Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    1/112

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    2/112

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    3/112

    Crditos

    Copyright 2010 by Editora Globo S.A. para a presente edioCopyright 2010 by Richard StengelEsta traduo foi publicada em acordo com a Crown Publishers uma diviso da Random House, Inc.Ttulo original: Mandelas WayTraduo: Douglas KimPreparao de texto: Beatriz de Freitas MoreiraReviso: Ana Maria Barbosa / Jamilson Jose Alves da Silva

    Projeto grfico, paginao e capa: epizzoProduo para ebook: Fbrica de PixelImagem de capa: Louise Gubb/CORBIS SABATextofixado conforme as regras do novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto Legislativo n 54, de 1995).Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida por qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico,fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorizao da editora.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Stengel, Richard

    Os caminhos de Mandela : lies de vida, amor e coragem /Richard Stengel ; traduo Douglas Kim. -- So Paulo : Globo, 2010.

    Ttulo original: Mandelas`s way : fifteen lessons on life, love and courage .ISBN 978-85-250-5126-4

    1. Ativistas pelos direitos humanos - frica do Sul - Biografia

    2. Conduta de vida 3. Mandela, Nelson, 1918- 4. Movimentosantiapartheid - frica do Sul I. Ttulo.

    10-01790 CDD-920.93234ndices para catlogo sistemtico:1. frica do Sul : Ativistas pelos direitoshumanos : Biografia 920.93234

    EDITORA GLOBO S.A.

    Av. Jaguar, 1485 So Paulo, SP, Brasil05346-902www.globolivros.com.br

    http://www.globolivros.com.br/http://www.globolivros.com.br/
  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    4/112

    Capa

    Folha de rosto

    Crditos

    Dedicatria

    Prefcio

    Introduo: Um homem complexo

    1 - Coragem

    2 - Seja ponderado

    3 - Lidere na frente

    4 - Lidere da retaguarda

    5 - Represente o papel

    6 - Tenha um princpio essencial todo o resto ttica

    7 - Veja o que h de bom nos outros

    8 - Conhea o seu inimigo

    9 - Mantenha seus rivais por perto

    10 - Saibaquando dizer no

    11 - um jogo demorado

    12 - O amor faz a diferena

    13 - Desistir tambm liderar

    14 - Sempre ambos

    15 - Encontre sua prpria horta

    A ddiva de Mandela

    Agradecimentos

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    5/112

    Dedicatria

    Para Anton e Gabri

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    6/112

    Prefcio

    Prefcio

    Na frica existe um conceito conhecido como ubuntu o sentimento profundo de que somohumanos somente por intermdio da humanidade dos outros; se vamos realizar qualquer coineste mundo, ela ser devida em igual medida ao trabalho e s realizaes dos outros. RichaStengel uma dessas pessoas que facilmente compreendem essa ideia. Ele um excelenescritor, com um profundo conhecimento da nossa histria. Somos muito gratos a ele por su

    colaborao na criao de Long walk to freedom [Longo caminho para a liberdade]. Temolembranas ternas das muitas horas de conversas e trabalho rduo que realizamos nessprojeto. Ele mostrou ter uma notvel percepo sobre os muitos e complexos desafios dliderana que ainda fazem frente ao mundo de hoje e a todos os seus indivduos. Todos podemaprender com isso.

    Nelson Mandela, novembro de 2008

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    7/112

    Introduo: Um homem complexo

    IntroduoUm homem complexo

    DESEJAMOS TER HERIS, mas existem muito poucos. Nelson Mandela talvez seja ltimo heri puro do planeta. o smbolo sorridente do sacrifcio e da integridadreverenciado por milhes como um santo vivo. Mas essa imagem unidimensional. Ele serio primeiro a lhe dizer que est longe de ser um santo e isso no falsa modstia.

    Nelson Mandela um homem de muitas contradies. Tem a casca grossa, mas se ferfacilmente. sensvel ao modo como os outros se sentem, mas com frequncia ignora aqueleque esto mais prximos. generoso com relao a dinheiro, mas conta os centavos quandd uma gorjeta. No pisa um grilo ou uma aranha, mas foi o primeiro comandante do braarmado do Congresso Nacional Africano (CNA). um homem do povo, mas se deleita ncompanhia de celebridades. vido por agradar, mas no teme dizer no. No gosta de colhelouros, mas vai deix-lo saber quando deve receb-los. Cumprimenta todos na cozinha, mano sabe o nome de todos os seus seguranas.

    Sua persona uma mistura de realeza africana e aristocracia britnica. um gentlemavitoriano em um dashikide seda.[1] Seus modos so refinados afinal, ele os aprendeu emescolas coloniais britnicas, com diretores que leram Dickens quando Dickens ainda estavescrevendo. Ele formal: vai inclinar-se levemente e estender o brao para ceder-lhe passagem. Mas no nem um pouco afetado ou certinho fala com detalhes quase cirrgicosobre a rotina dos banheiros na priso da Ilha Robben ou como se sentiu quando seu prepcfoi cortado durante o ritual de circunciso tribal, quando tinha dezesseis anos. Usa talheres dprata quando est em Londres ou Johannesburgo, mas quando est na sua regio nata

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    8/112

    Transkei, prefere comer com as mos, como o costume local.Nelson Mandela meticuloso. Retira lenos de papel de uma caixa e dobra cada um

    novamente antes de coloc-los no bolso. Eu o vi retirar um dos sapatos durante uma entrevispara desvirar uma meia, quando reparou que ela estava ao contrrio. Na priso, fez uma cpde cada carta que escreveu durante duas dcadas e manteve uma lista detalhada de todas acartas que recebeu, com as datas de recebimento e de resposta. Dorme em um dos lados d

    uma cama king-size, enquanto o outro lado permanece intacto e intocado. Levanta-se antes dalvorecer e faz a cama, meticulosamente, toda manh, esteja em casa ou em um hotel. Vi expresso de espanto de camareiras quando o encontraram fazendo a cama. Odeia atrasos considera a falta de pontualidade uma falha de carter.

    Nunca conheci um ser humano que consiga ficar parado como Nelson Mandela. Quandest sentado ou ouvindo, no mexe os dedos das mos, ou os ps, no se move. No tem tiquenervosos. Quando eu ajustava sua gravata, alisava seu terno ou fixava o microfone em sulapela, era como mexesse em uma esttua. Quando ele o est ouvindo, como se voc

    estivesse olhando para uma fotografia dele mal se repara se est respirando. um esprito encantador e confiante de que ir seduzi-lo, por quaisquer meios possveis.

    atencioso, corts, cativante e, para usar uma palavra que ele odiaria, sedutor. E trabalha nissoAprender o mximo que puder sobre voc antes de encontr-lo. Quando foi solto, lia oartigos dos jornalistas e os elogiava individualmente, com detalhes especficos. E, como maioria dos grandes sedutores, ele prprio facilmente seduzido pode-se conseguir isso adeix-lo perceber que o persuadiu.

    O encanto tanto poltico como pessoal. A poltica , em ltima anlise, convencer, e e

    considera a si mesmo no tanto um Grande Comunicador, mas um Grande ConvencedoEle ir convenc-lo por meio da lgica e do argumento ou por meio do charme geralmentuma combinao de ambos. Ele sempre ir convenc-lo a fazer algo, em lugar de orden-lMas se for necessrio, dar ordens para que voc faa algo.

    Ele necessita que gostem dele. Gosta de ser admirado. Odeia desapontar. Quer que, depode encontr-lo, voc v embora pensando que ele tudo o que sempre imaginou. Isso exiguma tremenda energia, e ele se entrega a quase todo mundo que encontra. Quase todos veemo Mandela Completo. Exceto quando est cansado. Ento seus olhos caem a meio mastro

    ele parece estar dormindo em p. Mas nunca conheci um homem que se reanimasse tancom uma noite de sono. Ele pode dar a impresso de estar porta da morte s dez da noite, ento, oito horas depois, s seis da manh, vai estar lpido e vinte anos mais novo.

    Seu charme est em proporo inversa ao quanto ele o conhece. afetuoso com estranhoe frio com os ntimos. O sorriso caloroso e afvel concedido a cada nova pessoa que entra emsua rbita. Mas o sorriso reservado para os de fora. Eu o vi muitas vezes com seu filho, suafilhas, suas irms o Nelson Mandela que eles conhecem muitas vezes parece ser um homemsevero e sisudo, que no indulgente com os problemas deles. um pai vitoriano/african

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    9/112

    no um pai moderno. Quando voc lhe pergunta sobre algo de que no quer falar, mantm rosto com o cenho franzido de desagrado. Sua boca se transforma em uma caricatura invertiddo seu sorriso. No tente forar a questo ele simplesmente vai ficar impassvel e desviar ateno para outro lugar. Quando isso ocorre, como um dia ensolarado que de sbito ficnublado.

    Mandela indiferente a quase todos os bens materiais no conhece ou no se impor

    com marcas de carros, sofs ou relgios , mas o vi enviar um segurana, que teve de dirigpor uma hora, para buscar sua caneta favorita. Ele generoso com seus filhos quando se tratde dinheiro, mas no conte com sua generosidade se voc garom. Uma vez, almoamos emum restaurante elegante de um hotel em Johannesburgo, onde ele foi magnificamente servidoA conta chegou a mais de mil rands e vi Mandela examinar algumas moedas em sua mo deixar uns poucos trocados. Depois que ele foi embora, passei uma nota de cem rands agarom. No foi a nica vez que fiz isso.

    Ele vai sempre defender o que acredita ser correto com uma teimosia virtualmen

    inflexvel. Diversas vezes o ouvi dizer: Isso no certo. Fosse algo mundano ou dimportncia mundial, seu tom de voz era invarivel. Eu o ouvi dizer tal frase quando a chavde um segurana no abriu seu escritrio e o ouvi dizer a mesma frase diretamente apresidente sul-africano F. W. de Klerk, referindo-se s negociaes constitucionais. Usoudurante anos na Ilha Robben, quando falava com um guarda ou com o diretor da priso. Issno certo. De forma bem bsica, essa intolerncia injustia era o que o instigava. Era motor da sua insatisfao, seu simples veredicto sobre a bsica imoralidade do apartheid. Evia algo errado e tentava corrigi-lo. Via injustia e tentava repar-la.

    * * *

    Como sei de tudo isso?

    Colaborei com Nelson Mandela na sua autobiografia. Trabalhamos juntos por quase tranos, e durante grande parte desse tempo o vi quase diariamente. Viajei com ele, fizemorefeies juntos, amarrei seus sapatos, arrumei sua gravata e passamos horas e horaconversando sobre a vida e o trabalho dele.

    Meu caminho at Mandela foi acidental. Primeiro, fui at a frica do Sul por acasoconsegui o lugar de outro jornalista que cancelou a viagem no ltimo minuto. Com banaquela viagem, escrevi um livro sobre a vida em pequenas cidades na frica do Sul sob apartheid. Quando o editor das futuras memrias de Mandela topou com o meu livrofereceu-me a chance de trabalhar com Mandela na histria da sua vida.

    Foi assim que me vi em Johannesburgo em dezembro de 1992, esperando para encontrNelson Mandela. Era uma poca difcil e incerta na histria da frica do Sul, o pas corria risco de cair em guerra civil. Mandela estava fora da priso havia menos de trs anos e lutav

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    10/112

    para consolidar seu poder e levar o pas primeira eleio democrtica de sua histriTrabalhar em sua autobiografia no era exatamente o item nmero um de sua lista do qufazer, mas ele queria contar a sua histria.

