23
1 Do rito ao jogo com máscaras * de Odette Aslan, in: Odette Aslan (Éd.), Le masque, Du rite au théâtre, Paris, CNRS Éditions, 1999, pp. 279-289. (Tradução de João Maria André) À medida que se seguiam as exposições, graças à diversificação dos temas tratados e aos múltiplos contributos dos participantes, apercebemo-nos da extrema riqueza da máscara; mas de cada vez que pensávamos ter na mão um fio, descobrir uma constante, uma lei, o fio partia- se, a lei via-se refutada. No decurso deste caminho em que fomos do ritual até ao teatro e que finalmente nos recolocou no ritual, pudemos descobrir analogias, correspondências e, claro, singularidades. Do rito ao teatro. Funções da máscara e significações Origem e não modelo, o ritual permite-nos captar um certo número de dados de que o teatro ocidental contemporâneo só casualmente achará a fonte ou de que se afastará decididamente. O Africano não respeita uma máscara-objecto, mas o espírito que nela está encerrado. A máscara ritual, a memória mítica, revivifica a cosmogonia, religa o homem à força sagrada dos antepassados e dos deuses, permite re-nascer. Introduzir-se no interior de uma máscara sagrada é uma honra mas representa um perigo. Deve ser feito com agrado e o que o faz deve submeter-se a uma aprendizagem. O artesão que, em certas sociedades, escolhe uma árvore, * Optámos por traduzir “jeu” por jogo, embora conscientes de que a palavra em português não tem a mesma carga que tem em francês, já que nesta língua se utiliza o mesmo verbo “jouer” tanto para significar “jogar” como para significar “representar” (N.T.).

ARTIGO Odette Aslan

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ARTIGO Odette Aslan

Citation preview

1

Do rito ao jogo com máscaras*

de Odette Aslan,

in: Odette Aslan (Éd.), Le masque, Du rite au

théâtre, Paris, CNRS Éditions, 1999, pp. 279-289.

(Tradução de João Maria André)

À medida que se seguiam as exposições, graças à diversificação dos temas tratados e aos

múltiplos contributos dos participantes, apercebemo-nos da extrema riqueza da máscara; mas

de cada vez que pensávamos ter na mão um fio, descobrir uma constante, uma lei, o fio partia-

se, a lei via-se refutada. No decurso deste caminho em que fomos do ritual até ao teatro e que

finalmente nos recolocou no ritual, pudemos descobrir analogias, correspondências e, claro,

singularidades.

Do rito ao teatro.

Funções da máscara e significações

Origem e não modelo, o ritual permite-nos captar um certo número de dados de que o

teatro ocidental contemporâneo só casualmente achará a fonte ou de que se afastará

decididamente.

O Africano não respeita uma máscara-objecto, mas o espírito que nela está encerrado. A

máscara ritual, a memória mítica, revivifica a cosmogonia, religa o homem à força sagrada dos

antepassados e dos deuses, permite re-nascer. Introduzir-se no interior de uma máscara

sagrada é uma honra mas representa um perigo. Deve ser feito com agrado e o que o faz deve

submeter-se a uma aprendizagem. O artesão que, em certas sociedades, escolhe uma árvore,

* Optámos por traduzir “jeu” por jogo, embora conscientes de que a palavra em português não

tem a mesma carga que tem em francês, já que nesta língua se utiliza o mesmo verbo “jouer” tanto para

significar “jogar” como para significar “representar” (N.T.).

2

receptáculo de força vital, para esculpir uma máscara, está, de modo idêntico, em perigo, e

deve pacificar essa força através de oferendas. O fato pode ser imponente1 ou permitir as

acrobacias, porque não se exclui o “espectacular”, nomeadamente nas cerimónias profanas; os

percursos são imutáveis, a coreografia codificada, a música específica2. A máscara é uma

“persona”, é alimentada, consultada, existe por “famílias” (o pai, a mãe); arauto, músicos,

companheiros, compõem o seu carácter doméstico. Ela é, durante o tempo da cerimónia,

animada por aquele que a usa anónimo, mudo, intocável. Ela é o lugar do sagrado.

Cada etnia tem a sua particularidade, a sua gesta, os seus totems, as suas máscaras. Os

índios kwakiutl perpetuam os seus mitos executando danças que se supõe que fazem tremer a

terra. As suas notáveis máscaras articuladas são dotadas de maxilas móveis e de partes

amovíveis: sob a cabeça do animal/antepassado, aparece uma segunda máscara de face

humana; a máscara concretiza a metamorfose animal/homem e recorda ao homem a sua

origem mítica. Os Zuñis pintam sobre máscaras de couro cilíndricas símbolos que significam a

longa vida ou a vida curta, ostentam grandes manequins de três metros de altura ou recobrem

os seus clowns sagrados com simples máscaras de algodão. Na Costa Oeste da América os

índios opõem duas máscaras: a swaihé de olhos protuberantes e a dzonozkwa, cega de olhos

encovados: a máscara e a contra-máscara3.

Matérias, formas, cores das máscaras rituais são inumeráveis, variando de uma tribo para

outra. Por vezes a máscara reduz-se a escarificações ou a pinturas corporais ou faciais, não

menos rituais.

A máscara metamorfoseia, liberta, protege, oculta. A sua expressão cristaliza um estado

ao qual chegou o deus ou a personagem representada; “fora de si”, no furor ou na alegria, ele

“expandiu-se”. Ela reafirma implicitamente a humanidade do que a usa, depois de o ter feito

1 As saias empoladas são, por vezes, sustentadas por um arco. O número de saias indica a

posição hierárquica da personagem. O fato é muito pesado e uma vara ajuda aquele que as usa a

caminhar. Isto parece ter inspirado directamente o dramaturgo Jean GENET em Les Paravents: a ama

Warda e os seus pesadíssimos saiotes revestidos cerimonialmente, a velha Ommou e a sua grande

bengala. 2 Rombo, sistro, flauta, tambor intervêm pontualmente. 3 Cf. Cl. LEVI-STRAUSS, La voie des masques, Genève, Éd. d’Art Albert Skira, 1975, Vol. I e II.

3

passar temporariamente para um outro reino, instaura a ruptura entre os sexos ou autoriza

momentaneamente a sua confusão.

Inicialmente zoomorfa, exposta diante de todos, torna-se iniciática, antropomorfa depois

personalizada. Teria desaparecido num momento da evolução. Será necessário acreditar no que

adianta Roger Caillois: “os povos acedem à história e à civilização quando rejeitam a máscara

(e os seus poderes) como veículo de pânico e quando ela é apenas reservada para o

espectáculo”4? Hoje, para o militante negro dos USA, a face do branco constitui uma máscara

medonha de demónio e a América não é senão uma imensa máscara branca monstruosa.

À medida que os rituais se degradam, a máscara aumenta a sua função social ou

dessacraliza-se: é utilizada para dar uma sentença, para inquietar ou perseguir vizinhos

crédulos (homens-leopardo do Congo Belga), para fazer de bobo durante as festas.

