Os Bestializados

Embed Size (px)

Citation preview

1888: Abolio do trabalho escrava 1889: Proclamao da Repblica. As vsperas do cente nrio desses dois acontecimentos decisivos, Jos Murilo de Carvalho convida-nos a re visitar o Rio de Janeiro em suas primeiras encenaes como Capital Federal. Cidade M aravilhosa, se acrescentarmos ao belo, o terrvel; ao cmico, o trgico; lgica, a loucu ra. Cidade mais que imperfeita, palco de polticas oficiais e invisveis, de enredo s conhecidos c mistrios insolveis. Histria social e literria, antropologia urbana, crtica cultural, anlise poltica: o autor atravessa com brilho todos esses campos para rcconstru ir de forma orig inalssima os impasses de uma Repblica nascente, que teimam em pertubar ainda o son o das elites brasileiras. Os Bestializados de ontem e de hoje so a face oculta de nosso modernismo: a cidade permaneceu alheia e atnita, buscando perdidamente seus cidados. hanauo Foot Hardmn

Todas as feies mais marcantes da sociedade brasileira contempornea se definiram c om nitidez cristalina nos dois primeiros decnios do perodo republicano. Nos desdob ramentos e complexidade crescentes dos perodos posteriores, esse ncleo original, to transparente nos seus elementos, foi se turvando na mesma proporo em que se multi plicavam novos focos de tenso. Mas as vicissitudes do pecado original ainda latej am nesse corpo crescido, revigorado e tantas vezes conspurcado. O percurso errante de Jos Murilo de Carvalho pelo Paraso Perdido das iluses repub licanas frustradas acontece mais pela senda das sombras. Ele esquadrinha tanto o s enredos longamente escritos que no encontraram atores para represent-los, quanto especula sobre os papis alternativos escolhidos pelos supostos personagens e sob re o delrio peculiar dos pretensos dramaturgos e diretores de cena. Por que razo a Repblica capitalizou e remodelou cidades, mas no permitiu que se f ormassem cidados? Se o Rio de Janeiro era a sede e a cidade ideal do projeto repu blicano, por que razo ali, mais do que em qualquer outro lugar se boicotou deliber adamente todas as possibilidades de consolidao da cidadania? Se imaginar uma Repbli ca sem participao pblica no s aberrante, mas tambm trgico, quais as formas de contro social e de canalizao das tenses projetadas pelos arquitetos desse contra-senso? E qual a resposta popular para contornar ou ignorar essa privao espria, inventando no vas possibilidades sem consultar as autoridades de planto? Samba, carnaval, tribofe, bilontras, malandros, capoeiras, romeiros e libertrio s so alguns dos rituais e personagens abordados por Murilo nessas suas visitaes do inesperado e incategorizvel. A erudio OS BESTIALIZADOS JOS MURILO DE CARVALHO OS BESTIALIZADOS O RIO DE JANEIRO E A REPBLICA QUE NO FOI 3" edio 13" reimpresso Sao Paulo, 2004 COMPANHIA DAS LETRAS Copyright Jos Murilo de Carvalho Indicao editorial: Francisco Foot Hardman Nicolau Sevcenko Capa: Ettore Bottini a partir de O carnaval de 1892, Revista Ilustrada, maro de 1892 Reviso: Mrcia Copola Cyntia Panzani Genulino Santos Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro. SP. B rasil)

Carvalho. Jos Murilo de. 1939- C324b Os bestializados: o Rio de Janei ro e a Repblica que no foi / Jos Murilo de Carvalho. - So Paulo : Companhia das Letras. 1987. Bibliografia ISBN 85-85095-13-X I. Brasil Histria 1- Repblica, 1889-1930 2. Brasil Poltica e governo 1889-19 0 3. Rio de Janeiro (RJ) Condies sociais 1'-' Repblica. 1889-1930 4. Rio de Janeiro (RJ) Histria Ia Repblica 1889-1930 5. Rio de Janeiro (RJ) Histria Revolta da Vaci a i. Ttulo, li. Ttulo: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. cdd-98 1.05 cdd-320.98105 87-0031 -981.53105 ndices para catlogo sistemtico: 1. Primeira Repblica. 1889-1930 : Brasil : Histria 981.05 2. Primeira Repblica. 1889-1930 : Brasil : Poltica e governo 320.98105 3. Primeira Repblica. 1889-1930 : Rio de Janeiro : Cidade : Histria social 981.531 05 4. Revolta da Vacina : Rio de Janeiro : Cidade : Histria social 981.53105 5. Rio de Janeiro : Cidade : Histria. 1889-1930 981.53105 Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo SP Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br Impresso e acabamento: Prol Editora Grfica NDICE Abreviaes 6 Agradecimentos 7 Introduo 9 I: O Rio de Janeiro e a Repblica II: Repblica e cidadanias 42 III: Cidados inativos: a absteno eleitoral IV: Cidados ativos: a Revolta da Vacina V: Bestializados ou bilontras? 140 Concluso 161 Notas 165 Bibliografia 187

15 66 91

ABREVIAES AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AN Arquivo Nacional FCRB Arquivo Histrico. Fundao Casa de Rui Barbosa MAE Ministre des Affaires Etrangres. Archives Diplomatiques, Paris PRO Public Records Office, Londres RAE Repartio do Arquivo e Biblioteca do Ministrio dos Assuntos Estrangeiros, Lisboa AGRADECIMENTOS Os trabalhos includos neste volume no poderiam ter sido realizados sem o apoio financeiro da FINEP, atravs do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Jane iro, e da IBM do Brasil, atravs do Centro de Estudos Histricos da Fundao Casa de Rui Barbosa. Agradeo o apoio constante de Francisco de Assis Barbosa, diretor do Centro de Estudos Histricos, e tambm de Rosa Maria Barboza de Arajo, que deu incio no Centro ao projeto Consolidao da Repblica no Rio de Janeiro", e de Paulo Henrique Coelho, se u conti- nuador. Agradeo ainda a todos os colegas e estagirios do mesmo Centro, pa rticularmente a Pedro Paulo Soares, pela cooporao na coleta de dados, pelos comentr ios e pelo ambiente de trabalho. Diferentes captulos beneficiaram-se das crticas d e colegas do grupo de estudos sobre Estado e Sociedade da Associao Nacional de Ps-G raduao e Pesquisa em Cincias Sociais, de Jaime Benchi- mol, Nicolau Sevcenko e Simo n Schwartzman. Anita, Beth e Turbio, do Centro, datilografaram os originais. Slvia Helena, de maneira no menos real por in- transparente, contribuiu para a produo deste livro, que para Sandra, Jonas e Diogo. 7

INTRODUO Em frase que se tornou famosa, Aristides Lobo, o propagandista da Repblica, m anifestou seu desapontamento com a maneira pela qual foi proclamado o novo regim e. Segundo ele, o povo, que pelo iderio republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se pas sava, julgando ver talvez uma parada militar.1 No nos interessa aqui discutir em que medida a observao correspondia realidade, isto , em que medida o povo participo u ou no da proclamao da Repblica. H verses contraditrias espera de uma anlise crti ual no ser feita neste texto. Interessa-nos, sim, o fato de que um observador part icipante e interessado tenha percebido a participao do povo dessa maneira; interes sa-nos o fato de que trs dias aps a proclamao este observador j tenha percebido e con fessado o pecado original do novo regime. Aristides Lobo no estava s na percepo do povo como alheio aos fatos polticos. Ser ia fcil alinhar vrias citaes de outros observadores apontando na mesma direo. Basta-no s, no entanto, referir apenas outra frase famosa, agora de um sbio francs h muito r esidente no Brasil, Louis Couty. Ao analisar a situao so9 ciopoltica da populao do pas, Couty concluiu que poderia resumi-la em uma frase: "O Brasil no tem povo".2 Seus olhos franceses no conseguiam ver no Brasil aquela popu lao ativa e organizada a que estava acostumado em seu pas de origem. Aristides Lobo pode ter falado por distoro elitista, assim como Couty o pode ter feito por etnoc entrismo francs. Ambos eram, todavia, pessoas esclarecidas e interessadas nas mud anas sociais e polticas que fermentavam a seu redor. preciso que nos perguntemos p elo sentido de suas palavras, pela realidade que lhes possa ter servido de refern cia. Tal empreendimento tanto mais necessrio pelo fato de estarmos aqui diante do problema da natureza mesma de nossa vida poltica. Trate-se da concepo e da prtica da cidadania entre ns, em especial entre o povo. Trata-se do problema do relacionam ento entre o cidado e o Estado, o cidado e o sistema poltico, o cidado e a prpria ati vidade poltica. Tem havido recentemente tendncia a ver tal relao de maneira maniquest a, segundo a qual o Estado apresentado como vilo e a sociedade como vtima indefesa . Tal viso quase uma volta dicotomia clssica estabelecida por Santo Agostinho entr e um Estado governado por pecadores, baseado na represso, e a Cidade de Deus, a s ociedade dos santos, sustentada no amor e na cooperao.3 Nesta perspectiva, a inexi stncia da cidadania simplesmente atribuda ao Estado. Tal viso insatisfatria, como todas as dicotomias aplicadas ao fenmeno social. T eoricamente, ela separa o que so lados da mesma moeda, partes do mesmo todo. O ma niquesmo inviabiliza mesmo qualquer noo de cidadania, pois ou se aceita o Estado co mo um mal 10 necessrio, maneira agostiniana, ou se o nega totalmente, moda anarquista. Na prtic a, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em relao ao povo, ao consider-lo vtima impotente diante das maquinaes do poder do Estado ou de grupos dominantes. Ac aba por bestializar o povo. Parece-nos ao contrrio que, exceto em casos muito exc epcionais e passageiros de sistemas baseados totalmente na represso, mais fecundo ver as relaes entre o cidado e o Estado como uma via de mo dupla, embora no necessar iamente equilibrada. Todo sistema de dominao, para sobreviver, ter de desenvolver u ma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidados. O momento de _transio do Imprio para a Repblica particularmente adequado para o estudo desta questo. Tratava-se da primeira grande mudana de regime poltico aps a in dependncia. Mais ainda: tratava-se da implantao de um sistema de governo que se pro punha, exatamente, trazer o povo para o proscnio da atividade poltica. A Repblica, na voz de seus propagandistas mais radicais, como Silva Jardim e Lopes Trovo, era apresentada com a irrupo do povo na poltica, na melhor tradio da Revoluo Francesa de 789, a revoluo adorada , como a chamava Silva Jardim. O regime monrquico, vivendo somb ra do Poder Moderador, era condenado pelo manifesto republicano de 1870 como inc ompatvel com a soberania nacional, que s poderia ser baseada na vontade popular. O

jornal Revoluo, publicado no Rio em 1881 por um funcionrio demitido da Alfndega, Fvi la Nunes, conclamava o povo, segundo ele roubado em seus direitos pelo governo m onrquico, a empunhar o estandarte da liberdade a bandeira da Repblica no meio da pr aa pblica, ao som da Marselhesa, proclamando a soberania popular". 4 11 Embora proclamado sem a iniciativa popular, o novo regime despertaria entre os excludos do sistema anterior certo entusiasmo quanto s novas possibilidades de participao. O jornal Voz do Povo, tambm do Rio de Janeiro, cuja publicao foi iniciada menos de dois meses aps a proclamao da Repblica, referiu-se a uma nova era para o o perrio brasileiro trazida pelo novo regime, comparvel que foi aberta pela Revoluo de 1789. No regime antigo, segundo o articulista do jornal, os operrios eram os ser vos da gleba, a canalha, com todos os deveres e nenhum direito. Agora eram livre s, iguais e soberanos, viam-se colocados na vanguarda do progresso da ptria. E te rminava: "Saibamos ser operrios e cidados de uma ptria livre".5 Logo no comeo de 189 0 houve vrias tentativas de organizar um partido operrio, e um dos militantes mais envolvidos, Luiz da Frana e Silva, dizia em seu jornal Echo Popular: "A palavra Repblica foi por muito tempo o smbolo exclusivo das aspiraes democrticas, e o grito iva a Repblica tem um longo passado de sedio e irrompe naturalmente do povo quando ele se rene para deliberar".6 Alm de o momento ser propcio, era-o tambm o local, o ambiente, em que pretendem os realizar o estudo a cidade do Rio de Janeiro. As cidades foram tradicionalmen te o lugar clssico do desenvolvimento da cidadania. O cidado era, at etimologicamen te, o habitante da cidade. Nelas se tornou possvel a libertao do poder privado dos senhores feudais. Nelas foi que aos poucos se desenvolveram a noo e a prtica de um sistema de governo montado sobre o pertencimento individual a uma coletividade. O burgus foi o primeiro cidado moderno.7 12

