Os dramas de J. L. Moreno e a Filosofia da Diferença

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Psicodrama e Filosofia da Diferença

Citation preview

  • Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.

    261

    OS DRAMAS DE J. L. MORENO E A FILOSOFIA DA DIFERENALOS DRAMAS DE J. L. MORENO Y LA FILOSOFA DE LA DIFERENCIA

    THE J. L. MORENOS DRAMAS AND THE PHILOSOPHY OF DIFFERENCEJsio Zamboni, Sonia Pinto de Oliveira, Fabiana Davel Canal, Maria Elizabeth Barros de Barros

    Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria/ES, Brasil

    e Poliana dos Santos CordeiroUniversidade Federal Fluminense, Niteri/RJ, Brasil

    RESUMO

    O objetivo deste ensaio terico avanar no deslocamento dos dramas de Jacob Levy Moreno de uma poltica representacional para uma poltica da diferena. Metodologicamente, desenvolve uma anlise conceitual e uma crtica institucional, a partir das filosofias da diferena de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Flix Guattari. Questionam-se os projetos e a orientao das prticas pelos conceitos de psicoterapia, existncia, identidade e liberdade. A gnese social dos dispositivos morenianos abordada no sentido de elucidar a formao dos impasses relativos a tais projetos e prticas. Conclui-se que as potncias do falso funcionam como eixo problemtico com vistas a promover o deslocamento objetivado.

    Palavras-chave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofia da diferena; anlise institucional.

    RESUMEN

    El objetivo de este ensayo terico es avanzar en el desplazamiento de los dramas de Jacob Levy Moreno desde una poltica de representacin para una poltica de la diferencia. Metodolgicamente, desarrolla un anlisis conceptual y una crtica institucional, a partir de las filosofas de la diferencia de Michel Foucault, Gilles Deleuze y Flix Guattari. Cuestiona los proyectos y la orientacin prctica de los conceptos de psicoterapia, existencia, identidad y libertad. La gnesis social de los dispositivos morenianos se discute con el fin de elucidar la formacin de puntos muertos en estos proyectos y prcticas. De ello se desprende que las potencias de lo falso funcionan como eje problemtico para promover el desplazamiento objetivado.

    Palabras-clave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofa de la diferencia; anlisis institucional.

    ABSTRACT

    The aim of this paper is to advance the theoretical displacement of Jacob Levy Moreno dramas from a representational politics to a politics of difference. Methodologically, it develops a conceptual analysis and an institutional critique, from the philosophies of the difference of Michel Foucault, Gilles Deleuze and Flix Guattari. The projects and the practical orientation by the concepts of psychotherapy, existence, identity and freedom are questioned. The social genesis of morenian devices is approached in order to elucidate the formation of impasses on these projects and practices. It is concluded that the powers of the false function as a problematic axis to promote the displacement objectified.

    Keywords: Jacob Levy Moreno (1889-1974); philosophy of difference; institutional analysis.

  • Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia

    262

    Disposies para conversar

    Desejamos que este texto chegue ao leitor como uma conversa entre os dispositivos dramticos de Jacob Levy Moreno e as filosofias da diferena de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Flix Guattari. Trata-se de uma conversa que afirma uma poltica da diferena em luta com a perspectiva representacional do mundo, e, para tanto, convida como intercessor os dramas de Moreno. O modo de pensar representacional parte do princpio de que h verdade absoluta para alm dos acidentes e variaes da vida. Neste ensaio terico, buscaremos acompanhar os trechos em que o percurso da obra moreniana se associa com a poltica representacional, a fim de ultrapass-los. Desse modo, poderemos retomar as foras instituintes dos dramas em questo.

    Por filosofia da diferena queremos indicar as produes conceituais que se encaminham no sentido de romper com uma poltica cognitiva transcendente (Deleuze, 2006). A referida poltica compreende o conhecimento como acesso a um plano ideal, perfeito, imvel, imutvel, ou seja, verdadeiro de uma vez por todas. Por sua vez, a poltica cognitiva da diferena ao experimentar romper com esta busca da verdade sempre a mesma, sempre igual a si mesma postula a diferena como princpio. Nesse aspecto, a filosofia da diferena supe o primado da inveno, divergindo do pensamento representacional, para o qual a imutabilidade consiste em fundamento.

    Pelo fascnio com a possibilidade de criar algo novo, os dramas de Moreno a espontaneidade e a criatividade sero dimenses cruciais para o desenvolvimento de tais dispositivos dramticos afirmam a potncia de se articularem numa filosofia da diferena. Por distintos trabalhos que, por vezes, entrelaam-se, afastam-se e aproximam-se , Guattari, Foucault e Deleuze constroem esta filosofia. Por isto, eles funcionaro aqui para ns como vetores a forar os dispositivos dramticos de Moreno a se deslocarem em direo aos seus limites, onde suas potncias instituintes podem emergir pelas prprias bordas inconclusas, que podem se fazer passagens entre distintas mquinas de interveno coletiva.

    No se tratam de quaisquer intercessores os dramas de Moreno, mas uns que nos encantam: talvez pelo nosso amor ao teatro (que belo dispositivo!); talvez tambm pela fora que Moreno traz em seus escritos; ou, ainda, pela metodologia e pelas tcnicas que constri e que em muito tem nos ajudado em nossa lida como trabalhadores sociais ligados psicologia.

    Sempre com a preocupao de no tomar os conjuntos tcnico-conceituais como modelos, engajamos uma abordagem que promova o desmonte das estruturaes tericas, forjando passagens entre esses campos de interveno coletiva. Operaremos aqui uma anlise institucional dos dramas de Moreno roubando-os da gaveta filosfica que se chama existencialismo, onde eles podem ser reconhecidos, classificados e guardados a salvo de transformaes decorrentes dos usos situados que deles fazemos. Cabe destacar que roubar o contrrio de plagiar, de copiar, de imitar ou fazer como (Deleuze & Parnet, 1977/1998, p. 13), fazer uma colagem dadasta , produzir um duplo que, segundo Machado (1990, p. 16), significa desembaraar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo sistema, um sistema aberto.

