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A letra e a Seca: os ABC 's do cordel nas memórias do sertão.' Kênia Sousa Rios Professora do Deparramento de História da UFC RESUMO: O presente texto reflete sobre algumas conexões entre a memória oral e o mundo letrado. Trata-se de uma abordagem que tenta perceber orno as letras, mais precisamente como o alfabeto participa da narrativa de vidas que estão entre o oral e o escrito. PALAVRAS-CHAVE: memória oral, seca, cordel, ABC's. ABSTRACT: 1his article establishes connections between oral memory and the writing. This perspective tries to observe how the alphabet is present in the oral narratives and the cordelliterature. KEYWORDS: oral memory, dry, cordel, ABC's. "lá no meu sertão pro caboclo ler tem que aprender um outro ABC" ABC do Sertão, Luiz Gonzaga / Zé Dantas Para os SUjeItos que partlClpam da crença na escritura, as letras constituem um espaço de poder, mesmo que seja para rnanipulá-lo pela força da memória oral. Muitos sertanejos que entrevistei ao longo do dou- torado apresentaram os ABC' s como forma de constituir as memórias sobre a seca e sobre a vida. Nas entrevistas e cordéis coletados durante a pesquisa, havia de fato tal recorrência. Mais uma vez a pesquisa sobre as memórias da seca no Ceará me encaminhava para o território conflituoso entre o oral e o escrito. Nesta ocasião, o mote era o alfabeto e os ABCs. Nos ABCs do cordel a temática percorre todo o alfabeto, versando o assunto letra por letra. É uma trama que se urde entre a oralidade e a escrita. Estas narrativas se apresentam respeitando o conjunto de códigos primários TRAJETOS - Revista de História da UFC, v. 5, n. 9/10, 2007 67

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A letra e a Seca:os ABC 's do cordel nas

memórias do sertão.'

Kênia Sousa RiosProfessora do Deparramento de História da UFC

RESUMO: O presente texto reflete sobre algumas conexões entre a memóriaoral e o mundo letrado. Trata-se de uma abordagem que tenta perceberorno as letras, mais precisamente como o alfabeto participa da narrativa de

vidas que estão entre o oral e o escrito.PALAVRAS-CHAVE: memória oral, seca, cordel, ABC's.

ABSTRACT: 1his article establishes connections between oral memory andthe writing. This perspective tries to observe how the alphabet is present inthe oral narratives and the cordelliterature.

KEYWORDS: oral memory, dry, cordel, ABC's.

"lá no meu sertão pro caboclo lertem que aprender um outro ABC"

ABC do Sertão, Luiz Gonzaga / Zé Dantas

Para os SUjeItos que partlClpam da crença na escritura, as letrasconstituem um espaço de poder, mesmo que seja para rnanipulá-lo pelaforça da memória oral. Muitos sertanejos que entrevistei ao longo do dou-torado apresentaram os ABC' s como forma de constituir as memórias sobrea seca e sobre a vida. Nas entrevistas e cordéis coletados durante a pesquisa,havia de fato tal recorrência. Mais uma vez a pesquisa sobre as memórias daseca no Ceará me encaminhava para o território conflituoso entre o oral e oescrito. Nesta ocasião, o mote era o alfabeto e os ABCs.

Nos ABCs do cordel a temática percorre todo o alfabeto, versando oassunto letra por letra. É uma trama que se urde entre a oralidade e a escrita.Estas narrativas se apresentam respeitando o conjunto de códigos primários

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no aprendizado da escritura, ou seja, as 23 ou 26 letras que formam qual-quer palavra.

Conhecendo o alfabeto, o indivíduo começa a ser integrado ao uni-verso das letras. Tal inquietação me fez retomar às fontes (orais e escritas)procurando perceber como se estruturam os "versos abecedados". O que sepodia perceber da conexão letra e voz apresentada nesses versos?

Em 1996, realizei uma entrevista e depois não soube bem o quefazer com ela. Finalmente havia chegado o momento de tirar a poeira da fitae ouvir novamente as palavras do Pai Gomes.

