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O_Juridiquês_no_Banco_dos_Réus

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Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).

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O juridiquês no banco dos réus

A construção da imagem do usuário da língua no Direito

Os diferentes modos de usar a mesma língua não raro são objeto de polêmica:

nos últimos tempos, assistimos a debates em torno da proposta de proibição do uso de

“estrangeirismos”, a críticas ao “gerundismo”, a discussões acerca do uso da

expressão “a nível de”, só para ficar com alguns exemplos mais significativos.

Recentemente, alguns órgãos de imprensa têm colocado em foco outro alvo: o

objeto de debate agora é o “juridiquês” (grosso modo, a “língua” dos profissionais do

Direito). O que desencadeou a discussão foi o seguinte fato: a Associação dos

Magistrados Brasileiros (AMB) designou uma comissão para a “reeducação lingüística”

dos operadores do Direito. Nessa perspectiva, recomenda-se aos profissionais da área,

por exemplo, evitar a ordem indireta na construção dos enunciados, bem como o

emprego de palavras arcaicas ou em desuso. Para alguns, isso implicaria um

empobrecimento da linguagem jurídica; para outros, a sua democratização.

O que nos interessa particularmente na polêmica sobre o “juridiquês” é o

seguinte:

• Não se pode confundir o emprego de termos técnicos com o uso de

palavras arcaicas: a condenação deste, portanto, não implica a daquele.

Quando se trata do “juridiquês”, é importante ter em mente que

existem termos específicos em todas as atividades sociais, que servem

sobretudo para facilitar a comunicação entre especialistas. O fenômeno

lingüístico, logo, não é exclusivo do Direito.

• A propriedade ou impropriedade no emprego da terminologia depende

da precisão no uso dos termos, segundo as definições correntes na

linguagem jurídica.

• A adequação ou não da terminologia jurídica não deve ser avaliada em

si mesma, ou seja, depende da situação concreta de comunicação: o

que está sendo dito, está sendo dito a quem? Se entre especialistas o

uso de terminologia é adequado, não o é se o interlocutor for leigo.

• Na comunicação humana não circulam somente conteúdos, mas

também imagens: pelo modo de dizer, as pessoas podem parecer mais

competentes ou incompetentes, sérias ou descontraídas, cultas ou

ignorantes, etc. A imagem do advogado tradicional, sério, sisudo, de

fala difícil, empolada, corresponderia mais, por exemplo, aos defensores

do “juridiquês”. Modos distintos de dizer o mesmo conteúdo, assim,

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revelam imagens distintas, isto é, tipos diferentes de profissional da

área. Aliás, vale lembrar, “o estilo é o homem”.

Propomos a seguir duas situações concretas, a partir das quais discutiremos

alguns aspectos do problema:

Que língua é essa?

Imagine um advogado falando a outro: “A sentença transitou em julgado”.

Como os dois são da área, nenhum problema na comunicação. Falando a um leigo,

seria mais adequado dizer que a decisão do juiz não pode mais ser contestada, ou

seja, é definitiva.

O exemplo coloca diante de nós duas questões que estão imbricadas: em

primeiro lugar, a situação concreta de comunicação (grosso modo, o contexto: quem

fala o quê e a quem); em segundo, o uso da linguagem técnica, da terminologia

especializada. Somente analisando a elas é que podemos julgar sobre a adequação ou

não do enunciado. A escolha das palavras, assim, deve se ajustar ao interlocutor

(considerando seu nível social, seu grau de instrução, etc.).

Imagine agora um advogado dizendo a outro o seguinte, a respeito de um

cliente: “O réu vive de espórtula, tanto é que é notória sua cacosmia”. Se você não é

do meio, seguramente não saberia parafrasear (isto é, dizer com outras palavras) o

que ouviu. Aliás, inclusive muitos do meio também não conseguiriam traduzir o

enunciado. Seria muito mais fácil compreender a mensagem se, em lugar de

“espórtula”, o advogado dissesse que o réu dependia de donativos; e, em lugar de

“cacosmia”, dissesse que vivia em ambiente miserável.

