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Parte Geral – Doutrina Os Filhos no Direito Previdenciário WLADIMIR NOVAES MARTINEZ Advogado Especialista em Direito Previdenciário. Ao definir os dependentes do segurado no RGPS, o art. 16 da Lei nº 8.213/1991 alude a filhos “de qualquer condição”, presumido o atributo jurídico dessas pessoas. Quer dizer, existiria mais de um tipo de filhos, a maioria deles com direito à pensão por morte. Diante dessa multiplicidade, algumas distinções são impostas e permitem uma notação classificatória di- dática. FILHOS NATURAIS São considerados naturais ou comuns os filhos havidos entre o ho- mem e a mulher, não importando a essência da união dos pais, se civil ou estável. Por assim dizer, esses filhos são uma referência para os vários critérios de enquadramento dos demais. As pessoas havidas ou acolhidas individualmente por homossexuais quando trazidos à união homoafetiva, possivelmente designados como “enteados”, continuam sendo filhos. FILHOS LEGÍTIMOS Sob um raciocínio civilista, os filhos nascidos durante a vigência do casamento ou da união estável são juridicamente legítimos. Essa legitimi- dade tem início com o registro do nascimento no Cartório de Registro Civil (Lei nº 6.015/1973). Por via de consequência, obviamente, ilegítimos são os não legítimos. O Código Civil estabelece importantes presunções para o enquadra- mento desses nascimentos. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal. (art. 1.596) Para o legislador, não importa saber dos pais naturais quando conce- bidos anteriormente à cerimônia do casamento. Antes da união civil oficial, se um casal vivia em união estável e teve filhos, eles eram comuns e serão legitimados após o matrimônio.

Os Filhos no Direito Previdenciário - SÍNTESE BDR 49 - parte geral...Parte Geral – Doutrina Os Filhos no Direito Previdenciário WLADIMIR NOVAES MARTINEZ Advogado Especialista

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Parte Geral – Doutrina

Os Filhos no Direito Previdenciário

WLADIMIR NOVAES MARTINEZAdvogado Especialista em Direito Previdenciário.

Ao definir os dependentes do segurado no RGPS, o art. 16 da Lei nº 8.213/1991 alude a filhos “de qualquer condição”, presumido o atributo jurídico dessas pessoas. Quer dizer, existiria mais de um tipo de filhos, a maioria deles com direito à pensão por morte. Diante dessa multiplicidade, algumas distinções são impostas e permitem uma notação classificatória di-dática.

FILHOS NATURAIS

São considerados naturais ou comuns os filhos havidos entre o ho-mem e a mulher, não importando a essência da união dos pais, se civil ou estável. Por assim dizer, esses filhos são uma referência para os vários critérios de enquadramento dos demais. As pessoas havidas ou acolhidas individualmente por homossexuais quando trazidos à união homoafetiva, possivelmente designados como “enteados”, continuam sendo filhos.

FILHOS LEGÍTIMOS

Sob um raciocínio civilista, os filhos nascidos durante a vigência do casamento ou da união estável são juridicamente legítimos. Essa legitimi-dade tem início com o registro do nascimento no Cartório de Registro Civil (Lei nº 6.015/1973). Por via de consequência, obviamente, ilegítimos são os não legítimos.

O Código Civil estabelece importantes presunções para o enquadra-mento desses nascimentos.

Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal. (art. 1.596)

Para o legislador, não importa saber dos pais naturais quando conce-bidos anteriormente à cerimônia do casamento. Antes da união civil oficial, se um casal vivia em união estável e teve filhos, eles eram comuns e serão legitimados após o matrimônio.

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FILHOS LEGITIMADOS

Os filhos não legítimos, isto é, os havidos fora do casamento, assim que legitimados, equiparam-se aos legítimos a partir dessa providência.

FILHOS NÃO REGISTRADOS

Os filhos que não tenham sido registrados no registro próprio são na-turais e passam a ser legítimos assim que registrados.

FILHOS RECONHECIDOS

Os filhos ilegítimos, nascidos fora do atual casamento, admitidos como próprios de quem os reconheceu, marido ou mulher, se tornam legi-timados para todos os fins.

FILHOS INVÁLIDOSOs filhos inválidos maiores de 21 anos são dependentes. Antes de

completarem a maioridade previdenciária presumidamente, dependiam du-plamente dos pais, por serem filhos e inválidos.

Estranho pensar que, no passado, foi preciso uma condensação juris-prudencial judicial para definir o direito desses filhos. A vetusta Súmula nº 185 do TFR dizia: “Filhos solteiros maiores e inválidos, presumida a depen-dência econômica, têm direito à pensão previdenciária por morte do pai”.

Diante do silêncio de menção à esposa do segurado, mãe dos filhos maiores inválidos, in casu essa dicção pressupunha que nessa família não havia outros dependentes com direito ao benefício, que fizessem parte do grupo familiar nuclear: mãe ou companheira.

De regra, os filhos são tidos como dependentes até os 21 anos. Se até a data do óbito dos pais eles se invalidarem a maioridade previdenciária, não mais os excluirá do direito à pensão por morte.

A invalidez pressupõe a dependência, com a particularidade nitida-mente previdenciária de que ela tem de se referir ao acometimento da in-capacidade laboral antes da exclusão do direito, que se dá por ocasião do óbito do pai.

Trata-se de uma convenção, mas se alguém saudável depois dos 21 anos perder a higidez após o óbito do pai, não é considerado dependente. Terá de ser protegido pela mãe supérstite ou pela assistência social.

O comando reproduzido fala em filho solteiro e exclui o casado, mas tecnicamente um filho casado inválido nem sempre reúne as condições para se sustentar.

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Não existem muitas regras positivadas ou regulamentadas sobre a prova posterior da invalidez, mas sempre é possível evidenciar que ela so-breveio antes do óbito do segurado, mediante perícia médica particular ou oficial.

Antes do óbito do segurado, usufruindo o status de dependente, se esse filho recuperar a saúde ou, depois do falecimento, na condição de pensionista percipiente da pensão por morte, sobrevindo a higidez, respec-tivamente, ele perderá as duas condições jurídicas.

