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OS CARVOEIROS: SIDERURGIA DE FERRO-GUSA E A TRANSFORMAÇÃO DO
EXTRATIVISMO DE COCO BABACU NO SUDESTE DO PARÁ1
Nirson Medeiros da Silva Neto2
RESUMO
O presente trabalho retrata os efeitos materiais e simbólicos, na vida e no trabalho dos
extrativistas de coco babaçu fixados no sudeste do estado do Pará, da instalação de indústrias
produtoras de ferro-gusa no corredor da Estrada de Ferro Carajás que, desde meados da
década de 1990, passaram a usar o carvão de coco babaçu como redutor de minério de ferro,
promovendo assim um fenômeno de mercantilização de uma mercadoria que outrora era
utilizada mormente para o consumo e reprodução familiar, sendo comercializada
episodicamente e em pequena escala pelos trabalhadores pesquisados. A mercantilização do
carvão de babaçu promoveu uma notável desorganização e reorganização do modo de
produção tradicional de uma população eminentemente camponesa, em sua maioria composta
por nordestinos migrantes que acompanharam as frentes de expansão agrícola que se
deslocaram à região amazônica, trazendo consigo formas muito específicas de organização
social da produção, fundadas em regime de economia doméstica ou familiar agroextrativista.
Desta forma, acabou por suceder a conversão de trabalhadores que estabeleciam relações
esporádicas com o mercado e que estavam mormente voltados para a reprodução familiar em
trabalhadores que começaram a produzir para atender demandas mercadológicas,
especialmente as de carvão vegetal pela siderurgia. Isto implicou no advento de novos modos
de produção extrativista de babaçu, que redundaram em outras forças produtivas e relações de
produção. Diante deste evento, a pesquisa cujos resultados seguem abaixo buscou
compreender as diferentes formas como o acontecimento da mercantilização do carvão de
babaçu foi interpretado e recepcionado pelos extrativistas de babaçu, fenômenos que tiveram
a mediação de estruturas sociais de longa duração que reagiram ao evento de colonização
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de
2014, Natal/RN. 2 Doutor em Ciências Sociais, área de Antropologia, e mestre em Direito, área de Direitos Humanos, pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Metodologia da Educação Superior pela Faculdade de
Tecnologia da Amazônia (FAZ). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).
Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
2
capitalista. A pesquisa, de feição etnográfica, foi realizada entre os anos de 2007 e 2011 junto
a carvoeiros residentes em vários povoados distribuídos em municípios do sudeste do estado
do Pará. No curso da pesquisa de campo, constatou-se que a mercantilização do carvão de
coco babaçu favoreceu a constituição de uma cadeia de terceirização de serviços realizados
muitos deles sob a forma de trabalho informal e somente alguns raros sob a forma
empresarial, no mais das vezes miscigenada com relações de produção domésticas e patrono-
clientelistas, reproduzindo e atualizando estruturas produtivas de longa duração vigentes na
zona do babaçu. Assim, formou-se, objetivamente, uma enorme rede de produtores e
fornecedores de carvão, uns vinculados a carvoarias, outros autônomos, em relações de
produção bastante diversificadas com patrões e atravessadores.
PALAVRAS-CHAVE: EXTRATIVISMO; CAMPESINATO; INDUSTRIALIZAÇÃO.
INTRODUÇÃO
O presente artigo ensaia uma compreensão dos efeitos materiais e simbólicos, na vida
e no trabalho dos extrativistas de babaçu fixados no sudeste paraense, da instalação de
indústrias produtoras de ferro-gusa no corredor da Estrada de Ferro Carajás, notadamente no
município de Marabá, estado do Pará, que, desde meados de 1990, passaram a usar o carvão
de coco babaçu como redutor de minério de ferro, promovendo assim um fenômeno de
mercantilização (APPADURAI, 2008) de uma mercadoria que outrora era utilizada mormente
para o consumo e reprodução familiar, sendo comercializada episodicamente e em pequena
escala pelos trabalhadores pesquisados. A mercantilização do carvão de babaçu promoveu
uma notável desorganização e reorganização do modo de produção tradicional de uma
população eminentemente camponesa, em sua maioria composta por nordestinos migrantes
que acompanharam as frentes de expansão agrícola que se deslocaram à fronteira amazônica,
trazendo consigo formas muito específicas de organização social da produção, fundadas em
regime de economia doméstica ou familiar agroextrativista. Desta forma, acabou por suceder
a conversão de trabalhadores que estabeleciam relações esporádicas com o mercado, e que
estavam mormente voltados para a reprodução familiar, em trabalhadores que começaram a
produzir para atender demandas mercadológicas, especialmente as de carvão vegetal pela
siderurgia. Isto, porém, como sói acontecer nos casos de colonização capitalista, sobretudo
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quando se trata de processos de industrialização de áreas predominantemente rurais, implicou
no advento de novos modos de produção extrativista de babaçu, que redundaram em outras
forças produtivas e relações de produção (MARX, 2006). Estes novéis sistemas produtivos se
sobrepuseram ao modo de produção tradicional dos extrativistas de coco babaçu e restaram
colocados em posições de hierarquia superior em termos de importância econômica, gerando
processos de dominação e submissão dos camponeses pesquisados a necessidades e a lógicas,
econômicas e culturais, notadamente diferentes das experimentadas tradicionalmente
(GODELIER, 1973).
