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7/23/2019 Os Baniwa e a Escola Educao Indgena Rbe
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Os Baniwa e a escola
Revista Brasileira de Educao 5
Os Baniwa e a escola:sentidos e repercusses
Valria Augusta Cerqueira de Medeiros WeigelUniversidade Federal do Amazonas, Programa de Ps-Graduao em Educao
Da problemtica e seu estudo
Por que um povo indgena se mobiliza e empreen-
de lutas por escola? Quais sentidos e repercusses a
educao escolar tem tido para o povo Baniwa? Esse
povo habitante milenar da bacia do rio Iana, afluente
da margem direita do rio Negro, no noroeste do esta-
do do Amazonas.
Essas perguntas motivaram a realizao de estu-
dos sobre a escola na rea Baniwa. Neste texto apre-
sento alguns resultados polticos e socioculturais des-
ses estudos, mostrando os Baniwa em suas relaes
com os outros atores sociais existentes na regio do
Alto Rio Negro, especificando as relaes concernen-tes produo de diferentes formas de educao es-
colar (em sua essncia, significados e repercusses),
ligadas a diferentes interesses e sentidos, representa-
es de mundo e projetos polticos.
Estudos recentes revelam um processo acelera-
do de transformao das culturas orais na regio do
Alto Rio Negro (Oliveira, 1981, 1992; Ribeiro, 1970;
Wright, 1981, 1994, entre outros). Tal processo de-
terminado por relaes polticas, relaes de fora e
condies materiais, no qual os segmentos indgenas,
entre eles os Baniwa, operam mudanas em: sua
cosmologia, suas concepes mticas e estticas, sua
magia, seus ritos, suas bases materiais e lnguas, apro-
priando-se mas tambm recriando e reelaborando,
de acordo com critrios e paradigmas de suas pr-
prias culturas dos elementos da cultura dominante.
Esse modo de entender descarta uma concepo pu-
ramente receptora e inativa das culturas indgenas. A
referncia a esse processo feita para destacar a cria-
o de espaos de educao dos Baniwa atravs da
implantao dos colgios salesianos, das escolinhas,
de cursos e mesmo das associaes indgenas.
O estudo de Weigel e Ramos (1991) sobre os in-ternatos salesianos para os ndios do Alto Rio Negro,
implantados na regio de 1915 a 1953, mostrou que a
escola indgena pode ser um espao ambivalente e
contraditrio, em que, tanto do ponto de vista do n-
dio quanto do no-ndio, efeitos antagnicos podem
ser produzidos.
No caso dos internatos, na qualidade de institui-
o da cultura ocidental imposta s populaes ind-
genas, pode-se afirmar que facilitou a difuso de cer-
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tos elementos dessa cultura (como, por exemplo, a
escrita em lngua portuguesa), o que contribuiu para
o fortalecimento da ideologia modernizante, hegem-
nica, na sociedade nacional, ao mesmo tempo em que
colocava esses elementos ao alcance de membros do
grupo indgena, de modo que pudessem transform-
los em instrumentos para suas aes. O estudo mos-
tra que a lngua portuguesa aprendida nos internatos
foi utilizada, em vrios momentos, em suas defesas,
denncias e reivindicaes. Desse modo, a escola,
como todo espao socialmente construdo, um es-
pao em aberto, onde as prticas nele empreendidas
produzem efeitos resultantes de um feixe de relaes
que poderamos denominar de negociaes entre as
foras sociais envolvidas.Para efeito desta investigao, privilegiei os es-
paos educativos que se instituem nas escolas das
comunidades, no colgio religioso e nas associaes
Baniwa. Esses espaos vm sendo povoados por di-
ferentes atores: professores Baniwa e Tukano, catli-
cos e protestantes, religiosos salesianos, padres, mis-
sionrios protestantes das Novas Tribos do Brasil,
funcionrios de rgos pblicos, militares, agentes de
entidades no-governamentais, e os diversos mem-
bros das famlias Baniwa.Nas interpretaes sobre a implantao da edu-
cao escolar na regio do rio Iana, tem sido
enfatizado seu carter de instrumento de imposio
da cultura ocidental, mediando, pela fora das idias
e da pedagogia, a destruio da identidade tnica e a
assimilao do Baniwa sociedade nacional, como
nas afirmaes de Oliveira (1992):
Frente ideolgica de expanso, [...] processo de
catequizao missionria, cuja principal caracterstica foi a
[...] incluso da populao indgena no contexto civilizatrio
regional, atravs do processo de educao formal nas esco-
las. (p. 51)
Esse entendimento focaliza o poder poltico, eco-
nmico e simblico dos agentes promotores da esco-
la, minimiza a atuao e a reao dos prprios ind-
genas e no considera o movimento que engendra
criao/destruio/recriao de significados dentro do
espao escolar. Em contrapartida, preciso avaliar
tambm a posio da escola na hierarquia das rela-
es que tecem as estruturas sociais e culturais, bem
como as transformaes que vo se operando nessas
relaes, redefinindo-se o prprio significado da es-
cola para o povo Baniwa. Em outras palavras, o sen-
tido da escola no tem sido o mesmo, porque as rela-
es vividas pelos Baniwa tambm se transformaram.
