquer coisa. muito tarde! Sossega, que o Pai no te ralha. Sou testemunha do teu bom trabalho. E depois, uns pontos a mais ou a menos no tm assim tanta importncia. So pormenores que lisonjeiam, nada mais! No fim de contas ainda falta muito para o exame... O Pedro fungou, deixou que a Me o assoasse, como ao Salta-Pocinhas. Depois, olhou para ela. Tinha as plpebras vermelhas, inchadas, e os lbios tremiam-lhe.

- Mas, Mezinha, tu no sabes o que aconteceu! - Inteligente, percebera o que Rosa Maria estava a imaginar. E esclareceu-a: -No... no foi nada disso! Rosa Maria ps o rosto de lado para o olhar com mais ateno, como era seu costume. - Ento... no por causa das notas? Elas no desceram? - O Pedro explicou: - As notas no saram, mas no desceram com certeza. - Nesse caso... porque ests tu nessa agitao? Que houve? Pedro baixou a cabea. Os dedos torciam o leno em todas as direces. - Foi que... Foi que... Rosa Maria sentou-se na beira da cama e, naquela voz doce que chegava direitinha alma dos filhos, disse: - A verdade acima de tudo e como sempre, meu Pedro! Ento Pedro no hesitou mais. - Tive uma briga, Me. - Tiveste uma briga? E com quem? - com o Paulo. - Outra vez? - Outra vez. Era inevitvel. Fora assim durante o primeiro ano, sempre, sempre. E continuava, desde a abertura das aulas. Pedro e Paulo, dois inimigos irreconciliveis! Uma coisa espantosa! O Pedro, que no embirrava com ningum, detestava esse condiscpulo. E o outro, por sua vez, no suportava o Pedro. E os dois defrontavam-se, questionavam, batiam-se, dando-se lamentavelmente em espectculo. No Colgio falava-se daquela permanente discrdia. Interessavam-se por ela os rapazes todos, grandes e pequenos, como por desafios de futebol. Espantavam-se e assistiam s lutas entre ambos como se fossem a uma sesso de boxe. O Dr. Rui Manuel de Macedo precisara j de conferenciar com os Professores. O Pai do Paulo,

10 um Advogado ilustre, tinha estado no Colgio dias antes. No haviam chegado a acordo quanto aos meios de encontrar uma soluo nem obtido resultados satisfatrios por meio de reprimendas e ameaas de castigos mais severos. O Pedro e o Paulo continuavam a socar-se. O assunto tornava-se grave ao ponto de as famlias de ambos, que antes se cumprimentavam gentilmente encontrando-se entre relaes comuns, evitarem agora quase olhar-se, em manifesto desagrado, como que censurando-se mutuamente por no conseguirem reprimir as manifestaes de inimizade entre os rapazes. O Director do Colgio, o Dr. Leopoldo Brs, chegara a falar em expulso. Mas... o Pedro e o Paulo eram precisamente os primeiros alunos do Colgio, os dois melhores, os mais prometedores, os mais classificados. Duas inteligncias notveis, com iguais direitos a prmios e louvores... e por isso mesmo em permanente despique! E o Pedro, to bom rapazinho, no cedia de maneira nenhuma. E o Paulo, do outro lado, tambm no quebrava. Rosa Maria, desolada, suspirou. O filho continuava de cabea baixa, sempre torcendo o leno. E ela murmurou: - com que ento... foi isso! Outra zaragata! Pedro encolheu-se. - Uma grande zaragata! A Me pestanejou. - Mas olha l... nunca te vi chorar por causa disso! - Pois no!... - Sucedeu mais alguma coisa? - Sucedeu. Depois. - Depois ? No percebo nada, Pedro. Queres fazer o favor de te explicares? Pedro ia tornar a assoar-se, mas quando desenrolou o leno verificou que estava todo feito em tiras. - Ai!... A Rosinha-Me tirou-lhe os trapitos das mos. - Deixa l isso e conta-me tudo. Ento o Pedro desabafou. - Bom... foi depois do ponto de Matemtica... O Professor classificou os dois da mesma maneira. E ns ficmos fulos, pronto!

- E da? Ouviu-se um rumor porta. A cabea aloirada da Anita surgiu, curiosa. Contrariado, ou envergonhado, o Pedro pediu: - Manda-a embora, Me. A Anita protestou: - No fao mal nenhum... Mas Rosa Maria compreendeu que o filho mais velho no gostaria de mostrar as suas fraquezas diante da irm. E ordenou gaiata que se retirasse. Anita, embora de m vontade, obedeceu e quem sofreu os resultados foi o Salta-Pocinhas que dentro em pouco se ouvia chorar em altos gritos. Rosa Maria, porm, estava demasiadamente ocupada com o problema do Pedro para correr em ajuda do benjamim, contrariado por qualquer partida da irm. E o Pedro comeara a expor o assunto com clareza. - Olha, Me, quando samos da aula, amos os dois convencidos de que o Professor tinha sido injusto. Eu achava que o meu ponto estava melhor que o dele. E ele que o seu era superior, claro... Comemos a discutir. Depois o Paulo quis apostar em como este ano o grande prmio de excelncia tambm no havia de ser para mim. Atirei-me a ele... e ele atirou-se ao mesmo tempo... - o rosto de Pedro iluminava-se, expressando 12 ainda a energia posta na luta. - Era a ver qual de ns dava mais! Rosa Maria escondeu o rosto entre as mos, e o rapazito: - Eu apanhei... mas ele no levou a melhor! Tambm apanhou murro de ferver! Num murmrio, a Me perguntou: - E depois? - Depois... - ento, precipitadamente, o Pedro continuou: - Depois eu levantei-me e ele foi-se embora no meio de uma confuso... Ningum se entendia. E foi nisto que a gente ouviu gritar muito, muito... Rosa Maria encarou o filho, cujos olhos estavam novamente cheios de lgrimas. - Gritar? Porqu? - Foi o Paulo, Mezinha! Acho que ia to desesperado, to desesperado, que no viu nada! E ficou debaixo de um automvel!

Horrorizada, a Me ps-se de p, levou as mos ao peito. - Debaixo de um automvel! Oh! Coitadinho! - Levaram-no para o Hospital... - Mas... nesse caso? - ela no se atrevia a dizer o resto, cheia de aflio. O Pedro concluiu: - Estavam a dizer que partiu a cabea... e uma perna... e que tinha tido muita sorte! -e, rompendo em soluos, o pequeno lanou-se nos braos da Me. - Oh, Rosinha, e fui eu o culpado! Fui eu o culpado!... Se no fosse a briga... ele saa com ateno... talvez no acontecesse aquela desgraa! Sem uma palavra, Rosa Maria estreitava-o ao peito, com muita fora, cheia de pena do outro, apavorada, lembrando-se de que a vtima podia ter sido ele, o seu Pedrinho... Oh, as brigas! 13 Nesse instante ouviu-se correr e o Salta-Pocinhas entrou por ali dentro, num protesto violento: - Mamchinha, a Nita qu o tichico... e o Humane qu o tichico tambm... Rosa Maria acariciou-lhe os lindos caracis, distraidamente: - J l vou, meu amor, j l vou... O Salta-Pocinhas puxava-lhe pela saia: - O Ruman qu o tichico. A Nita m! Rosa Maria, com a testa enrugada, a dar-lhe um ar de mais velha que ningum gostava de ver-Lhe, dirigiu-se ao Pedro: Vem merendar, filho. Em seguida iremos ter com o Paizinho ao consultrio. preciso fazer qualquer coisa. Pedro agarrou-lhe nas mos. - Me... nada pode castigar-me mais do que a pena que sinto!... Mas... mas... achas que o Pai me ralhar? Rosa Maria abanou a cabea. - Julgo que no. No s mais culpado do que o prprio Paulo. Em todo o caso, Pedro, no podemos ficar de braos cruzados diante de uma infelicidade dessas! Era de manh.

O sol, muito claro, iluminava o cu, as ruas, as casas, com uma cor especial que parecia mais bonita, mais doce, mais consoladora, como se toda a natureza se sentisse feliz e quisesse transmitir s criaturas a mensagem da Providncia: "Dm graas a Deus porque podem trabalhar! Dm graas a Deus porque so novos e tm famlia! ". Pedro nunca passara insensvel aos encantos da natureza. Afectuoso, impressionvel, o rapaz compreendia a beleza das coisas e o valor da sua felicidade. Talvez fosse por isso que ele cada vez tinha mais vontade de estudar, de fazer-se Algum! Normalmente, Pedro caminhava assobiando e quem o via, de testa alta, madeixa doirada cada para a testa, avanando a passo firme e sempre a direito, pensava, encantado "aqui vai um dirigindo-se como deve para o dia de amanh! ". Nessa manh, porm, o Pedro no assobiava nem admirava a formosura do dia. Seguia calado, pensativo, de aspecto verdadeiramente preocupado. Recordava o acidente da vspera, lembrava-se de que o Paulo no estaria instalado na carteira vizinha e que o ano lectivo, para o outro, seria com certeza um ano perdido. E isto punha-lhe na garganta um n muitssimo difcil de suportar. Tinha vontade de chorar. Tanta vontade de chorar 15 que a sr.a Januria (a Sr.a Januria era a mulher da fruta que vendia num tabuleiro esquina da rua dele e o conhecia desde pequenino, desde que ele principiara a ir Escola) o estranhara e lhe dissera: - Mas que cara to triste, menino Pedrinho! Aconteceu-lhe alguma coisa? No. Em verdade, a ele no acontecera nada, pelo menos na aparncia. Porque mesmo o Pai no lhe ralhara, de facto, quando a Me lhe contara tudo. No ralhara! Mas olhara-o com aqueles grandes olhos cor de azeitonas de Elvas, olhara-o muito gravemente, dizendo apenas: - Veremos o que posso fazer. Havia sido tudo. S isto. Mas o Pedro sentira o corao apertar-se-lhe, apertar-se-lhe tanto como se o Pai estivesse por culpa dele sofrendo qualquer enorme desgosto. E o Pai no merecia. O Pai era o melhor de todos os Pais! Ora j se sabe que todos os rapazes e raparigas pensam o mesmo dos que lhes pertencem, mas enfim... o dele, na sua opinio, podia considerar-se o rei dos Pais! Companheiro no mais belo sentido da palavra, o Dr. Rui Manuel de Macedo estava sempre pronto para atender o filho,

quer auxiliando-o nas dificuldades dos estudos, quer levando-o para os desafios de futebol e para a praia, ensinando-o a nadar e at confiando-lhe o volante do carro e dando-lhe lies acerca de tudo - desde os jogos de cartas aos assuntos mdicos. Um assombro! E como se fosse pouco mais velho do que ele... Um amigo precioso, o Pai!... Por isso mesmo o Pedro tinha a certeza de que o Pai sofrera com a notcia do acidente, mas sofrera duplamente, pelo filho e por si prprio! Absorvido pelos seus pensamentos, Pedro ia-se aproximando do Colgio. Deteve-o um enorme alarido. Parou e avistou, perto do porto grande, um 16 ajuntamento. Estavam numerosos colegas e muitas pessoas desconhecidas, discutindo. Naturalmente, o pequeno teve interesse em saber o que se passava e abeirou-se mais. Chegavam-lhe aos ouvidos comentrios irritados. - um costume maldito! - Vejam l bem o perigo que uma pessoa corre, quando vai descansada sua vida!... - Ele precisa de uma lio que lhe fique de memria!... Interessadssimo, Pedro furou, furou, e conseguiu chegar ao primeiro plano. Avistou ento um velho de grandes barbas que estava sentado no cho, agarrado cabea. Entre os dedos via-se escorrer, lentamente, um fiozinho de sangue. - melhor lev-lo ao Hospital! As pessoas continuavam falando, alvitrando: - Ou chamar um Polcia! Houve um coro de aplausos. - Isso, isso! Chamem um Polcia! Ao lado do ferido, Pedro descobriu um garoto de cales amarelos e camisola s riscas amarelas e castanhas. No precisou de mais para adivinhar o que se passara. Fora outra do Toms, do incorrigvel Toms! O Toms era um aluno da quarta classe, levado da breca. No seria muito mau, muito mau. Havia pior, l isso havia. Mas enfim, aquele detestvel costume tornava-o assustador... E no se emendava! Ainda h poucos dias espatifara a montra do Sr. Chico Merceeiro, que lhe dera um terrvel puxo de orelhas e mandara a conta do

