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Os Campos O dos Castelos A Europa jaz, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando. O cotovelo esquerdo é recuado; O direito é em ângulo disposto. Aquele diz Itália onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se apoia o rosto. Fita, com olhar esfíngico e fatal, O Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal. Fernando Pessoa, in Mensagem

Os Campos - · PDF filesete castelos que, uma vez conquistados aos mouros, definiriam a geografia de Portugal. 20 Eis aqui, quase cume da cabeça De Europa toda, o Reino Lusitano,

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Os Campos

O dos Castelos

A Europa jaz, posta nos cotovelos:

De Oriente a Ocidente jaz, fitando,

E toldam-lhe românticos cabelos

Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;

O direito é em ângulo disposto.

Aquele diz Itália onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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O dos Castelos � sistematização A Europa é perspetivada pelo poeta como figura feminina cujo rosto é, in-dubitavelmente, Portugal – “O rosto com que fita é Portugal. Porém, esta figura feminina “jaz”, melhor dizendo, está deitada sobre os cotovelos, numa atitude de hipotético adormecimento, ou de espera, vivendo das memórias de um passado, cujas raízes culturais estão associadas à Grécia, Itália e Inglaterra. Desta atitude passiva, expectante, apenas o rosto parece estar animado de vida, porque fita, olha fixamente o Ocidente – o mar, onde a Europa se lançou através de Portugal, na grandiosidade das descobertas com a qual traçou o seu próprio futuro. Neste sentido, só Portugal parece estar pronto a despertar e o seu olhar é, simultaneamente, “esfíngico e fatal”, ou seja, enigmático e marcado pelo destino. Assim, o poeta refere-se, sem dúvida, ao papel de Portugal como líder ine-gável de uma nova Europa, cujo futuro recuperará a glória do passado. A missão de Portugal está, desde logo, assinalada pela sua localização geográfica estratégi-ca: conquistar o que está para ocidente, o mar, criando um novo império que da-rá continuidade à supremacia do restante império europeu. O título do poema é uma alusão ao território português, protegido por os sete castelos que, uma vez conquistados aos mouros, definiriam a geografia de Portugal.

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20 Eis aqui, quase cume da cabeça De Europa toda, o Reino Lusitano, Onde a terra se acaba e o mar começa, E onde Febo repousa no Oceano. Este quis o Céu justo que floresça Nas armas contra o torpe Mauritano, Deitando-o de si fora, e lá na ardente África estar quieto o não consente.

21 Esta é a ditosa pátria minha amada, A qual se o Céu me dá que eu sem perigo Torne, com esta empresa já acabada, Acabe-se esta luz ali comigo. Esta foi Lusitânia, derivada De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo Filhos foram, parece, ou companheiros, E nela então os Íncolas primeiro

Luís de Camões, os Lusíadas, Canto III

O dos Castelos � intertextualidade

Tal como neste poema de Mensagem, a estrofe 20 do canto III d’ Os Lusía-das referencia Portugal como a cabeça da Europa – “quási cume da cabeça de Eu-ropa toda” – atribuindo-lhe uma missão predestinada. N’ Os Lusíadas, essa pre-destinação é ditada pelo “Céu” que quis que Portugal vencesse na luta contra os mouros.

Quer num texto, quer noutro, é percetível um forte sentimento patriótico, uma vez que o papel de Portugal face à Europa é enfatizado.

No texto camoniano, tal sentimento expressa-se tanto pela forma como o poeta vê Portugal como líder da Europa (“cabeça”), como na expressão do amor do narrador, Vasco da Gama, pela “ditosa pátria”, onde espera vir a morrer de-pois de cumprida a sua missão.

Já Pessoa valoriza o papel de Portugal junto da civilização ocidental, ao colocá-lo como resto que fita “O ocidente, futuro do passado”. É um sentimento muito patriótico aquele que leva Pessoa a antever a construção de um império muito para alem do material e é também esse sentimento o que o leva a apontar Portugal como cabeça e Itália e Inglaterra como cotovelos.

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Os Campos

O das Quinas

Os Deuses vendem quando dão.

Compra-se a glória com desgraça.

Ai dos felizes, porque são

Só o que passa!

Baste a quem basta o que lhe basta

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta:

Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza

Que Deus ao Cristo definiu:

Assim o opôs à Natureza

E Filho o ungiu.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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O das Quinas � sistematização O poeta faz uma série de afirmações paradoxais – “Os deuses vendem quando dão” -, ou baseadas em jogos de palavras – “Baste a quem basta o que lhe basta” – com um único objetivo: mostrar que para se atingir a grandeza, para se conquistar a glória é indispensável estar disposto a sofrer – “Compra-se a glória com a desgraça”.

Qual será, pois, o destino do Homem, mais particularmente o do Homem português? O mesmo de Cristo: tal como Ele, os portugueses só ascenderão a um plano superior, transcendendo-se, superando as limitações da própria vida, por natureza efémera – “A vida é breve, a alma é vasta”.

Estão, então, traçadas as potencialidades da alma portuguesa, uma alma que se afirma “vasta”, grande – será esta grandeza de alma que presidirá todos os heróis de Mensagem.

Se se descodificar o titulo do poema, “as quinas” correspondem às cinco chagas de Cristo, símbolo do sofrimento e morte redentores da humanidade. Por conseguinte, as quinas são, desde logo, a expressão de que só o sacrifício conduz à redenção e à glória, projetando a missão de Portugal para um plano de espiri-tualidade.

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Os Castelos

Ulisses

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar nas realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Ulisses � sistematização Pessoa remonta à figura mítica de Ulisses para explicar a fundação de Por-tugal.

Associadas à sua fundação, não está apenas o real, o factual histórico, mas igualmente o mítico, dificilmente explicável – “O mito é o nada que é tudo”. Ulis-ses, “sem existir”, porque é mito, “nos bastou”, e “por não ter vindo”, porque não é real “nos criou, ou seja, foi essencial para sermos hoje o povo que somos.

Ulisses é figura lendária do navegador errante, cujo espírito aventureiro o levou a enfrentar o mar durante dez longos anos, vivendo e ultrapassando os seus inúmeros e difíceis obstáculos, até, finalmente, aportar na sua ilha natal, Íta-ca. Ulisses antecipa, assim, o destino de um Portugal voltado para a aventura ma-rítima, celebrada na nossa história.

Embora não existindo, Ulisses aparece associado ao nascimento de Portu-gal, mais propriamente à cidade de Lisboa, o que evidencia, desde logo, a missão espiritual de Mensagem. Ele representa o mito que, juntamente com a história, dará vida a Portugal. Ele é o mito que fecunda a realidade, dando sentido à vida – “A lenda se escorre a entrar na realidade/E a fecundá-la decorre”. O paradoxo inicial (tese) – “O mito é o nada que é tudo” é a seguir demonstrado: • O mito – a lenda – é o nada (não existe), mas, ao mesmo tempo, é tudo por-

que explica o real, fecundando-o: “Assim a lenda se escorre/A entrar na rea-lidade,/E a fecundá-la decorre.”;

• A importância da referencia a Ulisses: - Ulisses é um herói mítico – “Este, que aqui aportou,/Foi por não ser

existindo.”; - A sua existência lendária não invalida a sua força criadora da identi-

dade nacional – “Sem existir nos bastou./Por não ter vindo foi vin-do/E nos criou.”;

- A sua ligação ao mar explica o destino marítimo dos portugueses; • A terceira estrofe, iniciada pelo advérbio adjunto de modo “Assim”, sinteti-

za a tese inicial: com efeito, na terra – “Em baixo” – a vida real e objetiva – “metade/De nada” – apaga-se para que o mito se engrandeça e eternize.

