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Os Destruidores de Maquinas Christian Ferrer

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  • Christian Ferrer

    Os destruidores de mquinasIn memoriam

    Livre traduo do espanhol de Los destructores de mquinas In memoriam, de Christian Ferrer.

    e notas por Imprensa Marginal - 2006

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  • O cdigo sangrento

    Desde os tempos antigos a forca tem sido um castigo desonroso. Quando se medita sobre sua familiaridade estrutural com o pelourinho compreendemos por qu est situada no escalo mais alto reservado desonra de uma pessoa. A ela apenas tinham acesso os baixos estratos sociais delinqentes ou refratrios: a quem no se flexionasse os joelhos, se dobraria a nuca pela fora.

    Alguns justiados famosos da poca moderna foram mrtires: a Parsons, Spies1 e seus companheiros de cadafalso recordamos em cada 1. De Maio. Mas poucos/as recordam o nome de James Towle, que em 1816 foi o ltimo destruidor de mquinas a quem se quebrou a nuca.

    1 Mrtires de Chicago August Spies, Adolf Fischer, Louis Ling, George Engel, Albert Parsons, Samuel Fielden, Oscar Neebe e Michael Schwab trabalhadores presos durante as manifestaes de maio de 1886 na Praa Haymarket, marcadas por dura represso, com mais de cem mortos e dezenas de militantes presos. Parsons, Fischer, Spies e Engel foram executados na forca em 1887, e Lingg se suicidou na cela. Em 1893 a condenao foi anulada e os rus ainda presos foram libertados. Este episdio tornou-se smbolo da luta operria mundial e, pouco depois, o 1 de Maio foi declarado como dia internacional da luta dos trabalhadores, permanecendo ilegal por muito tempo.

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  • Foi forca gritando um hino luddista at que suas cordas vocais se apertaram em um s n. Um cortejo fnebre de trs mil pessoas entoou o final do hino em seu lugar, a capella. Trs anos antes, em catorze cadafalsos alinhados haviam balanado outros tantos acusados de praticar o luddismo, nome de um novo crime recentemente legalizado.

    Naquele tempo existiam dezenas de delitos tipificados cujos/as autores/as entravam ao reino dos cus passando pelos ns de uma corda. Por assassinato, adultrio, roubo, blasfmia, dissidncia poltica, muitos eram os atos pelos quais podia se perder o fio da vida. Em 1830, um garoto de apenas nove anos foi enforcado por ter roubado alguns gizes coloridos, e assim foi at 1870, quando um decreto humanitrio acomodou todos eles em apenas quatro categorias. Conheciam-se as duras leis que a todos/as contemplavam como The Bloody Code (O Cdigo Sangrento).

    Mas o luddismo se constituiu em um inslito delito capital: desde 1812, estragar uma mquina na Inglaterra custaria a pele. Na verdade poucos/as recordam os/as luddistas, ou ludds, ttulo com o qual se reconheciam entre si. De vez em quando, ilustraes daquela sublevao popular que se fez famosa devido destruio de mquinas tm sido retomadas por tecnocratas neoliberais ou por historiadores progressistas e exibidas como mostra exemplar do

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  • absurdo poltico: reivindicaes reacionrias, etapa artesanal da conscincia operria, revolta operria txtil encoberta por tintura rural. Enfim, nada que se aproxime da verdade. Uns e outros repartiram em partes proporcionais a condenao do movimento luddista, rechao que em primeiro caso interessado e em segundo fruto de ignorncia e prejuzo. A imagem que, esquerda e direita, se conta dos/as luddistas a de uma tumultuosa horda de pseudo-camponeses/as enraivecidos/as que golpeiam e esmagam as flores de ferro onde cresciam as abelhas do progresso. Em suma: o caminho que assinala a fronteira da ltima rebelio medieval. Ali uma paleontologia; aqui um bestirio.

    Ned Ludd, fantasma

    Tudo comeou em 12 de abril de 1811. Durante a noite, trezentos e cinqenta homens, mulheres e crianas lanaram-se contra uma fbrica de tecidos de Nottinghamshire destruindo os grandes teares a golpes de maa e ateando fogo nas instalaes. O que ali ocorreu logo se tornaria folclore popular.

