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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP
Os dois sujeitos do Kyrie de György Ligeti
BIAZIOLI, Ísis CMU/ECA/USP – [email protected]
SALLES, Paulo de Tarso
CMU/ECA/USP – [email protected]
Resumo: Este trabalho pretende discorrer a respeito dos dois sujeitos que formam a estrutura do Kyrie, segundo movimento do Réquiem (1963-65), de György Ligeti. A partir dos trabalhos de Clendinning (1989), Toop (1999) e Weyl (1997), o artigo investigará padrões intervalares que mostrarão a importância da simetria na construção dos cânones que compõem esse Kyrie. Palavras-chave: György Ligeti, Kyrie, simetria, fuga dupla, sequências intervalares
The two subject of the Kyrie by György Ligeti Abstract: This work intends to investigate the two subject of the Kyrie, the second movement of the Réquiem (1963-65) by György Ligeti. The article uses the researches of Clendinning (1989), Toop (1999) and Weyl (1997) and investigates intervals patterns that will show the importance of the symmetry in the canon construction that forms this Kyrie. Keywords: György Ligeti, Kyrie, symmetry, double fugue, interval sequence
1. Introdução
Discorreremos nesse trabalho a respeito da organização intervalar dos dois
sujeitos que compõem o Kyrie de Ligeti. Trataremos aqui do nível figurativo da obra. No
nosso caso, nos limitaremos a compreender a ordenação horizontal das notas empregadas nos
dois sujeitos da obra. Embora seja bastante difícil perceber precisamente a escrita figural na
obra de Ligeti, ainda sim, ela é base para trabalho textural e gestual criado pelo compositor.
Esses outros níveis de compreensão do Kyrie serão trabalhados em momentos futuros de
nossa pesquisa.
Pretendemos demonstrar a relevância de construções simétricas em Ligeti a partir
da observação das alturas na parte vocal do Kyrie. Assim, queremos colocá-lo ao lado de
importantes nomes da música do século XX, que se apropriaram de diversas maneiras
distintas do conceito de simetria em seus processos composicionais (Messian, 1966; Straus,
2005).
Apesar da importância do tema nas pesquisas musicológicas do século XX, parece
que tal abordagem não faz parte do corpo de trabalhos analíticos dedicados à obra de György
Ligeti. Contudo, não é absurdo pensar que este compositor tenha se preocupado com a
questão da simetria, já que teve como paradigma composicional seu conterrâneo Béla Bartók
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(Toop, 1999). Especificamente a obra que vamos tratar é, segundo Toop, uma espécie de
homenagem póstuma a Anton Webern (Toop, 1999: 104). Ambos os nomes da primeira
metade do século XX, tanto Bartók quanto Webern, são reconhecidamente compositores que
empregaram massivamente a simetria em suas obras. (Antonkoletz, 1990; Falqueiro, 2012).
Este trabalho é uma extensão dos apontamentos levantados no artigo
“Organização Intervalar nos Primeiros Compassos do Kyrie de György Ligeti” para o XXII
Congresso da ANPPOM (2012). Abordaremos não apenas os compassos iniciais do Kyrie,
como no trabalho anterior, focando agora no estudo do que chamaremos Sujeito 2 (aquele que
acompanha o texto litúrgico Christie eleison).
2. A simetria de alturas nos dois sujeitos do Kyrie de Ligeti
Falamos até aqui de dois sujeitos na construção do Kyrie, porque esse movimento
de obra é uma fuga, segundo a própria concepção de György Ligeti 1. Como veremos a seguir,
uma fuga construída a partir de dois sujeitos e nenhum contrassujeito.
Essa não foi à primeira aparição de uma fuga multitemática na história da música.
Importantes precedentes podem ser lembrados como, por exemplo, os últimos movimentos de
três dos seis Quartetos Op. 20 (números 2, 5 e 6) de Haydn. Aqui também é o próprio
compositor que define a estrutura dos movimentos, indicando na partitura que esses
movimentos são fugas a 4, 2 e 3 sujeitos, respectivamente. Vejamos os primeiros compassos
do Quarteto Op. 20 n. 5 e seus dois sujeitos.
Figura 1: Primeiros compassos do Quarteto Op. 20 n. 5 em F menor (Hob.III: 35). Os retângulos mostram os dois sujeitos que revezam seus papéis de pano de frente e de fundo ao longo da obra.
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No Kyrie de Ligeti, os dois sujeitos delineiam os dois versos distintos do texto
litúrgico. Chamaremos nesse trabalho de Sujeito 1 aquele que acompanha as palavras Kyrie
eleison e de Sujeito 2 a música relacionada ao texto Christie eleison. Esses sujeitos não são
simples linhas, mas construções microcanônicas a quatro vozes. Assim, cinco cânones (quatro
linhas de sopranos, quatro linhas de mezzos, quatro linhas de contraltos, quatro linhas de
tenores e quatro linhas de baixos), se alternam na execução dos dois sujeitos da fuga. Cada
um dos cânones é construído a partir da manutenção exata das alturas, mas não de seus
padrões rítmicos, em cada linha.