O evento da mercantilização do carvão de coco babaçu, porém, não significou uma
simples substituição de formas de trabalho mais antigas e estimadas por outras mais
modernas, baseadas em uma economia de mercado; ao contrário, as transformações
promovidas no extrativismo de babaçu foram mediadas pelas experiências e pelas práticas dos
próprios trabalhadores afetados (BOURDIEU, 2006), que até então experimentavam
contextos econômicos e socioculturais bastante específicos, relativamente autônomos em
relação ao sistema capitalista industrial, nos quais vigiam estruturas de longa duração que
davam ensejo a relações de produção de feitio doméstico e patrono-clientelista, as quais
restaram incorporadas aos novos modos de produção. O acontecimento histórico em questão
ocasionou, no curso de alguns poucos anos, cerca de meia década, a miscigenação de dois
sistemas simbólicos, o do extrativismo tradicional de babaçu e o do capitalismo industrial,
fazendo com que muitos trabalhadores passassem a adotar comportamentos econômicos
ambíguos, especialmente no que toca ao modo de produção extrativista de babaçu, mesclando
forças produtivas e relações de produção inerentes a cada um destes sistemas. Partindo da
observação deste fenômeno, a pesquisa cujos resultados estou a apresentar buscou
compreender as diferentes formas como o acontecimento da mercantilização do carvão de
babaçu foi interpretado e recepcionado pelos extrativistas de babaçu, fenômenos que tiveram
a mediação de estruturas sociais de longa duração que reagiram ao evento da colonização
capitalista seja assimilando quase integralmente as novas forças produtivas e relações de
produção de feição capitalista, seja transfigurando elementos do modo de produção
precedente que penetraram, nem sempre reconhecidamente, nos sistemas produtivos que se
sobrepuseram. Este esforço compreensivo remete, portanto, inelutavelmente, às discussões
teóricas sobre as complexas interações entre eventos de colonização, inclusive de colonização
interna, e estruturas socioculturais de grupos colonizados. Não é por outra razão que o
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trabalho etnológico de Bourdieu (2006) servira de inspiração para as linhas que seguem, dado
que tal autor muito se imiscuiu nestes amplos debates, servindo de esquema teórico mais geral
para grande parte das interpretações que compõem o presente artigo.
A pesquisa que deu ensejo aos resultados ora expostos apresentou etapas de revisão
bibliográfica, de análise de documentos tocantes à história econômica da região amazônica e
de pesquisa de campo de feição etnográfica. A etnografia foi realizada em três momentos
temporalmente distintos, cada qual de aproximadamente trinta dias, que consistiram em
incursões junto aos extrativistas de coco babaçu residentes em vários povoados distribuídos
em quatro municípios do estado do Pará, quais sejam: Brejo Grande, São Domingos do
Araguaia, São João do Araguaia e Palestina. O primeiro momento da etapa etnográfica, de
caráter mais exploratório, sucedeu entre os meses de julho e agosto de 2007, período de auge
da economia carvoeira, mas no qual o principal objeto de investigação ainda era o processo de
mobilização coletiva das quebradeiras de coco babaçu, que incluiu suas lutas contra a
produção de carvão de coco inteiro, o que não obstou fossem levantados dados significativos
para as etapas posteriores, que realizaram-se nos anos de 2010 e 2011, sempre entre os meses
de novembro e dezembro. Em todas as etapas do trabalho de campo adotei técnicas de
pesquisa social homólogas, a saber, conversas e entrevistas individuais e coletivas realizadas
com trabalhadores extrativistas de babaçu, com representantes do MIQCB (Movimento
Interestatual das Quebradeiras de Coco Babaçu) e de diversas associações locais de
quebradeiras de coco babaçu. A maioria das entrevistas, sempre acompanhadas de
observações diretas, foram semiestruturadas e fazendo uso de gravador, embora, nas primeiras
abordagens dos entrevistados, tenha sido comum a realização de entrevistas não-estruturadas,
mediante diálogos espontâneos não registrados. Houve casos, sobretudo nos diálogos com
carvoeiros, em que não foi autorizada a gravação das entrevistas, dado o clima de reprovação
social que circunda a atividade do carvoejamento de babaçu, sendo respeitado o direito dos
trabalhadores de não terem registrados seus depoimentos, nem mencionados seus nomes,
senão apenas anotados em diário de campo.
* * *
Embora o carvão de coco babaçu já fosse um insumo visado desde as discussões em
torno do Plano-diretor do Corredor da Estrada de Ferro Carajás, cuja origem data ainda da
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década de 1970, na práxis histórica sua utilização industrial remonta a meados de 1990 com a
busca pelas siderúrgicas instaladas em Marabá (PA) e Açailândia (MA) por alternativas
“ecologicamente mais prudentes” de produção de carvão vegetal, entre as quais foram
levantadas, por ordem de importância para as indústrias de ferro-gusa, o carvão manufaturado
a partir da madeira oriunda de reflorestamento e de manejo florestal e, em último lugar, o
carvão de coco babaçu, este, no princípio, exercendo mais um papel retórico do que
propriamente sendo um insumo usado de fato pela siderurgia, quadro que se reverteu
posteriormente. O cenário quanto ao carvão de babaçu começou a mudar quando projetos-
piloto de carvoejamento dos coquilhos passaram a ser concretizados, a exemplo da pioneira
central de carbonização ecológica implantada pela COSIPAR (Companhia Siderúrgica do
Pará) no município de São Domingos do Araguaia, em 1994, que, segundo noticia Monteiro
(1998), fora a primeira entre incontáveis outras que uma década mais tarde se instalariam nas
terras do Araguaia-Tocantins, sobretudo em seu lado paraense, onde o modelo das centrais
predomina até hoje, sendo encontradiças inúmeras delas nas áreas em que há vasta incidência
de palmeiras de babaçu, principalmente nas cidades que margeiam a Rodovia Transamazônica
entre os municípios de Palestina e de Marabá. Tal fato possui uma explicação que me parece
bastante evidente. As centrais de carbonização ecológica nada mais são do que carvoarias
estruturadas em moldes muito assemelhados às carvoarias que beneficiam a madeira (mais
antigas na região, embora também relacionadas, em sua origem, às atividades da siderurgia),
havendo algumas diferenças no tocante à tecnologia utilizada para o carvoejamento – no caso,
uma adaptação das forças produtivas à matéria-prima carbonizada, o coco babaçu –, embora
sejam menores as distinções no relativo às relações de produção, que reproduzem o sistema de
empreita como forma predominante de organização social da produção, ainda que algumas
carvoarias adotem uma organização empresarial. Contudo, estas não são as únicas
formatações existentes na região, pois existe ainda uma vasta rede de produtores autônomos,
que trabalham geralmente em regime de produção familiar e partilham as atividades na
agricultura e na produção de carvão, assim como comercializam sua produção intermediados
por atravessadores, muitos dentre os quais também são produtores. Estes diferentes modos de
produção, se comparados, apresentam, por certo, algumas homologias e inter-relações, mas
ainda assim há afastamentos que os distinguem entre si, levando-nos a concluir que existem
diversificadas formas de organização da produção carvoeira de coco babaçu na fronteira
amazônica.