    Este sistema, em que queremos situar os dispositivos dramticos de Moreno, no pretende legitim-los ou compreend-los, excluindo outras apropriaes possveis. O que nos interessa potencializar as variaes que os instrumentos tcnicos e conceituais sofrem nas intervenes situadas, arranjando-os de maneira que se abram a tais transformaes. Devemos, por essa via, perguntar-nos sempre sobre a institucionalizao da obra moreniana, assim como a da filosofia da diferena, que, como todas as demais, correm o risco de naturalizar-se, perdendo o mote dos movimentos do desejo, sempre sociais, em que embarcaram pelas suas construes.

    Nossa proposta desenvolver uma conversao entre esses distintos arranjos tericos, promovendo um deslocamento da produo moreniana relativa intercesso das prticas dramticas com as prticas psicolgicas, por uma perspectiva da filosofia da diferena. Sendo assim, no se trata de lidar com os terrenos de saber como definitivamente cercados e estabelecidos, como escolas-latifndios cuja relao dominante seria a de transmisso de um conhecimento funcionando como propriedade privada. , antes, caso de atravessamentos pela criao de aberturas e comunicaes entre tais campos, de acoplamentos de mquinas de interveno coletiva para hibridiz-las, desarranjando-as para produzir outra coisa em funo dos problemas concretos nos quais intervm. Isto implica uma srie de crticas referentes aos conceitos desenvolvidos no conjunto de dramas de Moreno (psicodrama, sociodrama, etc.), o que nos conduz, no limite, a uma transformao radical de tal conjunto, bem como das filosofias da diferena que so afetadas por este encontro.

    No pretendemos encerrar nem comear tal empreitada, mas abrir algumas sendas, indicar

  • Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.

    263

    possibilidades. Diversos outros encaminhamentos para a conversao entre os dramas de Moreno e as filosofias da diferena j se fazem (Baremblitt, s.d.; Naffah Neto, 1989; Pavlovsky & Kesselman, 1991). No presente artigo, sem poder articular nossa contribuio com estas outras, visamos contribuir forjando outras picadas nestes matagais terico-tcnicos. E, caso nos dispusssemos quela tarefa, sem dvida a pretenso de unificar os caminhos vrios seria de pronto por ns conjurada, pois o que nos interessa a diferenciao dos modos de conversar, a bifurcao das vias em funo das situaes problemticas.

    Empreenderemos aqui, por esta conversao, uma crtica dos conceitos fundamentais ao desenvolvimento dos dramas de Moreno de cura, existncia, liberdade e identidade, para, em seguida e em meio a isto, discutir a articulao da psicoterapia com o dispositivo teatral. Esta anlise institucional dos dispositivos dramticos morenianos tecer como fio condutor as potncias do falso perturbando a pretenso da verdade ltima.

    Projetar

    Ao iniciarmos, propomo-nos a recusa busca por uma universalidade metodolgica e de praticabilidade perseguida por Moreno (1946/2002, p. 17). Entendemos esta busca como traioeira, pois nela se prope um enrijecimento da prpria experincia das aes, quando a preocupao com o mtodo e os fins coloca as falhas, os imprevistos e as diferenciaes, em posio negativa, e leva-nos a tapar os ouvidos s implicaes dos encontros, que perturbam sempre nossas posturas e procedimentos bem definidos. Apesar da multiplicidade de experimentaes conceituais e tcnicas, Moreno busca, em sua trajetria de trabalho, sistematizar seu pensamento, produzir coerncia em meio aos desarranjos pelos quais se forjam seus aparelhos dramticos. O que nos parece acontecer, ento, um endurecimento que retm e estanca os fluxos de criao. As foras dos processos coletivos, que se do em diversos graus de intensidade e de contextos em Moreno, tornam-se pouco sensveis e expressivas quando a mquina de fazer drama dispe-se a evitar os desalinhos decorrentes dos contratempos. Seu corpo terico perde potncia de vibrar em diversas prticas ao enrijecer-se institucionalmente, ao fixar-se no ideal de universalidade cientfica.

    Saidon (1983, citado por Barros, 2007) ressalta trs perodos no trabalho moreniano: o primeiro, em Viena, marcado pelos seus escritos poticos, pelo teatro e pela entrada no terreno psicoteraputico; o segundo, nos Estados Unidos da Amrica

    (EUA), caracteriza-se pelo interesse nas relaes interpessoais e pela criao da sociometria; o terceiro o da institucionalizao do projeto moreniano no cenrio das prticas psicoteraputicas criao de associaes, escolas, regulao tica, em escala mundial. Moreno, formulando o psicodrama a partir do teatro da espontaneidade e de suas experincias na juventude com movimentos existencialistas, dentre outros, desenvolve, a seguir, o sociodrama e outros modos da ao dramtica. Integra-os, mais tarde, a projetos poltico-institucionais baseados no paradigma teraputico a sociometria e a socionomia se destacam dentre os mencionados projetos , produzindo campos de coerncia para a obra moreniana.

    Ns, entretanto, entendemos que tais divises e integraes, percebidas historicamente, no expem as problemticas dos dramas de Moreno em seus processos de criao. Optamos, ento, por seguir atentos os movimentos assumidos em sua trajetria, antes que por uma abordagem epistemolgica de sua obra. A partir de Figueiredo (1995), que prope transitarmos da epistemologia tica das prticas e discursos psicolgicos, queremos empreender uma abordagem tica da obra moreniana, em ateno s foras constituintes dos territrios de trabalho em que atua, pela articulao do teatro com a psicoterapia, acompanhando as vrias modulaes que sofrem por conta do jogo de foras coletivas. Isto desloca para segundo plano, um plano do que recognoscvel, as demarcaes relativamente estveis pelas quais se pode dividir o trabalho de Moreno. Ater-nos-emos aos conflitos constituintes dos desvios pelos quais partem alguns caminhos dos dramas de Moreno. E, para tanto, privilegiaremos, inicialmente, a crtica de alguns conceitos utilizados por Moreno a partir da filosofia da diferena.