    A fbrica pertencia a William Cartwright, fabricante de tecidos de m qualidade, mas munido de maquinaria nova. A fbrica, em si mesma, era naquela poca um

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  • cogumelo novo na paisagem: o habitual era o trabalho cumprido em pequenas oficinas.

    Outros setenta teares foram destroados nesta mesma noite em outros povoados nas proximidades. O incndio e o feixe de maas se deslocou logo aos condados vizinhos de Derby, Lancashire e York, corao da Inglaterra no incio do sculo XIX e centro de gravidade da Revoluo Industrial. O rastro que havia partido do povoado de Arnold se expandiu sem controle pelo centro da Inglaterra durante dois anos perseguido por um exrcito de dez mil soldados a mando do General Thomas Maitland.

    Dez mil soldados? Wellington mandava sobre muito menos quando iniciou sua movimentao, de Portugal, contra Napoleo.

    Mais que contra a Frana? Faz sentido: a Frana estava no ar das imediaes e das intimidaes; mas no era a Frana Napolenica o fantasma que assombrava a corte inglesa, e sim a Assemblia. Apenas um quarto de sculo havia passado desde o Ano I da Revoluo. Dez mil. O nmero um indcio do quo difcil foi acabar com os/as luddistas.

    Talvez porque os membros do movimento se confundiam com a comunidade. Em um duplo sentido: contavam com o apoio da populao, eram a populao.

    Maitland e seus soldados buscaram desesperadamente Ned Ludd, seu lder. Mas no o encontraram. Jamais

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  • poderiam t-lo encontrado, porque Ned Ludd nunca existiu: foi um nome prprio utilizado para despistar Maitland. Outros lderes que assinaram cartas burlescas, ameaantes ou peties se apelidavam Mr. Pistol, Lady Ludd, Peter Plush (felpa), General Justice, No King, King Ludd e Joe Firebrand (o incendirio).

    Algum remetente esclarecia que o selo dos correios havia sido carimbado nas proximidades dos Bosques de Sherwood2. Uma mitologia incipiente se sobrepunha a outra mais antiga. Os homens de Maitland se viram obrigados a recorrer a espies, agentes provocadores e infiltrados, que at ento constituam um recurso pouco usado na logstica utilizada em casos de guerra exterior. Eis aqui uma reorganizao antecipada da fora policial, a qual agora chamamos inteligncia.

    Se os acontecimentos que conseguiram ter em xeque o pas e o Parlamento foram devorados pelo incinerador da histria, justamente porque o objetivo dos/as luddistas no era poltico, mas social e moral: no

    2 Referncia lenda de Robin Hood, temido fora-da-lei que teria se abrigado com seu grupo na Floresta de Sherwood, em Nottingham. Suas aventuras passaram a ser cantadas por volta do sculo XIV. Entretanto, estima-se que, se realmente existiu, viveu durante o sculo XIII. Os registros histricos de tribunais contabilizam at 1300 pelo menos cinco homens acusados por atividades criminais que se utilizavam do nome Robinhood.

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  • queriam o poder, e sim poder desviar a dinmica da industrializao acelerada. Uma ambio impossvel.

    Apenas deixaram testemunhos: algumas canes, atas de juzos, informes de autoridades militares ou espies, notcias peridicas, 100.000 de prejuzos, uma sesso do Parlamento dedicada a eles/as, pouco mais. E os feitos: dois anos de luta social violenta, mil e cem mquinas destrudas, um exrcito enviado para pacificar as regies amotinadas, cinco ou seis fbricas queimadas, quinze luddistas mortos, treze confinados na Austrlia, outros catorze enforcados ante as muralhas do Castelo de York, e algumas pancadas finais.

    Por que sabemos to pouco sobre as intenes luddistas e sobre sua organizao? A prpria fantasmagoria de Ned Ludd o explica: aquela foi uma revolta sem lderes, sem organizao centralizada, sem livros capitais e com um objetivo quimrico: discutir de igual para igual com os novos industriais. Mas nenhuma revolta espontnea, nenhuma greve selvagem, nenhum estalo de violncia popular surge do nada. Leva anos de incubao, geraes transmitindo uma herana de maltrato, populaes inteiras macerando ideais de resistncia: s vezes, sculos inteiros transbordam em um s dia. A espoleta, geralmente, sacada pelo adversrio.