O Rio de Janeiro dos primeiros anos da Repblica era a maior cidade do pas, com mais de 500 mil habitantes. Capital poltica e administrativa, estava em condies de ser tambm, pelo menos em tese, o melhor terreno para o desenvolvimento da cidada nia. Desde a independncia e, particularmente, desde o incio do Segundo Reinado, qu ando se deu a consolidao do governo central e da economia cafeeira na provncia adja cente, a cidade passou a ser o centro da vida poltica nacional. O comportamento p oltico de sua populao tinha reflexos imediatos no resto do pas. A proclamao da Repblic a melhor demonstrao desta afirmao. Campos Sales j percebia, como propagandista, que a falta de coeso do Partido Republicano na corte era o principal obstculo ao desen volvimento da idia republicana. 8 E a proclamao, afinal, resultou de um motim de so ldados com o apoio de grupos polticos da capital. Com esta sumria justificativa do tempo e lugar do estudo a ser desenvolvida n o correr do trabalho j fica evidente que havia algo mais na poltica do que simples mente um povo bestializado. Tentar entender que povo era este, qual seu imaginrio poltico e qual sua prtica poltica ser a tarefa que enfrentaremos ao longo dos captul os deste livro. O estudo comear por uma descrio da cidade do Rio de Janeiro no incio da Repblica, com nfase especial nas transformaes sociais, polticas e culturais trazid as pelo fim de sculo. O captulo seguinte examinar as vrias concepes de cidadania vigen tes poca da mudana do regime. Depois, tentar-se- examinar o mundo dos cidados assim como ele se verificava na capital da Repblica atravs da participao eleitoral. O quar to captulo ser dedicado ao estudo de uma ao poltica exemplar no sentido poltico e mor l da populao: a Revolta da Vacina. Por 13 fim, o captulo quinto procurar reconstituir o mundo da cidadania no Rio de Janeiro e buscar razes para explic-lo. Embora se trate de uma investigao de natureza histrica, no resta dvida de que o p roblema da cidadania continua no centro da preocupao de todos nos dias de hoje, qu ando mais uma mudana de regime se efetua e mais uma tentativa feita no sentido de construir a comunidade poltica brasileira. A historiografia aqui, uma vez mais, projeo do presente e instrumento de tentativa de construo da histria. Diziam os posit

ivistas que os mortos governavam os vivos, o passado o presente. Ao reler a histr ia com os olhos de hoje talvez pudssemos dizer que os vivos, ao tentar reconstrui r o passado, tentam governar os mortos na iluso de poderem governar a si prprios. Ou, em verso pessimista, na frustrao de o no poderem fazer. 14

CAPTULO I O RIO DE JANEIRO EA REPBLICA* No seria exagero dizer que a cidade do Rio de Janeiro passou, durante a prime ira dcada republicana, pela fase mais turbulenta de sua existncia. Grandes transfo rmaes de natureza econmica, social, poltica e cultural, que se gestavam h algum tempo , precipitaram-se com a mudana do regime poltico e lanaram a capital em febril agit ao, que s comearia a ceder ao final da dcada. O que se ler a seguir ser a tentativa de descrever sumariamente a natureza destas mudanas e examinar as conseqncias delas ad vindas para a vida dos fluminenses. Ateno especial ser dada ao impacto do novo regi me, que se pretendia ancorado na opinio pblica, na formao de uma comunidade poltica n a antiga capital do Imprio. A anlise concentrar-se- na fase inicial de consolidao do novo regime, estendendo -se at o final do governo Rodrigues Alves, quando j estavam nitidamente definidos os vitoriosos e os vencidos e estabelecidos os rumos e a natureza da poltica repu blicana tanto para o pas como para a capital. No que se refere a esta, estavam de finidos no s o papel que lhe caberia como tambm as regras para represent-lo. * Verso modificada deste captulo foi publicada em Revista Brasileira de Histr ia, 5 (8-9): 117-38, set. 1984/abr. 1985. 15

Como a maior cidade e a capital econmica, poltica e cultural do pas, o Rio de J aneiro no poderia deixar de sentir, em grau mais intenso do que qualquer outra ci dade, as mudanas que vinham fermentando durante os ltimos anos do Imprio e que culm inaram n abolio da escravido e na proclamao da Repblica. A mudana de regime, com toda s expectativas que trazia e tambm com todas as dificuldades que implicava, como q ue projetou luz intensa sobre as novas fealidades, tornando a vivncia delas tambm mais intensa e mais difundida. De uma maneira ou de outra, para melhor ou para p ior, grande parte dos fluminenses foi pela primeira vez envolvida nos problemas da cidade e do pas. Esta conscincia nova e ampliada e as conseqncias que gerava, ant es mesmo que mudanas quantitativas, caracterizaram o Rio da primeira dcada republi cana. Mas as alteraes quantitativas so inescapveis. A primeira delas foi de natureza d emogrfica. Alterou-se a populao da capital em termos de nmero de habitantes, de comp osio tnica, de estrutura ocupacional. A abolio lanou o restante da mo-de-obra escrava o mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempr egados. Alm disso, provocou um xodo para a cidade proveniente da regio cafeeira do estado do Rio e um aumento na imigrao estrangeira, especialmente de portugueses. O s ndices de crescimento da populao podem ser vistos na tabela I. V-se que a dcada que precedeu a Repblica apresenta o maior crescimento populaci onal relativo. Em termos absolutos, tem-se que a populao quase dobrou entre 1872 e 1890, passando de 266 mil a 522 mil. A cidade teve ainda de absorver uns 200 mi l novos habitantes na ltima dcada do sculo. S no ano de 1891, entraram 166 321 imigr antes, tendo sado para os estados 16 Tabela I Crescimento anual da populao do Rio de Janeiro, 1872-1906 Crescimento Anos Fonte: 2,91 1900-1906 3,23 1890-1900 4.54 1880-1890 3,84 1872-1880 ANURIO anual ESTATSTICO (%) DO BRAZIL (1908-1912). v. I. p. XVIII. 71 264. Este enorme influxo populacional fazia com que, em 1890, 28,7% da populao fosse nascida no exterior e 26% dela proviesse de outras regies do Brasil. Assim, apenas 45% da populao era nascida na cidade. Outro resultado importante da intensa imigrao era o desequilbrio entre os sexos . Em 1890, entre os estrangeiros, os homens eram mais que o dobro das mulheres. Na populao total, a predominncia do sexo masculino girava em torno de 56%. O desequ

ilbrio refletia-se no ndice de nupcialidade, que era apenas de 26% entre os homens brancos e caa para 12,5% entre os negros em 1890.1 Em verdade, quanto a este pon to tinha havido alguma melhoria em relao a 1872, mas permanecia muito alto o nmero de solteiros e, portanto, muito baixo o nmero de famlias regularizadas. Uma terceira conseqncia do rpido crescimento populacional foi o acmulo de pessoa s em ocupaes mal remuneradas ou sem ocupao fixa. Domsticos, jornaleiros, trabalhadore s em ocupaes mal definidas chegavam a mais de 100 mil pessoas em 1890 e a mais de 200 mil em 1906 e viviam nas tnues fronteiras entre a lega lidade e a ilegalidade , s vezes participando simultaneamente de ambas. Pouco antes da Repblica, o embaix ador portugus anotava: Est a cidade do Rio de Janeiro 17 cheia de gatunos e malfeitores de todas as espcies". Em proposta para regulamentao do servio domstico, feita Intendncia Municipal em 1892, Evaristo de Moraes observav a que havia na capital gente desocupada em grande quantidade, sendo notvel o nmero de menores abandonados".2 Esta populao poderia ser comparada s classes perigosas ou potencialmente perigo sas de que se falava na primeira metade do sculo XIX. Eram ladres, prostitutas, ma landros, desertores do Exrcito, da Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, am bulantes, trapeiros, criados, serventes de reparties pblicas, ratoeiros, recebedore s de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptado res, pivetes (a palavra j existia). E, claro, a figura tipicamente carioca do cap oeira, cuja fama j se espalhara por todo o pas e cujo nmero foi calculado em torno de 20 mil s vsperas da Repblica.3 Morando, agindo e trabalhando, na maior parte, na s ruas centrais da Cidade Velha, tais pessoas eram as que mais compareciam nas e statsticas criminais da poca, especialmente as referentes s contravenes do tipo desor dem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890, estas contravenes eram responsveis por 60 % das prises de pessoas recolhidas Casa de Deteno. Anote-se ainda o impacto do crescimento populacional acelerado sobre as cond ies de vida, com as conseqentes presses sobre a administrao municipal. Agravaram-se mu ito os problemas de habitao, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. A a bsoluta falta" de casas, especialmente para os pobres, foi salientada em 1892 pe la Sociedade Unio dos Proprietrios e Arrendatrios de Prdios, que a atribua imigrao. ociedade solicitava Inspetoria de Higiene que fosse mais cautelosa ao mandar fec har habitak

es, pelas conseqncias que a medida poderia acarretar.4 Os velhos problemas de abaste cimento de gua, de saneamento e de higiene viram-se agravados de maneira dramtica no incio da Repblica com o mais violento surto de epidemias da histria da cidade. O ano de 1891 foi particularmente trgico, pois nele coincidiram epidemias de varola e febre amarela, que vieram juntar-se s tradicionais matadoras, a malria e a tube rculose. Nesse ano, a taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nvel, matando 52 pessoas em cada mil habitantes. At 1896, a mortalidade permaneceu acima de 35 por mil, com a a nica exceo de 1893. A cidade tornara-se, sobretudo no vero, um lugar p erigoso para viver, tanto para nacionais quanto para estrangeiros. Nos meses de maior calor, o corpo diplomtico fugia em bloco para Petr- polis a fim de escapar s epidemias, nem sempre com xito. O governo ingls concedia a seus diplomatas um adic ional de insalubridade pelo risco que corriam representando Sua Majestade. No terminavam a as atribulaes por que passava a capital. Pelo lado econmico e fin anceiro, os tempos tambm foram de grandes agitaes. Novamente a origem de tudo remon tava abolio da escravido. No necessrio repetir em pormenores uma histria j bem sab Basta lembrar que, devido necessidade de aplacar os cafeicultores, especialmente do estado do Rio, e de atender a uma demanda real de moeda para o pagamento de salrios, o governo imperial comeou a emitir dinheiro, no que foi seguido com entus iasmo pelo governo provisrio, este preocupado tambm em conquistar simpatias para o novo regime. Concedido o direito de emitir a vrios bancos, a praa do Rio de Janei ro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a conhecida febre esp eculativa, bem descrita no romance i\