    Mandela me deixou esperando por quase um ms antes do nosso primeiro encontrQuando finalmente aconteceu, quase afundei o projeto. Estava sentado na antessala do seescritrio na sede do CNA, esperando que sasse. Em vez disso, levantei os olhos e ele estav

    vindo pelo saguo, na minha direo, pelo outro lado. Andava vagarosamente, de formcontrolada, quase em cmera lenta. A primeira coisa que notei foi a sua pele era de um belcaramelo, suave, marrom-amarelado. Seus traos so belamente moldados, com as mas drosto salientes e uma expresso quase asitica. Tem 1,87 metro e tudo nele sua cabea, suamos parece um pouco maior que a vida. Quando se aproximou, eu me levantei:

    Ah, voc deve ser, ele disse, e ento esperou que eu completasse.Richard Stengel, completei, e ele estendeu a mo. Era carnuda, quente e seca, os dedo

    grossos como salsichas, a pele ainda spera pelas dcadas de trabalho pesado.

    Examinou-me. Ah disse com um sorriso voc homem jovem. As duas ltimpalavras foram pronunciadas como uma s: homejovem. Isso, claramente, no era um elogiGesticulou para que eu fosse at o seu escritrio. Era grande, formal e completamenarrumado. Parecia um falso escritrio, mas no era. Ele parou para falar algo com suassistente, uma mulher pequena e vigorosa, que lhe entregou um papel para assinar. Pegou papel lenta e cuidadosamente era bvio que fazia tudo de maneira muito cuidadosa. Sentouse sua mesa e comeou a l-lo. No estava passando os olhos, estava lendo cada palavrEnto escreveu seu nome lentamente no final, como se ainda estivesse aperfeioando suassinatura.

    Caminhou e sentou-se na cadeira de couro gasta em frente ao sof. Perguntou-me quandhavia chegado. Sua voz era levemente indistinta, como um trompete com surdina.

    Voc veio somente para esse projeto ou tambm para algo mais?, perguntou.Meu corao parou. Sua pergunta insinuava que a autobiografia no era o bastante par

    justificar uma viagem por si s. Respondi que tinha ido apenas pelo livro. Balanou a cabeNo desperdiava palavras.

    Ele me disse que estava planejando sair de frias em 15 de dezembro e que sua equiptinha reservado quatro ou cinco dias para que conversssemos. Acrescentou que esperava qupudssemos terminar o projeto antes de suas frias, que ocorreriam em dez dias. Eu tinhpassado um ms dando telefonemas sem obter resposta, tentando encontr-lo, e vrios mesede preparao e pesquisa, ento talvez tenha sido a frustrao guardada que me levou a lhdizer, em um tom de voz levemente alto: Quatro ou cinco dias? Se o senhor pensa que podfazer esse livro em quatro ou cinco sesses, o senhor... o senhor... no conseguia encontraa palavra certa est se iludindo.

    Estava na presena de Mandela havia menos de dez minutos e tinha insinuado que ele n

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    11/112

    tinha uma compreenso slida da realidade. Encarou-me com uma sobrancelha levemenarqueada e ento se levantou. J estava pronto para que eu fosse embora. Ento voltou sumesa, chamou sua assistente e disse: O senhor Stengel est aqui e estamos tentando elaborauma agenda. Disse que tinha um compromisso naquela noite e que no queria me apressamas que eu deveria falar com sua assistente na manh de segunda-feira. Com isso, eu estavfora do seu escritrio e talvez da sua vida.

    Na segunda-feira noite recebi uma ligao dizendo que Mandela gostaria de me ver sete horas na manh seguinte. Pontualmente s sete horas nos sentamos na mesmconfigurao da ltima vez. Vamos comear ele disse, como se fosse um juiz spreparando para iniciar um julgamento. Limpei a garganta e disse que primeiro gostaria dme desculpar pelo meu comportamento no outro dia. Desculpe-me, fui to... to... e parenovamente pela falta da palavra certa to bruscocom o senhor naquele dia. A palavra sooestranha e pretensiosa. Ele me encarou e sorriu um sorriso que era engraado, compreensive um pouco cansado.

    Voc deve ser mesmo um jovem muito gentil, ele disse, se pensa que a nossa converno outro dia foi brusca. E ele disse a palavra muito cuidadosamente, com um r vibrante ncomeo e um cduro no fim.

    Eu ri.Ele esteve na priso por 27 anos com guardas que, durante grande parte daquele perodo

    trataram-no como se no fosse humano e com uma brutalidade eventual j garantida. Antedisso, fora caado por policiais e soldados que o consideravam um terrorista a ser detido qualquer custo. Vivia em um pas onde a classe dominante branca no o considerava otratava como um ser humano. Tudo isso era um pouco mais que brusco.

    E assim foi o comeo da nossa amizade. Nos dois anos seguintes, acumulei mais de setenhoras de entrevistas com ele, mas isso esvanecia em comparao s horas, aos dias e meses qupassamos na companhia um do outro. Decidi desde o princpio que ficaria ao seu lado tantquanto ele tolerasse em reunies, eventos, frias e viagens de Estado. Passei horas com elem sua casa em Houghton, viajei com ele sua casa de campo em Transkei e fui com ele paros Estados Unidos, para a Europa e a todos os lugares na frica. Fiz campanha com el

    compareci a rodadas de negociao, tornei-me, tanto quanto pude, sua sombra. Mantive umdirio do meu tempo com ele, que no fim chegou a 120 mil palavras. Muito deste livro vemdessas notas.

    Qualquer um que tenha passado bastante tempo com Nelson Mandela sabe que no somente um grande privilgio, mas um grande prazer. Sua presena preciosa, luminosVoc se sente um pouco mais alto, um pouco superior. A maior parte do tempo ele pacima, confiante, generoso, divertido. Mesmo quando o peso do mundo estava sobre os seuombros, ele o aceitava alegremente. Quando voc est com ele, sente que est vivendo

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    12/112

    histria enquanto ela est sendo feita. Ele me deixou entrar em grande parte de sua vida, emalguns de seus pensamentos e em um pouco de seu corao. Foi o homem que insistiu parque me casasse com a mulher sul-africana que se tornou minha esposa e posteriormente stornou padrinho do meu filho. Eu o amava. Ele foi a causa de grande parte das melhorecoisas que aconteceram na minha vida. Ao deixar a sua companhia, quando o livro finalmenestava terminado, foi como se o sol estivesse apagando-se. Vimos um ao outro muitas vezes a

    longo dos anos, e ele passou um tempo com meus dois meninos, que o consideram um avgentil. Mas no mais uma presena regular em nossas vidas. Este livro tanto umagradecimento pelo tempo que ele me deu e pela afeio por mim quanto um presente para oque no puderam se beneficiar da sua generosidade e sabedoria.

    * * *

    Nelson Mandela teve muitos professores em sua vida, mas o maior de todos foi a priso.

    priso moldou o homem que vemos e conhecemos hoje. Ele aprendeu sobre a vida e liderana a partir de muitas fontes: o pai distante; o rei de Thembu, que o criou como filhoseus amigos e companheiros leais, Walter Sisulu e Oliver Tambo; figuras histricas e chefede Estado, como Winston Churchill e Hail Selassi; as palavras de Maquiavel e Tolsti. Mos 27 anos que passou na priso tornaram-se o teste que o fortaleceu e consumiu tudo o quera insignificante. A priso ensinou-lhe autocontrole, disciplina e foco as qualidades quconsidera essenciais liderana e ensinou-lhe como se transformar num ser humancompleto.

    O Nelson Mandela que saiu da priso aos 71 anos era um homem diferente do que entronela aos 44. Vejam essa descrio do jovem Mandela feita pelo seu amigo mais prximo e escio, Oliver Tambo, que se tornou lder do CNAenquanto Mandela estava na priso. Comhomem, Mandela entusiasmado, emotivo, sensvel, facilmente melindrado ao rancor e retaliao pelo insulto e pela condescendncia.

    Emotivo? Entusiasmado? Sensvel? Facilmente melindrado? O Nelson Mandela que saida priso no nenhuma dessas coisas, ao menos aparentemente. Hoje, ele consideraria todoesses adjetivos censurveis. Realmente, uma das maiores crticas que ele dirige a algum qu emotivo ou muito entusiasmado ou sensvel. Repetidamente, as palavras que o ouusando para elogiar os outros foram equilibrado, ponderado, controlado. O elogio qufazemos aos outros um reflexo de como nos vemos e aquelas so precisamente as palavraque ele usaria para descrever a si mesmo.

    Como esse entusiasmado revolucionrio tornou-se um homem de Estado ponderado? Npriso, tinha de moderar suas respostas para tudo. Havia pouco que um prisioneiro pudesscontrolar. A nica coisa que voc podia controlar que voc tinha de controlar era vocmesmo. No havia lugar para o impulso, a autoindulgncia ou a falta de disciplina. Ele n

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    13/112

    tinha zona de privacidade. Quando entrei pela primeira vez na antiga cela de Mandela na IlhRobben, assustei-me. No havia espao para um ser humano, era muito menor que o tamanhde Mandela. Ele no podia se esticar quando estava deitado. Era bvio que a priso o tinhmoldado, literal e figurativamente: no havia espao para movimento insignificante oemoo, tudo tinha de ser aparado, tudo tinha de ser ordenado. Toda manh e toda noite earrumava cuidadosamente os poucos bens que fora autorizado a ter naquela cela minscula.

    Ao mesmo tempo, tinha de continuar a ser forte, todos os dias, diante das autoridades. Eralder dos prisioneiros e no podia se degradar; todo mundo via ou percebia instantaneamentquem recuava ou fazia concesses. Ele se tornou ainda mais consciente do modo como evisto por seus companheiros. Embora tivesse sido isolado do mundo, a priso era seu prpriuniverso e ele tinha de liderar l tanto quanto, ou mais, do que quando saiu. E em meio tudo isso tinha tempo muito tempo para pensar, planejar e aperfeioar, e ento aperfeioainda mais. Durante 27 anos ponderou no somente sobre poltica, mas sobre como scomportar, como ser um lder, como ser um homem.

    Mandela no introspectivo ao menos, no no sentido de que ir falar sobre seusentimentos ou pensamentos ntimos. Muitas vezes ficou frustrado e, s vezes, irritado quando tentei que analisasse seus sentimentos. Ele no fluente nas lnguas modernas dpsicologia ou da autoajuda. O mundo no qual foi criado no foi afetado por Sigmund FreudEle medita muito sobre o passado, mas raramente fala sobre ele. Houve apenas um momentde autocomiserao que presenciei. Estvamos falando da sua infncia e ele ficou olhandpara longe e disse: Sou um velho que s pode viver no passado. E isso foi na poca em questava se preparando para ser presidente da nova frica do Sul e criar uma nova nao

    momento do seu maior triunfo.Contudo, mais e mais eu lhe perguntava sobre como a priso o tinha transformado. Quan

    o homem que tinha sado em 1990 era diferente do que tinha entrado em 1962? Essa pergunto irritava. Ou ele a ignorava, indo direto a uma resposta poltica, ou recusava a premissFinalmente, um dia, disse-me, exasperado: Sa maduro.