A Suíça ou os países de Leste conservaram nos seus Carnavais ritos com máscaras que

não deixam de ter alguma analogia com certas práticas africanas ou indianas. Solstício de

Inverno, saída do Urso a anunciar a Primavera, dão ainda lugar a diversas cerimónias que se

parecem com os ritos de fertilidade ou com visitas de “estrangeiros”. Os “perturbadores”

vestem-se em segredo e não devem ser mais reconhecidos que o anónimo portador de

máscaras de folhas entre os Bobo.

O combate entre o Mal e o Bem, a morte do Dragão simbólico, sempre a recomeçar,

perdura sob diversas formas. Por aqui e por ali fatos carnavalescos permanecem, máscaras

inquietam-se, julgam, distribuem ofensas, lançam-se à procura. Mas Carnaval é essencialmente

sinónimo de enlouquecimento, confusão de contrários, contestação. Onde as sobrevivências são

mais fortes, em Nuremberga, Basileia, Binche, Limoux, onde um pouco de gravidade se mistura

ainda com as festividades pagãs da saída do Inverno, a música lancinante dos bandos dá o

sinal para uma manifestação ritualizada.

Estes poucos traços de uma memória colectiva podem igualmente ser considerados como

patamares que favorecem o retorno da máscara à cena em certas épocas. A máscara é um laço

tácito ou confessado entre ontem e hoje. Se os artistas interrogam a história do teatro, se se

4 Roger CAILLOIS, Arts, nº 752.

4

inspiram, por vezes, em posturas da commedia dell’arte ou das máscaras gregas trágicas ou

cómicas, se retornam aos teatros tradicionais do Oriente ou exibem achados de avant-garde,

interessam-se também pelas cerimónias do passado, pelos rituais, pelo que subsiste nos

Carnavais.

Aprendemos muito dos etnólogos, tanto pelo conteúdo das suas comunicações, como dos

seus métodos de investigação. Graças a eles, pudemos avaliar o papel da máscara nas

sociedades antigas e a sua inserção nas crenças, nas mentalidades, assim como os seus modos

de funcionamento nas cerimónias e na vida quotidiana. Graças aos artistas, pudemos entrar

mais profundamente nas técnicas do jogo com máscaras, captar as implicações da máscara na

concepção e no desenvolvimento do espectáculo, medir os perigos de uma teorização rígida

num domínio em que tudo está sempre para reformular e para redescobrir.

A máscara de teatro, queira-se ou não, faz ainda referência a uma vaga noção de

sagrado, mesmo no século XX. Pelo menos para um certo número de artistas, como Dullin ou

os actores de Strehler. O actor, sem problemas relativamente a qualquer adereço ou a qualquer

peça de vestuário, de que se desfaz facilmente, hesita quando se trata da máscara: pega nela

delicadamente para a pôr ou tirar, coloca-a sobre a mesa da maquilhagem, protege-a do que o

rodeia. Em cena, não toca na máscara do seu parceiro. Esta máscara é um lugar misterioso,

com um não sei quê de oculto, é também uma segunda pele de que se guarda e que guarda a

nossa marca mais íntima, um duplo, lisonjeador ou terrível, de que cremos apoderar-nos e que,

por vezes, nos toma.

Com a fama de esconder, proteger (“uma pessoa sente-se como no interior de um

observatório” donde se pode ver sem ser visto5) a máscara desmascara, revela. Faz mergulhar

aquele que a usa no seu eu verdadeiro, obriga-o a abandonar a sua fachada habitual.

Desconstrói os seus condicionamentos factícios, põe-no a nu. Trabalhar sob máscara ou

analisar este trabalho, leva a explorar cada vez mais profundamente o ser humano, nas suas

pulsões mais secretas. Tudo o que a sociedade inibe, a máscara fá-lo ressurgir.

5 Anton BRAGAGLIA, Le Maschere mobile, Folino, ed. Franco Campitelli, 1926, p. 4. Bragaglia

propõe aliás uma máscara de borracha maleável, fundindo-se com os movimentos da face (ibid., p. 21).

5

Reencontra-se no teatro o duplo movimento dos rituais: tendência espiritual (em que o

actor mascarado faz introspecção) ou explosão de vitalidade, paródia, sátira de si ou da

sociedade. Constatam-se igualmente reencontros fortuitos com as máscaras/contramáscaras ou

as máscaras amovíveis e sobrepostas, a abstractização dos traços, ou a pintura

facial/maquilhagem ocupando o lugar da máscara. A aprendizagem, a transmissão, a herança,

o código, são noções mais vacilantes. Mantidas nos teatros orientais, tomam mais dificilmente

corpo nas experiências ocidentais diversificadas, sem relação entre elas, sem referência a

regras unanimemente reconhecidas.

No teatro a máscara permite mudar de personalidade6, de sexo, desempenhar várias

personagens, parecer mais jovem, mais velho, embelezar-se ou desfear-se, transcender a

natureza humana e chegar ao poético. Recobre a cabeça inteira ou reduz-se a meia-máscara,

lobo, postiça, maquilhagem/máscara. É dupla (uma máscara diferente para cada perfil),

redobrada (uma máscara sobre a face, outra sobre a nuca), articulada em vários pedaços,

recoberta por uma segunda máscara; cria a monstruosidade, com um só olho ou dois narizes,

gera um bestiário fantástico.

A máscara aumenta a pluralidade do actor em cena, permite troca, permite, no decurso

do espectáculo, metamorfose, sugestão onírica. Significa para uns “o transfert da pessoa

humana numa personagem”7 — o número de mimo imaginado por Ron Jenkins ilustra

maravilhosamente este transfert8 — o actor/xaman morre então em si mesmo.; para outros,

valoriza a personagem daquele que não faz senão servir-se de uma máscara e “mostra-se”

6 Cf. Curt SACHS: “Quem quer que use uma máscara renuncia à sua individualidade própria e

adopta uma personalidade estranha”, Histoire de la danse, trad. de L. Kerr, Paris éd. Gallimard, 1938, p.

76 ou J. COPEAU: “Não é apenas a sua face que é modificada, é toda a sua pessoa, é o próprio carácter das

suas reflexões onde já se pré-formam sentimentos que era (...) incapaz de experimentar ou de fingir de

face descoberta”, Prefácio para Paradoxe sur le comédien, de DIDEROT, Paris, éd. Plon, 19929. 7 Léon CHANCEREL, Le Masque, Prospero, nº 11, p. 15. 8 Aparece uma jovem em collants brancos, com uma máscara branca. Uma outra em collants

pretos e gaze negra na face, rouba-lhe a máscara. A desapossada fica em máscara de gaze branca, corpo

inútil; ela perdeu a sua face, a sua pessoa, enquanto a negra mascarada de branco se anima e se torna

pessoa viva... A branca quer retomar a sua máscara, arranca-a, num momento do jogo disputam uma à

outra lutando com os braços e nenhuma das duas fica mascarada. Depois a jovem branca recoloca a

máscara na sua face e a jovem negra volta ao nada. Cf. Festival de Rennes, 1981.

6

usando-a. Por vezes a máscara “faz flirt” com a marioneta — saber-se-á alguma vez qual das

duas precede a outra? — dialoga com ela ou inspira-se nela, substitui-a ou faz-se substituir por

ela, consoante um dramaturgo escreva para as duas formas ou um encenador opere a

permuta9.