    Desde 1810, a alta dos preos, perda de mercados devido guerra e um compl dos novos industriais e

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  • dos distribuidores de produtos txteis de Londres para que estes no comprem mercadorias das oficinas das pequenas aldeias txteis incendiou o rastilho. Por outro lado, as reunies polticas e a liberdade de imprensa haviam sido proibidas com a desculpa da guerra contra Napoleo e a lei proibia a emigrao dos/as teceles/s, ainda que estivessem morrendo de fome: a Inglaterra no devia entregar sua especialidade ao mundo.

    Os/as luddistas inventaram uma logstica de urgncia. Ela abarcava um sistema de delegados/as e de correios humanos que recorriam aos quatro condados, juramentos secretos de lealdade, tcnicas de camuflagem, sentinelas, organizadores/as de roubo de armas no acampamento inimigo, pichaes nas paredes. Alm disso, se utilizaram da velha arte de compor canes de guerra, as quais chamavam de hinos. Em um dos poucos que foram resgatados se pode ainda escutar:

    Ela tem um brao/ E ainda que s tenha um/ H magia neste brao nico/ Que crucifica milhes/ Destruamos o Rei Vapor, o Selvagem Moloch, e em outra: Noite aps noite, quando tudo est quieto/ E a lua j cruzou a colina/ Marchamos para executar nossa vontade/ Com machado, lana e fuzil!.

    As maas que os luddistas usavam provinham da fbrica Enoch. Por isso cantavam:

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  • A Grande Enoch ir frente/ Detenha-a quem se atreva, detenha-a quem puder/ Adiante os homens valentes/ Com machado, lana e fuzil!.

    A imagem da maa transcender a breve epopia luddista. Na iconologia anarquista de princpios do sculo, hrcules sindicalizados se mostravam a ponto de esmagar com uma grande maa, j no mais mquinas, mas o sistema fabril inteiro. Todos estes blues da tcnica no devem fazer perder de vista que as autoridades no s queriam esmagar a revolta popular, como tambm buscavam impedir a organizao de setores operrios, em uma poca em que somente os industriais estavam unidos. Carbonrios, conjurados, a Mo Negra de Cdiz, sindicalistas revolucionrios: no sculo passado a forca foi o molde para muitas intentonas sediciosas.

    Fair Play

    Ningum mais recorda o que significaram em outra poca as palavras preo justo ou renda decorosa. Ento, como agora, uma estratgia de renovao e acelerao tecnolgicas e de realinhamento forado das populaes retorcia a paisagem.

    Roma se construiu em sete sculos, Manchester e Liverpool em apenas vinte anos. Mais adiante, na sia e frica, se implantariam enclaves em duas semanas.

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  • Ningum estava preparado para uma mudana de escala semelhante. A mo invisvel do mercado tato distinto do trato pactuado em mercados visveis e mo.

    O ingresso no consultado de nova maquinaria, a evaso semi-obrigada das aldeias e sua concentrao em novas cidades fabris, a extenso do princpio do lucro indiscriminado e a violenta descentralizao dos costumes foram caldo de cultivo da rebelio. Mas o lugar comum no existiu: os/as luddistas no renegavam toda a tecnologia, apenas aquela que representava um dano moral ao comum; e sua violncia foi dirigida no contra as mquinas em si mesmas (obvio: no arrebentavam suas prprias e bastante complexas maquinarias) e sim contra os smbolos da nova economia poltica triunfante (concentrao em fbricas urbanas, maquinaria impossvel de adquirir e administrar pelas comunidades). E de qualquer forma, nem sequer inventaram a tcnica que os/as fez famosos/as: destruir mquinas e atacar a casa do patro eram tticas habituais para forar um aumento de salrios desde cerca de cem anos antes pelo menos. Rapidamente se saber que as novas engrenagens podiam ser aferradas por trabalhadores/as cujas mos eram inexperientes e seus bolsos estavam vazios.

    A violncia foi contra as mquinas, mas o sangue correu primeiro por conta dos fabricantes. Na verdade, o que alarmou na atividade luddista foi sua nova forma

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  • simblica de violncia. De modo que uma conseqncia inevitvel da rebelio foi um encontro maior entre grandes industriais e administrao estatal: este um pacto que j no se romper.