• Conclusão: Ulisses não é nada, porque é mito, explica o destino marítimo dos portugueses, que é tudo. É irrelevante que os heróis fundadores tenham ou não tido existência real, o que importa é que todos tenham funcionado com a força do mito que, não existindo, é tudo.

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Ulisses � intertextualidade Canto VIII: - Armada estacionada em Calecut - Narrador: Paulo da Gama - Narratário: Catual de Calecut

4 (…) Vês outro, que do Tejo a terra pisa, Depois de ter tão longo mar arado, Onde muros perpétuos edifica, E templo a Palas, que em memória fica?

5 Ulisses é o que faz a santa casa A Deusa, que lhe dá língua facunda; Que, se lá na Ásia Troia insigne abrasa, Cá na Europa Lisboa ingente funda.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto VIII

Tal como em Mensagem, Os Lusíadas recuperam a lenda fundadora de Ulisses, atribuindo-lhe a fundação de Lisboa.

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Os Castelos

D. Afonso Henriques

Pai, foste cavaleiro.

Hoje a vigília é nossa.

Dá-nos o exemplo inteiro

E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,

Novos infiéis vençam,

A bênção como espada,

A espada como bênção!

Fernando Pessoa, in Mensagem

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D. Afonso Henriques � sistematização D. Afonso Henriques é apelidado pelo poeta de “Pai”. Ele é, simultanea-mente, “Pai” e “cavaleiro” – Pai, porque fundador da nacionalidade e, por isso, pai dos portugueses; cavaleiro, porque, com a “espada”, defendeu e conquistou o ter-ritório português, mas também se assumiu como defensor da fé. Então, o poeta pede-lhe que, nos dias de hoje, ele sirva de exemplo aos portugueses e que a sua força inspire a uma ação que vença os “novos infiéis”, ou seja, todos aqueles que se opõem à missão espiritual e providencial de Portugal que, para o poeta, é uma certeza inabalável. Espada:

• Confere luminosidade (tudo à sua volta se torna claro); • Defesa dos valores (morais, religiosos, nacionais); • Símbolo de cavalaria � união mística entre o cavaleiro e a espada; • Valor profético; • Símbolo:

- Da Guerra Santa � da guerra interior; - Do verbo, da palavra; - Da conquista do conhecimento; - Da libertação dos desejos; - Da espiritualidade; - Da vontade divina;

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D. Afonso Henriques � intertextualidade

43 Em nenhuma outra cousa confiado, Senão no sumo Deus, que o Céu regia, Que tão pouco era o povo batizado, Que para um só cem Mouros haveria. Julga qualquer juízo sossegado Por mais temeridade que ousadia, Cometer um tamanho ajuntamento, Que para um cavaleiro houvesse cento.

44 Cinco Reis Mouros são os inimigos, Dos quais o principal Ismar se chama; Todos exprimentados nos perigos Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. Seguem guerreiras damas seus amigos, Imitando a formosa e forte Dama, De quem tanto os Troianos se ajudaram, E as que o Termodonte já gostaram.

45 A matutina luz serena e fria, As estrelas do Pólo já apartava, Quando na Cruz o Filho de Maria, Amostrando-se a Afonso, o animava. Ele, adorando quem lhe aparecia, Na Fé todo inflamado assim gritava: — "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, E não a mim, que creio o que podeis!"

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto III

N’Os Lusíadas, como não podia deixar de ser, é dado um destaque enorme a D. Afonso Henriques, figura que preenche as estrofes 28 a 84 do canto III. Ele é o fundador da nação, o escolhido por deus que legitima o seu poder ao aparecer-lhe na batalha de Ourique. De resto, a lenda de Ourique, muito alimentada desde o século XVI, serviu para conferir uma dimensão sagrada ao nascimento de Por-tugal. Na Mensagem, curiosamente, o poema dedicado a D. Afonso Henriques não refere a lenda, mas ela está lá, implícita, através da espada/bênção.

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Os Castelos

D. Dinis

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

O plantador de naus a haver

E ouve um silêncio múrmuro consigo:

É o rumor dos pinhais que, como um trigo

De Império, ondulam sem se poder ver

Arroio, esse cantar, jovem e puro,

Busca o Oceano por achar;

E a fala dos pinhais, marulho obscuro,

É o som presente desse mar futuro,

É a voz da terra ansiando pelo mar.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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D. Dinis � sistematização

Pessoa evoca a figura histórica de D. Dinis, monarca português da 1ª di-nastia, filho de Afonso III. A sua prioridade enquanto rei foi administrar e organi-zar o Reino português e não guerrear, tendo assinado a paz com Castela em 1297. Foram-lhes atribuídos os cognomes “O Lavrador” e “O Trovador”, tanto pelo impulso que deu ao desenvolvimento da agricultura, como pelo apreço ma-nifestado pelo culto da arte de fazer poesia e pela elevação do português como língua oficial.

Os dois primeiros versos do poema remetem, de imediato, para essa du-pla faceta – D. Dinis “escreve um seu Cantar de Amigo” e é “plantador de naus a haver”, sendo estas construídas com o produto dos pinhais por ele mandados semear. D. Dinis representa, pois, aquele para quem a poesia terá, entre outros, como objetivo cantar o império português e aquele que lançará a semente de fu-turos impérios.

Nos restantes versos, destaca-se toa uma serie de vocábulos que expri-mem sons, vozes, rumores, como se de uma profecia se tratasse (“marulho obs-curo”; “fala dos pinhais”; “o rumor dos pinhais”). Todos eles profetizam a grande epopeia marítima portuguesa dos séculos XV e XVI.

D. Dinis é, então, o profeta que sabe intuir, de forma sibilina (enigmática), o grande império das descobertas. Assim, o que se preconiza é o sonho fundador que permita a construção de um tempo futuro.

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D. Dinis � intertextualidade

96 Eis depois vem Dinis, que bem parece

Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,

Com quem a fama grande se escurece

Da liberalidade Alexandrina.

Com este o Reino próspero florece

(Alcançada já a paz áurea divina)

Em constituições, leis e costumes,

Na terra já tranquila claros lumes.

97 Fez primeiro em Coimbra exercitar-se

O valeroso ofício de Minerva;

E de Helicona as Musas fez passar-se

A pisar do Monde-o a fértil erva.

Quanto pode de Atenas desejar-se,

Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.

Aqui as capelas dá tecidas de ouro,

Do bácaro e do sempre verde louro.

