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1 OS CARVOEIROS: SIDERURGIA DE FERRO-GUSA E A TRANSFORMAÇÃO DO EXTRATIVISMO DE COCO BABACU NO SUDESTE DO PARÁ 1 Nirson Medeiros da Silva Neto 2 RESUMO O presente trabalho retrata os efeitos materiais e simbólicos, na vida e no trabalho dos extrativistas de coco babaçu fixados no sudeste do estado do Pará, da instalação de indústrias produtoras de ferro-gusa no corredor da Estrada de Ferro Carajás que, desde meados da década de 1990, passaram a usar o carvão de coco babaçu como redutor de minério de ferro, promovendo assim um fenômeno de mercantilização de uma mercadoria que outrora era utilizada mormente para o consumo e reprodução familiar, sendo comercializada episodicamente e em pequena escala pelos trabalhadores pesquisados. A mercantilização do carvão de babaçu promoveu uma notável desorganização e reorganização do modo de produção tradicional de uma população eminentemente camponesa, em sua maioria composta por nordestinos migrantes que acompanharam as frentes de expansão agrícola que se deslocaram à região amazônica, trazendo consigo formas muito específicas de organização social da produção, fundadas em regime de economia doméstica ou familiar agroextrativista. Desta forma, acabou por suceder a conversão de trabalhadores que estabeleciam relações esporádicas com o mercado e que estavam mormente voltados para a reprodução familiar em trabalhadores que começaram a produzir para atender demandas mercadológicas, especialmente as de carvão vegetal pela siderurgia. Isto implicou no advento de novos modos de produção extrativista de babaçu, que redundaram em outras forças produtivas e relações de produção. Diante deste evento, a pesquisa cujos resultados seguem abaixo buscou compreender as diferentes formas como o acontecimento da mercantilização do carvão de babaçu foi interpretado e recepcionado pelos extrativistas de babaçu, fenômenos que tiveram a mediação de estruturas sociais de longa duração que reagiram ao evento de colonização 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutor em Ciências Sociais, área de Antropologia, e mestre em Direito, área de Direitos Humanos, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Metodologia da Educação Superior pela Faculdade de Tecnologia da Amazônia (FAZ). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

OS CARVOEIROS: SIDERURGIA DE FERRO-GUSA E A … · adotando um sistema empresarial de gestão e outras funcionando nos moldes do velho e perverso sistema de empreita, que tanto imobiliza

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OS CARVOEIROS: SIDERURGIA DE FERRO-GUSA E A TRANSFORMAÇÃO DO

EXTRATIVISMO DE COCO BABACU NO SUDESTE DO PARÁ1

Nirson Medeiros da Silva Neto2

RESUMO

O presente trabalho retrata os efeitos materiais e simbólicos, na vida e no trabalho dos

extrativistas de coco babaçu fixados no sudeste do estado do Pará, da instalação de indústrias

produtoras de ferro-gusa no corredor da Estrada de Ferro Carajás que, desde meados da

década de 1990, passaram a usar o carvão de coco babaçu como redutor de minério de ferro,

promovendo assim um fenômeno de mercantilização de uma mercadoria que outrora era

utilizada mormente para o consumo e reprodução familiar, sendo comercializada

episodicamente e em pequena escala pelos trabalhadores pesquisados. A mercantilização do

carvão de babaçu promoveu uma notável desorganização e reorganização do modo de

produção tradicional de uma população eminentemente camponesa, em sua maioria composta

por nordestinos migrantes que acompanharam as frentes de expansão agrícola que se

deslocaram à região amazônica, trazendo consigo formas muito específicas de organização

social da produção, fundadas em regime de economia doméstica ou familiar agroextrativista.

Desta forma, acabou por suceder a conversão de trabalhadores que estabeleciam relações

esporádicas com o mercado e que estavam mormente voltados para a reprodução familiar em

trabalhadores que começaram a produzir para atender demandas mercadológicas,

especialmente as de carvão vegetal pela siderurgia. Isto implicou no advento de novos modos

de produção extrativista de babaçu, que redundaram em outras forças produtivas e relações de

produção. Diante deste evento, a pesquisa cujos resultados seguem abaixo buscou

compreender as diferentes formas como o acontecimento da mercantilização do carvão de

babaçu foi interpretado e recepcionado pelos extrativistas de babaçu, fenômenos que tiveram

a mediação de estruturas sociais de longa duração que reagiram ao evento de colonização

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de

2014, Natal/RN. 2 Doutor em Ciências Sociais, área de Antropologia, e mestre em Direito, área de Direitos Humanos, pela

Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Metodologia da Educação Superior pela Faculdade de

Tecnologia da Amazônia (FAZ). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).

Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

2

capitalista. A pesquisa, de feição etnográfica, foi realizada entre os anos de 2007 e 2011 junto

a carvoeiros residentes em vários povoados distribuídos em municípios do sudeste do estado

do Pará. No curso da pesquisa de campo, constatou-se que a mercantilização do carvão de

coco babaçu favoreceu a constituição de uma cadeia de terceirização de serviços realizados

muitos deles sob a forma de trabalho informal e somente alguns raros sob a forma

empresarial, no mais das vezes miscigenada com relações de produção domésticas e patrono-

clientelistas, reproduzindo e atualizando estruturas produtivas de longa duração vigentes na

zona do babaçu. Assim, formou-se, objetivamente, uma enorme rede de produtores e

fornecedores de carvão, uns vinculados a carvoarias, outros autônomos, em relações de

produção bastante diversificadas com patrões e atravessadores.

PALAVRAS-CHAVE: EXTRATIVISMO; CAMPESINATO; INDUSTRIALIZAÇÃO.

INTRODUÇÃO

O presente artigo ensaia uma compreensão dos efeitos materiais e simbólicos, na vida

e no trabalho dos extrativistas de babaçu fixados no sudeste paraense, da instalação de

indústrias produtoras de ferro-gusa no corredor da Estrada de Ferro Carajás, notadamente no

município de Marabá, estado do Pará, que, desde meados de 1990, passaram a usar o carvão

de coco babaçu como redutor de minério de ferro, promovendo assim um fenômeno de

mercantilização (APPADURAI, 2008) de uma mercadoria que outrora era utilizada mormente

para o consumo e reprodução familiar, sendo comercializada episodicamente e em pequena

escala pelos trabalhadores pesquisados. A mercantilização do carvão de babaçu promoveu

uma notável desorganização e reorganização do modo de produção tradicional de uma

população eminentemente camponesa, em sua maioria composta por nordestinos migrantes

que acompanharam as frentes de expansão agrícola que se deslocaram à fronteira amazônica,

trazendo consigo formas muito específicas de organização social da produção, fundadas em

regime de economia doméstica ou familiar agroextrativista. Desta forma, acabou por suceder

a conversão de trabalhadores que estabeleciam relações esporádicas com o mercado, e que

estavam mormente voltados para a reprodução familiar, em trabalhadores que começaram a

produzir para atender demandas mercadológicas, especialmente as de carvão vegetal pela

siderurgia. Isto, porém, como sói acontecer nos casos de colonização capitalista, sobretudo

