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  • OPUS 182

  • OPUS REVISTA DA ANPPOM ASSOCIAO NACIONAL DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM MSICA

    Conselho Editorial

    Editora

    Adriana Lopes da Cunha Moreira (Universidade de So Paulo, USP)

    Conselheiros

    Accio Tadeu Piedade (Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC) Bryan McCann (Georgetown University - Estados Unidos)

    Carlos Palombini (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) Carmen Helena Tllez (Latin American Music Center, Indiana University, IU - Estados Unidos)

    Carole Gubernikoff (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO) Claudia Bellochio (Universidade Federal de Santa Maria, UFSM)

    Cristina Capparelli Gerling (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS) Cristina Magaldi (Towson University - Estados Unidos)

    David Cranmer (Universidade Nova de Lisboa, UNL - Portugal) Diana Santiago (Universidade Federal da Bahia, UFBA)

    Edson Zampronha (Conservatorio Superior de Msica del Principado de Asturias, CONSMUPA - Espanha) Elizabeth Travassos (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO)

    Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta (Universidade de So Paulo, USP) Graa Boal Palheiros (Instituto Politcnico do Porto, IPP - Portugal)

    Irna Priore (University of North Carolina at Greensboro, UNCG - Estados Unidos) Joo Pedro Paiva de Oliveira (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG;

    Universidade de Aveiro - Portugal) John P. Murphy (University of North Texas, UNT - Estados Unidos)

    Jos Antnio Oliveira Martins (Eastman School of Music, ESM - Estados Unidos) Manuel Pedro Ferreira (Universidade Nova de Lisboa, UNL- Portugal)

    Norton Dudeque (Universidade Federal do Paran, UFPR) Pablo Fessel (Consejo Nacional de Investigaciones Cientficas y Tcnicas, CONICET;

    Universidad de Buenos Aires, UBA - Argentina) Paulo Castagna (Universidade Estadual Paulista, UNESP) Paulo Costa Lima (Universidade Federal da Bahia, UFBA)

    Silvio Ferraz Mello Filho (Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP)

    Editorao Adriana Lopes Moreira Reviso Geral Adriana Lopes Moreira, Roberto Rodrigues Tratamento das imagens e encarte Roberto Rodrigues

    Reviso de tradues Kathleen Martin / Projeto Grfico Rogrio Budasz

    Capa Ilustrao da nota explicativa na partitura de Terretektorh, de Iannis Xenakis, na Edio Salabert, de 1966. Intervenes de Gabriel Rimoldi, Stphan Schaub e Roberto Rodrigues.

    Opus: Revista da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica ANPPOM v. 18, n. 2 (dez. 2012) Porto Alegre (RS): ANPPOM, 2012. Semestral ISSN 0103-7412 1. Msica Peridicos. 2. Musicologia. 3. Composio (Msica). 4. Msica Instruo e Ensino. 5. Msica Interpretao. I. ANPPOM - Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica. II. Ttulo

  • OPUS

    REVISTA DA ANPPOM ASSOCIAO NACIONAL DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM MSICA

    VOLUME 18 NMERO 2 DEZEMBRO 2012

  • ASSOCIAO NACIONAL DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM MSICA

    Diretoria 2011-2013

    Presidente: Luciana Del Ben (UFRGS) Primeiro secretrio: Marcos Vincio Nogueira (UFRJ)

    Segundo secretrio: Eduardo Monteiro (USP) Tesoureiro: Sergio Figueiredo (UDESC)

    Conselho Fiscal

    Claudiney Carrasco (UNICAMP) Ana Cristina Tourinho (UFBA)

    Marcos Holler (UDESC) Antenor Ferreira Corra (UnB) Srgio Barrenechea (UNIRIO)

    Alexandre Zamith Almeida (UFU)

    Editora de publicaes da ANPPOM

    Adriana Lopes Moreira (USP)

  • sumrio volume 18 nmero 2 dezembro 2012

    Editorial 7

    Instrues para autores 8

    Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh 9 de Iannis Xenakis Gabriel Rimoldi, Stphan Schaub

    A ressonncia enquanto recurso polifnico: anlise de Erdenklavier, 33 de Luciano Berio Max Packer

    Coerncia sinttica na Quarta Sonatina para piano de Jos Siqueira 51 Aynara Silva, Liduino Pitombeira

    A viola e seus sons: explorao de aspectos expressivos no 89 Concerto para viola e orquestra, de Antnio Borges-Cunha Ricardo Lobo Kubala, Emerson Luiz de Biaggi

    Lagrime di San Pietro, de Orlando di Lasso, em nova edio crtica e revisada 111 Daniela Francine Lino, Carlos Fernando Fiorini

    A rabeca de Vilemo Trindade em Mario de Andrade 141 Jorge Linemburg, Luiz Henrique Fiaminghi

    Nordestinidade gonzagueana na msica de Sivuca 161 Eurides de Souza Santos

    Acoplamento interpretativo e sincronizao em duos de clarinetas 181 Mauricio Alves Loureiro, Davi Alves Mota, Thiago Campolina, Hani Camille Yehia, Rafael Laboissire

    Variaes tmbricas em Mditations sur les mystres de la Sainte Trinit, 207 de Olivier Messiaen Miriam Carpinetti

    A msica nas aberturas das telenovelas da Rede Globo de Televiso 237 no perodo de 1970 a 2012: funes e dramaturgia musical Andre Checchia Antonietti, Sandra Cristina Novais Ciocci Ferreira, Claudiney Rodrigues Carrasco

    Analogias entre textura musical e a montagem no cinema mudo: 257 sintagmas alternantes na obra En blanc et noir de Debussy Menan Medeiros Duwe, Guilherme Sauerbronn de Barros

  • editorial

    s trabalhos que compem os nmeros 18.1 e 18.2 da OPUS foram selecionados a partir dos artigos apresentados durante o XXII Congresso da ANPPOM.

    Os trs primeiros artigos referem-se a processos composicionais. Ao focar parmetros como som, tempo e espao em Terretektorh de Xenakis, Gabriel Rimoldi e Stphan Schaub voltam-se construo do discurso musical atravs da espacialidade. Max Packer apresenta questes voltadas a ressonncia e polifonia enquanto estratgias composicionais em obras de Berio. Aynara Silva e Liduino Pitombeira trazem aspectos de coerncia sinttica no Sistema Trimodal desenvolvido por Jos Siqueira e sua aplicao na Quarta Sonatina para piano. Os quatro artigos seguintes tratam de questes ligadas performance musical. Os violistas Ricardo Kubala e Emerson de Biaggi voltam-se explorao das possibilidades sonoras na escrita para a viola solista no Concerto para viola e orquestra de Antnio Borges-Cunha. Daniela Lino e Carlos Fiorini propem uma nova edio da obra Lagrime di San Pietro, de Orlando di Lasso, adequando a escrita original a uma escrita moderna. Jorge Linemburg e Luiz Henrique Fiaminghi nos trazem resultados de um minucioso trabalho junto aos acervos de pesquisa de Mrio de Andrade, detectando e especificando referncias a rabecas, tendo em vista tanto a performance como uma explorao do universo popular de tradio oral. Ao tratar de identidade musical e dialogismo, Eurides de Souza Santos discute as noes de nordestinidade e de internacionalidade na obra de Sivuca. No campo da mediao por ferramentas tecnolgicas, Mauricio Loureiro, Davi Alves Mota, Thiago Campolina, Hani Camille Yehia e Rafael Laboissire apresentam resultados de grande interesse para a compreenso da performance de cmara. Miriam Carpinetti traz uma contribuio do campo da sonologia ao da anlise musical ao comparar sonogramas de passagens da obra Mditations sur le mystre de la Sainte Trinit, de Messiaen, documentando elementos sonoros no explicitados pela notao. Referindo-se a outras mdias, Claudiney Carrasco, Andre Checchia e Sandra Ciocci Ferreira refletem a respeito da funo da msica nas vinhetas das telenovelas apresentadas ao longo dos ltimos 42 anos pela Rede Globo. Tendo como objeto de estudo a obra En blanc et noir de Debussy, Menan Duwe e Guilherme Sauerbronn de Barros voltam-se a analogias verificadas entre textura musical e recursos narrativos cinematogrficos.

    Agradeo aos coordenadores de subreas e aos avaliadores do XXII Congresso da ANPPOM, que de alguma maneira colaboraram para a seleo destes trabalhos.

    Agradeo especialmente a Mkhi Xenakis, por ter nos permitido compor a belssima capa com as imagens de seu pai, Iannis Xenakis.

    Adriana Lopes Moreira

    O

  • instrues para autores

    Criada em 1989, a Revista OPUS uma publicao seriada semestral, cujo objetivo divulgar a pluralidade do conhecimento em msica, considerados aspectos de cunho prtico, terico, histrico, poltico, cultural e/ou interdisciplinar - sempre encorajando o desenvolvimento de novas perspectivas metodolgicas. Por constituir o peridico cientfico da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica (ANPPOM), tem como foco principal compor um panorama dos resultados mais representativos da pesquisa em msica no Brasil.

    Indexada pelo Rpertoire International de Littrature Musicale (RILM) e classificada no estrato A2 do Qualis Peridicos, da CAPES (2012), a Revista OPUS est aberta a colaboraes do Brasil e do exterior. Atualmente, veiculada em verso online. Publica artigos, resenhas e entrevistas em portugus, espanhol e ingls, recebidos em fluxo contnuo.