A entrevista com Pai Gomes foi gravada quando estava em busca deinformações sobre a seca de 1932, no município de Ipu, Alguns moradoresda cidade mencionaram um senhor que, segundo eles, tinha muitas respos-tas sobre o assunto da pesquisa. Tratava-se de um homem centenário quemorava longe da cidade, em casa localizada no meio de um sítio, rodeadapor bichos. Com ele moravam um filho e a nora. Um dos olhos fora ven-cido pela catarata e ele procurava me ver retorcendo o pescoço para o ladoque ainda enxergava. Segurava um cajado improvisado por um pedaço demadeira já polido pelo contato com as mãos.

Quando pedi para ele falar suas memórias daquele ano de 1932,achou melhor que eu ouvisse o poema do soldado francês que, aliás, durouquase oito minutos de uma narrativa impecavelmente recitada. Destaquepara o sotaque afrancesado firmemente incorporado durante a declamaçãodos versos, que retratava a vida de um soldado francês em viagens pelo mun-do. Sentado numa cadeira com acento de couro de boi, Pai Gomes lapidavasua pronúncia enquanto gesticulava o braço livre do cajado. Possivelmentejá recitara tal poema uma centena de vezes para grupos de ouvintes. Aquelamemória colocava-se não apenas nos versos, mas também na postura docorpo, desenhando um tempo e um espaço da oralidade.

Concluído o poema, insisti nas lembranças da seca de 1932 e PaiGomes continuou seu "espetáculo". Começou, então, a recitar o ABC daseca. Apressei-me para gravar, pois ele deu início sem avisar. Na hora detranscrever, algumas letras foram salteadas, já que, no momento em que PaiGomes declamava o ABC, sem esperar que a letra G fosse anunciada, umGalo resolveu cantar e com isso, algumas letras não foram ouvidas. Não foirecitado o "U". Quando perguntei por essa letra, nosso narrado r afirmouque aquela letra não existia.

Transcrevo, portanto, o ABC da seca de 1915, apresentado por PaiGomes aos seus 101 anos:

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"A- adeu , povo cearensemeus caro amigos adeusrecorremos na memóriao clamores que sofremosm 1915 clamores que padecemos.

B- bondade não pode havernaqueles tempos de horror ...

E- enquanto os pobres humilhadosnão tinham consolaçãojá pediam a Jesus Cristoe à Virgem da Conceiçãoque lhe dessem um intuitode uma boa conrriçâo.

F- foi um só ano de secamas muita gente morreutempo tão horrorosocomo aqui nunca se deuuma extremidade dessaso Ceará nunca sofreu.

G- governo não se falavaaqui para o nosso Estadoquase que se acaba tudoà falta de um bocadosomente por não haverna corte um rei coroado.

H- homens grandes tinham muitosmas eram em piedadefaltava aquele que sempreusava da caridadeporém os poderes de Deusrebatiam a crueldade.

1- infernos tiveram uns poucosespalhados no sertãoa e tradas de rodageme açudes no salãoque o pobres buscavam elespra escapar da precisão.

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J- juntamente sempre vinhamem numerosa quantidadeos famintos derramandosua lágrima pela estradaos filhos chorando com fomee as mães de dores passada.

P I t u grande e pequenoshOlOU tud em uma alturaort u a p nta da língua

de Igumas criaturash l U para o sofrimento) nce de boa figura.

K- kaiu ali sobre a terrapessoa de qualidadesem ânimo para coisa algumasó pela necessidadeporém trazia no seu coraçãoamor com a divindade.

- quando caíram no chicotedo 15 velho faladologo aí abriram os olhosque estavam vivendo erradopois nosso Pai Celestenão trai ninguém enganado.

L- lamentava Jesus Cristonesse horroroso tempode tão fortes padeceresde tão grandes sofrimentospedindo consolaçãoao Santíssimo Sacramento.

R- rogamos a Deus do céufilho da Virgem Mariaque nos queira perdoaros pecados que cometíamospara ver se alcançamoso reino de alegria.