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O modelo das centrais de carbonização, por certo o mais evidente, é notavelmente um
modo de produção exógeno em relação ao extrativismo tradicional, tendo sido gestado não
pelos trabalhadores, senão pelas próprias siderúrgicas, inspiradas na forma de organização da
produção das carvoarias que produzem carvão de madeira oriunda da mata nativa, algumas
adotando um sistema empresarial de gestão e outras funcionando nos moldes do velho e
perverso sistema de empreita, que tanto imobiliza inúmeros camponeses na fronteira
amazônica, além de ser um sistema que favorece a reprodução do trabalho assemelhado ao
escravo. Muito embora, inicialmente, tenham sido instaladas e administradas pelas próprias
siderúrgicas, a tendência de terceirizar os serviços de produção de carvão vegetal, a fim de se
eximirem da responsabilidade de condução deste arriscado negócio, sempre ameaçado por
eventuais represálias de órgãos fiscalizadores (ambientais e trabalhistas), fez com que as
indústrias guseiras gradativamente fossem transferindo as centrais para a administração de
terceiros, sejam empresários sejam fazendeiros e arrendatários ou mesmo camponeses, que
constituíram pequenos e médios empreendimentos – alguns legalizados, outros funcionando à
margem da legalidade ou irregularmente – para conduzir o negócio, muitos sob assessoria das
indústrias interessadas na compra do carvão. Homologamente ao que fizeram no caso do
carvoejamento da madeira, embora em menor escala, as siderúrgicas adotaram um conjunto
de estratégias a fim de formar um mercado de carvão de babaçu no estado do Pará, que
incluíam desde (1) a transmissão da propriedade das centrais a produtores, (2) a transferência
da tecnologia apropriada à produção de carvão adequado ao consumo industrial – na verdade,
uma tecnologia bastante rústica, consistente na utilização de tambores metálicos tampados
com barro, dentro dos quais realiza-se a carbonização –, passando pelo (3) empréstimo de
capital necessário ao início da atividade carvoeira – geralmente pago em carvão, através de
descontos quando da entrega da produção às indústrias –, até (4) o fornecimento de caminhões
e tratores voltados ao transporte do produto, tanto de dentro da mata para os locais de
recolhimento quanto dos povoamentos rurais até as siderúrgicas –, restando aos produtores a
obrigação de pagar a posteriori pelos meios de transporte recebidos, também mediante
produção.
A tecnologia utilizada pelas siderúrgicas na constituição das centrais de carbonização
foi, originalmente, baseada na construção de fornos especialmente projetados para o
carvoejamento do coco babaçu, feitos de tijolos e barro que, no entanto, acabaram por ser
usados mormente na carbonização de madeira oriunda de resíduos de serrarias localizadas no
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entorno das centrais, o efetivo carvoejamento do babaçu sendo realizado apenas nas ocasiões
em que haviam inspeções empreendidas pelo IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
e Recursos Naturais Renováveis), conforme constatação de Monteiro (1998), o que reforçou
as impressões deste pesquisador a respeito do aproveitamento residual do babaçu na
siderurgia. Mas tal quadro obteve sensíveis transformações quando, em meados da primeira
década do século XXI, as pressões da opinião pública e dos órgãos fiscalizadores sobre as
siderúrgicas aumentaram e outros padrões tecnológicos foram adotados para o carvoejamento,
que passou a ser realizado, primeiramente, em grandes fornos metálicos que, segundo um dos
carvoeiros que tive oportunidade de entrevistar, comportavam, cada um, cerca de dois metros
cúbicos de coco babaçu e que, mais adiante, foram substituídos por tambores metálicos. Estes
tambores acabaram se tornando a tecnologia vastamente difundida nos variados contextos de
carbonização de babaçu existentes na região, sejam empresariais, baseados no sistema de
empreita ou domésticos. No tocante à qualidade da produção e produtividade do trabalho
carvoejeiro, o uso dos tambores metálicos representou vantagens significativas em relação à
tradicional utilização de caieiras, cujo resultado produtivo, além de inadequado ao
aproveitamento industrial, é alcançado de forma mais morosa e laboriosa, tendendo a
demandar maior dispêndio de tempo e esforço de trabalho, o que torna o padrão tecnológico
de que se valem tradicionalmente os extrativistas de babaçu totalmente impróprio à produção
de carvão de babaçu em larga escala, destinada à siderurgia. Ciente disto, as siderúrgicas
fomentaram a difusão da tecnologia baseada em tambores que, embora sobremaneira simples,
atende razoavelmente aos padrões de qualidade exigidos para a produção de ferro-gusa,
ademais de ser barata e, por seguimento, acessível até mesmo pelos pequenos produtores mais
pobres que trabalham em regime de economia familiar ou doméstica, que é o caso da
esmagadora maioria dos extrativistas que se dedicam à produção de carvão de coco babaçu.
* * *
O modo como este padrão tecnológico foi e ainda vem sendo difundido, porém,
apresenta singularidades de acordo com as relações de produção existentes em cada contexto
social. No caso das carvoarias paraenses, aconteceu de as baterias de fornos do tipo tambor
serem fornecidas, juntamente com a sacaria necessária ao armazenamento da produção e, em
certos casos, algum capital para o começo da atividade carvoeira e até meios de transporte
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(caminhão e/ou trator), pelas indústrias guseiras àqueles produtores que se candidataram ao
carvoejamento do coco babaçu ou que foram escolhidos pelas siderúrgicas por sua disposição
e habilitação ao trabalho carvoejeiro. Entre estes candidatos, ou escolhidos, esteve, por
exemplo, F.3, carvoeiro da Vila São José, município de São Domingos do Araguaia, estado do
Pará. Este trabalhador nasceu na cidade maranhense de Codó e migrou, acompanhando o pai,
deste município para o de Pedreiras e, posteriormente, ao de Esperantinópolis, ambos
localizados na região do Médio Mearim, estado do Maranhão. Em 1980, já com 18 anos,
decidiu aventurar-se nos garimpos da fronteira amazônica, quando então empreendeu
deslocamento para o sudeste paraense, exercendo por alguns anos o ofício de garimpeiro, até
retornar ao exercício de ofícios tipicamente rurais, fixando-se em São Domingos do Araguaia.