    O endereo para envio [email protected].

    Para que possam ser publicados na Revista OPUS, os artigos, resenhas e entrevistas devem se adequar aos requisitos, normas tcnicas e cesso de direitos que constam no site www.anppom.com.br/opus/.

    Cada artigo, resenha ou entrevista avaliado por pareceristas ad hoc, atravs do processo de avaliao cega por pares (double blind review).

    Os textos submetidos precisam necessariamente ser originais. O contedo de cada artigo, resenha ou entrevista de inteira responsabilidade de seu autor.

    ISSN 0103-7412 (verso impressa) ISSN 1517-7017 (verso online)

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    RIMOLDI, Gabriel; SCHAUB, Stphan. Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. Opus, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 9-32, dez. 2012. O presente artigo desenvolve o trabalho apresentado no XXII Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica, ANPPOM, sob o ttulo Variaes sobre o espao em Terretektorh, de I. Xenakis (RIMOLDI; SCHAUB, 2012: 2275-2282), apresentando em maior detalhe aspectos da anlise realizada, sobretudo quanto organizao dos materiais sonoros e sua relao com as tipologias espaciais apresentadas na obra.

    Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis

    Gabriel Rimoldi (UNICAMP) Stphan Schaub (UNICAMP)

    Resumo: Neste artigo apresentamos uma anlise da obra Terretektorh (1965-1966), do compositor Iannis Xenakis, considerando a forma como o espao empregado na construo do discurso musical da obra. Primeiramente, discutimos como a orquestra, com seus 88 msicos dispersos entre a audincia, transforma-se numa espcie de meta-instrumento, pelo qual so exploradas distintas topologias e trajetrias no espao. Em seguida, relatamos alguns aspectos fora do tempo na composio e apresentamos uma categorizao dos elementos sonoros e espaciais presentes na obra. Ao final, discutimos como tais elementos so organizados ao longo da obra e evidenciamos as estratgias composicionais que salientam a explorao do espao, tais como a manipulao bastante econmica dos parmetros sonoros (registro, envelope dinmico e timbre) e a exaustiva exposio das trajetrias sonoras no incio da pea. Argumenta-se que tais estratgias, mais que uma superimposio da dimenso espacial em relao s dimenses sonoras, so capazes de criar uma fuso que contribui de maneira decisiva na estruturao do desdobramento da composio.

    Palavras-chave: Iannis Xenakis. Anlise musical. Espacializao sonora. Terretektorh.

    Title: Converging Spaces: Sound and Spatialization in Iannis Xenakiss Terretektorh

    Abstract: In this paper we present an analysis of Iannis Xenakiss Terretektorh (1965-66) considering the manner in which space has been exploited in the construction of the works musical discourse. We first discuss how the orchestra, with its 88 musicians dispersed amongst the audience, is transformed into a sort of meta-instrument optimized for the projection of sound trajectories and topologies. Next, we describe aspects of outside time found in the piece and propose a method of categorizing elements of space and sound. Finally, we discuss how these elements are organized throughout the piece and demonstrate the compositional strategies that explore the use of space, such as the efficient handling of sound parameters (register, dynamic envelope and timbre) and the exhaustive exposition of sonic trajectories at the beginning of the piece. It is argued that these strategies, more than a superimposition of the spatial dimension in relation to the dimensions of sound, are capable of creating a fusion that decisively contributes to the organization of the compositions development.

    Keywords: Iannis Xenakis. Musical Analysis. Sound Spatialization. Terretektorh.

  • Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. . . . . . . . . .

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    ideia de espao desdobra-se em mltiplas facetas ao longo da carreira do compositor Iannis Xenakis (1921/22-2001), que vo desde aplicaes composicionais de propriedades matemticas do espao at a explorao da

    espacialidade fsica do som. Sua experincia como engenheiro e arquiteto junto a Le Corbusier por mais de uma dcada (1947-1959) lhe proporcionou uma noo de espao que se traduz de maneira bastante peculiar sua msica. Em consonncia ao moderno pensamento arquitetnico de sua poca, Xenakis demonstrava a preocupao de que as qualidades fsicas e estruturais se desdobrassem atravs das qualidades sensoriais do espao (STERKEN, 2007).

    No convento de Saint-Marie de la Tourette (1953-60), por exemplo, os painis de vidro ondulado (pans de verre ondulatoires), construdos em tamanhos e propores determinadas pelo Modulor1, criam a percepo de mudana do espao fsico interior medida em que a luz solar irradia sobre os mesmos ao longo do dia.

    Com o Pavilho Philips, obra comissionada a Le Corbusier para a Feira Mundial de Bruxelas de 1958, Xenakis inovou pela concepo arquitetnica surpreendentemente original, que combina concreto armado e formas paraboloides hiperblicas. A construo do Pavilho mantm um dilogo ativo com a projeo de imagens selecionadas por Le Corbusier e a msica encomendada a Edgard Varse e Iannis Xenakis2. O espao arquitetnico torna-se, assim, modulatrio, como pontua Oswalt (1991):

    [...] em contraste com as superfcies planas, superfcies dobradas ou curvadas refletem a luz com intensidade mutvel e modulam o espao. O espao torna-se dinmico, de intensidade mutvel, concentrado e expandido. Ao mesmo tempo, seus limites so removidos. Paredes e teto fluem um no outro. [...] As fronteiras espaciais no podem mais ser percebidas pelos olhos de modo no ambguo; elas desaparecem [...] parecem tornar-se infinitas (OSWALT, 1991: p. 40, traduo nossa)3.

    1 Trata-se de um sistema antropomtrico concebido por Le Corbusier, que tem por referncia dois conjuntos de medidas modulares (azul e vermelha), sendo estas ltimas, por sua vez, baseadas nas medidas de um indivduo imaginrio. As propores das medidas so determinadas pela razo urea. Este sistema foi amplamente utilizado na construo civil na Europa ps-guerra e repercutiu tambm na composio musical de Xenakis. Sobre o assunto, consultar o texto de Xenakis, Der Modulor, publicado em 1957 e reeditado (em XENAKIS, 2006: 37-40). 2 Sobre Concret PH e o Pavilho Philips, consultar tambm Meric (2005). 3 [] in contrast to flat surfaces, curved or folded surfaces reflect the light with changing intensity and modulate the space. The space becomes dynamic, of changing intensity, concentrated and expanded. At the same time, its boundaries are removed. Walls and ceiling flow into one another. [] The spatial

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    Comissionada como uma espcie de interldio a ser apresentado entre visitaes do Pavilho, a obra Concret P.H. (1958), para tape, foi projetada sob mais de 300 alto-falantes espalhados atravs da construo (MERIC, 2005: 147). Aps a experincia com o Pavilho Philips, entre 1967 e 1978, Xenakis dedicou-se criao de uma srie de obras multimdia que exploram sons e cores em movimento pelo espao arquitetnico, os Polytopes (do grego poly muitos e topos lugar, espao, territrio. Cf. HARLEY, 1998).

    Como membro desde em 1954 do ento Groupe de recherches de musique concrete (posteriormente, em 1958, renomeado para Groupe de recherches musicales - GRM) at meados da dcada de 60, Xenakis teve acesso a ferramentas que possibilitaram a criao de importantes obras para suporte eletrnico, tais como Diamorphoses (1957) e Bohor (1962), sendo esta a primeira obra para oito canais realizada pelo compositor. As tcnicas de controle da espacializao em suporte eletrnico refletiram na escritura instrumental de obras que exploram a modelagem do som atravs do espao fsico, mediante o controle de envelopes dinmicos ou curtos ataques rtmicos em decalagem temporal.

    As primeiras referncias claras acerca da espacializao no mbito da msica instrumental encontram-se em Eonta (1963/64), para quinteto de metais e piano, e Orestea (1966), para coro e grupo instrumental de cmara, sendo explorada em ambas a mobilidade dos instrumentistas sobre o espao de performance. No entanto, a partir de Terretektorh (1965/66) que Xenakis demonstra a plena utilizao do espao como um elemento composicional. O tratamento dado ao espao nesta obra torna-se um importante laboratrio para a construo do discurso espacial de importantes obras posteriores, tais como Nomos Gama (1967/68) e Persephasa (1969).

    Terretektorh uma obra orquestral composta entre 1965-66, comissionada para um novo festival de msica contempornea em Royan, na Frana, onde foi executada, em abril de 1966, pela Orquestra Filarmnica da ORTF, sob a regncia do maestro Hermann Scherchen. O ttulo deriva das palavras tekt (construtor), orh (ao de) e terre (prefixo aumentativo).

    A distribuio dos msicos , em si, um aspecto de interesse na obra. O espalhamento dos msicos atravs do espao da performance, prtica j utilizada por outros compositores, tais como K. Stockhausen, H. Brant e pelo prprio Iannis Xenakis, expande-se pela total inexistncia de separao entre o espao destinado ao pblico e o proposto

    borders can no longer be perceived by the eye in an unambiguous way; they disappear [] They appear to become infinite (OSWALT, 1991: p. 40).