Você deve estar imaginando que acabamos de cometer uma redundância: dois

exemplos para ilustrar a mesma noção. Apesar das aparências, aqui há um problema:

embora o advogado também esteja conversando com um colega, a respeito de um

assunto jurídico, o que tornaria adequado o emprego de terminologia específica da

profissão (comum, pois, a todos da área), ele não está na verdade empregando termos

técnicos. As palavras “cacosmia” e “espórtula” não são específicas do Direito, como a

expressão “sentença transitada em julgado”, do primeiro exemplo: trata-se de

arcaísmos, ou seja, palavras em desuso. Por isso, é difícil até encontrá-las em

dicionários. Sua escolha, levando isso em conta, é inadequada, dificultando a

comunicação.

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Quem escreve um texto jurídico dessa maneira, prejudica, sem exagero, a

Justiça. Você já pensou o trabalho de um juiz, por exemplo, para decifrar um processo

inteiro escrito assim? Quantas vezes ele iria ao dicionário? Quanto tempo perderia? Por

isso é que, quando se fala em agilizar a Justiça, deve-se pensar também em agilizar a

linguagem adotada. Nessa perspectiva, evitar arcaísmos e preciosismos vocabulares é

um fator de “economia processual”: um texto claro, objetivo, que vai direto ao centro

da questão, é lido também com maior agilidade. O “juridiquês” que a ABM condena é,

pois, um fator que contribui para a lentidão das decisões judiciais, além de corroborar

a imagem “dura” dos profissionais da área.

Poderíamos prosseguir com diversos outros exemplos de usos da língua em

outras atividades profissionais, mas o que mostramos acima parece ser suficiente para

depreender as seguintes noções iniciais:

• Na organização de uma sociedade há diversas atividades sociais

distintas, ou seja, muitas profissões diferentes, como as de médico e

advogado, por exemplo.

• Cada atividade social se realiza por meio de determinadas atividades

verbais, isto é, de certos usos da língua (quanto mais complexo é o

modelo de organização social, mais profissões e formas de comunicação

possui), de certos gêneros de discurso.

• A língua não é um bloco monolítico, ou seja, não é utilizada da mesma

maneira por todos os usuários: as diferentes maneiras de usar a língua

recebem a denominação de “variantes lingüísticas”. Uma das variações

que a língua sofre é a “variação social”: nesse caso, o uso difere

conforme a classe social, o grau de escolaridade e a atividade

profissional do enunciador. Lembrando as lições de Aristóteles em sua

Retórica, “um homem rude não poderia dizer as mesmas coisas nem

dizê-las da mesma maneira que um homem culto”.

Na mesma árvore, mas cada macaco no seu galho

As atividades profissionais associadas ao Direito, assim, apresentam suas

formas específicas de uso da língua. Em outros termos, um advogado, por exemplo,

tem uma maneira de falar e de escrever bem distinta da de um médico. Este, por sua

vez, é caracterizado por um modo de dizer que em nada se parece com o de um

publicitário ou de um engenheiro. Por isso é que o social e o verbal estão intimamente

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ligados: cada atividade tem seus gêneros particulares, isto é, determinadas espécies

de texto que circulam na área. No Direito, há diversos gêneros, como a petição inicial,

o mandado de segurança e o agravo de instrumento.

Cada gênero tem suas próprias regras: deve tratar de dado assunto, ter certa

estrutura composicional e certo estilo. Redigir uma petição, por exemplo, implica um

uso da língua que não é o mesmo a que se recorre para escrever uma receita médica,

do mesmo modo que criar uma propaganda requer conhecimentos diferentes dos

exigidos na apresentação de um projeto de construção de um viaduto. Cada texto

discute um tema específico, tem um formato particular e apresenta certo estilo: a

conversa com um cliente é um gênero, um mandado de segurança é outro. Cada qual

manifesta uma maneira de ser, tem suas próprias regras, implica um grau maior ou

menor de formalidade, uma determinada escolha de palavras, etc.

A imagem de competência profissional, enfim, está intimamente relacionada ao

domínio dos gêneros: dominá-los é dominar esses três elementos característicos. Em

linhas gerais, importa saber o que dizer e como dizer.

Com base nisso, ainda que todos usem a língua portuguesa, utilizam-na de

modos diversos, de acordo com seu campo de atuação: por isso é que podemos dizer,

recorrendo à linguagem figurada, que todos estão na mesma árvore, mas em galhos

diferentes: a árvore representa a língua; cada galho, uma manifestação dela (ou seja,

uma variante).