    Sa maduro.O que ele queria dizer com essas palavras? Andr Malraux escreveu em suas memrias qu

    o mais raro no mundo o homem maduro. Mandela concordaria com ele. Para mim, essaduas palavras so a pista mais profunda para saber quem Mandela e o que aprendeu. Porquaquele jovem sensvel, emotivo, no desapareceu. Ainda est dentro do Nelson Mandela quvemos hoje. Com maturidade ele queria dizer que aprendeu a controlar aqueles impulsomais juvenis, no que no fosse mais melindrado, ou magoado, ou que no ficasse bravo. Nsignifica que voc sempre sabe o que ou como fazer; significa que voc consegue comprimas emoes e as ansiedades que interferem no modo de ver o mundo como . Voc conseguver por intermdio delas e ver a si completamente.

    Ao mesmo tempo, ele compreendeu que nem todo mundo pode ser Nelson Mandela.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    14/112

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    15/112

    1 - Coragem

    1

    Coragem

    NO AUSNCIA DE MEDO

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    16/112

    A MAIORIA DAS PESSOAS diria que Nelson Mandela personifica a coragem. Mas o prpriMandela define coragem de modo curioso. Ele no a v como inata, ou um tipo de elixir qupodemos beber, ou aprender de algum modo convencional. Ele a v como a maneira quescolhemosser. Nenhum de ns nasce corajoso, ele diz. Tudo est na maneira como reagimos diferentes situaes.

    Houve muitos momentos na vida de Mandela nos quais ele foi testado. Aqueles que a

    pessoas conhecem foram grandes, pblicos e dramticos. Mas a coragem, ele diz, est natividade cotidiana, e podemos mostr-la de maneira ampla ou estrita. Tive um vislumbre dnatureza da sua coragem em Natal, em 1994, durante o perodo final da primeira eleidemocrtica da frica do Sul, quando a violncia poltica atingia nveis epidmicos. Eescolheu voar para Natal em um pequeno bimotor para fazer um discurso aos seus partidriozulus. Provavelmente no deveria ter ido. Na poca, muitos dos seus partidrios zulus estavamsendo assassinados pelo rival Partido da Liberdade Inkatha, tambm zulu, e a situao estavlonge de ser segura. Mas ele estava firme.

    Concordei em esperar seu voo no aeroporto. Quando o avio estava a vinte minutos daterrissar, um funcionrio do aeroporto veio at mim para dizer que um dos motores dpequeno avio tinha parado de funcionar e que eles estavam planejando colocar caminhes dbombeiros e ambulncias na pista, caso algo desse errado. O funcionrio disse que em tacasos o piloto geralmente conseguia pousar sem incidentes.

    Mandela estava no avio com apenas um segurana Mike era o seu nome e dois pilotoVinte minutos mais tarde, cercado de caminhes de bombeiros e ambulncias, o avio feuma aterrissagem levemente cambaleante. Um sorridente Nelson Mandela entrou n

    pequeno lounge, onde foi assediado por vrios turistas japoneses. Como era de esperar, ele fosolcito ao cumprimentar cada um e posou com um grande e largo sorriso para quem quisessuma fotografia.

    Enquanto Mandela posava, juntei-me a Mike, que me disse que no segundo tero dviagem Mandela inclinou-se at ele, apontou para fora da janela e calmamente disse que hlice parecia no estar funcionando. Pediu-lhe que informasse os pilotos. Mike foi at cabine. Os pilotos estavam completamente cientes disso e disseram-lhe que tinham contatado aeroporto e que procedimentos de pouso de emergncia tinham sido acionadoProvavelmente tudo ficaria bem, disseram. Mike contou isso a Mandela, que silenciosamenbalanou a cabea e voltou a ler o seu jornal. Mike, que no era um viajante de aviexperiente, disse que estava tremendo de medo e que a nica coisa que o acalmou foi ficaolhando para Mandela, que continuava a ler o jornal como se fosse um passageiro comumtomando o trem matutino para o escritrio. Mike disse que Mandela mal levantou os olhos djornal quando o avio estava aterrissando.

    Quando Mandela terminou os cumprimentos, fomos levados ao banco traseiro de um BM

    blindado que nos levaria ao evento. Perguntei-lhe como havia sido o voo e ele se inclinou

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    17/112

    abriu bem os olhos e com uma voz dramtica disse: Homem, estava morrendo de medo l emcima!.

    Embora possa surpreender as pessoas que o conhecem apenas como um cone, no consigdizer-lhes quantas vezes ele me contou durante nossas entrevistas que tivera medo. Teve meddurante o Julgamento de Rivonia, que o sentenciou priso perptua, teve medo quando ocarcereiros na Ilha Robben ameaaram espanc-lo, quando era um fugitivo conhecido n

    imprensa como o Pimpinela Negro,[2] quando secretamente comeou a negociar com governo, durante o perodo turbulento antes da eleio que o tornaria presidente da frica dSul. Nunca teve receio de dizer que teve medo.

    Sua ideia de coragem foi formada precocemente. Desde garoto Mandela ouvia histrisobre a bravura de lendrios lderes africanos, como Dingane, Bhambootha e Makana. Depoque seu pai morreu, quando tinha nove anos, foi levado a uma vila real chamadMqhekezweni para ser criado por Jongintaba, o rei do povo Thembu. O pai de Mandela havsido um lder local e tambm conselheiro do rei. O rei queria preparar o jovem Nelson par

    que se tornasse conselheiro do filho, quando este se tornasse rei. O rei via a si mesmo em umlonga linhagem de heris africanos e seguia as tradicionais cerimnias e rituais xhosa. Umdessas cerimnias perseguiu Mandela pelo resto da vida.

    Em janeiro de 1934, quando tinha dezesseis anos, ele e outros 25 meninos da mesma idadforam isolados em duas cabanas nas margens do rio Mbashe. Eram a elite dos meninos dvila. Seus corpos foram totalmente depilados, cobertos com pintura branca e usavam mantasobre os ombros. Pareciam fantasmas. Ansiosos e tensos, estavam se preparando para o rituxhosa de circunciso, o que Mandela chamou de passo essencial, necessrio, na vida de todmacho xhosa. No era um ritual privado, mas pblico, e o rei, os lderes e um grupo damigos e parentes estavam sentados ao lado do rio. No era apenas um rito de passagem, maum teste pblico de coragem. Um menino de cada vez era circuncidado por um ingcibi (umespecialista em circunciso). Aqui, o relato de Mandela sobre o que aconteceu, de acordo comseu dirio indito:

    Subitamente, houve uma excitao e um velho magro passou rapidamente rumo minha esquerda e se agachou

    diante do primeiro menino. Poucos segundos depois, ouvi esse menino dizer Ndiyindoda! (Sou um homem!). Ento

    Justice [o filho do rei e melhor amigo de Mandela] repetiu a palavra, seguido, um aps o outro, pelos trs meninosentre ns. O velho estava se movendo rpido e, antes que eu entendesse o que estava acontecendo, ele estava diante demim. Olhei direto nos seus olhos. Ele estava extremamente plido e, embora o dia estivesse frio, seu rosto estavabrilhando de suor. Sem dizer uma palavra, pegou e puxou o meu prepcio e passou o assegai.[3]Foi um corte perfeito,limpo e redondo como um anel. Em uma semana a ferida cicatrizou, mas sem anestesia a inciso era como sechumbo derretido estivesse correndo nas minhas veias. Por segundos, esqueci-me do refro e tentei absorver o choqued o assegai afundando minha cabea e meus ombros em uma cerca de relva. Recuperei-me e s consegui repetir afrmula Ndiyindoda!(Sou um homem!). Os outros meninos pareciam muito mais fortes e repetiram o refro pronta eclaramente quando chegou a vez de cada um.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    18/112

    Quando me recontou essa histria, quase sessenta anos depois da tarde de inverno em quocorreu, Mandela estava triste, quase com dor. E no porque estava relembrando a sensafsica da operao, mas porque acreditava que no tinha reagido bem. A dor do procedimenttinha desaparecido, mas no a de ter sido fraco. Vacilei, disse, olhando para baixo. Ngritei com a voz firme. Ele sentia que os outros meninos tinham sido mais corajosos, mafortes. Disse que descobriu que no era naturalmente corajoso talvez nenhum de ns seja

    e que teve de aprender a s-lo. Estava desapontado consigo mesmo, todos esses anos depoimas o ritual teve seu efeito pretendido: decidiu que sempre pareceria forte, que nuncpareceria vacilar.

    * * *

    Nos primeiros meses de nossas entrevistas, quando estvamos conversando sobre a sua relacom a polcia, ou quando estava na clandestinidade, perguntava se tivera medo. Ele olhavpara mim como se eu fosse um nscio e dizia: Claro que tive medo. Somente um tolo nteria medo, ele dizia. Mas em cada ocasio, ele relatava, fazia tudo que podia para conter semedo simplesmente resistia a deixar que qualquer pessoa visse que ele pudesse estar commedo.

    Coragem no a ausncia de medo, ele me ensinou. aprender a super-lo.Na dcada de 1950, ele dirigiu at Free State para se encontrar com James Moroka,

    presidente elegante e moda antiga do Congresso Nacional Africano. Moroka precisavaprovar uma carta de protesto que Mandela tinha redigido para enviar ao primeiro-ministrsul-africano. No caminho, em uma pequena vila no Free State, uma das reas maconservadoras da frica do Sul, o carro de Mandela raspou em um menino branco sobre umbicicleta. O menino balanou, mas no ficou machucado. A primeira coisa que Mandela fefoi se abaixar e esconder uma cpia do New Age, o jornal favorito dos membros do CNA, questava no banco da frente do carro. Apenas possuir uma cpia da publicao proibidnaqueles dias, poderia render uma sentena de cinco anos de priso. Um sargento chegomomentos depois, examinou o garoto e ele me disse:Kaffer, jy sal kak vandag!(Kaffer,[4]voc v

    cagar hoje!). Mandela respondeu: No preciso de um policial para me dizer onde cagar. Elfez uma pausa quando contava a histria, e ento disse: Decidi ser agressivo, mas estava commedo. Posso fingir que sou corajoso e que posso derrotar o mundo todo.... E ento sua vosumiu.

    Posso fingir que sou corajoso. De fato, foi o que fez. E como ele descreveria a coragem: fingser corajoso. Destemor estupidez. Coragem no deixar o medo derrot-lo. Quando policial avanou em sua direo, Mandela disse-lhe para ser cauteloso, pois ele era umadvogado e poderia arruinar sua carreira. Ento, como Mandela descreve em seu dirio d

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    19/112

    Ilha Robben, ningum teria ficado mais surpreso do que eu mesmo, quando notei o sargenthesitar. Tinha funcionado. Naquela mesma noite o policial o deixou seguir seu caminho.