A escola Baniwa, ento, configura-se como uma
situao de confronto intercultural, na medida em que
tem sido espao de conflitos entre as culturas, os in-
teresses e o poder dos diferentes atores sociais envol-
vidos. essa natureza conflituosa que modifica o sen-
tido vertical de imposio atribudo educao escolare evidencia seu carter de possibilidade. As possibili-
dades existentes so engendradas por conexes e su-
bordinaes a condicionamentos mais amplos, como
prprio das relaes pedaggicas.
Desse modo, as relaes estabelecidas entre os
atores para tecer a educao dos Baniwa devem ser
entendidas e explicadas no mbito da histria do
povo e contextualizadas com estruturas sociais, eco-
nmicas e culturais da sociedade capitalista com a
qual se estabelecem as relaes interculturais, bemcomo com as estruturas especficas do campo da edu-
cao.
Colocou-se, ento, como questo central desta
pesquisa a anlise dos significados e repercusses que
a educao seja nas escolas introduzidas pelos no-
ndios, seja nos espaos educativos criados pelos pr-
prios indgenas tem produzido na cultura e na vida
dos Baniwa do Alto Rio Negro. Investigar essa ques-
to representou compreender e explicar, entre outros
aspectos, os diferentes projetos educativos que se con-
figuram na diversidade das prticas educativas, o modo
como os processos educativos afirmam a heterogenei-
dade e a homogeneidade desse povo, os resultados dos
processos educativos empreendidos pelos agentes da
cultura ocidental, e a multiplicidade de efeitos e reper-
cusses das prticas educativas heterogneas.
Metodologicamente, a investigao efetivou-se
pela articulao da observao participante com a
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anlise de mbitos sociais que extrapolam o campo
localizado da pesquisa, alm do exame de documen-
tao histrica. A abordagem do povo Baniwa e de
suas formas de educao escolar deu-se como apreen-
so de aes humanas, concebidas, essencialmente,
como a expresso de estados de conscincia, como o
produto de um conjunto de valores e o resultado de
variadas motivaes polticas, econmicas, ideol-
gicas, simblicas e imagticas.
Foram envolvidos os atores sociais articulados
s mltiplas relaes que tecem os processos de edu-
cao dos Baniwa. Num primeiro nvel de aborda-
gem, a nfase foi dada a indivduos, com o intuito de
apreender a heterogeneidade das formas de insero,
de interesses e de projetos constitutivos das suas aes.Num segundo nvel, a nfase foi dada aos atores so-
ciais em movimento, nas diferentes relaes que es-
tabelecem para produzir o campo especfico da edu-
cao escolar Baniwa. Os critrios do domnio da
histria e de pertinncia na estrutura do campo social
especfico da educao escolar Baniwa, ento, foram
usados para identificar os principais atores do drama
escolar Baniwa: o av e a av da comunidade, os pa-
js, o professor ndio, os pais, as mes e os alunos das
escolas Baniwa, os dirigentes das trs associaesBaniwa e os capites das comunidades, os religiosos
catlicos e os missionrios evanglicos.