FILHOS DEFICIENTES

A Lei nº 12.470/2011 alterou a redação do art. 16, I, do PBPS, que passou a dizer: “O cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um anos) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente” (grifos nossos).

As principais características definidoras desse mentalmente incapaz são as seguintes:

a) Deficiência intelectual – a pessoa tem sérias dificuldades para o aprendizado e para as manifestações do pensamento. Seu in-telecto é limitado e enfrenta óbices para compreender as coisas ao seu redor. Não entende o mundo com aqueles que têm um cérebro articulado. Não foram mentalmente aquinhoados pela natureza e padecem na infância, durante o período escolar (ali, às vezes, designados como excepcionais), e durante toda a vida não entendem o mundo em que vivem com as pessoas normais. Não retém as informações em sua memória.

b) Deficiência mental – a pessoa cuja idade mental seja menor do que a idade natural. Normalmente, isso se dá em razão de uma doença que as limita, de ordem psiquiátrica ou psicanalítica. São retardados mentalmente, portadores de deficiências que as inibem em seu crescimento natural.

c) Incapacidade parcial – inaptidão parcial para o trabalho.

d) Incapacidade total – inaptidão total para o trabalho, equivalendo à invalidez.

e) Declaração judicial – Diferentemente do filho inválido, a insufi-ciência intelectual ou mental será declarada pelo Poder Judiciá-rio, que, para isso, ouvirá a perícia médica especializada.

Quer dizer, essa norma jurídica fala em deficiência intelectual ou mental, que torne o dependente absolutamente incapaz, o distingue do in-

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válido (quem não pode trabalhar); pressupõe que ele consiga celebrar um contrato de trabalho, como o previsto no art. 93 do PBPS ou exerça ativida-de independente.

FILHOS CASADOS

Casando-se, os filhos restam emancipados para os fins da previdência social e perdem a qualidade de dependentes.

FILHOS INVÁLIDOS CASADOS

No comum dos casos, os filhos inválidos que se casam perdem a pre-sunção de incapacidade e a condição de dependentes. Cada caso terá de ser considerado em particular.

FILHOS EMANCIPADOS

Quaisquer filhos, assim que emancipados, não mais são dependentes.

FILHOS AUSENTES

As ausências dos filhos são de dois tipos: com e sem localização do domicílio. Podem ser com conhecimento do endereço do ausente, que pode estar residindo ou estudando no exterior. Por outro lado, subsiste a hipótese dos filhos desaparecidos, oficialmente tidos como falecidos ou não.

FILHOS INSEMINADOS

A ciência médica tornou possível a concepção humana fora do úte-ro da mulher. O sêmen do homem é colocado junto do óvulo da mulher, dentro de um tubo de ensaio, conhecido como proveta, onde ocorre a inse-minação artificial. Uma vez fecundado o óvulo, ele é introduzido no útero da mulher. Destarte, historicamente nasceu Louise Brown, o primeiro bebê de proveta.

Tal processo é conhecido como inseminação in vitro (em um vidro) e não se confunde com a inseminação in vivo, em que o sêmen do homem é diretamente introduzido no útero da mulher.

Em nenhum momento a legislação previdenciária regulou a situação da mulher que se dispõe a dar à luz um bebê via inseminação artificial. Para o direito civil, os filhos assim nascidos são comuns. Naturalmente, esse filho é legítimo e será tido como dependente do segurado.

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FILHOS ADOTADOS

Desde que possua um mínimo de 34 anos de idade, um homem ou uma mulher, ou então ambos casados, podem acolher alguém como se fos-se o seu filho (CC, art. 1.596). A partir da adoção essa pessoa é identificada como filho do homem, da mulher ou do casal que os adotou. A adoção é um processo judicial; a sua inspiração maior é o cuidado com esse filho.

Os conviventes de uma união estável também estão autorizados a adotar (CC, art. 1.622).

Ultimamente, tem sido considerada e praticada a adoção por parte de membros da união homoafetiva. As regras do direto civil aplicáveis são exatamente as mesmas dos casais heterossexuais.

A filiação é provada com a certidão de nascimento expedida pelo Cartório de Registro Civil (CC, art. 1.603).

Tidos para todos os efeitos como filhos comuns, são beneficiados pela presunção de dependência. Adquirem, mantém e perdem a qualidade de segurado, como os demais filhos comuns.

FILHOS ENTEADOS

Quando da constituição de uma família, um dos seus membros pode trazer um filho para viver junto. Tanto pode ser o homem quanto a mulher o responsável por esse filho. Comumente, é um filho legítimo e, então, o novo pai ou a nova mãe, é chamado de padrasto ou madrasta. E, esse filho, de enteado.

Com redação dada pela Lei nº 9.528/1997, o art. 16, § 2º, do PBPS diz: “O enteado o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração escrita e desde que comprovada a dependência econômica na forma esta-belecida no regulamento”.

Com da redação dada pelo Decreto nº 4.032/2001, por outro lado, diz o art. 16, § 3º, do RPS:

Equiparam-se aos filhos nas condições do inciso I, mediante declaração es-crita do segurado, comprovada a dependência econômica na forma estabe-lecida no § 3º do art. 22, o entendo e o menor que esteja sob sua tutela e desde que não possua bens suficientes para o próprio sustento e educação.

Estranha muito essa exigência legal e regulamentar da dependência do enteado, pois, por exemplo, em relação à mãe, se ela for segurada, ele não precisaria demonstrá-la. Igual raciocínio vale em relação ao pai, de

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quem é filho. Participando da família em igualdade de condições com os outros filhos, não há porque a lei e o regulamento distingui-los.

A prova é promovida com, pelo menos, três de 18 documentos rela-cionados no art. 22, § 3º, do RPS.

MENORES SOB GUARDAAté que a Lei nº 9.528/1997 o modificasse, o art. 16, § 2º, do PBPS

equiparava os menores sob guarda aos filhos dos segurados: “Equiparam--se ao filho, nas condições o inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado, o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação” (grifos nossos).