    Mandela conta uma histria similar sobre a sua primeira viagem Ilha Robben, em made 1963. Ele estava cumprindo uma sentena de cinco anos por deixar o pas sem autorizaNo meio da noite, ele e alguns outros foram informados por um carcereiro sarcstico quiriam para um lugar bonito Die Eiland, como eles dizem em africnder. Junto com Mande

    estava um velho prisioneiro chamado Steve Tefu, membro do Partido Comunista, que egenioso. Mandela relembra que quando chegaram ilha foram conduzidos como rebanhMandela e Tefu estavam ficando para trs e, como Mandela relembra, um guarda disse: Evamos mat-los aqui; e seus pais, seu povo, nunca sabero o que aconteceu com vocs. E esseo ltimo aviso!. Ao alcanarem a cela principal, os guardas gritaram em africnder: Trek u

    Trek uit!(Tirem a roupa).Quando os prisioneiros estavam nus, os guardas comearam a importunar um deles em

    particular. Mandela relembra: O capito perguntou para um de ns: Por que o seu cabelo

    comprido?. Depois escolheu outro, sabe, que era muito gentil, um gentlemanque no querbrigar com ningum, que no machucaria uma mosca, e estava com dificuldade parresponder. Ento o capito disse: Estou falando com voc! Voc sabe as regras! Seu cabeldeveria ter sido cortado! Por que voc deixou seu cabelo como o desse cara?, e apontodiretamente para Mandela. Mandela prossegue: Ento eu lhe respondi: Veja bem.... Oh, fo suficiente! No pude continuar com a frase. Ele gritou: Nunca fale comigo desse jeito!, comeou a avanar.

    Mandela interrompeu o relato e ento se inclinou para a frente, na sua cadeira. Seu olha

    era longnquo. Estava claro que ele ia me agredir e devo confessar... devo confessar que estavcom medo. Voc no pode se defender, no pode revidar.

    E apesar disso ele se defendeu. Disse ao capito: Se voc ousar me tocar, vou lev-lo mais alta corte do pas e, quando tiver acabado com voc, voc vai ser to pobre quanto umrato de igreja. Bem, ele parou... Eu estava com medo. No foi porque eu era corajoso, maalgum tinha de parecer corajoso.

    Algum tinha de parecer corajoso. s vezes, apenas por meio da dissimulao da coragem quvoc descobre a verdadeira coragem. s vezes, a dissimulao a sua coragem.

    Na priso, a coragem era demonstrada a cada dia. No era apenas em ocasies nas quaalgum tinha de ser forte, publicamente, diante de um guarda estava simplesmente emandar ereto, manter sua dignidade diria, seu senso de otimismo e esperana. Um dia, em1969, um carcereiro foi at a cela de Mandela com notcias devastadoras: seu filho mais velhThembi, tinha morrido em um acidente de automvel. Foi uma das poucas vezes, em todoaqueles anos, que Mandela no saiu da sua cela durante o dia. Walter Sisulu, seu amigo maantigo, foi o nico a visit-lo e eles ficaram sentados em silncio, segurando-se as mos.

    No dia seguinte Mandela foi at a pedreira de calcrio para trabalhar, como todos os outro

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    20/112

    prisioneiros. Quando lhe perguntei sobre a morte de seu filho, ele disse que foi algo quasimpossvel de suportar, mas tinha de mostrar aos guardas e aos seus companheiros presos quno ficara inutilizado por isso. Mais uma vez, dissimulou. Julgou que no tinha opo.

    Achamos que os outros ficam nervosos ao encontrar Mandela, mas com frequncia eficava nervoso ao encontrar os outros. Estava especialmente ansioso na primeira vez em que encontrou com o presidente sul-africano P. W. Botha. Botha era conhecido como Die Gro

    Krokodil, O Grande Crocodilo, por causa dos seus modos bruscos e tempestuosos e sua maneirautocrtica de governar. Mandela estava ento em seus ltimos dias de sentena e seria primeira vez que um integrante preso do CNA se encontraria com o presidente sul-africanEm sua cabea, ensaiou o que diria e o que faria. Se pudesse, tomaria a iniciativa. Por essrazo, deliberadamente atravessou a sala e cumprimentou Botha com um aperto de mo forte um vasto sorriso. Desarmou o presidente sul-africano com sua prpria afabilidade e modoinformais, algo que tinha planejado e praticado. Disfarou.

    No comeo da dcada de 1980, no muito antes de Mandela ser transferido da Ilh

    Robben, um prisioneiro levou uma cpia das obras reunidas de Shakespeare para todos oprisioneiros polticos da ala C e pediu que marcassem suas passagens favoritas. Mandela nhesitou. Foi at Jlio Csar, ato 2, cena 2, e marcou o trecho:

    Covardes morrem muitas vezes antes de suas mortes

    O bravo sente o gosto da morte uma nica vez.

    De tud o que vi

    O mais estranho que os homens tenham medo,

    J que a morte, um f im ne cessrio

    Vem quando vem.

    Um covarde poderia selecionar essa passagem para dar a impresso de que era corajoso

    mas para Mandela a passagem no uma bravata, mas uma simples afirmao da realidadFinja que corajoso e voc no apenas se torna corajoso, voc corajoso.

    Mandela no v a coragem como uma provncia de poucos. Alguns so muito testados, matodo mundo testado de alguma forma. Ele sempre me disse que sua esposa Winnie tinhsido muito mais corajosa que ele, apesar de ele ter estado na priso por mais tempo que ela

    Enquanto ele estava afastado dos problemas dirios da vida, explicou, ela tinha de lutar contas dificuldades sob o apartheid e criar duas meninas.

    O maior elogio de Mandela a algum que ele considera corajoso Ele fez muito bemCom isso, ele no quer dizer que a pessoa foi um heri dramtico ou que arriscou sua vida eum grande esforo, mas que, todo dia, permaneceu firme sob circunstncias difceis, que toddia resistiu a ceder ao medo e ansiedade. Todos somos capazes desse tipo de coragem felizmente, a nica forma de coragem que a maioria de ns tem de demonstrar.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    21/112

    2 - Sejaponderado

    2

    SEJA

    ponderado

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    22/112

    CERTA VEZ, eu estava sentado ao lado de Mandela no banco de trs de seu BMWblindado emotorista estava perdido. Isso no era incomum sua comitiva muitas vezes ia adiante dmodo enviesado. O motorista acelerava e derrapava nas curvas, como se quisesse compensaum atraso. Mandela inclinou-se para a frente e lhe disse: Vamos ficar calmos, homem.

    Vamos ficar calmos. No meio de situaes turbulentas, Mandela calmo e procura a calmnos outros. Realmente, ele irradia calma. Perca o controle e voc perde a situao. Ahme

    Kathrada esteve na priso com Mandela por quase trs dcadas e diz que somente o viu bravem duas ocasies e ambas envolviam carcereiros insultando Winnie. Sim, pode havesituaes que exijam uma exploso ou uma resposta arrebatada, mas Mandela dizia que elaso muito raras e que tm de ser calculadas, no espontneas. O controle a medida do lderna verdade, de todos os seres humanos. A calma, ele sempre diz, o que as pessoas procuramnas situaes tensas, sejam polticas ou pessoais. Elas querem ver que voc no est confusoque est pesando todos os fatores e que sua resposta ponderada.

    Em 1993, a frica do Sul estava no fio da navalha. Enquanto Mandela prosseguia com sua

    negociaes com o governo sobre uma nova Constituio e a data da eleio democrtichavia grupos dentro do pas tentando minar esse novo arranjo, incluindo militares de extremdireita que estavam mostrando sua fora e ameaando com a violncia. Em seu prprimovimento, o Congresso Nacional Africano, alguns estavam questionando a autoridade dMandela, sugerindo que ele estava sendo muito conservador, confiando demais no governo, que jovens lderes como Chris Hani, o chefe do brao armado da CNA, deveriam ser lanadosfrente.

    Depois de Mandela, Hani era ento o segundo lder mais popular na frica do Sul. Semprvestido de uniforme e boina informalmente inclinada, Hani fazia o papel dinmico. Pareciaoposto de Mandela: enquanto Mandela dizia esquea e perdoe, Hani dizia lembre e retalienquanto Mandela falava baixinho, Hani gritava; enquanto Mandela falava sobre manter tradicional economia branca funcionando, Hani, um comunista, incitava redistribuio dariquezas ao povo. Havia aqueles no CNA que consideravam que Hani, ento um vigoroshomem de 51 anos, era o futuro do partido e da frica do Sul, em lugar de Mandela. Parecser o momento de Hani. A frica do Sul corria o grave risco de uma guerra civil total entr

    brancos e negros. A direita branca estava se armando para uma luta e havia aqueles esquerdacomo Hani, que estavam incitando as pessoas a se preparar para a batalha. O pesadelo de umguerra racial nacional parecia prestes a se tornar realidade.

    Em abril daquele ano, fui com Mandela para sua casa em Transkei, a parte rural da fricdo Sul onde ele cresceu. A casa de Mandela pode ser vista do vale onde ele nasceu. Todhomem, ele me disse certa vez, deve ter uma casa perto de onde nasceu. A casa em si erento despretensiosa, uma construo de um andar com formato em L. Fica no meio dverde e de montes pedregosos o veldt, como os sul-africanos o chamam onde ele costumav

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    23/112

    brincar quando menino. O que muita gente acha curioso a esse respeito que foi projetadapartir da casa onde ele ficou no Presdio Victor Verster, seu ltimo endereo antes de ser soltem 1990. Uma vez perguntei-lhe a respeito disso e ele sorriu. Disse que tinha gostado muidaquela casa; quando soube que iria construir uma para si em Transkei, pediu administrado presdio uma planta e um projeto.

    A casa em si est atrs da estrada principal e fora da vista de qualquer outra moradia. Te

    um porto modesto e uma entrada sinuosa. Mesmo que seja relativamente remota e residncia de uma figura histrica e renomada, pessoas das vilas prximas mulhereenroladas em mantas, velhos com bengalas perambulam por l, ficam sentados ou de p njardim da frente, aguardando para uma visita de cortesia, ou para serem alimentados, oambos. o costume local e tem sido assim por centenas de anos. Ningum marca horrio, apessoas simplesmente aparecem.

    Mandela renovou seu vigor em Transkei parecia menos prostrado e mais descansado. Elsempre se referiu a si mesmo como um menino do interior, o que alguns acham um pouc

    falso, mas quando voc o v no campo, ainda pode ter um vislumbre daquele menino. Egostava de falar com os locais pessoas que provavelmente nunca tinham se aventurado mado que quinze quilmetros, em qualquer direo, a partir do local onde viviam. Ria maicontava piadas em sua lngua nativa xhosa, acalentava criancinhas em seu joelho. Mais dmeio sculo antes a maioria das pessoas vivia de maneira muito parecida com a do prprMandela...

    A outra coisa de que ele gostava quando estava em Transkei eram caminhadas no campde manh cedo. Mandela rotineiramente acordava por volta das quatro e trinta da manh

    saa para a sua caminhada entre cinco e cinco e trinta. Geralmente caminhava de trs a quatrhoras, retornando entre nove e dez horas. Estive em Transkei com ele uma vez antes, emdezembro. Tanto quanto pude, acompanhei-o em sua caminhada matinal.

    Em uma manh daquela primavera era 10 de abril , cheguei sua casa faltando cincminutos para as cinco horas. Ainda estava escuro. Uma dupla de seguranas estava sentada emum carro, ouvindo msica. Estava inoportunamente frio e podia v-los, atravs das janelaembaadas, assoprando ar quente nas mos. Mandela saiu de sua casa um pouco depois dacinco, vestindo seu agasalho preto e dourado favorito. Comeou a caminhar para o sul.