Confrontar a sua face com a máscara “em rigor” é aproximar-se perigosamente da

marioneta de madeira, é pôr em jogo a sua humanidade em proveito de um intermediário

perturbador. O domínio absoluto da máscara exige do que a usa um combate determinado para

afirmar o seu Eu. O face-a-face com o outro torna-se um corpo-a-corpo. O homem desliza para

o limite do Ego, transgride as fronteiras, convive com deuses e diabos, com a morte, com os

seus próprios demónios. As sedutoras máscaras Sandae (Coreia) com os grandes olhos fixos em

faces brancas, com traços de boneca talhada em madeira, com o gestual inflexível, diminuídas

por causa de títeres deficientes, manifestam a dívida da máscara às antigas marionetas

sagradas.

A máscara concorre para a procura de um teatro visual que se aproxima das artes

plásticas e da coreografia, ou participa em voltar a pôr em questão o realismo, o psicológico.

Pode ter uma função denunciadora e subversiva nos seus aspectos caricaturais, paródicos,

afectar a sensibilidade agudizando a tomada de consciência política, ou introduzir um elemento

de humor. Tenta, além disso, fazer renascer o sentido do trágico.

Os actores mascarados e engrandecidos, exprimindo-se através da pantomima, remetem

o teatro ao seu plano de criação pura, sob o ângulo da magia, do irreal e do medo10

A máscara decompõe o jogo, favorece o excesso. O gesto deve ir até ao fim, a boca

alarga-se para chegar à mesma abertura que a máscara. “Abrem-se mais os olhos, elevam-se

9 Pensamos em Chikamatsu, Jarry, Garcia Lorca ou ainda em Mrozeck tão bem representado

pelas marionetas do Teatro Groteska. 10 Jean-Paul SARTRE, Cahiers de l’Association Dullin, nº 2, p. 5. DULLIN tinha montado Les mouches

de Sartre com máscaras de Adam.

7

mais as sobrancelhas”11. Tocando intimamente na pessoa do actor, podendo chegar ao ponto

de condicionar as suas pulsões internas e animando-se com os movimentos do pescoço, com o

batimento das suas têmporas, couro contra pele, a máscara é igualmente um laço enérgico que

une de maneira indelével todos os actores entre si e com todos os elementos do espectáculo,

bem mais fortemente do que a descoberto; nada pode já dissociá-los. Donde a coerência e a

eficácia dos autênticos espectáculos com máscaras. A moldagem, a fabricação, o treino,

constituem outras tantas etapas feitas em comum para aprender a conhecer a máscara, a

conhecer-se, a conhecer o parceiro (o Outro): iniciação colectiva do actor e do homem. No

decurso da nossa investigação, ultrapassámos cedo a máscara em sentido estrito de

revestimento facial, para abordar as noções de pessoa, de identidade, de busca de si, os

problemas do duplo. Através das cerimónias rituais e das práticas teatrais colocámos o acento

no espírito de metamorfose, na transcendência do ser, nos jogos de ilusão e de desvelamento,

chegando a uma consciência mais aguda de nós mesmos.

Se a máscara ritual está “no ponto de articulação da vida e da morte”12, se contém o

conhecimento, a máscara de teatro faz perecer toda a forma negligente ou superficial de focar

o jogo e incita-nos a reconsiderar com um novo olhar a actividade cénica.

Para Meyerhold, a máscara “incarna a revolta”, permite a passagem entre “o estranho e o

familiar”, torna activa a participação do público, traz a surpresa. Para Brecht, a sua função “é

revelar aspectos críticos comprometendo o espectador a julgar o que é representado e a ajudar

visualmente a situar as personagens na sociedade, fixando a sua opinião e a sua forma de

agir”13. Le Bread and Puppet denuncia a guerra “estrangeirando” pelos traços e pela lentidão as

vietnamitas feridas de morte, criada com choques auditivos ou visuais nas suas paradas de rua,

ou propõe-nos as personagens de um Génesis bíblico cuja história revivifica mascarando-a para

melhor a revelar.

11 Peter BROOK, “Lie and glorious Adjective”, Parabola, fin 1981. 12 Germaine DIETERLEN, debate a propósito na mesa-redonda [no encontro de que este livro é o

documento – N.T.]. 13 Bertolt BRECHT, “Le Petit Organon ».

8

Um utensílio dramatúrgico

Os autores prevêem o uso da máscara no estádio da escrita? Sem voltar aqui à tragédia

antiga, mencionemos que, em 1981, Tony Harrison, adaptando a Oresteia de Ésquilo para Peter

Hall14, sentiu a necessidade de forjar uma tradução em velho anglo-saxão para este texto de

“máscaras” na origem e que foi representado com máscaras em Londres por actores

exclusivamente masculinos; tirânica, ditadora, a máscara uma vez adoptada rejeitava toda a

linguagem prosaica corrente. Impunha sonoridades, ritmos, um estilo.

Jamais tinha examinado, nem imaginado, todas as implicações de um texto de máscaras.

A significação das réplicas ditas pelos actores com máscara é estranhamente diferente da das

réplicas ditas por actores sem máscara. (...) o conjunto da sociedade grega exprime-se através

da consciência de Ésquilo. Para encontrar um equivalente, tive de me reportar à nossa própria

história heróica e filtrar a minha sensibilidade moderna através dos ritmos da nossa literatura

inglesa antiga. (...) A máscara e a sua linguagem obrigam-nos a manter os olhos abertos em

situações extremas, quando poderíamos, de outro modo, dobrarmo-nos com horror e deixar de

olhar — logo, deixar de sentir e de pensar.

Nas suas Comédias, Aristófanes não se havia privado de fazer aparecer os seus

contemporâneos em efígie sobre a cena (Sócrates, Eurípedes) nem de dar às suas personagens

uma aparência zoomorfa (aves, rãs) para melhor as satirizar. No século XIX, se Jarry quer, pela

máscara de Ubu, reencontrar a marioneta ao nível da encenação, um autor como Eugene

O’Neill faz da máscara um recurso da sua própria dramaturgia, um revelador psicanalítico dos

conflitos enterrados no mais profundo dos seus heróis (cf. “Memoranda on Masks”, Nov. 1932).

Em O Grande Brown, cada personagem é mostrada sob dois aspectos: ele mesmo e o que os

outros imaginam (os seus instintos e a sua pertença social; quando Margaret desposa Dion não

ama senão a sua máscara). Pirandello, cuja produção dramatúrgica se intitula globalmente

Maschare nude, não podia deixar de a introduzir nas suas peças: A fábula da criança trocada, e,

14 A Oresteia, encenada por Peter HALL, Londres, Olivier Thetre, 1981. A citação que se segue é

extraída da apresentação de HARRISON no programa..

9

sobretudo, as Seis personagens em busca de um autor15 na qual distingue por este meio

personagens/ e actores do grupo; as máscaras darão (para as personagens) a impressão de

rostos “criados pela arte e fixados imutavelmente cada uma na expressão do seu sentimento

fundamental que é o remorso para o Pai, a vingança para a Nora, o desprezo para o Filho, e,

para a Mãe, a dor...”