Por qualquer motivo essa Lei nº 9.528/1997 resolveu excluir essas crianças e esses adolescentes do rol dos filhos, quebrando uma possível inclusão do art. 16 quando ele fala em filho “de qualquer condição”.

Se os filhos tutelados e os adotados são protegidos pela lei previden-ciária, não tem muito sentido excluir os menores sob guarda. Não podem ser confundidos com as pessoas designadas, condição jurídica artificial que se presta, às vezes, para simulações.

Em termos de eficácia da norma vigente ao tempo dos fatos, os me-nores sob guarda somente tiveram direito à pensão por morte do segurado se ele faleceu antes da Medida Provisória nº 1.523/1996, depois convertida na Lei nº 9.528/1997.

Essa exclusão não foi acolhida pela doutrina e jurisprudência e talvez seja o assunto mais polêmico do direito à pensão por morte. Muitos dos especialistas escudados na proteção atribuída aos menores pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 33/35 da Lei nº 8.069/1990).

Nesse sentido, diz a Convenção sobre os Direitos da Criança (De-creto-Legislativo nº 28/1990): “Os Estados-partes reconhecerão a todas as crianças o direito de usufruir da previdência social, inclusive do seguro so-cial, e adoção das medidas necessárias para lograr a plena consecução des-se direito, em conformidade com sua legislação nacional” (art. 1º).

Convém registrar o caput do art. 227 da Carta Magna:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao ado-lescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração violência, crueldade e opressão.

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O direito foi assegurado em 03.08.2011 pelo Desembargador Francisco de Assis Betti (TRF 1ª R., AC 2009.33.00.10078/BA, 2ª T.; RPS 372/1001). O Juiz Aluísio Gonçalves de Castro não acolhe o ECA (TFR 2ª R., AIT-AC 2008.51.01.804376-5, 1ª T., 17.04.2010; Repertório IOB de Jurisprudência, p. 349, 1ª quinz. jun. 10).

FILHOS TUTELADOS

Quando os pais falecem, são julgados ausentes ou perdem o pátrio poder, os seus filhos podem ser mantidos por terceiros, preferivelmente por parentes (CC, art. 1.728). Os tutores são nomeados pelo juiz (art. 1.733).

Nos termos da legislação civilista, uma família pode acolher um me-nor de idade mediante o instituto técnico da tutela. Enquanto atender os demais requisitos do art. 16 do PBPS, esse menor assemelhado ao adotado manterá a condição de dependente.

Diz o art. 21 da IN INSS 45/2010: “Equiparam-se aos filhos, mediante comprovação da dependência econômica o enteado e o menor que esteja sob a tutela do segurado, desde que esse tutelado não possua bens aptos a garantir-lhe o sustento e a educação”.

A respeito da tutela diz o art. 1.746 do Código Civil que, se ele tiver bens, estes proverão o seu sustento e a sua educação. Junto com o entea-do, o tutelado tem de fazer a prova da dependência. Se ele não tem bens, sobrevirá uma presunção lógica em relação aos seus novos pais. Ele terá de demonstrar que não possui bens materiais.

Tais bens, se existirem, não podem ser suficientes para garantir-lhe o sustento; caso contrário, ele não dependerá economicamente dos pais. Da mesma forma, as suas rendas não poderão ser suficientes para a sua educação.

O tutelado perde essa condição quando completa 18 anos ou se for adotado (CC, art. 1.723, I/II).

FILHOS ABANDONADOS

Os menores abandonados podem sem tutelados (CC, art. 1.734). Al-gumas pessoas não podem ser os seus tutores (CC, art. 1.735, I/VI).

FILHOS EXTEMPORÂNEOS

Didaticamente, são designados como filhos extemporâneos os nasci-dos depois do óbito do segurado. Ou, se este estiver vivo, após o desfazi-mento da união dos seus pais (CC, art. 1.596, V).

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Pelo menos, são dois tipos: a) concebidos antes da morte do homem e nascidos após o seu falecimento; e b) concebidos e nascidos depois da morte do segurado, por intermédio de inseminação artificial.

Claro, nos dois casos, filhos legítimos.

FILHOS POS MORTEM

No inciso II do art. 1.596 colhe-se: “Nascidos nos 300 (trezentos) dias subsequente à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento”.

O legislador considera filhos do casal, ainda que o segurado tenha falecido, os nascidos até 300 dias após o óbito. Claro que feita uma prova genética contrária, a paternidade poderá ser cometida a outro homem e, então, ele passa a ser um enteado daquele primeiro segurado.

FILHOS FECUNDADOS ARTIFICIALMENTE

No inciso III do mesmo artigo contém-se: “Havidos por fecundação artificial homologa mesmo que falecido marido”.

“Havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentá-rios, decorrentes de concepção artificial homóloga” (inciso IV).

Na inseminação heteróloga, são os filhos “havidos por inseminação ar-tificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (inciso V).

Se, antes de falecer, o marido forneceu o sêmen, ele será o pai da criança nascida.

Diz o art. 1.598 do Código Civil: “Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523” – de dez meses – “a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos 300 (trezentos) dias a conta da data do falecimento deste e do segundo, se o nascimento ocorre após esse perío-do e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1.597”.

Essa mulher que teve ou terá um filho extemporâneo poderá se unir ou se casar e ter filhos com o novo parceiro, sem que a situação jurídica seja modificada, tidos como filhos do primeiro casamento.

FILHOS AGREGADOS

Embora não sejam mais comuns nas grandes cidades, metrópoles e capitais, no interior dos Estados era bastante comum a figura da adoção informal de uma pessoa, geralmente criança, acolhida por uma família, que

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dela cuidava como um filho. A hipótese não excluía a presença de maior de 18 anos. Tais pessoas eram conhecidas como agregados.

É “aquele que vive na família como pessoa da casa”, na definição do Novo Dicionário Aurélio (1. ed. 14. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 52).