Os diferentes projetosde educao entre os Baniwa
Examinar a histria da educao formal entre os
Baniwa revela a existncia de projetos de educao
diferentes, ligados a diferentes interesses e vises de
mundo. Podemos distinguir um projeto articulado por
missionrios catlicos e outro (se que se pode deno-
minar de projeto de educao), por missionrios evan-
glicos.
O trabalho educacional de maior repercusso foi
encetado pelos religiosos salesianos. no sentido de
procurar aprofundar e consolidar entre os indgenas a
produo de um estilo de vida e de um imaginrio
adequados aos interesses dos grupos sociais dominan-
tes que o Estado brasileiro acolhe, respalda e apia a
fundao da escola e de um vasto trabalho mission-
rio no Alto Rio Negro, pelos religiosos salesianos, na
segunda dcada do sculo XX. Por outro lado, a ao
missionria foi fundamental para assegurar o dom-
nio do territrio e a ampliao das fronteiras nacionais,
implantando povoados, convencendo os indgenas a
habit-los e desenvolvendo atividades produtivas.
Ningum melhor do que os missionrios para ocupar
a regio do Alto Rio Negro e, com suas aes, con-
trabalanar as aes dos comerciantes, nem sempre
muitopatriticos, e assegurar a permanncia dos in-
dgenas que sempre emigraram do pas, fugindo das
perseguies ou buscando vida melhor.
O ano de 1915 apontado como a data de funda-o do primeiro centro missionrio salesiano, no Alto
Rio Negro. Dom Pedro Massa, o prefeito apostlico
que substituiu Monsenhor Giordano em 1919, deno-
minou esses centros de ncleos de civilizao. Cons-
trudos em locais estrategicamente escolhidos, pela
proximidade das reas com maior densidade popula-
cional, os centros missionrios, imponentes conjun-
tos de grandes prdios, reuniam escola, internato, ofi-
cina, maternidade, ambulatrio, hospital, dispensrio,
igreja, alm da residncia dos religiosos e at, em al-guns casos, estaes meteorolgicas. Ao todo, at o
incio da dcada de 1950, foram instaladas sete gran-
des sedes de misso.
O empreendimento salesiano no rio Iana, j tar-
dio, s comea em 1953. Est claro que os Baniwa
discerniam benefcios que adviriam da ao missio-
nria e, ao mesmo tempo, percebiam que os religio-
sos tambm extrairiam lucros dessa empreitada. Ha-
via vontade e empenho dos indgenas na concretizao
da obra missionria, pois a ao missionria dos
salesianos foi vista como mediadora de desenvolvi-
mento, sendo a principal manifestao a escolaridade
e o domnio da escrita em portugus. Vemos assim
que razes histricas levaram os Baniwa a responde-
rem positivamente convocao dos salesianos para
a efetivao da empresa missionria.
Mesmo sem dominar a lngua portuguesa (mui-
to menos as lnguas indgenas), irmos e irms
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salesianos vieram para efetivar com os indgenas o
projeto educacional de Dom Bosco: constituir obom
cristo e obom cidado. Para isso, instituram em
seus asylos e escolas um sistema educacional (ba-
seado naquele desenvolvido em Turim para os fi-
lhos de lavradores), ministrando o curso primrio
(at a 5 srie), o ensino religioso e a formao para
o trabalho. Dependendo da oficina existente na Mis-
so, os jovens ndios poderiam desenvolver ativida-
des ligadas carpintaria, marcenaria, olearia e
alfaiataria, para meninos; e bordado, artesanato e cor-
te e costura, para meninas. Alm disso, todos os alu-
nos e alunas envolviam-se com agricultura, traba-
lhando nas roas da Misso, na faina necessria
produo agrcola destinada ao consumo. As alunasndias tambm eram responsveis pelo empreendi-
mento das atividades de cozinha, limpeza e lavagem
de roupa do alunado.
Alm de utilizar o brao ndio, os missionrios
tinham para os ndios um projeto civilizador. De acor-
do com seu modelo de civilizao, condenavam a vida
tribal, a habitao em malocas e a economia de auto-
sustentao. Nesse sentido, no apenas atraam os in-
dgenas para a circunvizinhana das Misses, como
tambm trataram de criar aldeias nas proximidades,como fizeram os missionrios do passado.