    Os/as luddistas ainda nos fazem perguntas: Existem limites? possvel se opor introduo da maquinaria ou de processos laborais quando estes so nocivos para a comunidade? Importam as conseqncias sociais da violncia tcnica? Existe um espao onde as opinies comunitrias sejam ouvidas? Pode-se discutir as novas tecnologias da globalizao sobre supostos morais e no somente sobre consideraes estatsticas e planificadoras? A novidade e a velocidade operacional so valores? A ningum escapar a atualidade destes temas. Esto entre ns.

    O luddismo percebeu agudamente o incio da era da tcnica, e por isso propuseram o tema da maquinaria, que menos uma questo tcnica que poltica e moral. Ento, os fabricantes e os detentores de terras acusavam os/as luddistas de crime de Jacobinismo; hoje os tecnocratas acusam aos crticos do sistema fabril de nostlgicos. Mas os/as Ludds sabiam que no se estava enfrentando somente aos ambiciosos fabricantes de tecidos, e sim a violncia tcnica da fbrica. Futuro anterior: pensaram a modernidade tecnolgica antecipadamente.

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  • Eplogos

    27 de fevereiro de 1812 foi um dia memorvel para a histria do capitalismo, mas tambm para a crnica das batalhas perdidas. Os/as pobres violentos/as so tema parlamentar: habitualmente o temrio os/as contempla unicamente quando se referendam e limitam conquistas j conseguidas de fato, ou quando se lixam algumas arestas excessivas de duros pacotes oramentrios, mas ainda mais rotineiramente quando se debatem medidas exemplares.

    Neste dia Lord Byron3 ingressa ao Parlamento pela primeira e ltima vez. Desde Guy Fawkes4, que se empenhou em faz-lo voar pelos ares, ningum havia se atrevido a ingressar na Cmara dos Lordes com a inteno de contradiz-los. Durante a sesso, presidida pelo Primeiro Ministro Perceval, se discute a pertinncia

    3 George Gordon Byron (1788-1824), conhecido como Lord Byron, poeta britnico.4 Guy Fawkes (1570-1606), soldado ingls que participou da Conspirao da Plvora, um levante catlico contra a represso a eles dirigida pelo rei protestante Jaime I da Inglaterra. O objetivo era explodir o parlamento ingls durante uma sesso, em 1605, assassinando o rei e todos os parlamentares. Guy Fawkes era especialista em explosivos e seria o responsvel pela exploso dos 36 barris de plvora colocados sob o parlamento. Foi encontrado e, depois de preso e torturado, condenado forca.

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  • do agregado de um inciso ausente na pena capital, a qual se conhecer como Frame-breaking Bill: a pena de morte por quebrar uma mquina.

    Lordes versus Ludds: cem contra um. Naquela poca Byron trabalhava intensamente em seu

    poema Childe Harold, mas reservou um tempo para visitar as zonas amotinadas a fim de ter uma idia prpria da situao.

    J o projeto de lei havia sido aprovado na Cmara dos Comuns. O futuro primeiro ministro William Lamb (Guilherme Ovelha) votou a favor, no sem aconselhar ao resto de seus pares a fazer o mesmo pois o medo da morte tem uma influncia poderosa sobre a mente humana. Lord Byron tenta uma defesa admirvel, porm intil. Em uma passagem de seu discurso, trata aos soldados como um exrcito de ocupao e expe o rechao que havia gerado entre a populao:

    Marchas e contramarchas! De Nottingham a Bulwell, de Bulwell a Banford, de Banford a Mansfield! E quando por fim os destacamentos chegavam ao destino, com todo o orgulho, a pompa e a circunstncia prpria de uma guerra gloriosa, o faziam a tempo apenas para ser espectadores do que havia sido feito, para dar f da fuga dos/as responsveis, para recolher fragmentos de mquinas quebradas e para voltar a seus

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  • acampamentos ante a zombaria feita pelas velhas e a vaia das crianas.

    E adiciona uma splica: J no h sangue suficiente em vosso cdigo legal de modo que seja preciso derramar ainda mais para que se eleve ao cu e testemunhe contra vocs? E como se far cumprir esta lei? Se colocar uma forca em cada povoado e de cada homem se far um espantalho?. Mas ningum o apia. Byron decide publicar em um peridico um perigoso poema em cujos ltimos versos se lia:

    Alguns vizinhos pensaram, sem dvida, que era chocante, Quando a fome clama e pobreza geme, Que a vida seja avaliada menos ainda que uma mercadoria E a ruptura de uma estrutura conduza a quebra de ossos

    Se assim demonstrara ser, espero, por este sinal(E quem recusaria participar desta esperana)Que os esqueletos dos parvos sejam os primeiros a ser quebradosQuem, quando se lhes pergunta por um remdio, recomendam uma corda.