Referido trabalhador, em 2006, recebeu de uma siderúrgica toda a assistência material
necessária ao início de um pequeno empreendimento carvoeiro com característica
empresarial, que assimilou padrões domésticos ou familiares de organização social da
produção. F., como tantos outros trabalhadores, depois de experimentar diversos ofícios e
empregos na área urbana do município em que residia, dedicava-se exclusivamente a
trabalhos rurais quando foi contratado informalmente4
pela siderúrgica Terra Norte,
estabelecida no parque industrial de Marabá, a fim de trabalhar em uma recém implantada
central de carbonização ecológica da empresa, localizada nas proximidades de mencionada
Vila. Esta central, qual a maioria das demais, apresentava um galpão, destinado ao
armazenamento da produção, e um alojamento para trabalhadores, utilizado como local de
repouso e alimentação dos carvoeiros que, algumas vezes, acabava convertido praticamente,
embora não oficialmente, em lugar de moradia dos trabalhadores. Além disso, à época, o
estabelecimento ainda possuía 12 fornos metálicos do tipo que comportava dois metros
cúbicos de cocos babaçu. A função exercida pelo trabalhador na divisão do trabalho consistia
estritamente em agenciar a compra do babaçu, que era vendido por produtores rurais
autônomos incumbidos estritamente da coleta e venda dos frutos à central da Terra Norte, os
localmente chamados catadores. Neste momento, o preço do babaçu era avaliado por metro
cúbico, unidade de valor que, contudo, foi posteriormente modificada para sacos de coco.
3 Os nomes dos trabalhadores entrevistados serão aqui, todos, omitidos a fim de preservá-los contra eventuais
represálias em decorrência dos depoimentos prestados. 4 Isto é, sem a devida assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).
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De acordo com F., alguns meses após sua contratação, a siderúrgica decidira terceirizar
a central e lhe transferir a propriedade do estabelecimento mediante a assinatura de um
contrato, válido por três anos e seis meses, em que o carvoeiro, além de receber a carvoaria,
fez jus a 1500 sacos e a R$-1.000,00 destinados à primeira compra de cocos para serem
carbonizados, comprometendo-se, em contrapartida, a produzir carvão de coco babaçu para a
empresa e pagar em produção o valor da carvoaria, dos sacos e do capital emprestado,
assumindo assim todos os riscos e ônus do empreendimento, dos quais a indústria se eximira
absolutamente com a terceirização da produção carvoeira. Certo tempo depois, já em 2007, o
trabalhador, agora convertido em pequeno empresário do setor carvoejeiro, percebendo que a
atividade não demonstrara ser lucrativa em razão dos valores retidos na indústria e dos custos
de transporte dos locais de coleta dos coquilhos ao de produção do carvão e deste até a
siderúrgica, contatou representantes da guseira a fim de solver o problema da rentabilidade do
negócio, recebendo como solução um caminhão cujo objetivo era minorar as despesas com o
deslocamento dos frutos e do carvão, meio de transporte este que também foi pago através de
produção carvoeira, o que, de fato, tornou a atividade empresarial lucrativa, mediante a qual
passou a auferir uma renda mensal consideravelmente superior à proporcionada pelo medium
dos trabalhos rurais que antes realizava. Digo que a atividade do carvoeiro apresentara-se
como empresarial, haja vista que, conforme seu relato, ele precisou constituir formalmente
uma pequena empresa de fornecimento de carvão vegetal com três empregados com carteira
de trabalho assinada, que recebiam os devidos equipamentos de segurança, como máscaras,
luvas, botas, remédios e quites de primeiros socorros, em respeito à legislação trabalhista
vigente, o que era motivado pela possibilidade de uma eventual fiscalização da Delegacia
Regional do Trabalho. Mas o empreendimento do carvoeiro apresentara-se como empresarial
apenas parcialmente, posto que também admitia o aproveitamento da força de trabalho
familiar, quer dizer, de F., sua esposa e filho ainda adolescente, fazendo do empreendimento
uma atividade, ao menos em parte, doméstica, como costuma ser o trabalho agroextrativista
na região, onde provavelmente, quanto a este aspecto, a carvoaria foi buscar a estrutura
organizativa sobre a qual se sobrepôs a nova prática econômica, doravante voltada ao
mercado e não à estrita reprodução familiar.
A central de carbonização administrada por F., ao menos da forma como ele a
representou na entrevista, é um caso exemplar de carvoaria, ainda hoje encontradiço no
sudeste paraense, que mescla elementos de estabelecimentos típico-idealmente empresariais,
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domésticos e patrono-clientelistas. Quando falo de um tipo-ideal de organização empresarial
da produção, estou a me referir ao modelo de uma empresa capitalista moderna, um
empreendimento contábil e juridicamente separado da casa – ou seja, do espaço doméstico –
voltado para a acumulação de capital, o que não significa o simples acúmulo de bens
individual ou familiar, senão o investimento do capital auferido no próprio empreendimento
com vistas à circulação e geração de mais capital para a empresa. Neste caso, o administrador
do empreendimento atua enquanto empresário e não como membro do grupo doméstico; por
conseguinte, orientado pela lucratividade do negócio e não pela reprodução familiar. Na
forma pura deste tipo-ideal há, pois, uma clara separação entre o patrimônio da empresa e a
propriedade privada do empresário, o que implica também a diferenciação entre as dívidas do
estabelecimento, pessoa jurídica, e os débitos pessoais de seu dono, pessoa física, não
contraídos em nome da empresa, assim como uma clara indicação de quais são os empregados
do empreendimento, que laboram de conformidade com a ordem jurídico-trabalhista
estabelecida, diversamente da força de trabalho utilizada em um sistema produtivo doméstico
que, além de confundir os trabalhadores com os membros do grupo familiar, ainda costuma
caracterizar-se pelo não pagamento de salários fixos e regulares a estes, tal qual preconiza a
legislação vigente (WEBER, 1999; BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Mas, conforme
visto no caso de F., sói acontecer de a organização social da produção carvoeira, segundo o
modelo das centrais de carbonização, não corresponder ao tipo empresarial capitalista em sua
forma pura, dado que às características de uma empresa capitalista moderna é acrescido o uso
da força de trabalho familiar, geralmente esposa e filhos do carvoeiro, que não costumam ser
remunerados pelo trabalho que realizam, visto que, embora sejam trabalhadores como
quaisquer outros, o serviço que prestam é contabilizado como renda da unidade familiar, o
que confunde os espaços sociais da empresa e da casa, inclusive no tocante aos aspectos
contábeis e jurídicos, já que o pagamento dos membros do grupo doméstico não se apresenta
como um dever e uma despesa do estabelecimento, e os resultados de seu trabalho são tidos
como receitas da família angariadas pela participação de seus entes nos serviços caros à
empresa.