    Curar

    Moreno vincula-se fundamentalmente s ideias de psicoterapia, cura e patologia psquicas herdadas de sua formao psiquitrica. A noo de cura se d no campo psicolgico a partir da suposta descoberta da causalidade das doenas psquicas, da desestabilizao (Teixeira, 1996). A realidade restritiva e o sujeito perde seu equilbrio por no conseguir criar papis adequados ao mundo social, diz-nos Moreno (1946/2002). Da surgiria a necessidade de catarse: a cura por meio da qual se daria a integrao dos papis num eu. A estratgia para a cura a dramatizao dos papis. Esta dramatizao permitiria ao indivduo exteriorizar seus conflitos internos, dando lugar representao de novos papis originais e adaptados aos problemas que

  • Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia

    264

    o confrontam. A liberdade do indivduo se faria com o exerccio da espontaneidade (fator E), em busca de originalidade, visando adaptao no mundo.

    Tal procedimento se far bloqueador proposta deleuzeana (Deleuze, 1968/2006, 1969/2007b) de afirmao dos simulacros, formas sem modelos prvios, medida que se assumir a noo de cura psquica em rechao desestabilizao. Ao sinonimizar doena e desestabilizao, resvala-se em afirmar a realidade como transcendente vida em suas variaes acidentais na histria. Ao nos prendermos s categorias patolgicas, estaramos ainda no campo do negativo, da falta. No neste campo que nos propomos passear. Quanto ao processo dramtico de cura, se j sabemos a causa, podemos logo saber a maneira de curar a psicoterapia e seu desfecho. A pea teatral sesso psicodramtica est completa, portanto. Todo o processo inventivo se v a diante de um impasse: as possibilidades encaixam-se no molde pronto e acabado da psicoterapia que as far vir tona.

    No entanto, cabe enfatizar que Moreno simultaneamente desponta para uma nova concepo de sade ao colocar tal noo em questo por meio dos seus dramas. A partir dos encontros nestes dispositivos, a sade figura como criao e processo. Logo, a contradio que apontamos , fundamentalmente, um paradoxo. A enfermidade no seria, ento, processo, mas parada do processo e o criador, no um doente, mas aquele capaz de curar a si mesmo e ao mundo (Birman, 2000). Mas tudo isso se revela ainda muito nebuloso em Moreno. Convoca-se aqui a ateno postura que se adota ao utilizar os dispositivos, pois nas situaes concretas de experimentao que o impasse poder ser desmontado. Esta postura ir facilitar, ou atrapalhar, os movimentos de transformao das estratgias psicodramticas em funo dos desafios contemporneos, assim como ir facilitar, ou atrapalhar, os movimentos de produo de subjetividade por conta da afirmao de modos de vida singulares e potentes, capazes de romper com as modelizaes subjetivas hegemnicas atreladas ao capital.

    Existir

    Subjetividade, neste sentido, fabricao social e no uma propriedade privada do indivduo referida a um eu, a um sujeito separvel do mundo. Em circulao nos espaos sociais, a subjetividade assumida e vivida por ns, cada um, particularmente. Os processos de subjetivao, ou processos de singularizao das maneiras de existir, so entendidos como os modos pelos quais os indivduos ou grupos sociais forjam-se como sujeitos coletivos.

    Ao atentarmos para o conceito de catarse, to central ao psicodrama, percebemos que essa noo compreendida como a soluo de conflitos psquicos, o livrar-se da inquietao (Moreno, 1946/2002, p. 17). A inquietao vista com uma marca negativa. E a integrao do eu a outra face da moeda, numa busca por estabilizao. Vemos a que outra grande marca do pensamento de Moreno uma filosofia existencialista. H, em sua forma de pensar, um objetivo de realizao do humano num ponto ideal da existncia, no momento em que se externaliza e se integra o eu interior numa existncia unificada individualizada e totalizada.

    No nos parece possvel, todavia, encontrar um sentido verdadeiro para a vida, fundamental de uma vez por todas, que esteja fora dela prpria em toda a sua imanncia, em seu criar e destruir cotidiano, em seus sentidos plurais e produtores de diferenas, nos constantes fluxos e intermitncias que a atravessam num movimento intempestivo de criao desses sentidos. Sendo assim, pensar o sentido da vida como integrao do eu evoca uma dimenso transcendente, uma situao ideal em que se pode viver plenamente. Ao trabalhar com a noo de sentido, seria preciso abandonar qualquer referncia que implique este transcendente existencial, um alm do plano de produo da realidade, que tende a nos fazer desembocar numa essncia afastada da vida. Por a, Deleuze (1969/2007b, p. 75) afirma que o sentido

    no algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinaes. No pertence a nenhuma altura, no est em nenhuma profundidade, mas efeito de superfcie, inseparvel da superfcie como de uma dimenso prpria.

    Sustentamos uma noo de sentido que sempre plural, assumindo o primado da experimentao no campo da vida concreta, de seus acontecimentos, ou seja, do intempestivo. E por intempestivo entende-se a emergncia de uma diferena desestabilizadora das formas vigentes, um acontecimento o qual nos separa do que somos, dos territrios existenciais que habitamos, e coloca uma exigncia de criao. Foucault (1971/2011, p. 57) nos aponta que

    o acontecimento no nem substncia nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento no da ordem dos corpos. Entretanto, ele no imaterial; sempre no mbito da materialidade que ele se efetiva, que efeito.

    Acontecimento, por conseguinte, aquilo que a partir das relaes de fora irrompe desmanchando, desestabilizando territrios existenciais e constituindo outros modos de vida, ao abri-los a novas entradas para outros campos de possibilidades. A noo de territrio

  • Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.