Como educadores experientes, os salesianos
apostavam na formao das crianas e jovens, por
estarem convencidos de que adultos e idosos j esta-
vam viciados e no responderiam positivamente aos
seus ensinamentos civilizatrios, conforme orienta-
o do mestre Dom Bosco.
O processo para formar o bom cidadonesse con-
texto rionegrino inclua a imposio da lngua portu-
guesa. Mesmo que alguns padres tivessem que apren-
der a lngua indgena da regio onde atuavam, para
serem compreendidos, na escola estudava-se exclusi-
vamente o idioma nacional, sendo ele de uso obriga-
trio nas comunicaes dentro do internato. Alm dis-
so, a lngua configurava-se como uma instituio
fundamental das identidades tribais, sendo, por isso,
incompatvel com o modelo de cidadoque era obje-
tivo formar.
Na rea dos Baniwa, como vimos anteriormente,
o internato salesiano somente foi implantado no in-
cio da dcada de 1950, perodo ps-guerra, quando a
regio do Iana vivia uma fase de grande converso
ao protestantismo. Se, por um lado, foram as relaes
com os Baniwa que levaram ao desaparecimento dos
internatos e ao definhamento do Centro Missionrio,
por outro, podemos distinguir, a partir da dcada de
1970, condies de ordem estrutural, ligadas ao reor-
denamento econmico mundial, s transformaes
ideolgicas dentro da prpria Igreja catlica e cres-
cente politizao de fraes sociais oprimidas, favo-
recida pela aliana de setores intelectualizados da so-
ciedade civil nacional e internacional.
Em meados da dcada de 1970, a escola salesianado Iana tornou-se mista, passando ao controle total
das Filhas de Maria Auxiliadora, as irms salesianas.
Em 1977, a resoluo n 114 do Conselho Estadual
de Educao, publicada no DirioOficialde 27 de
janeiro, aprova o regimento escolar da Unidade Edu-
cacional Dom Pedro Massa, da qual faz parte a pr-
escola e a escola de primeiro grau Nossa Senhora de
Assuno, no rio Iana, funcionando sob o controle e
a fiscalizao da Secretaria Estadual de Educao do
Estado do Amazonas. Encerrou-se, ento, a fase dosasyloseescolas profissionalizantes. Restaram daquela
poca apenas os grandes prdios.
Com a extino dos internatos, os missionrios
salesianos foram levados a pensar em outra estrat-
gia para a educao escolar que consideravam neces-
srio ministrar s crianas ndias. Desse modo, na
dcada de 1970, Irm Teresa e Padre Carlos criaram
escolinhasnas vrias comunidades catlicas, desti-
nadas alfabetizao em lngua portuguesa e ensino
das primeiras contas. Semelhantes s casas de mora-
dia das famlias, essas antigas escolas so constru-
das de taipa, cobertas de palha caran e possuem dois
ou trs cmodos. Para o funcionamento das escolas,
Irm Teresa contou com os ex-alunos do Colgio de
Assuno, que, tendo concludo a quinta srie, passa-
ram a atuar como professores.
Na dcada de 1980, foi institudo o rgo muni-
cipal de educao de So Gabriel da Cachoeira, um
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setor da prefeitura com poderes e responsabilidades
relativos organizao e administrao do sistema
escolar do municpio. As escolas das comunidades
indgenas oficializaram-se, passando para a jurisdi-
o municipal, mesmo que as irms salesianas conti-
nuassem a supervision-las at o incio dos anos 1990.
Nelas so ministradas as quatro primeiras sries do
ensino fundamental, em classe multisseriada.
No final da dcada de 1940, o protestantismo
instalou-se no Alto Rio Negro, principalmente na rea
dos Baniwa do rio Iana e seu maior afluente, o rio
Aiari. Segundo distingue Wright (1981), em 1976
havia trs misses protestantes no rio Iana e somen-
te duas no rio Uaups. A pioneira foi a americana
Sofia Mller, missionria fundamentalista da NewTribes Mission.