de Taunay, O Encilhamento. Segundo um jornal da poca, "todos jogaram, o negociant e, o mdico, o jurisconsulto, o funcionrio pblico, o corretor, o zango; com pouco pecl io prprio, com muito peclio alheio, com as diferenas do gio, e quase todos com a cauo dos prprios instrumentos do jogo".5 Falta acrescentar lista de especuladores os f azendeiros do estado do Rio de Janeiro, que afluram capital para jogar na especul ao o dinheiro dos emprstimos. Os anos de 1890 e 1891 foram de loucura, segundo a ex presso de um observador estrangeiro, o qual acrescenta ter havido corretores que obtinham lucros dirios de 50 a 100 contos e que uma oscilao do cmbio fazia e desfazi a milionrios.6 Por dois anos, o novo regime pareceu uma autntica repblica de banque iros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulao. As conseqncias no se fizeram esperar. Desde logo, houve enorme encarecimento do s produtos importados devido ao aumento da demanda e ao consumo conspcuo dos novo s ricos. A seguir, a inflao generalizada e a duplicao dos preos j em 1892. Ao mesmo te mpo, comeou a queda do cmbio, encarecendo mais ainda os produtos de importao, que na poca abrangiam quase tudo. Em 1892, j era necessrio o dobro de mil ris para comprar uma libra esterlina; em 1897, o triplo. Por cima, o governo aumentou os imposto s de importao e passou a cobr-los em ouro, o que contribuiu ainda mais para o agrav amento do custo de vida. At o embaixador ingls sofreu as conseqncias quando um funci onrio da embaixada pediu aumento de salrio, demonstrando com listas de preos que se us 70$000 mensais no eram mais suficientes para sobreviver. O embaixador encaminh ou favoravelmente o pedido ao Foreign Office, dizendo que os salrios no tinham aco mpanhado o aumento dos 20 preos, e terminou seu ofcio com uma tirada de orador popular: "[...] at quando pode mos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal peso?". Com efeito, segund o alguns clculos, no primeiro qinqnio republicano houve aumento de 100% nos salrios p ara um aumento de mais de 300% nos preos.7 Artur Azevedo reflete a situao em O Tribofe, escrito em 1892: Das algibeiras some-se o cobre, Como levado por um tufo: Carne de vaca no come o pobre, Qualquer dia no come po. Fsforos, velas, couve, quiabos, Vinho, aguardente, milho, feijo, Frutas, conservas, cenouras, nabos... Tudo se vende pr'um dinheiro!8 O aumento no custo de vida era agravado pela imigrao, que ampliava a oferta de mo-de-obra e acirrava a luta pelos escassos empregos disponveis. Tal situao constit uiu o combustvel para o movimento jacobino, que principiou no governo Floriano e perdurou at o fim da presidncia de Prudente de Morais (1898). O jacobinismo elegeu como principal alvo de suas iras os portugueses, considerados usurpadores de em pregos e exploradores dos brasileiros atravs -do controle que exerciam sobre gran de parte do comrcio e das casas de aluguel. 9 Pelo meio da dcada, a queda dos preos do caf contribuiu para agravar a crise e o pas entrou em fase de deflao e recesso ec onmica, de que s comeou a sair ao final do governo Campos Sales, no incio do novo scu lo. J foram mencionados alguns fatos polticos. Foi a poltica outro aspecto, e talve z o mais saliente, das transformaes e abalos sofridos pela capital federal. A pro21

clamao da Repblica trouxe grandes expectativas de renovao poltica, de maior participa o poder por parte no s de contra-elites mas tambm de camadas antes excludas do jogo poltico. O fato de ter sido o novo regime proclamado por movimento que se desenro lara totalmente na capital, para surpresa de quase todas as provncias, veio contr ibuir ainda mais para as expectativas da populao. Por quase uma dcada, o Rio seria a arena em que os destinos nacionais se decidiriam. Depois da independncia, era o momento de maior glria, de maior visibilidade para a capital, transformada em lo co das atenes de todo o pas. Acontecimentos, por banais que fossem, assumiam importn

cia desmedida em funo da ressonncia produzida pela situao privilegiada em que se acha va a cidade. Uma tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma grev e, uma revolta de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pel o pas inteiro. Pela expectativa despertada, pelas lutas a que deram incio e mesmo por razes d iretamente vinculadas poltica, os primeiros anos da Repblica foram de repetidas ag itaes e de quase permanente excitao para os fluminenses. Os militares tinham provado o poder que desde o incio da Regncia lhes fugira das mos. Da em diante julgaram-se donos e salvadores da Repblica, com o direito de intervir assim que lhes parecess e conveniente. Rebelavam-se quartis, regimentos, fortalezas, navios, a Escola Mil itar, a esquadra nacional em peso. Generais brigavam entre si, ou com almirantes , o Exrcito brigava com a Armada, a polcia brigava com o Exrcito. Por seis meses, a esquadra rebelada bloqueou o porto e bombardeou partes da cidade, causando pnico , deslocamentos macios de populao para os subrbios, ameaas de saques. Os operrios, ou parte deles, acreditaram 22 nas promessas do novo regime, tentaram organizar-se em partidos, promoveram grev es, seja por motivos polticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo erodido pel a inflao.10 Ferrovirios, martimos, estivadores, cocheiros e condutores de bondes fiz eram sua entrada no cenrio poltico, promovendo as primeiras paralisaes da capital, q ue dependia do funcionamento da rede ferroviria e do porto, pois da provinha todo o seu abastecimento. Pequenos proprietrios, empregados, funcionrios pblicos tambm se mobilizaram pela primeira vez no bojo da xenofobia florianista, organizando clu bes jacobinos e batalhes patriticos. Os jacobinos mantiveram um clima generalizado de tenso poltica, especialmente durante a campanha de Canudos no governo de Prude nte de Morais. Quebravam jornais, promoviam arruaas, vaiavam congressistas, espan cavam e matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam inimigos. Em 1897 tentaram matar o presidente da Repblica, depois de terem feito o mesmo com o ltimo presidente do conselho de ministros da Monarquia. Polticos republicanos e m onarquistas assinavam manifestos, envolviam-se em conspiraes, planejavam golpes. Talvez o nico setor da populao a ter sua atuao comprimida pela Repblica tenha sido o dos capoeiras. Logo no incio do governo provisrio foram perseguidos pelo chefe de polcia, presos e deportados em grande nmero para Fernando de Noronha. Sampaio F erraz vingava-se deste modo das hostilidades sofridas pelos propagandistas da Re pblica, entre os quais figurara, por parte dos capoeiras incorporados Guarda Negr a. No conseguiu destru-los, mas domesticou-os criando condies para sua reincorporao ao novo sistema em termos mais discretos. Tambm no houve tolerncia alguma para com os anarquistas estrangeiros que pela pri 23 meira vez aportaram s praias fluminenses. Para eles, a Repblica mostrou logo sua f ace violenta, expulsando-os sem maiores delongas. Durante o governo de Floriano Peixoto foram expulsos 76 estrangeiros. Desses, 36 por crimes polticos, 19 expres samente sob acusao de anarquismo. As deportaes faziam-se por simples decreto preside ncial, precedendo solicitao do chefe de polcia. O primeiro decreto data de 14 de ag osto de 1893.11 Por ltimo, preciso mencionar tambm a movimentao que se deu no mundo das idias e d as menta- lidades. A Repblica no produziu correntes ideolgicas prprias ou novas vises estticas. Mas, por um momento, houve um abrir de janelas, por onde circularam ma is livremente idias que antes se continham no recatado mundo imperial. Criou-se u m ambiente que Evaristo de Moraes chamou com felicidade de porre ideolgico, e que poderamos tambm chamar, sob a inspirao de Srgio Porto, de! maxixe do republicano doi do. Nesse porre, ou nesse maxixe, misturavam-se, sem muita preocupao lgica ou subst antiva, vrias vertentes do pensamento europeu. Algumas delas j tinham sido incorpo radas durante o Imprio, como o liberalismo e o positivismo; outras foram impulsio nadas, como o socialismo; outras ainda foram somente ento importadas, como o anar quismo. Entre os republicanos histricos, havia os que se ligavam corrente liberal spenceriana e federalista, moda de Alberto Sales e dos paulistas em geral, e os que se inspiravam antes na tradio da Revoluo Francesa, que favorecia uma viso mais r

ousseau- niana do pacto social, mais popular e centralista, ao estilo de Silva J ardim, Lopes Trovo, Joaquim Serra. E havia ainda os positivistas, que exultaram c om o advento do novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se consideravam destinados, de exercerem a tutela intelec 24 tual sobre a nao. Mas mesmo entre eles houve divises entre a ortodoxia da Igreja Po sitivista e as variantes civil e militar, que da doutrina retiravam apenas os as pectos que mais interessavam ao poltica. Descendo um pouco na escala social, intelectuais de classe mdia e artesos qual ificados, como os grficos, viram sua possibilidade de intervir na poltica atravs de propostas de natureza socialista. Lanaram jornais de propaganda e tentaram forma r organizaes que pudessem traduzir em ao concreta seus princpios. Acreditavam na poss ibilidade de democratizar a Repblica indo alm das propostas liberal e positivista que predominavam entre os histricos. Finalmente, um pouco mais tarde, j no bojo do desencanto com a pouca ou nenhuma sensibilidade do novo regime para reformas de - mocratizantes, surgiram as propostas anarquistas, trazendo alternativas radica is para a organizao poltica do pas. frente dos novos propagandistas estariam intelec tuais de classe mdia e lderes operrios, estrangeiros e brasileiros. O captulo seguin te desenvolver melhor este tpico. Mais importante que a circulao de idias talvez tenha sido a nova atitude dos in telectuais em relao poltica. Da invaso da Cmara Municipal a 15 de novembro de 1889, a ntes mesmo de proclamada a Repblica, participaram vrios intelectuais. Alguns, por certo, antigos militantes do movimento abolicionista, como Jos do Patrocnio, mas o utros pela primeira vez movidos ao poltica concreta, como Olavo Bilac, Lus Murat, Pa rdal Mallet. Um ms depois, intelectuais do Rio enviaram um manifesto de entusistic o apoio ao governo provisrio, em que se referiam aliana entre os homens de letra e o povo. A ptria, dizia o manifesto, abrira as asas rumo ao progresso, "a literat ura vai desprender tam* 25 bm o vo para acompanh-la de perto .12 O entusiasmo durou at o governo Floriano, quando se deu um cisma entre os intelectuais, e alguns dos antigos entusiastas da Repbl ica tiveram de fugir da capital para evitar a priso. Como exemplo de perseverana e de f, j agora obcecada, nos ideais de um republicanismo jacobino, restaria apenas Raul Pompia. Seu suicdio em dezembro de 1895, alguns meses aps a morte de Floriano , foi o trgico smbolo do fracasso de uma alternativa poltica, assim como a fuga de Bilac, Guimares Passos e outros indicava que no seria to fcil estabelecer os parmetro s de uma convivncia pacfica entre a Repblica da poltica e a Repblica das letras. A co nvivncia se daria mais tarde em termos algo distintos dos imaginados inicialmente . Mais difcil de avaliar o impacto da proclamao do novo regime a nvel das mentalid ades. Entre as elites, houve sem dvida a sensao geral de libertao, que atingiu no s o undo das idias mas tambm dos sentimentos e das atitudes. No h estudos sobre este pon to, mas no seria exagerado dizer que a sada da figura austera e patriarcal do velh o imperador, que imprimia forte marca em toda a elite poltica e mesmo em setores mais amplos da populao, significou a emancipao dos que seriam simbolicamente seus fi lhos. A mudana parece ter sido importante sobretudo no que se refere a padres de m oral e de honestidade. A comear por esta ltima, vimos que o encilhamento trouxe um a febre de enriquecimento a todo custo, escandalizando velhos monarquistas, como o visconde de Taunay, que via no fenmeno uma degradao da alma nacional. Como diria m os jornais da poca, "a Repblica a riqueza! .13 Poderamos dizer que se deu uma vitria do esprito do capitalismo desacompanhado da tica protestante. Desabro26 chou o esprito lo racional que edatrio, fruto antes era feito mperiais, agora aquisitivo solto de qualquer peia de valores ticos, ou mesmo de clcu garantisse a sustentao do lucro a mdio prazo. Era um capitalismo pr tpico do esprito bandeirante na concepo que lhe deu Viana Moog. O que com discrio, ou mesmo s escondidas, para fugir vigilncia dos olhos i podia ser gritado das janelas ou dos coches, era quase motivo de