3

quando se trata de processos de industrialização de áreas predominantemente rurais, implicou

no advento de novos modos de produção extrativista de babaçu, que redundaram em outras

forças produtivas e relações de produção (MARX, 2006). Estes novéis sistemas produtivos se

sobrepuseram ao modo de produção tradicional dos extrativistas de coco babaçu e restaram

colocados em posições de hierarquia superior em termos de importância econômica, gerando

processos de dominação e submissão dos camponeses pesquisados a necessidades e a lógicas,

econômicas e culturais, notadamente diferentes das experimentadas tradicionalmente

(GODELIER, 1973).

O evento da mercantilização do carvão de coco babaçu, porém, não significou uma

simples substituição de formas de trabalho mais antigas e estimadas por outras mais

modernas, baseadas em uma economia de mercado; ao contrário, as transformações

promovidas no extrativismo de babaçu foram mediadas pelas experiências e pelas práticas dos

próprios trabalhadores afetados (BOURDIEU, 2006), que até então experimentavam

contextos econômicos e socioculturais bastante específicos, relativamente autônomos em

relação ao sistema capitalista industrial, nos quais vigiam estruturas de longa duração que

davam ensejo a relações de produção de feitio doméstico e patrono-clientelista, as quais

restaram incorporadas aos novos modos de produção. O acontecimento histórico em questão

ocasionou, no curso de alguns poucos anos, cerca de meia década, a miscigenação de dois

sistemas simbólicos, o do extrativismo tradicional de babaçu e o do capitalismo industrial,

fazendo com que muitos trabalhadores passassem a adotar comportamentos econômicos

ambíguos, especialmente no que toca ao modo de produção extrativista de babaçu, mesclando

forças produtivas e relações de produção inerentes a cada um destes sistemas. Partindo da

observação deste fenômeno, a pesquisa cujos resultados estou a apresentar buscou

compreender as diferentes formas como o acontecimento da mercantilização do carvão de

babaçu foi interpretado e recepcionado pelos extrativistas de babaçu, fenômenos que tiveram

a mediação de estruturas sociais de longa duração que reagiram ao evento da colonização

capitalista seja assimilando quase integralmente as novas forças produtivas e relações de

produção de feição capitalista, seja transfigurando elementos do modo de produção

precedente que penetraram, nem sempre reconhecidamente, nos sistemas produtivos que se

sobrepuseram. Este esforço compreensivo remete, portanto, inelutavelmente, às discussões

teóricas sobre as complexas interações entre eventos de colonização, inclusive de colonização

interna, e estruturas socioculturais de grupos colonizados. Não é por outra razão que o

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trabalho etnológico de Bourdieu (2006) servira de inspiração para as linhas que seguem, dado

que tal autor muito se imiscuiu nestes amplos debates, servindo de esquema teórico mais geral

para grande parte das interpretações que compõem o presente artigo.

A pesquisa que deu ensejo aos resultados ora expostos apresentou etapas de revisão

bibliográfica, de análise de documentos tocantes à história econômica da região amazônica e

de pesquisa de campo de feição etnográfica. A etnografia foi realizada em três momentos

temporalmente distintos, cada qual de aproximadamente trinta dias, que consistiram em

incursões junto aos extrativistas de coco babaçu residentes em vários povoados distribuídos

em quatro municípios do estado do Pará, quais sejam: Brejo Grande, São Domingos do

Araguaia, São João do Araguaia e Palestina. O primeiro momento da etapa etnográfica, de

caráter mais exploratório, sucedeu entre os meses de julho e agosto de 2007, período de auge

da economia carvoeira, mas no qual o principal objeto de investigação ainda era o processo de

mobilização coletiva das quebradeiras de coco babaçu, que incluiu suas lutas contra a

produção de carvão de coco inteiro, o que não obstou fossem levantados dados significativos

para as etapas posteriores, que realizaram-se nos anos de 2010 e 2011, sempre entre os meses

de novembro e dezembro. Em todas as etapas do trabalho de campo adotei técnicas de

pesquisa social homólogas, a saber, conversas e entrevistas individuais e coletivas realizadas

com trabalhadores extrativistas de babaçu, com representantes do MIQCB (Movimento

Interestatual das Quebradeiras de Coco Babaçu) e de diversas associações locais de

quebradeiras de coco babaçu. A maioria das entrevistas, sempre acompanhadas de

observações diretas, foram semiestruturadas e fazendo uso de gravador, embora, nas primeiras

abordagens dos entrevistados, tenha sido comum a realização de entrevistas não-estruturadas,

mediante diálogos espontâneos não registrados. Houve casos, sobretudo nos diálogos com

carvoeiros, em que não foi autorizada a gravação das entrevistas, dado o clima de reprovação

social que circunda a atividade do carvoejamento de babaçu, sendo respeitado o direito dos

trabalhadores de não terem registrados seus depoimentos, nem mencionados seus nomes,

senão apenas anotados em diário de campo.

* * *

Embora o carvão de coco babaçu já fosse um insumo visado desde as discussões em

torno do Plano-diretor do Corredor da Estrada de Ferro Carajás, cuja origem data ainda da

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década de 1970, na práxis histórica sua utilização industrial remonta a meados de 1990 com a

busca pelas siderúrgicas instaladas em Marabá (PA) e Açailândia (MA) por alternativas

“ecologicamente mais prudentes” de produção de carvão vegetal, entre as quais foram

levantadas, por ordem de importância para as indústrias de ferro-gusa, o carvão manufaturado

a partir da madeira oriunda de reflorestamento e de manejo florestal e, em último lugar, o

carvão de coco babaçu, este, no princípio, exercendo mais um papel retórico do que

propriamente sendo um insumo usado de fato pela siderurgia, quadro que se reverteu

posteriormente. O cenário quanto ao carvão de babaçu começou a mudar quando projetos-

piloto de carvoejamento dos coquilhos passaram a ser concretizados, a exemplo da pioneira

central de carbonização ecológica implantada pela COSIPAR (Companhia Siderúrgica do

Pará) no município de São Domingos do Araguaia, em 1994, que, segundo noticia Monteiro