O processo de converso dos ndios, para os pro-
testantes da New Tribes Mission, exigia a mediao
de prticas pedaggicas de ensino de leitura em ln-
gua indgena. O objetivo precpuo era de que pudes-
sem ler a Bblia, cuja traduo para o idioma nativo
havia sido feita pelos prprios missionrios, e, desse
modo, salvarem suas almas. Para isso, aulas foram
improvisadas, no sentido de viabilizar a alfabetiza-
o. De acordo com os prprios relatos de Sofia Mller(1952), o ensino se processava debaixo das rvores,
nas casas, nas canoas, onde fosse possvel. Ficou tam-
bm evidente que Sofia no pretendia escolarizar os
ndios, mas to somente fazer os velhos decodificarem
a escrita, a fim de poderem ler a Bblia para os de-
mais. Alm da leitura e escrita na lngua, o ensino
visava tambm preparar os mais velhos para ocupa-
rem os cargos de ancio, dicono e pastor. Estes iriam
assegurar a preservao da crena, dando continuida-
de realizao dos rituais evanglicos. A escola no
fazia parte do projeto evanglico.
Depois de Sofia Mller, os Baniwa lembram-se
que um pastor americano veio morar no rio Iana: e
depois foi Henrique que fez casa em Seringa-rupit,
na boca do Cuiari. [...] Henrique convidava pessoal
do rio para ensinar na casa dele, conta o av dzawinai,
da comunidade Arapaso, rio Iana. Pastor Henrique,
colaborador do Summer Institute of Linguistic (SIL),
entidade americana de igrejas protestantes, no ape-
nas ensinou os velhos a ler e escrever Baniwa, mas
tambm viabilizou a elaborao de duas cartilhas e
dois livros de exerccios para serem usados no pro-
cesso de alfabetizao da lngua indgena. Foi a pri-
meira proposta de grafia do Baniwa falado no Brasil,
que diferente do que falado na Colmbia.
Na comunidade de Jandu-cachoeira funcionava,
desde 1970, uma escola bblica, fundada pelo pastor
Jaime, missionrio americano que ficou quase vinte
anos evangelizando no rio Iana. A escola regular,
que significava escolaridade de 1 a 4 srie, s foi
criada em 1975. Para trabalhar nessa escola vieram
mais duas missionrias, uma americana e uma
paulista. No incio da dcada de 1980, alguns alunosj haviam concludo a 4 srie na escola de Jandu, e
ento foram organizadas escolas em outras duas co-
munidades protestantes, onde esses ex-alunos foram
lecionar.
A escola de Jandu fechou em 1988. Todas as
escolinhas organizadas pelos protestantes desde que
o rgo Municipal de Educao foi criado, em 1983,
passaram para a jurisdio da Prefeitura de So
Gabriel. Gradativamente, os missionrios protestan-
tes foram se desobrigando da superviso das escolasfundadas por sua iniciativa. Atualmente, eles no tm
mais nenhuma atividade ligada escolarizao regu-
lar. A escola dever do Estado, diz o pastor que
mora no rio Iana.
Fica evidente que a estratgia dos missionrios
protestantes, para divulgao de suas idias evange-
lizadoras e cristianizao dos Baniwa, diferia subs-
tancialmente da catlica. Enquanto os salesianos
seguiam a orientao de Dom Bosco, que dizia
ocupai-vos primeiro das crianas e ganhareis depois
os adultos, e investiam no projeto educativo desen-
volvido em seus internatos e escolinhas, a estratgia
dos protestantes era bem diferente. Consistia em, usan-
do a hierarquia da sociedade indgena, conquistar pri-
meiro os mais velhos, os que tinham a autoridade e o
respeito dos demais, os que eram ouvidos e, por isso,
tinham influncia sobre a formao das novas gera-
es. Mas o fato de no terem desenvolvido a educa-
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o escolar e de terem ensinado a ler na lngua ind-
gena, em detrimento do portugus, avaliado hoje,
pela maioria dos velhos, chefes e professores Baniwa,
catlicos, como um prejuzo para o povo.
Os catlicos consideram que o protestantismo foi
umatrasopara os Baniwa. Dos velhos e chefes pro-
testantes com quem conversei, certamente nenhum se
considera atrasado.Essa uma idia muito trabalha-
da pelos salesianos: progredir, ir pra frente, atra-
vs da escolarizao. Porm, alguns tm um posicio-
namento favorvel em relao necessidade de mais
escolarizao para suas crianas. Se, por um lado, as
escolinhas improvisadas de Sofia Mller ensinavam
a escrita da lngua indgena e isso pode representar
uma forma de valorizao da cultura, por outro lado,esto ligadas apenas leitura da Bblia, significando
uma restrio e uma imposio cultural, tal qual a
escola dos missionrios catlicos.