A língua é uma carteira de identidade: conforme o modo como falas,

dir-te-ei quem és

Quando usamos a língua, assim, não apenas transmitimos conteúdos. Claro que

é importante o que dizemos, mas não menos importante é o modo como dizemos.

Como vimos no início deste artigo, o mesmo conteúdo pode ser traduzido de maneiras

diferentes. Não é demais lembrar: “o estilo é o homem”. Um advogado que diz, por

exemplo, “o puto meteu cinco tecos na vagabunda” parece menos confiável do que

aquele que diz “o réu deu cinco tiros na esposa”. Por que, se ambos estão dizendo a

mesma coisa?

É exatamente no modo de dizer, e não propriamente no que é dito, que reside a

distinção: o primeiro advogado, por suas palavras, pode transmitir uma impressão de

falta de cuidado, de conhecimento. Com o perdão da comparação, por sua linguagem

“chula”, em princípio, parece estar mais próximo da imagem do réu do que do

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estereótipo do advogado. A menos que o gênero fosse uma “conversa de boteco”, com

alguém muito íntimo e despojado...

Seria melhor, então, se dissesse “desferiu cinco projéteis no cônjuge”? Como

ensina o senso comum, os extremos são viciosos: se num caso o advogado pecaria

pela falta, este pecaria pelo excesso. Explicando melhor: o emprego de termos

“populares”, de um lado, e o uso de linguagem muito rebuscada, de outro, afetariam a

imagem dos advogados. Se um parece não ter pleno domínio da área, o outro, ainda

que dê a impressão de tê-lo, pode parecer pernóstico, arrogante. É nessa direção que

vai a crítica da Associação dos Magistrados Brasileiros: evitar preciosismos

vocabulares, sem desprezar a propriedade no emprego da linguagem especializada;

conforme a situação concreta de comunicação, traduzir a terminologia, aproximando

dos leigos o Direito.

Por tal razão é que a maneira de dizer é bastante reveladora, atuando como

uma espécie de carteira de identidade do enunciador: o modo de dizer fornece pistas

sobre a sua idade, seu grau de escolaridade, sua classe social, sua profissão... Pela

maneira de usar a língua, o enunciador se mostra como alguém mais sisudo ou

descontraído, formal ou informal, culto ou ignorante, etc. Ao usar a língua, portanto,

não apenas transmitimos conteúdos: ao transmiti-los, transmitimos também uma

imagem de nós.

A língua do Direito, na comunicação entre os profissionais da área

Podemos depreender dessa discussão, em linhas gerais, o seguinte:

• a adequação no emprego dos termos técnicos depende do contexto da

comunicação: entre pares é adequada, entre um especialista e um leigo,

não;

• considerando que o contexto comunicacional permita o uso da

terminologia, passa a estar em foco a questão da propriedade no

emprego dos termos: o problema não é mais o de não poder usar tais

termos, mas o de usá-los com precisão;

• aquele que usa termos com exatidão, no contexto adequado, transmite

uma imagem de competência, de rigor, de seriedade profissional; a

impropriedade no emprego da terminologia, em contrapartida, revela

uma imagem de imperícia, isto é, de falta de aptidão para o exercício

profissional.

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Como vimos, as diferentes atividades sociais promovem usos distintos da

língua. Cada profissão, assim, tem um léxico especializado, isto é, um conjunto de

palavras que integram a terminologia da área. Quanto a isso, duas questões

interessam: primeiro, há palavras que já existem no senso comum, mas que sofrem

uma especialização de sentido, para integrar dada terminologia; segundo, há palavras

que não ocorrem no senso comum, existindo apenas na língua técnica. Nos dois casos,

as palavras servem para facilitar a comunicação entre os profissionais, evitando

ambigüidades, imprecisões, mal-entendidos.

Para esclarecer tais noções, pensemos em algumas palavras consideradas

sinônimos perfeitos pelo senso comum, como “delito”, “crime” e “contravenção”,

“reclusão” e “detenção”, “imprudência” e “imperícia”, “calúnia”, “difamação”, “injúria”

e “calúnia” e “residência” e “domicílio”. No Direito, cada termo tem uma definição

precisa: os sinônimos não são, como podem parecer à primeira vista, perfeitos.

