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A história não fala por si só. Para que fale, é preciso que a façamos falar. Os Anos JK, uma Trajetória Política, de Sílvio Tendler, segue o percurso políti- co de Juscelino Kubitsthek, através do qual desponta um período recente da vi- da política brasileira. Quais os mecanis- mos que Sílvio Tendler aciona para fazer falar este período da história do Brasil? Apontarei para alguns desses mecanismos que me parecem básicos para a construção da história nesse filme. O filme parte da premissa de que o re- gime político atualmente vigente no Bra- sil é ruim. O que ele não precisa demons- trar, pois dirige-se implicitamente a um público que pensa dessa forma. Bastarão algumas imagens grotescas e sinistras de presidentes militares (por exemplo, a de Costa e Silva com Castelo Branco) para confirmar esse dado. Em oposição ao atual regime, dado co- mo negativo, propõem-se o governo e a figura de Juscelino como positivos. De que forma isto se dá? Um bloco de seqüências parece dese- nhar a imagem que Os Anos JK pretende transmitir do presidente. Começa com a revolta de Aragarças, a primeira crise mi- litar do governo JK, e vai até a primeira seqüência de Brasília. No caso de Aragar- ças, JK defronta-se com a extrema direita: ele opta pela anistia; sua prudência e ha- bilidade evitam crise maior, a revolta é neutralizada e absorvida. — A seguir, o então presidente da UNE conta seu en- contro com JK: JK sabe demover o estu- dante do movimento que a UNE estava desenvolvendo, JK esvazia a crise estu- dantil em nome da nação. — Um líder sindical conta que JK fez promessas aos operários de São Paulo e as cumpriu, mas os operários perderam na justiça; falando NOVOS ESTUDOS N.º 1

Os Anos Jk

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A história não fala por si só. Para que fale, é preciso que a façamos

falar. Os Anos JK, uma Trajetória Política,

de Sílvio Tendler, segue o percurso políti-co de Juscelino Kubitsthek, através do qual desponta um período recente da vi-da política brasileira. Quais os mecanis-mos que Sílvio Tendler aciona para fazer falar este período da história do Brasil? Apontarei para alguns desses mecanismos que me parecem básicos para a construção da história nesse filme.

O filme parte da premissa de que o re-gime político atualmente vigente no Bra-sil é ruim. O que ele não precisa demons-trar, pois dirige-se implicitamente a um público que pensa dessa forma. Bastarão algumas imagens grotescas e sinistras de presidentes militares (por exemplo, a de Costa e Silva com Castelo Branco) para confirmar esse dado.

Em oposição ao atual regime, dado co-mo negativo, propõem-se o governo e a figura de Juscelino como positivos. De que forma isto se dá?

Um bloco de seqüências parece dese-nhar a imagem que Os Anos JK pretende transmitir do presidente. Começa com a revolta de Aragarças, a primeira crise mi-litar do governo JK, e vai até a primeira seqüência de Brasília. No caso de Aragar-ças, JK defronta-se com a extrema direita: ele opta pela anistia; sua prudência e ha-bilidade evitam crise maior, a revolta é neutralizada e absorvida. — A seguir, o então presidente da UNE conta seu en-contro com JK: JK sabe demover o estu-dante do movimento que a UNE estava desenvolvendo, JK esvazia a crise estu-dantil em nome da nação. — Um líder sindical conta que JK fez promessas aos operários de São Paulo e as cumpriu, mas os operários perderam na justiça; falando

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serenamente, JK evitou que o movimento operário se radicalizasse. — O advogado de Luís Carlos Prestes explica como o líder comunista saiu da cadeia e ficou em liber-dade durante todo o governo JK, que ele qualifica de liberal. — Mário Martins, ex-deputado da UDN, conta como JK pediu ao Congresso autorização para processar Lacerda, foi derrotado, e JK respeitou o Congresso.