    A cada manh, escolhia uma rota diferente, esperando ver algumas paisagens da suinfncia ou se deparar com uma vila que no ainda tivesse visitado. Gostava de chamar ateno para marcos e explicar suas histrias. Naquela manh, como sempre, estvamoacompanhados de seus seguranas. Geralmente, dois andavam frente dele e dois atrs. Ecaminhava cerca de trs metros ao lado, perto o suficiente para ouvi-lo, se quisesse falar, longo bastante para que se sentisse sozinho. As caminhadas, para ele, eram um tipo de meditae geralmente caminhvamos em silncio.

    Depois de mais de uma hora, chegamos a algumas pequenas rondavelsao lado de um morr

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    24/112

    Rondavels so as cabanas circulares de estuque com teto pontudo de folhagens, nas quaMandela cresceu e as pessoas da sua rea ainda vivem. As paredes so cobertas com esterco dvaca e o cho de lama seca. Uma mulher com idade aproximada da de Mandela saiu de umdas rondavels e ficou nos olhando de maneira ctica (muitas vezes as pessoas no reconheciam e pensavam que ele era um lder local que tinha vindo fazer uma visita). mulher colocou suas mos na cintura e ento perguntou em xhosa a Mandela se ele, e o rest

    de ns, tnhamos vindo a p. Mandela disse que sim. Ela olhou para os ps dele e dissEnto por que os seus sapatos no esto molhados com o orvalho da manh?. Mandelolhou para os seus sapatos, que estavam secos, e ento soltou uma gargalhada. Isso o que echamava de sabedoria do campo.

    Por volta das oito horas, o sol j estava forte e sentia-se calor. Mandela sempre parecia ficamais forte medida que caminhvamos. Comeava devagar e ento seus passos ficavam malongos e mais firmes. Era o oposto de ns todos dcadas mais jovens. Estvamocaminhando em um longo e preguioso crculo e quase quatro horas depois, quand

    estvamos perto de sua casa, ele apontou para o topo de um morro que se elevava sobre Qunua sua vila ancestral, onde vimos as runas de uma construo de tijolos brancos.

    Foi a minha primeira escola, ele disse.Relatou que era uma escola de um cmodo, com pequenas janelas em cada lado e um pis

    macio de lama. Tinha um teto de zinco que fazia um barulho de rat-tat-tatquando chovia. Fl que sua primeira professora, a srta. Mdingane, deu-lhe o nome Nelson. Naquele temptoda criana na escola recebia um nome ingls.

    Ele caminhou at o morro atrs da escola e apontou para uma enorme pedra redonda, com

    cerca de 22 metros de dimetro. Eles pegavam uma pedra lisa do tamanho de um pires de chsentavam-se nela e escorregavam na enorme pedra. Contou que costumava rasgar os fundodas calas desse modo. Ganhava uma surra da minha me por estragar meu uniformescolar, ele disse.

    Mais de quatro horas depois que comeamos a caminhar, nos arrastamos de volta para casa. Havia meia dzia de pessoas circulando diante dela; quando entramos na sala, oito odez pessoas estavam l sentadas. Sempre amvel anfitrio, Mandela os cumprimentoenquanto fui sala de leitura preparar nossa sesso. Quando ele entrou, alguns minutodepois, perguntei-lhe quem eram. Respondeu que Miriam, a empregada, disse que tinhamaparecido na porta e estavam com fome. Mandela tratou-os como se fossem visitantes ilustres

    Miriam estava preparando nosso caf da manh e Mandela disse: Vamos comear. Cercde vinte minutos depois ainda sem o caf da manh , um dos seguranas comeou a smover furtivamente perto da porta. Voc quer alguma coisa?, perguntou Mandela. segurana explicou em xhosa que o time de rgbi East London estava no jardim da frentAh, disse Mandela. No dia anterior, ele havia prometido a um companheiro que daria umal ao time de rgbi East London, que estava visitando a rea. Sim, eu me lembro, diss

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    25/112

    Mandela, e tirou seu microfone com um gesto de suave irritao.Uma das coisas que descobri sobre ele foi que, mesmo sendo um defensor da pontualidad

    interromperia o que quer que estivesse fazendo para esses encontros ou cumprimentoimprovisados. No acho que gostasse deles, mas julgava que economizaria tempo fazendo acoisas de imediato. s vezes, como piada, chamava isso de tempo africano, insinuando quos outros sua volta no tinham o respeito pela pontualidade que ele tinha.

    Do lado de fora, arrastando os ps, estavam cerca de 25 negros troncudos em uniformes drgbi em verde e amarelo. Ele comeou a cumprimentar-lhes, apertando a mo de cada um fazendo algumas rpidas perguntas. Aproximadamente dez minutos depois de comear seucumprimentos, foi chamado de dentro da casa para atender a uma ligao de um de seuauxiliares mais prximos. Atendeu a ligao na cozinha, que era uma baguna de pratos, potee panelas ainda no lavados. Enquanto ouvia, ainda como uma esttua, seu rosto se contraiumostrou preocupao. Quando est preocupado, seus lbios se voltam para baixo, em umrgido cenho franzido. Finalmente disse Obrigado e desligou o telefone.

    Chris Hani foi alvejado e morto, ele falou. Perguntei-lhe por quem. Ele respondeu quno sabia e ento, com um olhar glido, caminhou para fora da cozinha, de volta para a frenda casa, de forma a continuar a cumprimentar o time de rgbi East London.

    O pas estava em um terrvel momento crtico, e o assassinato de Hani poderia lan-lo guerra civil. Os milhes de partidrios de Hani poderiam facilmente clamar por vingana iniciar uma guerra entre negros e brancos. Isso era algo que Mandela queria evitar a todcusto mas, naquele momento, decidira que o correto era encerrar seu assunto com o time drgbi East London.

    Vi atravs da janela Mandela sorrindo, fazendo piada e terminando de cumprimentar time de rgbi. Ele no lhes disse nada sobre o que tinha acontecido. Momentos depois, umMandela de semblante severo retornou sala de leitura. Ele se sentou e a primeira coisa qudisse foi: Voc pode ver se eles esto trazendo o mingau?. Fui cozinha e, quando nosscaf da manh chegou, comemos em silncio. Mandela estava imerso em pensamentos.

    Quando terminou seu cereal, pediu sua agenda e ento fez uma srie rpida de telefonemapara seus companheiros mais prximos: arranjando seu retorno imediato a Johannesburgpedindo detalhes da investigao policial, sugerindo que ele deveria ir rede nacional de Tnaquela noite para falar sobre o assassinato tudo em um tom duro mas sereno, comperguntas e respostas curtas e claras. Quando terminou, levantou-se, educadamente sdesculpou por ter de terminar nossa sesso e saiu da sala.

    Nos dias seguintes ao assassinato houve reportagens e histrias circularam, mesmo dentrd a CNA, de que Mandela estava em pedaos e frentico com a morte de Hani. Nrealidade, ele estava gelidamente calmo e analtico, avaliando planos para o futuro imediatoas consequncias do assassinato. Nos momentos em que estive com ele durante uma cris

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    26/112

    sempre esteve bastante calmo, entrando em um tipo de estado zen que parecia desacelerar oacontecimentos que giravam sua volta.

    Mandela, e no F. W. de Klerk, o presidente, foi rede nacional de TVnaquela noite pafalar sobre o assassinato. Foi ele, e no o presidente, quem procurou tratar das esperanas dos temores da nao, e no apenas dos interesses do seu prprio partido ou dos seuintegrantes. De Klerk lanou um press release. Horas aps o ocorrido, a polcia revelou que

    assassino era um imigrante branco polons e que ele havia sido capturado porque uma mulheber tinha memorizado a placa do carro e relatado polcia. Naquela noite, Mandela exibiuma expresso sombria quando comeou seu discurso:

    Esta noite, estou me dirigindo a cada sul-africano, negro ou branco, do mais profundo do meu ser. Um homem

    branco, cheio de preconceito e dio, veio ao nosso pas e cometeu um ato to hediondo que nossa nao inteira agoraoscila beira do desastre. Uma mulher branca, de origem ber, arriscou sua vida para que pudssemos conhecer esteassassino e fazer justia. O frio assassinato de Chris Hani chocou todo o pas e o mundo. Nosso pesar e raiva esto nosconsumindo. O que aconteceu uma tragdia nacional que tocou milhes de pessoas alm da diviso poltica e de

    cor.Terminou desta forma:

    Este um divisor de guas para todos ns. Nossas decises e aes iro determinar se usaremos nossa dor, nossopesar e o ultraje para caminharmos em direo nica soluo duradoura para o nosso pas um governo eleito pelopovo, do povo e para o povo.

    Ele usou a palavra disciplina quatro vezes no seu breve discurso, observando que Hani er

    um soldado e um homem de disciplina de ferro, e que os sul-africanos tambm deviam agcom disciplina para honrar sua memria. Disciplinaera uma divisa para ele e, por intermdda crise Hani, manteve uma rgida disciplina, respeitando o que dissera e pensava. Naquelmomento, meses antes da primeira eleio democrtica da histria sul-africana, ele se tornoo lder ainda no eleito dos sul-africanos brancos e negros.

    Como me confidenciaria anos mais tarde, depois de se tornar presidente da frica do Suaqueles primeiros dias aps o assassinato de Hani foram momentos em que uma frica do Su

    livre e democrtica esteve em risco mximo, momentos em que acreditou que a nao qutanto amava estivera o mais prximo de uma guerra racial entre negros contra brancos, emuma escala nunca vista. Sua resposta ponderada para a crise foi em grande parte a razo pelqual a frica do Sul no mergulhou em uma guerra civil.

    * * *

    s vezes, ser calmo aproxima-se perigosamente de ser sem graa, mas isso no parec

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    27/112

    incomodar Mandela. Ele sempre preferiu pecar por ser calmo e sem graa do que ser excitante excitvel. Gosta de contar a histria da carta que recebeu de uma mulher da Cidade dCabo, que compareceu primeira manifestao em frente prefeitura, aps ele ser solto dpriso. A mulher disse que estava feliz por ele ter sido solto e que ela queria que ele tivessucesso em unir a frica do Sul, mas que seu discurso era muito entediante. Ele sempre muito quando conta essa histria. De fato, ele usava um par de culos desajeitados para le

    longos discursos, em um inflexvel tom montono, e ningum confundiria o Nelson Mandeps-priso com um grande orador. Um dia lhe perguntei: verdade, as pessoas s vezecriticam seus discursos por serem um pouco sem graa. O que voc acha disso?.

    Sabe, tento no ser um agitador de multides, ele respondeu. As pessoas querem vecomo voc lida com as situaes. Querem as coisas explicadas clara e racionalmenteAmadureci. Era muito radical quando jovem, brigando com todo mundo, usando linguagebombstica.

    Sim, quando jovem, muitas vezes tentou criar um alvoroo, mas a ideia para ele, agora,

    que melhor ser um pouco sem graa e confivel do que inflamado e obscuro. Suaobservaes so diretas ele quer que suas respostas sejam claras, completas e explicativaAcredita que as pessoas so propensas a tolerar um pouco do sem graa em troca de confiane substncia.

    s vezes, seu estilo deliberado pode at ser uma ttica, uma espcie de jiu-jtsu. AhmeKathrada certa vez contou-me que na priso Mandela gostava de jogar damas e que era campeo da Ilha Robben. Parte da estratgia de Mandela, disse Kathrada, era minapsicologicamente seus adversrios por meio do seu estilo de jogo. Ele sempre levava muit

    tempo entre os movimentos, ponderando sobre as possibilidades. s vezes, levava um tempextra se julgasse que isso irritava ou deixava nervoso seu adversrio.