    265

    em Guattari (Deleuze & Guattari, 1980/1995; Guattari & Rolnik, 1986/2000) trabalha o conceito de existncia como produo, e no como transcendente ao mundo. Os territrios existenciais esto sempre abertos; apesar de, por vezes, linhas duras reterritorializantes lhes demarcarem terrenos como propriedades privadas de um sujeito. A noo de territrio existencial em Guattari, portanto, sempre ter como fora fundamental o movimento de desterritorializao, pelo qual certo modo de existncia pode desmanchar-se, abrindo-se para o processo de criao de outras vias de existncia.

    H no conceito de territrio, em filosofia da diferena, uma crtica radical s abordagens existencialistas do mundo no que forjam para a existncia um transcendente absoluto que seria sua origem ou fim, fundamento ou sentido, totalizante e unvoco. Trata-se de tomar a existncia como um territrio, em vez de encarar a imanncia do mundo como uma fora de priso da existncia. A prpria essncia do existir se faz como construo. A subjetividade uma paisagem que se habita, em vez de uma interioridade fechada sobre si mesma como uma identidade (Deleuze, 1993/1997, pp. 68-69).

    Liberdade e identidade

    Abandonamos a perspectiva de trabalhar com um mundo privado do sujeito, em busca da sua identidade, do seu eu essencial, pela tentativa de provocar o sujeito a ser ele mesmo a partir do drama. Segundo Guattari (Guattari & Rolnik, 1986/2000), a identidade

    um conceito de referenciao, de circunscrio da realidade a quadros de referncia, quadros esses que podem ser imaginrios.... a identidade aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um s e mesmo quadro de referncia identificvel [grifo nosso].

    Propomo-nos, ao revs, trabalhar com as singularidades afirmando-as em seu devir, em sua diferena pura; uma diferenciao por si prpria, que conjura a possibilidade de um mesmo de si, ou seja, sem fixao a modelos.

    Ao rompermos com a postura identitria em relao ao eu, rompemos tambm com a ideia de liberdade a ela vinculada. A liberdade, em Moreno, um dos princpios e objetivos da prtica psicodramtica, pedra de toque que sustenta seu empreendimento e que termina por se vincular noo de cura: um conceito que fundamenta os dispositivos criados por ele, seus dramas. O espao cnico torna-se local de experimentao da liberdade, no exerccio de papis criativos. No palco, o indivduo fica livre em relao

    s tenses insuportveis do mundo e pode expressar-se. Ali tem liberdade para experimentar e criar papis que permitam ao sujeito resolver os problemas que o confrontam l fora no mundo e, depois, poder retornar a este mundo. Tal retorno, por suas consequncias, denominado adaptao, adequao.

    Com Michel Foucault (1971/2011), entendemos a liberdade como a capacidade de questionarmos nossos modos de existncia e criarmos outros registros de referenciao. Ou seja, a problematizao desses modos, a problematizao das prticas (sempre sociais) que fazem alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e se constituir como objeto para o pensamento sob a forma da reflexo moral, do conhecimento cientfico, da anlise poltica, e assim por diante.

    Ser livre, portanto, ser capaz de questionar a poltica, de questionar a maneira como o poder exercido, contestando suas reivindicaes de dominao. Esse questionamento implica nosso ethos, nossas maneiras de ser ou de tornarmos quem somos. A liberdade , pois, uma questo tica. (Rajchman, 1993, p. 130, grifo nosso)

    A definio foucaultiana de liberdade est crucialmente ligada aos modos de existir imanentes, implicados diretamente com os jogos de fora construtores da realidade. Logo, aqui j se impe uma ruptura no conceito de liberdade desenvolvido por Moreno, pois seria o caso, ao invs de pretender a ausncia de relaes de fora, tomar a luta como dimenso inextrincvel da existncia. Ao afirmarmos nossas formas de viver, construmos tambm o mundo em que vivemos como arranjos provisrios em tensionamentos constantes. A resistncia aos apelos de dominao exerccio da liberdade para Foucault acontece no plano imanente das foras, nos jogos de poder, no qual todos esto implicados.

    Resistir questionar o verdadeiro, buscando desmont-lo em sua constituio como produtor do campo social. A verdade institui-se numa determinada forma que as relaes de poder assumiram. Desmont-la significa criar outras formas, outras relaes de poder. Assim, no se trata de escapar das relaes de poder de uma vez por todas, mas de escapar entre elas, por elas, afirmando passagens. O princpio tico assumido por Foucault a partir desta compreenso o da liberdade: o poder cerceamento e limite ao fluxo da vida, mas, paradoxalmente, o que possibilita vida ganhar forma e meio para existir. Cabe-nos questionar incessantemente em que formas e em que registro de existncia estamos funcionando, em vez de buscarmos num transcendente vida o meio ideal de soluo dos conflitos. Ser livre estar neste exerccio.

  • Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia

    266

    Guattari (Guattari & Rolnik, 1986/2000), por sua vez, sugere que, ao invs de pretendermos a liberdade (noo indissoluvelmente ligada conscincia), temos que retomar o espao da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalstica, a faam desmoronar (p. 30). A sociedade capitalista produziu e continua atualizando processos de subjetivao atrelados ao capital, cuja produo diz respeito aos comportamentos, sensibilidade, percepo, memria, s relaes sociais, s relaes sexuais, aos fantasmas imaginrios (p. 28). A economia subjetiva capitalista produz indivduos, o individual. Resultado de uma produo de massa, os indivduos so normalizados, normatizados, serializados. A identidade funciona assim como reterritorializao em meio aos fluxos dispersos dos modos de vida.

    Guattari prope, dessa forma, o abandono do conceito de liberdade, ao fazer a anlise de sua produo como um axioma da subjetividade capitalstica. Considerando o universo de sentidos implicados neste conceito, constitudos na histria fortemente atrelados s ideias de livre arbtrio e iniciativa, podemos, com Guattari, abandonar o conceito. Ou experiment-lo em outros sentidos, como fez Foucault.