Numerosos são os actores e os encenadores que retornam à máscara porque o Oriente

os subjugou, principalmente através de África (época cubista surrealista), através do Nô (W.

Butler Yeats: Au puits de l’Épervier e Pièces de Nô, as danças balinesas (Artaud) , o Brasil (J.-L.

Barrault para a Oresteia)16. Jean Genet talvez tenha conseguido alguma coisa de mais singular:

máscaras/maquilhagens excessivas de Paravents, fazendo apelo aos delírios, à sobre-

teatralidade, ou máscaras brancas colocadas visivelmente sobre a face dos Negros que brincam

a representar os Brancos (Les Nègres). Acontece que um percurso completa-se felizmente: do

Carnaval d’Ostende e das pinturas de James Ensor nasce masques ostendais, do escritor Michel

de Ghelderode (1930), que Otomar Krejka pôs em cena em 1965. Por vezes os autores

reflectiram sobre a máscara no momento da realização de uma das suas obras (Cocteau para

Le boeuf sur le toit17, Antígona ou Oedipus-Rex), mas no conjunto foram menos imaginativos

que os encenadores, que souberam, por intermédio da máscara, com ou sem texto, restituir ao

teatro do século XX vigor e eficácia.

A máscara e os encenadores

Na sequência dos teóricos ou teorizando eles próprios, não hesitaram em pôr em questão

o teatro em si mesmo e a sua própria prática. Craig e a sua revista The Mask, Meyerhold e as

15 Prefácio a Six personnages en quête d’auteur, 4ª ed., 1925. Trad. de Michel Arnaud in Éd.

Gallimard, 1977, coll. Folio, pp. 39-41. 16 Jean-Louis BARRAULT montou a Oresteia inspirando-se em cerimónias brasileiras. Ver, supra, p.

181 [referância a outro ensaio da antologia de que se retirou este texto – N.T.]. 17 “O corpo do actor mascarado torna-se uma figura que exprime, para ser vista de longe, o que

a figura real exprime para ser vista de perto.” Apresentação de Boeuf sur le toit por J. COCTEAU, 1.4.1920,

citado in Le théâtre de Maurice Boissard, Paris, éd. Gallimard, 1958.

10

suas experimentações sobre as técnicas de jogrepresentação, Copeau e a sua investigação

sobre a improvisação, Schlemer e a Bauhaus, Brecht interrogando-se sobre o actor chinês,

Strehler e Sartori esforçando-se por ressuscitar a antiga máscara de couro da Commedia

dell’Arte, P. Schumann construindo máscaras, marionetas, gigantones e figurinos, o Théâtre du

Soleil criando os tipos da Age d’Or (Arlequim/Abdallah e Pantalon, o Promotor) ou inspirando-se

em formas japonesas para representar Shakespeare, O. Krejca introduzindo o Carnaval em

cena, Peter Brook fundando a sua reflexão sobre a máscara Balinesa.

Se, nos rituais, a máscara diz respeito à face, ao corpo e refere-se a uma organização

global (coreografia, música, língua secreta, articulação com um mito, relação com uma

comunidade), no teatro a máscara não é simples acessório, mas põe em questão os diversos

elementos da representação: feitura do texto, segmentação, ritmo, tratamento do espaço,

relação com o espectador. A máscara-rei condiciona tudo. É necessário partir da máscara,

fabricá-la desde o início does ensaios, e não juntá-la na fase terminal. Da máscara de cabeça

de Werner Strub deriva o fato, deriva a personagem.

Fabricar uma máscara

Nos rituais é a casta privilegiada dos ferreiros que é encarregada disso, os manuseadores

sagrados do ferro e do fogo, detentores dos segredos, ou então jovens iniciados. No teatro

ocidental em que a máscara é confiada tanto a fabricantes de acessórios como a escultores, os

decoradores/figurinistas estão mal preparados para esta tarefa (falta de formação, ausência de

código, de tradição, de referência), tentam responder aos pedidos através da imaginação e às

apalpadelas, a contas com problemas práticos mas sobretudo ideológicos se o encenador não

integra a máscara num processo artístico consequente e num modo global de comunicação com

o público.

Desde os trapos estucados recobertos com gesso na Grécia antiga ou a simples farinha

branca de que se revestia Gros-Guillaume, alternaram os materiais e as técnicas mais

artesanais e mais sofisticadas. Os actores da “commedia dell’arte” utilizavam as máscaras de

couro cuja técnica de fabricação foi esquecida entre o século XVIII e o século XX. Os

11

“fabricantes de segredos” dos mistérios medievais eram aderecistas encarregados de arranjar

cabeças falsas com línguas amovíveis ou a cuspir fogo; no século XVIII substituiu-se-lhes a

corporação dos capelistas. Pintores como Picasso (as máscaras/carcaças cubistas de Parade),

escultores como Amletto Sartori (Arlequim, servidor de dois amos), foram chamados a

colaborar com o teatro. Conhecem-se hoje criadores de máscaras, como Erhard Stiefel, que

participa com os actores do Théâtre du Soleil na elaboração de novas personagens. Ele mesmo

sabe usar uma máscara, experimentando-a quando a fabrica. O seu conhecimento do jogo com

máscaras permite-lhe propor máscaras novas susceptíveis de funcionarem bem.

Pudemos constatar que de modo semelhante às máscaras sem traços que significam para

os Xamans da Amazónia o lugar de aparição do sobrenatural, pode usar-se hoje a face “página

branca” (cf. Um homem é um homem, de Brecht), ou a máscara “neutra” (pedagogia) como

espaço de uma personagem por nascer. Os Mummenschanz chegam mesmo ao ponto de criar

e destruir a sua máscara em pasta mole perante o público.

Ora é o actor que tem por regra adaptar-se à forma prévia da máscara tradicional —

como acontece com o nô, em que a máscara foi usada pelo antepassado/actor — ora é o

escultor que se inspira na morfologia natural ou na expressão de um actor que cria a partir de

improvisações. É mesmo de escultura que se trata. Com ou sem modelo, o rir nasce no carácter

redondo dos traços curvos, a dureza aparece nas arestas vivas; testas e faces modelam-se nos

lados de espessuras desiguais, em superfícies côncavas, em protuberâncias, em dobras, em

rugas. Fantasias excêntricas proporcionam-nos narizes inscritos em triângulos ou olhos

exageradamente oblongos devidos ao estilo do artista.