    Um de seus adversrios regulares era um prisioneiro chamado Don Davis, que comfrequncia desafiava Mandela para jogar. Ele estava determinado a ser o campeo de damas dilha. Uma vez perguntei a Mandela sobre Davis e ele o descreveu como um sujeipitoresco, corajoso por resistir s autoridades. Mas o que o tornou combativo para resistir autoridades, observou Mandela, no o tornou um mestre em damas.

    Ele no tinha o temperamento de um esportista, e quando se tratava de competies se

    temperamento todo mudava, disse-me certa vez Mandela, com um largo sorriso. Ele erextra-agressivo. Quando eu jogava, sabe, era sempre estvel. Isso destrua muitos adversrios ele era o mais vulnervel a essa ttica.

    Pensamos em temperamento como algo com o qual nascemos. Mas no caso de Mandela foalgo formado. Quando jovem, ele era cabea quente e facilmente incitvel raiva. O homemque saiu da priso era o oposto disso quase impossvel exasper-lo. Ele esperava antes dtomar decises. Considerava todas as opes. impossvel ter perfeito conhecimento de todas situaes antes de tomar uma deciso, e ficaramos paralisados se insistssemos nisso. Mas

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    28/112

    exemplo de Mandela mostra o valor de se formar um quadro to completo quanto possveantes de entrar em ao. A maior parte dos erros que cometeu na vida surgiu por agir muitrpido, em lugar de muito lentamente. No se apresse, ele dizia, pense, analise, ento aja

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    29/112

    3 - Lidere na frente

    3

    Lidere

    NA FRENTE

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    30/112

    DURANTE TODA A SUA VIDA, Mandela arriscou-se para liderar. Se fosse um soldado, seraquele que pularia da trincheira e lideraria o ataque no campo de batalha. Sua concepo dque lderes devem no apenas liderar, devem ser vistos liderando isso parte do perfil dtrabalho. quase como se temesse que algum dissesse ou pensasse que ele no estavdisposto a se arriscar. Mesmo nas relaes pessoais ele acreditava que se devia comandar. Sh algo que o incomoda, se acha que foi tratado injustamente, deve dizer. Isso tambm

    liderar.Liderar na frente significava muitas coisas. s vezes, ele assumia as palavras literalmente

    como na primeira vez em que chegou Ilha Robben: tomou a dianteira do grupo dprisioneiros que entrava na ilha, sob os olhares e o escrnio dos guardas, a fim de mostrar aooutros como reagir. Desde o incio voc tem de resistir aos guardas, ele disse aocompanheiros, e assumiu o comando nessa questo.

    Mas liderar na frente tambm significava fazer coisas que no necessariamente chamavama ateno. Significava no aceitar qualquer vantagem especial e realizar as mesmas tarefas qu

    os outros prisioneiros como limpar os urinis dos carcereiros ou dos prisioneiros. No hnada abaixo de um lder. Eddie Daniels relembra que quando chegou pela primeira vez nIlha Robben, no comeo da dcada de 1960, Mandela atravessou o ptio para se apresentaDaniels admirava Mandela e disse que somente observ-lo j era inspirador.

    Essa era a beleza de Nelson. S a maneira como andava. A maneira como se conduziLevantava a moral dos outros prisioneiros. Levantava a minha. S de v-lo andar comconfiana. Simplesmente com o modo como caminhava Mandela estava liderando na frente

    Danny, como todo mundo o chamava, relembra tambm que certa vez estava doente e n

    tinha foras para limpar seu urinol. Mandela foi at a sua cela, abaixou-se, pegou meu pote,ento foi at o banheiro para limp-lo. Ningum gosta de limpar a baguna dos outros. Nmanh seguinte, Nelson apareceu. Ele era o lder da maior organizao do presdio. Poderindicar qualquer um para me ajudar. Ele veio naquela manh e estava com o seu pote debaixdo brao. Ele disse: Como voc est, Danny?. Ele entrou e pegou o meu pote.

    Claro, liderar na frente tambm significava tomar a iniciativa, e durante toda a sua videm momentos crticos, Mandela o fez. Liderou a Liga Jovem do CNA, coordenou a Campanhdo Desafio, em 1952, comandou a deciso de abraar a luta armada e desafiou o governo enforc-lo no Julgamento de Rivonia, em 1963-64. No julgamento que o enviou para a prisperptua, declarou-se inocente mas acrescentou que era culpado por lutar pelos direitohumanos e pela liberdade, culpado por combater leis injustas, culpado por lutar pelo seprprio povo oprimido. Admitiu planejar uma sabotagem contra o governo. Ele poderfacilmente no se declarar culpado, mas, para ele, isso no seria liderar. Sabia que se arriscava receber a pena de morte e no recuou. No seu depoimento final, falou por quatro horaterminando com estas palavras as ltimas que falaria em pblico at ser finalmente solto d

    priso em 1990:

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    31/112

    Durante a minha vida, dediquei-me a essa luta do povo africano. Lutei contra a dominao branca e lutei contra a

    dominao negra. Acalentei o ideal de uma sociedade livre e democrtica na qual as pessoas vivam juntas emharmonia e com oportunidades iguais. um ideal para o qual espero viver e realizar. Mas, se for necessrio, umideal pelo qual estou preparado para morrer.

    Houve silncio na sala do tribunal quando terminou de falar. Ali estava um homem qu

    sabia que aquelas poderiam ser suas ltimas palavras.Mas nada do que Mandela j fez teve os riscos e perigos das conversas secretas que inicio

    com o governo branco em 1985, quando ainda estava na priso. Isso violava todos oprincpios do seu movimento e suas prprias afirmaes pblicas ao longo das dcadaPoderia ter sido tachado de traidor e tornar-se um pria em seu prprio movimento, compoderia tambm ter levado o pas a uma guerra civil total.

    * * *

    Comeou no Presdio Pollsmoor, para onde Mandela foi levado em 1982, depois de dezoit

    anos na Ilha Robben. Pollsmoor fica no limite de um agradvel e ajeitado subrbio da Cidaddo Cabo, abaixo das montanhas Steenberg, que comeam ao norte dos muros brancos dpriso. Para chegar priso, dirige-se pelas estradas de pista simples da cidade, passando pocasas arrumadas com bicicletas nos gramados da frente. Ento, no final de uma ruresidencial sem nome, vira-se direita e diante de voc est o elaborado porto do Presdio d

    Segurana Mxima Pollsmoor.Na medida em que uma priso pode parecer agradvel, Pollsmoor se parece com uma. longa estradinha, com jardins e canteiros de flores bem cuidados, leva construo baixacinza-clara, de concreto. Em Pollsmoor, Mandela perdeu a beleza natural da Ilha Robben e chance de ficar ao ar livre sob o sol, mas havia compensaes. Sua famlia podia visit-lo mafacilmente. A comida era melhor. Estavam finalmente no continente e ele se sentia maconectado ao mundo. Ele e seus quatro companheiros mais prximos da Ilha Walter SisuluAhmed Kathrada, Raymond Mhlaba e Andrew Mlangeni dividiam uma cela bem grand

    com o tamanho aproximado de uma quadra de basquete, no terceiro andar. E havia umespaoso terrao do lado de fora da cela, onde Mandela recebeu permisso para cultivar umhorta.

    Em 1985, Mandela j estava preso h 22 anos, e o movimento antiapartheid na frica dSul tinha se tornado mais intenso e estridente. A campanha do CNApara tornar a frica do Suingovernvel estava transformando os distritos em zona de guerra. As revoltas dirias erammanchetes nos principais noticirios do mundo todo. O movimento de unio e a FrenDemocrtica Unida, uma organizao que agrupava centenas de organizaes antiapartheid

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    32/112

    estavam pressionando constantemente o governo. E o nome e a imagem de Mandela tinha stornado o smbolo do movimento mundial antiapartheid.

    Nesse mesmo ano Mandela recebeu o diagnstico de aumento do volume da prstata e seumdicos recomendaram uma cirurgia. Sob segurana mxima, ele foi levado ao HospitVolks, na Cidade do Cabo, para o procedimento. Quando estava na Ilha Robben, Mandedetestou as poucas ocasies em que precisou ir ao continente. No era tratado de form

    diferente de qualquer outro prisioneiro negro. Uma vez me contou que foi mantido no porde um barco usado por sul-africanos brancos para ir ilha e que os passageiros cuspiram nell de cima. Apesar de todos os insultos na Ilha Robben, eles no se comparavam humilhaes que suportou fora dela.

    Mas dessa vez foi diferente. Seu valor tinha mudado. Ficou em uma ala separada nhospital, em um quarto ensolarado e decorado com flores. Todas as enfermeiras o tratavamcom um respeito silencioso. A operao foi um sucesso e ele permaneceu vrios dias srecuperando antes de ser levado de volta a Pollsmoor. Na sada do hospital, o oficia

    comandante da priso o apanhou em um sed. Isso foi extremamente extraordinrio. Npassado, fora transportado por carcereiros comuns em uma van. Na volta, o oficial lhe contoque ele no retornaria para a companhia dos seus companheiros, mas que seria levado a outcela. Mandela perguntou-lhe o motivo disso, e o oficial somente deu de ombros e dissInstrues de Pretria.

    A nova cela era no andar trreo da priso e consistia de trs aposentos escuros e midos. Ersuntuoso para os padres da Ilha Robben, mas ele estava perturbado com a mudanConsiderou sua nova situao de todos os ngulos. Por que havia sido separado de seu

    companheiros? Por que o oficial comandante o apanhou no hospital? Qual era a estratgia dgoverno? Normalmente, poderia ter feito um protesto ou um pedido oficial de informaemas algo lhe disse que precisava pensar mais sobre aquilo.

    Quando comeou a considerar a sua situao, no pensou sobre as privaes do novo locamas sobre as oportunidades. Concluiu que sua solido lhe daria chance de fazer algo em questava pensando havia anos, algo que examinara com cuidado, algo que era uma heresia dponto de vista do CNA. Ele poderia iniciar uma conversa com o governo. Durante dcadas, CNA se recusou a negociar com o governo, at que ele concordasse em revogar as leis dapartheid e libertasse prisioneiros polticos. Mas agora ele sabia que o mundo mudara e quprecisava mudar com ele. Havia muito tinha concludo que o CNAno iria derrubar o governpor meio da luta armada. Somente negociaes poderiam funcionar. Agora poderia agir comessa crena.

    Em uma cela com seus companheiros, nada do que fizesse seria privado, teria de discutcom eles sobre uma ausncia ou uma conversa com as autoridades. Mas agora estava sEstava claro para ele que o governo via essa nova circunstncia tambm como um

    oportunidade.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    33/112

    Sua deciso foi significativa. Durante toda a sua vida lutou contra o domnio da minorbranca. O CNA estava lutando havia 73 anos e estava na luta armada fazia duas dcadas. poltica, para todos, naquele tempo, era no negociar as negociaes s poderiam acontececom base na igualdade. Mandela, sem consultar ningum, mudaria o curso de toda esshistria. Ele deixaria a estratgia reconhecida do CNA, a organizao que ele amava, que havia forjado e pela qual sentia a maior de todas as possveis lealdades.