    Com Foucault (1984/1994), afastando-nos da viso fenomenolgica e antropolgica, compreendemos que as experimentaes acontecem em planos de correlao entre campos de saber (formaes do que se pode enunciar), tipos de normatividade (referindo-se aos sistemas de poder que regulam as prticas) e formas de subjetividade (formas pelas quais os indivduos ou grupos sociais se reconhecem como sujeitos face a questes especficas).

    Diante de tais consideraes sobre liberdade e identidade, possvel diagnosticar nas prticas psicodramticas certa impotncia ao lidar com as redes de saber-poder-subjetivao, no sentido de transform-las, quando se limitam a colocar em questo as existncias num mundo dado, naturalizado, compreendido como repressivo. O vis tomado neste impasse no questionar o mundo como construo, mas, meramente, apostar na subjetividade, tomada como transcendente s relaes, como capaz de suportar o mundo. A aposta a de que, medida que o sujeito puder expressar sua interioridade, sua liberdade estar garantida.

    Ao tratar os dramas como meios pelos quais se pode acessar um plano de experincia transcendente s relaes de saber e poder, Moreno esquiva-se anlise dos aparelhos tcnico-conceituais como instituies constitudas por regras, normas e valores. Porm, esta anlise crucial para se desenvolver os dispositivos

    dramticos, para que no se tornem conserva cultural. Se nisso que passam a consistir, instala-se uma contradio, uma anulao das foras entre si nos dramas de Moreno. A conserva cultural, definida por Moreno (1946/2002, pp. 158-159),

    prope-se ser o produto acabado e, dessa maneira, adquiriu uma qualidade quase sagrada. o resultado de uma teoria de valores geralmente aceita... A conserva cultural passou a ser o mais alto valor que era possvel produzir... uma mistura bem-sucedida de material espontneo e criador, moldado numa forma permanente. Como tal, converte-se em propriedade do grande pblico, algo de que todos podem compartilhar. Devido sua forma permanente, um ponto de convergncia a que podemos regressar a bel-prazer e sobre o qual pode ser assente a tradio cultural. Assim, a conserva cultural uma categoria tranquilizadora.

    Barulho em praas, palcos, ruas, grupos

    Ao se perguntar sobre a constituio da sociedade em que vive, Moreno assume uma postura existencial, reduzindo o ser humano a uma abstrao em que todos somos livres e iguais em essncia. Coimbra (1995) permite-nos concluir que a produo moreniana apresenta, em muitos momentos, os princpios da filosofia liberal-capitalista que coloca todas as pessoas livres e iguais em condies, podendo transcender sua situao, visto que possui capacidade de escolha. A perspectiva de atuao que se encaminha do teatro da espontaneidade institucionalizao do teatro teraputico permeada por uma poltica essencialista do humano. Mas, ainda Coimbra (1995, p. 246) quem afirma que

    at por no entender as tcnicas como instrumentos neutros mas como ferramentas que podem servir para manter e legitimar ou, ao contrrio, desnaturalizar aes e transformar realidades, segundo as diferentes formas como so encaradas e manejadas , torna-se possvel s prticas psicodramticas a produo de espaos singulares, o fortalecimento de movimentos instituintes, mesmo que de forma provisria.

    No incio do sculo XX, em Viena, o drama moreniano nasce ligado aos movimentos sociais com crianas, prostitutas, loucos, dentre outros auxiliando a dar passagem aos fluxos coletivos. Mas, pouco a pouco, especialmente a partir do segundo momento de sua obra e da institucionalizao do psicodrama, vo se perdendo as potncias disruptivas dos dispositivos morenianos.

    Em relao ao entendimento e utilizao do teatro por Moreno, isto vai se tornar problemtico.

  • Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.

    267

    Em sua trajetria, acaba por institucionalizar um lcus estrito de ao, afirmando que

    um psicodrama, se necessrio, pode ser designado em toda e qualquer parte, onde quer que os pacientes estejam, no campo de batalha, na sala de aula ou no lar. Mas a resoluo final de profundos conflitos mentais requer um cenrio objetivo, o teatro teraputico. (Moreno, 1946/2002, p. 18)

    Como Moreno chega a tal contraposio entre a prtica transformadora situada em diversos meios sociais e a prtica destacada do campo social pelo palco teraputico? Habita nesta proposio moreniana uma (re)lutncia que est encarnada nos instrumentos psicodramticos: investir a diversidade da problemtica social onde quer que ela irrompa ou isol-la num meio ideal, supostamente apartado dos mltiplos tensionamentos da vida, em funo de uma cura.

    Moreno abandona, como j dito, os encontros cotidianos nas ruas e praas com os marginais, dos primrdios de seu trabalho, ao tentar produzir no teatro tradicional uma forma espontnea de teatralidade. Nesta tentativa ousada, Moreno acaba caindo numa terrvel armadilha ao tentar questionar na instituio teatral os limites que a verdade impe farsa.

    Uma primeira cilada dispara a partir da criao do teatro da espontaneidade (stegreiftheater), em 1922. At ento, a teatralidade acontecia um tanto revelia do teatro institucionalizado, junto aos bandos de gente em qualquer canto. O teatro da espontaneidade pretende questionar a instituio social do teatro vinculando-se a ela, transformando-a a partir de dentro. Entretanto, muito deste movimento viu-se enfraquecido e bloqueado ao ser encarado, em muitos espaos, como mais uma abordagem teatral, mais uma configurao terico-tcnica das formas dramticas. O enquadre teria por efeito neutralizar a perturbao institucional pretendida.

    Uma segunda cilada se compe com a estruturao do teatro teraputico e do psicodrama pelo teatro da espontaneidade. Esse outro impasse ocorre devido resistncia do pblico e da imprensa vienenses. Muitos companheiros de trabalho de Moreno abandonam a experimentao no teatro da espontaneidade em virtude das acusaes difamadoras de que se trataria de uma simulao, um ludbrio com o intento de chamar a ateno. A espontaneidade conceituada por Moreno, que a advoga como fundamento para o teatro ligado vida cotidiana, encarada como charlatanismo. Face a face com este dilema, voltei-me temporariamente [grifo nosso] para o teatro teraputico, deciso esta estratgica e que provavelmente salvou do esquecimento o movimento psicodramtico, diz-nos

    Moreno (1923/1984, pp. 19-20). Contudo, tal deciso ganhou contornos duros de aparente irreversibilidade com o sucesso da proposta psicodramtica e, a seguir, com a mudana de Moreno para os EUA. O instante ttico ganhou ares de descoberta da verdade teraputica ao fixar-se o psicodrama num modo institudo, em vez de se retomar o movimento instituinte.