A legislação previdenciária nunca dispôs sobre a situação jurídica desses agregados, se eram tidos como filhos, tutelados, adotados ou outra modalidade de designação. E não passavam de menores sob guarda de fato.

Em muitos casos, quando completavam a maioridade civil, eles dei-xavam a família, embora mantivessem contato familiar.

Embora não fossem filhos, poderiam ser entendidos sobre a vala comum do “de qualquer condição” para fins de proteção, especialmente quando fossem os únicos sobreviventes dessa família.

FILHOS DESIGNADOS

Pessoas designadas, enquanto isso foi possível, não eram filhos, de-vendo-se considerar a hipótese de ter havido a designação regular antes da Lei nº 9.032/1995 e manter-se como tal.

FILHOS INSCRITOS

São os filhos de qualquer condição que os pais inscreveram em um regime próprio de previdência básica ou complementar.

A inscrição desse dependente do segurado “será provida quando do requerimento do beneficio a que tiver direito, [...]” (caput do art. 22 do RPS).

FILHOS DE SERVIDORES

Cada um dos mais de 3.000 RPPS, 26 RPPS dos Estados e do Distrito Federal disciplina, de modo particular, bastante semelhante ao do RGPS, o que entende por filhos. No caso da União, é o art. 217 da Lei nº 8.112/1990. A lei que trata dos militares e parlamentares também sem o seu próprio conceito.

FILHOS NATIMORTOS

Não são considerados filhos os natimortos, embora a gestante faça jus a um salário-maternidade de duas semanas (RPS, art. 92, § 5º).

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FILHOS ABORTADOS

Não nascendo vivos, os fetos abortados não constituem filhos; e se o nascimento não foi um aborto criminoso, é devido o salário-maternidade de duas semanas.

FILHOS UNIVERSITÁRIOS

A situação dos filhos do segurado maiores de 21 anos que frequentam um curso superior ainda não está pacificada no direito previdenciário, em-bora se possa afirmar que a tendência da jurisprudência seja no sentido de que a maioridade previdenciária se dê aos 21 anos.

A Súmula nº 74 diz do TRF da 4ª Região diz: “Extingue-se o direito à pensão previdenciária por morte do dependente que atinge 21 anos, ainda que estudante de curso superior”.

A pretensão técnica de que esses maiores de 21 anos possam fazer jus à pensão por morte é construção doutrinária. Entendem os defensores dessa tese que isso tornaria possível e estimularia maior interesse educacional por cursos superiores, além de oferecer oportunidade de estudar àqueles que não têm renda para isso.

Note-se que a extensão, caso outorgada, diria respeito apenas aos cursos universitários, em detrimento dos profissionalizantes, que também são importantes para as classes sociais de menor poder aquisitivo.

A súmula não fez distinção, mas com certeza refere-se apenas à pen-são por morte do RGPS. Ela acompanha os preceitos do PBPS, sem ignorar que o Código Civil de 2002 baixou a maioridade de 21 para 18 anos.

O art. 16 do PBPS diz que é dependente “o filho, de qualquer condi-ção, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido” e o irmão não emancipado, “de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido”.

Dizia o Enunciado CRPS nº 14: “Não sendo inválido o filho e os de-pendentes designados, mesmo solteiros, perdem aos 21 anos de idade o direito à cota da pensão previdenciária”.

Jairo Rodrigues Neves de Lima diz que uma pesquisa feita nos TRFs das 1ª e 5ª Regiões e no STJ revelou que as concessões são em número su-perior aos que negam, e por isso a extensão deve prevalecer (Extensão da pensão por morte até os 24 anos para o beneficiário menor que ostente a condição de estudante universitário. Revista IOB, São Paulo: IOB, n. 227, p. 163/166, maio 2008).

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Já nos referimos ao art. 147, § 2º, da Lei Complementar Estadual nº 180/1968, que previa pensão por morte até 25 anos se estivesse frequentan-do curso superior (Curso superior excludente da pensão por morte. Jornal do 18º CBPS, LTr, p. 38/39, 2005).

Marcio André Ramos Vieira reproduz acórdão de 21.08.2003 da 1ª Turma do TFR da 5ª Região, na AC 314.160, relatada pelo Desembargador Ubaldo Alaide (DJ 17.09.2003), que, por falta de amparo legal, não há o direito (Manual de direito previdenciário. Niterói: Impetus, 2006. p. 447).

A Súmula TNU nº 37 garante: “A pensão por morte, devida ao filho até os 21 anos de idade, não se prorroga pela frequência do curso univer-sitário”.

No ensejo do debate, João Ernesto Aragonês Vianna, lembrando a Sú-mula nº 180 do TFR, recorda que o casamento do dependente não põe fim à cota da pensão. Depois de 24.07.1991, isso faz parte do PBPS, ipso facto, o casamento do menor de 21 anos, ainda que o emancipe, não o afastaria do rol dos dependentes necessário (Curso de direito previdenciário. São Paulo: LTr, 2006. p. 178).

Um modelo de previdência social que observa o princípio constitu-cional da seletividade dos benefícios (e desde 1994 pôs fim a muitas pres-tações) indicou a necessidade de extinguir a figura da designação, não abri-gando a exceção pretendida. Além de discriminar os não universitários, ela beneficiaria uma parcela da população, a daqueles que logram ingressar em faculdades.

É possível que, em vez de ampliar a idade para 25 anos, se devesse pensar em baixá-la para 18 anos.

Fabio Zambitte Ibrahim se posiciona contra a extensão, aí incluindo a frequência às escolas técnicas (Curso de direito previdenciário. 7. ed. Ni-terói: Impetus, 2006. p. 420).

O Desembargador Carlos André Castro Guerra é um intransigente de-fensor da tese. Ele relatou o AMS 2005.61.11.002543-9, alegando que se “trata de um proveito pessoal e da coletividade” (TRF 3ª R., Proc. 277.332, 10ª T., decisão de 08.06.2006; RPS 318/441).