Sentidos e repercusses da educao escolar
O sentido da escola para os Baniwa transformou-
se medida que foram se transformando as relaes
vividas com os brancos, as condies histricas des-
sas relaes e os interesses Baniwa em jogo. No cur-so do processo cotidiano das experincias sociais e
histricas, as idias Baniwa sobre a escola assumem
um carter pragmtico, uma vez que esto ligadas a
intenes e finalidades concretas.
possvel distinguir trs momentos na histria
Baniwa, marcados por interesses distintos quanto
escolaridade. O primeiro desses momentos correspon-
deria ao perodo de implantao e funcionamento do
internato salesiano, transcorrido ao longo da dcada
de 1950. O segundo seria relativo fase de implanta-
o das escolinhas nas comunidades, na dcada de
1970. Um outro seria perceptvel a partir da segunda
metade da dcada de 1980, quando se consolida a
educao escolar e comea a aumentar o nmero de
escolas na regio do Iana.
Na dcada de 1950, os chefes Baniwa permitem
que seus filhos ingressem no colgio salesiano de As-
suno do Iana. Longe de ser simplesmente fruto de
uma coao ou resultar de uma imposio absoluta
dos salesianos sobre os Baniwa (entendimento que,
metodologicamente, seria um reducionismo, pois dei-
xaria de tratar os Baniwa como atores sociais efeti-
vos), a permisso para o ingresso dos jovens no col-
gio de Assuno enquadra-se mais como uma
estratgia Baniwa diante de exigncias e desafios apre-
sentados pelo processo histrico. Os Baniwa procu-
ravam meios de adaptarem-se situao irreversvel
de dependncia em relao aos brancos, visto que
eram alvo da violncia de muitos deles (comercian-
tes, seringalistas, militares, entre outros).
A multiplicao das escolinhas pelas comunida-
des, nos anos de 1970, opera a consolidao da esco-
la como um espao em que seria possvel aos Baniwatomarem posse de cdigos e linguagens, to necess-
rios para as relaes com os brancos. Segundo depoi-
mentos, atravs disso seria possvel conhecer a vida
dos brancose, ento, saber como lidar com eles; po-
deriamfalar portugus, isto , comunicar-se com os
brancos e no deixar-se confundir por eles. O dom-
nio desses elementos simblicos significava no s
um instrumento de defesa, mas tambm de autocon-
fiana e de auto-estima, na medida em que podiam
colocar-se em p de igualdade com os brancos, tran-sitando nos mesmos campos simblicos e manipulan-
do os mesmos cdigos.
Na segunda metade da dcada de 1980, criou-se a
primeira associao na regio do Iana, a Associao
das Comunidades Indgenas do Rio Iana (ACIRI).
Gradativamente, alguns Baniwa comearam a interio-
rizar o submundo1 das organizaes polticas e, por
conseguinte, a aprender a linguagem e os conhecimen-
tos do subuniverso de significados prprios da esfera
poltica.
A entrada das associaes indgenas no submun-
do, habitando o subuniverso da ao poltica, possibi-
1O conceito de submundo de Berger eLuckmann (1985,
p. 184-185), consistindo em campos institucionais especficos,
constitudos de conhecimentos, vocabulrio, regras de comporta-
mento, rotinas e padres estticos prprios.
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litou, ento, aos Baniwa encarregados de dirigi-las, in-
teriorizar e objetivar as condutas institucionalizadas:
reunies polticas (assemblias, encontros, confern-
cias) e tcnicas (discusso de oramentos e projetos),
alm dos rituais burocrticos (relatrios, ofcios, atas,
projetos, prestao de contas).
No se pode desconsiderar o fato de que, con-
cretamente, os Baniwa esto vivendo relaes sociais
mais amplas, esto inseridos na estrutura de classes
da sociedade brasileira e participam, embora de modo
desigual, dos processos de produo, distribuio e
consumo dos bens simblicos e materiais. Fazem par-
te, portanto, da sociedade capitalista em que vivemos.
