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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ – UFOPA CENTRO DE FORMAÇÃO INTERDISCIPLINAR – CFI CICLO DE FORMAÇÃO GERAL DA UFOPA Coleção DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES Série MÓDULOS INTERDISCIPLINARES - TEXTOS VOLUME 1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO CONHECIMENTO - OEC Maria de Fátima Matos de Souza e Andrei Santos de Morais (Organizadores) Santarém - Pará 2012

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origem e evolução do conhecimento

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PAR UFOPA CENTRO DE FORMAO INTERDISCIPLINAR CFI

    CICLO DE FORMAO GERAL DA UFOPA

    Coleo DILOGOS INTERDISCIPLINARES

    Srie MDULOS INTERDISCIPLINARES - TEXTOS VOLUME 1

    ORIGEM E EVOLUO DO CONHECIMENTO - OEC

    Maria de Ftima Matos de Souza e Andrei Santos de Morais (Organizadores)

    Santarm - Par 2012

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PAR UFOPA

    Jos Seixas Loureno Reitor pro tempore

    Dris Santos de Faria e Maria de Ftima Matos de Souza Diretoria do CFI - Centro de Formao Interdisciplinar

    Dris Santos de Faria Marianne Kogut Eliasquevici

    Snia Nazar Fernandes Resque Devison Nascimento

    Desenho metodolgico instrucional da srie Mdulos Interdisciplinares - Textos

    Dris Santos de Faria e Joo Tristan Vargas Organizao da srie Mdulos Interdisciplinares - Textos

    Maria de Ftima Matos de Souza e Andrei Santos de Morais Organizao do livro Origem e Evoluo do Conhecimento - OEC

    Marianne Kogut Eliasquevici Snia Nazar Fernandes Resque

    Devison Nascimento (Integrantes da AEDI - Assessoria de Educao Distncia)

    Apoio tcnico e metodolgico produo da srie Mdulos Interdisciplinares - Textos

    Parceria Institucional: Reitoria da Universidade Federal do Par e AEDI

    Impresso: [DAR O NOME DA GRFICA]

    Capa: Rose Pepe Design

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    Agradecimentos O CFI agradece a toda a equipe da AEDI, especialmente aos professores da UFPA Jos Miguel Veloso e Selma Leite, seus diretores, que colaboraram na produo tcnica e metodolgica desta srie. Agradece tambm a todos os alunos do primeiro semestre interdisciplinar da UFOPA por sua participao nas aulas, pois por meio do dilogo que se d no processo de ensino/aprendizagem que este Centro vem obtendo as referncias necessrias para o aperfeioamento do presente material textual. O Centro registra ainda seus agradecimentos a todos aqueles professores desta universidade que com suas observaes crticas tm colaborado para o mesmo fim.

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    APRESENTAO

    A ESTRUTURA DA UNIVERSIDADE, O CENTRO DE FORMAO INTERDISCIPLINAR E OS TEXTOS DA SRIE

    A Universidade Federal do Oeste do Par UFOPA foi criada pela Lei n. 12.085,

    de 5 de novembro de 2009, pela fuso dos campi da Universidade Federal do Par/UFPA e da Universidade Federal Rural do Par/UFRA existentes em Santarm. Ela fruto do esforo conjunto dos governos federal, estadual, municipais e da sociedade em geral, os quais reconhecem a importncia do papel da Universidade Pblica como vetor de desenvolvimento local e regional e, sobretudo, como importante contribuinte da integrao do conhecimento cientfico, tecnolgico e cultural pan-amaznico.

    Mais do que uma simples fuso, a criao da UFOPA significa a presena, de forma inovadora, de uma Universidade Federal no corao da imensa regio amaznica. A UFOPA elege como prioridade para sua atuao o contexto regional, em articulao e sintonia com os contextos nacional e mundial, visando formao continuada de recursos humanos qualificados graduados e ps-graduados , assim como produo e reproduo de conhecimentos.

    Para tanto, privilegia novos instrumentos e modelos curriculares, a comear pela sua estrutura acadmica organizada em Institutos, voltados para o ensino, a pesquisa (com nfase na produo de conhecimentos interdisciplinares) e a extenso. Os Institutos da UFOPA oferecem cursos que atendem a uma formao de graduao e de ps-graduao, no conjunto de grandes temas de conhecimento, de interesse cientfico geral e amaznico, em particular, atuando multi e interdisciplinarmente.

    Os seis organismos estruturantes da UFOPA so os seguintes:

    Centro de Formao Interdisciplinar CFI

    Instituto de Biodiversidade e Floresta IBEF

    Instituto de Cincia e Tecnologia das guas ICTA

    Instituto de Cincias da Educao - ICED

    Instituto de Cincias da Sociedade ICS

    Instituto de Engenharia e Geocincias IEG

    So trs os seus Ciclos de Formao: 1.0 Ciclo de Formao Graduada Geral 2.0 Ciclo de Formao Graduada Especfica 3.0 Ciclo de Formao Ps-Graduada

    A formao acadmica em trs ciclos evidencia a opo pelo conceito e pela prxis de um processo de educao continuada, que se verifica desde o acesso Formao Interdisciplinar I, comum a todos os seus cursos, at a ps-graduao stricto sensu.

    O primeiro semestre interdisciplinar O primeiro semestre do Ciclo de Formao Graduada Geral (tambm chamado de

    Formao Interdisciplinar I), a cargo do CFI, procura proporcionar ao aluno o contato com um amplo leque de conhecimentos oriundos de diversas reas disciplinares, abordados de maneira integrada por meio de mdulos interdisciplinares. Os mdulos so seis:

    Origem e Evoluo do Conhecimento;

    Lgica, Linguagem e Comunicao;

    Sociedade, Natureza e Desenvolvimento;

    Estudos Integrativos da Amaznia.

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    Seminrios Integradores;

    Interao com a Base Real. Como se pode notar, cada mdulo, considerado especificamente, apresenta um

    carter de integrao entre reas de conhecimento. Um deles, porm, tem por objetivo aprofundar ainda mais essa integrao, pois seu objetivo ensejar a concatenao e uma ressignificao de todos os contedos trabalhados nos outros mdulos. Trata-se dos Seminrios Integradores. Por meio da discusso de temas pertinentes a todos os mdulos, os Seminrios, oferecidos pelos diversos Institutos da UFOPA, proporcionam ao aluno a oportunidade para interligar por si mesmo as mltiplas referncias que vai adquirindo ao longo do primeiro semestre. Por essa via, abre-se a oportunidade tambm para que o aluno desenvolva um vis de integrao para o olhar que dirigir s carreiras e profisses para as quais se encaminharo nos outros Institutos, aps sua passagem pelo CFI. O mdulo Interao com a Base Real, por sua vez, objetiva mais explicitamente a aplicao de conhecimentos, competncias e habilidades adquiridos ou enriquecidos ao longo do primeiro semestre, para a construo de novos conhecimentos e para a interveno na realidade: constitui um programa de iniciao pesquisa e de extenso, preferencialmente voltado para as comunidades em que os alunos atuam.

    O objetivo dessa organizao , de um lado, proporcionar aos alunos a experincia com a multidisciplinaridade que caracteriza os contedos programticos de cada mdulo , para que, a partir da, possam avanar na compreenso da interdisciplinaridade que caracteriza o modo pelo qual tais temas se relacionam uns com os outros em todos os mdulos. Essa opo lhes permitir construir significados mais abrangentes e aprofundados para os conhecimentos fundamentais com os quais entraro em contato ao longo do Ciclo e de sua trajetria nos Institutos. De outro lado, a opo por tal organizao visa favorecer o desenvolvimento de habilidades e competncias que possibilitem aos alunos alcanar autonomia intelectual. Desse modo, o Ciclo de Formao Graduada Geral poder proporcionar uma base slida para o prosseguimento dos estudos nas diversas reas do conhecimento sob responsabilidade dos diversos Institutos desta universidade no mbito dos quais, o aluno encontrar novos ambientes para a busca de seu desenvolvimento integral.

    A Formao Interdisciplinar I trabalhada por equipes multidisciplinares empenhadas na construo interdisciplinar dos conhecimentos que compem o contedo programtico dos cursos da UFOPA. Nesse primeiro semestre so utilizados, entre outros, materiais pedaggicos exclusivos, com textos inditos, produzidos por expressivos autores locais, regionais e nacionais, apresentados neste e em todos os livros da Srie Mdulos Interdisciplinares - Textos. Tais textos tm como finalidades a introduo ao estado da arte dos temas que abordam e a discusso fundamentada a respeito destes. A

    Srie integra a Coleo Dilogos Interdisciplinares, cujo propsito estimular o debate interdisciplinar por meio da publicao de textos oriundos das mais diversas reas, que de forma plural possam contribuir para a construo de um conhecimento de carter integrativo.

    Assim, durante o seu primeiro perodo acadmico, o estudante adquire uma formao geral de natureza mlti e interdisciplinar, que abrange conhecimentos relativos aos mbitos local, nacional e mundial, inextricavelmente conectados nestes tempos de globalizao. A formao proporcionada pelo CFI no apenas acadmica, mas tambm cidad, pois a realidade em que o aluno se insere objeto de contnua reflexo no semestre inicial.

    A boa performance nesse primeiro semestre permite aos alunos o acesso a cada um dos Institutos, ingressando assim na Formao Interdisciplinar 2, especfica de cada Instituto escolhido. Trata-se de formao organizada a partir da sntese de conhecimentos bsicos e comuns aos cursos a oferecidos. Na sequncia, e em funo de seu desempenho nesse novo semestre interdisciplinar, o aluno ingressa no curso de Bacharelado

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    Interdisciplinar ou na Licenciatura Interdisciplinar pretendidos, obtendo, ao final do Primeiro Ciclo, o seu primeiro diploma universitrio. Optando por continuar na UFOPA, ingressa no Segundo Ciclo, para obter o seu segundo diploma universitrio, desta feita uma graduao especfica. Em seguida, poder continuar seus estudos, pleiteando os vrios nveis de ps-graduao oferecidos no mbito do Terceiro Ciclo.

    Dris Santos de Faria e Maria de Ftima Matos de Souza Diretoria do CFI

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    SUMRIO

    Prefcio...............................................................................................................................................

    Texto 1 - Histria e filosofia da cincia..............................................................................

    Texto 2 - Introduo filosofia...................................

    Texto 3 - Filosofia, sociedade e poltica..........................................................................

    Texto 4 - Filosofia da cincia...................................

    Texto 5 Conhecimento tradicional: conceitos e definies...........

    Texto 6 Pesquisa, reflexo, extenso: tipos de questes...........

    Texto 7 - Elementos de epistemologia e histria da cincia...........

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    PREFCIO

    Constantemente vinha-me ao esprito ser eu um botnico a passeio, que ao acaso de minhas leituras colheria as flores poticas. O nmero crescente de imagens colecionadas me

    dava a impresso de ser imparcial, de dominar todas as minhas preferncias, de saber tudo acolher.