Sem embargo do grande esforço intelectual do Desembargador Castro Guerra e do Desembargador Sérgio Nascimento, de alguns julgados favoráveis a tese, o entendimento prevalecente na jurisprudência é que os filhos maiores de 21 anos não são mais dependentes, ainda que cursem uma faculdade (TRF 2ª R., AC 2009.51.01.018248-3/RJ, 6ª T., decisão de 24.02.2010; RPS 357/727; e igual se colhe em RPS 364/262).

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Entendendo que é a dependência econômica que define o direito ao benefício (presumida ou não), Sérgio Nascimento determinou que o INSS pagasse a pensão por morte de 21 a 24 anos para um filho universitário (TRF 3ª R., AC 2006.61.13.003639-3/SP, (12953326), 10ª T., em 17.02.2009; RPS 343/482).

O tema foi desenvolvido no artigo “Pensão por morte de dependente universitário”, de Carlos André de Castro Guerra (RDS, n. 23, p. 49/52, set. 2006).

O Desembargador Galvão Miranda pensa diferente (TRF 3ª R., AMS 2005.61.16.001261-1/SP, (Proc. 280.228), 10ª T., decisão de 10.10.2008; RPS 321/780).

Neril I. Cenzi e Vanessa Cenzi Prates creem que o beneficio deva ser concedido, falando em um Projeto de Lei nº 2.053/2003 do Deputado Federal Gastão Vieira, do PMDB do Maranhão (Pensão previdenciária a dependente maior de 21 anos. Jornal do 17º CBPS, LTr, p. 105/107, 2004).

Uma inclusão ou não do dependente que completa 21 anos de idade ocorre em três oportunidades: a) por ocasião da instrução do pedido do benefício; b) data em que o dependente recuperou a higidez; e c) cessação da cota mantida.

Aquela súmula não faz distinção, incluindo todas as modalidades de filhos; são aqueles que, se tivessem menores de 21 anos, fariam jus à pensão por morte (filho legítimo, ilegítimo, adotado, enteado, tutelado, sob guarda, etc.).

Se o filho inválido está cursando uma faculdade, a condição sanitária assegura-lhe o direito à pensão por morte enquanto mantiver essa incapaci-dade para o trabalho.

Devidamente autorizado, quando o menor de idade se casa ele perde a qualidade de dependente. A lei presume que ao assumir novas responsa-bilidades (o que nem sempre é verdade) seja capaz de se sustentar.

Diz o art. 114 do RPS que: “emancipação decorrente de colação de grau cientifico em curso de ensino superior” faz extinguir a pensão por morte.

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Parte Geral – Doutrina

Regime Jurídico da Fungibilidade das Demandas Previdenciárias

Legal Regime of Social Security Fungibility of Demand

FABIO ALESSANDRO FRESSATO LESSNAUProcurador Federal, Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Especialista em Direito Tributário pela UniCuritiba, Especialista em Direito Público pela Esmafe/PR, Especialista em Direito Processual Civil pela Unipar, Especialista em Direito Previdenciário pela Uniderp.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar se há amparo legal para o Magistrado, valendo-se do princípio da fungibilidade, em conceder benefícios diversos daqueles que foram postu-lados na petição inicial, bem como o limite para esta atuação, por meio de uma revisão de literatura. A Constituição Federal estabelece, em seu art. 194, que a Seguridade Social compreende um con-junto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. O Estado Social desempenha a função de atender as necessidades comuns dos cidadãos e, consequentemente, materializar os ideais de bem-estar e de justiça social. O segurado, ao deparar-se com o indeferimento administrativo de seu requerimento de benefício previdenciário ou assistencial, poderá socorrer-se ao Poder Judiciário para reforma do ato estatal. Incumbe ao julgador a tarefa de dar aplicabilidade a mecanismos de eficácia oferecidos pelo direito processual civil, entre os quais se destacam os institutos da instrumentalidade das formas e do princípio da fungibilidade das demandas previdenciárias. Através desses meca-nismos será possibilitado o oferecimento de uma decisão mais próxima da realidade. Ademais, o Poder Judiciário deve prestar tutela jurisdicional adequada ao jurisdicionado, entregando-lhe o direito material correspondente aos fatos expostos e provados; contudo, esse método não prescinde de pa-râmetros, de maneira que deve ser limitado às demandas da mesma natureza em que se identifique um núcleo intrínseco que liga os requisitos destas ações.

PALAVRAS-CHAVE: Seguridade Social; proteção social; princípio da fungibilidade das ações previ-denciárias.

ABSTRACT: This article aims to examine whether there are legal grounds for the magistrate, taking advantage of the principle of fungibility, to grant benefits that were different from those postula-ted in the application, as well as the limit for this activity, through a literature review. The Federal Constitution establishes in its article 194 that Social Security comprises an integrated set of actions initiated by the Government and society, aimed at ensuring the rights to health, welfare and social assistance. The welfare state plays the role of social needs and therefore seek to materialize the ideals of wellness and social justice. The insured, when faced with the administrative refusal of his application for benefits or assistance, you can avail itself to the judiciary to reform the state act. It is up to the task to judge the applicability instrumentality of the forms and the principle of fungibility of social security demands, considering the state of vulnerability of the insured for that decision is made to portray the reality. Moreover, the judiciary can provide appropriate judicial protection to the courts, handing him the right material corresponding to the facts alleged and proved, as well as attention to

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the need presented at the time, however, this method does not obviate the parameter delimiters, and must be restricted to demands the same kind in which it identifies a core that connects the intrinsic requirements of these actions.

KEYWORDS: Social Security; social protection; principle of fungibility of shares pension.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Princípio da fungibilidade; 2 Busca pela verdade real no processo previ-denciário e o ativismo judicial; 3 Condições da ação, elementos da ação, fungibilidade do interesse processual, da causa de pedir e do pedido; 4 Interesse processual e a possibilidade de a autarquia previdenciária conceder o benefício mais vantajoso ao segurado; 5 Fungibilidade das ações previden-ciárias; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 194, que a Segurida-de Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

A Seguridade Social objetiva assegurar cobertura dos riscos sociais, consubstanciada em verdadeiro sistema de proteção que se desenvolve por meio de medidas de amparo aos trabalhadores, especialmente em situações emergenciais de incapacidade para o trabalho em razão de doença, idade avançada, acidente de trabalho e casos equiparados. Protegem-se, igual-mente, os dependentes dos segurados em decorrência de morte e reclusão.