orgulho pessoal e de prestgio pblico. Os heris do dia eram os grandes especuladore s da bolsa. A quebra de valores antigos foi tambm acelerada no campo da moral e dos costu mes. Certamente, o Rio h muito deixara de ser exemplo de vida morigerada, se que alguma vez o foi. Os altos ndices de populao marginal e de imigrao, o desequilbrio ent re os sexos, a baixa nupcialidade, a alta taxa de nascimentos ilegtimos so testemu nhos seguros de costumes mais soltos. Aponta na mesma direo o romance de Manuel An tnio de Almeida, Memrias de um Sargento de Milcias, escrito em 1853. Mas, novamente , parece-me que o que antes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a Repbl ica, se excetuarmos o governo de Floriano, foros de legitimao pblica. O pecado popu larizou-se, personificou-se. Na revista do ano de Artur Azevedo, O Rio em 1877, domina a temtica poltica e os personagens so todos simblicos, como o Boato, a Poltica , o Z Povinho etc. J em O Tribofe, revista apresentada no incio de 1892, o engano, a seduo, a explorao, a mutreta, o tribofe, enfim, aparecem encarnados em pessoas mui to reais e possuem at mesmo certo charme. Entre jogadores, cocotes, bons vivants, fraudadores de corridas, proprietrios exploradores, perde-se a virtude da famlia in- teriorana. Primeiro, some a empregada, seduzida por um personagem que se diz lanador de mulheres, ou seja, 27 formador de prostitutas; a seguir, vai o prprio azen- deiro nos braos de uma cocote ; finalmente, desaparece o filho em agitaes estudantis. Todos pegam o "micrbio da pn dega". Se do ar da cidade medieval se dizia que tornava livre social e politicam ente, do ar do Rio pode-se dizer que libertava moralmente. Ou, como diz em O Tri bofe Quinota, a filha do fazendeiro, referindo-se ao pai: "Respirou o ar desta t erra, e perdeu a cabea"; e completa: "Aqui h muita liberdade e pouco escrpulo. . . faz-se ostentao do vcio e das grandezas [. . . ] No se respeita ningum".14 No por acas o, A Cidade do Rio, jornal de Patrocnio, representava-se como uma mulher nua, e a ssim aparecia em desenhos dialogando com Deodoro, para a suprema irritao do auster o soldado (ver caderno de fotos). Tal liberao se deu a despeito da ao moralista de certas autoridades republicanas . O chefe de polcia de Deodoro perseguiu os capoeiras, e todo o governo Flo- rian o teve uma cara repressora. O jogo, as apostas foram reprimidos, e tentou-se aca bar com o entrudo. Porm a jogatina da bolsa, favorecida pelo governo provisrio, ti nha dado o tom. Apesar da ao das autoridades, quando havia tal ao, abriram-se cassin os, casas de corrida, frontes, beldromos, que vieram juntar-se ao tradicional jogo do bicho, ou dos bichos, como se dizia na poca, e s casas clandestinas de jogo. A confiana na sorte, no enriquecimento sem esforo em contraposio ao ganho da vida pel o trabalho honesto parece ter sido incentivada pelo surgimento do novo regime. o que revela o testemunho insuspeito de Raul Pompia: "Desaprendeu-se a arte honest a de fazer a vida com o natural e firme concurso do tempo, do trabalho. Era prec iso melhorar, mas de pronto: ao' jogo pois!", publicado no Jornal do Commercio, a 4 de janeiro de 1892. E pedia, para a 28 salvao da Repblica, o fim da "epidemia de jogatina . Mas h um ponto que preciso salientar. O fato de a Repblica ter favorecido o gr ande jogo da bolsa e perseguido capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugere uma recepo diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de prolet ariado da capital. A euforia inicial, a sensao de que se abriam caminhos novos de participao parecem no ter atingido este setor da populao. Eu diria mesmo que a Monarq uia caiu quando atingia seu ponto mais alto de popularidade entre esta gente, em parte como conseqncia da abolio da escravido. A abolio deu ensejo a imensos festejos opulares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte, cinco meses, ant es da proclamao da Repblica. A simpatia popular se dirigia no s princesa Isabel, mas tambm a Pedro II, como ficou evidenciado por ocasio da comemorao do aniversrio do vel ho imperador, a 2 de dezembro de 1888. Segundo o testemunho do republicano Raul Pompia, o Pao Imperial foi invadido por "turba imensa de populares, homens de cor a maior parte". A polcia teve de intervir para convencer alguns dos manifestantes de que pelo menos vestissem camisa para se apresentarem ao imperador. No meio d

a multido, salientava-se a imponente figura do prncipe Ob, um negro que se dizia re i africano. Prncipe Ob adornara de penas sua farda de alferes honorrio. 15 A cena f oi sem dvida motivo de riso e chacota, e prncipe Ob acabou sendo preso pela polcia. Mas revelava profundo simbolismo: um rei negro, um rei das ruas e becos da cidad e, vai paramentado, combinando a farda do mundo oficial com as penas de suas ori gens africanas, e acolitado pela multido dos miserveis saudar o imperador de olhos azuis. A reao negativa da populao negra Repblica 29 manifestou-se antes mesmo da proclamao, atravs da Guarda Negra organizada por Jos do Patrocnio. Vrios incidentes verificaram-se entre os propagandistas e a Guarda. O mais srio de todos se deu com a interrupo, que resultou em mortos e feridos, de uma conferncia de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade Francesa de Ginstic a. Dizer que se tratava apenas de capoeiras baderneiros manipulados pela polcia, como o fizeram os republicanos e at mesmo Rui Barbosa, no basta. Permanece o fato de que os republicanos no conseguiram a adeso do setor pobre da populao, sobretudo d os negros. O prprio Silva Jardim, ao acompanhar o conde d'Eu em sua viagem ao nor te do pas em 1889, experimentaria mais uma vez, em Salvador, a ira da populao negra . Por ele e pela Repblica manifestaram-se apenas os estudantes da Faculdade de Me dicina local. A simpatia dos negros pela Monarquia reflete-se na conhecida ojeri za que Lima Barreto, o mais popular romancista do Rio, alimentava pela Repblica. Neto de escravos, filho de um protegido do visconde de Ouro Preto, o romancista assistira, emocionado, aos sete anos, s comemoraes da abolio e s festas promovidas por ocasio do regresso do imperador de sua viagem Europa, tambm em 1888. Em contraste , vira no ano seguinte seu pai, operrio da Tipografia Nacional, ser demitido pela poltica republicana. Irritava-o, particularmente, a postura do baro do Rio Branco , a quem acusava de renegar a parcela negra da populao brasileira.16 Em termos concretos, a preveno republicana contra pobres e negros manifestou-s e na perseguio movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra os bi cheiros, na destruio, pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cor tio do Rio, a Cabea de 30

Porco, em 1892. No por acaso, Barata Ribeiro tambm comparecera conferncia dissolvid a de Silva Jardim. No seria, a meu ver, exagerado supor que a reao popular a certas medidas da administrao republicana, mesmo que teoricamente benficas, como a vacina obrigatria, tenha sido em parte alicerada na antipatia pelo novo regime. Mais ou menos poca da Revolta da Vacina, por exemplo, Joo do Rio verificou, ao visitar a C asa de Deteno, que "Com rarssimas excees, que talvez no existam, todos os presos so ra icalmente monarquistas. Passadores de moedas falsas, incendirios, assassinos, gat unos, capoeiras, mulheres abjetas, so ferventes apstolos da restaurao".17 Eram monar quistas e liam romances de cavalaria. Esta extraordinria revelao confirma o abismo existente entre os pobres e a Repblica e abre fecundas pistas de investigao sobre u m mundo de valores e idias radicalmente distinto do mundo das elites e do mundo d os setores intermedirios. Apontadas rapidamente as transformaes sofridas pela capital, cabe agora pergun tar pelas conseqncias da advindas para a populao da cidade e seu governo e para a rel ao entre ambos. O problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organizao de outro pacto de poder, que pudesse substituir o arranjo imperial com grau sufi ciente de estabilidade. Durante quase dez anos de Repblica, as agitaes se sucediam na capital, havia guerra civil nos estados do Sul, percebiam-se riscos de fragme ntao do pas, a economia estava ameaada pela crise do mercado do caf e pelas dificulda des de administrar a dvida externa. Para os que controlavam o setor mais poderoso da economia (exportao) e para os que se preocupavam em manter o pas unido, tornava -se urgente acabar com a instabilidade poltica. A natureza da tarefa que se impunha pode ser des31 crita como a necessidade de eliminar, ou pelo menos neutralizar, a influncia da c