    Gaston Bachelard. Fragmentos de uma potica do fogo

    Constitui-se tarefa deveras rdua organizar e selecionar textos em torno do tema

    Origem e Evoluo do Conhecimento. Isso se deve a vrios motivos. Um deles se encontra nas prprias palavras origem, evoluo e conhecimento. Quando se fala em origem, na etimologia, a lngua grega prope caminhos. Do prefixo arkh, origem tomada como ponto de partida do conhecimento (episteme).

    Os exemplos de reflexo sobre o problema abundam, desde as concepes dos filsofos gregos da Antiguidade. Tales de Mileto defendia a gua (hydor) como sendo o elemento primordial para a explicao da natureza (physis). Seus sucessores no tempo propunham outros elementos para o preenchimento desse papel para Anaximandro, era o indefinido (peiron); para Anaxmenes, era o ar (pneuma); para Herclito de feso, era o fogo (pyr). O motivo era aparentemente simples: buscar na natureza um comeo que no remetesse ao infinito, sobrenatural, mstico.

    Ento, poderamos concluir que o comeo apenas um postulado? Ou constitui, ele mesmo, princpio ou axioma que no pode ser negado? No contexto cultural em que se colocavam as vises desses pensadores, tal preocupao era fundamental; contudo, se buscarmos a origem para tudo, no nos surpreenderamos ao encontrarmos uma origem diferente a cada busca, a cada instante. como colocar um espelho defronte o outro; o resultado o infinito. Ou quando olhamos para o passado, este nunca vem tona da mesma forma.

    Acreditemos ou no, o importante no pensar a origem como verdade absoluta, porm como uma construo histrica de pensadores, em seus respectivos contextos, sempre em busca da verdade, seja ela qual for. Por isso, no pensemos tambm que evoluo seja necessariamente a passagem do pior para o melhor, como se o passado no tivesse mais o que ensinar s geraes futuras. No, no isso. A evoluo contempla

    as sucessivas manifestaes do pensamento ao longo do tempo. Muitas destas constituem continuidades; outras, contraposies em relao a seus predecessores. Ou seja, o porqu de ainda pesquisarmos os escritos de Homero, Hesodo, Parmnides de Eleia, Plato, Aristteles, Aurlio Agostinho, Toms de Aquino, Nicolau Coprnico, Ren Descartes, Galileu Galilei, Isaac Newton, Sren Kierkegaard, Albert Einstein, Csar Lattes, Milton Santos e tantos outros de sabedoria reconhecidamente internacional ou nacional encontra-se na seguinte constatao: todos eles ainda nos trazem questes, aporias, paradoxos, problemas do conhecimento que nos estimulam a pensar o hoje, o passado e o futuro num percurso sem pretenses de finalizao.

    Para isso, para dar conta de um leque de pensadores-cientistas que possam alinhavar a histria da cincia em seus diversos matizes, da filosofia da cincia, da metodologia e da epistemologia, vocs encontraro elementos para debater temas prementes e atuais do pensamento Ocidental. Aqui, poder-se-ia questionar: por que no apresentar os textos mesmos de seus respectivos pensadores? Pensando nisso, os respeitados escritores dos textos do mdulo Origem e Evoluo do Conhecimento apresentam no final de suas abordagens referncias suficientes para se comear uma pesquisa com empenho e rigor.

    importante tomar nota de que um escrito no se forma a partir de respostas, mas de questes. Nesse intuito, os leitores deveriam tomar como orientao no as respostas

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    geralmente encontradas em textos panfletrios, religiosos, comerciais ou polticos. Isto , vocs tm em suas mos textos que se propem a colocar algumas questes na mesa e convid-los a um dilogo no qual o nico escopo aproxim-los de um debate filosfico, seja voltado para o ensino, seja voltado para a pesquisa, e assim estender os frutos a seus pares prximos e distantes.

    Parafraseando Agostinho (1980), mestre da retrica, nas suas Confisses, mormente ao dizer desde o incio ao leitor desatento aquilo que talvez confirme aps ruminantes leituras, antes de me perguntares o que a filosofia, eu saberia lhe dizer. Martin Heidegger (2008), em Introduo Filosofia, chega a satirizar a deflagrada traduo amor sabedoria. A filosofia est mais voltada para um saber que se constri com afinco, dedicao que, muitas vezes, nos exige muito. Dedicao essa que encontramos no trabalho manual dos artesos, na composio de nossas narrativas. Ou seja, ela no se restringe separao entre o trabalho braal e o intelectual, to preconizada por Karl Marx e Friedrich Engels, em Teses sobre Feuerbach (Marx e Engels, 1998): Os filsofos s interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata de transform-lo. No s os filsofos, mas todos participaram e continuam participando da transformao do mundo, desde sempre, cada um sua maneira. Isso importante frisar aqui, principalmente porque o conhecimento no se restringe s paredes da Instituio Escola Formal, ele se produz constantemente em todo lugar, seja numa conversa descontrada do bar, na varanda de casa, dentro de um mercado ou at mesmo nos solilquios de travesseiro. Ou seja, todos pensam e fazem o mundo sua maneira, no seu locus, tpos, nicho, comunidade, etnia, grupo social, esteja ela onde estiver, seja nas grandes cidades ou at nos lugares mais longnquos da comunicao, externos at ao universo digital.

    Interessante ainda notar que h um quase consenso entre os historiadores do pensamento em afirmar que a origem e a evoluo do conhecimento ou, em outras palavras, o famoso milagre grego, se deu a partir de um rompimento ou espanto (Aristteles, 1969)

    entre o logos (pensamento, linguagem, discurso, estudo, razo, conceito, argumentao, entre outras interpretaes) e a doxa (opinio, senso comum), como se o elemento intuitivo da ltima no estivesse j contido no primeiro. Ora, doxa compe tambm mito, oralidade, trama, princpio, e no h logos sem a intuio mtica, e vice-versa: no h mito sem a conceituao lgica, principalmente porque intuio ver, ver com a razo (Cf. Jaeger, 1989). Deus (tos) aquele que tudo v, onipresena imprescindvel oniscincia (do latim omni: tudo, todo). No observamos e compreendemos o mundo sem contamin-lo com a nossa cultura. Levar em conta isso de fundamental importncia para nos aproximarmos do Outro (alter). Note-se que ao conflitarmos constantemente com o Outro, desde os primeiros momentos, dentro e fora do ventre materno, que nos constitumos como sujeitos (Lacan, 1998). Ou seja, a nossa identidade uma construo social e no uma entidade metafsica, independente de nosso contexto histrico.

    E social o pblico, o Outro, uma construo de todos. Nada mais estranho e distante para ns brasileiros do que a Amaznia e sua riqueza cultural, miscigenao de todos os olhares nacionais e internacionais, sedentos por desbrav-la a tal ponto que a ameaamos, na tentativa de domestic-la, aculturando seus habitantes com valores globalizados (religio, moeda, poltica, sexualidade, monocultura) e, por consequncia, condenamo-la a uma morte lenta, a conta-gota. Longe de um ufanismo cego, espelhando-se em potncias econmicas e usurpadoras, devemos repensar o nosso pas a partir da Amaznia, e tomando como elemento de comparao os destinos de nossas grandes metrpoles, suas chagas: enchente, seca, engarrafamento, poluio, fome, misria, epidemias, entre outras mazelas. Ou seja, cabe a cada um de ns fazer deste livro uma arma do pensar e agir inequivocamente tico e sempre disposto ao dilogo, que avance no para a vazo de nossas idiossincrasias egoicas, porm com vistas ao acrscimo e diviso do que entendemos como sabedoria sensata, lcida e crtica, acima de tudo. Para isso, faz-se necessrio percorrer a histria do pensamento, desde o questionamento dos mitos sofisticada tecnologia dos

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    dias de hoje, e perceber, nesse trajeto crtico, como os mitos de poder (da cincia know-how e da poltica prxis) no tm sido fortes o suficiente para derrocar o saber tradicional arraigado no nosso modo de falar, olhar, ouvir e pensar.

    Os textos, alm do encaminhamento filosfico-cientfico prprio da abordagem proposta neste livro, esto devidamente contextualizados historicamente. Para isso, temos inicialmente a leitura de Histria e Filosofia da Cincia, de Marisa Bittar e Amarilio Ferreira, tecendo as relaes entre filosofia e cincia.

    No segundo, Introduo filosofia, Jos Ferreira parte das acepes amplas e restritas dadas filosofia, lgica e tica. Trata-se de um esforo de expor o processo de construo crtica do pensamento Ocidental a partir da noo de juzo, com vistas ao entendimento das suas diferentes formas presentes na tica, esttica, cincia e nas normas que controlam as atividades humanas.

    O terceiro, Filosofia, sociedade e poltica, de Jos Silva, mergulha na intrincada relao entre o pensar/prtica filosfica e as instituies sociais, promovendo por conseguinte o desafio interdisciplinar do Ciclo de Formao Geral da UFOPA, cujo escopo principal construir o dilogo entre as instncias do pensar em diversas reas do conhecimento.

    Enfim, em Filosofia da cincia e Elementos de epistemologia e histria da cincia, de Elizabeth Dias e Jesus Brabo, respectivamente, temos abordagens especficas das especulaes cientficas, como as questes da verificabilidade, induo, falseamento, paradigma, entre outras. Questes limtrofes e caras prtica e ao pensar cientficos, as quais se mostram imprescindveis para adentrarmos na leitura de Conhecimento tradicional: conceitos e definies, de Tony Braga, texto no qual se patenteia que a pesquisa cientfica no pode dar as costas sabedoria construda localmente, embora esta se diferencie em relao aos mtodos e modelos paradigmticos acadmicos e tecnolgicos. Apesar das diferenas, o conhecimento tradicional alcana metas que no deixam de guardar similaridades com as que se colocam as cincias. A importncia do conhecimento tradicional est no fato de este ser usado como uma ferramenta de pesquisa local que permite compreender o mundo, ou como atalho para produzir conhecimento cientfico, ou complement-lo a partir de dicas populares. Isto , devemos romper o espao acadmico-institucional e promover a aproximao com as culturas aparentemente distantes de nosso cotidiano crtico e prtico.

    O foco editorial desta obra permitir condies iniciais para uma boa capacitao cientfica ao estudante ingressante, em dilogo pertinente com o professor, o que inclui o conhecimento de orientaes de metodologia cientfica (contributo de Joo

    Tristan Vargas, no texto Pesquisa, reflexo, extenso: tipos de questes), condies essas necessrias para incentivar o dilogo de saberes filosficos, cientficos e locais/tradicionais, especialmente do contexto amaznico.

    Primavera de 2010, Santarm (PA).

    Andrei Santos de Morais1

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS AGOSTINHO, Aurlio. Confisses. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1980.