    Todavia, estava cauteloso e tinha boas razes para isso. Essa no era a primeira vez que ideia de um dilogo havia surgido. No incio daquele ano, em janeiro, o presidente suafricano, P. W. Botha, propusera publicamente soltar Mandela se ele, incondicionalmentrenunciasse violncia como um instrumento poltico. Mandela rejeitou a oferta dimediato, divulgando uma nota que dizia: Somente homens livres podem negociaPrisioneiros no podem apresentar contratos. No posso e no vou dar nenhuma garantia, emuma poca na qual eu e voc, o povo, no somos livres. A sua liberdade e a minha no podemser separadas. A resposta abrupta e agressiva de Mandela constrangeu o governo e o presidentBotha.

    Mas dessa vez era diferente. Iniciaria as conversas confidencialmente, por iniciativprpria. O movimento antiapartheid estava crescendo em poder. O governo estava comeanda ver o que ocorria. Botha disse aos seus compatriotas que eles tinham de adaptar-se omorrer. Ao mesmo tempo, Mandela sabia que o status quopoderia continuar por dcadas, e eno estava ficando mais novo. Sabia tambm que no poderia ser visto por seus companheiropelo seu partido ou pelo mundo iniciando negociaes. O que fez foi escrever uma cart

    confidencial a Kobie Coetsee, ministro da Justia, dizendo que gostaria de iniciar um dilogcom o governo.O progresso foi glacial. Do momento em que escreveu sua primeira carta at o dia d

    primeiro encontro passaram-se quase dois anos. Ele no sabia se o governo estavconsiderando sua oferta ou no e continuou a enviar correspondncias. Em julho de 1986 acoisas subitamente comearam a acontecer.

    Ainda me lembro muito bem, ele contou. Era uma quarta-feira quando lhes dei a cartadizendo simplesmente ao diretor: Quero v-lo a respeito de um assunto de grand

    importncia nacional. No domingo seguinte foi chamado casa do diretor, que era nterreno da priso. Quando Mandela estava frente a frente com o diretor, disse que, na verdadqueria ver o ministro da Justia. O diretor perguntou-lhe por qu.

    Quero levantar a questo do dilogo entre o CNA e o governo, disse Mandela. O diretoimediatamente ligou para Coetsee, que estava na Cidade do Cabo. Coetsee, de acordo comMandela, disse: Traga-o agora para a minha casa. Mandela no retornou sua cela e folevado para a residncia oficial de Coetsee, onde passou as trs horas seguintes vestindo seuniforme empoeirado da priso.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    34/112

    Mandela jamais gostou de se encontrar com as pessoas sem que estivesse em igualdade dcondies. No gostou do fato de ainda estar com seu uniforme de detento, mas deixou passar

    Agora, disse-lhe, quero ver P. W. Botha, o presidente, ele relembrou. Mandela tinhexigido um encontro com o ministro da Justia somente para lhe dizer que o que realmentqueria era um encontro com o presidente. Ele estava usando cada um dos homens para levarquesto ao prximo nvel. O pedido de Mandela a Coetsee levou aquelas negociaes ao ma

    alto nvel um encontro secreto entre o prisioneiro poltico mais famoso do mundo e homem que, em ltima anlise, o mantinha atrs das grades. Coetsee compreendeimediatamente o quo histrico era esse passo. Aquele dia iniciou uma cadeia dacontecimentos que culminou no somente com a libertao de Mandela, mas tambm comas negociaes que levaram primeira eleio livre e democrtica na histria da frica dSul.

    * * *

    Quando voc lidera na frente, no pode deixar seus companheiros muito atrs. Ento, depoque essas conversas privadas comearam, Mandela pediu para v-los. Queria lhes dizer o qutinha feito e ter certeza de que eles estavam com ele. Mesmo separados por apenas trandares, o pedido para v-los tinha de chegar at as autoridades da priso, seguir at burocracia na Cidade do Cabo e finalmente at a sede do governo em Pretria. Dessa vez, aautoridades apenas permitiram que ele visse seus companheiros individualmente. Em lugar dresistir, Mandela concordou. Seu primeiro encontro foi com Walter, seu mais antig

    companheiro e amigo, seu mentor, o primeiro homem a ver um lder de massa naquele jovemrstico e desajeitado de Transkei. Ele contou a Walter a respeito das negociaes secretas.

    Mandela relembrou para mim a reao de Walter, que no foi positiva. Ele disse: Bemno sou, em princpio, contra negociaes, mas teria preferido que eles a tivessem comeadno ns. Eu lhe disse: Se voc no contra negociaes, em princpio, ento no imporquem as comece. Eu comecei.

    Mandela se encontrou com Mhlaba, Kathrada e Mlangeni, sucessivamente. Kathradconcordou com Walter e era contra as negociaes. Mhlaba e Mlangeni reagiram da mesmmaneira: o que ele esteve esperando?

    Mas essa no foi a reao da liderana do CNA, sediada em Lusaka, Zmbia. De fatquando seu amigo ntimo, Oliver Tambo, o chefe do CNA, ouviu boatos de que Mandeestava conversando com o governo, ficou profundamente preocupado. Houve aqueles qujulgaram que Mandela tinha sucumbido ou se vendido. Tambo enviou-lhe uma carta pedindexplicaes.

    Ento eu disse a ele, Mandela relembrou: Camarada O. R. era como costumav

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    35/112

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    36/112

    destruir o que obstrui. Buscara o consenso, mas no conseguiu alcan-lo. Preferia o consensomas se isso era impossvel, tomaria a iniciativa ele mesmo. No caso das sanes, conversocomigo sobre a ideia e disse que estava pensando a esse respeito o que geralmente significavque j tinha decidido e estava testando o terreno.

    Quando deixou a presidncia em 1999, prometeu que iria para uma calma aposentadoriMas no foi. No conseguiu permanecer em silncio diante do que o HIVestava fazendo com

    a frica do Sul. Sabia pouco sobre a doena quando saiu da priso. De fato, ele ainda tinhvises retrgradas sobre AIDS e homossexualidade, consistentes com um homem da sugerao. Mas depois que deixou a presidncia e viu seu sucessor, Thabo Mbeki, lidar mal coma crise da aidsna frica do Sul, ele falou. Mbeki havia muito rejeitava a conexo entre o vruhiv e a aids e se recusava a permitir a distribuio universal de drogas antirretrovirais aopacientes sul-africanos aidticos.

    Finalmente, em 2002, Mandela declarou ao Sunday Times de Johannesburgo: Isso umguerra. Ela matou mais pessoas que todas as guerras anteriores e todos os desastres naturai

    No devemos continuar debatendo, discutindo, enquanto as pessoas esto morrendo. Mbeno ficou feliz com o que Mandela disse, mas era a coisa certa a fazer. s vezes, liderar nfrente admitir que se est errado mesmo quando ningum o est acusando de estar erradMandela compreendeu que fora lento para ver a luz e no podia se abster mais; precisavtentar corrigir a histria.

    Mesmo da lateral do campo, Mandela estava liderando na frente.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    37/112

    4 - Lidere da retaguarda

    4

    Lidere

    DA RETAGUARDA

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    38/112

    TANTO QUANTO GOSTAVA DA NOTORIEDADE, Mandela sempre soube que tinha dcompartilh-la. Sabia que uma parte uma grande parte da liderana simblica e que eera um smbolo esplndido. Mas sabia que no podia estar sempre na frente e que seu grandobjetivo poderia morrer, a menos que permitisse que outros liderassem. Na linguagem dbasquete, ele queria a bola, mas sabia que tinha de pass-la aos outros e deix-los arremessaAcreditava genuinamente nas virtudes do time e sabia que, para conseguir o melhor de se

    povo, teria de assegurar que partilhassem da glria e, ainda mais importante, que sentissemque estavam influenciando as decises dele.

    Certa manh, estvamos caminhando havia aproximadamente uma hora e meia nomorros atrs da sua casa em Transkei e a nvoa da manh tinha se dissipado. Era uma resalpicada de rochas e penedos, com gramneas curtas e secas e poucas rvores. Mandela paroulevantou a cabea e olhou sua volta. Disse que aquela rea costumava ser um campo de mil era o termo africano para milho.

    Era magnfico. Devamos cuidar do rebanho, mas s vezes roubvamos algumas espigas d

    milho e as assvamos. Procurvamos grandes cupinzeiros que tivessem sido abandonadoTudo que havia dentro deles eram algumas gramneas e alguns cupins. Pegvamos as espigas as colocvamos no buraco e acendamos o fogo com grama seca no fundo. Colocvamos sabugo no buraco e o milho assava, enquanto os cupins forneciam um tipo de leo qudeixava o milho muito saboroso. Era como se ele fosse transportado de volta sua infnciaestivesse sentindo o gosto do milho queimado enquanto falava.

    Virou-se para mim e disse: Voc nunca cuidou de um rebanho, no , Richard?Respondi que no. Ele balanou a cabea. Quando garoto oito ou nove anos , Mandel

    passou longas tardes cuidando do rebanho. Sua me possua o seu prprio, mas havia umrebanho coletivo que pertencia vila, do qual ele e outros garotos cuidavam. Ele ento mexplicou os rudimentos do manejo de um rebanho.

    Sabe, quando voc quer que o rebanho se mova para determinada direo, fica atrs comuma vara e deixa alguns dos animais mais inteligentes irem na frente, movendo-se na direque voc quer que eles se movam. O resto do rebanho segue os mais energticos que esto nfrente, mas voc que est realmente guiando l de trs. Fez uma pausa. assim que umlder deve fazer o seu trabalho.

    A histria uma parbola, mas a ideia que liderana, em seu mago, significa mover apessoas em certa direo geralmente por meio da mudana de direo do seu pensamento de suas aes. E a maneira de fazer isso no necessariamente se lanar frente e dizesigam-me, mas possibilitando ou empurrando os outros para que se movam para a frente, sua frente. por intermdio da capacitao dos outros que partilhamos nossa prprliderana e nossas ideias. Isso valioso em toda a arena da vida. Vemos isso no local dtrabalho, quando um gerente encoraja seus funcionrios a formular novas estratgias. Vemo

    isso em casa, quando os pais tm uma reunio de famlia para guiar seus filhos por meio d

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    39/112

    hbitos e comportamento conscientes, em lugar de simplesmente ditarem as regras.Um dos antigos companheiros dele disse-me certa vez que por Mandela ser to forte

    carismtico nunca recebia crdito simplesmente por ser to inteligente. As pessoas comfrequncia comentavam sua presena, no sua inteligncia. Mandela no subestimava seuprprios recursos e sabia que no aprendia rapidamente. Tinha de trabalhar isso.

    Ele sempre despendia tempo para isso, porque queria realmente entender e examinar a

    questes sob todos os ngulos. Nunca foi superficial o suficiente para que pudesse fingir umconhecimento que no possua. Como resultado, muitas vezes se alinhava com aqueles qujulgava ser mais brilhantes e mais rpidos que ele. Queria aprender com os que julgava teverdadeira competncia e nunca se sentiu constrangido ao pedir que lhe explicassem as coisaE, ao lhes pedir ajuda ou conselho, no apenas aprendia com eles, mas tambm lhes davpoder e os tornava seus aliados. Mandela sabia que no h nada que faa outra pessoa gostamais de voc do que lhe pedir sua ajuda quando voc reconhece a opinio dos outroaumenta a lealdade deles a voc.