Nesse movimento [Kyrie] eu quis combinar a polifonia Flamenga com a minha micropolifonia. Eu usei Ockeghem como o meu modelo e adotei seu princípio 'varietas', onde as vozes são similares, mas não idênticas. É verdade que a fuga não existia no tempo de Ockeghem e, estruturalmente falando, esse movimento é uma estranha fuga de vinte vozes. (...) As partes canônicas são idênticas em suas notas, mas suas articulações rítmicas são sempre diferentes e nenhum padrão rítmico é repetido em cânone. (Ligeti apud Clendinning, 1989: 47)
Logo que nos atemos à partitura, percebemos que existem dois cânones bastante
distintos em sua organização intervalar. Enquanto um deles é formado exclusivamente por
intervalos de segunda e, em sua grande maioria, por segundas menores; o outro é uma
sucessão de saltos que chegam, em algumas vezes, a passar de uma oitava. O papel da
simetria também é diferente em cada um desses cânones. A peça é organizada a partir da
sucessão e sobreposição desses dois cânones. Como nenhum deles parece ter menor
relevância tanto para a escuta superficial quanto para a exploração da estrutura do Kyrie,
chamaremos esses cânones de sujeitos de uma fuga dupla.
Vejamos mais detalhadamente os sujeitos em separado.
O Sujeito 1 é todo construído a partir de duas pequenas células intervalares e suas
inversões: uma bordadura, e um tricorde cromático seguido de salto de segunda maior na
mesma direção. Vejamos as células intervalares do Sujeito 1 (figuras 1 e 2):
Fig. 1: Célula Intervalar a que dará origem às figurações intervalares do Sujeito 1.
Fig. 2: Célula Intervalar b que dará origem às figurações intervalares do Sujeito 1.
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A partir da justaposição de variantes das células intervalares a e b, pequenas
figurações baseadas em simetrias bilaterais 2 são formadas para a construção da sequência
intervalar do Sujeito 1 como mostra a figura 3..
Fig. 3: Sequência intervalar do Sujeito 1 (cânone de contraltos entre os compassos 1 e 21)
As únicas alterações que o Sujeito 1 sofre durante todo o movimento de obra são
transformações canônicas clássicas, especificamente, transposições e inversões. Muito
diferente do Sujeito 2, que nunca aparece da mesma maneira em cada entrada. Um sujeito que
parece estar muito mais ligado ao processo pelo de variação do que ao resultado temático-
figurativo, ele pode ter inclusive tamanhos diferentes.
O Sujeito 2 parte da intercalação de duas escalas cromáticas em movimento
contrário que podem se aproximar ou afastar (figuras 4 e 5).
Fig. 4: Uma das versões do Sujeito 2 (cânone de sopranos nos compassos 40-52). As duas sequências cromáticas estão marcadas pelos quadrados (sequência ascendente) e círculos (sequência descendente).
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Fig. 5: Uma das versões do Sujeito 2 (cânone de sopranos nos compassos 102-108). Retrógrado invertido e transposto da sequência apresentada na figura 4
O padrão entre o contraponto das duas sequências cromáticas do Sujeito 2
apresentado nas figuras 4 e 5 é, na maior parte dos casos, mantido. Em outras palavras, o
início de grande parte das entradas do Sujeito 2 segue exatamente essa sequência intervalar
(figura 4), seu retrógrado, sua inversão, o retrógrado da inversão (figura 5) ou ainda parte de
uma dessas. Além das duas aparições do sujeito 2 da figura acima, cada uma de suas entradas
é expandida. Esse processo está intimamente ligado à simetria bilateral, ou seja, grandes
palíndromos de alturas são criados pelo espelhamento de uma sequência de notas. É assim
que se organiza o cânone de mezzos entre os compassos 13 e 28 (figura 6), onde as nove
primeiras notas transpostas do cânone de sopranos da figura 4 são seguidas pelo seu exato
retrógrado, formando uma simetria bilateral com eixo na nota Re#.
Fig. 6: Uma das versões do Sujeito 2 (cânone de mezzos dos compasso 13 a 28).
Muitas vezes a última nota de um palíndromo será também eixo de outra simetria
bilateral que ampliará ainda mais o Sujeito 2 e assim temos entradas como a do exemplo
abaixo (figura 7). Depois da exposição transposta da sequência da figura 4, Ligeti faz o
palíndromo das últimas seis notas da sequência inicial. A última nota desse primeiro
palíndromo torna-se ainda eixo de uma segunda simetria bilateral. Da mesma maneira as
últimas notas do trecho são o exato retrógrado das quatro últimas notas do segundo
palíndromo, como podemos ver no cânone de mezzos dos compassos 82-91 (figura 7)
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Fig. 7: Uma das entradas do Sujeito 2 (cânone de mezzos entre o compassos 82-92)
Nem sempre o trecho utilizado para a formação dos palíndromos do sujeito 2 são
exatamente as primeiras notas transpostas da sequência apresentada na figura 4. É o que
acontece no cânone de tenores (figura 8), onde as dez notas centrais do cânone de sopranos
(figura 4) são transpostas e invertidas para serem utilizadas como base de uma das versões do
Sujeito 2 (figura 8).