vidro ao Pai... e j fizera nova diabrura! Agora, pelos movimentos dos ombros, via-se perfeitamente que o Toms estava chorando a bom chorar... Pudera, com toda aquela gente a falar em polcia. ... Entretanto o velhinho, enxugando a ferida da testa no leno que um dos circunstantes lhe dera, principiava a sossegar todas as pessoas que por ele se estavam apoquentando. - No faam nada... Deixem l... Isto passa... No tem importncia. No vale a pena chamar nenhum Polcia. Eu s queria uma coisa, por favor... saber onde se encontra o menino que me atingiu com a pedrada. J o Toms, entre soluos, prontamente se acusava: - Estou aqui, senhor. O ceguinho estendeu a mo trmula, procurando apoio. - Queres ajudar-me a pr de p?... O garoto auxiliou-o imediatamente e o velho ergueu-se. Apoiado aos braos do Toms, ficou alguns instantes quieto, respirando fundo. As barbas longas, brancas, estavam manchadas de vermelho. No silncio respeitoso que se estabeleceu, impressionante quase, ouviam-se apenas os soluos cada vez mais fortes do Toms. Ento o ceguinho, s apalpadelas, procurou a cabea do pequeno e ficou-se a afag-la, vagarosamente. Depois, com bondade, perguntou: - Foi de propsito, meu filho? Lavado em lgrimas, Toms respondeu: - No senhor, no foi de propsito. - Ento... como arranjaste isto? - No sei... no sei! mania! Fao isto muitas vezes. - Fazes isto muitas vezes? - Sim senhor! Sempre que vejo uma pedra... d-me logo vontade de lhe pregar um pontap! - E nunca te deu mau resultado? Toms fazia esforos para deixar de chorar. E, com sinceridade, volveu: 18 - J, sim senhor. J parti vidros. Noutro dia dei uma pedrada numa grande montra, o meu Pai pagou-a... Mas... mas...

O velhinho abanava a cabea, cheio de compreenso. - Percebo. Nunca tinhas magoado ningum! - Pois no... - E no te lembravas de que podia acontecer ? - No senhor! - E contudo, meu filho, anda na rua tanta gente que no pode livrar-se das traquinices dos rapazes com maus costumes! Crianas, velhos, cegos como eu... Toms no pde mais. Abraou-se ao ceguinho com tanta fora que ia atirando com ele ao cho. - Oh, senhor ceguinho, desculpe-me! Desculpe-me! O bondoso velho estreitou-o ao peito, ternamente. - Desculpo, desculpo porque tenho a certeza de que no foi por mal. Mas se na realidade tens pena de mim, peo-te que me faas uma promessa! - Sim senhor, sim senhor! Prometo tudo! - Est bem. Ento promete-me que nunca mais dars pontaps nas pedras que surgirem no teu caminho. Toms fungava, rindo e chorando. - Prometo! Prometo! -e, cheio de lealdade, acrescentou: -De cada vez que vir uma pedra e me chegar a vontade de lhe dar um pontap... lembro-me de si, senhor, e palavra que a vontade vai-se logo embora! Havia lgrimas nos olhos das pessoas adultas que assistiam cena. Ningum mais falou em chamar a polcia e todos comearam a debandar, bem dispostos com o desfecho do caso. Ento, de sbito, o Toms teve um gesto encantador. Abriu a pasta, tirou de dentro o portamoedas 19 e, sem contar o que l estava e fazendo os possveis por que ningum o notasse, despejou-o dentro de uma das algibeiras do ceguinho. Depois, pondo-se em bicos de ps, beijou-o nas duas faces. O velho, comovido, ainda quis abra-lo. Mas o Toms j fugira, a caminho do Colgio onde a sineta principiara badalando a dar o sinal da entrada para as aulas.

Pela cara do ceguinho descia agora o pranto da maior emoo. Os pequenos presentes, uma, sem qualquer combinao, realizaram o mesmo movimento espontneo. Foram passando diante do ceguinho a despejar-lhe nas algibeiras os contedos dos porta-moedas. Ofereciam-lhe assim, mais do que a esmola material, o sacrifcio de alguns sonhos, de algumas coisas que desejariam comprar e para que andavam amealhando... As algibeiras do velhinho pareciam uns ovos enormes, de to cheias! Pedro fez como os outros, da melhor vontade, sem mais se lembrar da caixa de aguarelas que todos os dias cobiava na montra da papelaria sua vizinha. S o Joanico do terceiro ano, um que era magro e esgrouviado, de olhos pardos sempre inquietos, sempre girando da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, como se desconfiasse domundo inteiro, se desviou e passou, de cabea baixa, sem tocar no ceguinho, que balbuciava frases de sentida gratido. A testa de Pedro, observando o facto, enrugara-se de espanto e desagrado. Mas depois... depois aconteceu uma coisa espantosa! Fora o Joanico, no havia a menor dvida, quem praticara um acto censurvel... mas era a ele, Pedro, que no Colgio todos voltaram a cara, sem lhe dizerem nem sequer "bom-dia"! 20 Pedro continuava intrigado, espantado, tristssimo! Sinceramente, no percebia nada do que se estava passando. No compreendia nem a maneira como havia sido recebido, pela manh, nem a atitude dos condiscpulos. No conseguia decifr-la e no podia perder tempo com semelhante enigma. No entanto j se distrara por duas vezes e o Professor precisava de repetir o nome dele para que enfim se levantasse e desse a lio. claro que respondera certo, como sempre. O Prof. Soares no disfarava mesmo um gesto de satisfao quando ele, no quadro, resolvera facilmente um problema de Matemtica. Contudo a classe inteira parecia transformada em pedra e, quando ele se voltara para trs e descendo do estrado procurava com o olhar a aprovao habitual dos amigos, no encontrou um s par de pupilas fixado nele. Todas se desviavam, extraordinariamente atentas aos cadernos e aos livros. Pedro engoliu em seco. Embora no perdesse a compostura, sentou-se no seu lugar com o corao a bater-lhe na garganta. A bater tanto que ameaava sufoc-lo, quando o Prof. Soares chamou:

- Paulo Manuel de Atade Lemos. 21 Fez-se na aula um silncio absoluto. O Professor repetiu: - Ento, Paulo Manuel? O mutismo continuava. O Mestre, que estava consultando qualquer anotao, ergueu finalmente a cabea, espantado. - O Paulo Manuel no est ? O Andr - o Andr talvez fosse, entre todos, aquele de quem o Pedro menos gostava, porque se mostrava intriguista e invejoso - levantou-se e respondeu: - No est, no, Sr. Professor. - O Paulo Manuel faltou em dia de ponto?... Porqu ? O Andr, ento, indicou o Pedro com o queixo, num gesto de desprezo. - Esse que conte. O Prof. Soares tirou os culos, limpou-os cuidadosamente, voltou a coloc-los e s depois se fixou no Pedro que se tornara vermelho como um tomate, ao pr-se de p com um vagar a que no faltava aprumo. Concentrado pois no primeiro aluno da classe, o Prof. Soares disse: - Querer ento o senhor explicar-me a razo porque o Paulo Manuel no est aqui, se realmente a conhece? A voz clara de Pedro volveu, com nitidez: - Sim, Sr. Professor, explicarei. - Faa favor. - O Paulo Manuel sofreu um grande desastre. Partiu uma perna. Acto contnuo, trinta vozes gritaram ao mesmo tempo: - Ele que diga como foi!... Ele que explique tudo!... Ele que explique!... Intrigado, o Prof. Soares agitou a campainha, impondo silncio, e depois abandonou a secretria, aproximou-se dos rapazes. - Silncio, meus amigos. Silncio e calma! Ento que vem a ser isto ? H bocado nenhum falava e agora todos gritam ? - e para o Pedro, sem severidade, acrescentou: -Faa favor de continuar. - que tivemos uma briga, Sr. Professor.

- Outra? Os olhos de Pedro brilhavam, cheios de lgrimas reprimidas, mas no desciam, no se desviavam dos do Mestre. O Andr, l do canto, no se conteve. - Foi esse que provocou o Paulo! Tem inveja de o Paulo ser o melhor de todos! Daquela feita o Professor enrugou a testa e encarou o Andr com uma expresso tal que o mocito mordeu os lbios, atrapalhado e sem vontade de prosseguir, enquanto o Mestre prosseguia: - Parece-me conveniente que no continue a falar nesse tom. - depois, diante do Pedro, encadeou - Conte-me tudo, Sr. Pedro. Porque brigaram? - Pedro no fugiu verdade. - Pelas razes de sempre, Sr. Professor. As classificaes!... Nem a gente sabe como foi! Pegmo-nos! - e encolheu os ombros. - Mas l isso no teve assim uma grande importncia. Dei eu... deu ele... demos a meias!... O Professor disfarou um sorriso. - E depois? - Depois sim... depois foi mau!... Ele ao sair do Colgio ia furioso, claro... e no reparou no automvel que vinha a passar... - aqui, a voz comeou a tremer-lhe, - e meteu-se debaixo dele, quase! Ficou atropelado! E... eu tenho muita pena dele, Sr. Professor, muita pena! O Dr. Soares compreendeu. Poisou uma das mos num ombro do pequeno. - O Paulo ficou ento muito maltratado? - Ficou. Partiu a perna... rachou a cabea... e no sei se mais alguma coisa! Umas poucas de vozes gritaram, exaltadas: - Um ano perdido! O Paulo perdeu o ano! E tudo por culpa do Pedro! O Professor encarou os rapazes, um a um. - Meus senhores, a vossa conduta est a desgostar-me imenso! D-me vontade de mandar pr-Lhes um zero em comportamento! E digo-lhes porqu. O respeito pelo nosso semelhante, a considerao pelo valor das pessoas, uma das grandes provas do bom caracter. Ora os senhores, tomando partido contra Pedro sem estudarem a questo,

colocam-se abertamente numa atitude de favoritismo pouco simptica. O Pedro to bom aluno como o Paulo. H que ter isso na devida conta. Os rapazes no se atreveram a falar mais. Enfiaram todos e o Professor ficou a dirigir-se ao Pedro, unicamente. - Quanto a si, no quero pronunciar-me sem conhecer a extenso dos motivos que originaram o acidente. No sei se foi o senhor, ou o seu condiscpulo, o responsvel maior. No sei quem atacou primeiro. De qualquer maneira, porm, dirijo-me sua razo, sua conscincia, porque verifico que est desgostoso com o que se passou, e isso prova-me que de facto o bom rapazinho que sempre julguei. Contudo, no chega. H que demonstr-lo a todos e principalmente ao Paulo Manuel. O Pedro gaguejou. - Ele no me deixa. Embirra comigo! O Dr. Soares abanou a cabea. - Vocs ambos manifestam soberba e egosmo na conduta. A inteligncia que Deus lhes deu torna-os de tal maneira orgulhosos que se esquecem de que os direitos das criaturas humanas so semelhantes. Ora se vocs dois se juntassem, se unissem e mutuamente se alegrassem com os seus triunfos e possibilidades, que obras notveis surgiriam do vosso trabalho! Que bela vida seria a vossa! Pedro fungava, comovidssimo. O Dr. Soares bateu-lhe duas palmadinhas amigveis nas costas. - Espero que me compreenda, Pedro. E que, pela sua parte, faa tudo para remediar essa desarmonia. Lembro-lhes que a unio faz a fora... - agora dirigia-se a toda a classe. - E o valor alheio, meus senhores, no prejudica o nosso, nunca! Estridente, retiniu pelos corredores o som da sineta dando o sinal para o fim das aulas. O Professor mirou os rapazes, um por um; depois voltou para o seu lugar. A, metendo as mos nos bolsos das calas, disse apenas: - E por hoje... at amanh! A sada no se fez naquela desordem alegre, barulhenta, do costume. Os rapazes sentiam-se perturbados, inquietos, sem perceberem ainda ao certo porqu. O Pedro guardou os livros, os cadernos, o estojo de desenho e, vagarosamente, dirigiu-se para o corredor. Os colegas, afastando-se, deixavam-no seguir, sem uma palavra. Nenhum lhe falou, nenhum o olhou. O pobre Pedro sentia-se terrivelmente desamparado. No sabia que