O caráter contributivo está presente unicamente na previdência so-cial, sendo este o principal fator de distinção entre os três segmentos da seguridade social, conforme expressamente consignado no art. 201 da Carta Maior.

Assim sendo, a saúde é ofertada a todos e caracteriza-se como dever do Estado, este incumbido de realizar medidas políticas sociais e econô-micas, visando à redução do risco de doença e de outros agravos, como também possibilitar o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, conforme estabelece o art. 196 do Texto Constitucional. Por sua vez, a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, nos ter-mos do art. 203 da Carta Magna.

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a Seguri-dade Social é gênero do qual são espécies a saúde, a previdência social e a assistência social, as quais desempenham o papel de instrumentos do Esta-do Social para a satisfação das necessidades comuns e, consequentemente, buscam materializar os ideais de bem-estar e a justiça social.

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Por conseguinte, o cidadão atingido por uma contingência social po-derá socorrer-se ao Estado para a sua proteção, de modo que estará sendo desempenhada a função estatal de proteção social. Porém, caso o órgão es-tatal, após o devido processo administrativo, entenda que não seria cabível na hipótese qualquer prestação, caberá ao segurado buscar a reforma do ato administrativo através de provimento expedido pelo Poder Judiciário.

Portanto, no momento em que um segurado requer uma prestação estatal de natureza previdenciária ou assistencial junto à Autarquia Previ-denciária e tem seu pedido indeferido, surge o interesse de postular junto ao Poder Judiciário o direito recusado.

Encontra-se consagrado que o processo civil deve servir como ins-trumento para a concretização do direito material postulado, de forma que seja entregue ao jurisdicionado o provimento jurisdicional adequado, justo, célere e eficaz. Para o alcance desse desiderato, o Poder Judiciário pode atuar no sentido de busca pela verdade real. Contudo, em certos momen-tos essa atuação pode ultrapassar os limites estabelecidos pelas normas do processo civil, ao ponto de alterar o pedido e a causa de pedir da demanda previdenciária ou assistencial posta ao seu crivo, concedendo ao segurado um benefício diverso daquele que foi requerido na exordial.

Com esse propósito, o presente trabalho tem como objetivo analisar se há amparo legal para o Magistrado, valendo-se do princípio da fungi-bilidade, em conceder benefícios diversos daqueles que foram postulados na petição inicial, bem como o limite para essa atuação, por meio de uma revisão de literatura.

1 PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE

O direito de ação, na sua concepção constitucional atual, exige a prestação de tutela jurisdicional efetiva, visando sempre a uma sentença justa, sobretudo para que a sua execução possa ser promovida de forma adequada e no menor tempo possível para que seja eficaz, observando-se as normas constitucionais ínsitas ao devido processo legal.

Nesse sentido, surge o direito fundamental à tutela jurisdicional efe-tiva que obriga os aplicadores da lei a buscar técnicas processuais aptas a materializar o conceito constitucional de ação. Tais técnicas podem ser verificadas por meio do instituto da instrumentalidade do processo e do princípio da fungibilidade processual. Dinamarco (1998) ensina que a ins-trumentalidade do processo apresenta-se em duplo aspecto:

[...] (i) negativo: negação do processo como valor em sim mesmo e repúdio aos exageros processualísticos formalistas; (ii) positivo: preocupação em ex-

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trair do processo, como instrumento, o máximo de proveito quanto à obten-ção de seus resultados (efetividade do processo). Soma-se a esse pensamento a necessidade de análise da realidade social envolvida na causa para que seja alcançada a pacificação social dos conflitos. (Dinamarco, 1998, p. 265)

Por seu turno, o princípio processual da fungibilidade apresenta-se como um mecanismo para que a prestação jurisdicional possa ser realizada de modo efetivo, pois se consubstancia na perspectiva de que a forma não pode limitar e/ou prejudicar o exercício do direito. Assim, busca-se flexibi-lizar algumas normas processuais para que o direito material objetivado na demanda possa ser entregue ao postulante e, consequentemente, o processo passe a ser visto como um instrumento de realização do direito pleiteado.

No direito processual civil, o princípio da fungibilidade teve sua ori-gem na teoria recursal, pois visava abrandar o hermético sistema discipli-nado no Código de Processo Civil de 1939. O seu art. 810 estabelecia que, “salvo hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à câmara, ou turma, a que competir o julgamento”. Esse dispositivo não foi reproduzido no Código de Processo Civil de 1973. Contudo, ainda é reco-nhecido como aplicável em certas situações pela doutrina e jurisprudência em decorrência do princípio da instrumentalidade.

Além da aplicação no sistema recursal, o princípio da fungibilidade tem aproveitamento nas tutelas de urgência, conforme disposto no § 7º do art. 273 do Digesto Processual, nas demandas possessórias e cautelares, bem como nos provimentos decorrentes de tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e de entrega de coisa. Denota-se, porém, que a aplicação deste princípio nas ações previdenciárias ainda é incipiente nas manifesta-ções doutrinárias.

Traçadas essas primeiras linhas sobre o princípio da fungibilidade, torna-se possível descrever seu conceito. Teixeira (2008, p. 94) afirma que, “[...] para o direito material, a fungibilidade é uma qualidade de um bem ou de uma prestação que pode ser substituído(a) por outro(a)”. No direito processual civil, descreve o seguinte conceito:

[...] a possibilidade de substituição de uma medida processual por outra, admitindo-se aquela erroneamente utilizada como se tivesse sido emprega-da uma outra mas adequada à situação concreta existente nos autos, sendo irrelevante eventual equívoco no manejo de medida inapropriada pela parte, adotando-se como premissa para o seu emprego a ideia de que a forma não deve prejudicar o exercício do direito. (Teixeira, 2008, p. 94)

Destarte, o princípio da fungibilidade encontra-se profundamente in-terligado ao princípio da instrumentalidade das formas, ou seja, a forma

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não deve prevalecer como um valor absoluto, caso não exista uma garantia constitucional ou regramento processual cogente que justifique sua apli-cabilidade, pois, para que o processo atinja a pacificação social, os meios comuns podem ser ultrapassados.