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    aos msicos, desconstruindo, de acordo com o prprio compositor, a cortina psicolgica e auditiva que separa ambos. Xenakis comenta:

    A orquestra est na audincia e a audincia est na orquestra [...]. O espalhamento dos msicos traz uma concepo cintica radicalmente nova da msica [...]. A composio musical ser, deste modo, enriquecida por toda a ambincia, tanto em dimenso quanto em movimento. Velocidades e aceleraes do movimento dos sons sero exploradas, e novas e poderosas funes sero capazes de fazer uso disto, tais como espirais logartmicas ou arquimediana, no tempo e geometricamente. Massas sonoras ordenadas e desordenadas, rolando uma contra a outra como ondas... etc., sero possveis (XENAKIS, 1992: 236, traduo nossa).4

    Com esta anlise, pretendemos discutir a figurao do espao como elemento central no discurso sonoro de Terretektorh, apontando a organizao das diferentes topologias e trajetrias espaciais como uma dimenso integrada e de equiparada importncia em relao s outras dimenses sonoras. Inicialmente, relataremos a distribuio espacial dos instrumentistas e a maneira segundo a qual isto repercute na escolha dos materiais da obra. Em seguida, abordaremos os aspectos fora do tempo da composio, atravs da categorizao dos elementos espaciais e sonoros encontrados na pea. Por fim, discutiremos como estes elementos se articulam no tempo e no espao, evidenciando as estratgias composicionais que reforam a proposta da espacializao como um aspecto estruturante da obra.

    Sonotron: o espao como meta-instrumento

    Da mesma maneira que a escolha da instrumentao de uma obra pode predizer, em certa medida, alguns aspectos composicionais, sobretudo referentes s limitaes fsicas de cada um dos instrumentos, a determinao de disposio dos instrumentistas em Terretektorh tem relao recproca e direta sobre a maneira na qual o compositor aborda o

    4 The orchestra is in the audience and the audience is in the orchestra [...] The scattering of musicians brings in a radically new kinetic conception of music [...] The musical composition will thereby be entirely enriched throughout the hall both in spatial dimension and in movement. The speeds and accelerations of the movements of the sounds will be realized, and new and powerful functions will be able to be made use of, such as logarithmic or Archimedean spirals, in-time and geometrically. Ordered and disordered sonorous masses, rolling against each other like wavesetc., will be possible (XENAKIS, 1992: 236).

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    elemento espacial no decorrer da obra. Na descrio metafrica do prprio Xenakis, a obra configura uma espcie de sonotron, um acelerador de partculas sonoras, um desintegrador de massas sonoras, um sintetizador (BOIS, 1967: 35, traduo nossa)5. Podemos, deste modo, compreender o espao de performance da obra, construdo e no neutro, a partir da ideia de dispositivo ou meta-instrumento, por meio do qual o compositor pode articular topologias e trajetrias.

    Fig. 1: Disposio espacial dos instrumentistas conforme a partitura (a partir da ilustrao original de

    XENAKIS, 1966: 2).

    5 Sonotron: an accelerator of sonorous particles, a disintegrator of sonorous masses, a synthesizer (BOIS, 1967: 35).

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    A formao instrumental compreende 88 msicos espalhados entre o pblico, distribudos de maneira quase homognea. O espao de performance formado por um crculo dividido em oito partes iguais, que denominaremos setores (de A a H), e seis regies concntricas, a que chamaremos regies (de 1 a 6, iniciando-se pela regio mais prxima ao centro). Alm disso, trs percussionistas so dispostos nos limites dos setores A, D e G (Fig. 1).

    O grfico 1a demonstra a distribuio dos naipes de instrumentos sobre os oito setores e o grfico 1b apresenta a distribuio dos instrumentos por registro (grave/agudo)6 em cada regio do espao de performance. Podemos notar certa homogeneidade7, tanto quantitativa (nmero de instrumentos) quanto qualitativa (timbre e registro) da distribuio orquestral, que possibilita ao compositor uma ampla paleta de trajetrias do som atravs do espao.

    A distribuio dos instrumentistas agrupados por naipes e registros tambm um importante aspecto na construo do discurso sonoro espacial. Podemos notar uma clara simetria na disposio espacial dos trompetes, trombones, madeiras graves (clarinete baixo, fagotes e contrafagote), trompas e madeiras agudas (flautim, flautas, obos, clarinetes), conforme demonstrado na Fig. 2. Posteriormente, observaremos como o compositor explora cada uma dessas topologias no decorrer da obra.

    Grfico 1: Distribuio de naipes em cada setor e Registros em cada regio.

    6 Os instrumentos classificados como agudos foram: violinos, violas, flautim, flautas, obos, clarinetes e trompetes. Os instrumentos graves foram: violoncelos, contrabaixos, clarinete baixo, fagotes, contrafagotes, trompas, trombones e tuba. 7 Mesmo que Xenakis tenha afirmado ser a distribuio dos msicos um processo quase estocstico (Cf. XENAKIS, 1992: 236), podemos observar tendncias que predizem em certa medida as morfologias espaciais previstas pelo compositor.

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    A distribuio dos instrumentistas, agrupados por naipes e registros, tambm um importante aspecto na construo do discurso sonoro espacial. Podemos notar uma clara simetria na disposio espacial dos trompetes, trombones, madeiras graves (clarinete baixo, fagotes e contrafagote), trompas e madeiras agudas (flautim, flautas, obos, clarinetes), conforme demonstrado na Fig. 2. Posteriormente, observaremos como o compositor explora cada uma dessas topologias no decorrer da obra.

    Fig. 2: Disposio espacial dos instrumentos de metais (a) e madeiras (b) em Terretektorh, de Xenakis

    (a partir da ilustrao original de XENAKIS, 1966: 2).

    Alm de seus instrumentos especficos, cada um dos instrumentistas executa ainda quatro outros instrumentos de percusso, sendo eles: bloco de madeira, maracas, chicotes e pequenas sirenes de apito. Com isto, a distribuio de timbres torna-se de fato homognea, sendo possvel a explorao de uma nica sonoridade por toda a orquestra, ressaltando, assim, a localizao desta entre o pblico como primeiro plano do discurso musical.

    Por fim, a proposta de tratamento do espao como um elemento central da obra traduz tambm no modo de organizao da partitura. Diferentemente da organizao tradicional de uma partitura orquestral, ordenada e seccionada por naipes e registros, Xenakis dispe os instrumentos na grade orquestral conforme a sua posio no espao de performance. Como exemplo, podemos observar a disposio dos instrumentos elencados

  • Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. . . . . . . . . .

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    na Fig. 3, ordenados entre regies mais prxima e menos prxima em relao ao centro do espao de performance.

    Fig. 3: Perfis de alturas presentes em Terretektorh, de Xenakis (comp. 216-225).

    Aspectos fora do tempo

    Materiais sonoros. Em uma primeira anlise da partitura, possvel observarmos e classificarmos os materiais sonoros que se desdobram ao longo da obra em num nmero bastante restrito de tipologias8. Isso particularmente saliente na dimenso das alturas, em que apenas trs perfis diferentes podem ser encontrados: (1) sons estticos constantes, (2) variao contnua entre distncias intervalares maiores (glissandi) e (3) pequenas flutuaes contnuas entre cromatismos.

    Sobre este terceiro perfil, o menos idiomtico dos materiais da obra, o compositor registra junto partitura a orientao de que os graus dos movimentos

    8 Hoffmann (2006) apresenta uma classificao dos materiais da obra, dividida em cinco grupos, a saber: pontos distribudos quase estocasticamente, planos sonoros com movimentao interna, sons (ou acordes) estticos, densas linhas em cromatismo no registro grave e alturas subindo e descendo constantemente. Em nossa anlise, no entanto, acreditamos que tal classificao no to precisa ou expressiva, sobretudo quanto s transformaes dos materiais ao longo da obra.

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    cromticos devero desaparecer pela interpolao de pequenos glissandi entre as notas cromticas. Podemos, desta maneira, consider-lo como um intermdio entre os extremos presentes nos outros dois perfis9. A Fig. 3 traz um pequeno trecho que contm os trs tipos de perfis de alturas citados acima.

    Da sobreposio destes perfis, temos a formao de trs categorias de texturas: clusters sustentados (perfil 1), massas sonoras de glissando (perfil 2) e planos sonoros com movimentao interna (perfil 3). Estas texturas se modulam ao longo da obra em diversos nveis de intensidade, durao, densidade e distintos graus de ordem ou desordem. Vale, ainda, ressaltarmos o constante trnsito entre estes materiais no decorrer da pea, que ora se alternam de maneira claramente articulada, ora sofrem graduais transformaes que modulam a textura de um perfil at outro.

    Outro importante aspecto na categorizao dos materiais da obra a maneira como se articulam no tempo. Podemos encontrar ao longo da obra uma constante dialtica entre elementos contnuos e descontnuos, que em maior escala temporal repercute na diferenciao entre ataques pulsados (ou regulares) ou no pulsados (ou irregulares) e em menor escala pelo contraste entre sons lisos (ordinrios) e estriados (frullati, tremoli e rulli).

    Movimentos espaciais. Em consonncia aos materiais sonoros, a categorizao elementar dos movimentos espaciais refere-se ao constraste entre ordenados e no ordenados. No desenvolvimento da obra podemos identificar constantes trnsitos entre estas duas categorias, ora pela saturao de simples elementos espaciais que gradualmente se complexificam, ora pela convergncia de mltiplas camadas numa mesma direo e localidade.

    Da categoria de movimentos ordenados originam-se duas subcategorias principais, a dizer, o movimento entre setores (circular) e o movimento entre regies (concntrico e excntrico). Para cada trajetria so definidos trs parmetros: direo, velocidade e acelerao. Xenakis utiliza operaes abstratas, mediante funes de espirais, para determinar padres de acelerao e desacelerao dos movimentos no decorrer da obra. Essas categorias de movimento apresentados esto resumidas na Figura 4.