98 Nobres vilas de novo edificou

Fortalezas, castelos mui seguros,

E quase o Reino todo reformou

Com edifícios grandes, e altos muros.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto III

D. Dinis não poderia deixar de figurar na Mensagem, obra que se ocupa sobretudo dos mitos e à qual da História, interessa precisamente a matéria míti-ca. Nesse sentido, D. Dinis figura como um mito da iniciação, o antecipador da grande empresa de descoberta do mar desconhecido, aquele que soube escutar a voz do mar. Já n’Os Lusíadas, epopeia que se ocupa da matéria histórica elabora-da como caminho para a construção do império, da glória e do heroísmo, D. Dinis merece pouco mais de duas breves estrofes, pois ele não é um rei guerreiro e os seus feitos não são feitos de armas.

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As Quinas D. Sebastião, Rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa, in Mensagem

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D. Sebastião, Rei de Portugal � sistematização Este é o primeiro dos quatro poemas dedicados a D. Sebastião. Caracteri-zando-se como um “louco” porque “quis grandeza”, D. Sebastião admite com or-gulho essa loucura, símbolo do inspirado, de todo aquele que está para além do comum da sociedade e transmite a ideia de que nem a morte a extinguiu ou po-derá extinguir. O “ser que houve” morreu nos areais de Alcácer Quibir; o “ser que há”, esse não é perecível, porque o sonho também não o é. Indo mais além neste discurso de “elogio da loucura”, D. Sebastião incita aqueles que o ouvem a herdarem a sua loucura. Trata-se de uma espécie de apelo à continuidade do seu sonho de grandeza. Num remate de natureza tanto reflexiva como desafiadores, o poeta inter-roga-se sobre o que distingue o Homem dos restantes animais – é o sonho que permite que o Homem seja “mais que (...) cadáver adiado”. É o sonho que eleva o Homem e o faz ultrapassar a própria morte. D. Sebastião surge, então, como uma espécie de messias que traz a boa nova da salvação. Num discurso na 1ª pessoa, D. Sebastião assume-se orgulhosamente como louco: • A recorrência da ideia de loucura – “Louco, sim, louco”; “Minha loucura”;

“Sem a loucura”; • A loucura do rei, de sinal positivo, projeta-se no desejo de ultrapassar os li-

mites do homem, na ousadia de transmitir o seu sonho aos outros – “Minha loucura, outros que me a tomem/Com o que nela ia”.

• O jogo dos tempos verbais – “ser que houve não o que há” – exprime a dico-tomia entre o ser mortal, o D. Sebastião histórico (que ficou no areal de Alcá-cer Quibir), e o ser imortal, o D. Sebastião mítico – o sonho, o desejo de gran-deza;

• Esta espécie de loucura, fecundante (que dá frutos), distingue o homem da “besta sadia,/Cadáver adiado que procria?”;

• D. Sebastião é ais um agente da busca de realização do sonho objetivo da Mensagem pessoana;

• D. Sebastião como figura messiânica.

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D. Sebastião, Rei de Portugal � intertextualidade É a D. Sebastião que Camões dedica Os Lusíadas e é a este rei que o poeta dirige o apelo, no sentido de continuar a tradição dos antigos heróis portugueses, para fazer ressurgir a Pátria da “apagada e vil tristeza” do presente – Dedicatória. Na Mensagem, D. Sebastião (o Sebastianismo) é o mito organizador e articulador da obra, no sentido de que ele representa, precisamente, o sonho que ressurgirá do nevoeiro em que o Portugal do presente está mergulhado, impulsionando a construção do futuro, a utopia (que é a força criadora de novos mundos, quer a nível individual, quer a nível coletivo).

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O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal,

Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa, in Mensagem

Infante D. Henrique – grande impulsionador dos descobrimentos. Tendo defendido uma politica expansionista voltada para a descoberta, foi o responsável pela escola de Sagres e levou a cabo a realização de uma série de descobertas que englobam os arquipélagos dos Açores e da Madeira e a costa ocidental africana até próximo do equador.

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O Infante – sistematização

No poema que abre a segunda parte de Mensagem, Pessoa recupera a fi-gura do infante D. Henrique, um herói, um dos eleitos por Deus que foi protago-nista da vontade divina – “Deus quer” – e que cumpriu a missão para a qual foi designado – “a obra nasce”. é então reforçada, neste poema, a ideia do herói míti-co, aquele que Deus manipula quase como um títere, o que obedece às suas or-dens e cumpre os seus desígnios. Essa obra foi grandiosa: a descoberta da Terra na sua totalidade e verda-deira forma, através da posse do mar – “E viu-se a Terra inteira, de repen-te,/Surgir, redonda, do azul profundo”. Porém, o poeta antecipa o desfecho desventurado da saga marítima dos portugueses – povo que deu o mundo ao mundo, conquistando o mar, mas cujo império se foi progressivamente dissolvendo – “E o Império se desfez”. O poema encerra, então, um tom desencantado – “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” –, mas no qual se pretende a certeza de que é possível recuperar a grandeza perdida e construir um Portugal novo, fazendo alusão ao mito do Quin-to Império.

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O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: “Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tetos negros do fim do mundo?”

E o homem do leme disse, tremendo:

“El-rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?”

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.

“Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?”

E o homem do leme tremeu, e disse:

“El-rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

“Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

D' El-rei D. João Segundo!”

Fernando Pessoa, in Mensagem

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O Mostrengo – sistematização Este poema simboliza a interminável e difícil tarefa da conquista do mai, o poeta narra o encontro – aquando da primeira passagem do cabo das Tormentas em 1488 – entre a figura horrenda do Mostrengo e o homem do leme, represen-tante de todos os protagonistas da aventura marítima, os navegadores portugue-ses. Numa relação clara de inferioridade física com o monstro marinho, o ho-mem do leme não se deixa intimidar, e lança-lhe o seu desafio: dar cumprimento à vontade inflexível de D. João II. Ao dominar o Mostrengo, o homem do leme protagoniza a vitória dos na-vegadores portugueses sobre todos os obstáculos que o mar oferecia: os medos e os inúmeros perigos.

Poema cuja extensão parece querer simbolizar o longo e difícil processo de

conquista do mar: • O caráter narrativo do poema; • O dialogo a três vozes: sujeito poético, Mostrengo e homem do leme; • A simbologia do Mostrengo: todos os perigos, medos e obstáculos; • A dimensão simbólica do homem do leme: anónimo que dá voz ao sentir e à

ousadia de um povo; • Poema eco da tradição lendária: o desafio do homem face aos limites da sua

condição humana; • A insistência no numero três e sua simbologia. O Mostengo: • Revela atitudes intimidatórias, ameaçadoras, amedrontadoras; • É informe (não tem uma forma concreta); • Está carregado de conotação negativa; • É pouco definido, pouco descrito (não tem identidade); • Simboliza os perigos do mar, os obstáculos, as adversidades e os medos.

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O Mostrengo – intertextualidade

37 Porém já cinco Sóis eram passados Que dali nos partíramos, cortando Os mares nunca doutrem navegados, Prosperamente os ventos assoprando, Quando uma noite estando descuidados Na cortadora proa vigiando, Uma nuvem que os ares escurece, Sobre nossas cabeças aparece.