(1998), fora a primeira entre incontáveis outras que uma década mais tarde se instalariam nas

terras do Araguaia-Tocantins, sobretudo em seu lado paraense, onde o modelo das centrais

predomina até hoje, sendo encontradiças inúmeras delas nas áreas em que há vasta incidência

de palmeiras de babaçu, principalmente nas cidades que margeiam a Rodovia Transamazônica

entre os municípios de Palestina e de Marabá. Tal fato possui uma explicação que me parece

bastante evidente. As centrais de carbonização ecológica nada mais são do que carvoarias

estruturadas em moldes muito assemelhados às carvoarias que beneficiam a madeira (mais

antigas na região, embora também relacionadas, em sua origem, às atividades da siderurgia),

havendo algumas diferenças no tocante à tecnologia utilizada para o carvoejamento – no caso,

uma adaptação das forças produtivas à matéria-prima carbonizada, o coco babaçu –, embora

sejam menores as distinções no relativo às relações de produção, que reproduzem o sistema de

empreita como forma predominante de organização social da produção, ainda que algumas

carvoarias adotem uma organização empresarial. Contudo, estas não são as únicas

formatações existentes na região, pois existe ainda uma vasta rede de produtores autônomos,

que trabalham geralmente em regime de produção familiar e partilham as atividades na

agricultura e na produção de carvão, assim como comercializam sua produção intermediados

por atravessadores, muitos dentre os quais também são produtores. Estes diferentes modos de

produção, se comparados, apresentam, por certo, algumas homologias e inter-relações, mas

ainda assim há afastamentos que os distinguem entre si, levando-nos a concluir que existem

diversificadas formas de organização da produção carvoeira de coco babaçu na fronteira

amazônica.

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O modelo das centrais de carbonização, por certo o mais evidente, é notavelmente um

modo de produção exógeno em relação ao extrativismo tradicional, tendo sido gestado não

pelos trabalhadores, senão pelas próprias siderúrgicas, inspiradas na forma de organização da

produção das carvoarias que produzem carvão de madeira oriunda da mata nativa, algumas

adotando um sistema empresarial de gestão e outras funcionando nos moldes do velho e

perverso sistema de empreita, que tanto imobiliza inúmeros camponeses na fronteira

amazônica, além de ser um sistema que favorece a reprodução do trabalho assemelhado ao

escravo. Muito embora, inicialmente, tenham sido instaladas e administradas pelas próprias

siderúrgicas, a tendência de terceirizar os serviços de produção de carvão vegetal, a fim de se

eximirem da responsabilidade de condução deste arriscado negócio, sempre ameaçado por

eventuais represálias de órgãos fiscalizadores (ambientais e trabalhistas), fez com que as

indústrias guseiras gradativamente fossem transferindo as centrais para a administração de

terceiros, sejam empresários sejam fazendeiros e arrendatários ou mesmo camponeses, que

constituíram pequenos e médios empreendimentos – alguns legalizados, outros funcionando à

margem da legalidade ou irregularmente – para conduzir o negócio, muitos sob assessoria das

indústrias interessadas na compra do carvão. Homologamente ao que fizeram no caso do

carvoejamento da madeira, embora em menor escala, as siderúrgicas adotaram um conjunto

de estratégias a fim de formar um mercado de carvão de babaçu no estado do Pará, que

incluíam desde (1) a transmissão da propriedade das centrais a produtores, (2) a transferência

da tecnologia apropriada à produção de carvão adequado ao consumo industrial – na verdade,

uma tecnologia bastante rústica, consistente na utilização de tambores metálicos tampados

com barro, dentro dos quais realiza-se a carbonização –, passando pelo (3) empréstimo de

capital necessário ao início da atividade carvoeira – geralmente pago em carvão, através de

descontos quando da entrega da produção às indústrias –, até (4) o fornecimento de caminhões

e tratores voltados ao transporte do produto, tanto de dentro da mata para os locais de

recolhimento quanto dos povoamentos rurais até as siderúrgicas –, restando aos produtores a

obrigação de pagar a posteriori pelos meios de transporte recebidos, também mediante

produção.

A tecnologia utilizada pelas siderúrgicas na constituição das centrais de carbonização

foi, originalmente, baseada na construção de fornos especialmente projetados para o

carvoejamento do coco babaçu, feitos de tijolos e barro que, no entanto, acabaram por ser

usados mormente na carbonização de madeira oriunda de resíduos de serrarias localizadas no

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entorno das centrais, o efetivo carvoejamento do babaçu sendo realizado apenas nas ocasiões

em que haviam inspeções empreendidas pelo IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

e Recursos Naturais Renováveis), conforme constatação de Monteiro (1998), o que reforçou

as impressões deste pesquisador a respeito do aproveitamento residual do babaçu na

siderurgia. Mas tal quadro obteve sensíveis transformações quando, em meados da primeira

década do século XXI, as pressões da opinião pública e dos órgãos fiscalizadores sobre as

siderúrgicas aumentaram e outros padrões tecnológicos foram adotados para o carvoejamento,

que passou a ser realizado, primeiramente, em grandes fornos metálicos que, segundo um dos

carvoeiros que tive oportunidade de entrevistar, comportavam, cada um, cerca de dois metros

cúbicos de coco babaçu e que, mais adiante, foram substituídos por tambores metálicos. Estes

tambores acabaram se tornando a tecnologia vastamente difundida nos variados contextos de

carbonização de babaçu existentes na região, sejam empresariais, baseados no sistema de

empreita ou domésticos. No tocante à qualidade da produção e produtividade do trabalho

carvoejeiro, o uso dos tambores metálicos representou vantagens significativas em relação à

tradicional utilização de caieiras, cujo resultado produtivo, além de inadequado ao

aproveitamento industrial, é alcançado de forma mais morosa e laboriosa, tendendo a

demandar maior dispêndio de tempo e esforço de trabalho, o que torna o padrão tecnológico

de que se valem tradicionalmente os extrativistas de babaçu totalmente impróprio à produção

de carvão de babaçu em larga escala, destinada à siderurgia. Ciente disto, as siderúrgicas

fomentaram a difusão da tecnologia baseada em tambores que, embora sobremaneira simples,

atende razoavelmente aos padrões de qualidade exigidos para a produção de ferro-gusa,

ademais de ser barata e, por seguimento, acessível até mesmo pelos pequenos produtores mais

pobres que trabalham em regime de economia familiar ou doméstica, que é o caso da

esmagadora maioria dos extrativistas que se dedicam à produção de carvão de coco babaçu.