as pupilas do Dr. Soares, cheiinhas de afecto e de compreenso, o seguiram at que ele desapareceu para alm da porta principal. 25 Pedro quase corria, em direco a casa. Estava ansioso por saber o que o Pai fizera, como resolvera o assunto e, principalmente, que notcias lhe daria do colega. Mas o Dr. Rui Manuel de Macedo ainda no chegara e a Rosinha-Me no sabia de nada. Pedro sentou-se mesa, para almoar. No conseguia comer, porm. Nem ouvir barulho. Andava-lhe a cabea roda e a sopa repugnava-lhe. - No quero sopa, Me. A Anita, que tinha a mania de o imitar, tratou logo de se aproveitar do facto de a Me, compreensiva, mandar retirar o prato do irmo, para imediatamente afirmar que tambm no lhe apetecia nada aquela sopa. Rosa Maria, claro, no transigiu. E a Anita, arreliada, comeou a chorar, a lamuriar. O Pedro, ento, olhou-a com superioridade. - J no tens idade para essas coisas, Ana! L dentro, o Salta-Pocinhas, que sempre almoava antes dos irmos e ia em seguida fazer a sesta, comeou a chamar pela Me, em altos berros. Era o costume. Dizia sempre que no tinha sono, que no queria dormir, e no fim acabava por s acordar s cinco da tarde, ou mesmo depois. Escutando-o, aborrecido, o Pedro pensava que os midos pequenos so quase sempre muito irritantes, muito fiteiros... Fiteiros, pois! Fiteiros como a Ana, que nunca mais acabava de fazer carinhas e caretas sopa... A certa altura no pde mais, torceu-se na cadeira, teve uma exploso de mau gnio e exclamou furioso, voltando-se para Rosa Maria: - Eles esto insuportveis! A Rosinha-Me fitou-o com os seus belos olhos to doces, to inteligentes, e sorriu. - Eles esto como nos outros dias, Pedro... e tu excepcionalmente aborrecido... embora com razes. Dessas razes, no entanto, eles no tm culpa! As pupilas do Pedro encontraram-se com as da Me. E as faces dele tingiram-se todas de corde-rosa. Ento baixou o nariz para o prato e principiou a comer o bife,

tentando dominar-se, porque nada mais seria preciso para demonstrar-lhe que no procedera acertadamente. Vendo-o pensativo, tambm a Anita acabou com as fitas e tratou de portar-se com juzo. L dentro, os gritos findaram. com certeza que o "Salta-Pocinhas j adormecera... Estavam a chegar ao fim da refeio quando se ouviu o ascensor parar e logo em seguida a chave rodar na fechadura. - O Pai! -balbuciou o Pedro. Rosa Maria saira da mesa, para ir ao encontro do marido. A Anita, como de costume, precipitou-se tambm, aos pulos. O Pedro, com o guardanapo na mo, caminhou at porta, mas no teve pernas que o levassem mais longe. E o Pai compadeceu-se dele, quando o avistou, muito plido, encostado ombreira, com as pupilas enormes cheias de uma interrogativa aflio. Beijou-o na testa. - Ol, Pedro! Numa voz trmula, o pequeno indagou: -Ento? O Dr. Rui Manuel de Macedo fez sinal para que todos de novo se sentassem mesa. Foi lavar as mos e voltou em seguida. Instalou-se, mas antes de falar barrou de manteiga, conscientemente, um pedao de po, que saboreou. O Pedro sentia-se estalar de impacincia, mas no se atrevia a dizer fosse o que fosse. Sabia perfeitamente que o Pai s se pronunciaria quando entendesse, quando achasse que era a altura prpria. E a altura, claro, chegou. A Me, disfaradamente, havia feito um gesto ao marido na direco do filho, rogando-lhe que o sossegasse. E o Mdico principiou: - Bom, rapaz, l fui ver o teu amigo. O Pedro encolheu-se na cadeira e Rui Manuel de Macedo, compreendendo o que isso queria significar, acentuou: - Amigo, sim. No fim de contas desconfio que vocs so amigos e no inimigos como parecem. Basta-me verificar a inquietao em que ests por causa dele... O Pedro levantou a cabea, protestou.

- No diga isso, Paizinho. Tenho a certeza de que ele no se importaria nada se fosse eu a vtima do desastre. - L esse pormenor no discuto. sempre difcil, Pedro, adivinhar as reaces das pessoas diante dos factos que no sucederam. Mas, perante o que se passou, uma coisa te afirmo - tu tens pena dele e ele no te culpa de nada! Houve um silncio. O Pai comeu metade da sopa. Depois deteve-se e acrescentou: - Segundo me disse, foi at ele prprio que te provocou. E o Pedro, ansioso: - O Pai viu-o? - Vi, sim. - E est mal ? - To mal quanto o pode estar uma pessoa com uma perna partida em dois stios, a cabea rachada noutros dois, e duas costelas fracturadas. Rosa Maria exclamou, consternada: - Que fatalidade! O marido concordou. - Fatalidade, realmente. Para ele e para os Pais. - O Dr. Lemos recebeu-te bem ? - No. - No?... Oh! - Acolheu-me pior que o Paulo. - Parece impossvel! - No, no parece, Rosa Maria, pelo contrrio. absolutamente admissvel. Est mais convencido da gravidade do sucedido do que o filho. Alm disso, na sua maneira de ver, o nosso rapaz o responsvel por tudo... Enfim, de qualquer forma, cumpri o meu dever e ofereci-lhe os nossos prstimos. - E ele? - perguntou o Pedro, anelante. - Bem, ele limitou-se a agradecer friamente e a responder-me que nem eu nem ningum podia dar ao Paulo o que estava perdido - um ano de trabalho e de aplicao. O Pedro tinha os olhos cheios de lgrimas. Reparando nisso, o Pai estendeu o brao por cima da mesa e fez-lhe uma festa na cabea.

- Pedro - disse ento, gravemente -, no te atormentes assim. Considero pior a discrdia constante em que vocs ambos andavam do que para a tua conscincia o foi o acidente de ontem. Naquela embirrao diria entrava a tua firme deciso de nada fazer para que o entendimento se 30 desse. Ao passo que no desastre propriamente dito no tiveste uma aco directa. Repara nisto -foi a fria dele contra ti e a cegueira em que ia que o impediram de ver o automvel!... Pedro no respondia, mas no se sentia nem tranqilo, nem convencido. O Dr. Macedo prosseguiu: - Fui v-lo para dissipar a m impresso que tem havido entre ns, mas deixa-me dizer-te que os Pais dele no colaboraram comigo em coisa nenhuma. A Rosinha-Me observou: - Esto magoados. natural. Ele encarou-a, muito srio. - Talvez seja natural, no digo que no, mas desta maneira, minha querida, no h possibilidade de conciliao. Para que exista unio, necessrio que tudo se harmonize, que as pessoas cedam umas s outras, ajudando-se e desculpando-se! Ora repara. Fui visitar o rapaz, parece-me que fiz o meu dever. Eles mostraram-me nitidamente que no precisam nada de mim... portanto fico vontade para l no voltar. De resto, aquilo h-de passar sem deixar vestgios e o moo fica ptimo. O Pedro pensava muitas coisas, muitas coisas. Pensava, mas no sabia ainda como exprimi-las, como transmiti-las ao Pai de modo a que ele as compreendesse e as aceitasse. Nesse instante a Anita, que durante toda a conversa, inclinando a cabea cheia de caracis muito curtinhos, estivera quieta e atenta a fim de no perder palavra e pelos vistos continuava decidida a no incomodar ningum, agarrou no jarro da gua para encher o copo. A criada, a Laura, que viu o gesto, precipitou-se em socorro dela, mas j no chegou a tempo. Anita segurara mal o jarro, que era pesado, e este, desequilibrando-se, virou-se e despejou-se todo inteiro em cima do Pai. O espanto foi to grande que, durante segundos, ningum falou. Depois Ana Maria desatou a chorar, a soluar, a pedir desculpa:

- Paizinho, meu Paizinho, no foi por mal! Desculpa, Paizinho! No foi por mal, no foi!... O Pai, zangadssimo como de calcular, ainda levantou a mo para um tabefe, mas deteve-se a meio. Ento, de testa contrada, limitou-se a erguer-se e a dizer para a mulher, que lutava entre a irritao e o desejo de rir com a figura do marido, assim encharcado: - Tem pacincia, Rosa, arranja-me outro fato. -e saiu da sala imediatamente. Rosa Maria foi atrs dele mas ao chegar porta deteve-se, virou-se para trs e avisou: - So horas de te ires embora, Pedrinho. Silencioso, o filho ps-se de p. A irm continuava a chorar, encostada mesa, enquanto a Laura tratava de retirar a loia a fim de mudar de toalha. Pedro aproximou-se de Anita, debruou-se para ela, afagou-a, beijou-a na testa. - No chores mais, Ana. O Paizinho perdoa-te. Entre soluos, a pequena repetiu: - No foi por mal, Pedro. No foi por mal! - O Paizinho sabe que no foi por mal. - e logo aps, abanando a cabea, acrescentou: Pois... a gente no faz as coisas por mal... mas elas acontecem e no se fica bem c por dentro. Os outros perdoam, percebem, mas o mesmo, uma pessoa sabe que fez a asneira e adeus sossego! Tornou a beij-la e dirigiu-se para o corredor. - At logo, mana. Parece que estamos todos em mar de pouca sorte! Ns dois j fizemos tolices... Agora s falta o Salta-Pocinhas! A barulheira terminou quase por completo. Conforme ele ia passando, os outros caam num silncio francamente hostil. As cabeas baixavam-se, nenhuma boca respondia ao "boa-tarde" que ele, apesar de intimidado, no quis deixar de dizer. E aquilo era tudo quanto de mais singular, de mais extraordinrio. Porque todos costumavam cham-lo, reclam-lo para os jogos, quase se zangando uns com os outros quando no eram os preferidos. Pedro tinha o corao to apertado, to apertado que fazia esforos desesperados para no chorar, enfiando as mos nas algibeiras dos cales e fechando os olhos numa angstia crescente. Sim, compreendia! Os outros faziam tudo aquilo porque o consideravam culpado do desastre do Paulo e pretendiam castig-lo, manifestando-lhe a mais completa desaprovao. Culpado, ele!...