38 Tão temerosa vinha e carregada, Que pôs nos corações um grande medo; Bramindo o negro mar, de longe brada, Como se desse em vão nalgum rochedo. "Ó Potestade (disse) sublimada: Que ameaço divino, ou que segredo Este clima e este mar nos apresenta, Que mor cousa parece que tormenta?"

39 Não acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura; O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida; Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos. (…)

41 E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho. Nunca arados de estranho ou próprio lenho: (…)

43 Sabe que quantas naus esta viagem Que tu fazes, fizerem de atrevidas, Inimiga terão esta paragem, Com ventos e tormentas desmedidas! E da primeira armada que passagem Fizer por estas ondas insofridas, Eu farei de improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo!

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(…)

49 Mais ia por diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando alçado Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo certo me tem maravilhado.— A boca e os olhos negros retorcendo, E dando um espantoso e grande brado, Me respondeu, com voz pesada e amara, Como quem da pergunta lhe pesara:

50 "Eu sou aquele oculto e grande Cabo, A quem chamais vós outros Tormentório, Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo, Plínio, e quantos passaram, fui notório. Aqui toda a Africana costa acabo Neste meu nunca visto Promontório, Que para o Pólo Antarctico se estende, A quem vossa ousadia tanto ofende.

51 Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Contra o que vibra os raios de Vulcano; Não que pusesse serra sobre serra, Mas conquistando as ondas do Oceano, Fui capitão do mar, por onde andava A armada de Netuno, que eu buscava.”

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V

Entre o Mostrengo de Mensagem e o Adamastor de Os Lusíadas há a con-siderar o facto, muito significativo, de ambos se situarem no centro das respeti-vas obras, funcionando como eixos estruturantes.

O Mostrengo e o Adamastor surgem como símbolo dos perigos e das difi-culdades que se apresentam ao ser humano que quer conhecer novos mundos. São não só o símbolo dos problemas a enfrentar quando se pretende explorar o desconhecido, mas também quando o homem deseja descer ao interior de si próprio. Camões procura, fundamentalmente, demonstrar que muitos dos “gigan-tes”, ou dificuldades, advêm da falta de conhecimento e do medo de correr riscos. O homem tem de se superar para ultrapassar os problemas com que se depara. Vencendo-se, vence os seus medos e pode descobrir o que lhe estava oculto. A figura do Mostrengo mantém toda a simbologia do fantástico que se contava e que amedrontava mesmo os mais corajosos. O poema pessoano simbo-liza as dificuldades sentidas pelos portugueses na conquista do mar, contrapon-do o medo com a coragem do marinheiro português perante aquele ser “imundo e grosso”, vencendo os seus medos. O Gigante Adamastor – sistematização

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A exaltação do herói – exatamente por serem ditas por um ser tão temível, as palavras do Adamastor sobre a ousadia dos portugueses têm um efeito dupla-mente exaltante: aquela “gente ousada”, “mais que quantas/no mundo comete-ram grandes cousas”, ignorou as interdições, ultrapassou os limites (“vedados términos”), para desvendar o desconhecido, “ver os segredos escondidos/da na-tureza e do húmido elemento”, o que nenhum ser, nobre o imortal, se tenha atre-vido a tentar – é mais uma vez a conquista do conhecimento, do saber, ancorado na observação, que se coloca em destaque como um dos grandes feitos da via-gem. A afirmação do herói – a coragem do herói afirma-se pelo enfrentar do medo, por ousar conhecê-lo, decifrá-lo; assim, o uso da palavra, por parte de Vasco da Gama, interrompendo as palavras ameaçadoras da monstruosa figura, a pergun-ta sobre a sua identidade (“Quem és tu?”) são o momento simbólico de afirmação da grandeza do homem. O desfazer do mito – tendo sobre os humanos a vantagem de conhecer para amem do presente, o que mostra ao profetizar desgraças futuras, o gigante, no final, retira-se com um “medonho choro”, depois de ter contado a sua história. Fora, afinal, vencido no amor e na guerra, iludido e aprisionado; assim, ao tornar-se conhecido, desvanece-se o seu caráter ameaçador. Simbologia do episódio – o Gigante Adamastor representa o maior de todos os obstáculos na realização de qualquer viagem, seja qual for a sua natureza – o medo do desconhecido. Como vencer os limites paralisantes, por vezes, que a prudência impõe? Como preparar o confronto com não se sabe o quê? Com que armas se luta com o que se desconhece? Perante o desconhecido, os navegadores enfrentaram o terror, desvendaram os seus mistérios e o desconhecido deixou de o ser. Portanto, o episódio simboliza a vitória sobre o medo que os perigos ig-norados da natureza provocavam – em “O Mostrengo”, encontramos naturalmen-te a mesma intenção simbólica.

Mar português

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Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Mar Português – sistematização O poeta dirige-se ao mar, um mar responsável pelo sofrimento das mães, dos filhos, das noivas, de todos aqueles que ousaram cruzar as suas águas com o intuito de o dominarem – “para que fosses nosso, ó mar!”. Terá valido a pena tanto sofrimento? “Tudo vale a pena/Quando a alma não é pequena” – é mais uma maneira de o poeta afirmar a importância da von-tade da alma humana, vontade sempre insaciável. Se, na primeira estrofe, o mar é sinonimo de dor, já na segunda, aparece associado à conquista do absoluto. De facto, o mar encerra “perigo” e “abismo”, mas também espelha o “céu”, ou seja, oferece recompensas ao permitir o acesso a um prémio superior, seja ele a verdade, a heroicidade, a imortalidade, a glória... A apóstrofe inicial indicia a atmosfera emotiva do poema: • A expressividade da enumeração de todos quantos participaram na safa so-

frida das Descobertas; • O valor simbólico da circularidade da primeira estrofe – “Ó mar (...) ó mar!”; • A interrogação retórica a iniciar o caráter reflexivo da segunda estrofe; • O mar como espaço de conciliação do perigo e da recompensa; • O mar, símbolo da conquista do absoluto, do divino; • O sentido patriótico, de abnegação, o espírito de missão dos navegadores.

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Mar Português – intertextualidade

89 Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres cum choro piadoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrecentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo.

90 Qual vai dizendo: —“Ó filho, a quem eu tinha

Só pera refrigério, e doce emparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro, Por que me deixas, mísera e mesquinha? Por que de mi te vas, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento, Onde sejas de pexes mantimento?”

91 Qual em cabelo: —"Ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa Por que is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha, e não é vossa? Como, por um caminho duvidoso, Vos esquece a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento, Quereis que com as velas leve o vento?"

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV As “lágrimas de Portugal” que tornaram salgado o “mar” de Mensagem são

as lágrimas choradas n’ Os Lusíadas pelas mulheres que, na praia, se despediram dos marinheiros que partiram na grande aventura de Vasco da Gama, nas Despe-didas em Belém. Despedidas em Belém – sistematização

Este episódio é um momento particularmente lírico da narrativa, pondo a tónica nos sentimentos do que ficavam, que antecipadamente choravam a perda dos que partiam, bem como nos destes, que tiveram que enfrentar esse primeiro obstáculo – a dor que infligiam aos seres amados, as saudades que eles próprios já começavam a sentir. Antes dos heróis, em particular Vasco da Gama, vêm as mais frágeis – “mães, esposas, irmãs”, “velhos e os mininos”, os mesmos cujas lá-grimas darão sal ao mar do poema de Mensagem.