Esta série de situações e relatos selecio-nados pelo filme valorizam a imagem de um presidente liberal, que sabia lidar com os vários setores da sociedade e as vá-rias forças em presença no jogo político. De um presidente que absorve e neutrali-za os conflitos dentro da legalidade, in-clusive quando é hostilizado. Fica acima dos interesses particulares, sabe harmoni-zar contradições e antagonismos. Funcio-na como um regente da Nação. É essa imagem positiva de Juscelino que o filme constrói.

Mas seria ingênuo construir uma ima-gem totalmente positiva. Isso poderia fa-zer de JK um herói, o que acabaria tendo um efeito contraproducente. Assim, o fil-me procura mostrar também, pelo me-nos, as críticas que já são feitas a Kubits-chek. JK será, portanto, alvo de críticas: ele abre o País ao capital estrangeiro, não altera a estrutura agrária etc. Mas o filme toma o cuidado de fazer absorver essas crí-ticas de modo a não prejudicar o caráter positivo da imagem do presidente. As crí-ticas são formuladas com graça irônica. Comentando a implantação da indústria automobilística diz-se, por exemplo, que JK confunde a Volkswagen do Brasil com a Volkswagen no Brasil.

Um tom de amável irreverência já tinha sido usado quando se comentavam as qualidades mundanas de Juscelino: dan-çava bem e era apelidado "pé-de-valsa". No momento em que o locutor faz esse comentário, a imagem mostra Juscelino dançando mas esbarrando no casal atrás de si, brincadeirinha que cria uma relação descontraída e prepara o clima para que sejam feitas críticas, amáveis, a que não se dará maior peso.

A continuidade histórica

Como se inscreve essa imagem positiva do regente da Nação dentro da História? Tenho a impressão de que o filme monta dois mecanismos básicos para organizar a História e situar JK dentro dela. Um deles consiste em criar uma continuidade histó-

rica de que Juscelino Kubitschek é um elo, em referir-se a uma tradição histórica, positiva para a Nação, de que o presidente é o continuador.

A pedra de toque dessa tradição é Getúlio Vargas. Inicialmente qualificado de caudilho e ditador, Vargas sai da vida e do filme como personalidade positiva. O filme faz, então, uma associação entre Vargas e Kubitschek. A carreira de Jusce-lino nasce nos anos em que impera Getú-lio e se desenvolve a partir daí como um processo contínuo. Não é apenas no início que a trajetória de JK encontra-se com a de GV. É também no final: o caixão de Juscelino é carregado pelo povo, como o fora o de Getúlio. E mais: o suicídio de Vargas ecoa na eventualidade de um sui-cídio de Kubitschek que seus amigos sou-beram evitar "porque a Nação não supor-taria mais um cadáver". A tese do suicí-dio, o locutor do filme não a encampa, mas a montagem deixa ao depoente Má-rio Martins todo o tempo para desenvolvê-la.

A linha de continuidade, porém, co-meçara bem antes, com os bandeirantes: Juscelino retoma o desbravamento inicia-do três séculos antes — comenta o locu-tor, não sem alguma ironia, mas ironia que não chega a desmentir a informação. Essa continuidade "bandeirantes-GV-JK" — de caráter positivo — prossegue com João Goulart, que tem a coragem de tocar em problemas que JK não ousara abor-dar. Essa linha positiva (o "sistema de Vargas", "os de dentro", para retomar expressões de Skidmore, que devem ter inspirado, em parte, os autores do filme) sofre interrupções: o filme tratará negati-vamente "os de fora" quando chegam ao poder: o largo sorriso de Café Filho (quase um primeiro plano) logo após o suicídio de Vargas, em contraste com a comoção nacional, dá desse outro personagem a imagem de um oportunista maquiavélico. O "entreato" Jânio Quadros é apresentado de forma quase (?) grotesca.

A continuidade individual

Ao lado da linha de continuidade his-tórica, encontramos outra: a individual.

Biografias de homens políticos não raro apresentam a vida política do biografado como a realização de uma vocação pessoal: o filme de Jorge Ileli, por exemplo, detecta na criança Getúlio Vargas os sinais do que viria a ser o chefe de Estado.