Tristssimo, afastou-se para um canto e para ali ficou sentado, sozinho, espera de que a sineta tocasse, chamando para as aulas. Os minutos, porm, arrastavam-se. Era como se aquele recreio nunca mais chegasse ao fim. Um verdadeiro suplcio! Libertados da presena dele, os rapazes haviam recomeado com os seus divertimentos. Assistindo, de longe, Pedro meditava nos maus resultados da falta de compreenso entre ele e o Paulo, falta de compreenso que estava ainda continuando na conduta dos colegas, como frutos detestveis de uma rvore bem ruim! Para qu, a inimizade? Para qu, a malquerena? Se fossem todos unidos, nem o Paulo estaria no Hospital nem ele to infeliz abandonado naquele recanto, mal visto, indesejvel desde a vspera! E duas lgrimas, lentas, salgadas, escorregaram-lhe pela cara. Quando as limpou, sentiu sobre o ombro direito o peso de uma carinhosa mo. Surpreendido, voltou-se. Ao p dele estava precisamente o nico rapaz do Colgio a quem nunca ligara importncia - o Francisco. O Francisco, o pior de todos, turbulento, indisciplinado, cbula... a peste da 4.a classe! E eis precisamente ali o Francisco, ao seu lado quando todos o punham margem, sem perceberem que ele, Pedro, tambm estava sofrendo e tambm precisava, pelo menos, de uma palavra amiga. O Francisco, no para lhe fazer qualquer diabrura, qualquer partida, mas olhando-o com afecto e humildade, como o Frufru da Dona Ester do primeiro andar, exactamente como se desejasse ficar ali e receasse que o Pedro lhe dissesse, como era costume quando entre os favoritos "sai daqui. Tu no s de fiar! ". No entanto o Pedro nem se lembrou de mand-lo embora. Primeiro fitou-o, sinceramente espantado. Depois ergueu os dedos e apertou os do colega, percebendo que ele viera para consol-lo. Ento o Francisco falou, cheio de deciso: - Pedro, queria dizer-te uma coisa. que... apesar de eu ser um grande maroto e um mau estudante, no acho bem o que os outros esto a fazer. Tu no tens culpa do desastre do Paulo. Tu no mereces isto, porque tu s bom... -principiou a gaguejar, a atrapalhar-se, mas terminou: Eu sei que tu s o melhor de todos... e eu c no fundo... eu c no fundo tenho muita pena de no ser como tu! A sineta, finalmente, tocou, badalou, encheu o ar de tlins-tins-tins alegres, convidativos. A rapaziada, grandes e pequenos mistura, foi-se toda sumindo pelas

portas do enorme casaro amarelo cheio de janelas cujos vidros faiscavam ao sol. Pedro no se apressava. Estava comovidssimo. E abraou-se ao outro. - Obrigado, Chico! -exclamou, vibrante. - Muito obrigado! E olha que nunca me esquecerei das tuas palavras, mas mesmo nunca, percebes? - e de repente, enfiando o brao no brao de Chico, arrastou-o para o largo porto que dava acesso s classes primrias. - Olha l, mas porque que tu no me imitas se tens pena de no ser bom aluno como eu? - e logo acrescentou, gentilmente - Que eu c no sou especialidade nenhuma ... O Francisco interrompeu-o. - Ai no que no! s o primeiro aluno e s amigo, que eu bem vejo, e ests sempre pronto a ajudar toda a gente! - Eu nunca te ajudei! - Ora! Eu no mereo nada! - Mereces, sim! Afinal tu foste o nico que veio ter comigo, hoje. - Tive pena de ti. Sei quanto custa uma pessoa ver-se posta de lado! Pedro olhou-o, cada vez mais surpreendido. - Ento tu sofres quando andas sozinho? Francisco confessou: - Sim, um pedao. E mais j estou habituado. Ningum gosta de mim! - Isso julgas tu! Que eles pareciam todos muito meus amigos e v o que me fizeram! At parece que fui eu que empurrei o Paulo para debaixo do automvel!... O Francisquinho dir-se-ia ter uma grande experincia da vida. - Deixa-os l... No fim de contas, sabes o que eles tm de ti?... Inveja! - Inveja?... No! - , !... E como nunca puderam chegar-te, nem tm outra forma de te dar para trs... aproveitam-se agora pra te amachucarem. Sabes o que deves fazer? No lhes ligues. Nem te rales! Pedro abanou a cabea. - Isto assim muito desagradvel! At uma pessoa desanima! - Qual desanima qual carapua! Fazes favor de no ser trouxa, heim?

O Pedro sorriu da expresso e da linguagem to pitoresca e to pouco fina. - Espera l... Mas se tu pensas assim porque tens cabea! - Ah, l cabea tenho! No a vs, aqui em cima dos ombros? Pedro achou graa e riu. - No isso que eu quero dizer! - Ento? - Creio que tu s capaz de no ser... - e deteve-se. Custava-lhe a dizer "o ltimo do Colgio"... Mas o Francisco percebeu e tirou-lhe a frase da boca, proferindo-a ele prprio e sua maneira. - De no ser o burro que julgam?... Enganas-te! No sou nada capaz! -e confessou: - Sabes, acho que no sou esperto! J tenho doze anos. J fiquei chumbado duas vezes na 4.a classe... Custa-me muito a compreender as coisas, nos livros. E depois, como no consigo que me liguem importncia pelo meu trabalho, s me d vontade 36 de chamar as atenes de outra maneira... e vai da fao asneiras! - e, como que resignado, terminou: - uma infelicidade como outra qualquer! O Pedro deu-lhe uma palmada nas costas, to forte que o Francisco, mais baixo e mais franzino do que ele, por pouco no caiu. - Mas isso tem remdio, Chico! - Que remdio? - Pede ao teu Pai que te arranje um explicador. Francisco ps-se muito srio e depois coou na cabea, atrapalhado. - Bom, j agora... conto-te tudo. Um Explicador... isso queria eu! - Ento fala ao teu Pai. Porque esperas? - que... eu no tenho Pai, percebes? - No tens Pai ? - No! O meu Pai foi pr Brasil era eu muito pequeno e nunca mais deu notcias. A minha Me est empregada e, coitada, j faz sacrifcio em trazer-me a estudar. Pr-me aqui neste Colgio a ver se eu andava para a frente... - Mais uma razo para fazeres todo o possvel e no afligires a tua Me!

Francisco encolheu-se. - L isso verdade. Mas se j te disse que no sou capaz! No sou capaz e pronto, no sou mesmo! -e com a voz a tremer, concluiu: - No presto pra nada, Pedro. Eu c sei isso muito bem. No presto pra nadinha! Pedro ficou srio, pensativo, com uma ruga cavada na testa, essa ruga que o tornava muito parecido com o Pai, quando o Dr. Rui Manuel de Macedo tinha qualquer grave preocupao a afligi-lo. Separaram-se diante da sala do Francisco. Quando o Pedro entrou na sua classe, quase dez minutos atrasado, o Professor de francs, 37 Dr. Cludio ngelo, mirou-o atentamente, com um ar de estranheza em que o rapaz nem sequer reparou. Tal como no notou que o Mestre continuava de quando em quando, por cima dos culos, a mir-lo, cada vez mais intrigado, e sem o chamar lio. Tampouco prestou ateno, o Pedro, aos cochiches dos colegas, quando no fim da aula saiu para o corredor, de cabea baixa. Provavelmente os outros julgavam-no sucumbido pela atitude que aviam tomado contra ele. A verdade, porm, que o Pedro agora nem os via. E em contrapartida no lhe passou despercebido o vulto franzino do Francisco, que parecia estar espera dele, encostado ao muro da cera. Aproximou-se imediatamente do novo amigo. - Ol, Chico!... Ento como correu isso hoje? O outro baixou a cabea. - Tu sabes... no chegou a correr! - O qu?... - Nada! No correu! - No correu?... E se tu te explicasses direito? - simples. O Sr. Prof. Matos no me deixou assistir aula. - Porqu? - Porque entrei atrasado quase dez minutos. Os lbios de Pedro arredondaram-se num oh! de espanto e os olhos brilharam-lhe de indignao. O Francisco, resignadamente, concluiu, com um sorriso corajoso: - A minha Me costuma dizer-me que quando um co tem fama de ruim toda a gente lhe atira pedras...

Ento Pedro respirou fundo. O peito dilatou-se-Lhe numa profunda inspirao, como fazia na ginstica. E dando o brao ao companheiro, arrastou-o com ele. 58 - Quem foi? - tornou a perguntar a Rosinha-Me, desta vez j seriamente zangada, com aquela cara desagradvel que raras vezes lhe viam. Vamos, quem foi? Convocado assim de repente, mal entrara em casa, e interrogado daquela maneira, o Pedro nem sequer percebia o que estava a passar-se. L que havia qualquer coisa de extraordinrio, havia. Mas qu?... E que tinha ele com o assunto, fosse qual fosse? A Anita, soluando, repetia que no fora ela, que no fora que no fora. - Eu juro, Mezinha! Eu at juro!... A Me franziu a testa. - Acredito que no fosses tu, mas no jures nada, porque s ainda muito pequena para compreender toda a importncia dessa palavra. - Mas, Mam, eu juro... - Pronto, Ana, pronto! No digas mais nada, que tolice. Repreendi-te uma vez, chegou, creio. E fixa - na tua idade uma pessoa limita-se a manifestar a sua sinceridade, simplesmente, sem mais coisa nenhuma. A verdade, quando existe, depressa se deixa reconhecer. Depois, elevando mais a voz, Rosa Maria inquiriu de novo: 39 - Vamos a saber, portanto. Quem foi que mexeu nos boies das compotas e atirou com um deles ao cho? Pedro pestanejou, verdadeiramente atarantado. Acaso a Me julgaria que tinha sido ele?... Isso era de pasmar! A Me sabia perfeitamente que ele no mexia em nada e tambm que, se houvesse feito qualquer asneira a declararia acto contnuo, como de costume! De repente, porm, fez-se-lhe luz no esprito. Erguera o rosto para olhar a Me de frente e, surpreendido com a expresso das pupilas dela, seguira-lhes a direco... e vira o Salta-Pocinhas, vermelho como um pimento, torcendo desesperadamente a ponta do bibe... E quando a Me inquiriu outra vez ainda "quem foi ?..." ele j no se sentia atrapalhado. A Anita continuava a chorar. O Pedro teve vontade de rir e de dar-lhe um safano para a obrigar a perceber, para a levar a admirar o irmo mais novo que, precisamente

nesse instante, levantava um dedito no ar. Os olhos de Rosa Maria brilharam, traduzindo um pensamento de satisfao, de alvio. "Vai confessar, o meu pequerrucho"... Isto imaginou a Me que ia suceder. Mas ai!... O Salta-Pocinhas, sempre com o dedito muito espetado, disse apenas: - O Ruman tambm no foi!... Houve um silncio. Depois a Me aproximou-se dele, passou a mo por debaixo do queixito redondo onde costumava depor uma srie de beijinhos a fio e, olhando-o gravemente, perguntou, sem se alterar: - Ento tambm no foste tu?... O Pedro observou que a Me no lhe chamara beb como habitualmente, esse beb ridculo que ele, Pedro, transformara em Salta-Pocinhas atendendo a que Sua Excelncia o migalha de gente sempre que andava na rua em dias de chuva tinha de saltar quantas pocinhas achava no caminho... Rui Manuel abanou a cabecita. - No! - com certeza? - No! - No mexeste em nada ? - No! - Mas mesmo em nada? - No!... -e para sustentar melhor a negativa, explicou: -No tava l cando o boio caiu! A Anita deixou de chorar. O Pedro aproximou-se dela e abraou-a, apertando-a como se desejasse tranqiliz-la. Ela j compreendera. Rosa Maria ainda no largara o queixo de Rui Manuel, que se torcia todo e parecia querer escapar-se. - Larga, Me... Larga o menino!... - Espera, espera l que eu preciso de saber uma coisa. com que ento... tu viste cair o boio... No verdade que viste, Rui Manuel? Toma! A Me dizia o nome completo - Rui Manuel... O caso estava a tornar-se feio para o Salta-Pocinhas. Porque a Rosinha-Me zangava-se poucas vezes, mas quando isso acontecia metia respeito e ficava de memria!