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  • Talvez Lord Byron sentiu simpatia pelos/as luddistas ou, talvez, - dando fim e a cabo detestava a cobia dos comerciantes, mas seguramente no chegou a se dar conta de que a nova lei representava, na verdade, o parto simblico do capitalismo. O resto de sua vida viver no Continente. Um pouco antes de abandonar a Inglaterra publica um verso ocasional em que se lia Down with all the kings but King Ludd.

    Em janeiro de 1813 George Mellor enforcado, um dos poucos capites luddistas que foram pegos, e uns poucos meses depois foi a vez de outros catorze que tinham atacado a propriedade de Joseph Ratcliffe, um poderoso industrial. No havia antecedentes na Inglaterra de que tantos tivessem sido hospedados pela forca em um s dia.

    Este nmero tambm um ndice. O governo havia oferecido recompensas suculentas em suas povoaes de origem em troca de informao incriminadora, nas todos os/as aldees/s que se apresentaram pela recompensa deram informaes falsas e usaram o dinheiro para pagar a defesa dos acusados. No obstante, a possibilidade de um julgamento justo estava fora de questo, apesar das frgeis provas contrrias.

    Os catorze justiados frente aos muros de York se encaminharam sua hora suprema entoando um hino religioso (Behold the Savior of Mankind). A maioria era metodista. Enquanto a rebelio se estendeu pelos quatro

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  • cantos da regio txtil, tambm se complicou o mosaico de implicados: democratas seguidores de Tom Paine (chamados painistas), religiosos radicais, alguns dos quais herdavam o esprito das seitas exaltadas do sculo anterior levellers, ranters, southscottians, etc. -, incipientes organizadores das Trade Unions (entre os ludditas presos no havia s teceles, mas todos os tipos de ofcios), emigrantes irlandeses jacobinos. Sempre ocorre: o internacionalismo antigo e em pocas antigas foi conhecido sob o espartaquismo.

    Todos os dias as cidades do baixa a milhares e milhares de nomes, todos os dias se desligam na memria as slabas de incontveis sobrenomes do passado humano. Suas histrias so sacrificadas em obscuros cesures. Ned Ludd, Lord Byron, Cartwright, Perceval, Mellor, Maitland, Ogden, Hoyle, nenhum nome deve perder-se.

    O General Maitland foi bem recompensado por seus servios: se lhe concedeu o ttulo nobre de Baronet e foi nomeado Governador de Malta, depois Comandante em Chefe do Mar Mediterrneo e depois Alto Comissrio para as Ilhas Jnicas. Antes de partir definitivamente, teve tempo ainda de esmagar uma revoluo na Cefalnia.

    Perceval, o Primeiro Ministro, foi assassinado por um alienado antes inclusive de que enforcassem o ltimo luddista.

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  • William Cartwright continuou com sua lucrativa indstria e prosperou, e o modelo fabril fez metstase. Um de seus filhos suicidou-se nada menos que em meio ao Palcio de Cristal durante a exposio Mundial de Produtos Industriais de 1851, mas o tronar da sala de mquinas em movimento amorteceu o barulho do disparo.

    Quando alguns anos depois dos acontecimentos morreu um espio local - um judas - que tinha permanecido nas redondezas, seu tmulo foi profanado e o corpo exumado vendido a estudantes de medicina.

    Alguns/mas luddistas foram vistos/as vinte anos depois quando se fundaram em Londres as primeiras organizaes da classe operria. Outros/as que tinham sido confinados/as em terras estranhas deixaram alguma pegada na Austrlia e na Polinsia. Roteiros semelhantes podem ser rastreados depois da Comuna de Paris e da Revoluo Espanhola. Mas a maioria dos/as habitantes daqueles quatro condados parecem ter feito um pacto de anonimato, em homenagem quela figura anterior chamada "Ned Ludd": nos vales ningum voltou a falar de sua participao na rebelio. A lio tinha sido dura e a lei da tecnologia o era ainda mais. Por vezes, em alguma taberna, alguma palavra, alguma cano; fiapos que ningum registrou. Foram um aborto histrico. Ningum aprecia esse tipo de fragmento.