    1 Doutor em Literatura & Filosofia pela Universidade de Braslia (UnB), professor do CFI (Centro de Formao Interdisciplinar) da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Par) e organizador deste livro.

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    ARISTTELES. Metafsica. Porto Alegre: Globo, 1969. HEIDEGGER, Martin. Introduo filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2008. JAEGER, Werner. Paideia: a formao do homem grego. So Paulo: Martins Fontes, 1989. LACAN, J. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Teses sobre Feuerbach. In _____. A ideologia alem. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

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    Texto 1

    HISTRIA E FILOSOFIA DA CINCIA

    Marisa Bittar Amarilio Ferreira Jr.1

    1 INTRODUO

    O conhecimento um fato inerente prpria existncia da humanidade, pois, desde que a sociedade humana existe, a produo de conhecimento constitui um aspecto dessa prpria existncia. Inicialmente, para sobreviver, os seres humanos tiveram de empregar a sua inteligncia e criatividade para vencer os perigos e obstculos que a natureza lhes apresentava. No curso de nossa existncia social, deparamo-nos com problemas, os quais nos levam reflexo, busca de explicaes e de solues. Esse desafio gera conhecimento, e foi assim que o homem descobriu como produzir o fogo, inventou a roda, construiu maravilhas, mas tambm construiu armas capazes de destruir a prpria humanidade. Fundamentado no conhecimento, o homem chegou na Lua e planeja chegar em Marte. Em toda essa longa trajetria, observar e pensar se constituram em duas atitudes metdicas sempre presentes na produo de conhecimento.

    Vivemos em uma poca caracterizada pela revoluo tcnico-cientfica, que facilitou enormemente o acesso informao. Em nosso cotidiano nos deparamos com notcias e acontecimentos que nos chegam em tempo real, mas precisamos nos indagar se informao o mesmo que conhecimento. Baseando-nos na classificao de Peter Burke, podemos afirmar que informao diz respeito ao que relativamente cru, especfico e prtico, e conhecimento, ao que foi cozido, isto , processado ou sistematizado pelo pensamento.

    Quando falamos em conhecimento, necessrio recuarmos no tempo para compreendermos que ele foi concebido historicamente, ou seja, em cada contexto histrico prevaleceu uma determinada concepo filosfica sobre ele.

    Filosofia, cincia e tecnologia constituem um trinmio que guarda relao orgnica com a sociedade dos homens desde o incio da Antiguidade Clssica greco-romana. Desde ento, as organizaes societrias estiveram organizadas com base na propriedade privada dos meios de produo (terra, grande comrcio, indstria, bancos), na diviso do povo entre proprietrios e no-proprietrios dos meios de produo (estrutura de classes sociais antagnicas) e na existncia do Estado (sociedade civil e sociedade poltica). Os meios de produo so o locus em que se materializam as relaes que os homens travam entre si (os trabalhadores, por exemplo, numa fbrica) e com a natureza (matrias-primas) no processo de produo que garante a existncia material da sociedade. Os trabalhadores, as mquinas-ferramentas e as matrias-primas (produtos extrados da natureza por meio do trabalho humano), inseridos no processo produtivo material, dependem do desenvolvimento dos conhecimentos filosficos, cientficos e tecnolgicos acumulados historicamente pelas sociedades. Dito de outra forma: a fora de trabalho, os instrumentos de produo (um rob, por exemplo, na linha de montagem de uma fbrica), as matrias-primas e os conhecimentos cientficos constituem as chamadas foras produtivas. As foras produtivas, consequentemente, so responsveis pela riqueza material que subsidia a existncia de uma determinada sociedade. Quanto mais

    1 Marisa Bittar e Amarilio Ferreira Jr. so doutores em Histria Social pela USP (Universidade de So Paulo) e professores do Departamento de Educao da UFSCar (Universidade Federal de So Carlos).

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    Histria e Filosofia da Cincia

    desenvolvidas forem as foras produtivas, particularmente do ponto de vista cientfico e tecnolgico, mais rica em termos materiais ser a sociedade.

    No entanto,por outro lado, as sociedades humanas no vivem exclusivamente de bens materiais que lhes proporcionam bem-estar existencial. As sociedades humanas so muito mais complexas. Elas dependem tambm do prprio desenvolvimento espiritual das classes sociais que as formam. A subjetividade humana (a espiritualidade no sentido grego clssico) formada, por sua vez, por uma gama extremamente contraditria e complexa de manifestaes ideolgicas (concepes de mundo), polticas, pedaggicas, religiosas, estticas (conceito de belo e de feio, por exemplo), afetivas (amar e odiar) etc. Assim, para explicar o mundo das ideias que povoa qualquer sociedade historicamente constituda, necessria a filosofia. O significado de filosofia aqui empregado no mesmo sentido formulado por Antonio Gramsci (1999, p. 204), pensador italiano da primeira metade do sculo XX, ou seja: a filosofia sintetiza, no mbito do conhecimento produzido pelo esprito humano, a unidade dialtica entre a histria (sociedade dos homens) e a natureza (sociedade de tudo quanto existe). Assim sendo, a filosofia s pode se materializar por meio de uma concepo de mundo, isto , da totalidade que configura o mundo circundante no qual os homens esto inseridos historicamente.

    Portanto, a cincia e a tecnologia, como elementos tericos e instrumentais que possibilitam o desenvolvimento material e espiritual dos homens, esto condicionadas, em ltima instncia, filosofia, ou seja, ambas esto vinculadas, de uma forma ou de outra, a determinada concepo de mundo que orienta o futuro de qualquer sociedade historicamente constituda. Em sntese: nas mltiplas e contraditrias relaes que os homens travam entre si e com a natureza no processo de criao das condies materiais (riqueza na forma de mercadorias) e espirituais (valores subjetivos) das suas existncias, eles produzem conhecimentos filosficos e cientficos que so aplicados, de maneira sistemtica, no desenvolvimento da prpria sociedade em que vivem. Fica estabelecida, desse modo, uma ligao universal entre os fenmenos societrios de ordem econmica (crescimento das foras produtivas por meio do trabalho humano), social (condies materiais de vida das pessoas), poltica (valores morais e intelectuais que regulam os relacionamentos entre os homens), cultural (manifestaes psicolgicas e ideolgicas professadas pelas pessoas) e ecolgica (a conscincia humana de que o mundo natural finito). Portanto, impossvel pensar a existncia da sociedade humana sem o condicionamento mtuo entre filosofia (por exemplo, ideologia), cincia (por exemplo, qumica e fsica) e tecnologia (mquinas e ferramentas).

    2 FILOSOFIA E CINCIA NA ANTIGUIDADE CLSSICA

    A Grcia da Antiguidade inventou a filosofia. Uma hiptese explicativa para

    justificar tal feito pode ser amparada na grande transformao estrutural que aconteceu durante a transio entre a pr-histria e a chamada civilizao dos povos blticos (hoje constituda pelos seguintes pases: Grcia, Albnia, Bsnia e Herzegovina, Bulgria, Repblica da Macednia, Montenegro, Srvia, Crocia, Romnia, Eslovnia e a poro da Turquia no continente europeu Trcia), em particular os gregos. Tal transio foi processada durante uma longa passagem temporal, da poca homrica (referncia ao poeta Homero que supostamente viveu entre os sculos IX ou VIII a.C.) ao sculo V a.C. (incio da denominada Antiguidade Clssica). A partir de ento, os gregos institucionalizaram a sua organizao societria em trs elementos estruturais: a propriedade privada dos meios de produo (terra), a diviso do povo entre proprietrios e no-proprietrios dos meios de produo (classes scias antagnicas: aristocracia agrria e escravos) e a constituio do Estado (ordenamento jurdico, com os respectivos

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    aparelhos estatais, que regulamentava todos os aspectos econmicos, sociais, polticos, culturais e religiosos da sociedade).

    A complexa e contraditria maneira com que os gregos passaram a viver, notadamente a partir do sculo V a.C., impusera a necessidade de uma organizao civil e poltica fundada na racionalidade lgica de existncia no mbito de uma organizao social urbana (a cidade-Estado). A traumtica experincia histrica que se desencadeou aps o aparecimento da propriedade privada da terra, em que um grego passou a ser escravo de outro em decorrncia da perda da sua extenso territorial gerada por dvida ou guerra, passou a exigir explicaes (racionalidade lgica) que iam mais frente do que aquelas j produzidas pela mitologia (lendas sobre a criao dos homens pelos deuses). Assim, para alm da propriedade privada da terra, das classes sociais antagnicas e do Estado, os gregos desenvolveram formas polticas que regulamentaram as relaes econmicas, sociais e culturais no mbito das cidades-Estado (no caso de Atenas, as decises poltico-administrativas eram tomadas democraticamente pelo voto direto de cada um dos cidados) e inventaram a filosofia (estruturas cognitivas que reproduzem abstratamente a lgica de funcionamento, formal ou dialtica, da realidade concreta do mundo circundante, ou seja, o pensamento crtico que explica o fenmeno, natural ou social, para alm da sua prpria aparncia).

    H de se realar, contudo, que a complexa e exuberante superestrutura societria (o mundo da poltica, ideologia, cultura, ideias etc.) grega do perodo clssico foi sustentada materialmente por meio das relaes escravistas de produo. O uso de trabalhadores escravos no cotidiano da vida econmica e social das cidades-Estado gregas resultou em dois fenmenos contraditrios e complementares:

    (A) O atraso do desenvolvimento das foras produtivas (trabalho humano, instrumentos de trabalho e matrias-primas), j que os escravos acumulavam, a um s tempo, tanto a prpria funo de mo de obra quanto a dos instrumentos de produo. Dito de outra forma: a transformao do trabalhador escravo em instrumento de produo atrasou de maneira significativa a aplicao de novas tecnologias (cincias aplicadas) no mbito das foras produtivas; ou seja, tratava-se de uma economia na qual a escravido dispensava recorrer s mquinas. Assim, podemos afirmar que a filosofia grega, que aambarcava a totalidade dos ramos de conhecimentos produzidos historicamente pelos homens, era muito mais de carter especulativo (explicaes lgicas sobre o mundo e os homens sem uma necessria comprovao emprica), com pouca aplicao no contexto das foras produtivas na criao, por exemplo, de instrumentos de produo (mquinas) que pudessem alavancar a acumulao da riqueza material que dava sustentao existncia da sociedade. (B) A manuteno das relaes escravistas de produo exigia a necessidade constante de guerras de conquistas territoriais como forma de abastecimento do mercado consumidor de novos estoques de escravos para substituir os que morriam durante o processo de produo material da riqueza e, ao mesmo tempo, gerava conflitos morais e polticos pelo fato de que uns homens eram escravizados por outros (mediante dvida econmica ou na condio de prisioneiro de guerra). O filsofo grego Aristteles (384 a.C. - 322 a.C.) sintetizou essa dupla negatividade, econmica e moral, criada pelas relaes escravistas de produo durante a Antiguidade Clssica. Na sua obra intitulada Poltica, ele afirmou:

    Na verdade, se cada instrumento pudesse executar a sua misso obedecendo a ordens, ou percebendo antecipadamente o que lhe cumpre fazer, como se diz das esttuas de Didalos [o mais famoso escultor da Grcia antiga] ou dos trpodes de Hfaistos [ou Hefesto, filho de Zeus e Heras, deus das forjas que trabalhava o ferro, o bronze e os metais preciosos], que, como fala o poeta [Homero], entram como autmatos

    nas reunies dos deuses, se, ento, as lanadeiras [peas de tear, que

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    contm um cilindro ou canela por onde passa o fio da tecelagem] tecessem e as palhetas tocassem ctaras por si mesmas, os construtores no teriam necessidade de auxiliares e os senhores no necessitariam de escravos. (ARISTTELES, 1988, p. 18)

    Portanto, Aristteles antecipava, na forma de uma utopia, o que j conhecemos tecnologicamente nos tempos atuais; ou seja, vislumbrava, mediante a racionalidade filosfica, a possibilidade dos instrumentos de produo da sua poca realizarem, por meio de mecanismos automticos com aspecto semelhante ao de um homem, os trabalhos que eram destinados aos escravos, tais como os robs desenvolvem no tempo presente. Segundo essa utopia, alm da base material de existncia garantida pelo trabalho mecnico inteligente dos instrumentos de trabalho, Aristteles tambm se livrava do incmodo moral de viver em uma sociedade na qual a populao estava dividida entre homens livres e escravos. Mas a realidade histrica da Antiguidade Clssica era outra. Ela jamais conheceu um desenvolvimento cientfico e tecnolgico das foras produtivas que garantisse a existncia material da sociedade sem o emprego do trabalho escravo. E a sada encontrada por Aristteles para justificar a manuteno da ordem scio-econmica estabelecida foi de carter reducionista: para ele, os escravos eram apenas animais falantes (diferentes de outros animais apenas porque eram portadores de racionalidade, ou seja, podiam falar).

    3 TEOLOGIA E FILOSOFIA NA IDADE MDIA

    A Idade Mdia foi marcada profundamente pela hegemonia ideolgica exercida pela Igreja Catlica Apostlica Romana desde o longo declnio do Imprio romano (sculo IV d.C.) at o incio do sculo XVI. O primeiro movimento protagonizado pelo cristianismo foi subjugar a filosofia grega sua concepo de mundo, ou seja, ele processou um casamento entre a f (teologia crist) e a razo (filosofia platnica), no

    qual a ltima ficou subordinada primeira. Esse movimento realizou-se em dois momentos distintos. O mais antigo desses perodos ocorreu ainda na fase final do declnio do Imprio romano. Ficou conhecido na histria da filosofia como Patrstica, por ter-se originado na teologia desenvolvida pelos primeiros padres da Igreja Catlica. A Patrstica consistiu em incorporar dogmtica crist (f, religiosidade crist) o sistema da filosofia desenvolvido por Scrates (469399 a.C.) e Plato (428347 a.C.), os quais, ao lado de Aristteles, formaram a trade mais importante da filosofia grega clssica.

    O sistema filosfico socrtico-platnico concebeu tanto o mundo como o homem de forma dual, ou seja, para o platonismo o mundo e o homem so entes divididos. A dualidade do mundo se realiza entre a existncia do mundo das ideias (mundo das formas perfeitas) e do mundo das coisas imperfeitas (onde habitamos). J os homens so compostos, ao mesmo tempo, de corpo (mortal) e de alma (imortal). A teoria filosfica fundada na dualidade do mundo e do homem foi apropriada pelos primeiros grandes telogos do cristianismo, entre os quais se destacou Santo Agostinho (354430 d.C.). Assim sendo, podemos dizer que o cristianismo passou a ser dependente da filosofia platnica para gerar a sua prpria concepo de mundo. Isto porque o sistema filosfico platnico emprestou teologia crist argumentaes racionais que lhe possibilitavam explicar os chamados mistrios da f crist, tais como a existncia de uma vida depois

    da morte e a possvel reconciliao da criatura com o criador no paraso celestial (o

    mundo platnico das ideias). A subordinao da razo (filosofia) f (teologia) teve, durante a Idade Mdia, um

    grande impacto no mbito dos conhecimentos cientficos, na medida em que a teologia crist assumiu o papel que antes, no contexto da Antiguidade Clssica, era desempenhado pela filosofia. Em outras palavras, ao contrrio da filosofia (explicao do

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    mundo gerado pela prpria razo humana), a teologia (discurso sobre as coisas divinas) autodefiniu-se, desde os primeiros tempos do cristianismo, como uma cincia que estudava a verdade que j se encontrava revelada pelo demiurgo (palavra de origem grega para designar o criador), ou seja, a verdade anunciada por meio do livro sagrado do cristianismo. Portanto, o conhecimento cientfico produzido pela razo humana (com destaque para a filosofia no seu interior), por ser considerado inferior, servia apenas para confirmar a verdade imutvel sobre o mundo (verdade eterna) e o destino que j estava predestinado, desde sempre, ao homem cumprir na face da Terra. Assim, o desenvolvimento cientfico sobre a explicao dos fenmenos da natureza e da sociedade humana ficou obstrudo pela dogmtica crist (explicao do mundo de acordo com as escrituras sagradas), que imps, por sua vez, uma censura sobre todo o pensamento laico que ousava questionar a autoridade religiosa da Igreja Catlica enquanto instituio reguladora do funcionamento geral da sociedade.

    Entretanto, a partir do sculo XI, em decorrncia do crescimento demogrfico e da consequente expanso das atividades agrrias (arroteamento das terras para a produo de gros) e pastoris (principalmente a criao de gado), a Europa Ocidental passou a viver um crescimento econmico mais acelerado, cuja consequncia foi a difuso do comrcio de mercadorias por meio das chamadas feiras livres. Desse modo, a riqueza material produzida no interior dos feudos (unidade econmica que conjugava a agricultura/pecuria com a fabricao de produtos manufaturados) era destinada tambm para o mercado consumidor externo, ou seja, para alm do consumo interno da sua prpria populao, que era formada pela famlia do senhor feudal e as dos camponeses. Tais mudanas socioeconmicas somente foram possveis em funo dos seguintes acontecimentos: (A) a transformao dos escravos, que formavam a mo de obra desde a Antiguidade Clssica, em servos (camponeses vinculados aos feudos), privando os senhores de suas ferramentas animadas (para Aristteles, os escravos eram

    ferramentas vivas); (B) a disseminao das taxas (banalidades) cobradas pelos senhores feudais sobre o uso, por parte dos camponeses, das moendas de gros e das forjas onde eram processadas, por exemplo, a farinha de trigo e os utenslios domsticos; (C) o processo de acumulao primitiva do capital, em funo do dinheiro amoedado (em metais preciosos) recebido por meio dos impostos, que possibilitou tanto aos senhores como aos camponeses construrem novos instrumentos de produo (mquinas). O desenvolvimento das foras produtivas, impulsionado pela agropecuria e pelo comrcio, acabou por repercutir tambm no mbito da superestrutura da sociedade medieval; ou seja, passou a determinar a forma ideolgica (religiosa) de se conceber o funcionamento da prpria sociedade medieval. Esse novo contexto socioeconmico, portanto, obrigou a Igreja Catlica a re-elaborar a dogmtica crist (Patrstica) que vigorava at ento. Esse acontecimento ficou conhecido na histria do cristianismo como escolstica (a teologia que foi ensinada nas primeiras universidades medievais). Desta feita, os telogos catlicos, cujo maior expoente da poca foi So Toms de Aquino (1225-1274), celebraram um novo casamento entre a f (teologia) e a razo (filosofia): o sistema filosfico

    utilizado por eles foi aquele concebido por Aristteles. O advento da escolstica no significou, contudo, que a Igreja Catlica deixasse em

    segundo plano a teologia crist produzida pela Patrstica. Ela apenas incorporou uma racionalidade filosfica que possibilitaria dogmtica crist enfrentar melhor, do ponto de vista da explicao lgica, as transformaes pelas quais passava a sociedade medieval. Diferentemente do sistema platnico, fundado na dualidade do mundo, no qual um era imperfeito (por causa dos pecados cometidos pelos homens, segundo a teologia crist) e o outro era o mundo das essncias perfeitas (que, para o cristianismo, correspondia ao paraso celestial), o aristotelismo partia do princpio de que este mundo, no qual os homens habitavam, era sujeito a transformaes. Para tanto, era necessrio transform-lo por meio da investigao cientfica possibilitada pela razo filosfica, ou seja, a

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    Histria e Filosofia da Cincia

    investigao levaria ao desvelamento da sua natureza e, por consequncia, ao seu ordenamento disciplinar de acordo com os interesses da sociedade humana. Mas quais eram os interesses que deveriam reger a sociedade dos homens? Eram aqueles fundados nas virtudes morais (justia, sabedoria, coragem e temperana), ou seja, aqueles que levariam ao bem comum da cidade-Estado (a felicidade geral dos cidados).

    J no contexto da Baixa Idade Mdia (sculos XI-XV), o aristotelismo cristianizado pela teologia cientfica de So Toms de Aquino propugnava, entre outras questes da

    dogmtica catlica, pelo ordenamento do mundo secular que comeava a ser revolucionado economicamente por um novo protagonista social: a burguesia mercantil, classe social que se originou nos camponeses que produziam mercadorias manufaturadas (os artesos). Em contrapartida s novas tcnicas de produo agrcola que aumentavam o rendimento econmico e geravam excedentes de mercadorias para serem comercializados nas feiras livres e nos burgos (cidades medievais), a teologia escolstica de So Tomas de Aquino props uma sociedade disciplinada por meio de um regime poltico, uma espcie de monarquia teocrtica dirigida pela autoridade maior da Igreja Catlica. Nesse regime, as descobertas cientficas e tecnolgicas, que transformavam a sociedade medieval por causa das atividades mercantis e questionavam a dogmtica crist sobre a prpria origem do mundo, no poderiam ser desenvolvidas. Isto porque as teses teolgicas impostas pelo Tribunal do Santo Ofcio (restabelecido pelo Papa Paulo III em 1542) colocavam em perigo todas as atividades cientficas da poca. A propsito, episdio famoso foi aquele em que o tribunal eclesistico proibiu as pesquisas empricas desenvolvidas por Galileu Galilei (1564-1642) nas universidades de Pisa e de Pdua e que comprovavam a teoria heliocntrica defendida pelo astrnomo e matemtico polaco Nicolau Coprnico (1473-1543). Segundo essa teoria, o sol era o centro do sistema planetrio no qual a Terra estava inserida, e no a prpria Terra na forma de um disco, tal como havia afirmado Aristteles desde a Antiguidade Clssica. Acusado de heresia e ameaado de condenao morte, Galileu se viu obrigado a renegar as suas descobertas cientficas. Quanto obra Das revolues das esferas celestes (1543), de Nicolau Coprnico, foi includa no Index librorum prohibitorum (ndice dos livros proibidos).