Lembrar-se ele da tareia (talvez tivesse sido a nica!) que a Me lhe dera certa vez em que, depois de ter lido umas aventuras de ndios, resolvera com uma cana e uns alfinetes experimentar os bons resultados das improvisadas setas picando a Rosinha uma poro de vezes na barriga antes que ela descobrisse o que se estava a passar e tratasse de o meter na ordem para o livrar de idias extravagantes!... O Salta-Pocinhas continuava calado, embaraadssimo. - Rui Manuel, faz favor de responder-me. Viste ou no viste? - No viste! - respondeu o pequeno, finalmente. - Ah!... Depois, largando o queixo do filho, Rosa Maria perguntou: - Ouve l, Rui Manuel, porque que s tens um p calado? Onde est o outro sapatinho? Pedro e Ana esticaram os pescoos, para ver melhor, e descobriram que o irmo, efectivamente, tinha um p descalo. Ah, a Me! No lhe escapava nada, nada! Mesmo que tentassem engan-la no o conseguiriam. O Salta-Pocinhas no se desconsertou. - Pedi o sapatino! - Perdeste o sapatinho? - Pedi... - Onde? - No sei. - No sabes? - e o rosto fresco da Me expressava a mais intensa contrariedade. - No sabes? Depois, parecendo nervosa, agitada, voltou-se e disse: - No saiam daqui. Eu j volto. O Pedro dirigiu-se ao Salta-Pocinhas. Estava indignado. - Olha l, mafarrico, tu no tens vergonha de estar a fazer zangar a Mezinha? Se foste tu que mexeste nos boies, porque que no contas a verdade? Mereces uma... No chegou a dizer o que ele merecia. A Me voltara, trazendo na mo um pequeno objecto encarnado que logo apresentou ao filho mais novo.

- Aqui tens o teu sapato, Rui Manuel. Eu encontrei-o. E agora, cala-te. 42 Ruman estendeu a mo e agarrou no sapato, disposto a obedecer. Intimamente, devia estar convencido de que a Mam no desconfiava de nada... Mas acontece que isto de mentir uma das coisas mais difceis que h. Parece uma espcie de rede por cujos buracos enormes anda a verdade sempre a espreitar... E o Salta-Pocinhas, ao segurar no sapato, ficou com as mos todas lambuzadas, os dedos peganhentos... Largou o sapato no cho e rompeu a chorar. - Ento no te calas, Rui Manuel? O pequeno soluava. - T... t sucho! - Est sujo de doce, no ? - T... t munto... sucho! - Nesse caso, Rui Manuel, quem foi que mexeu no doce? Mas o Salta-Pocinhas era terrvel. Limpou a cara s mos e respondeu. - Natralmente foi o sapato, Mezina! O Pedro no pde conter uma risada. E a Anita parecia que s tinha olhos, tanto os abria com o espanto. A Me fez-lhe sinal para que se calassem e continuassem sossegados. Depois, voltada para o catraio, exclamou: - com que ento, foi sapato!... Que mau que ele , Rui Manuel! Comeu o meu doce, o doce de que o Paizinho tanto gosta e ainda por cima partiu o boio! Foi uma grande maldade, sabes? Rui Manuel pusera-se muito srio, olhando alternadamente a Me e o sapato. Depois balbuciou: - O sapato feio... mas foi s uma vez, Mezina... eu pometo que ele no tona... A Me continuava sria. - Mas como pode o Rui prometer uma coisa dessas? No foi o Rui, foi o sapato!... Pedro notou que a Me j no dissera Rui Manuel mas somente Rui... A tempestade comeava a diminuir. O Salta-Pocinhas baixou a cabea.

- Pois foi... mas ele ia no meu p... e agola no vai l... nunca mais!... - Muito bem. filho. Mas como o sapato levou tempo de mais para mostrar a verdade, vai de castigo para o quarto dele e o beb acompanha-o e s de l sai quando eu der ordem. Percebeu?... O Pedro observava tudo. E admirou sinceramente a ternura daquela palavra beb ligada ao castigo exemplar... A Rosinha-Me era realmente extraordinria! E com uma to boa Me, quem havia de ter vontade de dar-lhe desgostos? Ningum, claro! O Salta-Pocinhas, sem protestos, agarrara no sapato e sara, a caminho do quarto. A Me seguiu-o com o olhar. Dir-se-ia comovida. O Pedro aproximou-se dela e abraou-a. - Mezinha... perdoa-lhe! Rosa Maria, porm, abanou a cabea em negativa. - No, Pedro. preciso que ele aprenda, principalmente, a no mentir. - e acrescentou, sorrindo enfim: - Desculpem, filhos. Eu sabia muito bem que no tinha sido nenhum de vocs... mas tanto tu, Pedro, como tu, Anita, j esto educados, j conhecem os seus deveres... e o Rui Manuel precisa de aprender para vir a ser como vocs dois. Foi por isso que fiz esta reunio, a ver se ele se decidia a contar a verdade. Foi uma lio que lhe dei. Anita pendurou-se ao pescoo da Me, cobriu-a de beijos. O Pedro, aprumado, declarou: - Tudo o que tu fazes, Rosinha-Me, sempre bem feito! Rosa Maria ps-se a rir. - muito lisonjeiro... e eu gosto que assim penses, confesso. Sinto-me feliz de te ter por filho!... - depois, de repente, lembrou-se: - verdade, Pedro, olha que telefonou para c a madrinha do teu colega Filipe, convidando-te para ires amanh aos anos do pequeno. O rapazito franziu o nariz. - Amanh, quando? - Depois das aulas da tarde. Pedro no estava entusiasmado.

- A Me disse que sim? - Aceitei, em teu nome. Mas... no te dei grande satisfao, pois no? Pedrinho encolheu os ombros. - No me interessava muito. Preferia ficar a estudar. Rosa Maria riu com mais vontade. - Pelos vistos, Pedro, afinal nem tudo quanto eu fao bem feito, heim?... Ento, compreendendo-a, Pedro acabou por fazer coro com a Me e tambm riu alegremente. 45 Quando a Me de Filipe adoecera e partira para o Sanatrio, uma grande casa de sade no alto de uma serra enorme, deixara o filho entregue madrinha, uma velha amiga rica e bondosa que se dedicou a amar a criana como a estimara a ela, desde pequena. A Me de Filipe nunca mais regressou. E o petiz esqueceu-a, naturalmente, sem sofrimento. Tinha muito pouca idade. A madrinha adorava-o e em tudo substitua a Me desaparecida, cuidando do bem-estar e da educao do afilhado com os maiores carinhos. Filipe era doido por ela e com muitssima razo. No lhe faltavam mimos. No havia nada que ele sonhasse que a madrinha no diligenciasse imediatamente transformar em realidade. Dona Ana, uma senhora j de certa idade, ainda bonita com os seus cabelos brancos apertados num carrapito no alto da cabea, coxeava bastante. O Filipe, porm, habituara-se de tal maneira quela forma de andar da madrinha, que nunca dera f de que as duas pernas da sua segunda Me no tinham o mesmo comprimento. Toda beleza bondade, a madrinha personificava a felicidade de Filipe. Este crescera esperto e engraado, embora caprichoso e um pedacito desobediente. Durante a instruo primria tivera sempre Professora em casa e no custara nunca a aturar. Depois de fazer o exame de admisso ao Liceu, entrara para o Colgio e a o Filipinho transformara-se num Filipo travesso e garoto por sete! Levado da breca! No que fosse mau, o que se chama mau. Mas s gostava de correrias, de pulos, de tudo quanto fosse barulhento, violento e, portanto, muitas vezes bastante perigoso. Na casa pacfica de Dona Ana havia sossego apenas quando o Filipinho estava no colgio.

A madrinha, desolada, por mais que aconselhasse o endiabrado, no conseguia que ele lhe desse ouvidos. E para ter calma e no ouvir barulho, a excelente senhora fechava-se no quarto durante horas seguidas. Filipo atroava tudo e todos com as suas idias extravagantes e os seus guinchos de ensurdecer. No pegava num livro para ler, no fazia um desenho, no se entretinha com os jogos engraadssimos que lhe davam e as construes que se empilhavam na estante do quarto dele. Naquele dia, porm, como Filipe ia festejar o seu dcimo-segundo aniversrio, a madrinha encheu-se de coragem para ouvir barulho; e foi ela prpria que. tomou a iniciativa de reunir em volta do pequeno, para festejar o acontecimento, alguns dos seus condiscpulos e amigos. Os favoritos. O Pedro nunca fora muito da intimidade do Filipe. Mas viu-se includo no nmero dos preferidos por ele e reunido com os numerosos convidados no jardim da moradia. Estavam bastantes, ainda assim. O Joanico, o Fausto, os dois gmeos Melecas, (Jos Maria e Manuel Maria), o Antnio, o Nuno, o Manuelzinho, o Vasco e o Carlos. O Francisco, o da 4. a classe, no apareceu, apesar de ser, no Colgio, um dos que mais acompanhavam com o Filipe, normalmente. Pedro julgou perceber o motivo da singular ausncia. Filipe escolhera os que deviam ir festa dos seus anos, no entre os mais ntimos, mas entre os mais afortunados. E, realmente, as prendas tinham certa categoria. Discos, caixas de aguarelas, uma bola de futebol, um jogo de pingue-pongue, uma lapiseira esplndida, e alguns bons livros, tambm. Mas aos livros o Filipe no ligava muita importncia, claro! A brincadeira, no jardim, at hora da merenda, foi bravia, embora sem fugir a limites convenientes. Depois, o lanche, servido debaixo do caramancho, numa compridssima mesa repleta de iguarias apetitosas, regalou a rapaziada devoradora. Em seguida, barriga cheia de sanduches, croquetes e bolos, chupando rebuados, muito bem dispostos, quiseram arranjar qualquer brincadeira ainda mais divertida do que as anteriores. - Vamos aos polcias e ladres! - alvitrava o Z Maria Melecas. - melhor s escondidas! - dizia o Manuelzinho. - Antes ao agarra! -protestava o Carlos. - E se fssemos ao trapo-queimado ? - lembrava o Fausto. Era uma barulheira de tal ordem que ningum se entendia.

Mas o Filipe tinha l a sua fisgada e no tardou em manifest-lo. Trepou para um banco e gritou: - Nada disso! Vamos mas brincar s guerras! O Pedro, sempre razovel, ainda tentou dizer que s guerras no tinha graa nenhuma. Mas, francamente, a casa no era dele; no passava de um convidado, e o Filipe continuava entusiasmadssimo, no meio do alarido aprovador: - Sim senhores, vamos brincar s guerras! Uns ficam no primeiro andar, outros no rs-do-cho. Fazemos trincheiras com cadeiras e mesas. Eu tenho a uns paus que servem de espingardas. E arranjamos pedras a fingir de balas e de bombas. - Vamos! Vamos! Vamos! Estavam delirantes. A colheita de pedras foi abundantssima. O Pedro, receando que tudo aquilo pudesse acabar mal, ainda quis esquivar-se, dizer que com coisas srias no se devia brincar. Mas o Vasco obrigou o Filipe a decidir-se por uma questo de brio, olhando para o Pedro desdenhosamente e dizendo aos outros: - Deixem-no! No faz falta nenhuma entre ns! um cobarde! Pedro sentiu tentaes de lhe saltar em cima... Mas dominou-se e, encolhendo os ombros, exclamou apenas: - No sou cobarde, no... Vamos l brincar a essa coisa. E l foram em tropel para dentro de casa. Fizeram as trincheiras, prepararam tudo e comeou a guerra entre a tropa assaltante (a do rs-do-cho) e a defensora (a do primeiro andar). A valentia era extrema de parte a parte. J havia cabeas doridas pelas pedradas, mas nenhum dos rapazes dava parte de fraco. No entanto os assaltantes estavam a perder. Os defensores vinham descendo a escada e principiavam a chegar rijo aos de baixo com as "coronhas" das espingardas, que eram os paus, bem entendido. Ento Filipe, como Chefe dos assaltantes, agarrou numa pedra maior do que as outras e soltou um grito selvagem: - Eh, valentes... aguentem-se. L vai uma granada de mo!... 50