    Moreno acaba por compor com a subjetividade vigente poca, nestes embaraos com as foras sociais em jogo, uma aliana apaziguadora e promissora. A articulao do teatro com a proposta de psicoterapia acaba por enfraquecer os vnculos entre os dramas de Moreno e as problemticas imediatamente coletivas. Moreno (1923/1984, p. 20) argumenta que

    era mais fcil advogar, num teatro teraputico, a espontaneidade integral; as imperfeies estticas de um ator no podiam ser perdoadas, mas as inexatides e incongruncias de um paciente mental que eventualmente se exibissem no palco eram no apenas mais toleradas como esperadas e, muitas vezes, calorosamente bem-vindas.

    Moreno assume uma concepo de vida que abarca a doena como anormalidade, imperfeio e irregularidade, como j explicitamos, evocando a piedade como forma de existir em meio crise que seus movimentos geravam na subjetividade da poca. Esta deciso temporria acaba por tornar-se relativamente definitiva. No se retoma o projeto do teatro da espontaneidade cem por cento, profundamente vinculado aos movimentos contestadores da subjetividade hegemnica poca, questionadores dos lugares imputados s crianas, s prostitutas, aos loucos, falsrios de todos os tipos, simulacros que assolam as modelizaes que investem ideais de existncia, problematizadores das verdades absolutas do humano. Moreno declara ainda, como mais evoluda, a forma intermediria do teatro de catarse, como instituio plena do movimento que acabou por ganhar cunho teraputico em sua sntese de inteligibilidade como psicodrama.

    De acordo com Coimbra (1995), no incio da dcada de 1970, no Brasil, o psicodrama faz a crtica aos especialismos, terapia centrada exclusivamente na fala e operada individualmente (referindo-se hegemonia da psicanlise nesse perodo), e ajuda a engrossar as manifestaes contestatrias da poca. Mas, aos poucos, vai deixando de realizar uma crtica radical das produes histrico-sociais das relaes pelas suas prticas de interveno. Como acabamos de ver, o mesmo se deu com a passagem do teatro da espontaneidade em Viena ao psicodrama que encontrar solo frtil nos EUA. Muito se perdeu da potncia de transformao social por estes movimentos.

  • Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia

    268

    No Brasil, os sociodramas pblicos um dos dramas de Moreno, focado nos conflitos grupais sofrem grande resistncia por parte dos psicodramatistas brasileiros, uma vez que rompem com as prticas de consultrio que sustentam o intimismo e o individualismo (Coimbra, 1995). O investimento nos espaos pblicos e ao ar livre, caldo efervescente de onde nascem os dramas de Moreno, aparece-nos, por sua disruptiva perturbao das prticas psi estabelecidas, como uma via a ser retomada e afirmada. Os sociodramas em espaos abertos podem funcionar como dispositivos potentes para a passagem das singularidades coletivas e a afirmao dos movimentos instituintes na composio de movimentos sociais em luta por liberdades, tal qual nos primrdios do teatro da espontaneidade.

    Para tanto, preciso inventar uma outra ideia de espao livre, que, em Moreno, aparece como lugar fora do mundo, lugar teraputico. Passar a assumir a liberdade como autonomia inerente aos processos do vivo, afirmando-a em meio aos embates da lida cotidiana, resulta em que abolimos a dicotomia entre mundo e sujeito. A empreitada passa a consistir em pensar como o mundo pode ser afirmado como espao de existncia e criao do vivo, inventando estratgias situadas que permitam ampliar a liberdade como inveno da vida. Assim, o espao livre, aberto conflitiva existencial, s lutas na histria, figura como gora do exerccio poltico das instituies sociais, aproximando-se das relaes de fora do cotidiano, ampliando a ao coletiva no sentido de criar novas formas de experimentao da existncia.

    Todavia, a abordagem grupal no pode ser encarada como tbua de salvao por si mesma. O grupo teraputico em Moreno figura como espao que, cada vez mais, se fortalecer em oposio s primeiras experincias de encontros espontneos e dispersivos nas praas e nas ruas. Moreno titulado nos EUA como o criador da psicoterapia de grupo. Esse enquadre do trabalho moreniano como comeo da teraputica que intermedeia indivduo e sociedade pela abordagem grupal, ao revs do que se pode esperar, por vezes subordina os mltiplos movimentos de produo de relaes, que de modos diversos emergem nos grupos, ao grupo tomado como uma forma especfica.

    Dicotomicamente, o indivduo compreendido como ser que busca, pela espontaneidade, sua realizao na liberdade expressiva e o mundo, como espao repressor, ao qual o indivduo est acorrentado. Mundo e sujeito so naturalizados e definidos em duas instncias distintas, apesar de relacionadas, para alm das transformaes possveis na histria. Trata-se de uma relao externa aos processos de constituio,

    j que indivduo e sociedade so tomados como totalidades. Moreno, mais tarde, pensa a resoluo do conflito entre sujeito e mundo pela adequao do organismo ao meio, como j destacamos. Em um meio em rpida mudana, o organismo em crescimento precisa evocar novas respostas. Respostas adequadas (papis criativos) a situaes novas so o que o psicodrama prope-se a produzir. Responder (sponte) significa de livre vontade.