Assim, nestas estancias d’ Os Lusíadas, há um ambiente de dor e de pessi-mismo provocado pela antecipação dos perigos que aqueles que partem vão en-frentar. No poema “Mar Português”, esta consciência do perigo, que também provoca dor e sofrimento, é eivada de otimismo, por a dor é encarada como um meio necessário para alcançar o sonho, é uma fase do caminho para atingir o ab-soluto.

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Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistemos a Distancia –

Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Prece – sistematização Trata-se do ultimo poema da segunda parte de Mensagem, Mar Português, onde são exaltados os acontecimentos e o heróis das descobertas marítimas por-tuguesas, constituindo, também, um prenuncio da linha temática estruturadora da ultima parte de Mensagem – o Encoberto. O poema é, sem duvida, um apelo a uma entidade divina e superior – “Se-nhor” – em quem o sujeito poético deposita a esperança de um futuro redentor. Se, na primeira quadra domina um sentimento de desencanto e a disforia se tor-na notória, no resto do poema sucede a certeza de que nem tudo é irremediável e de que é possível restaurar a grandeza perdida, ou, pelo menos, conquistar uma outra grandeza – o poeta acredita que é possível recuperar o passado grandioso e avançar para um futuro promissor e positivo. Assim, para ele, a esperança ain-da sobrevive, a chama da vida ainda não está completamente extinta, ela apenas dorme debaixo do “frio morto em cinzas”. O que é preciso, então? Basta que a “mão do vento” a erga, basta apenas um golpe de vontade e, uma vez levantado “o sopro, a aragem”, o esforço ganhará forma e, de novo, haverá a certeza de conquistar a “Distância”. Esta distância não tem necessariamente que ser a do mar, mas será, sobretudo, “nossa”, ou seja, se-rá a condição redentora do desencanto do povo português. O tom das duas qua-dras é, pois, a de um choro apelo à ação, numa antevisão de um novo império, o Quinto Império – um império não mais material porque eterno.

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Prece – intertextualidade

145 No mais, Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria, não, que está metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza.

146 E não sei por que influxo de destino não tem um ledo orgulho e geral gosto, que os ânimos levanta de continuo a ter para trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino conselho estais no régio sólio posto, olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes.

147 Olhai que ledos vão, por várias vias, quais rompentes leões e bravos touros, dando os corpos a fomes e vigias, a ferro, a fogo, a setas e pelouros, a quentes regiões, a plagas frias, a golpes de Idolátras e de Mouros, a perigos incógnitos do mundo, a naufrágios, a peixes, ao profundo

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto X

Neste poema, o sujeito lírico lamenta o presente de cinzas em que a pátria está mergulhada (depois de ter vencido tanta “tormenta” e ter tido tanta “vonta-de” e exprime o desejo de ressurgimento impulsionado pela vontade de novos embates com o desconhecido, na perseguição da verdade que só é possível al-cançar seguindo a chama vital do sonho. Do mesmo modo, no final de Os Lusía-

das, o poeta, que cantou a vontade indomável dos guerreiros e nautas do passa-do, exprime a amargura de saber que, no presente, a pátria “está metida/No gos-to da cobiça e da rudeza/Duma austera, apagada e vil tristeza.”, por isso, apela a D. Sebastião, para que o rei impulsione o ressurgimento da luta, enfrentando “perigos incógnitos do mundo”.

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D. Sebastião

'Sperai! Cai no areal e na hora adversa

Que Deus concede aos seus

Para o intervalo em que esteja a alma imersa

Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura

Se com Deus me guardei?

É O que eu me sonhei que eterno dura,

É Esse que regressarei.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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D. Sebastião – sistematização Este poema, que abre a terceira parte de Mensagem, utilizando um dis-curso na primeira pessoa, inicia-se com um apelo do rei aos portugueses, a quem o monarca transmite a esperança de um futuro promissor. Para o rei, a “hora ad-versa” do presente não é mais do que o “intervalo” necessário para o inicio da realização de um grande sonho universal e eterno – “é o que eu me sonhei que eterno dura” – que ultrapassará a precariedade do momento em que o D. Sebas-tião histórico, aquele que desaparecer na batalha de Alcácer Quibir, caiu no areal. A derrota, em Alcácer Quibir, assim, apresentada como “um mal neces-sário” para se ultrapassar a dimensão material e efémera do império português – “o areal e a morte e a desventura” – e se começar a construir uma outra grandeza possuidora de uma dimensão espiritual e eterna, o Quinto Império, inspirado na figura do rei – “É esse que regressarei”. O rei assume-se como uma espécie de messias, um enviado de Deus – “Que Deus concede aos seus”; “Se com Deus me guardei?” –, um salvados que conduzirá o seu povo à glória eterna. O Quinto Império

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Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz

Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem

No tempo que em eras vem.

Ser descontente é ser homem.

Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro

Tempos do ser que sonhou,

A terra será teatro

Do dia claro, que no atro

Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,

Europa – os quatro se vão

Para onde vai toda idade.

Quem vem viver a verdade

Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa, in Mensagem

O Quinto Império – sistematização

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Neste poema, pessoa assume, de forma clara e explicita, o que se já vinha anunciando ao longo de Mensagem, o futuro redentor de Portugal está indissoci-avelmente ligado à construção de um império de características espirituais e eternas, o Quinto Império. As primeiras três estrofes constituem uma reflexão sobre a condição hu-mana. Partindo de afirmações provocatórias e controversas – “Triste de quem vive em casa/Contente com o seu lar” ; “Triste de quem é feliz!” –, pretende-se mostrar que a felicidade torna o Homem acomodado, transformando-o num ser sem sonhos, que apenas “Vive porque a vida dura” e que nada mais faz durante a sua existência do que esperar a morte – “Ter por vida a sepultura”. A conclusão deste momento reflexivo é a de que ser homem passa pelo descontentamento que leva à realização de grandes obras. Nas duas ultimas estrofes, o poeta desvenda a “chave do poema”: o desen-canto do presente (“erma noite”) será ponto de partida para uma nova era desig-nada como “dia claro”. Esta nova era distancia-se das glórias materiais – “Quem vem viver a verdade/Que morreu D. Sebastião?” – e apresenta-se como a conti-nuadora das matrizes espirituais que moldaram a identidade europeia ao longo dos séculos – Grécia (a origem da civilização Ocidental), Roma (a potência que expandiu os fundamentos greco-latinos), Cristandade (a dimensão espiritual e humanista europeia), Europa (influencia europeia no resto do mundo, operada após a renascença). Estes “quatro Tempos” tiveram o seu ciclo de vida, mas o Quinto Império, império da língua e cultura portuguesas, não só conduzirá Por-tugal a uma nova glória, como será eterna e universal. O poema constrói-se a partir de: • Oposições dominantes: o homem que vegeta/o homem que sonha; o homem

que se acomoda/o homem que ambiciona; • Expressividade do paradoxo “Triste de quem é feliz!” • A passagem do tempo e o descontentamento inerente à condição humana,

como molas impulsionadoras do nascimento dos quatro impérios de caráter temporal (Grécia, Roma, Cristandade, Europa);

• A certeza da vinda de um futuro promissor – “dia claro” – já pressentido “no atro/Da erma noite”;

• O Quinto Império, de caráter transcendente e espiritual, construído por uma nova geração de homens purificados, detentores da verdade – “Quem vem viver a verdade/Que morreu D. Sebastião?”