M- muita gente de hoje em diantetraz isso bem decoradonunca mais sai do sentidolembranças do passadoda grande devo raçãoque se deu em nosso Estado.

s- setenta e sete que foitrês anos de sequidãooitenta e oito tambémque foram dele irmãosmas como a seca do 15não teve comparação.

N- na verdade meus amigosem nossa pátria natalum ano como esse 15nunca se viu outro igualporém foi determinadopelo Deus do tribunal.

T- trezentos contos de réisveio para nos socorrerem 1915assim ouvimos dizer.

0- orrivel sem domicílioestava o povo brasileirose tinha qualquer recursotraziam mais prisioneiromais quando entrou a seca do 15foi mesmo que um cativeiro.

V- veio esse dinheiro todoaqui para o nosso Estadomas em nossa capitalfoi ele inventariadotalvez que os inventariantesficassem com um bocado.

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x- xarope de amargurao brasileiros bebiamobrigando a naturezapara ver se náo morriamcaindo no cativeirodos trabalhos que haviam.

N SI de afio, nenhuma letra pode render o poeta. A ordem daI, I' ,1\ d 'v' er enfrentada de qualquer maneira. A temática da cachaça é111"'11 ,1111 .nie abandonada e o espaço é preenchido com algumas conside-I 1\0" sobr a própria estrutura do alfabeto, ou melhor, sobre o valor daI, 11,1 di í il, negada pelo seu lugar de existência - o alfabeto. Afinal, só nodl.lh '! letras existem enquanto tais. Quando dali saem, transformam-se

1111 p.ll, vra , frases, poesias, romances, contos,A aproximação dos cordelistas com as letras já começa na própria

1 '1lOgrafia. Até hoje, existem cordéis que são formatados por "tipos", feitosI '11.1 a letra, em seguida guardados em seus respectivos lugares definidospor I .tra -tipos, Percebe-se um envolvirnento com a materialidade da letra.

li!' mesmo de ir para o papel, ela é um objeto potente na produção do!l1.H rial impresso. A coisa letra se coloca na mão do artesão que paciente-111 nte se transforma em uma peça do prelo, para então virar texto impresso.No a o do computador, as letras ganham um corpo mais efêmero, sempre ença afetiva.

Voltando ao Pai Gomes, é interessante observar que a memona{!,uarda esses poemas com um tipo de erudição no ato de recitá-los. Antes deini iar a declamação dos versos, ele falava um português arrastado, capenga,

m erros de concordância. A sua oral idade mais cotidiana não se prendia àsn rmas cultas; entretanto, o ABC é recitado com ares de nobreza. Os SS eRR foram todos muito bem pronunciados. A gramática foi apresentada semvacilos: "que Deus nos queira perdoar os pecados que cometíamos". Mastal performance não parte senão de um exercício da memória e, por issomesmo, ressaltam os princípios religiosos fortemente presentes na tradiçãooral. A gramática, aqui, nada tem a ver com os bancos escolares, mas comuma cultura marcada pela oralidade, capaz de memorizar frases difíceis paranão comprometer o que mais importa na fala: reunir um público para serouvida.

Se não for sedurora, a palavra falada não cumpre sua missão. Nestecaso, quanto mais diferente da fala cotidiana, mais espetacular, pois gesta oque estranha e fascina. O desafio é congregar orador e ouvinte em um mes-mo tempo, conquistado pelo movimento da sedução performárica. Por issoa proeza do narrado r não é para qualquer um?

No caso dos ABCs em que o alfabeto é ressaltado como um núcleoapreciado pelos poetas orais, não há um tempo que começa no A e terminano Z. Para esses autores, que guardam íntima relação com as artimanha daoralidade, o mundo não começou com as letras; antes, a história já exi tia.Grande parte dos ABCs não começa no A e tampouco termina no Z. É um

z- zombando estavam os grandesdaqueles mais atrasadosporém o 15 anuncioua muitos homens ilustradosdevorou suas riquezase acabou-se esse fardo."