    O grupo seria como um terceiro elemento nos conflitos entre o social e o individual. Esta concepo de grupo sustenta e reafirma a dicotomia entre sociedade e indivduo. Heckert, Arago, Barros e Oliveira (2001) enunciam que o grupo, bem como o indivduo e a sociedade, tem funcionado num mesmo registro um modo que , ao mesmo tempo, totalizante, individualizante e universalizante (p. 93). A lgica totalizante se manifesta na ideia de que os problemas e as solues sempre esto no indivduo, apesar de a abordagem ser grupal.

    interessante observar que Moreno estabelece uma separao entre psicodrama e sociodrama, embora as duas modalidades se deem no espao grupal: no primeiro, o protagonista configura-se como um dos membros que, ao trazer sua histria pessoal, ser trabalhado na presena e com o suporte dos outros membros; no segundo, o protagonista o prprio grupo nas inter-relaes dos seus membros, nas redes de preferncia e rejeio que o grupo aciona em sua dinmica particular, bem como nos conflitos entre grupos. De um lado, individualiza-se o indivduo; de outro, individualiza-se o grupo: psico, de um lado, scio, de outro.

    Barros (1996, p. 99) assinala ainda que a esta lgica chamamos molar porque apreende os objetos em seu estado j constitudo. Um grupo, entretanto, pode no ser visto apenas em sua configurao molar. Ele um composto, um emaranhado de linhas. Pensamos, assim, o grupo como um dos possveis dispositivos de criao para outros mundos singularizantes, como espao de construo de coletivos. O trabalho com o dispositivo-grupo se d no desembaraamento das linhas que o compem linhas de visibilidade, de enunciao, de fora, de subjetivao... da fecunda tenso das linhas que configuram um dispositivo que algo novo poder advir (Barros, 1996, p. 99). Portanto, pode-se romper com Moreno em sua sustentao do social em oposio ao indivduo pela prpria abordagem grupal, assumindo os riscos de se sustentar as desordens coletivas sem fech-las no dispositivo, buscando neutraliz-las. Para tanto, preciso tomar sociedade e indivduo como multiplicidades, como espaos de produo de diferenas, e no como

  • Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.

    269

    instncias transcendentes aos processos de produo coletivos. Indivduos e sociedades so, antes de tudo, formas que a potncia coletiva assume, ganhando certa visibilidade e definio.

    As potncias do falso

    Nesta concluso para abrir possibilidades de apropriao dos dramas de Moreno, podemos destacar como eixo de problematizao as potncias do falso em questo pelos dispositivos.

    Deleuze (1985/2007a) define as potncias do falso como graus de intensidade no processo criativo. O nvel mais baixo, mais impotente, seria o da busca da verdade escondida em algum lugar, da instalao de um tribunal como dispositivo para julgar os pretendentes verdade. O nvel mais elevado seria a criao da verdade, a montagem de um meio produtivo onde se possa experimentar e variar simulando. Quebra-se assim a dicotomia entre verdadeiro e falso, afirmando as potncias do falso pela inveno de verdades.

    Compe-se, ento, uma paisagem problemtica para os dramas de Moreno pelas potncias do falso em que se produz, destacando os impasses relativos a uma srie de conceitos. A busca da cura pela psicoterapia, por um equilbrio a ser alcanado, o estabelecimento de uma ideia de normalidade como verdade subjacente. A existncia, que forja seu sentido numa dimenso transcendente vida cotidiana com suas relaes de fora, busca a verdade num alm do mundo. A identidade como integrao do eu, correspondente do sentido da existncia no indivduo e da cura pela psicoterapia, a verdade do sujeito, sua verdadeira mscara, ainda que como predisposio. A liberdade, nesses jogos de verdade, acaba por funcionar como procedimento pelo qual o sujeito pode curar-se, identificar-se e existir verdadeiramente ao escapar ao poder.

    Toda esta anlise conceitual que empreendemos seguida pelo acompanhamento dos processos de institucionalizao dos dispositivos dramticos morenianos. Neste sentido, pode-se abordar como a gnese conceitual dos dramas de Moreno est necessariamente intrincada gnese social. E, por a, retomar a crtica conceitual pela anlise das emergncias histricas dos dramas de Moreno.

    O encantamento de Moreno com os processos de simulao, com as brincadeiras que evocam os jogos de verdade sobre quem se , entre os marginais da sociedade com que viveu a juventude, conduzem-no ao teatro para desenvolver as foras instituintes que experimentava, pelo projeto do teatro

    da espontaneidade. Questionando diversas prticas institudas no teatro, Moreno (1923/1984, p. 9) prope eliminar a roteirizao prvia da pea teatral fazendo com que todos elaborem o roteiro atuando; fazer desaparecer a diviso entre plateia e atores, provocando todos a assumirem posio ativa na criao dramtica; privilegiar a improvisao como estratgia de inveno teatral; romper com os limites do palco institudo, fazendo teatro em todo lugar. Todas essas propostas questionam o regime de produo de verdade pelo teatro: as verdades do texto dramtico, da performance do ator, do trabalho de ensaio e do palco como instituio so contestadas.

    Contudo, esta radical anlise institucional do teatro promovida por Moreno no incio do sculo XX na Europa, ao lidar com os efeitos da experimentao no corpo social, do deslocamento de lugares estabelecidos socialmente, assume tticas que visam demonstrar o valor da espontaneidade dispensando a crtica institucional. O ator profissional e o diretor teatral retomaro seus lugares como funes especializadas, redefinidas no conjunto do dispositivo psicodramtico como ego auxiliar e psicoterapeuta. A improvisao ser enquadrada por jogos de verdade sobre os procedimentos e tcnicas teraputicas. E, por fim, a dramaticidade coletiva ser novamente restrita ao espao fechado do palco montado. Ao apoiar-se na loucura instituda como doena mental, colocando os loucos para atuarem a fim de que se acredite na verdade de sua espontaneidade, Moreno, com seu psicodrama (1946/2002), perde o mote das foras instituintes problematizadoras das verdades e dos poderes em seu tempo.