Portanto, o direito de ação, fundamentado nas normas constitucio-nais processuais, deve objetivar uma tutela jurisdicional efetiva, observan-do o devido processo legal para que a prestação jurisdicional apresente-se adequada às necessidades do direito material e, portanto, que seja justa, rápida e eficaz. Para alcançar este escopo, o Magistrado pode se valer de instrumentos que privilegiem o fim que deve ser alcançado pelo processo em detrimento de normas pouco flexíveis, dando ensejo à aplicabilidade do princípio da fungibilidade.

2 BUSCA PELA VERDADE REAL NO PROCESSO PREVIDENCIÁRIO E O ATIVISMO JUDICIAL

Os diversos benefícios previstos no Regime Geral de Previdência (RGPS) possuem características distintas para a sua concessão, de modo que o segurado, ao preenchê-las, passa a ter direito à prestação previdenciá-ria. Com efeito, o preenchimento desses requisitos e a concessão do direito material aos beneficiários da Previdência Social exigem a análise aprofun-dada dos fatos alegados, bem como a sua comprovação documental, não bastando a simples subsunção dos fatos afirmados pelo segurado à norma de regência da matéria, pois todo o direito pleiteado deve ser provado.

Assim, a demanda previdenciária requer análise de prova para que sejam confirmados os fatos declarados pelo segurado, consistindo em um verdadeiro processo voltado para a busca da verdade real.

Na hipótese de um pedido de aposentadoria por idade pelo segurado especial, a lei exige idade mínima e comprovação do exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período correspondente à carên-cia. A comprovação do período de carência fundamenta-se em início de prova material, podendo ser completada por outros meios de prova, entre as quais se destaca a prova testemunhal1.

O § 2º do art. 115 da Instrução Normativa INSS/Pres nº 45, de 6 de agosto de 2010, estabelece que, para aposentadoria por idade, a ausência da documentação descrita na norma, em intervalos não superiores há três anos, não prejudicará o reconhecimento do direito à aposentadoria. Nessa situação, diante da indisponibilidade de prova material para cada ano de exercício da atividade rural, o administrador formará a sua convicção por

1 Nesse sentido é a letra do § 3º do art. 55 da Lei nº 8.213/1991 e a Súmula nº 149 do Superior Tribunal de Justiça.

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meio da presunção de que o segurado permaneceu exercendo seu labor campesino no ínterim de até três anos após a data do documento apresen-tado.

No âmbito administrativo, ao processar o requerimento de benefício previdenciário o servidor público deve atuar dentro da estrita legalidade, ou seja, seus atos devem estar pautados nas leis ou instrumentos normati-vos, não havendo espaço para interpretação ou expressão de entendimento subjetivo. Dessa forma, a atuação administrativa no exemplo acima cita-do encontra-se limitada ao campo da presunção disciplinada pela lei, não podendo fundamentar a decisão simplesmente em impressões pessoais ad-quiridas por meio do depoimento do segurado e testemunhas ouvidas no processo administrativo.

Por sua vez, na esfera judicial há um campo de atuação muito mais amplo para o Magistrado operar, sendo que pode, inclusive, decidir a de-manda posta ao seu crivo com base no critério da equidade. No ramo previ-denciário, o bem jurídico que se busca tutelar é o direito à subsistência, de modo que se torna impróprio impor a busca pela certeza como condicio-nante à concessão deste direito, reconhecendo-se a aplicação da equidade como solução suficiente em favor do segurado.

No contexto do direito previdenciário, o segurado enquadra-se como parte hipossuficiente, induzindo o intérprete no momento da análise da nor-ma previdenciária a escolher, entre duas ou mais interpretações possíveis, aquela que mais favoreça o segurado. Trata-se da aplicação da solução in dubio pro misero, que não se assemelha ao princípio do in dubio pro opera-rio consagrado no direito do trabalho, pois esse princípio não tem aplicação em matéria probatória, impondo-se ao autor a prova do fato constitutivo do direito e ao réu a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo.

Observa-se que o Poder Judiciário tem dado prevalência à verdade real em situações que o segurado não dispõe de documentos suficientes para comprovar sua condição de rurícola, notadamente quando qualificado como trabalhador boia-fria, admitindo-se exclusivamente como prova da condição campesina os relatos de testemunhas2.

2 Abordando o tema da verdade processual, Marrafon (2010, p. 170-177) leciona que, “para Resta, a concepção do juiz como maitre du linguage é rica de sentidos e bastante adequada para caracterizar a atividade judicial durante o julgamento. Primeiro porque ele acentua a ideia de que o processo é fundado na palavra e seu poder constitutivo, deixando manifesta a concepção de que o juiz, enquanto senhora da linguagem, é quem determina a verdade e a duração do processo, dentro das possibilidades normativas e ela conferidas. Depois, ela sugere que o juiz traduza cada palavra em sua própria linguagem e, através dela, crie realidades [...] Nesse processo construtivo, a verdade processual emerge da ação produtiva do Magistrado, possível através do movimento contínuo e complexo de ‘fusão de horizontes’, marcado pela incidência de inúmeros ‘discursos sobre a verdade’ que leva à applicatio. Ademais, por se tratar de uma verdade interpretativa artificialmente

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Neste sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que, no caso dos trabalhadores boias-frias, considerando-se a informalidade com que é exercida sua atividade no meio rural e a dificuldade de comprovação documental, “a exigência de início de prova material deve ser abrandada, permitindo-se, em algumas situações extremas, até mesmo a prova exclusi-vamente testemunhal” (Brasil, 2010).