Deste modo, embora F., para atender as exigências da demanda de carvão vegetal pela
siderúrgica Terra Norte, tenha precisado registrar uma firma e trabalhar de acordo com as
exigências legais, emitindo nota fiscal das mercadorias, tendo funcionários com carteira
assinada e fornecendo a estes equipamentos de segurança, o que típico-idealmente são
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comportamentos motivados por um espírito empresarial capitalista, seu empreendimento,
como tantas outras carvoarias no estado do Pará, mantinha, paralelamente, comportamentos
típicos de uma empresa tradicional, baseada em um modelo de administração doméstico, tal
como o emprego de mão de obra familiar, quer dizer, sua própria força de trabalho, a da
esposa e de um filho adolescente no processo produtivo do carvão de babaçu. Outra conduta
típica de uma administração empresarial em moldes tradicionais, na qual o carvoeiro também
chegou a incorrer no curso de sua gestão da central de carbonização ecológica, fora a cessão
de meios de produção a catadores de coco babaçu e a pequenos produtores de carvão,
especialmente tambores e sacaria – pois, em dado momento de sua gestão, a central de
carbonização também chegou a funcionar como atravessadora de carvão, não somente como
produtora –, sem contudo lhes exigir garantias de produtividade. A relação de produção
estabelecida com os catadores e pequenos produtores, portanto, fundava-se na lógica do favor
e da confiança, característica de interações sociais patrono-clientelistas a que os trabalhadores
extrativistas de babaçu estavam habituados. F., destarte, como outros carvoeiros que,
auxiliados por indústrias guseiras, converteram-se rapidamente em pequenos empresários do
ramo cavoejeiro, adotara uma postura empresarial ambígua, que reproduziu e atualizou, sob
novos moldes, as estruturas produtivas conhecidas e experimentadas pelos extrativistas de
babaçu no sudeste paraense, realizando inclusive adiantamentos em dinheiro, conduta que
oferece sempre algum risco em termos de capitalização material; no entanto, propiciava uma
outra forma de capitalização apreciada e visada pelos trabalhadores, notadamente simbólica,
que lhes conferia reconhecimento e prestígio perante seus pares, convertendo-os em patrões e
modificando seu status social, haja vista que o papel de patrão, na zona do babaçu, admite
conteúdos específicos, relacionados à hierarquização, bem mais abrangentes em comparação
ao papel social do mero empresário capitalista, que não necessariamente age para auferir
capital simbólico, até mesmo à custa de perdas ou riscos materiais.
Este curioso fenômeno se explica pelo fato de os extrativistas transformados, algo
magicamente, em empresários, administradores de carvoarias, haverem, ao longo de um
duradouro processo de socialização em famílias e grupos eminentemente camponeses,
interiorizado um conjunto de esquemas de pensamento, ação, percepção e apreciação, isto é,
um habitus ou capital social, que lhes predispôs a adotar determinados comportamentos
econômicos (BOURDIEU, 2007), diversos dos que singularizam e são esperados de agentes
acostumados a lidar com o ofício empresarial capitalista em uma economia de mercado, ou
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seja, numa economia regulada por preços de mercado (POLANYI, 2000), especialmente
aquela à qual está vinculada a cadeia produtiva do ferro-gusa, um produto cujos preços são
determinados por oscilações econômicas de caráter mundial. O sistema de disposições
econômicas incorporado pelos trabalhadores extrativistas de coco babaçu, uma estrutura
estruturada, diante de sua célere reconversão em gestores de carvoarias, que lhes forçou a
adotar um novo modo de produção diferente do tradicional, passou a funcionar como
estruturas estruturantes, ou seja, como disposições que tendiam a ser continuadas, mas, ao
mesmo tempo, eram renovadas sob moldes diferentes dos originalmente estruturados
(BOURDIEU, 2005). No presente caso, as estruturas domésticas e patrono-clientelistas de
produção, em que os extrativistas foram economicamente socializados e nas quais laboraram
por certo período, que constituem um capital social de que os trabalhadores dificilmente
conseguiriam se desfazer tão abruptamente quando adentraram na economia carvoeira,
passaram a reproduzir-se de forma transfigurada, miscigenada com relações de produção
capitalistas, nas interações entre donos de carvoarias, funcionários da central e trabalhadores
extrativistas, o que demonstra a profunda ambiguidade que a terceirização da produção de
carvão de coco babaçu incutiu nos comportamentos econômicos de camponeses que antes não
produziam carvão para atender demandas industriais e mercadológicas, senão apenas para a
subsistência e reprodução familiar, em regime de economia doméstica e, muitas vezes,
vinculados a patrões, diante de quem atuavam como clientes.
* * *
Todavia, é importante ressaltar que nem todas as centrais de carbonização ecológica
terceirizadas adotaram um sistema empresarial de produção, ainda que ambiguamente
miscigenado com sistemas produtivos de caráter doméstico e patrono-clientelista. Um número
considerável de carvoarias organizou a produção carvoeira nos moldes do sistema de
empreita, como foi o caso das carvoarias em que trabalhou A., também carvoeiro de coco
babaçu de Vila São José. A. é filho de lavradores migrantes da Bahia, que se estabeleceram no
município de Abel Figueiredo, no estado do Pará. Antes de se envolver com o carvoejamento
de coco babaçu, o trabalhador laborou em diversas atividades urbanas e rurais. Encontrava-se
realizando o intermitente e mal remunerado trabalho na juquira (roça de pastagem) quando
foi contratado por uma central localizada em Vila Santana, sita às margens da Rodovia
13
Transamazônica, entre os municípios de São Domingos do Araguaia e Brejo Grande. O
trabalhador permaneceu, no entanto, apenas um reduzido período de seis meses laborando
nesta carvoaria, visto que, segundo dissera, passava meses sem receber os valores que lhe
eram devidos, pagos por produção calculada sobre os sacos de carvão produzidos, valendo
ressaltar que o carvoeiro era tão-somente um carbonizador, a quem não incumbia a realização
da coleta dos cocos, que ficava às custas e sob a responsabilidade do patrão que, por sua vez,
comprava os coquilhos de terceiros ou pagava catadores para coletá-los e os entregava ao
carvoeiro na central, a fim de serem carbonizados. O trabalho de carvoejamento era realizado
individualmente, segundo o carvoeiro: “Fazia sozinho, só eu, sem ter uma pessoa nem pra
abrir o saco pra eu encher; pra começar, nem pra cozinhar pra mim não tinha. Lá, eu fazia o
carvão, eu mesmo cozinhava, eu fazia tudo. Cheguei a produzir até 800 sacos” (A.,
nov./2010). Ademais de ser um trabalho solitário e extenuante, o patrão do carbonizador não
lhe oferecia equipamentos de segurança, apenas máscaras e alimentos para serem cozinhados
pelo próprio trabalhador, e nada mais do que isso, o que, somado à falta de pagamento,
tornava o serviço insustentável, além de assemelhado ao trabalho escravo.