    Neste momento crtico, a questo que emergia em relao ao teatro da espontaneidade era justamente a do estabelecimento de sua verdade. Moreno entra no jogo da verdade e trapaceia sua proposta instituinte, em vez de afirmar uma traio radical em relao aos regimes de verdade no teatro. Psicoterapia e teatro unem-se oficialmente, e isto no causa mais escndalo a ningum.

    Entretanto, no cabe lamentar, nem julgar a obra moreniana. Trata-se, antes, da avaliao de uma obra aberta, de um percurso inconcluso. Por isso, a importncia de destacar os impasses e obstrues no caminho. No objetivamos com este trajeto analtico absolutizar verdades, desqualificando saberes, mas nos perguntamos, principalmente, pelos efeitos engendrados pela prtica, pela tica que perpassa cada produo histrica. Ansiamos por outros intercessores, lembrando que por intercessor entendemos aquele ou aquilo que ajuda a dar expresso e forma s inquietaes, ao mesmo tempo que pode continuar

  • Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia

    270

    a existir por meio de ns que levamos a instituio adiante, transformando-a.

    O que importa na apropriao dos dramas de Moreno, pela nossa perspectiva, que seja possvel assent-los num movimento conceitual que, em vez de pretender o acesso verdade, afirme a inveno como princpio da vida, ou antes, a impossibilidade de estabelecer um princpio. Neste sentido, os rearranjos destes dispositivos, suas desmontagens e montagens sempre variantes, so cruciais para que no se conservem fixos, mas pelo movimento de apropriao coletiva.

    Referncias

    Baremblitt, G. F. (s.d.). El mtodo de la dramatizacin en el esquizodrama. Acesso em 14 de agosto, 2011, em http://www.fgbbh.org.br/artigos/artigo_10.htm

    Barros, R. B. (2007). Grupo: a afirmao de um simulacro. Porto Alegre: Sulina.

    Barros, R. D. B. (1996, junho). Dispositivos em ao: o grupo. Cadernos de Subjetividade, 4(n. spe.), 97-106.

    Birman, J. (2000). O signo e seus excessos: a clnica em Deleuze. In E. Alliez (Org.), Gilles Deleuze: uma vida filosfica (pp. 463-478). So Paulo: Ed. 34.

    Coimbra, C. M. B. (1995). Guardies da ordem: uma viagem pelas prticas psi no Brasil do milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor.

    Deleuze, G. (1997). Crtica e clnica. So Paulo: Ed. 34. (Original publicado em 1993)

    Deleuze, G. (2006). Diferena e repetio (2 ed.). So Paulo: Graal. (Original publicado em 1968)

    Deleuze, G. (2007a). A imagem-tempo: cinema 2. So Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1985)

    Deleuze, G. (2007b). Lgica do sentido (3 reimpr. da 4 ed. de 1998). So Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1969)

    Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil plats: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). So Paulo: Ed. 34. (Original publicado em 1980)

    Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Dilogos. So Paulo: Escuta. (Original publicado em 1977)

    Figueiredo, L. C. M. (1995). Revisitando as psicologias: da epistemologia tica das prticas e discursos psicolgicos. So Paulo: EDUC.

    Foucault, M. (1994). Histria da sexualidade 2: o uso dos prazeres (7 ed.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1984)

    Foucault, M. (2011). A ordem do discurso (21 ed.). So Paulo: Loyola. (Original publicado em 1971)

    Guattari, F. & Rolnik, S. (2000). Micropoltica: cartografias do desejo (6 ed.). Petrpolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1986)

    Heckert, A. L. C., Arago, E. M. A., Barros, M. E. B., & Oliveira, S. P. (2001). As sutilezas dos processos de grupo e formao na atualidade. In M. Athayde, J. Brito, M. Y. R. Neves, & M. E. B. Barros (Orgs.), Trabalhar na escola? s inventando o prazer (pp. 91-102). Rio de janeiro: IPUB/CUCA.

    Machado, R. (1990). Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal.Moreno, J. L. (1984). O teatro da espontaneidade (2 ed.). So

    Paulo: Summus. (Original publicado em 1923)Moreno, J. L. (2002). Psicodrama (8 ed.). So Paulo: Cultrix.

    (Original publicado em 1946)Naffah Neto, A. (1989). Paixes e questes de um terapeuta.

    So Paulo: gora.Pavlovsky, E. & Kesselman, H. (1991). A multiplicao

    dramtica. So Paulo: Hucitec.Rajchman, J. (1993). Eros e verdade: Lacan, Foucault e a

    questo da tica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Teixeira, M. O. L. (1996). Algumas reflexes sobre o conceito

    de cura em psiquiatria. Cadernos do IPUB, 3, 67-76.

    Submisso em: 05/06/2011Reviso em: 11/05/2012Aceite em: 20/06/2012

    Jsio Zamboni Graduado em Psicologia, Mestre em Psicologia Institucional e Doutorando em Educao pela

    Universidade Federal do Esprito Santo. Endereo para correspondncia: Avenida Fernando Antonio da Silveira, 168, Santa Rita, Vila Velha/ES, Brasil. CEP 29118-450.

    E-mail: [email protected]

    Sonia Pinto de Oliveira Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em

    Educao pela Universidade Federal do Esprito Santo. Professora Aposentada da Universidade Federal do Esprito

    Santo. E-mail: [email protected]

    Fabiana Davel Canal Graduada em Psicologia e Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do

    Esprito Santo. E-mail: [email protected]

    Maria Elizabeth Barros de Barros Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Psicologia Escolar pela Universidade Gama

    Filho, Doutora em Educao Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Ps-Doutora em Sade Coletiva pela Escola Nacional de Sade Pblica.

    Professora do Departamento de Psicologia e dos Programas de Ps-Graduao em Psicologia Institucional (PPGPSI) e em Educao (PPGE) da Universidade Federal do Esprito

    Santo. E-mail: [email protected]

    Poliana dos Santos Cordeiro Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Esprito Santo, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal

    Fluminense. E-mail: [email protected]

    Como citar:Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os dramas de J. L. Moreno e a filosofia da diferena. Psicologia & Sociedade, 26(2), 261-270.