apital na poltica nacional. Isto significava pelo menos duas coisas: tirar os mil itares do governo e reduzir o nvel de participao popular. Os dois fenmenos eram rela cionados, pois o grosso do Exrcito e da Marinha estava localizado no Rio de Janei ro, e muitos militares de ambas as corporaes envolviam-se freqentemente nas agitaes p olticas, at mesmo em greves operrias. Nas greves, tumultos, revoltas, tentativas de golpes, havia sempre militares ao lado de elementos civis. A aliana foi mais ntid a durante o perodo jacobino, mas at mesmo em 1904 houve ainda o desenvolvimento pa ralelo, com intersees, de uma revolta popular e uma revolta militar. Militares e s etores populares no representavam interesses compatveis com os do grande comrcio e da grande agricultura. Porm, por outro lado, no tinham condies de impor um governo q ue extrapolasse os limites do Distrito Federal. A maneira indireta de neutralizar a capital e as foras que nela se agitavam e ra fortalecer os estados, pacificando e cooptando suas oligarquias. Era reunir a s oligarquias em torno de um arranjo que garantisse seu domnio local e sua partic ipao no poder nacional de acordo com o cacife poltico de cada uma. Como s- bido, est a foi a obra de Campos Sales, que, alm do mais, precisava desesperadamente de paz interna para negociar a dvida externa com os banqueiros ingleses. O acordo foi c onsagrado em 1900, durante o reconhecimento de poderes da nova legislatura. Por ele, presumia-se a legitimidade dos diplomas dos deputados eleitos pelas polticas dominantes nos estados, conseguindo-se assim o apoio dessas polticas para a ao do governo federal. Se os partidos no funcionavam como instrumentos de governo, se s e dividiam em faces, se ficavam presos a 32 caudilhos, a soluo, para Campos Sales, era formar ento um grande partido de governo com sustentao nas oligarquias estaduais. O prprio presidente resumiu claramente se u objetivo: de l [dos estados] que se governa a Repblica, por cima das multides que tumultuam, agitadas, nas ruas da capital da Unio". E prosseguindo: A poltica dos es tados [... ] a poltica nacional (grifo de Campos Sales).18 O resumo perfeito: governar o pas por cima do tumulto das multides agitadas da capital. O Rio podia ser caixa de ressonncia, mas no tinha fora poltica prpria porqu e uma populao urbana mobilizada politicamente, socialmente heterognea, indisciplina da, dividida por conflitos internos no podia dar sustentao a um governo que tivesse de representar as foras dominantes do Brasil agrrio. A percepo do perigo representa do por uma cidade deliberante, com um mnimo que fosse de vontade prpria, fez-se se ntir logo no incio da Repblica. O decreto do governo provisrio que dissolveu a anti ga Cmara dos Vereadores e criou um Conselho de Intendncia dava a este, em coerncia com a filosofia descentralizante do novo regime, certa autonomia de ao. Os intende ntes acreditaram em seu novo papel e logo decretaram um Cdigo de Posturas, que de sagradou profundamente aos proprietrios e arrendatrios de prdios de aluguel. A Soci edade que representava estes proprietrios recorreu de imediato no ao Conselho, mas ao governo federal, e este, voltando atrs em seus propsitos iniciais, suspendeu a execuo do Cdigo e baixou outro decreto, reduzindo a autonomia do Conselho e submet endo suas deliberaes apreciao do ministro do Interior. Demonstrando alguma dignidade , os intendentes demitiram-se em protesto. A teoria rapidamente se revelara outr a na prtica. A experincia de autonomia 33 durou apenas dois meses e meio. Apesar da curta durao e do carter limitado que tive ra, fora suficiente para que o tradicional rgo republicano O Paiz, dirigido por Qu intino Bocaiva, a ela se referisse como sinal do perigo de surgir no Rio uma pequ ena comuna, uma conveno municipal, desptica e tirnica como a conveno francesa (grifo m eu). 19 A desproporo gritante entre a dimenso real do fato e a que lhe pretendeu da r o jornal, conjurando fantasmas da Paris revolucionria de 1789 e 1871, um indica dor precioso da preocupao dos republicanos com o perigo da mobilizao popular na capi tal. A situao do governo municipal no mudou muito com a decretao da lei orgnica do Dist rito Federal, em 1892, j em regime constitucional. A lei previa a eleio dos intende ntes pelo voto popular, mas o prefeito, cargo ento criado, seria nomeado pelo pre sidente da Repblica com aprovao do Senado Federal. As coisas assim permaneceram at o

final da Primeira Repblica. Na verdade, o Rio republicano foi governado o tempo todo por interventores, que mais no eram os prefeitos nomeados. O governo municipal ficou limitado ao administrativa e, mesmo assim, dependend o do apoio poltico e financeiro do governo federal para iniciativas de maior vult o. O Conselho de Intendentes, mesmo eleito, tinha poucas condies de se opor ao pre feito nomeado. No governo de Rodrigues Alves, Pereira Passos governou a cidade p or seis meses com a Cmara suspensa, ditatorialmente, como o fizera na poca florian ista Barata Ribeiro, com o Conselho funcionando. O complemento inevitvel da despo litizao do governo municipal foi o falseamento do processo eleitoral e da represen tatividade poltica. O nmero de eleitores foi mantido sempre em 34 nveis baixssimos, e o processo eleitoral foi totalmente falseado pela intimidao, pel a violncia e pela fraude, como ser demonstrado no captulo 3. Dissociava-se o governo municipal da representao dos cidados. O fato era agrava do pela freqente nomeao de prefeitos e chefes de polcia totalmente alheios vida da c idade, muitas vezes trazidos dos estados pelos presidentes da Repblica. Abria-se ento, do lado do governo, o caminho para o autoritarismo, que na melhor das hiptes es poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competncia, real ou presumi da, de tcnicos. No por acaso, muitos dos chefes do governo municipal no perodo em f oco foram mdicos ou engenheiros. Dos seis primeiros, quatro foram mdicos, um engen heiro militar e apenas um tinha a formao tradicional da elite poltica brasileira, a jurdica. O exemplo mais bvio naturalmente o do engenheiro Pereira Passos. Muitos destes tcnicos eram republicanos de primeira gua, como Barata Ribeiro. Mas, chegad os ao poder, do esprito de repblica guardavam no mximo alguma preocupao com o bem pbli co, desde que o pblico, o povo, no participasse do processo de deciso. O positivism o, ou certa leitura positivista da Repblica, que enfatizava, de um lado, a idia do progresso pela cincia e, de outro, o conceito de ditadura republicana, contribua poderosamente para o reforo da postura tecnocrtica e autoritria. O primeiro exemplo de tal mentalidade foi o Cdigo de Posturas Municipais de 1 890. Dois meses aps a posse, os sete intendentes j tinham revisto um esboo de Cdigo legado pela Monarquia e o colocado em vigor. O novo cdigo regulava em pormenores vrias atividades, especialmente as referentes a casas de aluguel e de pasto. 35 No h dvida de que grande parte das medidas era bem-intencionada e buscava beneficia r a populao em termos de maior conforto e maior higiene, ao mesmo tempo que criava dificuldades aos proprietrios. Mas as medidas eram inteiramente irrealistas para a poca. Muitas delas, como a exigncia de caiar as paredes duas vezes por ano, azu lejar cozinhas e banheiros, arejar quartos com aparelhos de ventilao, limitar o nme ro de hspedes, envolviam melhoramentos at hoje inexistentes em muitas residncias. A lm disso, o Cdigo deixava transparecer a preocupao republicana com o controle da pop ulao marginal da cidade. Se executado, poderia ter provocado uma primeira verso da Revolta da Vacina. Para justificar a afirmativa, basta dizer que inclua a proibio d e que hotis, hospedarias e estalagens recebessem pessoas suspeitas, brios, vagabun dos, capoeiras, desordeiros em geral. Exigia-se ainda o registro de todos os hspe des, com anotao de nomes, empregos e outras caractersticas. As listas deviam ser en tregues polcia no dia seguinte at as nove horas da manh. As penalidades pelo descum primento dos dispositivos iam desde multas at priso por 30 dias. 20 Pode- se imagi nar o impacto dessas medidas, especialmente no velho centro. O Rio possua, em 188 8, 1 331 estalagens e 18 866 quartos de aluguel, em que moravam 46 680 pessoas, incluindo todo o vasto contingente do mundo da desordem. De uma hora para outra, todos teriam registro na polcia, ou ficariam sem onde morar, caso os pro prietrio s cumprissem rigorosamente a lei. Como se v, era uma lei que ou no se aplicava, ou se aplicava pela violncia. No caso, ela foi suspensa. Em 1904, a lei da vacinao ob rigatria teve exatamente o mesmo esprito de despotismo ilustrado, apesar de votada pelo Congresso. Desta vez, a interferncia do poder pblico foi levada 36 para dentro da casa dos cidados, seu ltimo e sagrado reduto de privacidade. Na per

cepo da populao pobre, a lei ameaava a prpria honra do lar ao permitir que estranhos v issem e tocassem os braos e as coxas de suas mulheres e filhas. A populao reagiu pe la violncia e forou a interrupo da ao dos agentes do governo, como se ver no captulo A expectativa inicial, despertada pela Repblica, de maior participao, foi sendo assim sistematicamente frustrada. Desapontaram-se os intelectuais com as perseg uies do governo Floriano; desapontaram-se os operrios, sobretudo sua liderana social ista, com as dificuldades de se organizarem em partidos e de participarem do pro cesso eleitoral; os jacobinos foram eliminados. Todos esses grupos tiveram de ap render novas formas de insero no sistema, mais fceis para alguns, mais difceis para outros. Os intelectuais desistiram da poltica militante e se concentraram na lite ratura, aceitando postos decorativos na burocracia, especialmente no Ita- maraty de Rio Branco. Os operrios cindiram-se em duas vertentes principais, a dos anarq uistas, que rejeitava radicalmente o sistema que os rejeitava, e a dos que procu ravam integrar-se atravs dos mecanismos de coopta- o do Estado. Os jacobinos desapa receram de cena. Quanto ao grosso da populao, quase nenhum meio lhe restava de faz er ouvir sua voz, exceto o veculo limitado da imprensa. 21 No que se refere representao municipal, ela ficava solta, sem ter de prestar c ontas a um eleitorado autntico. A conseqncia foi que se abriu por este modo o campo para os arranjos particularistas, para as barganhas pessoais, para o tribofe, p ara a corrupo. E 37 ento fechou-se o crculo: a preocupao em limitar a participao, em controlar o mundo da desordem acabou por levar absoro perversa desse mundo na poltica. Ao lado de funcio nrios pblicos, passaram a envolver-se nas eleies e na poltica municipais, por iniciat iva dos polticos, os bandos de criminosos e contraventores do estilo de Totonho e Lucrcio Barba de Bode, descritos por Lima Barreto, os donos das casas de prostit uio e de jogo. Eram estes malandros, no sentido que tinha a palavra na poca, os emp resrios da poltica, os fazedo res de eleies, os promotores de manifestaes, at mesmo a el da poltica federal. A ordem aliava-se desordem, com a excluso da massa dos cida dos que ficava sem espao poltico. O marginal virava cidado e o cidado era marginaliza do.22 No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participao popular. S que este mundo passava ao largo do mundo oficial da poltica. A cidade no era uma comu nidade no sentido poltico, no havia o sentimento de pertencer a uma entidade colet iva. A participao que existia era de natureza antes religiosa e social e era fragm entada. Podia ser encontrada nas grandes festas populares, como as da Penha e da Glria, e no entrudo; concretizava-se em pequenas comunidades tnicas, locais ou me smo habitacionais; um pouco mais tarde apareceria nas associaes operrias anarquista s. Era a colnia portuguesa, a inglesa; eram as colnias compostas por imigrantes do s vrios estados; era a Pequena frica da Sade, formada por negros da Bahia, onde, so b a matriarcal proteo de Tia Ciata, se gestava o samba carioca e o moderno carnava l. Eram as estalagens cuja populao podia chegar a mais de mil pessoas. O cortio de Botafogo, descrito por Alu- sio Azevedo, possua no final mais de 400 casas e const i38 tuia uma pequena repblica com vida prpria, leis prprias, detentora da inabalvel leal dade de seus cidados, apesar do autoritarismo do proprietrio. Alusio, alis, fala exp ressamente na repblica do cortio . Ali se trabalhava, se divertia, se festejava, se f ornicava e, principalmente, se falava da vida alheia e se brigava. Porm, menor am eaa vinda de fora, todos esqueciam as brigas internas e cerravam fileiras contra o inimigo externo. Este inimigo era outro cortio e, principalmente, a polcia. Fren te polcia, dono e moradores se uniam, pois estava em jogo a soberania e a honra d a pequena repblica. Cortio em que entrava polcia era cortio desmoralizado.23 profund amente irnico e significativo que a repblica popular do cortio se julgava violada, derrotada, quando l entrava o representante da repblica oficial..No romance, o cor tio consegue evitar a entrada da polcia, mas na vida real, dois anos aps a publicao d o livro, o cortio Cabea de Porco seria destrudo em autntica operao militar por ordem d o republicano histrico Barata Ribeiro. O governo da Repblica destrua as repblicas se