Achar-se-ão sempre realizações estéticas: J. Banda (USA, anos 20, especialmente para os

Greenwich Village Follies), Léonor Fini (ballets Roland Petit); as cabeças articuladas de Peines

de coeur d’une chatte anglaise (1978, espectáculo do TSE), inspiradas em Doboujinski pelos

desenhos de Grandville, seduziram o público. Em diversas “reprises”, grupos universitários

reanimaram ou fizeram avançar a pesquisa do jogo de máscaras: em 1936-7, o escultor

Breischmidt e a Universidade de Basileia (cabeças inteiras, cinzeladas e grotescas, pernas

curtas e grandes ventres para Aristófanes ou Plauto, incrustação de elementos mutáveis para o

coro) o Grupo antigo da Sorbonne e a decoradora Nina Vidrovitch (Medeia), Giovanni Polo e as

12

suas Máscaras latinas18, Trabalhando a partir de uma solicitação, (Sartori para Lecoq, Strehler

ou Barrault, Stiefel para Mnouchkine) ou operando sozinhos na expectativa de um encenador19,

os criadores de máscaras utilizam os materiais mais antigos (cartão, couro, tecido) tanto como

os mais novos (plasticina) ou os mais insólitos (metal), inspiram-se em máscaras de altos

períodos (o nô), ou inventam formas imprevistas (Schlemmer: Le ballet tridique, Miró: Mori el

Merma)20. À máscara construída sucede a maquilhagem subdividida (Irene Corey: Le Livre de

Job) ou projectada à distância sobre a face. Grotowski dispensa-as de uma forma soberba

treinando os seus actores a produzir “máscaras faciais” apenas com o jogo dos músculos da

face e com impulsos psíquicos.

Quando a máscara de cartão ou de coro é modelada, é necessário habitá-la, animá-la. A

expressividade da máscara será função da sua forma, da sua cor, da iluminação21, do vestuário,

da mobilidade do olhar do actor, do movimento do seu corpo, do seu jogo completo.

Para uma pedagogia da máscara

O exercício sob a máscara é uma excelente escola para aprendiz de actor. Os escritos de

Craig, lembrando as virtudes da máscara, estiveram na origem de investigações

contemporâneas sobre o jogo de máscaras. Meyerhold fez dela um dos instrumentos da

“convenção” do teatro e bebeu em todas as técnicas, tanto as do Oriente como as do Ocidente.

Jacques Copeau propôs aos seus Copiaus uma máscara “nobre”, sem expressão particular,

ocultando a face do actor para o obrigar a encontrar a expressividade sem passar pela palavra;

sonhava criar tipos de uma nova comédia improvisada e inspirou-se nas formas da farsa e do

18 Giovanni POLI montou Le maschere latine e a Commedia degli Zanni com o Teatro Universitário

Ca’Foscari, 1960. 19 W. STRUB lamentava o seu isolamento antes de poder trabalhar para Strehler ou Besson. 20 O pintor Juan Miró inventou para o grupo de la Claca estruturas no interior das quais o

intérprete se movia, sendo a cabeça, o pescoço e a perna dotados de um prolongamento imesperado. As

três estruturas de Mori em Merma enchiam o placo (Centro Pompidou, 1978). 21 Erhard STIEFEL: “Notámos que iluminando a partir de baixo os actores mascarados, como no

tempo dos candeeiros, transpondo também a própria luz, via-se melhor a expressão dos olhos.” Entrevista

a O. Aslan. Strehler tinha feito a mesma observação.

13

nô. Na sequência dele, Jean Dasté mascarou os seus actores e croi “nôs” em francês. Étienne

Decroux e Jean-Loius Barrault (período do Atelier) esforçaram-se por encontrar uma máscara

“impessoal” — uma meia de senhora ou um véu de mousseline dissimulando a face considerada

“indecente” — enfim Jacques Lecoq fez moldar por Amleto Sartori uma máscara “neutra”em

couro, válida para qualquer aluno, uma máscara que “torna disponível para toda e qualquer

coisa”, que dá à face “uma neutralidade de página branca sobre a qual poderá inscrever-se

uma emoção, uma personagem”. Contrariamente ao intérprete do ritual ou ao actor do teatro

tradicional, o actor ocidental emprega uma máscara de trabalho sem antepassados, sem

passado, sem expressão prévia.

Encavalitado, em transe, ou simples portador que caminha ou dança, o intérprete do

ritual reproduz um itinerário, uma coreografia fixada por outros. O intérprete mascarado dos

teatros tradicionais de Ásia obedece, de modo semelhante, a referências, submete-se a regras

que codificam o uso da máscara e toda a celebração, que lhe impõem os gestos, as entoações

hereditariamente transmitidas; quanto a ele, proporciona-lhe a sua energia, a sua

espiritualidade.

O mascarado do teatro ocidental, deve, de cada vez, reinventar tudo. O esquecimento

recobre os processos de outrora, e reconstituí-los implica readaptá-los. As experiências de

Strehler/Sartori/Lecoq/Dário Fo no Piccolo Teatro de Milão, embora tendo levado a diversos

espectáculos com máscaras como o Arlequim servidor de dois amos, que sobrevive há trinta

anos, não foram demasiado úteis a Ariane Mnouchkine ao criar Age d’Or; o adquirido pelos

actores de Age d’Or é posto em questão em cada novo espectáculo de máscaras do Théâtre du

Soleil. Mehring trabalhou sozinho no Théâtre de la Mandragore. Peter Schumann nada tem em

comum com a escola do Vieux Colombier de Copeau e o Teatro Campesino trilhou o seu próprio

caminho. Cada um, entretanto, tenta momentaneamente, forjar uma técnica e convidar para

ela parceiros e discípulos, encontrar princípios do jogo, senão mesmo leis. Se a significação das

máscaras rituais nos permanece misteriosa, o funcionamento das máscaras de teatro é, por

vezes, problemática e há pedagogos que reconhecem saber mais o que “não é preciso fazer “ao

usá-las do que aquilo que é preciso fazer.

14

Para Jean Dasté, cada movimento deve ser sentido profundamente, a partir de uma

emoção que nos toma por dentro22. Não mais de três personagens mascaradas em cena

simultaneamente, concluiu-se no Théâtre du Soleil. A escola da máscara, segundo Claude

Alrang, não parte do repouso mas da tensão. Não se ensina ao actor a crispar-se, mas a

“reactivar as suas tensões, a fazer ferver nele a energia”; dos cabelos ao tornozelo , o corpo

não é senão máscara. Ele dá à luz uma personagem, trágica ou carnavalesca, que é a resposta

pessoal do actor às pressões do seu século, da sua natureza, da sua história23.

É necessário amar a máscara (estão de acordo em dizê-lo Mary Wigman, coreógrafa e

dançarina expressionista, Mehmet Ulusoy, encenador em cena contemporâneo, Erhard Stiefel,

criador de máscaras), examiná-la, conformar-se ao que a fez nascer, reencontrar no seu corpo

os traços da máscara, e o que a ela presidiu (P. Hottier)24. Ao voltar a partir do corpo muda, a

respiração a voz25 e o ritmo. Ao inventariar-se o actor descobre-se à medida que descobre a

personagem. Procurando animar a máscara, encontra o papel. Experimentando uma técnica,

oferece e revela a sua humanidade, a sua riqueza interior. Longínqua recordação de oferendas

sacrificiais. O trabalho da máscara exige um dom de si e esforços acrescidos: prova da

moldagem (a tomada da impressão da face arrepia os claustrofóbicos, trai a falta de

descontracção), longas tentativas para ajustar a forma, ensaios mais numerosos,

desenvolvimento da imaginação e da reflexão, interrogação sobre si, procura de um código.

Concebe-se que isto possa constituir uma verdadeira aprendizagem para o actor e uma

impiedosa selecção.