Aqui, um outro ponto que se impe e merece ser
focalizado a questo da identidade sociocultural.Permanecem em curso movimentos, processados pela
dinmica das relaes travadas no contexto das es-
truturas da sociedade nacional, forjando a reconstru-
o de uma identidade coletiva que se fortalece como
referncia para os subgrupos Hohodene, Dzawinai ou
Uaripere-dakenai, sejam catlicos ou protestantes:
a identidade Baniwa. Essa identidade vem, gradati-
vamente, ganhando nova conformidade, consistncia
e validade medida que o povo se defronta com pro-
blemas e presses criados pelas estruturas sociais eculturais da sociedade de classes, no processo de in-
tegrao nao brasileira.
Se antes essa autodesignao genrica no exis-
tia entre os ndios Baniwa do Brasil, agora j se pode
verificar no discurso dos dirigentes das associaes,
dos professores e dos capites a referncia ao povo
Baniwa: expresses como artesanato caracterstico
dos Baniwa, professores Baniwa, pensadores
Baniwa e povo Baniwa esto sendo usadas noIn-
formativoe em outros documentos da Associao das
Organizaes Indgenas da Bacia do Iana (OIBI).
Nesse sentido, quando o interesse pela escola se ma-
nifesta com base no argumento da promoo do
desenvolvimento do povo Baniwa, penso que isso
significa estar o trabalho da escola articulado a pro-
cessos mais complexos de afirmao e constituio
dessa identidade Baniwa, no mbito da sociedade
nacional. Tais processos compreendem e implicam,
ao mesmo tempo, a formulao de utopias e de proje-
tos polticos coletivos, delineados no quadro sociopo-
ltico da nao brasileira.
Quando focalizada no sentido de produo e
manuteno da identidade Baniwa, a educao esco-
lar configura-se como um instrumento instaurador de
unidade, isto , funciona como mediadora de elemen-
tos homogeneizadores e centralizadores de energia que
contribuem para manter o povo unido.
Simultaneamente, a educao escolar tambm
pode produzir resultados que tm repercusses
heterogeneizadoras e descentralizadoras, potencial-
mente criadoras de divises internas do grupo. A es-
cola determina o acesso e a distribuio de bens cultu-
rais muito valorizados, em virtude dos condicionantesque delimitam as relaes vividas pelos Baniwa nas
formas atuais de integrao social. Bourdieu (1992)
pode iluminar o entendimento dessa dimenso
disjuntora da escola, quando afirma que
A escola no cumpre apenas a funo de consagrar
a distino no sentido duplo do termo das classes
cultivadas. A cultura que ela transmite separa os que a
recebem do restante da sociedade mediante um conjunto
de diferenas sistemticas: aqueles que possuem como
cultura (no sentido dos etnlogos) a cultura erudita vei-
culada pela escola dispem de um sistema de categorias
de percepo, de linguagem, de pensamento e de aprecia-
o que os distingue daqueles que s tiveram acesso
aprendizagem veiculada pelas obrigaes de um ofcio ou
a que lhes foi transmitida pelos contatos sociais com seus
semelhantes. (p. 221)
Assim, o domnio de diferentes formas de lin-
guagem, de determinados hbitos e atitudes, e a posse
de conhecimentos dos subuniversos de significao
prprios do mundo dos brancos transformam-se em
capital simblico acumulado por aqueles Baniwa que
passaram pela escola os jovens, na maioria catli-
cos. nesse sentido que a escola produz resultados
que apresentam repercusses heterogenizadoras.
proporo que os Baniwa so enredados no tecido
social mais amplo, aqueles que passaram pela esco-
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Valria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel
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la encontram-se em posio mais vantajosa, pela
posse de bens culturais valiosos tanto do ponto de
vista do reconhecimento social, quanto do ponto de
vista prtico.
Desse modo, as crianas Baniwa, durante sua
primeira socializao, entre outras normas e valores
institucionais, apreendem os significados da obedin-
cia e respeito aos pais, avs e tios, estabelecidos por
normas Baniwa tradicionais. Essas normas consti-
tuem-se em valores e convices morais na orienta-
o das aes e regulamentao do consenso entre os
membros da famlia Baniwa. Nas relaes geracionais,
dentro da hierarquia familiar, as diferenas produzi-
das pela educao escolar, no que concerne a criar
um adicional de poder simblico para os mais jovens,esto sendo superadas por essas normas que orientam
as relaes de parentesco.