m integr-las numa repblica maior que abrangesse todos os cidados da cidade. Domesticada politicamente, reduzido seu peso poltico pela consolidao do sistema oligrquico de dominao, cidade pde ser dado o papel de carto-postal da Repblica. Entr u-se de cheio no esprito francs da belle poque, que teve seu auge na primeira dcada do sculo. O entusiasmo pelas coisas americanas limitara-se s frmulas polticas. O bri lho republicano expressou-se em frmulas europias, especialmente parisienses. Mais que nunca, o mundo literrio voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Par is e, sobretudo, morrer em Paris. Com poucas excees, como o mulato Lima Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, os literatos se dedicaram a 39 produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estticas voltadas para a Europa.24 Quando as finanas da Repblica foram recuperadas pela poltica deflacionista de C ampos Sales, sobraram recursos para as obras h muito planejadas de saneamento e e mbelezamento da cidade. Tudo foi feito com a eficincia e rapidez permitidas pelo estilo autoritrio e tecnocr- tico inaugurado pela Repblica. O engenheiro-prefeito p ediu a suspenso do funcionamento da Cmara dos Vereadores por seis meses para poder agir livremente e decretar a legislao necessria para o rpido encaminhamento das ref ormas. Um mdico sanitarista foi encarregado das medidas de higiene pblica. Tendo P aris como mode lo, o centro da cidade foi depressa modificado, a avenida Beira-Mar foi aber ta, jardins foram criados e reformados, os bondes ganharam trao eltrica, sem esquec er a construo do novo porto. Ao visitar a cidade pouco depois, uma poetisa frances a, entusiasmada, escreveria um livro de poemas com o ttulo La Ville Merveilleuse. Vindo de uma francesa, era a glria, e compensava o epteto depreciativo de rastaqer as que em Paris era dado aos brasileiros. As reformas tiveram como um dos efeitos a reduo da promiscuidade social em que vivia a populao da cidade, especialmente no centro. A populao que se comprimia nas r eas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no qu e ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cid ade Nova e para os subrbios da Central. Abriu-se espao para o mundo elegante que a nteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na ru a do Ouvidor. O footing passou a ser feito nos 33 metros de largura da avenida C entral, quando no se preferia um passeio de carro pela avenida Beira-Mar. No Rio 40 reformado circulava o mundo belle-poque fascinado com a Europa, envergonhado do B rasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro. Era o mundo do baro do Ri o Branco, ministro das Relaes Exteriores do presidente que promoveu as reformas. O mesmo baro que na juventude tinha sido capoeira e que agora se esforava em oferec er viso do estrangeiro um Brasil branco, europeizado, civilizado. Mas, se o novo Rio criado pela Repblica aumentava a segmentao social e o distan ciamento espacial entre setores da populao, as repblicas do Rio, vindas do Imprio, c ontinuaram a viver, a renovar-se, a forjar novas realidades sociais e culturais mais ricas e mais brasileiras que os versos parnasianos e simbolistas. Em certos momentos, elas podiam manifestar-se politicamente e de modo violento, como nas barricadas de Porto Artur. Todavia, na maioria das vezes elas cresciam em movime ntos lentos e subterrneos. Assim, a festa portuguesa da Penha foi aos poucos send o tomada por negros e por toda a populao dos subrbios, fazendo-se ouvir o samba ao lado dos fados e das modinhas. Na Pequena frica da Sade, a cultura dos negros muulm anos vindos da Bahia, sua msica e sua religio fertilizaram-se no novo ambiente, cr iando os ranchos carnavalescos e inventando o samba moderno.25 Um pouco depois, o futebol, esporte de elite, foi tambm apropriado pelos marginalizados e se trans formou em esporte de massa. Assim, o mundo subterrneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo sobre terrneo da cultura das elites. Das repblicas renegadas pela Repblica foram surgindo os elementos que constituiriam uma primeira identidade coletiva da cidade, mate rializada nas grandes celebraes do carnaval e do futebol. 41

CAPITULOU REPBLICA E CIDADANIAS* J ficou registrado que o fim do Imprio e o inicio da Repblica foi uma poca carac terizada por grande movimentao de idias, em geral importadas da Europa. Na maioria das vezes, eram idias mal absorvidas ou absorvidas de modo parcial e seletivo, re sultando em grande confuso ideolgica. Liberalismo, positivismo, socialismo, anarqu ismo misturavam-se e combinavam-se das maneiras mais esdrxulas na boca e na pena das pessoas mais inesperadas. Contudo, seria enganoso descartar as idias da poca c omo simples desorientao. Tudo era, sem dvida, um pouco louco. Mas havia lgica na lou cura, como poderemos verificar no exame do problema da cidadania. Vimos tambm que o perodo foi marcado, especialmente no Rio de Janeiro, pelo rpi do avano de valores burgueses. Velhos monarquistas, como Taunay, expressaram seu escndalo frente febre de enriquecimento, ao domnio absoluto de valores materiais, n sia de acumular riquezas a qualquer preo, que tinham dominado a capital da Repblic a. Mesmo republicanos ardorosos, como Raul Pompia, no deixaram de estranhar o novo * Verso ligeiramente modificada deste captulo foi publicada em Dados Revista de Cincias Sociais, 28 (2): 143-61, 1985. 42

esprito que dominava as pessoas. Segundo Pompia, longe iam os dias do romantismo a bolicionista e do danto- nismo da propaganda. "O que h agora po, po, queijo, queijo . Dinheiro dinheiro." Todos se ocupam de negcios e at a poltica dominada pelas fina nas: "A Repblica discute-se consubstanciada no Banco da Repblica".1 Mas foi mudana no campo da mentalidade coletiva. No que se refere aos princpio s ordenadores da ordem social e poltica, o liberalismo j havia sido implantado pel o regime imperial em quase toda a sua extenso. A Lei de Terras de 1850 liberara a propriedade rural na medida em que regulara seu registro e promovera sua venda como mecanismo de levantamento de recursos para a importao de mo-de-obra. A Lei de Sociedades Annimas de 1882 liberara o capital, eliminando restries incorporao de empr esas. A abolio da escravido liberara o trabalho. A liberdade de manifestao de pensame nto, de reunio, de profisso, a garantia da propriedade, tudo isso era parte da Con stituio de 1824. No que se refere aos direitos civis, pouco foi acrescentado pela Constituio de 1891. O mesmo se pode dizer dos direitos polticos. As inovaes republica nas referentes franquia eleitoral resumiram-se em eliminar a exigncia de renda, m antendo a de alfabetizao. O esprito das mudanas eleitorais republicanas era o mesmo de 1881, quando foi introduzida a eleio direta. At esta ltima data, o processo indireto permitia razovel nvel de participao no processo eleitoral, em torno de 10% da populao total. A eleio di eta reduziu este nmero para menos de 1%. Com a Repblica houve aumento pouco signif icativo para 2% da populao (eleio presidencial de 1894) 2 Percebera-se que, no caso bra43

sileiro, a exigncia de alfabetizao, introduzida em 1881, era barreira suficiente pa ra impedir a expanso do eleitorado. O Congresso Liberal de maio de 1889 j o disser a abertamente ao aceitar como indicador de renda legal o saber ler e escrever. O liberal Rui Barbosa, um dos redatores do projeto da Constituio de 1891, fora um d os principais propugnadores da reforma de 1881. Por trs desta concepo restritiva da participao estava o postulado de uma distino n da entre sociedade civil e sociedade poltica. O ponto j fora exposto com clareza p or Pimenta Bueno em sua anlise da Constituio de 1824. Pimenta Bueno buscou na Const ituio francesa de 1791 a distino, alis includa na prpria Constituio brasileira, entr ados ativos e cidados inativos ou cidados simples. Os primeiros possuem, alm dos dir eitos civis, os direitos polticos. Os ltimos s possuem os direitos civis da cidadan ia. S os primeiros so cidados plenos, possuidores do jus civitatis do direito roman o. O direito poltico, nesta concepo, no um direito natural: concedido pela sociedade queles que ela julga merecedores dele. O voto, antes de ser direito, uma funo soci al, um dever. Era esta, alis, a posio de John Stuart Mill, talvez o autor que maior influncia teve sobre os proponentes da reforma de 1881. Como se sabe, Mill era t

ambm contra o voto do analfabeto. Exigia como condio para o exerccio do voto at mesmo a capacidade de fazer as operaes bsicas da aritmtica.3 Sendo funo social antes que direito, o voto era concedido queles a quem a socie dade julgava poder confiar sua preservao. No Imprio como na Repblica, foram excludos os pobres (seja pela renda, seja pela exigncia da alfabetizao), os mendigos, as mul heres, os menores de idade, as praas de pr, os membros de or 44