* * *

O modo como este padrão tecnológico foi e ainda vem sendo difundido, porém,

apresenta singularidades de acordo com as relações de produção existentes em cada contexto

social. No caso das carvoarias paraenses, aconteceu de as baterias de fornos do tipo tambor

serem fornecidas, juntamente com a sacaria necessária ao armazenamento da produção e, em

certos casos, algum capital para o começo da atividade carvoeira e até meios de transporte

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(caminhão e/ou trator), pelas indústrias guseiras àqueles produtores que se candidataram ao

carvoejamento do coco babaçu ou que foram escolhidos pelas siderúrgicas por sua disposição

e habilitação ao trabalho carvoejeiro. Entre estes candidatos, ou escolhidos, esteve, por

exemplo, F.3, carvoeiro da Vila São José, município de São Domingos do Araguaia, estado do

Pará. Este trabalhador nasceu na cidade maranhense de Codó e migrou, acompanhando o pai,

deste município para o de Pedreiras e, posteriormente, ao de Esperantinópolis, ambos

localizados na região do Médio Mearim, estado do Maranhão. Em 1980, já com 18 anos,

decidiu aventurar-se nos garimpos da fronteira amazônica, quando então empreendeu

deslocamento para o sudeste paraense, exercendo por alguns anos o ofício de garimpeiro, até

retornar ao exercício de ofícios tipicamente rurais, fixando-se em São Domingos do Araguaia.

Referido trabalhador, em 2006, recebeu de uma siderúrgica toda a assistência material

necessária ao início de um pequeno empreendimento carvoeiro com característica

empresarial, que assimilou padrões domésticos ou familiares de organização social da

produção. F., como tantos outros trabalhadores, depois de experimentar diversos ofícios e

empregos na área urbana do município em que residia, dedicava-se exclusivamente a

trabalhos rurais quando foi contratado informalmente4

pela siderúrgica Terra Norte,

estabelecida no parque industrial de Marabá, a fim de trabalhar em uma recém implantada

central de carbonização ecológica da empresa, localizada nas proximidades de mencionada

Vila. Esta central, qual a maioria das demais, apresentava um galpão, destinado ao

armazenamento da produção, e um alojamento para trabalhadores, utilizado como local de

repouso e alimentação dos carvoeiros que, algumas vezes, acabava convertido praticamente,

embora não oficialmente, em lugar de moradia dos trabalhadores. Além disso, à época, o

estabelecimento ainda possuía 12 fornos metálicos do tipo que comportava dois metros

cúbicos de cocos babaçu. A função exercida pelo trabalhador na divisão do trabalho consistia

estritamente em agenciar a compra do babaçu, que era vendido por produtores rurais

autônomos incumbidos estritamente da coleta e venda dos frutos à central da Terra Norte, os

localmente chamados catadores. Neste momento, o preço do babaçu era avaliado por metro

cúbico, unidade de valor que, contudo, foi posteriormente modificada para sacos de coco.

3 Os nomes dos trabalhadores entrevistados serão aqui, todos, omitidos a fim de preservá-los contra eventuais

represálias em decorrência dos depoimentos prestados. 4 Isto é, sem a devida assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).

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De acordo com F., alguns meses após sua contratação, a siderúrgica decidira terceirizar

a central e lhe transferir a propriedade do estabelecimento mediante a assinatura de um

contrato, válido por três anos e seis meses, em que o carvoeiro, além de receber a carvoaria,

fez jus a 1500 sacos e a R$-1.000,00 destinados à primeira compra de cocos para serem

carbonizados, comprometendo-se, em contrapartida, a produzir carvão de coco babaçu para a

empresa e pagar em produção o valor da carvoaria, dos sacos e do capital emprestado,

assumindo assim todos os riscos e ônus do empreendimento, dos quais a indústria se eximira

absolutamente com a terceirização da produção carvoeira. Certo tempo depois, já em 2007, o

trabalhador, agora convertido em pequeno empresário do setor carvoejeiro, percebendo que a

atividade não demonstrara ser lucrativa em razão dos valores retidos na indústria e dos custos

de transporte dos locais de coleta dos coquilhos ao de produção do carvão e deste até a

siderúrgica, contatou representantes da guseira a fim de solver o problema da rentabilidade do

negócio, recebendo como solução um caminhão cujo objetivo era minorar as despesas com o

deslocamento dos frutos e do carvão, meio de transporte este que também foi pago através de

produção carvoeira, o que, de fato, tornou a atividade empresarial lucrativa, mediante a qual

passou a auferir uma renda mensal consideravelmente superior à proporcionada pelo medium

dos trabalhos rurais que antes realizava. Digo que a atividade do carvoeiro apresentara-se

como empresarial, haja vista que, conforme seu relato, ele precisou constituir formalmente

uma pequena empresa de fornecimento de carvão vegetal com três empregados com carteira

de trabalho assinada, que recebiam os devidos equipamentos de segurança, como máscaras,

luvas, botas, remédios e quites de primeiros socorros, em respeito à legislação trabalhista

vigente, o que era motivado pela possibilidade de uma eventual fiscalização da Delegacia

Regional do Trabalho. Mas o empreendimento do carvoeiro apresentara-se como empresarial

apenas parcialmente, posto que também admitia o aproveitamento da força de trabalho

familiar, quer dizer, de F., sua esposa e filho ainda adolescente, fazendo do empreendimento

uma atividade, ao menos em parte, doméstica, como costuma ser o trabalho agroextrativista

na região, onde provavelmente, quanto a este aspecto, a carvoaria foi buscar a estrutura

organizativa sobre a qual se sobrepôs a nova prática econômica, doravante voltada ao

mercado e não à estrita reprodução familiar.

A central de carbonização administrada por F., ao menos da forma como ele a

representou na entrevista, é um caso exemplar de carvoaria, ainda hoje encontradiço no

sudeste paraense, que mescla elementos de estabelecimentos típico-idealmente empresariais,