A c.~!tu~a oral em versos é capaz de fazer estrofes rimadas res ei-~ando a sequencI.a de~erminada pela ordem dos signos alfabéticos. Trat~-se

e um alfabet~ ms~nto na memória que não conhece ou pouco conhe-ce a grafia. A identificação imediata se dá com os sons da ll'ngua

" . I" d e, nesse:aso: "ornve po e começar pela letra O, assim como o K introduz o verboKaíu . Em outros exemplos, o K pode ser "kaboclo" "kal dário" "k

d ""X " d ' en ano, uan-o. oveu po e começar com X, bem como "Yluminados" pode garantir

a presença da difícil letra Y.

CO,ntudo, quando o poeta mantém maiores ligações com o mundolet:ad? e .n:o ~onsegue uma palavra com as letras mais difíceis, ternatiza apropna dinâmica do alfabeto e suas complexidades No ABC d h .J 'C L . . ,o cac aceiro,ose osta eite assim resolve sua peleja com o K e o Y:

"K- K a nova fonéticaDispensou do alfabetoEntre as 25 letrasEla perdeu seu afetoNão dá pra este ABCMas fiz o verso completo.

Y- Y é outra letraQue perdeu a sua vezPorque nosso alfabetoResta agora 23Pela modificaçãoQue a nossa fonética fez."

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tempo que transborda a ordem do próprio homenageado; no caso em ques-tão, o alfabeto. Antes do A, portanto, pode haver uma apresentação:

"Prezado leitor amigoVou agora descreverEm regra de sete linhasA forma de um ABCSobre algumas creaturasDe qualidade escura."(Enoque Pinheiro, ABC dos negros)

Depois do Z o autor continua a sua história:"Leitor eu sou da ParaíbaUm seu filho ou um seu membroCreia nasci no sertãoEu sei afirmo, me lembroNasci lá em vinte e seteA dezoito de dezembro."(Gerson Lucena, ABC da Justiça)

Não importa apenas o que é falado, e sim como está sendo faladonarrado, reci,tado, declamado ou mesmo registrado nos folhetos de cordel:Nesse caso, e o formato que indica mais visivelmente a tensão entre o orale o ~scrito. Os ~BCs compóe~ um formato significativo para a construçãodas mterpretaçoes expostas ate aqui. Nestas formas em que as letras ganhamforça separadamente, observo as pelejas travadas entre oralidade e escriturana experiência de certos indivíduos.

, . A c~tura oral presente em tais cordéis deposita crença na ordemalfabética. Ainda que a maioria dos "cordelistas" seja letrada, tais ABCs an-coram-se ~o tempo d~ palavra falada, estabelecendo uma ambígua relação~om a escnta - uma hgação que exalta as letras-, e ao mesmo tempo fazemISSO em nome, também, da oralidade.

. Em certo sentido, somente um olhar enredado na oralidade apre-sentana o alfabeto de maneira tão performática. No caso dos ABC -. •. ali s, a expenencia or embra que as palavras são formadas por letras e que tais signospossuem um lugar onde a ordem impera. Detalhes não muito visíveis parao que vivem da escrita.

Na aventura de pensar o alfabeto a partir dessas vivências na orali-dad~, u_mapequena frase do texto de Emile Cazade e Charles Thomas, sobrea naçao do alfabeto latino, ecoou com precisão dentro da pesquisa dos

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I\Cs da oral idade: "saber Leré deixar de ver a Letra... ,~ Pensando de m douivcrso, eu poderia dizer que a maior intimidade com o mundo oral leva a

11111.1 apreciação dos tais signos na solidão de serem letras.Os signos mortos ganham vida no jogo de desafiar o próprio ign .

N -stas pelejas, as letras são despertas numa reverência que ressalta a ordem,dl.\béti a como adversária do poeta. Ao mesmo tempo, esta se coloca comuma espécie de objeto do desejo, negado e reafirmado pela oralidade dosversos de cordel na forma dos ABCs. São também amostras de como e sIlpO de oralidade desafia o que há de mais ordenado e supremo no mundo'\ 'rito _ o alfabeto. Nos ABCs do sertão, a memória oral cria moviment squ . brincam com o mundo escrito.