Ouviu-se, quase no mesmo instante, um grito de dor, um grito feminino. A rapaziada, surpreendida e assustada, aquietou-se instantaneamente. Ningum se apercebera, no furor da luta, da porta que se abrira no primeiro andar dando passagem senhora que primeiro espreitara e depois principiara a descer a escada tambm, de expresso inquieta e olhos tristes. E a granada lanada pelo Filipe acertara-lhe em cheio na testa. Via-se agora um fiozinho de sangue correr-lhe pelo nariz abaixo, pingando para a blusa de seda branca. Ao cabo de instantes, Filipe saiu da confuso aterrorizada em que todos permaneciam e, doido de aflio, precipitou-se para a madrinha, chorando a bom chorar. E abraava-a pela cintura, agarrava-se a ela, beijava-a. - Madrinha, minha querida madrinha, magoei-a muito? Magoei? Dona Ana suspirou, segurando-o pelos ombros: - Mais do que pensas, Filipe. O rapazinho soluava, tremia. - Mas no foi por mal, madrinha! No foi por mal! Era a brincar s guerras... e eu no a vi!... O Pedro, de fronte contrada, pesaroso, assistia lembrando-se da cena que dias antes se desenrolara entre o Toms e o ceguinho atingido pela pedrada. Parecia-lhe que o Filipe tambm presenciara o incidente... e nem compreendia como era possvel que ele no tivesse aproveitado os ensinamentos dessa inesperada lio, mais proveitosa que todos os discursos do Professor de Moral, porque fora um exemplo e os exemplos no se esquecem nunca. Dona Ana acabara de descer a escada, no meio do silncio geral. E convidava os rapazes a seguirem-na. - Venham, meus filhos. Acompanhem-me. Entraram todos para a sala, atrs dela. 51 A madrinha de Filipe sentou-se, com um leno apoiado ferida para enxugar o sangue. Filipe ajoelhou-se-lhe aos ps, repetindo sempre: - No foi por mal, madrinha, no foi por mal!... A madrinha falou por fim. E disse: - Acredito-te, meu filho. Sei isso perfeitamente. Mas escuta. Toda a gente sabe que as guerras, todas elas, at estas, feitas a brincar, atingem os inocentes, os

que nada tm a ver com os conflitos, percebes? por isso que no se devem utilizar como divertimentos as coisas srias. Srias como a guerra!... A guerra, que s causa dores, runas, desgraas!... Os pequenos, sufocados, nem se moviam. O Pedro no tirava os olhos do rosto daquela senhora toucada de branco pelos cabelos. - Oiam, meus amiguinhos, - continuou Dona Ana, - vou contar-lhes uma histria verdadeira, para que saibam at que ponto tenho razo. - e principiou: -H muitos, muitos anos, eram crianas os vossos Pais, vivia um casal muito feliz em certa localidade da Frana. Esse casal tinha uma filha j crescida que era a sua grande riqueza, a sua maior alegria. Depois, certo dia, rebentou a guerra... uma guerra enorme, e a guerra deu cabo dessa felicidade. O Pai, Mdico militar, foi para as linhas de batalha. A Me ficou em casa, a chorar, a entristecer, consolando-se apenas com a idia de que o marido era um heri. Devo dizer-lhes que havia uma grande fortuna nessa famlia. Isto no passa de um pormenor cujo interesse vo conhecer. A filha, de que j lhes falei, fizera os vinte anos h pouco tempo. Como todos os homens vlidos, claro, estavam mobilizados para defender a Ptria da odiosa agresso, cumprindo o seu dever, evidentemente, no havia pessoal que tratasse da bela 52 propriedade. A rapariguinha, forte e corajosa, no tinha medo ao trabalho. E dedicou-se a fazer tudo quanto preciso se tornava, absolutamente tudo! Depois, um dia, sofreu um grave desastre. Caiu de uma rvore, quebrou uma perna. O velho doutor tratou-a... Mas era preciso oper-la, a fim de que no ficasse aleijada. No faltava dinheiro em casa e estavam muito longe das zonas de combate. Pois aconteceu que a pobre rapariga no pde ser operada. uma, as vozes juvenis ergueram-se, numa interrogao cheia de interesse. - Oh! Porqu?... Porque faltavam todos os meios de transporte! Porque faltava quem guiasse um automvel! Porque faltava a gasolina. Porque faltavam nas localidades prximas os Cirurgies capazes de realizar aquela operao! O velho doutor tratou-a como pde. A perna consertou-se. Quando a guerra findou e o Pai regressou, coberto de cicatrizes e de glria, encontrou a sua nica filha aleijada para sempre!... E, no meio do silncio geral, a senhora levantou-se e comeou a andar. E andando coxeava, coxeava...

S ento o Filipe viu e compreendeu. A sua madrinha, defeituosa, por causa da guerra!... E ele que a brincar s guerras a magoara outra vez!... Os rapazes deixaram-no a chorar entre os braos da madrinha, a chorar e a prometer emendar-se dos seus defeitos. Quando iam a sair, o Vasco aproximou-se do Pedro. E baixinho, envergonhado, pediu-lhe: - Desculpa!... 53 Pedro ia profundamente impressionado com tudo quanto se passara na festa de anos do Filipe, quando entrou em casa. A Me sara e ainda no tinha voltado da rua. O Salta-Pocinhas estava a acabar de jantar para ir deitar-se. Assim que o viu fez um alarido enorme, a chamar por ele. E o Pedro no lhe regateou festas. De vez em quando tinha verdadeiras crises de ternura para com o irmozinho mais novo, que fazia trinta mil por uma linha, que lhe mexia nos livros, que lhe rasgava os papis, que lhe estragava os jogos, mas que era o seu irmo, o pequenito irmo a quem acabava sempre por desculpar atendendo a que... enfim... a que era mesmo o irmo, era o Salta-Pocinhas! No final da refeio, ainda com a boca atafulhada de banana, o Ruman exigiu que o Pedro o levasse para a cama, carregando-o s cavalitas. Pedro fez-lhe a vontade e o Salta-Pocinhas, doido de alegria, gritava a plenos pulmes, contentssimo. Quando passavam diante do quarto de Anita, a porta entreabriu-se e o rosto da pequena surgiu, espreitando. - Ol! -disse o Pedro. Ela parecia assustada, ou inquieta, por qualquer razo desconhecida. E segredou: 55 - Preciso de falar contigo, Pedro!... Ele franziu a testa, com estranheza. - Que ? - Assim que puderes, vem c, sim ? O Salta-Pocinhas no queria larg-lo, ainda se preparou para fazer berrata, protestando, mas a criada, a Laura, distraiu-o com os bonecos do velador do candeeiro, principiou a contar-lhe uma histria e o Pedro escapuliu-se. A irm esperava-o e, assim que ele entrou no quarto dela, fechou a porta, cuidadosamente.

- Ai, Pedro... ainda bem que no te demoraste! Pedro no cabia em si de espanto. - Que h ? Que se passa ? Anita mordia o beio inferior, visivelmente atrapalhada. - Sabes, Pedro... estou com medo! - Medo de qu? - Medo de que a Mezinha me ralhe. - Medo de que a Mezinha te ralhe? - Sim, Pedro. Pedro enfiou as mos nas algibeiras, empertigou-se. - Temos tolice, Ana Maria ? Anita encolheu os ombros. - No sei... no sei se foi tolice! Mas a Mam capaz de ralhar comigo! - Se ralhar contigo porque o mereces. - Tenho estado to atrapalhada, Pedro! Por isso que te chamei. Pedro sentou-se na beira da cama, disposto a ouvi-la e a ajud-la tanto quanto pudesse. - Est bem. Conta l. Ela, porm, no contou nada e limitou-se a perguntar: - Tu conheces a Teresica, Pedro? 56 - A Teresica? No, no tenho idia. Quem ela? - Bom, a Teresica a filha da Peixeira. - Da que vende c em casa? - Dessa mesma. Vive numas barracas, para alm de um largo... Pedro encolheu os ombros. - No sei onde ficam as barracas. Nunca as vi. Nem conheo essa tal Teresica. Anita estava disposta a faz-lo lembrar-se da Teresica, antes de lhe descrever o resto. - Conheces, sim. s vezes ela vem a com a Me. uma do meu tamanho, com o cabelo preto, escorrido...

- No conheo. - Ela at costuma andar com uma boneca ao colo, uma boneca muito feia, vestida de farrapos... No, decididamente, o Pedro no tinha idia nem da Teresica nem da boneca feia. E impacientou-se. - E depois?... - E depois... - Anita hesitou. Por fim, decidiu-se a inquirir: - Pedro, recordas-te daquele xaile cor-de-rosa, muito fofo, muito quentinho, que a tia Elisa trouxe do Porto e me deu no dia dos meus anos? Os olhos do Pedro abriram-se, enormes, espantadssimos. Principiava a recear que a irm no estivesse boa da cabea... A que propsito viria tanta recordao e que teria a tal Teresica a ver com o xaile cor-de-rosa dado pela tia Elisa? Anita, porm, insistiu: - Responde, Pedro. Lembras-te do xaile ou no? - Lembro-me, lembro-me do xaile. E da?... - Bom, tu sabes... que a Teresica muito boa menina... 57 - Mau! -resmungou o Pedro. - Cada vez pior"! Como se o no ouvisse, Anita continuou: - At a Me dela costuma dizer que a filha trabalha muito, que a ajuda em tudo, que obediente, que a sua nica felicidade... Pedro acabou por perder a pacincia e levantou-se. - Olha l, Ana, isso alguma charada? - Charada? - Alguma charada, pois! - Porqu? - Porqu?... Ora essa! Falas-me da Teresica, depois do xaile, depois da Teresica outra vez... Que trapalhice!... - No, no trapalhice nenhuma!... Eu j explico tudo. - e sorriu. - Tu vais compreender, espera.

- Ento despacha-te, sim? - A Teresica passou a na rua, h bocado, a tossir, a tossir... Eu estava janela, chamei-a e perguntei-lhe porque que ela tossia assim. O Pedro comeava finalmente a perceber, mas no a interrompeu. E a irm continuou: - A Teresica disse-me que tem estado doentinha, com febre... muito engripada! Coitada!... As noites esto frias, a barraca deixa entrar o vento e a chuva... - e baixando a voz, acrescentou: - Parece que a Me dela vendeu os cobertores para comprar peixe, sabes?... Aqui, o Pedro quase nem respirava. E a Anita concluiu, de um flego: - Entendes agora?... Eu no tinha mais nada... e, de repente, foi assim como uma coisa que me empurrou, olha, no pensei mais! Agarrei no xaile cor-de-rosa e zumba! Dei-lho! Houve um pequeno silncio. Depois, choramingando, Anita murmurou: 58 - Foi sem licena da Mezinha!... E tenho medo que a Mezinha me ralhe... Nesse mesmo instante aporta do quarto escancarou-se e a Me, aparecendo, precipitou-se para a pequena e abraou-a, tanto, tanto, que parecia ir amachuc-la. - Querida, minha querida, a Me nunca ralha porque os seus filhos cometem boas aces! - e cobria-a de beijos. - Pelo contrrio, meu amor. Sinto-me feliz, feliz, feliz... por teres sido to boa! Os dois irmos no cabiam em si de satisfao. A Anita, essa ento chorava e ria, agarrada Me. O Pedro, satisfeitssimo, dava cabea e discursava. - E esta, mhm?... A gente no ouviu a Mezinha chegar!... Teve graa, foi melhor assim! Rosa Maria explicou. - Entrei com o Paizinho e realmente no fizemos barulho, mas no foi de propsito. Quando passava no corredor, para ir dar um beijo ao Salta-Pocinhas, ouvi vozes... Ento parei e escutei a vossa conversa. - rindo, concluiu: - Desculpem a indiscrio, sim?... A Anita bateu palmas, j radiante. - Ora, Se a Mezinha no ouvisse eu contava-lhe tudo depois.