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domésticos e patrono-clientelistas. Quando falo de um tipo-ideal de organização empresarial

da produção, estou a me referir ao modelo de uma empresa capitalista moderna, um

empreendimento contábil e juridicamente separado da casa – ou seja, do espaço doméstico –

voltado para a acumulação de capital, o que não significa o simples acúmulo de bens

individual ou familiar, senão o investimento do capital auferido no próprio empreendimento

com vistas à circulação e geração de mais capital para a empresa. Neste caso, o administrador

do empreendimento atua enquanto empresário e não como membro do grupo doméstico; por

conseguinte, orientado pela lucratividade do negócio e não pela reprodução familiar. Na

forma pura deste tipo-ideal há, pois, uma clara separação entre o patrimônio da empresa e a

propriedade privada do empresário, o que implica também a diferenciação entre as dívidas do

estabelecimento, pessoa jurídica, e os débitos pessoais de seu dono, pessoa física, não

contraídos em nome da empresa, assim como uma clara indicação de quais são os empregados

do empreendimento, que laboram de conformidade com a ordem jurídico-trabalhista

estabelecida, diversamente da força de trabalho utilizada em um sistema produtivo doméstico

que, além de confundir os trabalhadores com os membros do grupo familiar, ainda costuma

caracterizar-se pelo não pagamento de salários fixos e regulares a estes, tal qual preconiza a

legislação vigente (WEBER, 1999; BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Mas, conforme

visto no caso de F., sói acontecer de a organização social da produção carvoeira, segundo o

modelo das centrais de carbonização, não corresponder ao tipo empresarial capitalista em sua

forma pura, dado que às características de uma empresa capitalista moderna é acrescido o uso

da força de trabalho familiar, geralmente esposa e filhos do carvoeiro, que não costumam ser

remunerados pelo trabalho que realizam, visto que, embora sejam trabalhadores como

quaisquer outros, o serviço que prestam é contabilizado como renda da unidade familiar, o

que confunde os espaços sociais da empresa e da casa, inclusive no tocante aos aspectos

contábeis e jurídicos, já que o pagamento dos membros do grupo doméstico não se apresenta

como um dever e uma despesa do estabelecimento, e os resultados de seu trabalho são tidos

como receitas da família angariadas pela participação de seus entes nos serviços caros à

empresa.

Deste modo, embora F., para atender as exigências da demanda de carvão vegetal pela

siderúrgica Terra Norte, tenha precisado registrar uma firma e trabalhar de acordo com as

exigências legais, emitindo nota fiscal das mercadorias, tendo funcionários com carteira

assinada e fornecendo a estes equipamentos de segurança, o que típico-idealmente são

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comportamentos motivados por um espírito empresarial capitalista, seu empreendimento,

como tantas outras carvoarias no estado do Pará, mantinha, paralelamente, comportamentos

típicos de uma empresa tradicional, baseada em um modelo de administração doméstico, tal

como o emprego de mão de obra familiar, quer dizer, sua própria força de trabalho, a da

esposa e de um filho adolescente no processo produtivo do carvão de babaçu. Outra conduta

típica de uma administração empresarial em moldes tradicionais, na qual o carvoeiro também

chegou a incorrer no curso de sua gestão da central de carbonização ecológica, fora a cessão

de meios de produção a catadores de coco babaçu e a pequenos produtores de carvão,

especialmente tambores e sacaria – pois, em dado momento de sua gestão, a central de

carbonização também chegou a funcionar como atravessadora de carvão, não somente como

produtora –, sem contudo lhes exigir garantias de produtividade. A relação de produção

estabelecida com os catadores e pequenos produtores, portanto, fundava-se na lógica do favor

e da confiança, característica de interações sociais patrono-clientelistas a que os trabalhadores

extrativistas de babaçu estavam habituados. F., destarte, como outros carvoeiros que,

auxiliados por indústrias guseiras, converteram-se rapidamente em pequenos empresários do

ramo cavoejeiro, adotara uma postura empresarial ambígua, que reproduziu e atualizou, sob

novos moldes, as estruturas produtivas conhecidas e experimentadas pelos extrativistas de

babaçu no sudeste paraense, realizando inclusive adiantamentos em dinheiro, conduta que

oferece sempre algum risco em termos de capitalização material; no entanto, propiciava uma

outra forma de capitalização apreciada e visada pelos trabalhadores, notadamente simbólica,

que lhes conferia reconhecimento e prestígio perante seus pares, convertendo-os em patrões e

modificando seu status social, haja vista que o papel de patrão, na zona do babaçu, admite

conteúdos específicos, relacionados à hierarquização, bem mais abrangentes em comparação

ao papel social do mero empresário capitalista, que não necessariamente age para auferir

capital simbólico, até mesmo à custa de perdas ou riscos materiais.

Este curioso fenômeno se explica pelo fato de os extrativistas transformados, algo

magicamente, em empresários, administradores de carvoarias, haverem, ao longo de um

duradouro processo de socialização em famílias e grupos eminentemente camponeses,

interiorizado um conjunto de esquemas de pensamento, ação, percepção e apreciação, isto é,

um habitus ou capital social, que lhes predispôs a adotar determinados comportamentos

econômicos (BOURDIEU, 2007), diversos dos que singularizam e são esperados de agentes

acostumados a lidar com o ofício empresarial capitalista em uma economia de mercado, ou

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seja, numa economia regulada por preços de mercado (POLANYI, 2000), especialmente

aquela à qual está vinculada a cadeia produtiva do ferro-gusa, um produto cujos preços são

determinados por oscilações econômicas de caráter mundial. O sistema de disposições

econômicas incorporado pelos trabalhadores extrativistas de coco babaçu, uma estrutura

estruturada, diante de sua célere reconversão em gestores de carvoarias, que lhes forçou a

adotar um novo modo de produção diferente do tradicional, passou a funcionar como

estruturas estruturantes, ou seja, como disposições que tendiam a ser continuadas, mas, ao

mesmo tempo, eram renovadas sob moldes diferentes dos originalmente estruturados

(BOURDIEU, 2005). No presente caso, as estruturas domésticas e patrono-clientelistas de

produção, em que os extrativistas foram economicamente socializados e nas quais laboraram

por certo período, que constituem um capital social de que os trabalhadores dificilmente

conseguiriam se desfazer tão abruptamente quando adentraram na economia carvoeira,

passaram a reproduzir-se de forma transfigurada, miscigenada com relações de produção

capitalistas, nas interações entre donos de carvoarias, funcionários da central e trabalhadores

extrativistas, o que demonstra a profunda ambiguidade que a terceirização da produção de

carvão de coco babaçu incutiu nos comportamentos econômicos de camponeses que antes não

produziam carvão para atender demandas industriais e mercadológicas, senão apenas para a

subsistência e reprodução familiar, em regime de economia doméstica e, muitas vezes,

vinculados a patrões, diante de quem atuavam como clientes.