Em alguns casos, o poeta não se contenta em apresentar a letra em11 -sraque somente na primeira palavra, mas em quase todas as palavras qu .11I i iam o verso da estrofe. Exemplo disso é o que faz Gerson Lucena no

B da [usciça:"

"A- Assassino arruaceiroAluno da jogatinaAmigo das coisas alheiasAssalrador de esquinaOu tu deixa essa má vidaOu a justa te ensina'.

Segundo Câmara Cascudo,? existem registros dos abecedário de, I .o ano de 393, quando Santo Agostinho compôs uma poesia contra a dinaslias eguindo este gênero. Tal poesia ficou conhecida Psalmus Abecedarius.No Brasil, o primeiro de que se tem notícia é o ABC da batalha de Ituzain 'li

-dara de 1827.6A idéia de ressaltar a matriz do mundo escrito demonstra o p tI'l

qu estes primeiros textos queriam impor. É antes de tudo uma batalha-rure os que detinham as letras e os outros. Possivelmente, é também urnar, rrna de reafirmar a novidade da escrita para os muitos "ignorantes" qu .habitavam estas terras e que somente tiveram acesso aos respectivo textosatravés da leitura oral. Convém lembrar que também a hegemonia d rnundo e crito nâo se deu de forma pacífica. Nos escritos atribuído a 6 rat .s,se loca o seguinte incômodo: "a escrita destrói a memória ... e enjraq//cc{' I1

menie" .7Mesmo considerando que o próprio Sócrates pos a er um, ri.\~.\O

lit .rária, tive se ele a oportunidade de conhecer o sertão do catá irin fi ,\1

~.llisreito com a frustração de sua inferência. Até os grupos c p 'sso,,, ~lu .

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depositam fé no mundo escrito, confirmam a força da memória pelo mila-gre da oral idade. Patativa do Assaré é um dos representantes mais legítimosdessa crença. Como salienta Gilmar de Carvalho, "a escrita de Patativa nâofoi capaz de trair sua voz". 8

Em um dos desafios que Patativa fez ao seu neto para comporglosas," os dois chegaram na hora e lugar marcados. "Geraldo chegou com suacaderneta de anotações, Patativa, arrogante, exibia, como único aparato, suamemória" .10 Esse é o instrumento que o torna diferente dos outros. Soletra omundo com o olhar de quem enxerga não só as letras, mas também o movi-mento dos bichos, das plantas, dos rios, das pessoas e da voz. Patativa brincacom o alfabeto em face dos temas que muitos só conhecem de leituras quenáo enxergam mais as letras. Entre muitos alfabetos, elaborou um sobre aseca no Nordeste. Intitula-se o ABC do Nordeste Flagelado:

"A- ai como é duro vivernos estados do Nordestequando o nosso pai celestenão manda a nuvem chover,é bem triste a gente verfindar o mês de janeirodepois findar fevereiroe março também passarsem o inverno começarno Nordeste brasileiro.

B- berra o gado impacientereclamando o verde pasto,desafigurado e arrastocom o olhar de penitenteo fazendeiro descrenteum jeito não pode daro sol ardente a queimare o vento forte soprando,a gente fica pensandoque o mundo vai se acabar.

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- caminhando pelo espaçoorno os trapos de um lençol

pras bandas do pôr-do-solas nuvens vão em fracasso;aqui e ali um pedaçovagando ... sempre vagandoquem estiver reparandofaz logo a comparaçãode umas pastas de algodãoque o vento vai carregando.

0- de manhã, bem de manhã,vem da montanha um agourode gargalhada e de choroda feia e triste cauãum bando de ribançapelo espaço a se perderpra de fome não morrervai atrás de outro lugare ali só há de voltarum dia quando chover.

E- em tudo se vê mudançaquem repara vê atéque o camaleão que éverde da cor de esperançacom o flagelo que avançamuda logo de feiçãoo verde camaleãoperde a sua cor bonitafica de forma esquisitaque causa admiração.