    9 Vale notar a similaridade deste perfil em relao s arborescncias, que Xenakis utilizou recorrentemente a partir da dcada de 1970 (Cf. VARGA, 1996: 87-91).

  • Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. . . . . . . . . .

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    Fig. 4: Categorias de movimentos espaciais explorados em Terretektorh, de Xenakis.

    Nos rascunhos do compositor10, so notados trs tipos diferentes de espirais: arquimediana, hiperblica e logartmica. Matematicamente, espirais so curvas planas que giram infinitamente em torno de um determinado ponto (polo), ordenadas por uma funo especfica. A primeira espiral apresentada, arquimediana ou aritmtica, apresenta velocidade constante e mantm a mesma distncia de separao entre voltas sucessivas, enquanto que a espiral hiperblica, gira cada vez mais rapidamente medida que se aproxima do centro, sendo a funo inversa da espiral arquimediana. Na terceira espiral, a distncia do polo a cada volta definida por uma progresso geomtrica, sendo tangenciada por todas as retas situadas em seu plano. Essa espiral tambm conhecida como spira mirabilis, de forma que a razo entre as distncias de voltas sucessivas aproxima-se da proporo urea.

    Fig. 5: Tipos de espirais utilizadas por Xenakis (arquimediana, hiperblica e logartmica) e suas

    respectivas funes em coordenadas polares.

    10 Os rascunhos foram disponibilizados pelo compositor musicloga Maria Anna Harley, que apresenta e discute os mesmos em sua tese (HARLEY, 1994).

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    A acuidade da localizao espacial11 para cada conjunto de timbres notadamente um aspecto relevante na obra. Podemos observar uma clara distino, por exemplo, no tratamento espacial dado a materiais sonoros em registro agudo e grave ou mesmo em diferentes espacializaes aplicadas aos instrumentos de cordas, sopros e percusso. No cabendo especular sobre o conhecimento de Xenakis acerca de tais propriedades psicoacsticas, podemos, no entanto, tentar compreender como a utilizao de determinados materiais claramente enfatiza a percepo de trajetrias enquanto a de outros tende a uma percepo mais difusa do espao sonoro, direcionando a escuta no para as trajetrias, mas para o deslocamento e gravitao espacial resultante das mesmas.

    Organizao temporal

    De uma maneira geral, Xenakis apresenta cada um dos perfis sonoros na partitura atravs de longas duraes (sobretudo o terceiro perfil), o que d obra um carter bastante contnuo. A preponderncia de perfis dinmicos em crescendo e decrescendo, bem como a insero gradual de novos elementos ao longo da obra, refora a continuidade do discurso sonoro.

    Pela sonoridade peculiar de cada um dos instrumentos de percusso executados por toda a orquestra, podemos estabelecer marcos estruturais que subdividem a pea em cinco grandes sees. A durao dos perfis tambm fator de diferenciao entre sees12. De maneira geral, observamos um gradual movimento de contrao-distenso temporal dos perfis ao longo das sees. Na Fig. 6, apresentamos os tipos de materiais sonoros executados por cada conjunto de instrumentos em cada uma das sees estabelecidas. Para cada tipo de material, convencionou-se uma notao diferente, conforme legenda.

    11 Sobre as relaes entre as qualidades sonoras e acuidade de localizao espacial do som, ver Blauert (1997). 12 Em Akrata (1964/65), obra para 16 instrumentos de sopro escrita pouco antes que Terretektorh, o compositor tambm utiliza diferentes duraes para as notas sustentadas em cada uma das quatro sees da obra (SCHAUB, 2006).

  • Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. . . . . . . . . .

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    Fig. 6: Estrutura geral de organizao dos materiais em Terretektorh, de Xenakis.

    Nas duas primeiras sees, os instrumentos de percusso desenvolvem um discurso sonoro quase independente. Partindo da sonoridade lisa dos ataques das maracas (Fig. 6, comp. 10-23 e 55-74), a percusso culmina em uma enrgica massa de ataques

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    irregulares dos chicotes e, gradualmente, dos blocos de madeira e maracas (Cf. Grfico 2), desfazendo-se at a nova entrada da sonoridade inicial das maracas (Fig. 6, comp. 176). Criando uma espcie de arco, a nova sonoridade de maracas acrescida de perfis dinmicos em decalagem, que criam uma movimentao interna ao plano sonoro esttico anterior. As sees III e IV so marcadas pela presena marcante das sirenes de apito, que produzem na pea uma sonoridade bastante similar aos glissandi dos instrumentos de cordas.

    Grfico 2: Densidade de ataques de instrumentos de percusso. Xenakis, Terretektorh (comp. 117-

    175).

    As entradas dos percussionistas localizados nos setores A, D e G tambm constituem um importante marco nas sees II, III e V. Em contraste com a massa rtmica catica dos instrumentos percussivos executados por toda a orquestra (Grfico 2, comp. 117-175), h a entrada dos instrumentistas de percusso em ataques pulsados regulares (comp. 119), que conduzem uma gradual rarefao da massa rtmica percussiva e marcam tambm a primeira apario do perfil 3 no clarinete baixo e no contrafagote (comp. 146).

    Outro importante aspecto no desenvolvimento temporal dos materiais na obra refere-se modulao de registros e timbres nos instrumentos de orquestra. Podemos encontrar diversos exemplos ao longo da pea que reforam a segmentao que propomos na observncia dos instrumentos percussivos.

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    Na seo I (Cf. Fig. 6, comp. 1-97), o extenso unssono dos instrumentos de cordas se irrompe num grande glissando, que expande o registro orquestral aos seus extremos. Os extremos grave e agudo, estabelecidos no incio da seo II so, ento, retomados pelas madeiras agudas e instrumentos de sopro graves, respectivamente. A partir do comp. 119, as madeiras agudas (flautim, flautas, obos e clarinetes) executam um cluster de notas sustentadas no mbito de registro de R#6-Sib7 (perfil 1), enquanto que a partir do comp. 146 os instrumentos graves entram em linhas cromticas (perfil 3), no registro de Sib1-Mi4.

    Uma crescente expanso do registro nos instrumentos graves em direo ao registro mdio-agudo, ao longo das sees II e III, responsvel por uma nova convergncia de registros. No comp. 240 (Cf. Fig. 6), o pico de altura alcanado pelos instrumentos graves at ento marca uma nova entrada das madeiras e trompetes em frullati, sonoridade que ser reiterada por toda a orquestra sete compassos depois com as marcaes de tremoli com ponticello nas cordas e frullati nos instrumentos de sopro graves.

    Podemos observar ainda, no incio da seo III, dois aspectos que marcam a modulao de timbres dos materiais apresentados pelos instrumentos de sopro na seo anterior. O primeiro deles refere-se entrada dos trompetes em notas sustentadas (Fig. 6, comp. 195)13, sonoridade esta apresentada anteriormente pelas madeiras agudas. O segundo refere-se entrada dos contrabaixos que se agregam textura de linhas cromticas dos instrumentos de sopro graves. Concomitantemente entrada dos contrabaixos em movimentos cromticos, uma gradual insero de notas sustentadas (perfil 1) aos cromatismos dos instrumentos de sopro (perfil 3) cria nesta seo uma gradual convergncia das sonoridades apresentadas anteriormente de maneira contrastante.

    A modulao de registros como estratgia de desenvolvimento traduz-se, ainda, na presena dos glissandi no decorrer da obra. Em diversos momentos, os glissandi, sobretudo nos instrumentos de corda, aparecem na articulao de mudanas ao longo da pea. Na Tab. 1, apresentamos alguns glissandi e que tipo de transio marcada por eles.

    13 Mesmo situando-se na seo II, a entrada dos trompetes no comp. 195 condizente aos materiais explorados na seo III, fato este que refora a proposta de continuidade e de sobreposio gradual de elementos como estratgia de transio.

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    Comp. Setor Material/ Funo

    93-96 Todos Abertura do registro harmnico e incio dos ataques de chicote.

    111-114 Todos Precedente seo de ataques com ritmos irregulares.

    118-119 G Precedente entrada das madeiras em registro agudo.

    129-134 A Transio timbrstica entre ataques dos blocos de madeira e das maracas.

    145-146 B-D Precedente entrada dos instrumentos graves.

    155-159 Todos Rarefao da atividade rtmica, nova entrada dos instrumentos graves e retorno dos ataques dos blocos de madeira.

    192-197 Todos Fim dos sons estticos nas madeiras em registro agudo.

    206-215 Todos Modulao timbrstica das madeiras agudas para os trompetes.

    Tab. 1: Presena dos glissandi e respectivas funes em Terretektorh, de Xenakis.

    Uma grande similaridade entre as sees II e IV marcada, sobretudo, pelo retorno dos registros extremo grave e agudo nos instrumentos de sopro e pela presena dos instrumentos de percusso. Diferentemente do tratamento rtmico totalmente desordenado da seo II, Xenakis cria nesta seo a desordem por meio da sobreposio de diferentes padres regulares de pulsos que, como veremos na seo posterior, reitera o espao como elemento articulador do discurso. Da mesma maneira que na seo II, a sonoridade lisa das Maracas marca tambm o final da seo IV, porm em durao compacta.