* * *

Todavia, é importante ressaltar que nem todas as centrais de carbonização ecológica

terceirizadas adotaram um sistema empresarial de produção, ainda que ambiguamente

miscigenado com sistemas produtivos de caráter doméstico e patrono-clientelista. Um número

considerável de carvoarias organizou a produção carvoeira nos moldes do sistema de

empreita, como foi o caso das carvoarias em que trabalhou A., também carvoeiro de coco

babaçu de Vila São José. A. é filho de lavradores migrantes da Bahia, que se estabeleceram no

município de Abel Figueiredo, no estado do Pará. Antes de se envolver com o carvoejamento

de coco babaçu, o trabalhador laborou em diversas atividades urbanas e rurais. Encontrava-se

realizando o intermitente e mal remunerado trabalho na juquira (roça de pastagem) quando

foi contratado por uma central localizada em Vila Santana, sita às margens da Rodovia

13

Transamazônica, entre os municípios de São Domingos do Araguaia e Brejo Grande. O

trabalhador permaneceu, no entanto, apenas um reduzido período de seis meses laborando

nesta carvoaria, visto que, segundo dissera, passava meses sem receber os valores que lhe

eram devidos, pagos por produção calculada sobre os sacos de carvão produzidos, valendo

ressaltar que o carvoeiro era tão-somente um carbonizador, a quem não incumbia a realização

da coleta dos cocos, que ficava às custas e sob a responsabilidade do patrão que, por sua vez,

comprava os coquilhos de terceiros ou pagava catadores para coletá-los e os entregava ao

carvoeiro na central, a fim de serem carbonizados. O trabalho de carvoejamento era realizado

individualmente, segundo o carvoeiro: “Fazia sozinho, só eu, sem ter uma pessoa nem pra

abrir o saco pra eu encher; pra começar, nem pra cozinhar pra mim não tinha. Lá, eu fazia o

carvão, eu mesmo cozinhava, eu fazia tudo. Cheguei a produzir até 800 sacos” (A.,

nov./2010). Ademais de ser um trabalho solitário e extenuante, o patrão do carbonizador não

lhe oferecia equipamentos de segurança, apenas máscaras e alimentos para serem cozinhados

pelo próprio trabalhador, e nada mais do que isso, o que, somado à falta de pagamento,

tornava o serviço insustentável, além de assemelhado ao trabalho escravo.

Por esta razão, A. abandonou o trabalho na carvoaria para se dedicar à produção

autônoma de carvão por cerca de dois anos e seis meses, até novamente ser contratado por

outra central de carbonização ecológica sita no entorno da Vila São José, que funcionava

também adotando o modelo da empreita, na qual trabalhou por aproximadamente sete meses –

aliás, a mesma central que F. administrou por alguns anos, porém sob nova administração,

doravante nada empresarial e ainda mais perversa do que a carvoaria que A. trabalhara antes,

o que o levou a representar seu proprietário como um patrão ruim. Nesta carvoaria, o

carbonizador, além de receber por saco de carvão produzido e entregue já costurado, tinha

ainda que arcar com todos os custos da produção, desde a alimentação até os equipamentos de

segurança – exceto o óleo diesel, usado para agilizar a carbonização –, que comprava às suas

expensas a fim de minorar os riscos do processo produtivo, o que não impediu que, certa feita,

sofresse um acidente de trabalho, no qual perdeu a falange de um dos dedos da mão, devido a

uma queimadura. Esta central, conforme o modelo difundido pela siderúrgica Terra Norte,

possuía um alojamento que, contudo, não apresentava qualquer mobília para a estadia do

trabalhador, que também precisou custeá-la, haja vista que, para sua atividade ser rentável e

compensar o baixo valor pago pela produção, assim como a enorme quantidade de trabalho

despendida, o carvoeiro e sua família precisavam residir na carvoaria, embora tivessem uma

14

casa em povoado próximo que constituía seu domicílio, onde somente os filhos, todos

adolescentes, pernoitavam. A necessidade de maximizar a produção para majorar a renda

familiar levou ao envolvimento de todo o grupo doméstico do carbonizador no processo

produtivo, a divisão do trabalho carvoejeiro estando assim formatada: o carvoeiro

responsabilizava-se exclusivamente pelo processo de carbonização, enquanto os demais

membros da unidade familiar, esposa (que o auxiliava quando não estava ocupada em serviços

domésticos, como a preparação de alimento) e filhos (em idade inferior à permitida

legalmente para o ingresso no mundo do trabalho, que laboravam em horário diverso ao que

estavam na escola), assistiam-no nas tarefas de encher os tambores, ensacar o carvão e

costurar os sacos, sem o uso de equipamentos de segurança, que eram utilizados apenas pelo

carbonizador, que exercia a atividade mais perigosa e insalubre, embora todo o processo

produtivo do carvão implicasse em alguma insalubridade, em razão da intensa produção de

fumaça, poeira e fuligem, inclusive as tarefas desempenhadas pelos adolescentes e pela

esposa. Com o engajamento de todo o grupo doméstico, porém, a atividade carvoeira tornara-

se economicamente mais vantajosa do que o outro horizonte laboral detido pelo camponês, o

intermitente e subvalorizado trabalho na juquira.

A experiência vivida por A., aqui brevemente descrita, revela como as relações de

produção se organizaram no interior das carvoarias de coco babaçu, muitas vezes sob patentes

mecanismos de exploração da força de trabalho dos carbonizadores e dos membros de seu

grupo familiar. A vivência nas chamadas centrais de carbonização ecológica foi, e por certo

ainda é, sentida por muitos trabalhadores incumbidos do processo de carbonização como uma

forma de trabalho análogo ao escravo, conforme definição legal vigente no Brasil, segundo a

qual constitui esta modalidade ilícita de labor todas aquelas práticas que implicam seja

trabalho forçado ou jornada exaustiva, seja condições degradantes de trabalho, ou ainda

restrições à locomoção dos trabalhadores, por qualquer meio, em razão da contração de

dívidas (art. 149 da Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003). Se, no caso deste carvoeiro,

não se vê a imobilização camponesa em função de endividamentos, nem mesmo o trabalho

forçado em sentido estrito, resta bastante evidenciado o caráter exaustivo da jornada laboral,

bem superior ao permitido pela legislação trabalhista brasileira, assim como condições

degradantes de trabalho, quer dizer, sem o uso dos equipamentos de segurança necessários ao

processo produtivo do carvão de coco babaçu em condições salubres e com controle dos

perigos. A organização social da produção carvoeira nestes moldes, deveras ilegais, decorre

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por certo da incorporação do sistema de empreita pelas centrais de carbonização, um sistema

tradicional de produção na fronteira amazônica em que os trabalhadores laboram por

produtividade, normalmente recebendo baixa remuneração pela produção, o que os força a

ingressar em jornadas exaustivas e a se submeterem a condições de trabalho depreciativas de

dignidade humana. A necessidade de aumento da produção, dado o estado das forças

produtivas, sobretudo a rusticidade da tecnologia utilizada para o carvojamento – realizado

em tambores metálicos –, leva os trabalhadores a envolver todos os membros do grupo

doméstico na produção carvoeira, até mesmo porque, na zona do babaçu, as relações de

parentesco, inclusive as entre pais/mães e filhos, muito cedo são convertidas em relações de

produção, por força de disposições culturais e da precisão (necessidade relacionada a

precárias condições materiais de existência), que obriga os trabalhadores a iniciarem suas

carreiras produtivas, na agricultura e no extrativismo, antes da entrada na adolescência.