F- foge o prazer da florestao bonito sabiáquando o flagelo não hácantando se manifestadurante o inverno faz festagorgeando por esportemas não chovendo é sem sortefica sem graça e caladoo cantor mais afamadodos passarinhos do norte.

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G- geme de dor, se aquebrantae dali desapareceo sabiá só pareceque com a seca se encantase outro pássaro cantao coitado não responde;ele vai não sei pra onde,pois quando o inverno não vemcom o desgosto que temo pobrezinho se esconde.

H- horroroso, feio e maude lá dentro das grotasmanda suas feias notaso tristonho bacuraucanta o joão corta-pauo seu poema numérioé muito triste o mistériode uma seca no sertãoa gente tem impressãoque o mundo é um cemitério.

1- ilusão, prazer, amora gente sente fugirtudo parece carpirtristeza, saudade e dornas horas de mais calorse escuta pra todo ladoo toque desafinadoda gaita da siriemaacompanhando o cinemano Nordeste Aagelado.

J- já falei sobre a desgraçados animais do Nordeste;com a seca vem a pestee a vida fica sem graça.Quanto mais dias se passamais a dor se multiplicaa mata que já foi rica,de tristeza geme e chorapreciso dizer agorao povo como é que fica.

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Ol,H-PERIOOi

L· Iam nta desconsoladoo irado camponêsp rque tanto esforço fezma não lucrou seu roçadonum banco velho sentado

Ihando o filho inocente, a mulher bem impaciente

zinha lá no fogãoderradeiro feijão

que ele guardou pra semente.

M- minha boa companheiradiz ele, vamos embora,e depressa, sem demoravende a sua cartucheiravende a faca, a roçadeiramachado, foice e facãovende a pobre habitaçãogalinha, cabra e suínoe viajam sem destinoem cima de um caminhão.

N- naquele duro transportesai aquela pobre genteagüentando pacienteo rigor da triste sortelevando a saudade fortede seu povo e seu lugarsem nem um outro falarvão pensando em sua vidadeixando a terra queridapara nunca mais voltar.

0- outro tem opiniãode deixar mãe, deixar paiporém para o sul não vaiprocura outra direçãovai bater no Maranhãoond nunca falta invernooutro orn grande constemodeixar o casebre e a mobilhae I va ua famíliapra n truçâo d g v rn .

TRAJ TOS R vi t d HI t6rl d U C. v . n /10.2007 "

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p- p r m lá na on truçâoo eu viver é grosseirotrabalhando o dia inteirode picareta na mãopra sua manutençãochegando o dia marcadoem vez do seu ordenadodentro da repartiçãorecebe triste raçãofarinha e feijão furado.

Q- quem quer ver o sofrimento,quando há seca no sertãoprocuram uma construçãoe entra no fornecimentopois, dentro dele, o alimentoque o pobre tem a comer,a barriga pode encherporém falta a substânciae com esta circunstânciacomeça o povo a morrer.

R- raquítica, pálida e doente,fica a pobre criaturae a boca na sepulturavai engolindo o inocentemeu Jesus! Meu pai Clementeque da humanidade é donodesça de seu alto tronoda sua corte celestee venha ver seu Nordestecomo ele está no abandono.

s- sofre o casado e o solteirosofre o velho, sofre o moço,não tem janta, nem almoçonão tem roupa nem dinheirotambém sofre o fazendeiroque de rico perde o nomeo desgosto lhe consomevendo o urubu esfomeadopuxando a pele do gadoque morreu de sede e fome.

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T iud ofr não resi teSI [ard tão pesado

n N rde te flageladoem tudo a tristeza existema a tri reza mais tristeque faz tudo entristeceré a mãe chorosa a gemerlágrimas dos olhos correndovendo seu filho dizendo:mamãe eu quero comer.

u- um é ver, outro é contarquem for reparar de pertoaquele mundo desertodá vontade de chorarali só fica a teimaro juazeiro copadoo resto é tudo peladoda chapada ao tabuleiroonde o famoso vaqueirocantava tangendo o gado.

v- vivendo em grande maltratoa abelha zumbindo vôasem direção, sempre atôa,

por causa do desacatoa procura de um regatode um jardim ou de um poemavagando constantementesem encontrar a inocenteuma flor para pousar.