- E fazias bem, minha filha. Me no se esconde nem o bem nem o mal, porque a Me sabe sempre ou aconselhar ou aplaudir! Anita, beijando-a, inquiriu ainda: - Ento no foi tolice dar o xaile, Mezinha, pois no? - No, filha, no foi! Uma boa aco sincera tem tanto valor que no precisa de licena para ser praticada. Nesse instante ecoou pela casa a voz do Pai. - So horas de jantar, Rosa Maria!... 59 Rosa Maria acudiu prontamente ao apelo, dirigindo-se para a cozinha a dar as suas ordens. O Mdico continuava em protestos risonhos. - Claro! Me e filhos entretidos... e de mim ningum quer saber! A Me no manda dar-me de comer... os filhos nem um beijo me trazem!... Os pequenos precipitaram-se ao encontro do Pai. E Rosa Maria, avanando diante da Laura que trazia os primeiros pratos com a sopa, ao v-los to abraados no pde deixar de enxugar disfaradamente uma lgrima de alegria. 60 O ambiente, no Colgio, continuava francamente desagradvel para o Pedro. Ele sabia que os condiscpulos visitavam o Paulo e continuavam a consider-lo a ele responsvel pelo desastre sucedido ao colega, porque ouvia, aqui e alm, comentrios aborrecidos, notcias disfaradas e algumas piadas de mau gosto que o magoavam muitssimo. O tempo foi decorrendo. Passou o Natal com as suas frias maravilhosas, recheadas de coisas boas, enfeitadas por um prespio lindssimo, todo arranjado pela Me e ao p do qual, seguindo uma tradio que ningum desfazia, o Menino Jesus deixava os brinquedos do Salta-Pocinhas. Frias incomparveis em que a felicidade de todos ainda parecia crescer mais, como na noite de Ano Novo, em que brindavam com champanhe verdadeiro uns aos outros, beijando-se e abraando-se, sem desejar e sem pedir a Deus mais do que a durao da ventura familiar! E depois do Dia de Reis, em que o bolo usual, feito de encomenda, levava brindes que chegavam para toda a gente, o Pedro voltou ao Colgio, esperanado em que a m disposio dos companheiros tivesse esmorecido e ficado inteirinha no perodo anterior. Tal no acontecera, no entanto! A inimizade geral mantinha-se. A reprovao

colectiva 61 em nada se alterara e atingia-o em cheio, de tal maneira que o Pedro nunca mais teve um minuto de paz e cada vez se convencia mais de que fora ele realmente o culpado pelo acidente do Paulo. Os dias, uns atrs dos outros, iam levando com eles as semanas e tornando o Pedro tristonho, cada vez mais tristonho. Depois, naquela manh aconteceu qualquer coisa... O Joanico, o tal que no dera esmola ao ceguinho atingido pela pedrada do Toms, o rapazote amarelo, esgrouviado e feio, com uns olhos inquietos sempre a girarem da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, naquela manh apareceu mais amarelo, mais esgrouviado e mais feio do que nunca. E tremia. E chorava. E ningum o arrancava dali, de ao p do porto principal, onde permanecia a gemer como se lhe tivessem feito muito mal. Quando o Pedro se aproximou, interessado, os rapazes discutiam o assunto mas ningum convencia o Joanico a entrar para a aula. Transtornava-se a normalidade do Colgio. Os Professores, um a um, foram aparecendo, tentando consolar o rapazinho, lev-lo para dentro. Mas o Joanico cada vez ficava mais amarelo, mais enfiado, chorando com mais fora. Ningum percebia coisa alguma. Avisaram o Director do que estava a suceder e o Sr. Dr. Leopoldo Brs no tardou a aparecer, investigando os acontecimentos, procurando saber a causa do rebolio para dar-lhe soluo. Nada conseguiu, porm, no meio do espanto geral. E o caso tomava propores tais que o Sr. Director resolveu telefonar para casa do aluno, pedindo providncias. Estas, claro, no se fizeram esperar. 62 Apareceu a Me do Joanico, num txi, a buscar o filho. Antes de lev-lo, esteve conferenciando com o Director. Da conversa, porm, nada transpareceu acerca da origem do incidente. A rapaziada recebeu ordem de entrar para as classes respectivas. Contudo em lado nenhum existia a necessria ateno. O assunto era to palpitante, to cheio de interesse, que na turma do Pedro houve colegas que se lhe dirigiram como dantes, discutindo com ele pormenores e hipteses mais ou menos imaginrios.

Durante o dia no se falou em outra coisa, no Colgio. Mas s tarde os rapazes tiveram notcia exacta do que se passara. Souberam primeiro que o Joanico fora dali para a cama, a arder em febre. O Sr. Director tinha telefonado a perguntar pelo aluno antes de pr a circular, para o conhecimento de todos, a verdade acerca do singular acontecimento. O Pedro soube-o pelo Andr, um dos que mais embirravam com ele e mais o hostilizavam desde o desastre do Paulo, no se lhe dirigindo nunca e culpando-o directamente. E o Andr agora falava-lhe e olhava-o como se nada houvesse acontecido entre ambos, descrevendo-lhe a histria do Joanico, histria com o seu qu de tragdia, que ele narrava no meio de um crculo de colegas, atentos, cheiinhos de justificada curiosidade. - Vocs sabem, - explicava o Andr, - ele no era capaz de gastar nenhum tosto do dinheiro que o Pai e a Me lhe davam todas as semanas! Nada! Guardava, guardava, guardava... - Isso chama-se economia! - opinou o Manuelzinho Melecas. - Enganas-te!... Nada de economia! Porque vocs fazem l idia!... Diz que ele s queria dinheiro para guardar... At ficava fulo quando 63 a Me fazia doces ou o Pai lhe comprava alguma camisa nova! O Nuno exclamou ento: - Realmente isso no economia, forretice! - Claro! - concordou o Filipe. - forretice e da pior. O outro Melecas acrescentou: - Sempre ouvi dizer que a avareza um grande defeito. O Pedro atreveu-se a emitir a sua opinio. - Sim, a avareza um grande defeito, ao passo que a economia uma excelente qualidade. Tenho um primo que muito econmico, e por acaso passou-se com ele uma coisa bem interessante... Pareceu ao Pedro que ningum o ouvira, porque logo quatro ou cinco vozes o interromperam, exigindo do Andr a continuao da narrativa. - O resto, Andr, o resto! Conta l o resto, anda!

- Bom, l vai... Vocs j sabem agora que o Joanico s vivia para juntar dinheiro. Nem a comida lhe fazia proveito e por isso to magro!... - Anda l para a frente! - insistiu o Manuelzinho. - Devagar, devagar... -respondeu o Andr. - Se no for assim, vocs no compreendem o resultado. Pois o Joanico amealhava moeda atrs de moeda e depois ia agncia de um Banco perto da casa dele e trocava as moedas por notas novinhas em folha! - E depois ? - inquiriram o Vasco e o Carlos. - E depois guardava o dinheiro numa caixinha... O Filipe no se conteve. - Andr, tu ests a fazer render o peixe e a explorar a nossa ansiedade? Acaba de uma vez! Os outros riram-se. E o Andr, sem se zangar, prosseguiu: - Depois, o Joanico agarrava na caixinha e escondia-a bem escondida, ningum sabia onde, nem a Me. Nesta altura o Nuno perguntou: - Foi a Me dele que contou isso ao Sr. Director? - Foi, pois. No estou a inventar coisa nenhuma! Os outros reclamaram imediatamente. - Conta, conta!... - L vai! Que se continuam a interromper-me nunca mais chego ao fim... Pois ontem noite declarou-se um princpio de incndio na casa dele. Bom, na casa dele no, na casota das arrumaes, que fica nas traseiras do ptio. Acudiram os vizinhos todos e apagaram o fogo, sem ser preciso chamar os Bombeiros. O incndio parece que teve origem numa ponta de cigarro atirada de um andar de cima. Mas enfim, o perigo estava passado e acho que ningum entendia a aflio do Joanico que andava aos gritos, a pedir a uns e a outros que salvassem o seu rico dinheiro. Os ahs e os ohs soltavam-se, estrepitosos, das bocas juvenis. O Andr prosseguiu: - S muito depois o Pai e a Me compreenderam que o Joanico tinha perdido toda a fortuna porque, vejam l, escondera a caixa das notas no fundo de uma mala velha

onde a Me guardava revistas em que nunca mexia, precisamente na arrecadao; Os rapazes agitavam-se, comentavam: - Que disparate! - Quem se lembra de meter dinheiro entre os papis! - O rapaz estava maluco! 65 Pedro ia avanando para o Colgio, a meditar ainda em tudo quanto se passara na vspera. A reviravolta dos colegas, acabando por falar-Lhe daquela maneira, animava-o de fundas esperanas. Teriam principiado a compreender que ele no era inteiramente culpado do desastre do Paulo? Ou seria apenas momentnea a boa vontade, resultando do assunto novo, desviando-lhes a ateno do anterior, e j agora estaria esquecida e voltariam as manifestaes de desagrado, to custosas de suportar? O corao batia-lhe forte no peito, quando entrou no ptio. Mas... a poucos passos de distncia estava um grupo reunido. E do grupo, assim que o avistaram, saiu imediatamente um rapaz, dirigindo-se-lhe com boa cara. Era o Andr. E o Andr disse-lhe logo: - No te esqueas!... hora do recreio queremos ouvir a tal histria do teu primo econmico! Durante as aulas, at os Professores notaram que o Pedro sorria mais vezes e estava com melhor cara e a responder com maior segurana do que nos ltimos tempos. O recreio chegou, por fim. E mal o Pedro apareceu no ptio, rodearam-no logo uns poucos. 69 Olharam-no todos com ar de reprovao. E o Pedro continuou: - Pois vais saber o que se passou. Os exames chegaram e o Artur passou a admisso. Ele bom aluno. Depois, nas frias grandes, como de costume, foi com a gente para a praia. Quando voltmos, o meu tio Joo chamou o filho e disse que ia dar-lhe um grande desgosto. No podia pagar-Lhe a matrcula no Liceu, nem os livros, nem coisa nenhuma. E como no queria pedir a ningum e o Artur estava adiantado e ele esperava empregar-se brevemente, o meu primo ficaria sem estudar durante uns tempos.

- Coitado do Artur! - lastimou o Vasco. - Perdeu o ano? O Pedro sorriu. - No, no perdeu o ano. - Oh!... Ento como se arranjou ? - O Artur perguntou ao Pai se era s por causa do dinheiro. O tio Joo, claro, disse-lhe que sim. E ele... - Que fez ele ? Que fez ele ? - indagaram uns poucos ao mesmo tempo. - Ele ps-se a rir e a saltar que at parecia maluquinho. Depois saiu de ao p do Pai e voltou da a nada. Sabem o que lhe trazia? - O mealheiro, ps, o mealheiro!... E atirou o mealheiro ao cho... e sabem quanto l estava dentro? O Vasco respondeu: - Se me disseres durante quantos meses ele juntou os cento e sessenta escudos, fao j a conta. Mas o Pedro, simplesmente, declarou: - Tinha l dentro oitocentos escudos! Acto contnuo, o Vasco exclamou: - Ento levou cinco meses a juntar! O Nuno berrou: - Dezoito a Matemtica! Foi uma algazarra. Todos riam, todos falavam. O prprio Pedro fez coro com os outros. Depois o sossego foi-se restabelecendo. E o Cludio comentou: - Sim senhor, muito bem. um grande exemplo, no h dvida! - E aqui tm vocs o que se passou, - concluiu o Pedro. - O Artur entrou para o Liceu, toda a gente o felicitou... e ele no perdeu o ano. E agora vivem outra vez muito felizes, todos. O tio Joo arranjou emprego no Porto e para l esto, satisfeitssimos. O Filipe exclamou, rindo: - No me digas que o teu primo j tem outro mealheiro! - O Pedro no riu, desta vez. - Tem sim senhor. E tambm foi a minha Me que lho deu, como o outro. Ele continua a dizer que quem junta, tem!