    A seo V constitui-se preponderantemente de sonoridades contnuas, em que praticamente no se ouve mais os instrumentos de percusso executados por toda a orquestra. Em sua forma geral, esta seo sugere uma espcie de retorno estrutura lisa da primeira seo. Os perfis 1 e 3 que, nos instrumentos de sopro das sees anteriores, gradualmente se modulavam para o perfil 2, tomam por definitivo o carter de glissandi, que apresentado primeiramente nas madeiras e reiterado em seguida pelos metais. A mesma proposta de padres regulares sobrepostos retomada na seo V pelas madeiras agudas, que os fazem em duraes mais prolongadas.

    Organizao do espao

    A maneira com que os materiais sonoros se organizam no espao consonante proposta de desdobramento temporal na obra. De uma maneira geral, possvel

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    observarmos uma gradual mudana de perspectiva no que tange percepo do espao sonoro da obra. Como ponto de partida, o compositor apresenta de maneira bastante clara cada um dos tipos de trajetrias desenvolvidas e, em seguida, cria superposies e modulaes das mesmas, que resultam num deslocamento perceptual da localidade e direcionalidade espacial de cada extrato sonoro para a sensao de envolvimento e imerso espacial gerada por uma complexa massa sonora.

    Nos primeiros 74 compassos, podemos encontrar doze movimentos espaciais circulares, sendo um em velocidade constante, um em desacelerao e dez em acelerao, determinados pelos trs tipos de espirais citadas anteriormente (Cf. Tab. 2). Executados pelos instrumentos de cordas das regies 5 e 6, os movimentos circulares so acompanhados de duas entradas das maracas, executadas por todos os outros instrumentistas. A sonoridade ruidosa das maracas, alm de ampliar o registro do espectro sonoro, expande o espao fsico da obra em sua totalidade, criando uma nova atmosfera sonora que modifica as velocidades e o sentido dos movimentos circulares.

    A maneira gradual com que cada movimento apresentado nesta primeira parte sugere uma espcie de exposio, na qual o espao o elemento central do discurso sonoro. Conforme demonstrado na Tabela 2, esta seo inicial apresenta os principais elementos espaciais utilizados na obra: os movimentos ordenados das Cordas em trajetrias circulares e espirais, dos blocos de madeira em movimentos concntricos e excntricos alm dos movimentos no ordenados criados pela sonoridade das maracas.

    A partir do comp. 75, a entrada dos instrumentos de sopro e dos instrumentos de cordas restantes perfaz um movimento espiral no espao, iniciando a trajetria na regio 6 do setor A e concluindo na regio 1 deste mesmo setor, no comp. 81.

    Entre os compassos 84 a 116, Xenakis explora pela primeira vez o deslocamento espacial de sonoridades dinmicas, isto , que se modificam no decorrer do tempo. A manipulao bastante econmica dos parmetros sonoros (altura, envelope dinmico e timbre) explorados na obra at o momento, estratgia responsvel pelo destaque dado espacialidade como primeiro plano da escuta, acrescida de uma ampla abertura do registro de alturas. Como mostrado na Fig. 7, o compositor agrega a rotao circular das entradas dos instrumentos de cordas a uma progressiva abertura do registro que culmina em um grande cluster sustentado.

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    Comp. Tipo de movimento Sentido

    1-9 Circular constante Horrio

    8-24 Espiral arquimediana (acelerao) Horrio

    23-24 Espiral arquimediana (desacelerao) Horrio

    32-45 Espiral hiperblica Horrio

    10-23 Movimento no ordenado (maracas) Desordenado

    45-47 Movimento concntrico (H) e excntrico (G) Concntrico/ excntrico

    49-50 Movimentos locais (tutti polirrtmico) -

    55-74 Movimento no ordenado (maracas) Desordenado

    51-60 60-66 65-69 69-71 71-73 73-74

    Espirais logartmicos (progressiva acelerao) Espirais logartmicos (progressiva acelerao) Espirais logartmicos (progressiva acelerao) Espirais logartmicos (progressiva acelerao) Espirais logartmicos (progressiva acelerao) Espirais logartmicos (progressiva acelerao)

    Anti-horrio Anti-horrio Anti-horrio Anti-horrio Anti-horrio Anti-horrio Anti-horrio

    Tab. 2: Movimentos espaciais. Xenakis, Terretektorh (comp. 1-74).

    Fig. 7: Glissandi nos instrumentos de cordas. Xenakis, Terretektorh (comp. 90-97).

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    O tratamento dado s alturas configura um importante aspecto da espacialidade na obra. De acordo com Hoffman (2006), a relevncia das alturas no desenvolvimento da pea faz destas uma terceira e vertical dimenso da espacializao na obra. Neste sentido, a interao entre movimentos circulares, criado pela decalagem de entrada entre setores, e o deslocamento das alturas, que se comporta de maneira bastante uniforme e gradual por toda a orquestra, cria mltiplas espirais que se movem em ambas as direes verticais.

    Nos comp. 97-116, os ataques pulsados dos chicotes criam uma srie de movimentos circulares. A sequncia de movimentos realizados (Fig. 8) indica um possvel desenvolvimento da trajetria inicial, que desmembrada em trajetos semicirculares, iniciando-se sempre em sees diametralmente opostas, at que, por fim, retorne ao movimento inicial, reexposto em ambas as direes simultaneamente.

    Fig. 8: Trajetrias espaciais dos sons de chicote. Xenakis, Terretektorh (comp. 97-116).

    Aps a dupla trajetria dos chicotes, a pea , ento, saturada por uma massa de ataques no pulsados, variando gradualmente entre os timbres de chicotes, blocos de madeira e maracas do comp. 117 ao comp. 175. A espacializao no , nesta passagem, determinada por meio de trajetrias definidas, mas pela gravitao de planos sonoros que se modificam pela quantidade e localizao de eventos em cada setor e regio orquestral. Pela densidade de eventos rtmicos em cada um dos setores (A-H) e regies (1-6), podemos determinar o ponto espacial de concentrao da massa sonora. Os quatro grficos apresentados na Fig. 9 demonstram o deslocamento do centro da massa a cada compasso desta seo.

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    Fig. 9: Concentrao espacial da massa sonora rtmica. Xenakis, Terretektorh (comp. 117-175).

    A saturao dos movimentos ordenados em planos espaciais no ordenados pode tambm ser observada no tratamento do terceiro perfil de alturas. Como demonstrado pelas linhas contnuas na Fig. 10a, as linhas cromticas no registro grave surgem, inicialmente (comp. 158-175), em setores simetricamente opostos14, concentrando-se entre os setores C e G do crculo orquestral. Em seguida, o nmero de linhas meldicas desta categoria aumenta de maneira considervel, saturando, assim, a capacidade humana de localizao espacial de trajetrias do som e construindo, dessa forma, uma massa sonora que gravita sobre o espao da audincia (Fig. 10b).

    Fig. 10: Espao timbrstico formado pelas linhas cromticas em registro grave. Xenakis, Terretektorh

    (comp. 158-173 na imagem a; comp 176-257 na imagem b).

    14 Tal aspecto pode tambm ser observado na obra eletroacstica Bohor (1962), para 8 canais, formado por quatro pares de pistas em estreo distribudas em canais simetricamente opostos na difuso sonora (COUPRIE, 2006).

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    A ideia de desenvolvimento de um discurso espacial da obra torna-se mais evidente pela presena de reiteraes e transformaes dos movimentos espaciais apresentados. A decalagem de perfis dinmicos e acentos no cluster executado pelos instrumentos de madeira em registro agudo (comp. 119-194) simulam trajetrias circulares em espirais de acelerao e desacelerao, assemelhando-se quelas anteriormente apresentadas pelos instrumentos de cordas, nos primeiros 74 compassos da obra.

    Outra importante abordagem de tratamento espacial na obra refere-se distribuio de padres em diferentes localidades do espao de performance. O primeiro exemplo deste procedimento encontra-se nos comp. 49 e 50, em que o compositor aplica diferentes padres de ritmos pulsados e perfis dinmicos para cada um dos setores (exceto setor G). O mesmo procedimento encontrado nos comp. 310 a 330, na sobreposio de padres entre regies nos ataques rtmicos dos blocos de madeira e sirenes de apito (Fig. 12).

    Entre os comp. 206 e 215, Xenakis utiliza oito padres de glissandi nos violinos. Cada um destes oito padres distribudo em subgrupos de diferentes disposies espaciais, conforme mostrado na Fig. 11.

    Fig. 11: Distribuio de padres de glissandi aos violinos. Xenakis, Terretektorh (comp. 206-215).

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    Fig. 12: Distribuio de padres rtmicos nos instrumentos de percusso.

    Xenakis, Terretektorh (comp. 314-326).

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    Consideraes Finais

    Pretendemos demonstrar, neste artigo, alguns aspectos de tratamento do espao como aspecto estrutural do discurso sonoro em Terretektorh. Em nossa anlise, indicamos a organizao dos materiais na pea atravs de distintas morfologias espaciais abordadas pelo compositor. A ideia de espao como elemento composicional faz-se presente desde o incio da obra, onde os principais tipos de movimento explorados sero apresentados de maneira gradual.

    Os materiais sonoros encontrados na obra configuram-se, inicialmente, de maneira bastante simples e so notadamente reconhecveis por seus perfis e caractersticas. Como estratgia composicional, a obra desdobra-se a partir de encontros possveis entre estes materiais to dspares inicialmente apresentados, gerando assim sonoridades hbridas resultantes da progresso contnua entre os mesmos.