22 Jean DASTÉ, in Paul-Louis Mignon, Le théâtre aujourd’hui de A jusquà Z, éd. Avant-Scène

/Michel Brient, 1966, p. 41. 23 Claude ALRANG, in Bouffonneries I, “Le masque-totem”, p. 82. 24 Philippe HOTTIER, supra, p. 235. 25 Nos rituais, o que usa a máscara deforma a sua voz ou fala através de instrumentos que lhe

modificam o timbre. Dissimula uma gaita de cana, um assobio de pedra ou um corno de antílope no qual

canta. O rombo é a voz grossa da máscara. Cf. Hugo ZEMP, Musique Dan, Paris Mouton, 1971. No teatro,

Jarry recomenda a Ubu que “tome a voz da máscara”, “as personagens traziam máscaras cuja falso nariz

lhes contraía as narinas, de modo que tivessem o entupimento própria de uma constipação da cabeça”

(“Sur Jarry et quelques autres”, Georges REMOND, Mercure de France, 4-1955). De uma maneira geral a

voz, abafada ou aumentada, deve ser “outra”. Deformada pelo actor ou pela máscara? Os nossos

participantes não se puseram de acorde neste ponto.

15

Inversamente, quem possui já o domínio extremo do seu jogo e da sua pessoa, pode

passar sem a máscara ou apoderar-se dela muito facilmente. Benno Besson incorpora a

máscara na sua encenação sem técnica especializada. Ela ajuda o actor e o espectador a ir para

lá da pessoa do intérprete.

Princípios de jogo

“A máscara inutilizada está em estado de coma”

(dito coreano)

Para o autor Alfred Jarry, como para o pedagogo Léon Chancerel, não há senão cinco ou

seis posições principais — face ou perfil — a encontrar; deslocações horizontais e laterais do

pescoço permitem fazer jogar a máscara com a luz; os movimentos devem ser lentos26, é

importante apresentar bem a personagem mascarada e transmitir ao espectador um

vocabulário de jogo à medida e no decorrer do espectáculo. Para Dullin, a máscara anima-se

graças ao movimento dos ombros.

Levantar uma mão, avançar uma perna torna-se de uma importância extrema,

observa Jean Cocteau a propósito do seu Édipo Rex27. O mais ligeiro movimento de cabeça

pode fazer parecer maior ou mais pequena a abertura dos olhos ou dos lábios, ou fazer variar a

expressão de uma máscara perfeita cuja expressão jamais está conseguida, como a do nô. Os

espectadores da commedia dell’arte estavam persuadidos de que faziam passar sobre as

máscaras de couro expressões de alegria ou de dor.

26 Alfred JARRY, “De l’inutilité di théâtre au théâtre” in Merecure de France, septembre 1896; Léon

CHANCEREL, “Bulletin des comédiens routiers”, 1933. Encontra-se, claro, o adágio contrário. René CLAIR

apreciou no Arlequim de Moretti a rapidez que ele sonhava obter no cinema (L’Aurore, 4 mars 1953). 27 Jean Cocteau, Théâtre, t. II, Paris, Éd. Grasset, p. 617.

16

A máscara possui a sua própria linguagem que se poderia registar mesmo por escrito, e

que existe simplesmente por causa desta estranha relação de uma escultura com um corpo

humano28.

Segundo J. Lecoq, deve-se “olhar” com a cabeça toda e não apenas com os olhos. Deve

tomar-se o “estado” proposto pela máscara, um estado “de alerta”, e jogar mais tempo com

força, com energia. É necessário “atravessar” a máscara e carregá-la de um conteúdo humano.

O jogo é mais forte mas é também depurado, “decantado”, (cf. W. Mehring, supra). Tudo deve

ser transposto: as mãos, os olhos, a voz.

Com a meia-máscara, a parte de baixo da face fica livre e toma uma maior importância.

Também Ferrucio Soleri alarga a sua boca com vermelho e um contorno negro. A sensualidade,

a animalidade acentuam-se. O clarão do olhar passa igualmente através das fendas

aumentadas da máscara-gato de Arlequim. O jogo da parte superior da face é pelo contrário

escondido, atrofiado. Certos músculos funcionam por isso exageradamente, em detrimento de

outros. Esta distorção tem incidências sobre a interpretação29.

Há ainda outras maneiras de utilizar a máscara em cena. O que usa a máscara facial e

corporal da Bauhaus é um elemento de jogo abstracto no espaço; As carapaças de M. Ulusoy

(cf. a contadora de Nuage amoureux) ou os corpos compostos de Victor Garcia (Ishtar de

Gilgamesh) são pedaços de decoração que se movimentam; as “criadas” de P. Schumann

entram em estruturas que as engolem, e o Peter Lorre de Um homem é um homem de Brecht

“provoca momentaneamente a palidez escondendo a sua face com as suas mãos revestidas de

uma camada branca”30. A máscara não é então senão aparência, o actor permanece-lhe quase

estranho. Identificação ou distância, todo o problema do teatro está aí. “Se o actor não se

interessa pela máscara, é porque não reflecte bem sobre o actor e o papel. A máscara cruza o

desvio entre o actor e o papel” (Brecht).

28 Peter SCHUMANN, citado por F. KOURILSKY, Le Bread and Puppet, Lausanne, La Cité l’Âge

d’homme, 1970, p. 143. 29 Giorgio STREHLER, entretien avec Odette Aslan, 1979. 30 B. BRECHT, Écrits sur le théâtre, Paris, Éd. L’Arche, 1963, p. 125.

17

Por efeito de deslize, outros problemas surgem. Usar uma máscara que reproduz a

morfologia de uma pessoa precisa incita-vos a reproduzir os seus movimentos familiares? Com

o revestimento da face, entra-se “na pele” de um indivíduo, toma-se qualquer coisa da sua

personalidade? Isto interessa tanto o psicólogo quanto o actor e Bruno de Panafieu pôde notar

que depois de ter usado uma máscara que reproduzia os traços de uma pessoa existente, mas

desconhecida deles, diferentes actores que as usaram eram levados a reproduzir sem o saber

gestos habituais da dita pessoa.

O actor que dobra um actor estrangeiro num filme não avança mascarado, anónimo,

numa personagem à qual um outro deu o seu corpo, o seu ritmo, a sua expressividade?

Observemo-lo no estúdio de sincronização. As imagens desfilam no écran e por baixo delas

desfila a tradução das réplicas em francês. O actor deve dizer este texto fazendo crer que a sua

voz é a do actor estrangeiro, deve representar a situação, coma mesma velocidade com que,

sobre o écran, a voz da personagem se abre e se fecha. Um deu o seu corpo, o outro

empresta-lhe a sua voz., mas o primeiro impõe o molde, é o invólucro, a carcaça, a máscara na

qual o actor francês deve introduzir-se. Observa-se que o sincronizador, pregado perante o seu

micro e olhando a imagem, tenta entretanto esboçar no seu corpo movimentos semelhantes

aos do seu duplo e motivar assim a sua emissão vocal para que ela se torne com

verosimilhança a voz da máscara, esta máscara/personagem que não o recobre directamente

mas que está perante ele, projectada no écran.