Os Anos JK não segue essa linha. Meca-

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nismos extrapessoais são levados em con-sideração, quando se diz, por exemplo, que é a máquina política mineira que leva Juscelino à presidência. De qualquer mo-do, aspectos psicológicos de Juscelino são ressaltados: ele é dinâmico, entusiasta, próximo ao povo, cordial etc. E há nele algo como uma vocação, uma linha de força individual: essa trajetória, que vai, sem pausas, do adolescente telegrafista ao presidente da República. As suposições que O locutor faz: em Diamantina, talvez Juscelino já sonhasse com Pampulha, em Belo Horizonte talvez Kubitschek já so-nhasse com Brasília.

O gesto político aparece então como a concretização de um sonho anterior. Tra-jetória individual e trajetória nacional não se contradizem. O locutor — sempre pronto a nos indicar como devemos en-tender as coisas — nos dá a moral da his-tória ao citar uma frase atribuída a Jusceli-no: "Os indivíduos, como as Nações, fazem destino". Com JK, destino individual e destino nacional fundem-se harmoniosamente.

O sistema de ecos

Outro mecanismo a que recorre o filme é o que se poderia chamar de sistema de ecos.

Já falamos de alguns desses ecos: o sui-cídio e o caixão de Getúlio ecoam no hi-potético suicídio e no caixão de Juscelino. São ecos positivos.

Em 1964, a linha de continuidade é in-terrompida, entra-se na fase negativa. O filme dispõe elementos em ecos positivos (JK) e ecos negativos (ditadura militar). Um primeiro elemento é evidentemente o militar, positivo na figura legalista e na-cionalista do General Lott, negativo nas figuras dos ditadores pós-64.

Outras situações organizam-se nessa forma de paralelismo. Por exemplo: Ku-bitschek pede ao Congresso autorização para processar um deputado. Autorização negada, Governo derrotado, JK respeita a decisão. O Governo militar quer processar um deputado. O Governo é derrotado, o Congresso é fechado.

Ao diálogo de JK com o presidente da UNE, o filme responde com o estudante

morto na ditadura militar. À anistia con-cedida aos rebeldes de Aragarças, corres-ponde a não aceitação, pelos militares, da anistia concedida por Goulart aos mari-nheiros, e as "punições" infligidas pelos governos militares inclusive ao próprio Kubitschek. Não é necessário que cada se-qüência tenha seu eco para que este me-canismo de paralelismo comparativo fun-cione como princípio de organização da História. Bastam algumas.

A estrutura de algumas frases da locu-ção também nos propõe uma compreen-são da História pelo paralelismo. Por-exemplo quando o locutor fala de "um 11 de novembro às avessas": a metáfora refere-se ao 11 de novembro de Lott — que assegura a legalidade e a posse de JK (ato positivo) — para designar o ato nega-tivo de impedir a tomada de posse de Goulart. Ou quando diz que os tanques substituíram os palanques na Central: o golpe (ato negativo) é designado através de uma referência ao comício de 13 de março (ato positivo). Ou ainda ao afirmar que Juscelino Kubitschek personificou o "oposto" do que Jânio Quadros expres-sou, a "inviabilidade da democracia". A história do filme é organizada em ecos positivos e ecos negativos.

O que me parece que sustenta a cons-trução do filme tal como a descrevo é que a História fornece lições e devemos apren-der com elas. E a História, de fato, forne-ce lições, modelos políticos etc., mas ela só fornece as lições e os modelos que se puserem previamente nela.

Na medida em que os autores de Os Anos JK elegeram Juscelino como mode-lo, mesmo com ressalvas, eles constroem a História de modo a que ela lhes forneça, e a seu público, o modelo que eles nela pu-seram. A História devolve o que foi inves-tido nela. Poderíamos estender a questão e perguntar se seriam esses mecanismos — o do paralelismo, o da construção em ecos etc. — uma forma de elaborar a His-tória do Brasil no cinema, uma vez que encontramos procedimentos muito pare-cidos em filmes como Rebelião em Vila Rica, dos irmãos Santos Pereira, Terra em Transe, de Glauber Rocha, ou Os Herdei-ros, de Carlos Diegues.