    * * *

    O modelo de Mandela para liderar a partir da retaguarda no foi seu pai, mas Jongintaba, o rque o criou no Grande Lugar. Depois que o pai de Mandela morreu, sua me arrumou umpequena mochila com os pertences de Nelson e eles caminharam pelos morros de Transkat Mqhekezweni, a capital do territrio Thembu, conhecida como o Grande Lugar. O pai dMandela tinha sido conselheiro do rei, e este queria treinar Mandela para ser posteriormentconselheiro de seu prprio filho, Justice, que tinha a idade de Mandela. Mandela se lembra dlonga e silenciosa jornada desde Qunu, sua vila natal, caminhando com sua me. Estava trisem deixar o nico mundo que conhecia, mas, quando chegou ao Grande Lugar, ficofascinado com sua grandiosidade. Como escreveu em seu dirio da priso: Mal podimaginar algo na terra que pudesse exceder aquilo. Na realidade, o Grande Lugar no ermuito mais que aproximadamente uma dzia de rondavels[5] e uma grande horta. Era umtanto modesto at para os padres de uma corte real africana. Mas ele achou que tinhalcanado o centro do mundo.

    Na tarde em que chegou, ele se lembra de um longo automvel deslizando pelo portocidental da vila e de todos os homens que estavam sentados sombra levantarem-se gritarem Bayethe a-a-a Jongintaba (Viva Jongintaba!), a tradicional saudao xhosa ao chefComo Mandela relembra em seu dirio: Um homem baixo e gordo, de tez escura, vestindum terno elegante, apareceu e se juntou aos que estavam sob as rvores. Tinha um porte firme um rosto inteligente. Sua confiana e os modos casuais marcavam-no como algumacostumado com o elogio e o exerccio da autoridade. Era o rei Jongintaba.

    Aquele dia ficou impresso em sua memria pelo resto da vida. Como ele diz em seu dirio

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    40/112

    at chegar a Mqhekezweni, sua nica ambio era ser um excelente guerreiro de lana ou umgrande caador. Mas mesmo naquele primeiro dia, ele escreve, senti-me como uma rvorque fora arrancada com a raiz da terra e lanada no meio da correnteza de um rio. Aquecorrenteza era o caminho da liderana mas como isso iria gui-lo a um mundo maior eralgo que no podia ento imaginar.

    Mandela observou de perto o estilo e o comportamento do rei. O poder era o eixo em torn

    do qual a vida da comunidade girava assim como sua vida. O rei no era um homeminstrudo (no sabia ler nem escrever), mas era o guardio da histria e das tradies thembO rei podia ter nascido para liderar, mas tambm era visto como servo do povo. O poder ertratado como um privilgio, no apenas um direito. O principal estilo de liderana no era slanar frente, mas ouvir e conseguir o consenso.

    As reunies da corte real, que eram como democrticas reunies em prefeituras, eram encontro da liderana. Todos os homens da vila participavam e qualquer um que quisesfalar podia faz-lo. Era costume o chefe ouvir as opinies dos seus conselheiros e d

    comunidade antes de pronunciar a sua prpria. O rei sempre permanecia ereto e altivo equando falava ao final da reunio, resumia as opinies que todos tinham ouvido. O rei erdeterminado, mas no deixava que sua vontade suplantasse a da comunidade.

    Isso o que Mandela quer dizer com liderar da retaguarda. Um bom chefe no declargrandiosamente sua opinio e ordena que os outros o sigam. Ele ouve, resume e ento procurmoldar a opinio e guiar o povo rumo ao de nenhum modo diferente do jovem garoguiando o rebanho a partir da retaguarda. Mandela considera isso o melhor da tradiafricana de liderana. Ele v o Ocidente como o bastio da ambio pessoal, onde as pessoalutam para seguir frente e deixar as demais para trs. A ideia renascentista do individualismnunca penetrou na frica, como o fez na Europa e na Amrica. O modelo africano dliderana mais bem expresso como ubuntu, a ideia de que as pessoas recebem o poder doutras pessoas, que ns nos tornamos melhores por meio da interao altrusta com os outros

    Lembro-me de chegar em uma manh de um fim de semana na casa de Mandela emHoughton. No caminho, depois dos portes de entrada, Mandela e um grupo de conselheiroestavam sentados na sombra, em um pequeno crculo de cadeiras dobrveis, absorvidos em

    uma conversa. Aproximei uma cadeira da beira do crculo. O que me impressionou mavigorosamente foi que esses homens estavam conversando animadamente, alguns delecriticando Mandela e dizendo-lhe, bem diretamente, que ele estava errado em relao a certaposies. Todos eram homens respeitosos (uns s o suficiente) e alguns estavam exaltados sem papas na lngua. Mandela estava sentado ereto, quase sem se mexer, ouvindo atentamencom uma expresso neutra. Ele daria um bom jogador de pquer. Somente no final dencontro, quando os homens estavam se preparando para ir embora, Mandela falou e resumias opinies deles sem dizer exatamente em que ponto ele se situava. Percebi que os homen

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    41/112

    pareciam mais joviais depois de emitir suas opinies, independentemente de ter ou npersuadido Mandela. Mandela sabia que o modo mais certeiro de neutralizar uma discussera ouvir pacientemente o ponto de vista oposto.

    Depois lhe perguntei sobre essa conversa e seu estilo de liderana. Somos umorganizao democrtica, ele me disse. s vezes, vou at o cen [Conselho ExecutivNacional] com uma ideia e eles discordam de mim e a rejeitam. E eu obedeo, mesm

    quando esto errados! Isso democracia! Deu uma enorme gargalhada. Mas ele sabia que emmuitas ocasies sua viso sobre questes individuais importava menos que o processdemocrtico era melhor perder em relao a uma questo individual e deixar a democracvencer.

    Quando Mandela se tornou presidente, liderou reunies de gabinete do mesmo modFazia o mximo para que vises opostas fossem manifestadas, quando no apoiadas. Ele quasempre falava no fim e mais brevemente que os outros.

    s vezes, mencionava Abraham Lincoln a mim como um modelo de liderana. Hav

    aprendido sobre ele quando era estudante. De fato, quando jovem, Mandela tinha desejado papel de Lincoln em uma pea da escola, mas havia um estudante ainda mais alto que ele quconseguiu o papel (Mandela pesarosamente contou que acabou fazendo o papel de JohWilkes Booth). Mandela estava ciente de que Lincoln havia colocado alguns de seus rivamais ferozes em seu gabinete e ele da mesma forma escolheu membros da oposio para seprprio gabinete. Ficara impressionado com o modo pelo qual Lincoln usou da persuaso emlugar da fora para administrar seu gabinete. Certa vez, ele me contou uma anedota que havrecordado sobre Lincoln dissuadir algum de participar do seu gabinete e terminou dizendo

    sbio persuadir as pessoas a fazerem as coisas e deix-las pensar que foi ideia delamesmas.

    Para Mandela, liderar da retaguarda pode, de alguma forma, parecer uma camuflagem parliderar na frente. Mas ele tambm conhece os limites da liderana, mesmo os seus. Quandsaiu da priso, era um tipo de Rip Van Winkle africano. Amigos e companheiros informaram a respeito de vrios assuntos: direitos das mulheres, a mdia moderna, aids e halm de dezenas de outros assuntos. Essa foi uma educao reparadora necessria e umexpresso da ideia africana da liderana coletiva. Desde a infncia, ele sabia que a liderancoletiva se baseava em dois pontos: a maior sabedoria do grupo comparada individual e maior investimento do grupo em qualquer resultado atingido por meio do consenso. Era umvitria dupla.

    Liderar da retaguarda funciona da mesma maneira: voc alcana o resultado que deseja dforma harmoniosa. bom para os outros e bom para voc.

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    42/112

    5 - Represente o papel

    5

    Represente

    O PAPEL

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    43/112

    ESFORAMO-NOS PARA JULGAR as pessoas pela essncia de seu carter, mas NelsoMandela sabia que, s vezes, a melhor forma de ajudar os outros a ver seu carter por meda maneira como voc se apresenta. Toda a sua vida Mandela se preocupou com a aparncdas coisas da cor da sua camisa forma como uma poltica era apresentada a seus partidrioe ao quo ereto ele conseguia permanecer. Ele nunca diria a algum para no julgar um livrpela capa porque ele sabe que todos fazemos isso. Embora seja um homem de substncia, d

    que no faz sentido nojulgar pela aparncia. As aparncias importam e temos somente umchance de causar a primeira impresso.

    Mandela adora roupas. Sempre adorou. Ele no diria que as roupas fazem um homem, maque provocam uma impresso imediata. Sua ideia a de que se voc quer representar o papetem de usar a roupa certa. Comeou a aprender isso quando era menino seu pai cortou prpria cala de montaria para fazer-lhe uma cala para o seu primeiro dia na escola. Seu pestava determinado que seu filho no parecesse um nativo incivilizado, vestido com ummanta. Mais tarde, quando j adolescente e pupilo do rei Thembu, uma de suas tarefas er

    passar a ferro os ternos do soberano. Um rei tinha de se apresentar em perfeita ordem, e fouma tarefa que Mandela realizou com grande meticulosidade. Lembro-me dele, certa veperguntando-me se eu poderia ajud-lo a encontrar um ferro em seu quarto de hotel, porquseu palet estava amarrotado. Reparava na qualidade do tecido dos seus ternos e nos dos outrohomens. Relembra, com detalhes, do elegante terno transpassado que o rei mandou fazer paele antes que fosse para a Universidade de Fort Hare.

    Mas nem sempre teve condies de se vestir como queria. No comeo da sua vida emJohannesburgo, e ao longo de cinco anos, teve apenas um terno que, ao final desse perod

    tinha mais remendos que tecido original. Ainda se recorda do quanto ficava constrangido avesti-lo. Poucos anos depois, quando tinha atingido algum sucesso como jovem advogaduma das primeiras coisas que fez foi ter seu prprio alfaiate. Seu futuro advogado, GeorgeBizos, lembra-se de encontrar Mandela no ateli do seu alfaiate e perceber que era a primeirvez que via um negro tirando as medidas para um terno. Mandela tinha um senso natural destilo e era ento considerado uma espcie de dndi. Vestia-se daquele modo no apenaporque lhe dava prazer, mas porque, naqueles dias, os brancos tambm julgavam os negropelo que vestiam, e ele no queria parecer um trabalhador comum, mas um profissional.

    Atores sabem que ir a um teste vestidos como o personagem que desejam pode fazediferena para conseguir o papel. Assim como fingir que se corajoso pode se tornar coragemreal, podemos sentir que nos vestirmos como a pessoa que queremos ser nos deixa maprximos de nos tornarmos aquela pessoa. Durante toda a sua vida Mandela sempre spareceu com e representou o papel. Quando era estudante, queria parecer preciso organizado. Quando era um jovem advogado, usava ternos sob medida para impressionar ojuzes e seus clientes. Quando estava na clandestinidade, usava uniforme militar e deixou

    barba crescer. Quando se tornou presidente, no incio vestia ternos escuros conservadore

  • 8/10/2019 Os Caminhos de Mandela - Richard Stengel

    44/112

    Ma