Por esta razão, A. abandonou o trabalho na carvoaria para se dedicar à produção
autônoma de carvão por cerca de dois anos e seis meses, até novamente ser contratado por
outra central de carbonização ecológica sita no entorno da Vila São José, que funcionava
também adotando o modelo da empreita, na qual trabalhou por aproximadamente sete meses –
aliás, a mesma central que F. administrou por alguns anos, porém sob nova administração,
doravante nada empresarial e ainda mais perversa do que a carvoaria que A. trabalhara antes,
o que o levou a representar seu proprietário como um patrão ruim. Nesta carvoaria, o
carbonizador, além de receber por saco de carvão produzido e entregue já costurado, tinha
ainda que arcar com todos os custos da produção, desde a alimentação até os equipamentos de
segurança – exceto o óleo diesel, usado para agilizar a carbonização –, que comprava às suas
expensas a fim de minorar os riscos do processo produtivo, o que não impediu que, certa feita,
sofresse um acidente de trabalho, no qual perdeu a falange de um dos dedos da mão, devido a
uma queimadura. Esta central, conforme o modelo difundido pela siderúrgica Terra Norte,
possuía um alojamento que, contudo, não apresentava qualquer mobília para a estadia do
trabalhador, que também precisou custeá-la, haja vista que, para sua atividade ser rentável e
compensar o baixo valor pago pela produção, assim como a enorme quantidade de trabalho
despendida, o carvoeiro e sua família precisavam residir na carvoaria, embora tivessem uma
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casa em povoado próximo que constituía seu domicílio, onde somente os filhos, todos
adolescentes, pernoitavam. A necessidade de maximizar a produção para majorar a renda
familiar levou ao envolvimento de todo o grupo doméstico do carbonizador no processo
produtivo, a divisão do trabalho carvoejeiro estando assim formatada: o carvoeiro
responsabilizava-se exclusivamente pelo processo de carbonização, enquanto os demais
membros da unidade familiar, esposa (que o auxiliava quando não estava ocupada em serviços
domésticos, como a preparação de alimento) e filhos (em idade inferior à permitida
legalmente para o ingresso no mundo do trabalho, que laboravam em horário diverso ao que
estavam na escola), assistiam-no nas tarefas de encher os tambores, ensacar o carvão e
costurar os sacos, sem o uso de equipamentos de segurança, que eram utilizados apenas pelo
carbonizador, que exercia a atividade mais perigosa e insalubre, embora todo o processo
produtivo do carvão implicasse em alguma insalubridade, em razão da intensa produção de
fumaça, poeira e fuligem, inclusive as tarefas desempenhadas pelos adolescentes e pela
esposa. Com o engajamento de todo o grupo doméstico, porém, a atividade carvoeira tornara-
se economicamente mais vantajosa do que o outro horizonte laboral detido pelo camponês, o
intermitente e subvalorizado trabalho na juquira.
A experiência vivida por A., aqui brevemente descrita, revela como as relações de
produção se organizaram no interior das carvoarias de coco babaçu, muitas vezes sob patentes
mecanismos de exploração da força de trabalho dos carbonizadores e dos membros de seu
grupo familiar. A vivência nas chamadas centrais de carbonização ecológica foi, e por certo
ainda é, sentida por muitos trabalhadores incumbidos do processo de carbonização como uma
forma de trabalho análogo ao escravo, conforme definição legal vigente no Brasil, segundo a
qual constitui esta modalidade ilícita de labor todas aquelas práticas que implicam seja
trabalho forçado ou jornada exaustiva, seja condições degradantes de trabalho, ou ainda
restrições à locomoção dos trabalhadores, por qualquer meio, em razão da contração de
dívidas (art. 149 da Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003). Se, no caso deste carvoeiro,
não se vê a imobilização camponesa em função de endividamentos, nem mesmo o trabalho
forçado em sentido estrito, resta bastante evidenciado o caráter exaustivo da jornada laboral,
bem superior ao permitido pela legislação trabalhista brasileira, assim como condições
degradantes de trabalho, quer dizer, sem o uso dos equipamentos de segurança necessários ao
processo produtivo do carvão de coco babaçu em condições salubres e com controle dos
perigos. A organização social da produção carvoeira nestes moldes, deveras ilegais, decorre
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por certo da incorporação do sistema de empreita pelas centrais de carbonização, um sistema
tradicional de produção na fronteira amazônica em que os trabalhadores laboram por
produtividade, normalmente recebendo baixa remuneração pela produção, o que os força a
ingressar em jornadas exaustivas e a se submeterem a condições de trabalho depreciativas de
dignidade humana. A necessidade de aumento da produção, dado o estado das forças
produtivas, sobretudo a rusticidade da tecnologia utilizada para o carvojamento – realizado
em tambores metálicos –, leva os trabalhadores a envolver todos os membros do grupo
doméstico na produção carvoeira, até mesmo porque, na zona do babaçu, as relações de
parentesco, inclusive as entre pais/mães e filhos, muito cedo são convertidas em relações de
produção, por força de disposições culturais e da precisão (necessidade relacionada a
precárias condições materiais de existência), que obriga os trabalhadores a iniciarem suas
carreiras produtivas, na agricultura e no extrativismo, antes da entrada na adolescência.