dens religiosas. Ficava fora da sociedade poltica a grande maioria da populao. A ex cluso dos analfabetos pela Constituio republicana era particularmente discriminatria , pois ao mesmo tempo se retirava a obrigao do governo de fornecer instruo primria, q ue constava do texto imperial. Exigia-se para a cidadania poltica uma qualidade q ue s o direito social da educao poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrtica e resisten te a esforos de democratizao. A Constituio de 1891 tambm retirou um dispositivo da anterior que se referia ob rigao do Estado de promover os socorros pblicos, em outra indicao de enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos direitos sociais. O Cdigo Criminal de 1890 t eve a mesma inspirao. Tentou proibir as greves e coligaes operrias, em descompasso co m as correes que j se faziam na Europa interpretao rgida do princpio da liberdade de ntrato de trabalho. Foi a ameaa de greve por parte de alguns setores do operariad o do Rio que forou o governo a reformar logo os artigos que continham a disposio an tioperria (205 e 206). A Repblica, ou os vitoriosos da Repblica, fizeram muito pouco em termos de exp anso de direitos civis e polticos. O que foi feito j era demanda do liberalismo imp erial. Pode-se dizer que houve at retrocesso no que se refere a direitos sociais. Algumas mudanas, como a eliminao do Poder Moderador, do Senado vitalcio e do Consel ho de Estado e a introduo do federalismo, tinham sem dvida inspirao democratizante na medida em que buscavam desconcentrar o exerccio do poder. Mas, no vindo acompanha das por expanso significativa da cidadania poltica, resultaram em entregar o gover no mais diretamente nas mos dos setores dominantes, tanto 45 rurais quanto urbanos. O Imprio tornara-se um empecilho ao dinamismo desses setor es, sobretudo os de So Paulo. O Estado republicano passou a no impedir a atuao das f oras sociais, ou, antes, a favorecer as mais fortes, no melhor estilo spenceriano . Fora, alis, Spencer um dos inspiradores de Alberto Sales, o mais respeitado idel ogo da Repblica.4 Mas a propaganda republicana prometera mais do que isso. O entusiasmo e as e xpectativas despertadas em certas camadas da populao pelo advento do novo regime p rovinham de promessas democratizantes feitas nos comcios, nas conferncias pblicas, na imprensa radical. Quem melhor caracterizou este lado da campanha foi Silva Ja rdim, ao lado de seu antigo mestre Lus Gama e de Lopes Trovo. Silva Jardim e Lopes Trovo, particularmente, eram grandes agitadores populares. Trovo fora um dos prin cipais instigadores da Revolta do Vintm de 1880, que trouxe de volta o povo do Ri o ao primeiro plano da poltica aps ausncia de muitos anos. Silva Jardim foi protago nista de vrias demonstraes republicanas, algumas terminadas em tiroteio, como a de dezembro de 1888. Qual a inspirao de Silva Jardim? Era basicamente a retrica da Rev oluo Francesa.5 Contra os chefes evo- lucionistas do Partido Republicano, queria a transformao feita revolucionariamente nas ruas com apoio e participao do povo. Porm nunca exps sistematicamente suas idias sobre como seria a participao popular no novo regime. Falava apenas na necessidade inicial de uma ditadura republicana, que l he poderia ter sido inspirada tanto por Robespierre quanto pelo positivismo, a s er depois legitimada por sufrgio universal.* O radicalismo de Silva Jardim incomodava o grosso do partido e levou-o ao ro mpimento com a direo partidria. Foi-lhe at ocultada a data da revolta e ele dela 46 participou por acaso. Mas o fez dentro de sua especialidade: Benjamin Constant, temeroso de que falhasse o golpe, pedira a Annbal Falco, amigo de Silva Jardim, qu

e agitasse o povo. Nisso apareceu Silva Jardim, que de bom grado cumpriu a taref a, liderando o coro da Marselhesa pelas ruas. Todavia, logo aps a proclamao, foi si stematicamente boicotado. Nas eleies de 1890 para a Constituinte, no conseguiu eleg er-se no Rio de Janeiro, principal palco de sua atuao. Desiludido, como outros rad icais, com a Repblica, que no era a de seus sonhos, foi para a Europa, onde morreu em 1891, caindo no Vesvio. Mais pela simbologia da ao do que pelas idias, Silva Jardim introduzira uma con cepo de cidadania que se aproximava do modelo rousseauniano: a viso do povo como en tidade abstrata e homognea, falando com uma s voz, defendendo os mesmos interesses comuns. Apesar de ser tambm contratual, esta concepo difere do con- tratualismo lo ckeano, pois sua inspirao platnica salienta antes os aspectos comunitrios de integrao de todos na vontade geral da soberania. O todo mais do que a soma dos indivduos q ue o formam, podendo por isso ditar o que seja a verdadeira vontade destes. A idi a de ditadura republicana adequava-se bem a esta concepo. Segundo ela, o ditador e ra a encarnao da vontade coletiva e o instrumento de sua ao, sem que fosse necessria eleio formal, bastando a sano implcita, como expressamente admitia o manifesto do Par tido Republicano de Pernambuco de 1888, com a concordncia de Silva Jardim.7 Outro s temas dos republicanos radicais que reforavam a idia comunitria eram os da ptria e fraternidade, ambos tambm inspirados na Revoluo Francesa. O tema de ptria, em espec ial, freqente em Silva Jardim, destoando do discurso dos republicanos conservador es que insistiam antes na federao. Estes 47

ltimos, ao falarem de ptria, referiam-se a suas provncias, como foi o caso de Alber to Sales, que pregou abertamente o separatismo paulista em livro a que deu o sug estivo ttulo A Ptria Paulista, escrito em 1887. Silva Jardim achava um erro a sepa rao, apesar de compartilhar com os positivistas a idia de que a tendncia de todas as sociedades era formar pequenas ptrias.8 As razes da adoo desta viso integradora, comunitria, orgnica das relaes dos cidad om a sociedade poltica poderiam ter sido de natureza apenas ttica. O movimento rep ublicano era constitudo de uma frente ampla de interesses, que abrangia escravocr atas e abolicionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, profissionais liberais, pequenos comerciantes. A idia de povo, de ptria tinha o mrito de unir a todos, evitando embaraos. Mas o importante aqui apontar sua existncia e o fato de ter sido til na instrumentalizao da atuao poltica de certos setores que lutavam por um a ampliao da cidadania. Veremos como tal viso se relacionava com outras, particular mente com o positivismo. Alm dos propagandistas civis, conservadores e radicais, outro grupo que se sa lientou na propaganda do novo regime foi o dos militares. Desde a metade do sculo , segundo o estudo de Schultz, havia entre os oficiais do Exrcito insatisfao quanto ao que consideravam limitaes de seus direitos de cidadania. Mas foi certamente na ltima dcada da Monarquia que a insatisfao se tornou mais ruidosa e se expressou atr avs da idia do soldado-cidado. Havia neste movimento vrias inspiraes, algumas de natur eza ideolgica, outras organizacionais, outras polticas, que no necessrio explorar aq ui.9 Basta dizer que a inspirao ideolgica mais forte foi o positivismo transmitido aos jovens oficiais por Benjamin Constant. A viso profundamente antimilitarista d e Com48 te levava os militares a se sentirem pouco vontade dentro dos uniformes e a proc urar eliminar ao mximo a distncia que os separava do mundo civil atravs da reivindi cao da condio de plenos cidados, cidados ativos na terminologia de Pimenta Bueno. Na p rtica, as reivindicaes centravam-se no direito de reunio e de livre manifestao da opin io poltica. Houve mesmo um esforo eleitoral no sentido de levar ao Congresso candid atos militares. No fundo, o que se queria era maior peso nas decises polticas para a corporao militar. A relao entre cidado e soldado foi e continua sendo complicada. Na luta contra o absolutismo, um ponto importante era tirar da nobreza o monoplio das armas, era dar ao cidado o direito de armar-se para a defesa de seus interesses. A Constitu io americana incorporou em seu texto este direito como garantia do cidado contra o

Estado. A Frana revolucionria, alm de abrir o Exrcito, isto , o corpo de oficiais, bu rguesia, criou tambm a Guarda Nacional, o que equivalia a entregar as armas aos c idados, a criar o cidado-soldado. A Guarda Nacional brasileira de 1831 inspirou-se no modelo francs e em parte cumpriu a misso de colocar nas mos dos cidados de posse s a tarefa de manter a ordem. A milcia cidad, como era chamada, constitua sem dvida um instrumento liberal e, pelo menos em sua concepo original, democratizante.10 O problema do Exrcito no final do Imprio era o oposto: tratava-se de criar no o cidado -soldado mas o soldado-cidado. Eram os beneficirios do monoplio de portar armas, co mponentes da burocracia estatal, que desejavam para si a plenitude dos direitos de cidadania. Para isso no s no renunciavam condio de integrantes do Estado, como se utilizavam da fora que esta condio lhes dava. Lutavam de dentro para fora, no eram p arte de um movimento da socieda 49

de. Poder-se-ia dizer que buscavam maior participao atravs do pertencimento ao Esta do, isto , no se tratava tanto de cidadania mas do que poderamos chamar de estadani a.11 A contradio implcita nesta posio levou ao desenvolvimento de um ideologia segundo a qual o Exrcito se identificava com o povo. Foi talvez o republicano Raul Pompia o primeiro a propor esta formulao por ocasio de um dentre os muitos atritos entre o governo e o Exrcito nos ltimos anos da Monarquia. Raul Pompia descartava a possibi lidade de militarismo no Brasil, porque, dizia, "O Exrcito brasileiro muito povo para querer ser contra o povo e sobre o povo". E continuava: "O Exrcito plebeu e pobre, o Exrcito a democracia armada".12 Dentro do Exrcito, um dos melhores repres entantes dessa posio foi Lauro Sodr, republicano fantico, florianista e permanente c onspirador. Para ele, os militares sempre se haviam colocado ao lado das causas populares e democrticas, pois eram cidados fardados: "No h no nosso passado nem na n ossa histria uma pgina em que se registrem vitrias da liberdade contra a prepotncia, na qual no figure ao lado do povo, levantado para a defesa de seus direitos, o E xrcito que o prprio povo, que a agremiao de cidados unidos pelos laos da disciplina 3 A proclamao da Repblica por militares e a instalao dos governos militares no abalari am as convices de Raul Pompia. Pelo contrrio, passou a ver no Exrcito a nica classe or ganizada do pas. O fato de ter sido o Exrcito que fizera a Repblica no era uma deson ra para o povo mas uma honra para o Exrcito, que era o povo com armas. Sua ao seria mesmo prefervel diante da apatia do povo paisano.14 Tratava-se naturalmente de uma ideologia do oficia- lato republicano e dos c ivis que o apoiavam. Verso mais 50

radical desta ideologia existia entre as praas de pr. O jornal O Soldado, por exem plo, publicado no Rio em 1881, defendia o direito da classe militar de se repres entar perante a nao e de "tomar parte na administrao do Estado . Mas o apelo era dirig ido aos soldados e vinculava-se reforma eleitoral de 1881, que teria privado as praas do direito do voto. O jornal protestou dizendo que os soldados e o povo for am as "duas vtimas da usurpao e da prepotncia, e nicos espoliados de todos os direito s, e que s tm deveres . Reclamando da m aceitao do jornal pelo comandante do Batalho Na al, o redator respondeu que "O soldado no um servo da gleba, um cidado, tem devere s a cumprir e direitos a gozar . Em carta ao imperador publicada pelo jornal, um e x-vo- luntrio da Guerra do Paraguai queixava-se com amargura e violncia: em troca dos sacrifcios como voluntrio, perdera at a cidadania com a nova lei eleitoral.15 A aliana, ou mesmo identidade, entre soldado e povo, mais particularmente entre so ldado e operrio, era defendida em termos mais radicais pelo jornal Revoluo. Segundo este jornal, o soldado era o obreiro da guerra, o obreiro o soldado da paz. E c onclamava: "Ns, soldados e obreiros, artistas e operrios, devemos nos confundir na praa pblica bradando a uma voz: Revoluo! .16 Esta verso radical, quase sans-cullotte, propondo uma aliana real e no simblica entre o soldado concreto, e no a corporao, e o povo operrio, e no o povo em abstrato, era minoritria. Mesmo assim, retrica revolucionria parte, os porta-vozes desta pos io eram pessoas de algum modo vinculadas ao Estado. O jornal O Soldado, embora dir igido s praas, era redigido por um alferes honorrio do Exrcito, e os operrios a que s

e refere Revoluo eram sem dvida os operrios do Estado. Vimos que o redator fora demi tido do servio pblico 51