    Abordagem recorrente em toda a obra de Xenakis, o uso de categorias sonoras que transitam entre extremos tambm pode ser encontrado no tratamento dado ao espao fsico em Terretektorh. De maneira anloga aos materiais sonoros, o compositor explora a gradao entre diferentes tipologias e morfologias de espacializao. Partindo da dicotomia inicial entre as trajetrias circulares, to bem definidas pelos instrumentos de cordas e do movimento catico latente nos ataques das maracas, o compositor cria estados intermedirios que resultam ora da saturao ou superposio de trajetrias, ora de uma massa sonora que cria gravitaes atravs do espao.

    O discurso sonoro da obra resulta, portanto, numa forma de convergncia estabelecida entre a manipulao dos materiais sonoros atravs de espaos abstratos, constitudo de perfis, trajetrias de alturas, de duraes, etc., e o espao fsico, condicionado pela distribuio espacial dos instrumentistas e do pblico.

    Num prefcio de um livro sobre Le Corbusier, Xenakis refletiu sobre a influncia da arquitetura em seu pensamento composicional. abordagem tradicional da composio musical, que parte de elementos locais (melodias, harmonias, etc.) se desdobrando em formas globais, Xenakis contraps uma diferente concepo, que aborda a obra globalmente e nos detalhes, simultaneamente (XENAKIS, 1987: 5)15. De uma maneira semelhante, o espao sonoro e o espao fsico em Terretektorh no foram concebidos separadamente, mas "simultaneamente". No h superposio ou prevalncia de um pelo outro, mas uma escritura musical que potencializa as possveis interdependncias entre os dois, propondo assim uma experincia de escuta em que tais elementos tornam-se indissociveis.

    15 Cette exprience acquise chez et avec Le Corbusier [...] m'a aid concevoir ma musique aussi comme un projet d'architecture: globalement et dans le dtail, simultanment (XENAKIS, 1987 : 5)

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . RIMOLDI; SCHAUB

    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    31

    Em nossa perspectiva, a obra sugere ainda outras possibilidades e expanses de anlise. A maneira em que os elementos da obra se transformam ao longo do tempo poderia constituir uma possvel direo. Como abordagem para futuros trabalhos, poderamos ainda recorrer a conceitos das cincias fsicas, bastantes presentes no imaginrio xenakiano, tais como a ideia de trajetrias, acmulos e rupturas.

    A categorizao dos materiais e uma compreenso da articulao destes no tempo e no espao sugere a existncia de princpios de organizao que ultrapassam a obra em si. Assim, possivelmente, podero auxiliar-nos a analisar outras obras do compositor que tambm utilizam o espao como um elemento composicional, tanto no caso de obras instrumentais, como, por exemplo, Nomos Gama e Persephasa, como tambm obras eletroacsticas e mistas, como o caso dos Polytopes. Em especial destaque, vislumbramos a possibilidade de que uma correlata abordagem pode ser aplicada a Nomos Gama, composta logo aps Terretektorh e que utiliza uma configurao bastante parecida de disposio espacial dos msicos.

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  • Espaos convergentes: som e espacializao em Terretektorh de Iannis Xenakis. . . . . . . . . .

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    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Gabriel Rimoldi Bacharel em Msica pela Universidade Federal de Uberlndia e mestrando pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com bolsa da Fundao de Amparo Pesquisa de So Paulo (FAPESP). pesquisador discente do Ncleo Interdisciplinar de Comunicao Sonora (NICS), onde desenvolve pesquisas relacionadas a espacializao sonora, modelos interativos e sntese sonora em tempo real. [email protected]

    Stphan Schaub Doutor em Musicologia pela Universidade de Paris IV (Paris-Sorbonne), Mestre em Matemtica pela Universidade do Arizona (EUA), com nfase em Teoria da Msica e Doutor em Msica e Musicologia do sculo XX pela cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Frana). Desde 1998, atua como pesquisador colaborador junto ao Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM) e desde 2010 ps-doutorando pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Suas reas de atuao concentram-se em anlise musical, analise assistida por computadores e interatividade. [email protected]

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    PACKER, Max. A ressonncia enquanto recurso polifnico: anlise de Erdenklavier, de Luciano Berio. Opus, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 33-50, dez. 2012. O presente artigo amplia e aprofunda o trabalho apresentado no XXII Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica, ANPPOM, sob o ttulo A polifonia latente nas obras para piano Leaf e Erdenklavier de Luciano Berio (PACKER, 2012: 267-274). Tendo em vista que a articulao polifnica de Leaf e Erdenklavier baseia-se em modos de elaborao da ressonncia do piano (foco central do primeiro artigo), buscou-se um aprofundamento da noo de ressonncia que, entendida como um princpio composicional amplo, permite correlacionar diferentes estratgias composicionais de Berio (presentes, inclusive, em outras obras cujos processos composicionais no envolvem a escrita pianstica).

    A ressonncia enquanto recurso polifnico: anlise de Erdenklavier, de Luciano Berio

    Max Packer (UNICAMP)

    Resumo: Este artigo tem como objetivo realizar uma leitura da obra para piano solo Erdenklavier (1969), pertencente ao ciclo de miniaturas 6 Encores, de Luciano Berio, na qual interagem, de forma condensada, dois princpios composicionais recorrentes na potica de Berio: a polifonia implcita sobre uma nica linha meldica, e a ressonncia enquanto potencial de amplificao e desdobramento de enunciados. Para tal, a primeira parte dedicada apresentao de exemplos da manifestao da ideia de ressonncia em trs obras de Berio - Chemins IV (1975), Il Ritorno degli Snovidenia (1976) e Leaf (1990) -, a fim de ilustrar algumas estratgias composicionais ligadas abrangncia deste princpio. As anlises ganham maior mincia conforme nos dirigimos escrita pianstica, na qual a elaborao instrumental da ressonncia permite abordar aspectos composicionais situados precisamente na relao entre as noes de ressonncia e de polifonia latente.

    Palavras-chave: Luciano Berio. Ressonncia. Polifonia latente. Msica do sculo XX. Anlise musical.

    Title: Resonance as a Polyphonic Resource: An Analysis of Erdenklavier by Luciano Berio

    Abstract: The objective of this article is to share a reading of a piece for solo piano, Erdenklavier (1969), that is part of a cycle of miniatures called 6 Encores written by Luciano Berio, which, in a condensed form, interrelates two recurring principles of composition from Berios poetics: implicit polyphony over a single melodic line and resonance for potential amplification and development of statements. Therefore, the first part of this article is dedicated to introducing examples where a suggestion of resonance appears in three of Berios worksChemins IV (1975), Il Ritorno degli Snovidenia (1976) and Leaf (1990)to illustrate composing strategies related to the scope of this principle. As we move towards piano part, the analysis gains greater detail in that the elaboration of resonance for the instrument allows one to approach compositional aspects that lie precisely within the relationship between notions of resonance and latent polyphony.

    Keywords: Luciano Berio. Resonance. Hidden Polyphony. Twentieth-Century Music. Musical Analysis.

  • A ressonncia enquanto recurso polifnico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    noo de ressonncia, no sentido mais corrente do termo, consiste no prolongamento e na amplificao de sons em determinados meios sonoros. Enquanto fenmeno acstico, entendida como um processo de transferncia de

    energia de um sistema para outro, que passa a oscilar com a mesma frequncia. Considerada de modo amplo, a noo de ressonncia pode ganhar ainda diversas implicaes. Pode indicar uma conexo entre elementos diferentes, um prolongamento que associa espaos distantes, a repercusso de um ato ou uma ideia, seu potencial de alcance e contgio, a capacidade que um determinado estmulo tem de se propagar e se renovar etc. Em todas as acepes, h em comum a disposio entre uma causa e um efeito, um estmulo e um prolongamento. a partir dessa dualidade especfica do tipo de associao implcita na noo de ressonncia, que tal princpio torna-se pertinente ao estudo de alguns aspectos da obra de Luciano Berio.

    Como observou o musiclogo italiano Gianfranco Vinay, a fidelidade ao princpio da ressonncia, desde o sentido amplo at o mais especfico do termo, marcou profundamente a potica beriana da obra aberta1, sobretudo a partir dos anos 1960. Considerando as sries de obras Sequenze e Chemins, que percorrem praticamente todo seu perodo criativo, possvel identificar este princpio na busca por uma polifonia complexa, que ao mesmo tempo um jogo de reflexos sonoros e de imitaes em ressonncia entre as vozes e a estrutura harmnica (VINAY, 2006: 27, traduo nossa).

    No caso dos Chemins2, o conjunto instrumental funciona, de modo geral, como um espao de reverberao no qual elementos da escrita solista (as Sequenze) so capturados e potencializados, numa espcie de reflexo imediata, no interior de um contexto instrumental expandido. Nas palavras do prprio Berio:

    Eles so uma srie de comentrios especficos que incluem, quase intactos, o objeto e o assunto do comentrio. Os Chemins no so um deslocamento de um objet trouv num contexto diferente ou uma roupagem orquestral de uma pea solo (a Sequenza original), mas sim um comentrio organicamente ligado a ela e gerado por ela. O conjunto instrumental traz para a superfcie e desenvolve processos musicais que esto escondidos e comprimidos na parte solista, amplificando todos os aspectos, inclusive os

    1 Para um aprofundamento sobre a noo de obra aberta e suas implicaes na potica de Berio, Cf.: OSMOND-SMITH (1983); O Alter Duft, conferncia concedida por Berio e publicada em Remembering the Future (BERIO, 2006); BONAF (2011), que dedica um captulo de sua dissertao a esta noo. 2 A srie de nove obras intitulada Chemins (1965-1996) consiste, em linha gerais, em uma revisitao composicional das Sequenze, na qual os elementos elaborados na peas solistas so desdobrados em conjuntos instrumentais maiores.