X. xexéu, pássaro que morana grande árvore copadavendo a floresta arrasadabate as asas, vai emborasomente o saguim demorapulando a fazer caretana mata tingida e pretatudo é aflíção e prantosó por milagre de um santose encontra com a borboleta.

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Z- zangado contra o sertãodardeja o sol inclementecada dia mais ardentetostando a face do chãoe mostrando compaixãolá do infinito estreladopura, limpa, sem pecadode noite a lua derramaum banho de luz no dramano Nordeste flagelado.

Posso dizer que canteiAquilo que obeserveiTenho certeza que deiAprovada relaçãoTudo é tristeza e amargura,Indigência e desventuraVeja leitor, quanto é duraA seca no meu sertão.

A lembrança do Pai Gomes me fez traçar este olhar sobre os ABCsdo sertão. A fé nas letras não inibe a crença na força que produz os encantosda voz. Pai Gomes e Patativa proclamam a vida da memória. As histórias domundo escrito servem de mote para suas novelas, e a as tramas e tramóias davida geram boas histórias para serem contadas, ouvidas e até escritas.

A devoção que esses indivíduos estabelecem com o mundo letradose conecta ao entendimento de que essa é uma dimensão que gera poder. Aligação com o letramento se dá mesmo que o indivíduo seja um iletrado. Osindivíduos que se localizam entre o oral e o escrito constroem uma consciên-cia própria em face da legitimidade do alfabeto. Mas a força da memória sópode se materializar através da voz porque é nela que a potência do improvi-o se manifesta, afinal, viver é uma arte e improvisar faz parte.

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NOTAS

d d defendida no Programa de • [LIdos Pós {;I,Ihtl' texto é parte da tese did outora .0 d 2003 com o título Engenho da Mcmói ia:dli,tdos da PU ISP defendi a em maio e1l,llr,uivas da seca no eará. h b t nce na tentativa de explicar ,Iilld,lVoltamos à idéia de Paul Zumt o~s~or:s~~~~ ~arr:~adição oral. Em um outro (CXIO,

melhor e se conceito fundament . _ recepçã o coincidem no ('mpo,I I rca que "quando a comul11caçao e a . I) I..urnr ror exp I _ " (ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. ao au o:

remos uma SI[LIaçaode performaJlce.Companhia das Letras, 1993, p. 19')1 Alf: b I' ROMANO Ruggiero «( rg.).CAZADE Emile' THOMAS, Char es. a eto. n. , 1987'.:lIâclopécha Eina~di. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa do Moeda, v. I I, , p.

g1' TEL, Raymond. La litterature populaire bresilienne. Poitiers: entre de Re hCI-

he Latino-americaines, 1993. 301. .. d fi l [ b ílei 6 ed Belo H rizontc:'ASCUDO, Luís da Câmara. Dicindrio o o c ore rast etro. . .

ltatiaia; âo Paulo: Ed. USP, 1998, p. 38.h Idem. . I . - da palavra São Paulo:

ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a recno oglzaçao .

Papirus, 1998, P: 94. . d d . In: ASSARÉ Patativa do: ALEARVALHO, Gilmar de. Bnncan o e poesia.. I' S- Paulo' Ter .cir 1AR, Geraldo Gonçalves de. Ao pé da mesa: motes e g osas. ao . '

Margem; Fortaleza: Secult-CE, P: 14. . de improviso estrofes que seguem'I Dois poetas se des~am mutl~me2elara verse~~~um mote ao outro, que deve imc

uma métrica definida por am ~s. d a um ~ug te com o mote sugerido, que scl.Ídiatamente compor sua glosa nman o merncarnena última frase da estrofe.

10 ARVALHO, op. cit., p. 16

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