- Ou no tem nada, como o Joanico! -gracejou o Jos Maria. O Andr virou-se para ele, argumentando: - Mas so duas coisas completamente diferentes, Manuel, a economia e a avareza, no h dvida! E como vocs verificam nestes dois exemplos, a primeira foi premiada... e a segunda castigada. O Pedro, ento, inquiriu: - E a propsito, vocs sabem se o Joanico est melhor? O Vasco volveu, prontamente: - Est, est. O Carlos passou por casa dele. Vive l perto. E disse que sim, que estava melhorzinho mas inconsolvel!... A sr.a Januria, aquela boa mulher que vendia fruta e o conhecia desde pequenito, fazia-lhe sinais, pedindo-lhe que se aproximasse. Pedro sabia que no tinha tempo a perder, por causa da hora do almoo, mas no quis ofender a pobre criatura com uma recusa que ela podia tomar conta de falta de considerao. Para mais ela parecia to contente, to desejosa de lhe dizer qualquer coisa! Ento aproximou-se e cumprimentou-a, delicadamente como sempre. - Bom-dia, sr.a Januria. - Bom-dia, menino Pedrinho. - e desabafou logo a satisfao que a emocionava: - Menino Pedrinho, sabe que o meu Jlio sempre vai ao exame da quarta?... O meu querido Julinho! Estou to contente! Pedro no via nada de extraordinrio no facto de o Julinho ir a exame. Isso aos olhos dele era a coisa mais natural do mundo. E a alegria da sr.a Januria parecia-lhe bastante despropositada... A boa mulher continuava, porm, felicssima: - O meu rico filho!... To doente, to enfezado!... Mas a cabea presta, menino Pedro, a cabea presta! - com grandes gestos, ajudava a explicao. - O que eu passei, Pedrinho, para o pr a estudar! Toda a gente me dizia que fazia asneira, porque ele no havia de dar nada... Mas ento eu devia deix-lo pri sem se instruir, como um animalzinho sem alma?... E se o menino o ouvisse, sempre a perguntar tudo, sempre a querer saber mais isto e mais aquilo... Pedro escutava, j com interesse. E a Sr.a Januria prosseguia:

- S Deus sabe a pena que me fazia no o ver forte e rijo... Fazia e faz! E olhe que no me poupo a nada. Arranjo sempre maneira de lhe dar 76 mais uns ovos, mais um doce, mais um mimo... E ele sempre fraquinho... Eu no podia pensar em mand-lo Escola, no ?... Aquilo no agentava! O Pedro inquiriu, nesta altura: - Ento, se ele no foi Escola, como pode fazer exame? - Eu conto, menino Pedro, eu conto! O meu Jlio chorava, sabe l o que ele chorava! com desgosto de no poder estudar, de no aprender... E vai da eu disse a mim mesma "Januria, precisas de fazer todos os sacrifcios pra que o teu rapaz estude e se faa gente! Ele no quer ser ignorante... e visto isso no h-de S-lo!... ". Ento fui Escola falar com a Professora e a Senhora aceitou receb-lo s tardinhas, ensinlo em casa. Ah! menino Pedrinho!... - e o olhar da Januria resplandecia. - Aquilo foi um instante enquanto ele aprendeu a ler, a escrever, a fazer contas... e problemas!... Meu rico menino!... - e no se percebia se o rico menino era dirigido ao Pedro que a ouvia cheio de ateno ou ao filho que tanta alegria lhe dava. - Meu rico menino!... A Mestra diz que ele uma inteligncia! Uma inteligncia, meu Deus!... Que importa que eu passe tantas noites sem dormir, a costurar, pra ganhar mais dinheiro, se ele uma inteligncia! ? Pois ontem, menino Pedro, a sr.a Professora disse-me... disse-me que no me aceita mais dinheiro pelas lies, porque ensinar o Jlio um prazer... e que mo leva ao exame da 4. a sem nenhum medo! O Pedro, com sinceridade, entusiasmou-se. J compreendia a satisfao da sr.a Januria. - Bravo!... Isso bonito a valer!... - Ento no , Pedrinho?... Pois olhe que no meu stio a vizinhana, quando a Senhora comeou a dar-lhe os estudos, fartou-se de censurar-me, dizendo que eu estava a dar luxos a um intil. 77 O Pai j estava sentado mesa e olhou para ele de sobrolho carregado. - Vens muito atrasado, Pedro. Por onde andaste? Ofegante, suado, o rapaz beijou-o antes de explicar o que se passara. Em seguida contou como fora retido pela Sr. a Januria e relatou a conversa desenrolada. O Dr. Macedo mudou de semblante.

- Est bem, meu filho. A tua Me dar-te- os livros para a sr.a Januria. Agora, porm, despacha-te. Sabes que j tarde. Vai lavar as mos e vem almoar. Pedro obedeceu e no tardou em reaparecer. S ento notou que o Pai continuava solitrio, comendo devagar e com um aspecto, no zangado, mas evidentemente pensativo. Estranhando a ausncia da irm e da Rosinha-Me, indagou, enquanto punha o guardanapo: - A Me? O Dr. Macedo disse apenas, inclinando a cabea num trejeito leve: - Est l dentro. - J almoou? - No. - E a Anita? - Est ao p dela. 81 Pedro, sem saber porqu, sentiu-se de repente cheio de inquietao. - Mas que foi, Paizinho? Aconteceu alguma coisa? - O Rui Manuel est doente. Pedro julgou que se lhe atava o tal n na garganta. A sopa deixou de passar para baixo e ele ficou de olhos arregalados de espanto, fitando o Pai. - O Rui est doente?... com qu? - No sei ainda. Qualquer coisa de barriga, talvez. - Oh!... Mas ele ontem estava ptimo! Andou com a Anita e a Laura no jardim e no se queixava de nada. - Bem sei. O mal deve ter principiado a, justamente. - Que mal? O Dr. Rui Manuel de Macedo disse Laura que no queria fruta. O Pedro, olhando-o ansiosamente, espera de uma explicao, esquecia-se das horas, no comia. O Pai observou o facto e, erguendo-se para se retirar, volveu-lhe: - Vamos, filho. Come e no te apoquentes. Espero que no seja nada de cuidado. - Mas, Pap...

O Mdico deu-lhe um beijo na testa. - Adiante, Pedro. Olha que vais chegar tarde ao Colgio. No te atrases. A propsito, as notas devem estar a sair, no? - Na prxima semana. - E que tal, o teu trabalho? Ests satisfeito?... - Tenho feito o possvel... Pedro no gostava de apregoar os seus mritos. O Pai sabia porm que o possvel do filho era sempre ptimo. E isso alegrava-o. Sorrindo ao pequeno, acenou-lhe um adeus, saiu. 82 Enquanto Pedro acabava a carne assada, quase sem mastigar, sem apetite e unicamente para obedecer vontade paterna, a porta da rua bateu. Pouco depois ouviu-se o elevador arrancar. Foi ento que atrs do Pedro soou uma vozinha lastimosa, chamando por ele. - Pedro... O rapaz voltou-se, alarmado. - Que , Ana? Anita tinha os olhos vermelhos de chorar. - O... o... Salta-Pocinhas... est... est muito doente! Muito!... O irmo tentou consol-la. - No te aflijas. O Pai disse que no havia de ser nada de grave. Mas as lgrimas corriam em fio pelas faces de Ana Maria. - No sei, no sei!... E o pior... o pior que... foi minha a culpa!... O Pedro encarou-a, admiradssimo. - Essa agora!... - minha! minha a culpa, pois! - Mas como arranjaste isso? Ela desabafou, entre -soluos: - A Mam ontem deu-me cinco escudinhos para amndoas e dois mil e quinhentos ao Ruman... Depois... o mano perdeu os dele...

O Pedro bebeu gua, limpou a boca e tirou o guardanapo. - Tolices! Que que isso tem a ver com a doena do Salta-Pocinhas? O Pap ainda agora me disse que devia ser qualquer coisa na barriga... O choro da Anita cresceu mais. - Pois ... pois ... Fui eu... comprei umas poucas de amndoas grandes e no quis dar-lhe nenhuma. Depois a Laura, com pena dele, comprou outras na rua, l no jardim... a uma mulherzinha... e o Rui comeu essas todas... E agora est doente. 83 Naturalmente as amndoas no prestavam!... A culpada fui eu!... Pedro virou-se para a irm, muito srio, e perguntou-lhe, abafadamente: - J contaste ao Pap?... - Contei Mam quando vi o mano vomitar, hoje de manh. Ele ainda deitou as amndoas inteiras! Pedro olhou para o relgio. Eram horas e mais que horas de ir-se embora. - Sabes, Anita, eu no te digo nada... Bem basta tu reconheceres que andaste mal. Mas para a prxima tens de pensar antes de fazer as coisas. Agora no te aflijas mais. Aquilo passa depressa, se Deus quiser. Anita deixou-se cair no cho, com a cabea apoiada numa cadeira. E o Pedro teve pena dela, muita pena. No fim de contas todos fazem tolices, at mesmo os que do conselhos... Inclinou-se para a irm e deu-lhe um grande beijo na testa. - V l, Ana Maria, no chores assim! Que afinal o Rui Manuel um gluto, tambm no precisava nada de comer as amndoas todas de uma s vez! V... no chores mais. Tu bem sabes que o Paizinho um grande Mdico, vai p-lo bom num instante. E agora at logo, que j no posso perder mais tempo. Nesse momento Rosa Maria apareceu com ar fatigado, entre portas. - Pedro! Tu ainda ests em casa? - e percebendo o que se passava pela alterao dos semblantes dos filhos, acrescentou ternamente: - No se aflijam pelo Salta-Pocinhas. Deve ter sido uma indigesto. Comeu um cartucho de amndoas, inteirinho!... Amanh est Bom, vo ver. Ento um sorriso apareceu na carita da Ana, e o Pedro, com um suspiro de alvio, beijou a Me

84 e saiu, numa correria. Ouviu ainda a voz da Rosinha dizer-lhe: - Cuidado com as pressas, meu filho!... s vezes acabam em vagares por... O resto perdeu-se na distncia. Ele j sabia essas palavras de cor. Por causa dos perigos que se no vem. A pressa uma venda que tapa os olhos... E lembrando-se do aviso habitual, Pedro, prudentemente, atrasou o passo. No fim de contas levava a conscincia tranqila - no perdera tempo inutilmente! E isso era o principal. 85 O Salta-Pocinhas melhorou depressa. Anita, depois do mau bocado padecido, teve a certeza de que o irmo sofrera realmente uma indigesto, o que levara a Me a chamar a ateno da Laura para no deixar as crianas comerem exageradamente fosse o que fosse. Para o Pedro houve a satisfao de merecer as melhores notas do curso, no segundo perodo, e em seguida principiaram as frias da Pscoa. Deram uns passeios; passaram com os avs (da parte do Pai) o domingo de Pscoa. Receberam mais uma vez o bolo tradicional, um enormssimo ovo de chocolate que o av Joaquim mandava fazer de propsito numa Fbrica e dentro do qual abundavam sempre, mistura com as amndoas, prendas para a pequenada. Depois as frias terminaram, as aulas recomearam, o tempo foi passando, a vida decorrendo. Pedro estudava e continuava a ser, sempre, o rapaz atilado e cumpridor de quem nada havia a dizer seno bem. Um pouco mais tristonho do que dantes, isso verdade. E contudo o ambiente do Colgio voltara a normalizar-se, como se todos tivessem esquecido o incidente com Paulo Manuel de Atade Lemos. Pelo menos ningum falava do assunto. Os rapazes tinham sempre muito com que se entreter. 87 Dos casos mais notrios, tudo estava regularizado. Toms nunca mais atirara pedras a ningum, a nada. Em contrapartida, na turma de futebol que o Dr. Soares organizara entre as classes primrias e que na festa do Colgio devia jogar contra a do primeiro ciclo do Liceu, ningum como ele para rematar baliza... Era avanado-centro e estupendo! Andr, o guarda-redes do outro lado, via-se e desejava-se para lhe aparar as bolas.

Joanico, depois da doena que o retivera no leito mais de quinze dias, voltara para o Colgio e constava que j no escondia o dinheiro que lhe davam (parecia que a famlia lhe fizera bastantes donativos, para o consolar). A verdade que andava mais gordo e menos amarelo. Francisco, a qu