    A

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . PACKER

    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

    temporais: em alguns momentos os papis se invertem, de modo que a parte solista parece ter sido gerada pelo prprio comentrio (BERIO apud BONAF, 2011: 29, grifo nosso)3.

    H, portanto, uma latncia, um conjunto de potencialidades escondidas e comprimidas na pea solo que serve como subsdio a um processo de desdobramento das relaes no ato do comentrio. O conjunto instrumental funcionando como um sistema de ressonncia que amplifica, no apenas a amplitude de uma frequncia (como na acepo acstica do termo), mas tambm uma durao, um desenho meldico, um timbre, uma relao harmnica, etc. Este prolongamento dos elementos num outro meio instrumental resulta num processo com mltiplas direes, no qual as escolhas composicionais incorporam a funo reativa do conjunto orquestral em relao s possibilidades intrnsecas pea solista. Um tipo especial de ressonncia na qual os elementos podem no apenas ser amplificados, mas tambm contrados, deformados e at subtrados, conforme o crivo do compositor4.

    As Fig. 1 e 2 exemplificam este processo em trechos de duas obras de Berio: Il Ritorno degli Snovidenia (1976), para violoncelo e orquestra de cmara, e Chemins IV (1975), para obo e onze cordas.

    No trecho da Fig. 1, as cordas realizam uma reflexo instantnea das notas emitidas pelo violoncelo principal. As notas assinaladas (na cor vermelha) so atacadas sincronicamente com o solista e prolongam as harmonias implcitas em seu perfil. H,

    3 Apesar da srie Chemins constituir o exemplo mais significativo, esta escrita orquestral por ressonncia pode ser encontrado em muitas outras obras de Berio, podendo ser considerada uma marca de sua escrita concertante. Vale citar: O King (1967), para mezzosoprano e cinco instrumentos; Concerto (1973), para dois pianos e orquestra; Il Ritorno degli Snovidenia (1976), para violoncelo e orquestra de cmara; Corale (1980), para violino, duas trompas e cordas; Voci (1984), para viola e dois grupos instrumentais, Concerto II (Echoing curves) (1988), para piano e dois grupos instrumentais; Alternatim (1997), para viola, clarinete e orquestra. 4 Vale observar que este relao de causalidade que caracteriza a ideia da ressonncia liga-se noo de heterofonia, definida como um tipo de textura na qual uma estrutura primeira sobreposta mesma estrutura com aspectos modificados. O conceito, j presente na Idade Mdia, implica certo deslize de tempo entre as vozes simultneas que recorrem ao mesmo tipo de material meldico-harmnico (MENEZES, 2006, p. 233-240). Segundo Boulez, a heterofonia consiste numa repartio estrutural de alturas idnticas diferenciada por suas coordenadas temporais divergentes, manifestada por intensidades e timbres distintos (BOULEZ, 2005). O prprio Berio, em entrevista Rossana Dalmonte, refere-se a esta relao entre a polifonia latente e o principio heterofnico: (...) ao perseguir meu ideal de uma polifonia implcita, eu descobri as possibilidades heterofnicas da melodia (...) (BERIO apud MENEZES, 1993: 167, traduo nossa).

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    portanto, uma amplificao temporal de aspectos harmnicos que passam a interagir tambm verticalmente, resultando em um contnuo que se transforma conforme o movimento da linha principal.

    Fig. 1: As notas que compem o perfil do solista so refletidas sincronicamente na orquestra.

    Berio, Il Ritorno degli Snovidenia (comp. 42-46).

    Neste trecho de Chemins IV (Fig. 2), possvel observar com nitidez o funcionamento das cordas como uma cmara-de-eco5. Enquanto o obo solista varia seus modos de ataque e dinmica sobre a nota Si (comp. 19-20), as cordas expandem esta mesma nota refletindo-a em diversas camadas rtmicas, tmbricas e dinmicas

    5 Esta analogia do funcionamento da orquestra como uma cmara-de-eco ao redor do obo

    sugerida pelo prprio Berio, ao comentar brevemente sobre esta obra na srie de conferncias The Charles Eliot Norton Lectures apresentada na Harvard University nos anos 1993-1994 e reunidas em Remembering the Future (2006: 44).

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    simultaneamente. No instante em que o obo articula outras notas, espalhadas pelo registro, as cordas respondem em eco: os violinos I e II dispersam-se pelas mesmas notas e retornam ao Si, preservando as alturas apresentadas pelo obo, mas alargando as duraes. Vale notar tambm que o Sib, atacado em staccato ff pelo obo ressoa imediatamente na viola II, como um prolongamento do staccato do solista.

    Fig. 2: Cordas como uma cmara-de-eco que reflete e alarga o enunciado solista.

    Berio, Chemins IV (comp. 19-22) 6.

    Como foi dito, o acrscimo de conjuntos orquestrais na srie Chemins permite trabalhar sobre as potencialidades que j estavam implcitas nos enunciados solistas. Este processo de desdobramento provm, portanto, de uma complexidade estrutural que j se faz presente nas peas solo, em especial nas Sequenze. De fato, como se, nas obras solistas, a procura por uma correlao entre estruturas, pelo potencial de associao entre camadas imbricadas ou ainda, a ressonncia entre nveis da composio - reincorporasse

    6 Para um aprofundamento sobre o processo de desdobramento da Sequenza VII no interior de Chemins IV, conferir Packer (2011).

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    um problema composicional muito anterior a Berio, e profundamente conectado tradio: a polifonia latente.

    [...] Todas as Sequenze para instrumentos solo tm em comum a inteno de precisar e desenvolver melodicamente um discurso essencialmente harmnico e sugerir, especialmente quando se trata de instrumentos mondicos, uma audio de tipo polifnico. [...] Ou seja, eu queria alcanar uma forma de audio to fortemente condicionante que pudesse constantemente sugerir uma polifonia latente e implcita. O ideal, portanto, eram as melodias polifnicas de Bach [...] (BERIO, 1988: 83-84).

    Nas Sequenze para instrumentos de natureza monofnica, desenvolve-se uma escrita em que a polifonia implcita na prpria construo meldica. Grosso modo, a alternncia em proximidade entre eventos dispersos no registro e com contrastes de sonoridade (intensidade, timbre etc) que, por similaridade, associam-se a eventos no imediatamente contguos, permite estabelecer uma correlao entre diferentes planos implcitos numa linha nica7.

    No caso da escrita para piano, instrumento que permite a explorao de uma polifonia tradicional - proveniente da polifonia vocal e que consiste na simultaneidade entre linhas meldicas -, Berio realiza uma experimentao idiomtica, atravs da qual so elaborados jogos polifnicos propriamente piansticos. Neste processo, o principal artifcio a elaborao da ressonncia a partir da explorao precisa de propriedades acsticas e de diversos modos de execuo possibilitados pelo instrumento8. Vejamos como isso ocorre em Leaf (1990), do ciclo 6 Encores (Fig. 3):

    7 A Sequenza VII para obo, sobre a qual foi composto o Chemins IV, oferece um exemplo bastante representativo deste tipo de construo. Comentaremos algumas de suas caractersticas na segunda parte deste artigo, quando examinarmos o aspecto polifnico da construo meldica de Erdenklavier. Ademais, cada uma das Sequenze prope diferentes estratgias e tipos de polifonia, em funo das peculiaridades de cada instrumento: polifonia de aes do intrprete na Sequenza V para trombone, polifonia entre camadas de registro nas Sequenze VII para obo e VIII para violino, polifonia no interior de acordes arpejados na Sequenza VI para viola, e polifonia de associaes semnticas a partir da permutao das partes e fonemas de um poema na Sequenza III, para voz feminina, so alguns exemplos dentre as inmeras possibilidades, exploradas por Berio, de articular discursos de simultaneidade a partir de instrumentos caracteristicamente monofnicos. 8 As duas obras para piano solo de maior envergadura de Berio, Sequenza IV (1965) e Sonata (2001), so emblemticas na explorao discursiva da ressonncia. Sobre estas obras, ver as anlises de Didier Guigue (2011) e Valria Bonaf (2011).

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    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

    Fig. 3: A ressonncia implcita em uma textura de acordes em staccato. Berio, Leaf (comp. 1-6).

    Como mostra a Fig. 3, o pedal tonal - ou sostenuto - acionado no incio da pea e mantm um nico acorde liberado durante todo o tempo9. Este acorde posiciona-se no centro da tessitura, de modo a delimitar a regio na qual a ressonncia ser trabalhada. A partir da presena destas notas (cordas) liberadas pelos martelos do piano, inicia-se uma textura de acordes em staccato, que permeia toda a pea, nos quais h sempre alguma nota (ou conjunto de notas) em comum com o acorde ressonante. A presena de notas liberadas no centro do teclado permite que os ataques circulem por esta regio ativando sempre algumas destas notas, enquanto as outras notas dos acordes, que no esto liberadas, no ressoam e compem somente a sonoridade dos ataques.