    Entretanto, existiam diferenas entre a filosofia de Aristteles e a teologia cientfica de So Tomas de Aquino. O primeiro acreditava que era possvel atingir o bem

    supremo por meio da felicidade geral dos cidados da polis (cidade-Estado), ou seja, no terreno concreto da sociedade historicamente construda pelos homens. Para tanto, os cidados deveriam exercer a excelncia moral (a vida contemplativa) e no se deixar corromper por meio de prticas chamadas artes vulgares (destinadas aos escravos) que pioram as condies naturais do corpo e degradam o esprito humano. O tomismo (sistema de pensamento de Toms de Aquino), ao contrrio, defendia que o bem supremo, mesmo que destinado a um pequeno nmero de homens, no poderia ser alcanado neste mundo, ou seja, a felicidade dos homens somente poderia ser realizada por meio da sua conciliao com o criador no paraso celestial. Em sntese: a sociedade medieval viveu, a partir da Baixa Idade Mdia, um contexto histrico contraditrio. De um lado, a hegemonia ideolgica exercida pela Igreja Catlica, que tentava impedir o avano das novas descobertas cientficas e tecnolgicas por meio da imposio da sua concepo de mundo definida pela chamada teologia cientfica desenvolvida pela

    escolstica; do outro, a ao protagonizada pela burguesia mercantil, que revolucionava as condies scio-econmicas de existncia material da sociedade mediante o progresso das foras produtivas (incio do processo de assalariamento da mo de obra, diversificao das matrias- primas e novos instrumentos de trabalho).

    4 A SEPARAO ENTRE FILOSOFIA E CINCIA NA IDADE MODERNA

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    No decorrer dos sculos XVI e XVII, ocorreu na Europa Ocidental a ascenso da classe burguesa, uma classe que comeava a ser economicamente dominante em relao nobreza feudal. Concomitantemente, se deu o incio da diviso do trabalho no processo de produo de manufaturas, atendendo a uma necessidade de maior rapidez na produo de mercadorias. Todo esse processo que se desenvolveu na base material da sociedade provocou o desenvolvimento de estudos para o domnio da natureza: matemtica, astronomia, geografia, biologia, medicina, fsica.

    Nesse contexto de longa transio do feudalismo para o capitalismo, a cincia sofreu grande impulso, ocasionado pela prpria necessidade material da sociedade. Entretanto, a cincia, ao avanar, comeou a entrar em conflito com os dogmas da Igreja Catlica, que no apenas colocava em dvida a necessidade desse avano, negando as teses que o embasavam, como tambm condenava cientistas ao tribunal religioso da Inquisio. Foi pelo fato de defender teses a favor do avano do conhecimento, mas que contrariavam os dogmas da Igreja, que grandes nomes da cincia foram condenados morte, como Giordano Bruno (1548-1600). Galileu Galilei (1564-1642), como mencionamos, teria o mesmo fim, caso no tivesse elaborado um inteligente processo em sua prpria defesa.

    Mas foi tambm durante o sculo XVII que a sociedade europeia assistiu afirmao da cincia experimental, no contexto da chamada Revoluo Cientfica (um conjunto de mudanas significativas que ocorreram na estrutura do pensamento e que repercutiram no plano cientfico).

    Ao longo da histria, conforme o contexto de cada poca, duas atitudes metdicas estiveram presentes na produo de conhecimento observao e reflexo , s vezes um prevalecendo sobre o outro. Foi durante a Idade Moderna (sculos XV ao XVIII) que ocorreu a distino metodolgica entre razo (exerccio do pensamento) e empirismo (registro de dados perceptveis, que se do a conhecer pela observao). A separao absoluta entre esses dois procedimentos no benfica para a construo do conhecimento, pois no primeiro caso podemos cair no equvoco de desprezar os dados da realidade e considerar apenas a teoria, a especulao, o pensamento elaborado; e no segundo caso podemos cair no erro de acreditar que o conhecimento se reduz simplesmente soma de dados, sem interpretao, sem o exerccio do pensamento capaz de lhes dar um sentido.

    Nesse perodo, a secular concepo de uma cincia dogmtica, subordinada ao princpio da autoridade (pelo qual o grau de veracidade de uma proposio dependeria de quem a formulasse), e as noes de imobilidade e hierarquia do mundo sofreram uma ruptura. Isto se deveu, em grande parte, a Francis Bacon (1561-1626), Ren Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1642-1717).

    Bacon, filsofo e cientista ingls, escreveu O progresso do conhecimento e Novum organum defendendo o valor das experincias de laboratrio e do mtodo indutivo (quando se observam muitos dados singulares para se atingir uma verdade universal). Embora no fosse o seu criador, valorizou o mtodo indutivo como fundamental para obter exatido do conhecimento. Ele foi tanto um pensador social quanto cientfico. Props a distino entre f e razo e atacou a separao acadmica entre teoria e prtica, enfatizando que na filosofia natural os resultados prticos so a garantia da verdade. Repetia que a prtica a nica forma de comprovao da verdade. Nesse sentido, segundo ele, se o conhecimento possvel ou no, algo que deve ser estabelecido no pelos argumentos, mas pela experincia. Bacon desenvolveu a crtica a Aristteles, filosofia escolstica e, segundo Peter Burke, ele desfraldou a bandeira filosfica dos modernos, no apenas contra os antigos e seus defensores nas universidades, mas tambm contra os telogos.

    Descartes, fsico, matemtico e filsofo francs, foi autor de inmeros trabalhos, dos quais se sobressai o Discurso do mtodo: para bem conduzir a prpria razo e procurar a

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    verdade nas cincias. Convencido de que tanto a opinio tradicional quanto as experincias comuns da humanidade so guias de mrito duvidoso, resolveu adotar um novo mtodo, inteiramente isento da influncia de ambos. Esse mtodo o instrumento matemtico da deduo pura. Consiste em comear com verdades simples e evidentes por si mesmas, como as da geometria, e depois raciocinar com base nelas at chegar a concluses particulares. Afirmava que tudo era duvidoso, nada podendo ser considerado a priori como certo, a no ser uma coisa: penso, logo existo, ponto de partida da dvida

    metdica, que nos leva a aceitar somente aquilo que a razo possa compreender e que seja passvel de demonstrao. Para ele, s havia um caminho para superar a dvida: nem evit-la, nem estabelecer uma certeza frgil, mas aceit-la e combat-la com as prprias ideias. Descartes estabeleceu os passos para o estudo e a pesquisa, criticando o ensino humanista e propondo a matemtica como modelo de cincia perfeita. Por tudo isso, considerado o pai da filosofia moderna.

    Newton, fsico, matemtico e filsofo ingls, escreveu Princpios matemticos de uma filosofia da natureza, no qual, partindo de estudos de Galileu e Kepler, demonstrou matematicamente que as leis fsicas aplicveis na Terra tambm se aplicam a todo o Universo. A descoberta dessas leis constitui a principal atividade das cincias, e dever do homem permitir-lhes livre ao. Desse modo, estava dado o golpe final concepo medieval de um universo guiado por intenes benvolas.

    Nessa poca ocorreu tambm a ascenso das lnguas vernculas, fato ligado formao dos Estados Nacionais, que requeriam a lngua nacional como requisito unificador desse processo, tal como a histria, o passado em comum, o governo centralizado, a moeda nica, os smbolos. Assim, o latim deixou de ser a lngua oficial e passou a ser lngua culta, enquanto as vernculas (lnguas ptrias) passaram a ser lnguas populares. Todas essas grandes transformaes influenciaram o processo de produo do conhecimento.

    5 O CONHECIMENTO COMO CONSTRUO HUMANA

    Entre os sculos XVI e XVII, surge na Europa Ocidental uma concepo de cincia que ainda hoje prevalece. A sua origem histrica precisa: est relacionada com a grande revoluo cultural e cientfica da poca, que distingue essa concepo de todas as demais precedentes na histria da humanidade: as grandes concepes filosficas do Oriente, da Antiguidade Clssica e da escolstica medieval. No livro Os filsofos e as mquinas, Paolo Rossi assim define os pressupostos dessa concepo:

    1- a cincia uma lenta construo, nunca concluda, qual cada um, dentro dos limites de sua capacidade, pode trazer a sua contribuio; 2- a pesquisa cientfica tem como finalidade o benefcio no de uma nica pessoa, grupo, classe ou etnia, mas de todo o gnero humano; 3- o desenvolvimento e o crescimento da prpria pesquisa so algo mais importante do que cada indivduo que a executa.

    Essas caractersticas definem o carter pblico, democrtico e colaborativo assumido pela cincia moderna.

    Mas, antes de prosseguirmos, recordemos que, ao longo da histria, nem sempre o conhecimento cientfico foi aceito como verdadeiro. Durante toda a Idade Mdia, por exemplo, o tipo de conhecimento que predominou foi o religioso. Baseado em dogmas verdades absolutas ele se imps como nico e, tendo a Igreja Catlica como guardi, condenou as demais formas de conhecimento. O baixo nvel das foras produtivas nesse perodo e o predomnio dos dogmas religiosos explicam o fato de a cincia moderna ter seu marco cronolgico inicial apenas por volta do sculo XV, no Renascimento.

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    O conhecimento nasce conosco ou construdo por ns? Trata-se de uma controvrsia que esteve presente na histria da filosofia e da cincia. A corrente chamada inatismo, que teve Plato (427 a.C - 348 a.C) como seu primeiro representante, afirma que nascemos trazendo em nossa inteligncia no s os princpios racionais, mas algumas ideias verdadeiras, que, por isto, so inatas. Na mesma linha, muitos sculos depois, o filsofo Immanuel Kant (1724-1804) preconizou que o centro a razo; ela inata, no depende da experincia para existir; ela , por isto, do ponto de vista do conhecimento, anterior experincia. Nessa teoria, prevalece o excesso de subjetivismo, por acreditar-se que o conhecimento racional dependeria exclusivamente do sujeito do conhecimento, das estruturas, da sensibilidade e do entendimento. Alm disso, a filosofia kantiana negou que inatistas e empiristas estivessem certos, que pudssemos conhecer a realidade em si das coisas. J para o empirismo (Bacon, Locke, Berkeley, David Hume), a razo, com seus princpios, procedimentos e suas ideias, adquirida por ns atravs da experincia.