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  • Vozes

    Por que deter-se na histria de Ned Ludd e dos/as destruidores/as de mquinas? Seus atos furiosos sobrevivem discretamente em brevssimas notas de rodap do grande livro autobiogrfico da humanidade e a consistncia da sua histria annima, muito frgil e quase absurda, o que s vezes promove a curiosidade, mas com maior freqncia o desinteresse pelo que no merece dinastia.

    No este um sculo para deter-se: o burgus do sculo passado podia dar-se ao luxo de divertir-se lentamente com um folhetim, mas os telespectadores deste sculo apenas dispem de um par de horas para folhear a programao.

    Vivemos na poca da taquicardia, como sarcasticamente a definiu Martinez Estrada. Reconstruir o curso da histria na contra corrente a fim de repousar no olho de seus furaces trabalho que s um Orfeu pode fazer. Ele se abriu a caminho do mundo dos mortos com melodias que destravaram fechaduras perfeitas. Ns podemos somente guiar-nos plos fogarus espectrais que explodem em velhos livros: sopros moribundos entre farrapos lingsticos.

    Qualquer outro vestgio j est dissolvido nos elementos. Mas se os elementos foram capazes de articular uma linguagem poderiam ento devolver-nos a

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  • memria guardada de tudo aquilo que tem circulado pelo seu "corpo" (por exemplo, todos os remos afundaram na gua em todos os tempos, ou todas as ferraduras que pisaram a terra, e assim por diante). Por sua vez, o ar devolveria a totalidade das vozes que tm sido lanadas pelas bocas de todos os humanos que existiram desde o incio dos tempos. Na verdade, milhes so as palavras ditas a cada minuto. Mas nenhuma teria se perdido, nem sequer as dos mudos.

    Todas elas teriam ficado registradas na transparncia atmosfrica, cuja relao com a audibilidade humana ainda est por pesquisar-se: seria algo assim como quando os dedos das crianas rascunham rpidos grafites ou agitados coraes em vidros embaados pelo prprio hlito. Se fosse possvel traduzir esse arquivo oral para nossa linguagem, ento todas as coisas ditas voltariam em um nico instante compondo a voz de uma soma maior ou a memria total da histria.

    No vento tem-se semeado vozes que so conduzidas de poca em poca; e qualquer ouvido pode colher o que em outros tempos foi tempestade. O vento to bom condutor das memrias porque o dito foi to necessrio quanto involuntrio, ou bem porque s vezes nos sentimos mais prximos dos mortos que dos vivos.

    Dentre tantas coisas ditas, no posso nem quero deixar de escutar o que Ben, um velho luddista, diz a uns historiadores locais do condado de Derby, cinqenta

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  • anos depois dos acontecimentos: "Me amarga tanto que os vizinhos de hoje em dia mal interpretem as coisas que ns, os/as luddistas, fizemos". Mas como poderia algum, ento, em plena euforia pelo progresso, prestar ouvidos s verdades luddistas? No havia, e no h ainda, escuta possvel para as profecias dos/as derrotados/as. A queixa de Ben se constituiu a ltima palavra do movimento luddista, por sua vez eco silenciado do gemido daqueles que foram enforcados em 1813. E talvez eu no tenha escrito tudo isto com o nico fim de escutar melhor a Ben.

    Apego-me e puxo do seu fiozinho de voz como o faria qualquer semelhante que percorresse este labirinto.

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  • Destruio das estruturasRecompensa de 200

    (...) na noite de tera-feira passada, por volta das dez horas, um grande nmero de homens armados de pistolas, martelos e porretes adentraram a residncia de George Ball, (...) de Lenton, prximo a Nottingham, disfarados com mscaras e bandanas em suas faces, e de outras formas, --- e aps golpear e insultar o citado George Ball, eles arbitrria e criminosamente quebraram e destruram cinco mquinas txteis, situadas na oficina: quatro das quais pertencentes a George Ball, e uma delas, de calibre 40, pertencente ao Sr. Francis Braithwaite, (...)

    (...) A qualquer pessoa que d informao do Ofensor ou dos Ofensores, ou quaisquer dos que

    (...) se envolveram neste crime, ele ou ela receber uma Recompensa de 200

    Nothingham - 25 de janeiro de 1812

    Imprensa MarginalCx. Postal 665 CEP 01059-970 SP/[email protected]

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