e parte de sua exaltao revolucionria devia-se certamente a este fato. Os operrios do Estado merecem referncia especial. Constituam parte importante d o operariado do Rio no final do Imprio e incio da Repblica, e foram outro setor da populao que viu a Repblica como uma oportunidade de redefinir seu papel poltico. Tra tava-se principalmente dos operrios dos arsenais do Exrcito e da Marinha, dos ferr ovirios da Estrada de Ferro D Pedro II, depois Central do Brasil, dos grficos da Imprensa Nacional, dos operrios da Ca sa da Moeda e de alguns setores dos porturios. Vrios dos jornais radicais no fim d o Imprio tinham ligao com estes grupos. Alm de Revoluo, havia a Gazeta dos Operrios (1 75), que defendia os operrios dos arsenais; a Unio do Povo (1877), que se dizia rgo do funcionrio pblico, do artista e do operrio; O Nihilista (1883), jornal dos operri os, do Exrcito e da Armada; O Artista (1883), defensor dos operrios da Tipografia Nacional, da Cas$ da Moeda e dos arsenais. Logo aps a proclamao, houve tentativas de organiz-los politicamente, seja atravs de elementos de fora, seja de dentro da classe. A primeira tentativa deveu-se ao s positivistas. Ainda em 1889, Teixeira Mendes reuniu- se com 400 operrios da Unio e discutiu um documento que entregou a seguir a Benjamin Constant, ento ministro da Guerra. As bases ideolgicas do documento, como era de esperar, sustentavam-se na noo positivista da necessidade de incorporar o proletariado sociedade. As medi das prticas propostas caracterizavam uma legislao trabalhista muito avanada para a po ca. Inclua jornada de sete horas, descanso semanal, frias de 15 dias, licena remune rada para tratamento de sade, aposenta 52 doria, penso para a viva, estabilidade aos sete anos de servio etc.17 Pouco depois, no incio de 1890, houve vrias tentativas de criar um Partido Ope rrio, j a abrangendo tambm operrios do setor privado. Estabeleceu-se uma disputa entr e lderes operrios, como Frana e Silva, que lutava por um partido controlado pelos p rprios operrios, e o tenente Jos Augusto Vinhaes, da Marinha, que organizou um part ido sob sua liderana. Vinhaes tinha suas bases principais entre os ferrovirios, co m incurses tambm nos arsenais e entre os porturios, onde outro oficial da Marinha, Jos Carlos de Carvalho, tambm era influente. Na irnica expresso de Frana e Silva, Vin haes colocava-se como o So Gabriel do governo, intermedirio entre Deodoro e os ope rrios.18 Vinhaes teve mais xito que Frana e Silva em conseguir o apoio operrio, eleg endo-se para a Constituinte, depois transformada em primeira legislatura republi cana. Na Cmara, justia se lhe faa, falou vrias vezes em defesa do operariado e dos p obres em geral, protestando contra a carestia, propondo aumentos salariais, crit icando a ao da polcia nas gr- ves, defendendo a ampliao do voto.JDizia-se mesmo social ista e mereceu dos adversrios a acusao de petroleiro e niilista, o equivalente ao t errorista de hoje. Por sugesto sua, o governo introduziu a primeira legislao de pro teo ao trabalho do menor (1891). Organizou tambm um Banco de Operrios, moda do Penny -Bank de Londres. Segundo ele, o banco possua 6 722 acionistas em fevereiro de 18 91.19 Vinhaes esteve ainda envolvido em diversas greves de natureza poltica, comea ndo pela dos ferrovirios, em 1891, que ajudou a derrubar Deodoro, e terminando na dos estivadores, ferrovirios e carroceiros, em 1900, planejada como parte do gol pe destinado a derrubar Campos Sales. A maior conquista do Partido dos 53 Operrios que criara foi sem dvida a de ter forado o governo, atravs de ameaa de greve geral, a mudar o Cdigo Penal nos artigos que proibiam a greve e a coligao operrias, em dezembro de 1890. Vinhaes serviu de intermedirio entre os operrios e o governo . Seja qual for a avaliao de seu papel do ponto de vista dos interesses operrios, o importante salientar que, como no caso dos militares, embora em escala menor, t ambm aqui a tentativa de acesso a uma cidadania mais ampla se deu pelas portas ou pelos porteiros do Estado. No caso da ao positivista (e quase todas as lideranas republicanas que se preoc

upavam com o proletariado o faziam em funo da influncia comteana), as conseqncias par a a construo da nova cidadania foram ainda mais srias. A noo positivista de cidadania no inclua os direitos polticos, assim como no aceitava os partidos e a prpria democr acia representativa. Admitia apenas os direitos civis e sociais. Entre os ltimos, solicitava a educao primria e a proteo famlia e ao trabalhador, ambas obrigao do E . Como vetava a ao poltica, tanto revolucionria quanto parlamentar, resultava em que os direitos sociais no poderiam ser conquistados pela presso dos interessados, ma s deveriam ser concedidos paternalisticamente pelos governantes. Na realidade, n esta concepo no existiam sequer os cidados ativos. Todos eram inativos, espera da ao luminada do Estado, guiado pelas luzes do grande mestre de Montpellier e de seus porta-vozes. A posio de Vinhaes tinha um sentido menos castrador, j que buscava organizar a ao operria atravs de partidos, de movimentos grevistas e da ao parlamentar. Mas no h se negar que sua ao foi preventiva no sentido de retirar o movimento operrio das mo s de suas prprias lideranas, o que pode ser confirmado pela 54 maneira como agiu em 1890. Nesse sentido, representou o incio de uma ao cooptativa do Estado em relao classe operria, que teria amplo curso no Rio de Janeiro durante a Primeira Repblica, sobretudo no que se refere aos operrios ligados direta ou ind iretamente ao setor pblico. De novo, a estadania se misturava cidadania, se no a s obrepujava. Proposta diferente era a de Frana e Silva, Vicente de Souza, Evaristo de Mora es, Gustavo de Lacerda e ou* tros, que se diziam socialistas. As idias de Frana e Silva, expostas no Echo Popular, so as que mais se aproximam do modelo clssico de expanso da cidadania. A Repblica, achava, viera possibilitar a extenso do direito d e intervir nos negcios pblicos a todos os cidados. Os operrios, at ento vivendo como f orasteiros no solo da ptria, vinham agora reivindicar este direito atravs de uma o rganizao partidria que se propunha defender seus interesses dentro das regras do si stema representativo. A reivindicao era reforada pela afirmao de nova identidade para o operrio, segundo a qual, embora marginalizado na sociedade poltica, ele constit ua o principal fator de progresso do Brasil e de todas as naes.20 Vrias tentativas f oram feitas nas duas primeiras dcadas republicanas de formar partidos socialistas operrios, tanto no Rio quanto em So Paulo e outros Estados, nenhuma delas com xito . No Rio, houve em 1892 um Congresso Socialista organizado por iniciativa de Fra na e Silva, com a participao de 400 operrios, do qual resultou o Partido Operrio do B rasil. Em 1895, com a participao de Evaristo de Moraes, foi fundado um Partido Soc ialista Operrio. Em 1899 surgiu um Centro Socialista, e em 1902 foi criado por Gu stavo de Lacerda e Vicente de Souza o Partido Socialista Coletivista. Finalmente , em 1908, estivadores e cocheiros fundaram o Partido Operrio Socia 55 lista, em que de novo se verificou a presena de Evaristo de Moraes. As propostas de todas estas organizaes eram as do socialismo democrtico, isto , lutar por maior p articipao e conseguir reformas, especialmente sociais, atravs do mecanismo represen tativo. Nenhuma delas teve longa vida, muitas no chegaram a completar um ano.21 A rigidez do sistema republicano, sua resistncia em permitir a ampliao da cidad ania, mesmo dentro da lgica liberal, fez com que o encanto inicial com a Repblica rapidamente se esvasse e desse origem decepo e ao desnimo. O desencanto fica transpa rente no Manifesto do Centro Socialista aos Operrios e Proletrios, lanado em 9 de j aneiro de 1899 no Rio de Janeiro. A se afirma que, se o Imprio vivera sob o monopli o dos donos de escravos, a Repblica "vai vivendo custa dos mais repugnantes sindi catos polticos e industriais, geradores de uma perigosa oligarquia plutocrtica to p erniciosa como a oligarquia aristocrtica". Em conseqncia, prossegue o Manifesto, o Brasil se acha na mesma condio da Europa, onde os vcios do capitalismo s deixam ao o perrio a opo entre o socialismo reformador e o anarquismo revolucionrio. Na verdade, os socialistas brasileiros viram-se logo entre estes dois fogos: de um lado, os que defendiam a cooperao direta com o governo, a estadania; de outro, e cada vez mais, os anarquistas, que rejeitavam totalmente o sistema poltico. A partir do inc io do sculo, a corrente anarquista ganhou crescente influncia. Ela trazia um conce

ito radicalmente diferente de cidadania. Por ter influenciado um setor da populao que exatamente buscava insero no novo sistema, merece exame mais detido. O primeiro jornal anarquista do Rio parece ter sido O Despertar, de Jos Sarme nto, publicado em 1898. Em linguagem cheia de espanholismos, denunciadora da 56

origem do articulista, o jornal revela individualismo espontanesmo extremados, re jeitando at mesmo a organizao da propaganda. Defende como nica arma operria a greve, visando a greve geral que abolir o Estado. A seguir, vieram O Protesto (1899), O Golpe (1900), a revista Asgarda (1902), O Trabalhador, A Greve (1903), a revista Kultur (1904), O Libertrio (1904), de Neno Vasco, portugus e talvez o mais culto dos anarquistas na poca. exceo do ltimo, todos estes jornais e revistas foram editad os por Elysio de Carvalho e Mota Assuno, incansveis doutrinadores anarquistas.22 A partir de 1903, com a criao da Federao de Associaes de Classe e, especialmente, aps o ongresso Operrio de 1906 e a subseqente criao da Federao Operria do Rio de Janeiro, au entou a penetrao do anarquismo entre os operrios. Surgiram vrias publicaes anarquistas vinculadas a organizaes de classe. Alguns exemplos so Accordem (1905), da Sociedad e de Carpinteiros e Artes Correlatas; Novo Rumo (1906), de Alfredo Vasques; O Ba luarte (1907), da Associao dos Chapeleiros, cujo secretrio era Jos Sarmento; O Marmo rista (1907), e principalmente A Voz do Trabalhador (1908), rgo da Confederao Operria Brasileira, para ficar s no Rio de Janeiro. Embora todos se dissessem anarquistas ou libertrios, havia algumas nuanas impo rtantes entre eles. Elysio de Carvalho distinguia j em 1904 duas correntes princi pais: os anarquistas comunistas e os anarquistas individualistas. O primeiro gru po, de longe o mais numeroso, segundo Elysio, seguia Kropotkine, Rclus, Malatesta , Hamon, e contava entre seus membros Neno Vasco, Ben- jamin Mota, Fbio Luz e, es tranhamente, Evaristo de Moraes. Eram pela revoluo social, pela abolio da propriedad e privada e do Estado, mas admitiam o sindicalismo como arma de luta. O segundo grupo seguia a linha 57

de Max Stirner, de um exacerbado individualismo. Tambm pregava a abolio do Estado, porm era contra toda forma de organizao que no fosse espontnea e queria a manuteno da ropriedade privada aps a revoluo.23 A primeira corrente continuou a predominar nos anos seguintes. Apesar das di ferenas, no que se refere posio em relao autoridade e ao Estado, no havia grande di gncia entre os libertrios. Todos repudiavam qualquer tipo de autorid