O caso de A. – aliás, como também o de F. – dá-nos ainda elementos para a
compreensão da relação de produção estabelecida entre catadores e carvoarias, modalidade de
interação social que a maioria das centrais de carbonização valem-se para se abastecer de
cocos babaçu inteiros necessários à atividade carvoeira. Neste comenos, muitas centrais
autorizam extrativistas interessados em trabalhar autonomamente com o carvoejamento a
coletarem coquilhos em suas propriedades em troca do pagamento de renda, mensurada por
saco de coco cru ou carbonizado, às vezes os compromissando a lhes vender toda a produção
carvoeira, relação de produção esta que reproduz integralmente o sistema de trabalho
agregado tradicionalmente vigente na zona do babaçu, normalmente experimentada junto a
fazendeiros. Ademais, as carvoarias também costumam pagar trabalhadores, remunerados de
acordo com a produtividade individual ou familiar, para catarem cocos destinados ao
abastecimento de suas atividades econômicas, o carvoejamento em si sendo realizado por
outros trabalhadores, carbonizadores contratados no mais das vezes de modo informal e
igualmente pagos por produção. Embora muitas centrais vendam o carvão diretamente para as
siderúrgicas, acontece de algumas venderem sua produção para outras carvoarias, o que
sucede com aquelas que não possuem uma firma constituída legalmente, fato que as impede
de estabelecer relações comerciais com as siderúrgicas, dada a impossibilidade de emissão de
nota fiscal da mercadoria. Mas, ainda nestes casos, a atividade carvoeira demonstra-se
lucrativa porque não arca com custos de produção para além das despesas com o pagamento
de coletores e carbonizadores, ademais do combustível e da manutenção do trator ou
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caminhão utilizado para o transporte dos frutos in natura e, posteriormente, carvoejados.
Assim, a lucratividade do empreendimento carvoejeiro deriva de uma verdadeira mais-valia,
no sentido estrito do termo de Marx (2006), retirada sobre o trabalho de variegados
trabalhadores.
As centrais de carbonização ecológica vieram a favorecer entre os proprietários de
terra e os catadores, sejam eles também produtores autônomos de carvão de babaçu ou não, o
estabelecimento de relações de produção baseadas no sistema de trabalho agregado, o que
apresenta homologias não casuais com o modo de produção extrativista tradicional que,
muitas vezes, força os extrativistas sem terra, que precisam praticar o extrativismo em
babaçuais alheios, a ceder uma parte de sua produção a fazendeiros, uma prática que muito
lhes desagrada e que chamam de pagamento de meia ou de renda, invariavelmente feito em
produção. No caso da coleta para fins de carvoejamento, porém, a renda paga pelos coletores
nem sempre é traduzida em produção, como costuma se dar nas relações tradicionais entre
camponeses e proprietários de terra, ocorrendo às vezes mediante uma troca monetizada, em
que os trabalhadores pagam em dinheiro um determinado valor por saco de coco coletado.
Esta relação, segundo as categorias locais, é chamada de arrendamento, que não incide sobre
a terra, senão apenas sobre os cocos babaçu. No mais das vezes, os cocos catados podem ser
vendidos tanto in natura quanto carbonizados, o que é feito geralmente para as carvoarias,
que além de produzirem também atravessam a produção carvoeira camponesa, aumentando
assim suas margens de lucro. Tal prática, embora seja mais lucrativa para os atravessadores, é
tida como vantajosa economicamente por muitos trabalhadores autônomos, que conseguem
perfazer através dela rendas que dificilmente conseguiriam pelo medium de outras formas de
trabalho que encontram-se à sua disposição, como sobretudo o trabalho na juquira e o
extrativismo tradicional, realizado mediante os processos de quebra e beneficiamento do
babaçu. Daí porque ouvi de muitos trabalhadores que a coleta e queima do babaçu em terras
alheias são suas únicas fontes de renda, haja vista que não possuem terra e, por isso,
necessitam trabalhar no carvão, vendendo sua produção a carvoarias sitas nos arredores dos
povoados, o que lhes propicia rendas mensais que não raro ultrapassam um salário mínimo.
Por isso, muitos destes carvoeiros autônomos consideram a atividade carvoeira mais
importante economicamente – mesmo que para realizá-la paguem renda ao proprietário do
babaçual em que praticam o extrativismo, sujeitando-se ao sistema de trabalho agregado – do
que a quebra de coco e o trabalho na juquira, esta última forma de trabalho, frequentemente,
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a única alternativa laboral ao carvoejamento praticada pelos membros masculinos do grupo
familiar, através do qual recebem pagamento por diárias, normalmente bastante reduzidas.
Embora as carvoarias inicialmente só adquirissem dos trabalhadores os cocos babaçu
in natura, as vantagens econômicas da compra e venda do carvão produzido autonomamente
pelos camponeses logo foram identificadas pelas centrais que, por este motivo, não tardaram
a efetuar a transferência àqueles da tecnologia de carvoejamento do coco babaçu adequada ao
uso industrial do produto, o que foi sendo feito gradativamente por muitos atravessadores, na
maioria dos casos também produtores, que depois de um período em que compravam tão-
somente o coco inteiro de catadores de babaçu, oferecendo-lhes apenas a sacaria destinada à
coleta dos coquilhos, passaram a comprar dos extrativistas o carvão já produzido, alimentando
assim a formação de uma rede de carvoeiros autônomos que trabalham em regime de
economia familiar, aos quais, no entanto, foi preciso repassar o padrão tecnológico de
produção de carvão em tambores metálicos e, em muitos casos, até mesmo os próprios
tambores, a título de empréstimo, com exigência de exclusividade no fornecimento do carvão,
ou venda, paga mediante produção ou em dinheiro. O caso de A. – que, conquanto tenha
trabalhado em carvoarias, também exerceu o ofício carvoejeiro de forma autônoma por dois
anos e seis meses, assistido por membros de seu grupo doméstico – é típico de produção
autônoma nas condições que estão a ser expostas. Quando produziu carvão de forma
autônoma, o processo produtivo do carvão de coco babaçu era realizado tendo a participação
de seus filhos adolescentes, que estudavam em um turno e o auxiliavam em outro,
empreendendo as tarefas de amontoamento e coleta dos cocos, posto que a carbonização e o
ensacamento eram atividades feitas exclusivamente pelo carvoeiro. Este trabalhador não
possuía terra e necessitava coletar e carvoejar o babaçu em palmeirais de outrem, o que lhe
forçou a firmar uma relação de trabalho agregado com certo proprietário da terra, que
também era dono de uma central de carvoejamento e intermediava a comercialização da
produção camponesa com as siderúrgicas, para quem o carvoeiro pagava uma elevada renda
calculada sobre a quantidade de carvão produzido, na ordem de 40%, restando-lhe tão-
somente 60% da produção que, após ensacada, era vendida para o próprio fazendeiro, que
fornecia os tambores e a sacaria em troca da exclusividade na compra do carvão produzido.