Nas relaes estabelecidas entre catlicos e pro-
testantes, os conflitos so mais evidentes, porque tam-
bm esto associados a divises e disputas tradicio-
nais entre os grupos. Em razo da antiga aliana com
os salesianos, as famlias catlicas tm maior nmero
de filhos escolarizados. A posse desse valioso bem
cultural a instruo escolar apresenta-se como fa-
tor intensificador da diferena e diviso entre os gru-pos, que os catlicos escolarizados externam ao evo-
car o atrasotrazido pelo protestantismo.
Entre os Baniwa protestantes, por terem aban-
donado essas tradies, de fato as geraes mais
novas parecem desconhecer as antigas instituies
da sua cultura, como os mitos de origem, os rituais
de iniciao, os rituais xamansticos e as festas do
dabakuri e pudare.2 bem verdade que os jovens
protestantes escolarizados, que esto frente da as-
sociao, vm buscando transformar esse modo de
pensar e agir dos Baniwa protestantes, por compreen-
derem a importncia desses elementos culturais para
o movimento poltico de afirmao sociopoltica do
povo Baniwa. Querem introduzir as histrias mticas
no currculo da escola. Mas referem-se s institui-
es tradicionais Baniwa como uma coisa j morta,
existente num passado longnquo.
guisa de concluso
Todas as formaes sociais tm a percepo da
possibilidade do seu desaparecimento, identificado
com o caos e a desordem. Por isso, principalmente
nas conjunturas de crise, suas foras se colocam no
sentido de impulsionar modos de recriao e renova-
o da sociedade. Para os Baniwa, penso que o medo
da entropia e a percepo da vulnerabilidade da es-
trutura tradicional, diante da fora dos dinamismosde fora (expresso de Balandier, 1969), compeli-
ram-nos a criar mecanismos capazes de restaurar a
unidade social, embora em outras bases impostas pelo
processo histrico.
No cabendo mais os rituais e ensinamentos tra-
dicionais, a escolaridade assumiu essa funo de res-
taurao da sociedade, pois o estado de plenitude e
de cidadania (no sentido de tornar-se membro daque-
la sociedade) a que ela permite acesso est sendo per-
cebido como condio de vida e de ordem da socie-dade. A educao escolar renascimento.
Nesse sentido, a escola representa tanto a luta
pela sobrevivncia Baniwa, contribuindo para a cons-
truo de uma nova identidade, quanto a esperana
de felicidade no futuro. Os Baniwa buscam na escola
meios linguagens, conhecimentos e cdigos que
contribuam para a produo de um ajustamento e uma
organizao social modificada, para melhor se adap-
tarem s novas condies histricas.
Essas novas condies histricas impem um fato
inquestionvel: os Baniwa existem num tecido social
mais amplo, a sociedade brasileira. O empreendimento
da luta pela identidade sociocultural significa cons-
truir uma visibilidade da sua presena no conjunto
desse tecido social, de modo a garantir um espao e
um tempo: os pajs mesmo vem isso... vo vir mui-
tos brancos, vo encher aqui... muita coisa vai mudar
ainda... (ndio Baniwa).
2Dabakurie Pudareeram cerimoniais de troca, realizados
sempre que houvesse um excedente de peixe, frutas e caa, em
que eram convidados os parentes de outras comunidades.
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Os Baniwa e a escola
Revista Brasileira de Educao 13
VALRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS
WEIGEL, doutora em antropologia pela Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo, professora do Programa de Ps-Gradua-
o em Educao da Universidade Federal do Amazonas. Entre
outros textos sobre educao escolar indgena, publicou Escolas
de branco em malokas de ndio (EDUA, 2000). Coordena a pes-
quisaIdentidades amaznicas, meio ambiente e educao, estudo
da mediao da escola nas relaes homem/meio, com povos in-
dgenas e grupos caboclos da regio. E-mail : [email protected]
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Recebido em setembro de 2002
Aprovado em novembro de 2002