    Hegel (1770-1831) criticou o inatismo, o empirismo e o kantismo; pois, segundo ele, essas correntes no compreenderam que a razo histrica. A razo no est na Histria, ela Histria. A razo no est no tempo; ela o tempo. Para o empirista, a realidade entra em ns pela experincia. Para o inatista, a verdade entra em ns pelo

    poder de uma fora espiritual que a coloca em nossa alma. A razo, diz Hegel, no nem exclusivamente razo objetiva (a verdade est nos objetos) nem exclusivamente subjetiva (a verdade est no sujeito), mas unidade necessria do objetivo e do subjetivo. A soluo de Hegel no foi aceita por todos, mas fundamentando-se nela foi que o pensador Karl Marx (1818-1883) incorporou a tese sobre a unidade necessria do objetivo e do subjetivo e lhe deu um carter totalmente inovador, ao preconizar a supremacia da realidade histrica (fator objetivo, material) sobre as ideias (fator subjetivo). Para Marx, no so as ideias que criam a realidade objetiva na qual vivemos, mas o contrrio. Essa tese ficou conhecida como materialismo histrico e exerceu forte influncia na histria do pensamento ocidental, inspirando a produo de conhecimento por propor um novo mtodo de se conhecer a realidade histrico-social.

    Para o marxismo, os fatos humanos so construes sociais e histricas produzidas no pelo esprito e pela vontade livre dos indivduos, mas pelas condies objetivas nas quais a ao e o pensamento humanos devem realizar-se. Permitiu s cincias humanas compreender as articulaes necessrias entre o plano psicolgico e o social da existncia humana, entre o plano econmico e o das instituies sociais e polticas; entre todas elas e o conjunto de ideias e de prticas que uma sociedade produz. Graas ao marxismo, as cincias humanas puderam compreender que as mudanas histricas no resultam de aes sbitas e espetaculares de alguns indivduos ou grupos de indivduos, mas de lentos processos sociais, econmicos e polticos. A materialidade da existncia econmica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade, e os processos histricos abrangem todas elas. O marxismo trouxe a interpretao dos fenmenos humanos como expresso e resultado de contradies sociais, de lutas e conflitos sociopolticos determinados pelas relaes econmicas baseadas na explorao do trabalho da maioria pela minoria da sociedade. Permitiu compreender, assim, que os fatos humanos so historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam conhecidos, garante a interpretao racional deles e o conhecimento de suas leis.

    No processo de produo do conhecimento, o marxismo criticou o positivismo, fundado por Auguste Comte e em cujo mbito a obra de mile Durkheim (1858-1917) representou o momento da fundao da sociologia. O positivismo nasceu como corrente progressista, na medida em que criticava os dogmas religiosos e negava a verdade como algo revelado. Essa corrente defendeu que o nico conhecimento vlido o cientfico e que o mesmo mtodo das cincias exatas (observao, exatido, neutralidade, objetividade) deveria ser aplicado para as humanas e sociais. Dois exemplos podem

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    ilustrar esse mtodo: a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos fsico-qumicos, anatmicos, fisiolgicos, de tal modo que no havia, propriamente falando, um objeto cientfico denominado psiquismo, mas efeitos psquicos. Por isso, a psicologia considerava-se uma cincia natural prxima da biologia, tendo como objeto o comportamento como um fato externo, observvel e experimental. J a sociologia positivista estuda os fatos sociais observveis, a soma de aes individuais. Para ela, o indivduo elemento observvel e causa do social. Desse modo, no havia a sociedade como objeto ou uma realidade propriamente dita, mas como efeito de aes psicolgicas dos indivduos.

    Conhecer essas correntes importante para todo estudante que inicia a sua vida acadmica, porque a universidade brasileira o local por excelncia no qual acontece a produo do conhecimento. Independentemente do curso, da formao especfica ou da futura profisso que tenha escolhido, o estudante universitrio necessita adquirir tambm formao terica humanista, pois ela que lhe propiciar compreender a sociedade em que vive e adotar postura crtica sobre ela.

    6 O SCULO XX E A REVOLUO TCNICO-CIENTFICA

    Entre as ltimas dcadas do sculo XIX e o ano de 1914, data em que comeou a Primeira Guerra Mundial, a grande cincia do sculo XX j estava estruturada na forma das modernas teorias cientficas (que at ento no tinham aplicaes prticas imediatas), ou seja: a teoria quntica, que foi formulada pelo fsico Max Planck (1900); a teoria da relatividade, desenvolvida pelo fsico Albert Einstein a partir de 1905; e, em 1908, o bilogo Wiliam Batesson lanou os fundamentos da gentica. Alm disso, as investigaes de novos conhecimentos, notadamente nos campos da fsica e da qumica, que foram transformadas em tecnologias aplicadas diretamente nos processos industriais e possibilitaram, por exemplo, a produo do automvel, do avio, do cinema, do rdio (telegrafia sem fio) e o uso do Raio X na medicina.

    Se a segunda metade do sculo XX ficou marcada pelo processo de desenvolvimento acelerado das foras produtivas (trabalho humano, instrumentos de produo e matrias-primas), isso se deveu s teorias cientficas concebidas na transio do sculo XIX para o XX. Portanto, o incessante revolucionamento das foras produtivas, notadamente aps 1945 (data das duas bombas nucleares detonadas pelos EUA sobre o Japo), materializou-se por meio de uma trade cientfico-tecnolgica: a microeletrnica, a microbiologia e a energia nuclear. Desenvolvidos de forma isolada (modelos cientficos autnomos) e ao mesmo tempo combinada, os trs grandes campos cientfico-tecnolgicos em questo passaram a indicar os amplos caminhos do conhecimento que explicam e transformam, de forma cotidiana e global, o planeta Terra de maneira nunca dantes vista na histria da humanidade. Ou, como afirmou o historiador Eric Hobsbawm: Nenhum

    perodo da histria foi mais penetrado pelas cincias naturais nem mais dependente delas do que o sculo XX. Contudo, nenhum perodo, desde a retratao de Galileu, se sentiu menos vontade com elas (HOBSBAWM, 1995, p. 504). Dito de outra forma, ao contrrio do impacto cientfico-tecnolgico ocorrido nas ltimas dcadas do sculo XIX at 1914, a segunda metade desse sculo no se sentiu assim to confortvel com as suas descobertas cientficas. Eis alguns exemplos dos paradoxos produzidos entre cincia e tecnologia depois de 1945: (A) No mbito da microeletrnica: quando o matemtico lgico Alan Turing desenvolveu, em 1935, a teoria computacional, ningum poderia imaginar que no fim do sculo XX o computador poderia ser transportado numa pequena bagagem de mo. A partir da dcada de 1970, a microeletrnica possibilitou um alucinante processo de revolucionamento tecnolgico dos pequenos objetos/aparelhos pessoais e domsticos

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    (por exemplo, geladeiras, mquinas de lavar roupas e louas, televisores a cores etc.) que manuseamos atualmente no cotidiano de nossas vidas. Hoje, no incio do sculo XXI, podemos afirmar que os exemplos mais emblemticos so, possivelmente, os sistemas de multimdia, que incorporam computador porttil, televiso, telefone celular e rdio, conectados a uma rede mundial de bancos de informaes, ou seja, so mquinas que possibilitam no s as prprias ligaes telefnicas, mas, tambm, acesso Internet, televiso e ao rdio, alm de serem, ao mesmo tempo, microcmeras fotogrficas e filmadoras.

    O mais impressionante, porm, a aplicao dos computadores na indstria, na pesquisa cientfica, nas comunicaes, nos transportes, nos meios de informao de massas e nos servios. As tecnologias derivadas das descobertas cientficas manifestaram-se de forma impactante particularmente nos vos espaciais e nas fbricas automatizadas, nas quais os robs passaram a substituir em grande quantidade o trabalho humano, ou seja, o trabalho vivo passou a ser superado pelo trabalho mecnico movido por inteligncia artificial. Mas, por um lado, se a revoluo tcnico-cientfica da microeletrnica, materializada na automao e robotizao, possibilita a libertao do homem da maldio divina do Velho Testamento, segundo a qual ele deveria ganhar o po de cada dia com o suor do seu rosto (SCHAFF, 1992, p. 22), por outro, ela produziu um horror econmico que se manifestou no chamado desemprego estrutural, que engendrou nefastas consequncias sociais, apesar do imenso incremento na produtividade da riqueza material. As sociedades capitalistas, fundadas na lgica exclusiva da acumulao do capital, no foram capazes de encontrar solues econmicas, sociais, polticas e culturais que possibilitassem a substituio do trabalho humano tradicional pelos instrumentos robotizados em geral, e uma decorrncia disso so as legies de excludos e marginalizados dos bens materiais que so fundamentais para a sobrevivncia digna dos prprios seres humanos. (B) No campo da microbiologia: a descoberta da estrutura do DNA (cido desoxirribonucleico) humano, na forma da famosa dupla hlice, pelos cientistas Francis Crick e James Watson (1953), pode ser considerada como uma das conquistas cientficas fundamentais do sculo XX. Depois, em 1973, as pesquisas genticas avanaram para os DNAs recombinantes, ou seja, que tornaram possvel combinar genes de uma espcie com outra. Em 1996, uma outra notcia marcou a histria da gentica: pesquisadores britnicos (Esccia) anunciaram ao mundo que haviam conseguido conceber artificialmente um mamfero por meio de mtodo cientfico. Ian Wilmut e seus colegas, entre eles o cientista brasileiro Lawrence Smith2, mostraram que era possvel reproduzir a vida utilizando clulas somticas (clulas que formam rgos, ossos e pele), tal como ela se processa naturalmente mediante a fuso entre um vulo e um espermatozoide. E quando o sculo XX chegou ao fim, era publicado o primeiro rascunho do genoma humano, cuja decodificao total seria divulgada somente em 2003. Depois, as pesquisas realizariam mapeamento completo do cdigo gentico de outros seres vivos, tais como: do rato, da mosca de frutas, de bactrias e do vrus da Aids. Assim, podemos afirmar que a proeza cientfica que resultou na clonagem da ovelha Dolly e em outras investigaes no campo da microbiologia indicam que o sculo XXI poder ser aquele em que as atividades humanas sero dominadas pela engenharia gentica3.

    2 Lawrence Smith concluiu a graduao em Medicina Veterinria, no campus da UNESP (Universidade Estadual de So Paulo) de Jaboticabal (1981), o mestrado pela University of Edinburgh (1984) e o doutorado pela Faculty of Sciences e pelo Institute of Animal Physiology and Genetics (1989), cujo orientador foi Ian Wilmut. Atualmente, professor titular do Centre de Recherche en Reproduction Animale (Facult de Mdicine Vtrinaire) da Universit de Montreal (Canad). Alm disso, tambm Professor Colaborador na Faculdade de Engenharia de Alimentos do campus da USP (Universidade de So Paulo) de Pirassununga (SP).