O marionetista, o actor, o sincronizador projectam-se numa forma exterior a eles, numa

máscara mantida à distância. Eles desposam um perfil estranho fazendo coincidir respiração,

gesto e voz para parecer não fazer mais do que um com a aparência da máscara. A boca

alarga-se à imagem do modelo, o ritmo acomoda-se, o mental modifica-se. Tomando na mão,

para a estudar, a máscara inanimada que vai habitar ou fixando no écran a personagem

animada que deve fazer falar segundo um ritmo imposto, o actor vela a sua face e o seu Eu.

Não sairá daí talvez intacto. Iniciática ou transicional, a máscara incita-nos a sairmos nós, a

desfazermo-nos de linguagens usadas.

Pode igualmente falar-se de projecção à distância, de explosão, quando o actor que

representa Woizeck (encenação do Bread and Puppet) é acompanhado em cena de uma

18

máscara gigantesca à sua semelhança, que o redobra ou se substitui a ele, que pode ser

animada fora dele, que ele não habita.

Mas quando a máscara se cola à pele do rosto, o actor conhece intimamente o reverso

da máscara de que não vemos senão a face, ele experimenta a forma côncava que provoca a

expressividade do lado de fora convexo. Desse modo, ele é reenviado ao seu próprio exterior, à

sua organicidade. Iniciação que o põe à prova, em particular se deve envelhecer pessoalmente.

O actor desfigura-se voluntariamente para representar provisoriamente um monstro, sabendo

que depondo a máscara encontrará a harmonia dos seus próprios traços. Mas contemplar o que

se tornará inelutavelmente mais tarde, sentir o emurchecimento, as rugas a aparecer sobre a

cópia da sua face, é uma prova dura. Mary Wigman horrorizada renunciou a fazê-lo quando

projectava dançar os três estádios da vida de uma mulher, juventude, idade madura e velhice31.

É significativo que Patrice Chereau, sensibilizado com esta inquietude, tenha querido mostrar

através de maquilhagens e de próteses o envelhecimento progressivo de Gerard Desarthe em

Peer Gynt32 e que Benoît Régent, logo depois de ter participado nesta produção, tenha

construído um espectáculo mascarado de “velho” em que se interroga sobre o seu ser em devir.

Com a máscara a gente torna-se um ser biológico, bissexuado33.

Como as sociedades arcaicas, as comunidades de actores encontram, através da

máscara, o sonho do andrógino, a rivalidade dos sexos34, assim como a fraternidade com o

animal/antepassado de que se assimilam os gestos; elas procuram tipos modernos, afrontam

estádios de iniciação por classes de idades.

A percepção da máscara pela criança, ou a sua invenção, reenvia-nos à simbólica

infantil de que nos afastámos. O actor adulto que tenta entrar na visão de uma criança e

31 Para o Chant des Norne. Cf. Walter SORELL, The Other Face: The Mask in Arts, The Bobbs-

Merrill C, Indianopolis-New York (1st edition 1973), p. 119. 32 Peer Gint d’IBSEN, encenação de Patrice CHÉREAU, TNP Villeurbanne, em Mai-Juin 1981-2. Peer

envelhece dos 17 aos 70 anos. 33 Jean-Louis BARRAULT, conversa com O. Aslan, 1978. 34 “Há em maior quantidade tipos sociais de homens do que de mulheres”. “As mulheres ousam

menos com o seu corpo”, “quando tento fazer uma máscara de mulher, são os rapazes que dela se

apropriam”. Erhard STIEFEL, conversa com O. Aslan.

19

representar em cena a personagem desenhada ou proposta por aquela, concretiza, pelos meios

do teatro, a expressão de um universo que não é o seu. A máscara serve de mediadora entre

gerações diferentes que a “lêem” e a utilizam em níveis diferentes. Mas ao contrário dos clowns

e dos marionetistas que mantêm o contacto com as crianças no decurso de toda a sua vida, os

actores que se consagram à animação e ao espectáculo para crianças são jovens e abandonam

logo essa actividade. Não que seja uma saída mais fácil no início da carreira, mas sentem-se

próximos ainda da adolescência; isso não dura muito tempo. Reflectir sobre a máscara e a

criança mostra-nos a que ponto o nosso ensino, a nossa civilização nos fazem perder o sentido

da infância, isto é, da poesia mais alta. Os “Bobos”, que têm quatro almas, os indonésios que

têm sete, frequentam as máscaras sem problemas. É claramente evidente que os ocidentais de

hoje, privados da sua infância, da Natureza e dos Deuses, já não vejam na máscara senão um

objecto decorativo ou um instrumento funcional. Possa esta obra fazer medir o que o homem

perdeu com isso, o que o teatro pode aí encontrar.

Da máscara à maquilhagem e à máscara facial

Inclinando em direcção à marioneta rígida e em direcção à estatuária, a máscara inclina

para outro extremo através da simples maquilhagem, a película amolecida sobre a pele e refeita

cada tarde. Simplificação da máscara ou retorno ao pré-teatro, memória de pinturas rituais, a

maquilhagem codificada dos teatros asiáticos pode ainda ser assimilada à máscara. Nos teatros

ocidentais, ela não é senão uma sua degradação., um recurso à careta, ao grotesco ou ao

esteticismo. Na URSS dos anos ’20, pintores “pintavam” o rosto dos actores distribuindo zonas,

deformando os traços, usando cores vivas. Em La Sorcière, La nuit sur le vieux marché, (no

Goset de Moscovo), em Le Dibbouk, Le Golem (no teatro Habima), fantasmas de pesadelo,

mendigos animalizados, loucos com o rosto burilado pelos tormentos eram revestidos de

maquilhagens que assumiam estranhos relevos com as luzes da cena, transformando as faces

naturais em esculturas policromáticas com traços móveis, simiescos, desconcertantes. O actor

era inteiramente metamorfoseado na imagem que oferecia ao espectador e, sendo os seus

gestos deformados de modo semelhante, o conjunto da personagem podia aparecer como uma

20

máscara. O impacto desta maquilhagem sobre o comportamento interno do actor e sobre o seu

jogo era entretanto menos poderoso que o da verdadeira máscara que, no limite, deve

incomodar e fazer sofrer um pouco para funcionar eficazmente. É de temer que as

maquilhagens exageradas, agressivas, cada vez mais numerosas no teatro contemporâneo,

sejam mais caretas forçadas — ou seja, manchas de tinta — do que máscaras contidas e que

não geram o mesmo jogo de máscaras.

Ao longo de uma experiência realizada com a fotógrafa de arte Teresa Le Prat (1964),

Wolfram Mehring esforçou-se, nas suas sessões de três ou quatro horas cada, por “assumir o

estado” da maquilhagem pintada sobre o seu rosto, como se assume o estado de uma máscara,

para fazer vibrar do interior linhas abstractas ou torturadas do modelo pintado sobre ele e

carregar de emoção humana um rosto de que o anedótico tinha sido suprimido.

A máscara facial na qual Grotowski treinava os seus actores nos anos ’70 liga-se à sua

concepção de “teatro pobre”, em que o actor deve fazer tudo, sem recorrer ao artifício de um

acessório, de ruídos, de uma máscara. Ele deve criar tudo a partir de si mesmo, do seu corpo.