Este tipo de relação de produção consiste na principal forma como se organizou o
carvoejamento autônomo do coco babaçu no sudeste paraense, em que os camponeses
trabalham em relativa liberdade, conquanto agregados a atravessadores, muitos destes
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concomitantemente fazendeiros e donos de centrais de carbonização, que lhes fornecem os
meios de produção necessários à produção do carvão, mas, em contrapartida, exigem-lhes
fidelidade na venda da produção, o que, apesar dos pesares, ainda é representado pelos
trabalhadores como uma relação vantajosa, pois se sentem mais livres do que se estivessem
laborando em carvoarias que, como visto, correntemente, dispõem-nos em formas de trabalho
análogas à escravidão. Ademais da relativa liberdade possuída, dependendo da quantidade de
trabalho despendida e do número de membros da família engajados no processo produtivo, o
carvoejamento autônomo de babaçu pode ainda ser um labor rentável se comparado a outros
horizontes laborais, chegando a perfazer, em alguns grupos domésticos, rendas aproximadas a
dois salários mínimos por mês, o que evidencia a importância do carvoejamento para a
economia familiar. Por esta razão, notadamente prática, muitos trabalhadores dispõem a
produção carvoeira em uma posição hierárquica superior a outras atividades econômicas,
como o extrativismo tradicional de babaçu. Esta hierarquização é reforçada pelo fato de o
carvoeiro não precisar arcar com qualquer custo de transporte da produção que, por ser
intermediado pelo dono do cocal, fica sempre a cargo do atravessador, que incumbe-se de
fazer chegar um caminhão ou um trator até o local de produção do carvão, geralmente um
pasto consorciado com babaçual pertencente ou não ao intermediário, que comercializa a
produção diretamente com as indústrias guseiras ou através de outro atravessador. Porém, a
produção de carvão autônoma, no mais das vezes realizada dentro de um cocal alheio – como
ocorre com extrativismo tradicional de babaçu –, apresenta a desvantagem de ser realizada
sem uma infraestrutrura adequada tanto à produção quanto ao armazenamento do carvão, o
que deixa a atividade carvoeira e os próprios carvoeiros suscetíveis a intempéries climáticas,
sobretudo às chuvas constantes no sudeste paraense, especialmente no período do inverno
amazônico, que prejudicam sensivelmente a produtividade e, por consequência, a
rentabilidade do carvoejamento durante os meses de janeiro a maio. No mais, estas
intempéries sujeitam os trabalhadores a situações de insalubridade no curso da produção, dada
a exposição à chuva na ocasião do carvoejamento, o que consistiu em uma das principais
queixas dos carvoeiros entrevistados quanto à produção autônoma de carvão, que motivou
muitos a se submeterem ao trabalho cativo nas carvoarias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Enfim, diante do que foi exposto, pode-se inferir que, no estado do Pará, a organização
social da produção carvoeira apresenta dois modelos estruturais básicos, que admitem,
obviamente, algumas variações, de conformidade com as experiências subjetivas de cada
agente e com as relações cultivadas entre trabalhadores, patronos e indústrias. O primeiro
consiste na estrutura produtiva catador → carvoaria → siderúrgica, onde o catador
geralmente é um trabalhador autônomo, remunerado por produção, que fornece os cocos in
natura para determinada carvoaria que, por sua vez, possui funcionários, os carbonizadores,
via de regra sem qualquer vínculo trabalhista formal com a central de carbonização, senão
apenas contratos tácitos de produção de carvão de babaçu, que são remunerados de acordo
com sua produtividade, o que os leva a envolver outros membros de seu grupo doméstico no
processo produtivo do carvão, a fim de majorar a renda familiar oriunda da atividade
carvoeira. As carvoarias não costumam fornecer aos carbonizadores qualquer equipamento de
segurança, somente alguns meios de produção (galpão, alojamento, tambores, sacaria,
barbantes e/ou querosene), o que os coloca, assim com a suas famílias, em situação de
extrema vulnerabilidade social, sujeitos inclusive a trabalho assemelhado ao escravo. O
segundo modelo consiste na estrutura pequeno produtor autônomo → carvoaria →
siderúrgica, em que o pequeno produtor é um fornecedor de carvão de babaçu à carvoaria
que, além de produzir, também funciona como atravessadora da produção carvoeira
camponesa. Neste segundo modelo, sói acontecer de os pequenos produtores trabalharem
agregados aos donos das carvoarias, muitas vezes fazendeiros, dada a necessidade de
coletarem cocos babaçu e produzirem carvão dentro de propriedades alheias, o que reproduz e
atualiza o tradicional sistema de trabalho agregado, agora sob novos moldes. Deste modo,
resta claro que, à diferença de outros lugares – como no norte tocantinense e no sudoeste do
Maranhão –, a organização da produção carvoeira no estado do Pará apresenta diversas
homologias com os modelos produtivos do carvão de madeira encontradiços no sudeste
paraense, também destinados a atender a demanda por carvão vegetal das siderúrgicas de
ferro-gusa, especialmente no que toca às forças produtivas, relações de produção e meios de
produção. Isto sucede porque, tal qual no caso do carvão de madeira, no Pará a produção de
carvão de babaçu estruturou-se no interior de carvoarias, que também funcionam como
atravessadoras de carvão, e constituem o centro gravitacional da economia carvoeira. Por
outro lado, nas carvoarias há contratação de funcionários para a realização do carvoejamento,
pagos por produtividade, ou seja, de conformidade com o sistema de empreita, uma
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característica da organização da produção de carvão de madeira. Por fim, as carvoarias, na
maioria dos casos, qual as que tomam como insumo a madeira, visam apresentar, ou ao menos
aparentar, um caráter empresarial de gestão do empreendimento carvoejeiro, embora usem,
veladamente, de trabalho assemelhado ao escravo, exploração da força de trabalho,
aproveitamento de mão de obra infanto-juvenil, mesclando formas de administração
supostamente empresariais com maneiras de gestão tipicamente domésticas e patrono-
clientelistas, até mesmo aviltantes da dignidade humana.
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