O Quinto Império – intertextualidade

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Relação do advento do Quinto Império com as profecias de Júpiter no Consílio dos Deuses:

24 Eternos moradores do luzente Estelífero Pólo, e claro Assento: Se do grande valor da forte gente De Luso não perdeis o pensamento, Deveis de ter sabido claramente, Como é dos fados grandes certo intento Que por ela se esqueçam os humanos De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I

Camões foi o épico que imortalizou o império português, ao vê-lo atingir o seu apogeu com os Descobrimentos. Pessoa é o cantor épico-lírico que canta o impero “à beira mágoa”, procurando despertar os espíritos para a necessidade do seu ressurgimento. Se nas duas primeiras partes da Mensagem é possível uma aproximação a Os Lusíadas, na terceira parte, Pessoa sente-se investido no cargo de anunciador do Quinto Império, que não precisa de ser material, mas civiliza-cional.

(Terceiro)

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'Screvo meu livro à beira mágoa.

Meu coração não tem que ter.

Tenho meus olhos quentes de água.

Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar

Meus dias vácuos enche e doura.

Mas quando quererás voltar?

Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo

De a quem morreu o falso Deus,

E a despertar do mal que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,

Sonho das eras português,

Tornar-me mais que o sopro incerto

De um grande anseio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando

Fazer minha esperança amor?

Da névoa e da saudade quando?

Quando, meu Sonho e meu Senhor?

Fernando Pessoa, in Mensagem

Terceiro – sistematização

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Este é o único poema de Mensagem que não apresenta titulo, sendo, por esse facto, considerado como aquele em que o discurso se identifica com o pró-prio Pessoa. O poema estrutura-se em torno do desencanto e da mágoa do poeta que sente os seus “dias vácuos”, o vazio que subjaz à ruína do império, e que anseia pela chegada de um messias, de um salvador, que possa restituir a Portugal a grandeza perdida – “Quando virás, Ó Encoberto,/Sonho das eras português”. O predomínio das interrogações revela essa dor do presente e a ânsia da chegada da “Nova Terra” e dos “Novos Céus”. Atende-se, ainda, na identificação realizada pelo sujeito poético entre o sonho e a entidade divina inspiradora – “Quando, meu Sonho e meu Senhor?” – que o torna uma das forças impulsiona-doras da vontade humana. Terceiro – intertextualidade

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145 No mais, Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria, não, que está metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza. (...)

155 Para servir-vos, braço às armas feito, Para cantar-vos, mente às Musas dada; Só me falece ser a vós aceito, De quem virtude deve ser prezada. Se me isto o Céu concede, e o vosso peito Digna empresa tomar de ser cantada, Como a pressaga mente vaticina Olhando a vossa inclinação divina.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto X

O final da Mensagem aproxima-se e o poeta exprime a sua tristeza e vazio pela pátria à “beira-mágoa”. Quer anunciar a vinda do futuro, “ser mais do que o sopro incerto/De um grande anseio que Deus fez”, mas tem já “os olhos quentes de água”. Como Camões no final de Os Lusíadas, quando desalentado escreve “Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho/Destemperada e a voz enrouqueci-da” e mais à frente, diz a D. Sebastião “Para servir-vos, braço às armas feito:/Para cantar-vos, mente às Musas dada”.

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Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

define com perfil e ser

este fulgor baço da terra

que é Portugal a entristecer –

brilho sem luz e sem arder,

como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.

Ninguém conhece que alma tem,

nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ânsia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

Valete, Fratres

Fernando Pessoa, in Mensagem

Nevoeiro – sistematização

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O poema final de Mensagem apresenta uma caracterização negativa de Portugal, país marcado pela falta de identidade, de entusiasmo, de objetivos e de valores morais. Portugal é um pais fragmentado, mergulhado na incerteza, vivendo à so-bra de um passado glorioso que morreu – “Como que o fogo-fáctuo encerra”. No entanto, o nevoeiro que envolve Portugal traz em si o gérman da mudança, indi-cia um outro tempo anunciado pela exclamação final – “É a Hora!” – e pela sauda-ção latina – “Valete fratres”. É o tempo do Quinto Império, que dará à língua e cultura portuguesas uma dimensão eterna e universal. O poema apresenta um tom melancólico: • Caracterizado pela negativa deste “Portugal a entristecer”; • Valor expressivo da personificação de Portugal; • Falta de identidade nacional sublinhada pelas construções negativas; • Estado de indefinição, incerteza, dispersão: ausência de totalidade – “nada é

inteiro”; • Simbologia do título; • A síntese que a apóstrofe final encerra; • O apelo “É a Hora!” como resposta às interrogações do poema “Screvo o meu

livro à beira-mágoa”. Nevoeiro – intertextualidade

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145 No mais, Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria, não, que está metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto X

Neste poema, como em Prece, o sujeito lírico lamenta o presente de inde-finição e crise em que a pátria está mergulhada e exorta à mudança que equivale ao erguer do sonho do combate com o desconhecido, na perseguição da verdade. Do mesmo modo, no final de Os Lusíadas, o poeta exprime a amargura de saber a pátria “metida/No gosto da cobiça e na rudeza/Duma austera, apagada e vil tris-teza”, para depois fazer um apelo a D. Sebastião, no sentido de impulsionar o res-surgimento da luta. Assim, o retrato de Portugal que Camões faz na sua obra aproxima-se do retrato feito em Nevoeiro – é o “Portugal a entristecer/Brilho sem luz e sem ar-der”, de Pessoa. A desilusão é, porém, maior: falta-lhe o grito de esperança que encontramos no poema pessoano.

Os símbolos

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As Ilhas Afortunadas

Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar?

É a voz de alguém que nos fala,

Mas que, se escutamos, cala,

Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,

Sem saber de ouvir ouvimos,

Que ela nos diz a esperança

A que, como uma criança

Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,

São terras sem ter lugar,

Onde o Rei mora esperando.

Mas, se vamos despertando,

Cala a voz, e há só o mar.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Símbolos

O Desejado

Onde quer que, entre sombras e dizeres,

Jazas, remoto, sentete sonhado,

E ergue-te do fundo de nãoseres

Para teu novo fado!

Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,

Mas já no auge da suprema prova,

A alma penitente do teu povo

À Eucaristia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,

Excalibur do Fim, em jeito tal

Que sua Luz ao mundo dividido

Revele o Santo Gral!

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Símbolos

O Encoberto

Que símbolo fecundo

Vem na aurora ansiosa?

Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino

Traz o dia já visto?

Na Cruz, que é o Destino,

A Rosa que é o Cristo.

Que símbolo final

Mostra o sol já desperto?