    Assim, cada gesto do pianista anima simultaneamente dois planos: (1) os ataques staccato na superfcie do teclado; (2) a ressonncia contnua de notas liberadas pelo pedal10. Consequentemente, possvel elaborar dois planos harmnicos, ambos implcitos sobre cada acorde.

    Na Fig. 4, possvel observar a alternncia entre diferentes tipos de acordes: formaes cromticas, clusters, ttrades invertidas, acordes por quartas etc. Porm, cada acorde possui algumas notas que esto liberadas pelo pedal tonal (notas em vermelho) e, portanto, se prolongam (se amplificam) criando, nas palavras do prprio Berio, uma sombra sonora que acompanha o discurso do teclado (1979 apud STOIANOVA, 1985: 407). Estas notas ressonantes tambm se combinam em formaes intervalares recorrentes, de modo a desdobrar horizontalmente as caractersticas harmnicas implcitas no acorde de fundo, liberado pelo pedal. Este acorde funciona como uma interseco entre

    9 Este acorde liberado pelo pedal tonal aparece assinalado entre colchetes no incio de cada compasso, de modo que o pianista possa visualizar quais notas dos acordes em staccato so capturadas e prolongadas na ressonncia. 10 A pianista Zoe B. Doll (2007: 58, traduo nossa) comenta esta diferena de desinncia entre as notas de um mesmo acorde atacado, devido presena de notas liberadas pelo pedal, que resultam no prolongamento do que ela chamou de harmonias escondidas: deste modo que o pedal sostenuto serve como uma espcie de gerador de envelope acstico, expandindo o tempo de desinncia de acordes j articulados.

  • A ressonncia enquanto recurso polifnico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    os dois planos que se desdobram paralelamente, cada um com suas prprias reiteraes e alternncias.

    Fig. 4: As notas em vermelho esto liberadas pelo pedal tonal e, portanto, se prolongam.

    Berio, Leaf (comp. 21-27).

    Como foi dito anteriormente, cada um dos planos possui uma reiterao de elementos harmnicos: determinados tipos de acordes no nvel das teclas e determinados combinaes intervalares no nvel da ressonncia. H, assim, certo equilbrio no interior de cada camada, garantido pelo constante retorno de sonoridades. Contudo, cada um dos dois eixos possui sua prpria ritmicidade no encadeamento de seus elementos, de maneira que seus ciclos se combinem de forma irregular. nessa irregularidade entre os dois planos que reside a dimenso polifnica da harmonia de Leaf. Como os dois planos incidem sobre um nico elemento (os acordes), a percepo tende a ser guiada por um jogo de diferenas, gerado pela vrias combinaes entre notas staccato e notas ressonantes11.

    Uma mesma combinao de notas ressonantes (um mesmo intervalo) pode ser disparada por diferentes acordes, produzindo uma constante variao de colorido: na Fig. 4, esto circulados quatro acordes diferentes que acionam o intervalo D-F. No ltimo compasso do mesmo trecho, um acorde cromtico emite na ressonncia uma trade de F maior (implcita em sua formao) e, em seguida, todas as notas ressonantes so atacadas. Como se o contraste entre os dois planos fosse exacerbado (uma trade escapando de um cluster!) e, em seguida, os dois planos coincidissem: o ataque em staccato, mas todas as notas ressoam.

    11 Dois artigos publicados recentemente aprofundam o estudo sobre a noo de ciclos sobrepostos e de polifonia entre camadas harmnicas em obras de Berio: Ciclicidade e kinesis em Circles de Luciano Berio, de Silvio Ferraz (2011); Polifonias Defasadas: Uma anlise das dimenses harmnicas paralelas da Sequenza IV de Berio de Didier Guigue, em seu livro Esttica da Sonoridade (2011).

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    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

    Em suma, h em Leaf uma explorao de recursos piansticos que permitem capturar a ressonncia implcita em uma textura de acordes, resultando em uma correlao simultnea entre dois planos sonoros contrastantes: a descontinuidade dos blocos em staccato (elemento vertical) e a linearidade da ressonncia contnua (elemento horizontal). A seguir, observaremos em Erdenklavier a elaborao de outras estratgias que resultam num processo inverso: a ressonncia enquanto um rastro acumulado pelo movimento de uma linha meldica.

    Erdenklavier (1969)

    Em Erdenklavier, a elaborao polifnica nitidamente marcada pela experincia das Sequenze, sobretudo as compostas para instrumentos mondicos. Desta vez, a explorao peculiar de modos de execuo e de propriedades acsticas, prprios do instrumento, permite trabalhar o potencial monofnico do piano, revisitando a ideia da polifonia implcita sobre uma nica linha.

    Na Fig. 5, possvel observar que um recurso simples de notao j estratifica a linha meldica em dois nveis: as notas grandes (cabea-de-nota grande) devem ser executadas fortssimo (ff), as notas pequenas pianssimo (pp): plano de frente, plano de fundo.

    Fig. 5: A polifonia latente a partir da ressonncia capturada de uma linha nica.

    Berio, Erdenklavier (sistemas 1-3).

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    A partir desta monodia j duplicada, outro recurso de notao faz surgir mais uma camada: as notas circuladas devem ser mantidas presas - isto , com as teclas abaixadas - at que as mesmas reapaream e sejam novamente articuladas12. Eis um terceiro plano capturado da melodia: a ressonncia.

    O recurso do crculo ao redor das notas no apenas facilita a execuo do intrprete, mas acaba por evidenciar, tambm, algo sobre o processo composicional. Esta notao sugere que a escolha das notas sustentadas consiste numa etapa secundria (o que no significa necessariamente posterior) elaborao da linha, pois tal recurso permite que sejam escolhidas para a ressonncia tanto notas ff quanto pp. Atuando sobre os dois planos de dinmica, tais escolhas acarretam na emisso de uma nova camada de duraes que atua sob os valores rtmicos estabelecidos na escrita da linha meldica. Assim, se uma nota com valor de fusa circulada, sua durao se estende e reflete no nvel da ressonncia - o que no retira seu valor de fusa para articulao do discurso meldico. Em suma, o acrscimo dos crculos sobre algumas notas da melodia libera uma nova camada, mais sutil, que atravessa e envolve as duas camadas estabelecidas pelo contraste de dinmica13.

    Alm de manuteno das notas presas, a sustentao da ressonncia conta, ainda, com a articulao regular e constante do pedal de sustentao que, segundo indicado na partitura, no deve ser coordenada com o teclado. Esta oscilao faz com que a ressonncia seja constantemente filtrada, ficando retidas as notas escolhidas, presas pelos dedos do pianista.

    Tem-se, assim, trs elementos idiomticos que, aliados a recursos simples de notao, impulsionam a elaborao de uma monodia essencialmente pianstica. Veremos, a seguir, aspectos da estruturao meldica e harmnica, e de que maneira eles se relacionam com o desdobramento polifnico do discurso.

    Com relao ao perfil meldico, dois aspectos principais caracterizam o desenho desta linha: (1) o movimento pendular (em zigue-zague); (2) a ausncia de oitavaes, isto : cada nota tratada como um ponto fixo no registro. O movimento de pndulo explicita as

    12 Todos estes recursos de notao e o funcionamento do pedal so explicados pelo compositor, em nota, na partitura da obra (BERIO, 1969: 1). 13 Como definiu Didier Guigue (2011: 260-261), em Berio, a ressonncia, essa camada subjacente, funciona como um espectro, em todos os sentidos do termo, como a manifestao de uma memria acstica, tanto mais pelo fato de no ser produzida a partir de nenhum elemento novo. Com efeito, alguns acordes ou notas isoladas que aparecem na superfcie so capturados e como que congelados na durao em forma de ressonncia, enquanto o discurso principal prossegue.

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    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

    distncias entre as alturas fixas e, com isso, delimita camadas de tessitura no interior do espao meldico14. O trecho da Fig. 6 exemplifica este comportamento:

    Fig. 6: Movimento pendular e alturas fixas. Berio, Erdenklavier (sistema 4).

    Este tipo de comportamento meldico remete a outra obra de Berio, a Sequenza VII (1969), para obo (Fig. 7), que, tendo sido composta no mesmo ano que Erdenklavier, dispe de alguns recursos de estruturao semelhantes, os quais resultam em uma explorao emblemtica do potencial polifnico da linha.

    Fig. 7: Alturas fixas e saltos entre regies da tessitura. Berio, Sequenza VII, para obo (sistema 12).

    Na Sequenza VII, cada altura da tessitura do obo, em cada uma das oitavas, tratada como um ponto singular do registro. Contudo, as notas vo sendo apresentadas gradualmente ao longo da obra, de modo que a linha ganha progressivamente mais mobilidade pelo espao meldico: cada altura apresentada passa a ser um novo ponto percorrvel e reitervel pelo movimento do obo.

    Para este estudo, o que nos interessa especialmente na Sequenza VII o processo de ordenao que rege o aparecimento gradual das informaes harmnicas. Trata-se de

    14 Este tipo de comportamento meldico tpico das melodias polifnicas de Bach, as quais o prprio Berio (1988: 83-84) assume como um ideal de polifonia latente. Berio refere-se, sobretudo, s Partitas para violino e Suites para violoncelo, nas quais a alternncia entre registros e a manuteno de um equilbrio rtmico e harmnico entre as camadas, permitia simular um contraponto entre diferentes vozes distribudas pela tessitura. Sobre esta relao entre os processos de simulao polifnica em Bach e Berio, conferir Ferraz (1989).

  • A ressonncia enquanto recurso polifnico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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