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Imagem e locução

Nesse processo, as imagens, catadas no acervo das imagens cinematográficas do passado, têm uma função legitimadora, dão chancela de autenticidade ao modelo escolhido. As imagens cinematográficas são cercadas por toda uma mitologia que as qualifica como documento, reflexo, ex-pressão do real. Ainda mais no caso brasi-leiro, em que poucas imagens sobrevive-ram à destruição do acervo cinematográfi-co, e em que se julga que não conhece-mos a História, que a História é surripia-da pela educação, pela propaganda e pela ideologia oficiais. O simples resgate de imagens-documento do passado parece ser o próprio reerguimento da História so-terrada que falaria por si só.

As imagens, de fato, falam muito pou- co. A potencialidade que elas têm de fala é enorme, mas sempre tão dispersa e tão ambígua, que as imagens nunca apresen-tariam o discurso da História se não fos-sem rigorosamente domadas e enquadra-das por uma série de mecanismos (sele-ção, montagem, música, locução), meca-nismos que as levam a dizer o que se quer que digam.

Os Anos JK, como muitos outros filmes históricos, é loquaz. O texto (depoimen- tos e locução) tem como função dirigir a imagem para a significação pretendida, limpá-la de outras interpretações possí-veis, tirá-la de sua ambigüidade. O texto, nessa concepção de filme, é a muleta da imagem. Os Anos JK oferece inúmeros exemplos que comprovam essa afirmação. Peguemos o caso de Aragarças: uma série de fatos é-nos comunicada com o acom-panhamento de sua significação: revolta, anistia, chegada ao aeroporto, o sentido da anistia. Toda a amplitude dos fatos e sua significação nos são transmitidas pela locução, sem a qual não teríamos idéia "do que aconteceu".

As imagens ilustram as afirmações da locução e nos dão uma ambiência, uns rostos, umas roupas, uns olhares, que em si não significam nem X nem Y. Mesmo nessa ambiência, a locução sente necessi-dade de intervir para canalizar-lhe a signi-ficação e expulsar outras não pertinentes à "lição" da História. Quando vemos ho-

mens, num aeroporto, com bandeiras brasileiras nas costas, a locução nos infor-ma que estamos vendo revoltosos de volta ao Rio, ''retoricamente" envoltos em bandeiras. A rigor, não era preciso dizer que estavam envoltos em bandeiras, já que o estamos vendo. A redundância imagem/locução tem a finalidade de iso-lar determinado elemento, canalizar o olhar e a atenção do espectador sobre ele, e desviá-lo de outros possíveis elementos.

Não só isolar o elemento, qualificá-lo também: o locutor especifica: "retorica-mente". Há — por parte da locução — como que o temor de que se estabeleça entre o espectador e as imagens uma rela-ção não prevista. E a nossa tendência é aceitar essas significações quase como ex-pressões espontâneas das imagens.

Às vezes, pode ocorrer que o especta-dor alcance um relacionamento mais rico com as imagens, subvertendo o filme, isto é, escapando às significações, especifica-ções, seleções etc., criadas pela locução e pela montagem. Tal olhar, que os meca-nismos de significação do filme rejeitam ou não destacam, poderá ser valorizado por um espectador que o terá detectado por conta própria.

Ou seja, o espectador, acima e além da construção do filme, poderá encontrar outras leituras, ou mesmo entrar no cam-po de ambigüidade da imagem.

O olhar de Getúlio

Outro caso: Getúlio Vargas discursa, o microfone é alto, ou o ângulo da câmera dá a impressão de que o microfone é tão ou até mais alto que o orador, o qual qua-se desaparece atrás dele; Getúlio está cir-cundado por pessoas que se comprimem, formando em volta dele uma espécie de parede compacta de roupas e gente. Num determinado momento, Getúlio desvia o olho do texto que vinha lendo e dirige um olhar tenso em direção à câmera, co-mo que por baixo do microfone. A ima-gem termina com esse olhar. A situação de Vargas é periclitante, ele está prestes a perder o poder, é o que nos informa a lo-cução. O locutor não faz nenhuma refe-rência ao olhar do personagem. Assim mesmo, a significação desse olhar está