A máscara facial obtém-se pela contracção dos músculos do rosto — evidentemente tão

exercitados como os de um artista de kathakali — e produz expressões tais como as que um

escultor fixa em máscaras. A partir do momento em que esta expressão, resultado de um

condicionamento interno, corporal e mental, foi encontrada, o actor esforça-se por conservar

esta expressão ao longo de todo o processo em que representa, fala, gesticula, sem que os

músculos se relaxem. Esta máscara facial traduz notavelmente a deformação congénita ou o

sofrimento que trabalha o ser humano, emana sempre de uma transposição, de uma

transcendência. Pode tender para o grotesco, não reproduz um rictus. Ela é simultaneamente

ressentida e composta, é feita da própria carne do actor e impressiona-nos tanto mais.

A máscara e o espectador

Todo o encenador de um espectáculo com máscaras deve tornar claro o jogo, evidente,

legível, e dar as “chaves” desta linguagem ao espectador. A máscara surpreende desde o início,

gela um pouco as reacções. O actor deve vencer o écran que a máscara interpõe entre a cena e

21

a sala, o espectador deve reaprender a captar a mensagem corporal em vez de se ligar a um

rosto que debita palavras e reflecte pensamentos. O actor mascarado dirige-se directamente a

ele, solicita respostas. Rosto aprisionado, meio cego, tenta energicamente despertar um eco

sonoro no espectador para estabelecer um contacto. Em breve a sensação de incómodo é

ultrapassada, o espectador familiarizado aceita a convenção, ousa romper o seu silêncio e

manifestar. O actor rompe com a sua imagem de homem, toma de empréstimo o que pertence

ao reino animal, vegetal, acede à dimensão divina por uma convenção que lhe evita o ridículo.

Sobre a máscara superfície de todos os possíveis, abstracta ou figurativa, o espectador projecta

o seu imaginário, colabora na elaboração da personagem fictícia. São os seus fantasmas que

tornam o diabo credível, tanto quanto se crê ser antes o talento do intérprete ou do criador da

máscara. Erhard Stiefel regozijou-se que, a propósito de Age d’or première ébauche no Théâtre

du Soleil, os espectadores não tenham praticamente reparado nas suas máscaras. A sua

integração era total.

O problema do olhar preocupa os criadores e inquieta os espectadores. O olhar de

Gorgô fascinava, dizem, pela sua insistência e facialidade. Ora a máscara de teatro é

desprovida de olhos e os do actor não aparecem sempre porque não se encontram

forçosamente ao mesmo nível35 ou são as fendas que são demasiado pequenas. O espectador

tão pouco sabe onde deve colocar o seu próprio olhar. A sua percepção modifica-se, a troca é

menos directa. Quando Marcello Moretti rasgou a sua máscara de Arlequim para aumentar as

fendas dos olhos a fim de ver melhor e de o seu olhar ser visível, transgrediu uma das leis da

máscara-receptáculo. O actor de nô desaparece inteiramente sob o poder que a máscara

representa. Não vê senão através das fendas reduzidas e deslocadas; tacteia com o pé, como

um cego, e desenvolve uma energia muito grande: “Perde-se o sentido do espaço e tem-se

dificuldade em manter o equilíbrio. Foi por isso que se inventou a marcha particular do nô: não

35 “Um actor de nô ensinou-me que, para ver a ponta dos seus pés, necessitava de olhar através

da fenda da boca da máscara.” G. Strehler, conversa com O. Aslan, 1979).

22

se levanta o pé, desliza-se (...). Quando se dirige a energia para um ponto exterior afastado,

tem-se a impressão de que se está a deslocar numa grande distância.”36

Mas para o público a máscara é melhor perceptível de perto ou de longe?

Lugar aberto ou lugar fechado

Há actores que se dedicam ao jogo de máscaras exclusivamente no interior de teatros,

outros apresentam igualmente espectáculos de rua ou desfiles. Os jovens actores do Théâtre

Emporté, “intervêm” em bairros de Paris fazendo animações ou utilizando o acontecimento. A

pessoa que passa sem estar prevenida interessa-se pela personagem mascarada e pode

estabelecer-se um diálogo com ela? É lembrada a decepção de Mário Gonzalez em Nancy, que

veio conviver com os espectadores depois de uma apresentação muito aplaudida: ele

conservara a sua máscara de Pantaleão, a máscara impunha-se muito fortemente e o público

não ousava estabelecer uma comunicação com o actor mascarado. Nos mercados na Pont-Neuf,

os dois actores do Théâtre Emporté, vestidos de pseudo-polícias (fato de macaco, máscara de

couro e bastão branco visivelmente artificial) usam máscaras de commedia dell’arte. Dão

ordens contraditórias aos transeuntes divertidos ou representam um sketch de caricatura

policial. Exploram o acaso, o incidente; a máscara favorece a interpelação, dá-lhes segurança. A

experiência alimentará os seus espectáculos em sala (o alquimista segundo Ben Johnson)37.

Contestatária, paródica, política, contígua aos grandes manequins de tamanho

carnavalesco ou cartazes/slogans, a máscara está presente em todas as manifestações. Através

dos rituais, das danças tradicionais, do teatro contemporâneo, ela evocou a conquista

espanhola das “Índias”, a pré-revolução russa, a guerra do Vietnam ou a guerra fria. A

máscara não conta apenas longínquas lutas mitológicas, ela é, em si própria, instrumento de

luta, inscreve-se no real e na História.

Ela permanece sinal de júbilo em espectáculos ao ar livre anunciados ao longe por fanfarras,

desenvolve-se no espaço de uma praça ou em ruas de aldeias (cf. o Odin Teatret em Itália).

36 Hideo KANZE, conversa en Concerned Thetre Japan, retomada em TDR nº 15, 1971, pp. 187-

188. 37 Montado no Théâtre de Plaisance, 1978.

23

Reinterpretando diversos procedimentos (andas africanas, dragões carnavalescos, técnicas de

bunraku, máscaras imspiradas pelo nô, Peter Schumann pensa devolver a vida à água, ao ar, à

terra, explicar o mundo, partilhar o pão e as marionetas ficando no mesmo plano que os

espectadores. Reconstitui-se uma comunidade e a máscara faz reencontrar o sentido da festa.

É notável que aqueles que quiseram levar mais longe a reflexão e a prática do jogo com

a máscara a tenham ultrapassado, conservando desta iniciação um traço informal mas

indelével38, ou se tenham orientado para o teatro-rito. Revelada em sonho ao iniciado tribal,

procedendo de uma visão no caso dos artistas, ou fabricada pelo artesão P. Schumann, a

máscara tende a tornar-se um médium entre este mundo e a face velada do universo.

38 O Don Juan encenado por Philippe CAUBÈRE era um excelente exemplo do “jogo com máscaras”

sem máscara e Ariane MNOUCHKINE não fazia necessariamente distinção entre o jogo de parceiros em que

uns estavam mascarados e outros de rosto descoberto. Em Giorgio STREHLER o jogo permanece marcado

pelo uso da máscara.