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

Fernando Pessoa, in Mensagem

Ao longo do poema, assiste-se a uma progressão ideológica e temporal na

construção das perguntas: símbolo fecundo � símbolo divino � símbolo final : três símbolos aurora ansiosa � dia já visto � sol já desperto : três momentos do dia Essa mesma progressão é igualmente verificável na construção das res-postas: Cruz morta do mundo � Cruz, que é o destino � Cruz morta e fatal : sacrifício Rosa/Vida � Rosa/Cristo � Rosa/Encoberto : vida

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Horizonte

Ó mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério,

Abria em flor o Longe, e o Sul-siderio

'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe, a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis

Da distancia imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esp'rança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Horizonte – sistematização

O horizonte é símbolo do indefinido, do longe, do mistério, do desconhe-cido, do mundo a descobrir, do objetivo a atingir.

Através da apóstrofe inicial, "Ó mar anterior a nós", o sujeito poético diri-ge-se ao mar desconhecido, ainda não descoberto/navegado.

Na 1ª estrofe encontramos uma oposição implícita. A oposição refere o mar anterior aos Descobrimentos portugueses ("medos", "noite", "cerração", "tormentas", "mistério" - substantivos que contêm a ideia de desconhecido, que remetem para a face oculta da realidade) e o mar posterior a esse feito ("coral e praias e arvoredos", "Desvendadas", "Abria", "´Splendia" - palavras que contêm a ideia de descoberta).

A expressão "naus da iniciação" (v. 6) é uma referência às naus portugue-sas que, impulsionadas pelos ventos do "sonho", da "esp'rança" e da "vontade", abriram novos caminhos e deram início a um novo tempo.

A segunda estrofe é essencialmente descritiva. Essa descrição é feita por aproximações sucessivas, de um plano mais afastado para planos mais próximos: a "Linha severa da longínqua costa" (o horizonte);"Quando a nau se aproxima, ergue-se a encosta / Em árvores"; "Mais perto", ouvem-se os "sons" e percebem-se as "cores"; "no desembarcar" veem-se "aves, flores".

O sujeito poético, na última estrofe, apresenta uma definição poética de sonho: O sonho é ver o invisível – “o sonho é ver as formas invisíveis” –, isto é, ver para lá do que os nossos olhos alcançam (ver longe); o sonho é procurar al-cançar o que está mais além (é esforçar-se por chegar mais longe); o sonho é al-cançar/aceder à Verdade, sendo que esta conquista constitui o prémio de quem por ela se esforça. De salientar, aqui, o uso do presente do indicativo - "é" - que confere, a estes versos, um caráter intemporal e programático.

Nos versos 16 e 17 é reforçada a passagem do abstrato ao concreto. Essa passagem é reforçada pela acumulação, no verso 17, de nomes concretos, prece-didos de artigos definidos: "A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte", que têm uma simbologia muito peculiar.

Este poema apresenta-nos o sonho como motor da ação dos Descobri-mentos. É o sonho que, movido pela esperança e pela vontade, desperta no ho-mem o desejo de conhecer, de procurar a Verdade – etapa última de qualquer demanda.

O título "Horizonte" evoca um espaço longínquo que se procura alcançar funcionando, assim, como uma espécie de metáfora da procura, como um apelo da distância, do "Longe", à eterna procura dos mundos por descobrir. Assim, este é um dos poemas que demonstram um Pessoa nacionalista místico, que respira um patriotismo de exaltação e de incitamento.

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Horizonte – intertextualidade

51 Cortando vão as naus a larga via

Do mar ingente para a pátria amada, (…) Quando juntas, com súbita alegria, Houveram vista da ilha namorada, (…)

52 De longe a Ilha viram fresca e bela, Que Vênus pelas ondas lha levava (Bem como o vento leva branca vela) Para onde a forte armada se enxergava; (…)

64 Nesta frescura tal desembarcavam Já das naus os segundos Argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas Deusas, como incautas. (…)

83 Ó que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves, que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! (…)

91 Não eram senão prêmios que reparte Por feitos imortais e soberanos O mundo com os varões, que esforço e arte Divinos os fizeram, sendo humanos. Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, Ceres, Palas e Juno, com Diana, Todos foram de fraca carne humana.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX

O Canto IX dos Lusíadas, conta do regresso dos Portuguesas da Índia, on-de pelo caminho encontram a «Ilha dos Amores». A Ilha aparece como uma re-compensa, mas também como símbolo de o povo Português de ter tornado, pelos seus feitos, igual aos deuses que agora os homenageiam de modo tão inesperado. A comparação possível entre este Canto IX e o poema “Horizonte” é a oposição quase total entre o que Camões considera a “Recompensa” e Pessoa considera a “Verdade”. Camões idealiza uma recompensa para os sentidos, um festim materi-al, enquanto Pessoa quer algo mais alto e frio – a verdade do conhecimento ocul-to.

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Os Tempos Tormenta

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?

Nós, Portugal, o poder ser.

Que inquietação do fundo nos soergue?

O desejar poder querer.

Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...

Mas súbito, onde o vento ruge,

O relâmpago, farol de Deus, um austo

Brilha, e o mar 'scuro 'struge.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Tempos

Antemanhã

O mostrengo que está no fim do mar

Veio das trevas a procurar

A madrugada do novo dia,

Do novo dia sem acabar;

E disse, «Quem é que dorme a lembrar

Que desvendou o Segundo Mundo,

Nem o Terceiro quer desvendar?»

E o som na treva de ele rodar

Faz mau o sono, triste o sonhar.

Rodou e foi-se o mostrengo servo

Que seu senhor veio aqui buscar,

Que veio aqui seu senhor chamar –

Chamar Aquele que está dormindo

E foi outrora Senhor do Mar.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Tempos

Noite

A nau de um d’eles tinha-se perdido

No mar indefinido.

O segundo pediu licença ao Rei

De, na fé e na lei

Da descoberta ir em procura

Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo

Volveu do fim profundo

Do mar ignoto à pátria por quem dera

O enigma que fizera.

Então o terceiro a El-Rei rogou

Licença de os buscar, e El-Rei negou.

Como a um cativo, o ouvem a passar

Os servos do solar.

E, quando o veem, veem a figura

Da febre e da amargura,

Com fixos olhos rasos de ânsia

Fitando a proibida azul distancia.

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome

– O Poder e o Renome –

Ambos se foram pelo mar da idade

À tua eternidade;

E com eles de nós se foi

O que faz a alma poder ser de herói.

Queremos ir buscá-los, d’esta vil

Nossa prisão servil:

É a busca de quem somos, na distancia

De nós; e, em febre de ânsia,

A Deus as mãos alçamos.

Mas Deus não dá licença que partamos.

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A Última nau

Levando a bordo El-Rei Dom Sebastião,

E erguendo, como um nome, alto, o pendão

Do Império,

Foi-se a última nau, ao sol aziago

Erma, e entre choros de ânsia e de presago

Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta

Aportou? Volverá da sorte incerta

Que teve?

Deus guarda o corpo e a forma do futuro,

Mas Sua luz projeta-o, sonho escuro

E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,

Mais a minh'alma atlântica se exalta

E entorna,

E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,

Vejo entre a cerração teu vulto baço

Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,

Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora

Mistério.