O caso de A. – aliás, como também o de F. – dá-nos ainda elementos para a

compreensão da relação de produção estabelecida entre catadores e carvoarias, modalidade de

interação social que a maioria das centrais de carbonização valem-se para se abastecer de

cocos babaçu inteiros necessários à atividade carvoeira. Neste comenos, muitas centrais

autorizam extrativistas interessados em trabalhar autonomamente com o carvoejamento a

coletarem coquilhos em suas propriedades em troca do pagamento de renda, mensurada por

saco de coco cru ou carbonizado, às vezes os compromissando a lhes vender toda a produção

carvoeira, relação de produção esta que reproduz integralmente o sistema de trabalho

agregado tradicionalmente vigente na zona do babaçu, normalmente experimentada junto a

fazendeiros. Ademais, as carvoarias também costumam pagar trabalhadores, remunerados de

acordo com a produtividade individual ou familiar, para catarem cocos destinados ao

abastecimento de suas atividades econômicas, o carvoejamento em si sendo realizado por

outros trabalhadores, carbonizadores contratados no mais das vezes de modo informal e

igualmente pagos por produção. Embora muitas centrais vendam o carvão diretamente para as

siderúrgicas, acontece de algumas venderem sua produção para outras carvoarias, o que

sucede com aquelas que não possuem uma firma constituída legalmente, fato que as impede

de estabelecer relações comerciais com as siderúrgicas, dada a impossibilidade de emissão de

nota fiscal da mercadoria. Mas, ainda nestes casos, a atividade carvoeira demonstra-se

lucrativa porque não arca com custos de produção para além das despesas com o pagamento

de coletores e carbonizadores, ademais do combustível e da manutenção do trator ou

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caminhão utilizado para o transporte dos frutos in natura e, posteriormente, carvoejados.

Assim, a lucratividade do empreendimento carvoejeiro deriva de uma verdadeira mais-valia,

no sentido estrito do termo de Marx (2006), retirada sobre o trabalho de variegados

trabalhadores.

As centrais de carbonização ecológica vieram a favorecer entre os proprietários de

terra e os catadores, sejam eles também produtores autônomos de carvão de babaçu ou não, o

estabelecimento de relações de produção baseadas no sistema de trabalho agregado, o que

apresenta homologias não casuais com o modo de produção extrativista tradicional que,

muitas vezes, força os extrativistas sem terra, que precisam praticar o extrativismo em

babaçuais alheios, a ceder uma parte de sua produção a fazendeiros, uma prática que muito

lhes desagrada e que chamam de pagamento de meia ou de renda, invariavelmente feito em

produção. No caso da coleta para fins de carvoejamento, porém, a renda paga pelos coletores

nem sempre é traduzida em produção, como costuma se dar nas relações tradicionais entre

camponeses e proprietários de terra, ocorrendo às vezes mediante uma troca monetizada, em

que os trabalhadores pagam em dinheiro um determinado valor por saco de coco coletado.

Esta relação, segundo as categorias locais, é chamada de arrendamento, que não incide sobre

a terra, senão apenas sobre os cocos babaçu. No mais das vezes, os cocos catados podem ser

vendidos tanto in natura quanto carbonizados, o que é feito geralmente para as carvoarias,

que além de produzirem também atravessam a produção carvoeira camponesa, aumentando

assim suas margens de lucro. Tal prática, embora seja mais lucrativa para os atravessadores, é

tida como vantajosa economicamente por muitos trabalhadores autônomos, que conseguem

perfazer através dela rendas que dificilmente conseguiriam pelo medium de outras formas de

trabalho que encontram-se à sua disposição, como sobretudo o trabalho na juquira e o

extrativismo tradicional, realizado mediante os processos de quebra e beneficiamento do

babaçu. Daí porque ouvi de muitos trabalhadores que a coleta e queima do babaçu em terras

alheias são suas únicas fontes de renda, haja vista que não possuem terra e, por isso,

necessitam trabalhar no carvão, vendendo sua produção a carvoarias sitas nos arredores dos

povoados, o que lhes propicia rendas mensais que não raro ultrapassam um salário mínimo.

Por isso, muitos destes carvoeiros autônomos consideram a atividade carvoeira mais

importante economicamente – mesmo que para realizá-la paguem renda ao proprietário do

babaçual em que praticam o extrativismo, sujeitando-se ao sistema de trabalho agregado – do

que a quebra de coco e o trabalho na juquira, esta última forma de trabalho, frequentemente,

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a única alternativa laboral ao carvoejamento praticada pelos membros masculinos do grupo

familiar, através do qual recebem pagamento por diárias, normalmente bastante reduzidas.

Embora as carvoarias inicialmente só adquirissem dos trabalhadores os cocos babaçu

in natura, as vantagens econômicas da compra e venda do carvão produzido autonomamente

pelos camponeses logo foram identificadas pelas centrais que, por este motivo, não tardaram

a efetuar a transferência àqueles da tecnologia de carvoejamento do coco babaçu adequada ao

uso industrial do produto, o que foi sendo feito gradativamente por muitos atravessadores, na

maioria dos casos também produtores, que depois de um período em que compravam tão-

somente o coco inteiro de catadores de babaçu, oferecendo-lhes apenas a sacaria destinada à

coleta dos coquilhos, passaram a comprar dos extrativistas o carvão já produzido, alimentando

assim a formação de uma rede de carvoeiros autônomos que trabalham em regime de

economia familiar, aos quais, no entanto, foi preciso repassar o padrão tecnológico de

produção de carvão em tambores metálicos e, em muitos casos, até mesmo os próprios

tambores, a título de empréstimo, com exigência de exclusividade no fornecimento do carvão,

ou venda, paga mediante produção ou em dinheiro. O caso de A. – que, conquanto tenha

trabalhado em carvoarias, também exerceu o ofício carvoejeiro de forma autônoma por dois

anos e seis meses, assistido por membros de seu grupo doméstico – é típico de produção

autônoma nas condições que estão a ser expostas. Quando produziu carvão de forma

autônoma, o processo produtivo do carvão de coco babaçu era realizado tendo a participação

de seus filhos adolescentes, que estudavam em um turno e o auxiliavam em outro,

empreendendo as tarefas de amontoamento e coleta dos cocos, posto que a carbonização e o

ensacamento eram atividades feitas exclusivamente pelo carvoeiro. Este trabalhador não

possuía terra e necessitava coletar e carvoejar o babaçu em palmeirais de outrem, o que lhe

forçou a firmar uma relação de trabalho agregado com certo proprietário da terra, que

também era dono de uma central de carvoejamento e intermediava a comercialização da

produção camponesa com as siderúrgicas, para quem o carvoeiro pagava uma elevada renda

calculada sobre a quantidade de carvão produzido, na ordem de 40%, restando-lhe tão-

somente 60% da produção que, após ensacada, era vendida para o próprio fazendeiro, que

fornecia os tambores e a sacaria em troca da exclusividade na compra do carvão produzido.