    3 A revoluo tcnico-cientfica tem avanado muito nas investigaes que combinam a microbiologia com a microeletrnica, mais especificamente na rea de neurofisiologia. A neurofisiologia tem como objeto de

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    Em suma, as pesquisas no mbito da microbiologia criaram situaes que abrem novas e magnficas perspectivas para o homem na luta contra as doenas congnitas ou

    na produo de novas variedades de plantas e animais, muito mais resistentes s enfermidades e s condies naturais desfavorveis (SCHAFF, op. cit., p. 23). Portanto, seriam essas pesquisas aplicadas agricultura que possibilitariam, por exemplo, combater de forma sistemtica a fome (desnutrio) e as doenas que assolam vastos contingentes da populao mundial, notadamente no continente africano (o bero da humanidade). Contudo, as investigaes cientficas realizadas com material hereditrio da vida, particularmente a humana, tm suscitado um intenso debate de carter tico sobre a pertinncia e o futuro de tais pesquisas, pois muitos setores da comunidade mundial temem que as manipulaes genticas possam levar, tal como explorou a fico cientfica (principalmente a literatura e o cinema), criao de um super-homem a servio, por exemplo, de regime polticos totalitrios, ou servir, ainda, de subsdio para as ideologias autoritrias que acreditam na ideia de uma pretensa raa humana pura e superior. E

    mais: que haja direcionamento das pesquisas para a reproduo de seres humanos idnticos, tanto do ponto de vista fsico como mental, por meio da clonagem.

    Apesar do clima de terror que se criou, particularmente pelas exortaes feitas por bilogos e autoridades religiosas aps o advento da ovelha Dolly, uma questo se impe: a humanidade deveria interromper as pesquisas no campo da microbiologia em decorrncia do fato de que elas acarretam perigo e podem ser usadas de forma abusiva? Ns pensamos que no. Acreditamos que a soluo do problema no est na proibio pura e simples do progresso cientfico que pode beneficiar toda a humanidade. Mas, sim, em estabelecer medidas (procedimentos), decididas nos fruns mundiais sem a imposio dos interesses defendidos pelas grandes corporaes econmicas e militares (por exemplo, o capital financeiro e a indstria blica), que tenham funo preventiva e se oponham, portanto, s consequncias negativas de carter poltico e social. (C) Nos domnios da energia nuclear: a revoluo tcnico-cientfica que mais causou resistncia e polmica foi aquela inaugurada com as descobertas do fsico Otto Hahn em 1939: a fisso nuclear. Dito de outra forma, a energia nuclear ficou irremediavelmente marcada pela tragdia que aterrorizou a humanidade: as duas bombas atmicas que os EUA lanaram sobre o Japo no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As bombas atmicas detonadas sobre as cidades de Hiroxima e Nagasaki deixaram, respectivamente, cerca de 100 e de 70 mil mortos debaixo de cada um dos cogumelos de nuvens que se formaram sobre as cidades. Esse trgico episdio que marcou o sculo XX foi protagonizado pelos Estados Unidos da Amrica com o claro objetivo de exercer, aps o fim da Guerra, uma posio poltica imperialista no mundo.

    A propsito, muitos historiadores, como Eric Hobsbawm (1995) em sua obra Era dos extremos: o breve sculo XX (1914-1991), afirmam que as bombas lanadas sobre o Japo eram desnecessrias, pois a Guerra j estava decidida militarmente em favor dos Aliados (EUA e URSS). Elas teriam sido usadas pelos norte-americanos apenas para demonstrar o seu poderio cientfico-tecnolgico que os transformariam em superpotncia econmica e militar mundial aps 1945 e, por consequncia, transformaram-se num dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. Assim, as armas nucleares continuaram a provocar terror na comunidade internacional durante o perodo da chamada Guerra Fria (1947-1991) em funo da corrida armamentista que se estabeleceu entre os ex-aliados EUA e URSS, que lideravam os blocos capitalista e socialista. Durante mais de 40 anos, os dois pases (alm da Inglaterra, Franca e China) acumularam uma quantidade de ogivas nucleares, instaladas em msseis de longo e curto alcance armazenados em silos terrestres,

    estudo as funes do sistema nervoso. Os estudos da neurocincia englobam trs reas principais: a neurofisiologia, a neuroanatomia e a neuropsicologia. As pesquisas nesse campo utilizam eletrodos e computadores (microeletrnica) para estimular e gravar a reao das clulas nervosas ou de reas maiores do crebro.

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    avies, navios, submarinos e trens, que tinham uma capacidade de destruio do planeta Terra estimada em cem vezes. O mais trgico, porm, constatarmos que, para destruir o planeta azul (Terra), no seria necessrio fazer uso das cem vezes: bastaria uma. Em

    sntese: a Guerra Fria, com as suas bombas atmicas, deixou o planeta beira do apocalipse nuclear como, por exemplo, durante o famoso episdio dos msseis soviticos instalados em Cuba (1962).

    Outro fato alarmante ligado fisso nuclear ocorreu na regio de Chernobyl (Ucrnia, ex-repblica sovitica), em 1986. Desta vez, o acidente nuclear no estava ligado a fins blicos. Era apenas uma usina que gerava energia eltrica para o consumo da populao civil. Mas Chernobyl mostrou, mais uma vez, a capacidade de destruio em massa que a energia nuclear pode causar. Aqui cabe novamente a mesma pergunta: o poder de destruio gerado pelas bombas atmicas deveria levar ao encerramento das pesquisas realizadas no mbito da energia nuclear? Novamente, a resposta no. Devemos e podemos continuar com as pesquisas na rea de energia nuclear visando exclusivamente os interesses pacficos que atendam as demandas acertadas de comum acordo por um acordo internacional das naes. Hoje, com certeza, a principal demanda mundial aquela relacionada com o consumo de energia e as questes ecolgicas da decorrentes. Nesse campo, o exemplo mais gritante o do petrleo como fonte de energia para os pases desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento industrial, pois sabemos que s os EUA tm uma frota de cerca de 210 milhes de automveis e caminhes ligeiros. E, prospectivamente, so alarmantes as estimativas quanto ao consumo de petrleo que o mundo dever alcanar at 2030: passando dos atuais 80 milhes para algo em torno de 110 milhes de barris por dia. Neste contexto, os derivados do petrleo (gasolina e diesel) lanaro ainda mais poluio, por meio do monxido e do dixido de carbono (gs carbnico) na atmosfera terrestre, com graves consequncias para o aquecimento global do planeta.

    Na busca por novas fontes geradoras de energia limpa, que se processa por meio de uma corrida frentica no mbito das pesquisas cientficas, a energia nuclear ganhou um novo destaque. A revoluo energtica em curso vem desenvolvendo novas investigaes no mbito da fisso4 e da fuso5 controlada de tomos (particularmente com relao ao ltimo campo de pesquisa), ou seja, as novas pesquisas apontam para a possibilidade do uso da energia nuclear da maneira a mais controlada e segura possvel. Assim, a energia nuclear, para fins pacficos, passou a ocupar um lugar de destaque ao lado de outras fontes energticas limpas, poderosas e praticamente inesgotveis, tais como: a solar, a geotrmica, as proporcionadas pelas mars dos oceanos, dos ventos e das correntezas das guas dos rios. A propsito, o Brasil um dos nicos pases do mundo que limita em sua Constituio Federal o poder nuclear exclusivamente para fins pacficos, tal como podemos ler no artigo 26, inciso XXIII, letra a: Toda atividade nuclear

    em territrio nacional somente ser admitida para fins pacficos e mediante aprovao do Congresso Nacional (Brasil, 1998, p. 34).

    A segunda metade do sculo XX pode ser caracterizada como uma era em que houve uma

    [...] espantosa exploso de teoria e prtica da informao, novos avanos cientficos foram se traduzindo em espaos cada vez menores, numa tecnologia que no exigia qualquer compreenso dos usurios finais. O resultado ideal era um conjunto de botes ou teclado inteiramente prova de erro, que requeria apenas apertar-se no lugar certo para evitar

    4 Reao nuclear, espontnea ou provocada, em que um ncleo atmico, geralmente pesado, se divide em duas partes de massas comparveis, emitindo nutrons e liberando grande quantidade de energia.

    5 Reao nuclear em que ncleos leves reagem para formar outro mais pesado, com grande desprendimento de energia.

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    um procedimento que se movimentava, se corrigia e, at onde possvel, tomava decises, sem exigir maiores contribuies das qualificaes e inteligncias limitadas e inconfiveis do ser humano mdio. [...] A cobrana nos caixas dos supermercados na dcada de 1990 tipificava essa eliminao do elemento humano. No exigia do operador humano mais que reconhecer as clulas e moedas de dinheiro local e registrar a quantidade entregue pelo cliente. Um scanner automtico traduzia o cdigo de barras do artigo num preo, somava todos os preos, deduzia o total da quantidade entregue pelo cliente, e dizia ao operador quanto dar de troco. (HOBSBAWM, 1995, p. 509.)

    Mas, por outro lado, o revolucionamento tecnolgico, que alterou de forma sistemtica o cotidiano das pessoas durante o transcurso da segunda metade do sculo XX, produziu tambm um substrato psicossocial de desconfiana, na medida em que abalava a confiana dos indivduos em relao s pesquisas cientficas tericas e aplicadas. J que para um grande contingente da populao mundial os principais produtos tecnolgicos gerados pela cincia eram incompreensveis, imprevisveis e at mesmo de carter catastrfico, esse carter gera um temor compreensvel, porque a cincia ajuda a produzir mudanas nas estruturas tradicionais das sociedades e da natureza, cujas consequncias ecolgicas como no clima do planeta ameaam a prpria existncia dos homens.

    Em suma, os problemas gerados pela revoluo tcnico-cientfica no esto nas descobertas cientficas proporcionadas pelas pesquisas, mas, sim, na forma pela qual so usadas, na lgica que as relaes de produo capitalistas definem como sendo a sua nica funo, ou seja, a acumulao desenfreada e desregulada do capital (a riqueza material acumulada), controlada quase que exclusivamente pelas grandes empresas multinacionais (em particular, a indstria blica) e as instituies financeiras mundiais. Longe de ficarmos preocupados com a possibilidade de vivermos em uma sociedade controlada por mquinas movidas por meio de inteligncia artificial (tais como: vrios tipos de robs; vrus de computador que ningum consegue exterminar; aeronaves no tripuladas capazes de matar com autonomia; ou supercomputadores que possam controlar as nossas vidas), devemos empreender lutas polticas e sociais (em mbitos nacionais e internacionais) contra a ganncia e o exclusivismo do capital, com o propsito de transformar as descobertas derivadas da revoluo tcnico-cientfica em medidas que possam implementar a sustentabilidade (respeito ecolgico) e o bem-estar da humanidade (vida longa e saudvel, acesso ao conhecimento e padro de vida decente).

    CONCLUSO: POR QUE PRECISAMOS DAS CINCIAS HUMANAS?