Fig. 8: Uma das versões do Sujeito 2 (cânone de tenores entre os compassos 83-88)
Também são as dez notas centrais e transpostas que geram a entrada de contraltos
entre os compassos 23 e 55. Essa entrada parece ter sido criada de trás para frente. Primeiro os
palíndromos são apresentados para, em seguida, aparecer o trecho onde as duas sequências
cromáticas estão intercaladas (figura 9).
Fig. 9: Uma das versões do Sujeito 2 (cânone de contraltos nos compassos 23-55)
Contudo, essa apresentação racionalizada do processo de variação do Sujeito 2
não é o que Ligeti emprega no texto musical do Kyrie. A primeira das entradas desse sujeito
apresenta apenas uns resquícios das duas sequências cromáticas intercaladas (figura 10). Esse
falso contraponto só estará cristalino como na figura 4 a partir do compasso 40 no naipe de
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sopranos. Por outro lado, desde a primeira vez que aparece, Ligeti parece ressaltar a
importância dos palíndromos na constituição do Sujeito 2 (figura 10).
Fig. 10: A primeira entrada do Sujeito 2 (cânone de tenores nos compassos 1-23)
Não apenas pela cronologia musical criada pela sucessão das várias versões do
Sujeito 2, mas também pela massivo emprego de grandes palíndromos, vemos a relevância
que Ligeti dá ao pensamento simétrico desse sujeito, pelo menos no que se refere ao seu
trabalho figurativo.
Criando figurações a partir da justaposição de pequenas células intervalares
inversas entre si no Sujeito 1 ou formulando grandes sequências de notas não-retrogradáveis
(Messian, 1966; Kostka, 2006) no Sujeito 2, o Kyrie aparece repleto de simetrias na
organização de suas alturas.
3. Considerações Finais
Tentamos demonstrar a relevância da organização de estruturas simétricas na
escolha das alturas para os dois sujeitos empregados no segundo movimento do Réquiem de
György Ligeti, o Kyrie. Nosso trabalho esteve voltado principalmente às relações horizontais
e a partir da organização das alturas dos dois sujeitos, em especial o que chamamos de Sujeito
2.
Esses são os primeiros esforços de uma pesquisa de mestrado que pretende
analisar o Réquiem de Ligeti. Este trabalho apresenta, portanto, apenas resultados parciais
dessa pesquisa. Nossos objetivos futuros abrangem a investigação de outros parâmetros na
peça, assim como a compreensão da figuração de uma maneira mais ampla, como funcionam
as simultaneidades e o microcânone empregado na peça, por exemplo. Além disso,
buscaremos investigar os dois outros níveis de que fala Ferraz, o textural e o gestual para
melhor apreciação da obra em seus vários níveis de organização e escuta.
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Referências bibliográficas:
ANTONKOLETZ, Elliot. The music of Béla Bartók: a study of tonality and progression in twentieth-century music. California: University of California Press, 1990. CLENDINNING, Jane Pipper. Contrapuntal Techniquesin the Music of György Ligeti. Connecticut, 1989. Tese (Doutorado em Faculty of Graduate School of Yale University). FALQUEIRO, Allan. Síntese do Leste e Oeste: uma análise dos eixos simétricos no terceiro quarteto de cordas de Béla Bartók. Florianópolis, 2012. Dissertação (Mestrado na Universidade do Estado de Santa Catarina) KOSTKA, Stefan. Materials and techniques of twentieth-century music. 3 ed. Upper Saddle River: Prentice-Hall, 2006. LIGETI, György. Réquiem. Nr 4841. Germany: Henry Litolff’s Verlag & C. P. Peters, 1966. MESSIAN, Oliver. The technique of my musical language. Text with musical examples. Translated by John Satterfield, 1956. First French edition, 1944. Paris: Alphonse Leduc, 1966. TOOP, Richard. György Ligeti. London: Phaidon Press, 1999. STRAUS, Joseph. Introduction to post-Tonal Theory. 3 ed. Upper Saddle River: Prentice-Hall, 2005 WEYL, Hermann. Simetria. Trad. Victor Baranauskas. São Paulo: Edusp, 1997. 1 O compositor definiu o Kyrie como uma “estranha fuga a vinte vozes” (Ligeti apud Clendinning, 1989: 47) 2A simetria bilateral é um espelhamento em relação a um eixo simétrico. “Um corpo ou uma configuração espacial é simétrica em relação a um dado plano E, se possuir em si também sua própria reflexão E.” (WEYL, 1997: 16)