Este tipo de relação de produção consiste na principal forma como se organizou o

carvoejamento autônomo do coco babaçu no sudeste paraense, em que os camponeses

trabalham em relativa liberdade, conquanto agregados a atravessadores, muitos destes

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concomitantemente fazendeiros e donos de centrais de carbonização, que lhes fornecem os

meios de produção necessários à produção do carvão, mas, em contrapartida, exigem-lhes

fidelidade na venda da produção, o que, apesar dos pesares, ainda é representado pelos

trabalhadores como uma relação vantajosa, pois se sentem mais livres do que se estivessem

laborando em carvoarias que, como visto, correntemente, dispõem-nos em formas de trabalho

análogas à escravidão. Ademais da relativa liberdade possuída, dependendo da quantidade de

trabalho despendida e do número de membros da família engajados no processo produtivo, o

carvoejamento autônomo de babaçu pode ainda ser um labor rentável se comparado a outros

horizontes laborais, chegando a perfazer, em alguns grupos domésticos, rendas aproximadas a

dois salários mínimos por mês, o que evidencia a importância do carvoejamento para a

economia familiar. Por esta razão, notadamente prática, muitos trabalhadores dispõem a

produção carvoeira em uma posição hierárquica superior a outras atividades econômicas,

como o extrativismo tradicional de babaçu. Esta hierarquização é reforçada pelo fato de o

carvoeiro não precisar arcar com qualquer custo de transporte da produção que, por ser

intermediado pelo dono do cocal, fica sempre a cargo do atravessador, que incumbe-se de

fazer chegar um caminhão ou um trator até o local de produção do carvão, geralmente um

pasto consorciado com babaçual pertencente ou não ao intermediário, que comercializa a

produção diretamente com as indústrias guseiras ou através de outro atravessador. Porém, a

produção de carvão autônoma, no mais das vezes realizada dentro de um cocal alheio – como

ocorre com extrativismo tradicional de babaçu –, apresenta a desvantagem de ser realizada

sem uma infraestrutrura adequada tanto à produção quanto ao armazenamento do carvão, o

que deixa a atividade carvoeira e os próprios carvoeiros suscetíveis a intempéries climáticas,

sobretudo às chuvas constantes no sudeste paraense, especialmente no período do inverno

amazônico, que prejudicam sensivelmente a produtividade e, por consequência, a

rentabilidade do carvoejamento durante os meses de janeiro a maio. No mais, estas

intempéries sujeitam os trabalhadores a situações de insalubridade no curso da produção, dada

a exposição à chuva na ocasião do carvoejamento, o que consistiu em uma das principais

queixas dos carvoeiros entrevistados quanto à produção autônoma de carvão, que motivou

muitos a se submeterem ao trabalho cativo nas carvoarias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Enfim, diante do que foi exposto, pode-se inferir que, no estado do Pará, a organização

social da produção carvoeira apresenta dois modelos estruturais básicos, que admitem,

obviamente, algumas variações, de conformidade com as experiências subjetivas de cada

agente e com as relações cultivadas entre trabalhadores, patronos e indústrias. O primeiro

consiste na estrutura produtiva catador → carvoaria → siderúrgica, onde o catador

geralmente é um trabalhador autônomo, remunerado por produção, que fornece os cocos in

natura para determinada carvoaria que, por sua vez, possui funcionários, os carbonizadores,

via de regra sem qualquer vínculo trabalhista formal com a central de carbonização, senão

apenas contratos tácitos de produção de carvão de babaçu, que são remunerados de acordo

com sua produtividade, o que os leva a envolver outros membros de seu grupo doméstico no

processo produtivo do carvão, a fim de majorar a renda familiar oriunda da atividade

carvoeira. As carvoarias não costumam fornecer aos carbonizadores qualquer equipamento de

segurança, somente alguns meios de produção (galpão, alojamento, tambores, sacaria,

barbantes e/ou querosene), o que os coloca, assim com a suas famílias, em situação de

extrema vulnerabilidade social, sujeitos inclusive a trabalho assemelhado ao escravo. O

segundo modelo consiste na estrutura pequeno produtor autônomo → carvoaria →

siderúrgica, em que o pequeno produtor é um fornecedor de carvão de babaçu à carvoaria

que, além de produzir, também funciona como atravessadora da produção carvoeira

camponesa. Neste segundo modelo, sói acontecer de os pequenos produtores trabalharem

agregados aos donos das carvoarias, muitas vezes fazendeiros, dada a necessidade de

coletarem cocos babaçu e produzirem carvão dentro de propriedades alheias, o que reproduz e

atualiza o tradicional sistema de trabalho agregado, agora sob novos moldes. Deste modo,

resta claro que, à diferença de outros lugares – como no norte tocantinense e no sudoeste do

Maranhão –, a organização da produção carvoeira no estado do Pará apresenta diversas

homologias com os modelos produtivos do carvão de madeira encontradiços no sudeste

paraense, também destinados a atender a demanda por carvão vegetal das siderúrgicas de

ferro-gusa, especialmente no que toca às forças produtivas, relações de produção e meios de

produção. Isto sucede porque, tal qual no caso do carvão de madeira, no Pará a produção de

carvão de babaçu estruturou-se no interior de carvoarias, que também funcionam como

atravessadoras de carvão, e constituem o centro gravitacional da economia carvoeira. Por

outro lado, nas carvoarias há contratação de funcionários para a realização do carvoejamento,

pagos por produtividade, ou seja, de conformidade com o sistema de empreita, uma

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característica da organização da produção de carvão de madeira. Por fim, as carvoarias, na

maioria dos casos, qual as que tomam como insumo a madeira, visam apresentar, ou ao menos

aparentar, um caráter empresarial de gestão do empreendimento carvoejeiro, embora usem,

veladamente, de trabalho assemelhado ao escravo, exploração da força de trabalho,

aproveitamento de mão de obra infanto-juvenil, mesclando formas de administração

supostamente empresariais com maneiras de gestão tipicamente domésticas e patrono-

clientelistas, até mesmo aviltantes da dignidade humana.

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