Surges ao sol em mim, e a névoa finda:

A mesma, e trazes o pendão ainda

Do Império.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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A Última Nau – sistematização

“A última nau” aparece como uma espécie de lead-in, de introdução à Ter-ceira Parte de Mensagem, que ainda não se iniciou. É este um período intermédio de poesia, palavras de anoitecer, saindo da luz (a vida) do que é conhecido em que fomos ainda guiados pelos sentidos, para entrarmos na escuridão completa da noite (a morte), onde apenas os símbolos nos vão guiar.

A certeza de Pessoa acha aqui nobre conclusão. “Não sei a hora, mas sei que há a hora”. De maneira perentória o poeta não deixa dúvidas ao leitor – o re-gresso de D. Sebastião será uma realidade. Mas num futuro incerto.

A terceira estrofe é verdadeiramente confessional esta passagem. Aqui derrama Pessoa a sua frustração com a maneira como a sociedade de Portugal está estagnada e em decadência social, económica e cultural – “Quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta / E entorna”.

De novo Pessoa pega num negativo (morte) para que surja um positivo (vida).

Na primeira estrofe ele encarna os que ficaram na praia a ver a expedição de D. Sebastião partir. “A última nau”, que s~o todas as naus e nenhuma, “levan-do a bordo El-Rei D. Sebastião (…) Erguendo (…) alto o pendão / Do Império, / Foi-se / (…) entre choros de ânsia e de presságio”. A cena surge-nos aos olhos da alma, que se enchem de lágrimas, como aqueles que viam partir o Rei e com ele o Império Material. Novamente a dor, a própria morte são enaltecidas como ne-cessárias para o renascimento, para a revelação do “Mistério” que ficou, quando o Rei se foi com a última nau.

“A que ilha indescoberta / Aportou? Voltará da sorte incerta / Que teve?” – Pessoa invoca aqui, como o fez por exemplo no seu drama estático O Marinhei-ro, a mesma ilha misteriosa, na qual é possível aquilo que agora é impossível. É a mesma ilha longínqua que Jacinto do Prado Coelho identifica na Mensagem, di-zendo-nos – lembrando Castro Meireles – que Pessoa desenha também “a histó-ria trágico-marítima de si próprio”.

O regresso de D. Sebastião – que Pessoa chega a considerar realmente possível pela transmigração das almas – parece, de certa maneira, irrelevante porque “Deus guarda o corpo e a forma do futuro”. No entanto, se o Destino está certo, ele está guardado em mistério – “Sua luz projeta-o, sonho escuro / E bre-ve” nos homens, que têm de o revelar. Nem todos o vão conseguir fazer.

Ele vê-se a si mesmo claramente como alguém capaz de operar – ou pelo menos ter um grande papel – nesta regeneração nacional. Ele diz: “E em mim (…) Vejo (…) teu vulto baço / Que torna”. É ele – Fernando Pessoa – que vê, como vê um profeta, um Bandarra, um Vieira. Vê claramente o “vulto baço" como se fosse certo o regresso do rei, embora fosse desfocado “o (seu) corpo e a (sua) forma”.

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Como tem ele tanta certeza? É fácil esconder a certeza em ambiguidade:

“Demore-a Deus, chame-lhe a alma (…) / Mistério”. “Mistério” é afinal uma pala-vra que pode tomar diferentes significados. A certeza é uma certeza interior, fir-mada numa convicção de “iniciado”.

“Surges ao sol em mim e a névoa finda” – eis um bom exemplo do que acabámos de dizer. O sol (conhecimento) surge dentro dele (“em mim”) e a “né-voa finda” (a ignorância). Simples e linear, embora esotérica, a linguagem de Pessoa é clara. A nau que ele vê, agora já totalmente simbólica é “a mesma”, que traz “o pendão ainda / Do Império”. Ou seja, o passado regressa igual, mas já mi-to, não para ser o mesmo, mas para alimentar uma nova realidade.

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Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.

Eu, Diogo Cão, navegador, deixei

Este padrão ao pé do areal moreno

E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.

Este padrão signala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita:

O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me ha na alma

E faz a febre em mim de navegar

Sé encontrará de Deus na eterna calma

O porto sempre por achar.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Castelos

Viriato

Se a alma que sente e faz conhece

Só porque lembra o que esqueceu,

Vivemos, raça, porque houvesse

Memória em nós do instinto teu.

Nação porque reincarnaste,

Povo porque ressuscitou

Ou tu, ou o de que eras a haste —

Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquela fria

Luz que precede a madrugada,

E é já o ir a haver o dia

Na antemanhã, confuso nada.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Viriato – intertextualidade

22 Desta o pastor nasceu, que no seu nome Se vê que de homem forte os feitos teve; Cuja fama ninguém virá que dome, Pois a grande de Roma não se atreve. Esta, o velho que os filhos próprios come Por decreto do Céu, ligeiro e leve, Veio a fazer no mundo tanta parte, Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte:

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto III

6 Assim o Gentio diz. Responde o Gama: — "Este que vês, pastor já foi de gado; Viriato sabemos que se chama, Destro na lança mais que no cajado; Injuriada tem de Roma a f ama, Vencedor invencível afamado; Não tem com ele, não, nem ter puderam O primor que com Pirro já tiveram.

7 Com força, não; com manha vergonhosa, A vida lhe tiraram que os espanta: Que o grande aperto, em gente ainda que honrosa, As vezes leis magnânimas quebranta. Outro está aqui que, contra a pátria irosa, Degradado, conosco se alevanta: Escolheu bem com quem se alevantasse, Para que eternamente se ilustrasse.

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto VIII

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As Quinas

D. Duarte, Rei de Portugal

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.

A regra de ser Rei almou meu ser,

em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.

Cumpri contra o Destino o meu dever.

Inutilmente? Não, porque o cumpri.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os Colombos

Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão achar

O que, no nosso encontrar,

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca

É a Magia que evoca

O Longe e faz dele história.

E por isso a sua glória

É justa auréola dada

Por uma luz emprestada.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Ocidente

Com duas mãos- o Ato e o Destino-

Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o facho trémulo e divino

E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia

A mão que ao Occidente o véu rasgou,

Foi alma a Sciencia e corpo a Ousadia

Da mão que desvendou.

Fosse Acaso ou Vontade, ou Temporal

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e o corpo Portugal

Da mão que o conduziu.

Fernando Pessoa, in Mensagem

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Os tempos

Calma

Que coisa é que as ondas contam

E se não pode encontrar

Por mais naus que haja no mar?

O que é que as ondas encontram

E nunca se vê surgindo?

Este som de o mar praiar

Onde é que está existindo?

Ilha próxima e remota,

Que nos ouvidos persiste,

Para a vista não existe.

Que nau, que armada, que frota

Pode encontrar o caminho

À praia onde o mar insiste,

Se à vista o mar é sozinho?

Haverá rasgões no espaço

Que deem para outro lado,

E que, um deles encontrado,

Aqui, onde há só sargaço,

Surja uma ilha velada,

O país afortunado

Que guarda o Rei desterrado

Em sua vida encantada?

Fernando Pessoa, in Mensagem