    A forma de ingresso na universidade brasileira, ao exigir que os jovens, cada vez mais cedo e previamente, decidam sobre essa ou aquela profisso que exercero no futuro, faz com que a maioria deles rejeite ou ignore a importncia das Cincias Humanas para a sua formao. Vivendo em um mundo altamente competitivo, dominado por valores pragmticos, em que se acredita que tudo precisa ter uma utilidade prtica imediata, as pessoas no percebem a importncia das Cincias Humanas e desconhecem o seu potencial para lhes proporcionar um juzo crtico sobre o mundo. Como escreveu o socilogo Marco Aurlio Nogueira (2009), a modernidade no somente empenho cego em maximizar a racionalidade e a produtividade. tambm disseminao do esprito crtico, incremento comunicativo e esforo para que se viva de maneira mais justa e sbia. Entretanto, o aspecto mais instrumental do moderno predomina, e ns vivemos sobrecarregados por ele, deixando-o modelar nossas expectativas e projetos. Esse predomnio cria uma atitude de m vontade com as Humanas e dissemina um senso comum de que elas no servem para nada, exceto fomentar um exerccio intelectual

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    suprfluo. Alm disso, cria a falsa ideia de que fcil dominar os conhecimentos das Cincias Humanas, enquanto os das demais cincias exigiriam muito esforo, inteligncia e estudo. Esse um equvoco, pois compreender as correntes de pensamento, as teorias sobre o Estado, a formao das classes sociais, da ideologia e de tantos outros fenmenos das sociedades humanas tarefa que exige muitos anos de leitura, de reflexo e de exerccio intelectual. Tanto assim que o estudioso das Humanas no atinge a maturidade intelectual to rapidamente quanto o das outras cincias, mbito nas quais cada vez mais comum que pesquisadores muito jovens consigam atingir projeo, enquanto o tempo necessrio para a formulao de um pensamento prprio na rea das humanidades muito maior, e o caminho bem mais rduo.

    O preconceito acabou criando uma muralha separando as Humanas das outras cincias, e os conhecimentos produzidos pelas primeiras ficam fechados em si, em vez de serem incorporados pelas outras, que se especializam cada vez mais. E assim, a ideia de universidade universitas se perde. A filosofia, por exemplo, em torno da qual todos os demais conhecimentos gravitavam, e que na Idade Mdia foi um dos primeiros saberes a se constituir em faculdade, hoje vista pelo pensamento pragmtico como um conhecimento sem importncia, uma vez que, nessa perspectiva, s importante o que tem utilidade prtica imediata. Entretanto, de se indagar: no importante e til compreendermos os fundamentos do mundo em que vivemos? As relaes entre grupos, classes, etnias? A conflituosa convivncia entre os povos e pases? Quais cincias nos proporcionaro essa compreenso e as ferramentas para projetarmos uma perspectiva de futuro, seno as Humanas? Novamente citando Marco Aurlio Nogueira,

    [...] precisamente porque vivemos em ambientes complexos, dinmicos e fragmentados, as Cincias Humanas tornaram-se estratgicas. A razo crtica por elas cultivada deveria ser amplamente disseminada, de modo a ajudar que cidados e profissionais sejam mais do que meros receptores ou aplicadores de conhecimentos e adquiram recursos intelectuais abrangentes. [...] que sejam pessoas capazes de compreender o mundo em que vivem, traduzi-lo em termos compreensveis para todos e organiz-lo tendo em vista uma ideia de comunidade poltica democrtica. (NOGUEIRA, 2009, p. A2.)

    Desse modo, a universidade, tal como hoje se organiza, se tem cumprido o seu papel ao formar cientistas, o faz de forma incompleta, pois, ao veicular conhecimentos segmentados, no lhes proporciona uma formao ampla, humanista e poltica da sociedade. No lhes proporciona, enfim, a formao que desde a Grcia Antiga aquela necessria para se viver na plis, isto , na cidade, entendida como agrupamento humano, locus de realizao da coletividade humana. Fragmentada em especializaes e dominada por valores pragmticos, a universidade tem formado quadros para realimentar essa viso predominante de mundo. Nesse sentido, a universidade brasileira contempornea, vazia como est dos conhecimentos de humanidades, carente de pensamento crtico, de fora criadora, tem deixado de exercer uma das suas principais funes: pensar a sociedade e formular projetos amplos e coletivos para ela. Algumas das suas caractersticas atuais so bastante preocupantes: voltada para si prpria, fechada em seus estreitos muros corporativos, cada vez mais fragmentada em reas especializadas que no dialogam entre si, praticando a especializao do saber entre os alunos de forma cada vez mais precoce, submetida a uma lgica cujo princpio parece ser mais caracterizado pela certificao do que pela formao humana ampla. Por isso, conclumos este texto defendendo que, alm de formar cientistas e especialistas, a universidade brasileira forme tambm intelectuais, pois intelectuais so aqueles capazes de interpretar o mundo em que vivem, critic-lo e projetar perspectivas de futuro para a sociedade.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ARISTTELES. Poltica. Trad. Mrio da Gama Kury. 2. ed. Braslia: Ed. da Universidade de Braslia, 1988. BRASIL. Cmara dos Deputados. Constituio da Repblica Federativa do Brasil: 1988 texto constitucional de 5 de outubro. Braslia: Coordenao de Publicaes, 1998. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX (1914-1991). Trad. Marcos Santarrita. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. NOGUEIRA, Marco Aurlio. Para compreender o mundo. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 23 de maio, 2009, p. A 2. SCHAFF, Adam. A sociedade informtica. Trad. Carlos Eduardo Jordo Machado et al. 3. ed. So Paulo: Ed. da UNESP, 1992.

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    RONAN, Colin A. Histria ilustrada da cincia: das origens Grcia. Trad. Jorge Enas Fortes. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, v. I. RONAN, Colin A. Histria ilustrada da cincia: Oriente, Roma e Idade Mdia. Trad. Jorge Enas Fortes. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, v. II. _____. Histria ilustrada da cincia: da Renascena Revoluo Cientfica. Trad. Jorge Enas Fortes. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, v. III. RONAN, Colin A. Histria ilustrada da cincia: a cincia nos sculos XIX e XX. Trad. Jorge Enas Fortes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, v. IV. ROSSI, Paolo. Os filsofos e as mquinas: 1400-1700. Trad. Federico Carotti. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. SCHAFF, Adam. Histria e verdade. Trad. M. Paula Duarte. So Paulo: Martins Fontes, 1987. SWEEZY, Paul M.; DOBB Maurice et al. Do feudalismo ao capitalismo. Trad. Manuel Vitorino Dias Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1971.

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    Texto 2

    INTRODUO FILOSOFIA

    Jos Edison Ferreira1

    1 CONCEITO DE FILOSOFIA: ACEPO AMPLA E ESTRITA 1.1 Consideraes iniciais a respeito do emprego das vrias acepes que o termo filosofia comporta

    Quando se inicia o estudo de uma nova disciplina, a pergunta que se faz inevitavelmente e com toda razo : o que ela vem a ser e qual o motivo de sua insero na grade curricular do curso em questo? Ou ainda, a pergunta mais incisiva feita pela mentalidade pragmtica, dominante na poca atual: qual , ao final de contas, sua utilidade?

    Da a necessidade e a preocupao legtima de uma breve caracterizao da disciplina e tambm a justificativa convincente do propsito que animou a eleg-la como uma disciplina indispensvel formao intelectual que se almeja. Mas, antes de qualquer considerao acerca do carter da Filosofia, torna-se conveniente proceder a um levantamento das vrias acepes que este termo comporta, uma vez que o mesmo padece de uma considervel inflao de significados, oriundos do seu emprego na linguagem coloquial do cotidiano. Com efeito, num pequeno esforo de memria, pode-se constatar a ambiguidade que sofre esse vocbulo devido aos mltiplos significados que lhe so atribudos nos mais diversos contextos que envolvem a atividade humana ordinria.

    Assim, por exemplo, quando algum se depara com outra pessoa dotada de um estilo de vida a destoar, de alguma forma, da maneira de viver e de se comportar da maioria das pessoas, comum empregar a expresso filosofia de vida para designar

    esse modo de ser meio extravagante em relao ao padro tacitamente preestabelecido. Em outro contexto do cotidiano, no raro de se constatar, o emprego do termo filosofia

    pode ser identificado quando algum se refere a um conjunto de princpios, a nortear a poltica de uma determinada instituio, por meio da expresso: esta a filosofia que a

    caracteriza, em relao s demais, em sua atuao. E ainda, de um modo mais

    corriqueiro e um tanto vago, v-se empregado o termo filosofia para designar uma espcie de devaneio inconsequente de algum a respeito de um assunto trivial qualquer.

    Escusado dizer que no se trata de desqualificar e nem mesmo de censurar os empregos, acima mencionados, desse termo, uma vez que se prestam admiravelmente para a comunicao do senso comum, a despeito de toda a ambiguidade que encerra. a esse conjunto de significaes da palavra filosofia que se entende pela designao de

    acepo ampliada do termo ora em apreo.

    1.2 Acepo estrita do termo Filosofia

    Claro est que o significado da palavra Filosofia, entendida enquanto uma disciplina estudada nos currculos escolares, quer do ensino mdio, quer do superior e

    1 Mestre em Filosofia pela USP (Universidade de So Paulo) e professor do Departamento de Filosofia da UFPA (Universidade Federal do Par).

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    atualmente, tambm, em algumas escolas do ensino fundamental, guardadas, obviamente, as respectivas faixas etrias e de cognio, no deve ser confundido com as acepes empregadas pela linguagem coloquial nas mais diversas situaes de nossa vida diria, pois no se trata do estudo nem do estilo de vida particular de determinadas pessoas, mbitos que, de resto, no devem interessar, em princpio, ao domnio pblico (tendo em vista sua natureza privada), e muito menos ao conhecimento e ao saber acadmico, cuja caracterstica se reveste da pretenso de uma certa universalidade.

    Desse modo, torna-se imperioso que se proceda ento a um ajuste semntico de modo a assegurar uma compreenso unvoca e precisa do termo filosofia, na sua

    acepo estrita, isto , no seu sentido rigorosamente prprio, a despeito da dificuldade e da temeridade de unificar, em torno de um mesmo conceito de Filosofia, concepes to diversas e, at mesmo, em alguns casos, conflitantes, dos vrios filsofos, ao longo dos vinte e seis sculos do pensamento filosfico ocidental.

    Numa tentativa de assegurar uma compreenso satisfatria do estudo da filosofia aos iniciantes, Magalhes Vilhena dedica algumas pginas de seu Pequeno manual de filosofia (VILHENA, 1956) para caracterizar essa peculiar forma de pensar que consiste, resumidamente, na tarefa de levar o homem a pensar seu prprio pensamento. Quer

    dizer, a torn-lo (o pensamento) consciente de si mesmo. Ou, em outras palavras, a proceder a uma reflexo absoluta, entendendo-se por reflexo um v