Tanto o “crime” quanto a “contravenção” são delitos. O “delito”, assim, é um

hiperônimo (palavra de sentido mais abrangente); “crime” e “contravenção” são

hipônimos (palavras de sentido mais restrito). A distinção entre elas é feita pelo traço

de sentido da gravidade do ato: o “crime” é considerado mais grave do que a

“contravenção” (não à toa, esta também é chamada de “crime anão”). A propósito,

quando se fala em cumprimento da pena, deve-se distinguir entre “reclusão” e

“detenção”: esta é menos grave do que aquela, uma vez que a “detenção” tem início

em regime semi-aberto, e a “reclusão”, em regime fechado.

Quanto à “imprudência” e “imperícia”, esta diz respeito à falta de aptidão

técnica, teórica ou prática, ligada ao exercício de alguma profissão. Por exemplo, é o

caso de um médico que comete um erro grave em uma cirurgia em tese de sua

especialidade. A “imprudência” se refere a um ato positivo que implica risco, isto é, a

um fazer visto como um ato perigoso. Por exemplo, dirigir em alta velocidade.

No caso da distinção entre “injúria”, “difamação” e “calúnia”, esta significa

atribuir falsamente a alguém um fato definido como crime. Por exemplo, dizer que

alguém roubou. Se o fato atribuído falsamente a outrem não for considerado crime,

afetando apenas a reputação da vítima (o que a sociedade pensa sobre certos fatos e

valores), deve-se empregar o termo “difamação”. Por exemplo, divulgar que alguém

sai com todo mundo, namora muito (isso não é crime). A “injúria” ofende a dignidade,

a chamada “honra subjetiva” (o decoro, a imagem que alguém faz de si mesmo). Por

exemplo, afirmar que alguém é burro, incompetente.

Por fim, as palavras “domicílio” e “residência”. Em nosso livro Tópicos de

Gramática, registramos o seguinte quanto aos termos: “O Direito Civil estabelece uma

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distinção semântica entre as palavras domicílio e residência: esta significa o ‘lugar de

habitação da pessoa natural, ou aquele em que ela se fixa, ou permanece, embora em

caráter não definitivo’; aquela se refere ao local em que a pessoa estabelece sua

residência ‘com ânimo definitivo’, além de significar também a sede legal da pessoa

jurídica” (São Paulo, Editora CPC, 2005, p.171) .

Como pudemos perceber, tais palavras, também usadas fora do Direito,

adquirem nele sentidos particulares. Além desse fenômeno da especialização de

sentido, ocorrem também criações lexicais para atender a demandas específicas da

área, ou seja, para nomear situações exclusivas do universo jurídico. É o caso, por

exemplo, de palavras como “nu-proprietário”, “impronunciar” e “despronunciar”. Em

linhas bem gerais, a primeira se refere ao sujeito que não tem a propriedade plena de

algo; a segunda, ao ato de considerar inadequada uma denúncia; a terceira, ao ato de

alterar um julgamento anterior.

Esses exemplos de “juridiquês” ratificam a importância da terminologia, da

precisão vocabular, da exatidão dos termos técnicos na comunicação entre os

especialistas, nos gêneros que circulam na área (mandado de segurança, petição

inicial, contestação, etc).

O juridiquês, além da terminologia

O que os críticos do “juridiquês” condenam não é isso: entre outras questões,

repudiam o emprego de termos arcaicos ou em desuso, a ornamentação excessiva dos

enunciados, a linguagem rebuscada, pomposa. Em nosso entendimento, não há razão

para se chamar o “viúvo” de “cônjuge supérstite”, nem a “esposa” de “cônjuge virago”,

nem o tribunal superior (STF, STJ, TST) de “excelso pretório”... Só mesmo muita

afetação justificaria o uso de “cártula chéquica” em lugar de “folha de cheque”. Mesmo

com toda a pompa, uma cadeia não fica melhor se designada por “ergástulo público”.

Será que o juiz de primeira instância sabe que ele é um “alvazir”?

A propósito, como diz Drummond, sugestivamente no texto intitulado As

palavras que ninguém diz: “Conheci um nordestino que na mocidade exercera a

profissão de ultor, e que ignorava o que é ultor; como é que pode ser tão mau

profissional?”.

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Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela

USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo

Vestibulares, Professor de Cursos Preparatórios para Concursos , Professor do DIEX do

Curso Básico e do Curso Extensivo, co-autor do material de Língua Portuguesa do

Sistema Anglo de Ensino e autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de

Interpretação de Texto e Redação .