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OS ANOS J.K: COMO FALA A HISTÓRIA

quase totalmente determinada pela signi-ficação global da seqüência em que foi montado. De fato, nessa posição, o que lemos é um Getúlio cercado, encurralado no palanque, engolido pela situação, e seu olhar é interpretado como o de uma pessoa que se sente acuada. O que tam-bém pode ter sido reforçado pelo corte. A imagem original talvez se prolongasse após o olhar, diluindo-se no conjunto do plano; mas o corte logo após o olhar pode ter lhe dado um realce maior. Aqui, a montagem atribui à imagem uma função metafórica. Esse olhar, que pode ter tido mil causas, desde a tensão provocada pela situação política até um ruído ou uma movimentação inesperada perto do pa-lanque, recebe uma significação à qual o espectador não consegue escapar: Getúlio acuado, em perigo político; estar espre-mido no palanque vale por estar espremi-do pela situação.

O sorriso já citado de Café Filho rece-beu um tratamento semelhante.

Os temas do poder

O material de base de Os Anos JK era provavelmente tedioso. São os Primo Car-bonari, os Canal 100 da época. No entan-to, o filme não é nem um pouco tedioso. É que o material — fornecido por velhos cinejornais que nos apresentavam discur-sos intermináveis, banquetes, assinaturas de documentos, mundanismos — foi re-trabalhado pelos mecanismos que apontei e adquiriu novas significações. Filmes co-mo Os Anos JK são como que a redenção dos aborrecidos cinejornais.

Mas eis um novo problema. Qual o ma-terial de base que os cinejornais oferecem a um filme como Os Anos JK? Um histo-riador cunhou uma expressão feliz para designar o cinejornal brasileiro e toda uma modalidade de filmes documentá-rios: a "crônica dos vencedores". Esse ci-nema só mostra autoridades, políticos, militares, atos oficiais, alta sociedade em exibições etc. Pela sua forma de produ-ção, o cinejornal brasileiro não tem como escapar: ou produção estatal (no caso dos jornais do DIP ou da Agência Nacional), ou algo muito próximo da matéria paga. É de perguntar que marcas deixa o cine-

jornal nos filmes de montagem históricos, já que os autores não têm outro material documentário a que recorrer. Dificilmen-te se poderá mostrar imagens que não se-jam as das elites ou que não sejam as do ponto de vista das elites.

Em que medida as características desse material já não operam uma seleção te-mática? O que mostrar da vida operária nesses anos JK, se os operários nunca fo-ram tema do material cinematográfico usado pelo filme? Que fatos eventual-mente importantes tiveram que ser elimi-nados ou só brevemente referidos, se não há filmes que os tenham documentado? Como escapar às implicações ideológicas das imagens originais, que são imagens tomadas da ótica do poder?

A quase totalidade dos filmes de mon-tagem históricos feitos no Brasil gira em torno de chefes de Estado: os três sobre GV, o JK, brevemente JQ, filme ainda inconcluso. Por fazerem biografias de ho-mens políticos, por abordarem a política ao nível da cúpula, por aderirem bastante ou totalmente às figuras abordadas, os fil-mes sobre GV e JK circulam na mesma es-fera de seu material de base, mesmo que elaborem significações diferentes deste: a política profissional, a cúpula do poder. Por esse motivo — e, acredito, só por esse motivo — tais filmes são realizáveis.

Outros temas, como sejam o movimen-to operário, a repressão e o medo durante o Estado Novo ou o Governo Médici, a vi-da cotidiana etc., não poderiam ser trata-dos através do sistema de filmes de mon-tagem com material de arquivo. A recu-peração, a revalorização, a nova significa-ção das imagens cinematográficas ligadas à História do Brasil acabam operando pre-dominantemente, senão totalmente, no âmbito do poder. Quando se louva tão insistentemente a recuperação das ima-gens históricas brasileiras, o que de fato se louva é a recuperação das imagens do po-der, mesmo se tratadas com ironia.

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