Admitindo que o direito previdenciário deve buscar a verdade real para a concessão dos benefícios previdenciários, o Magistrado Savaris (2008) enfatiza que:

O direito à concessão de um benefício da seguridade social não pode ser afe-rido a partir dos critérios milimétricos estabelecidos pela legislação previden-ciária. O direito à proteção social para subsistência não se expressa de um modo matemático. Os problemas de sobrevivência que se apresentam em um processo previdenciário não serão adequadamente solucionados numa perspectiva positivista, no sentido de serem os requisitos postos à evidência do juiz. (Savaris, 2008, p. 43)

A simples aplicação das normas previdenciárias como um método matemático poderia resultar em decisões iníquas, uma vez que, diante de ausência de vasta prova documental, estaria sendo desconsiderado o histó-rico de vida dos trabalhadores e os relatos daqueles que presenciaram sua atividade campesina.

Arrematando esse entendimento e propugnando por uma postura ju-risdicional voltada a uma tutela equânime, em que as normas previden-ciárias apresentam-se como plano a ser seguido sem qualquer vinculação cogente, Savaris (2008) assim se posiciona:

Uma solução de equidade comporta, no caso concreto, a flexibilização dos requisitos milimetricamente estabelecidos para a atuação da proteção pre-videnciária. Os pressupostos para a concessão de benefícios passam a ser vistos como diretrizes gerais, mas não totalitárias. [...] O juízo de equidade, inspirado nos ideais constitucionais de concretização do direito fundamental e da promoção de justiça e bem-estar sociais, é essencialmente subjetivo e para o caso concreto. O franco juízo de subjetividade exige mais do que a velada objetividade. (Savaris, 2008, p. 45-46)

Destaca-se que a decisão equânime não pode distanciar-se das nor-mas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais, bem como da pro-

construída também a partir das escolhas normativas de uma sociedade, o método (trajeto) percorrido pelo Magistrado deve, prudencial e estilisticamente, levar a uma decisão que possa ser tida como juridicamente justa. Para tanto, o Magistrado deve, na maior medida possível, escolher corretamente o parâmetro normativo e sua interpretação, acertar sua adequação aos fatos e obedecer ao procedimento juridicamente válido”.

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moção da justiça e do bem-estar social. Por outro lado, abre-se um campo para que o Magistrado possa externar suas impressões subjetivas diante dos elementos que lhe foram apresentados nos autos.

Analisando a decisão proferida por equidade de forma superficial, poder-se-ia afirmar que o princípio dispositivo3 estaria sendo violado. En-tretanto, diante das necessidades sociais urgentes presentes nas lides pre-videnciárias, o Magistrado deve participar, de forma ativa, na instrução da causa para encontrar a verdade real e entregar o bem da vida pleiteado, cabendo a ressalva de que toda a atuação deve estar pautada pelo princípio constitucional do devido processo legal, de sorte que seja ofertado às partes o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Cambi (2001) entende que a relevância do princípio dispositivo pode ser minimizada diante da busca pela verdade no processo, conforme as seguintes lições:

As linhas da reforma do processo estão voltadas à minimização dos efeitos do princípio dispositivo, retomando a preocupação publicista pela descober-ta da verdade e, por isso, preocupada em, por exemplo, superar a enume-ração taxativa dos meios de prova, pela consagração do princípio da atipi-cidade; aumentar os poderes instrutórios exercitáveis de ofício pelo juiz; e abandonar os efeitos probatórios vinculantes inerentes ao sistema da prova legal. (Cambi, 2001, p. 86)

Portanto, ao adotar o posicionamento de decidir com base na equida-de, o Magistrado busca proferir tutela jurisdicional mais próxima à realidade de vida do segurado, valendo-se, para tanto, de todos os elementos de con-vicção postos ao seu conhecimento.

Porém, pode-se entender que o procedimento para se alcançar este ideal de sentença justa represente um ativismo judicial que ultrapassa os limites de atuação imparcial do juiz no processo. Na hipótese do ajuiza-mento de demanda previdenciária em que se pleiteia aposentadoria por in-validez, faz-se necessária a produção de prova pericial a respeito do estado clínico do segurado. Caso seja declarado no laudo pericial que o segurado

3 Por meio do princípio dispositivo, atribui-se às partes “toda a iniciativa, seja na instrução do processo, seja no seu impulso. As provas só podem, portanto, ser produzidas pelas próprias partes, limitando-se o juiz à função de mero espectador. [...] Há duas derivações importantes do princípio dispositivo, em nosso sistema processual civil: a) o princípio da demanda e b) o princípio da congruência. Pelo primeiro, só se reconhece à parte o poder de abrir o processo: nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando requerida pela parte (CPC, art. 2º), de sorte que não há instauração de processo pelo juiz ex officio. Pelo segundo princípio, que também se nomeia como princípio da adstrição, o juiz deverá ficar limitado ou adstrito ao pedido da parte, de maneira que apreciará e julgará a lide ‘nos termos em que foi proposta’, sendo-lhe vedado conhecer questões não suscitadas pelo litigantes” (Theodoro Junior, 2007, p. 29-30).

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teria direito à concessão do benefício de auxílio-doença, poderia o Magis-trado conceder-lhe este último benefício que não foi objeto do pedido?

Para responder ao questionamento, há a necessidade de analisar com cautela as formas de atuação ativa do juiz no processo. Conforme enten-dimento de Gomes (2009, p. 6), o ativismo judicial pode se distinguir em duas espécies: “[...] há o ativismo judicial inovador (criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador (cria-ção pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa)”. O autor entende que, neste último caso, o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, mas sim no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitu-cional ou de uma regra lacunosa.

Retornando à hipótese aventada, salienta-se que, ao conceder bene-fício por incapacidade diverso daquele pleiteado na exordial, o juiz estaria dando aplicabilidade ao princípio da fungibilidade das demandas com base na finalidade principal da Seguridade Social, consistente na cobertura dos riscos sociais – direito fundamental consagrado no Texto Constitucional.

Por sua vez, a atuação do Pode Judiciário não poderia ultrapassar li-mites de razoabilidade, ao ponto de caracterizar-se ativismo inovador, pois correria o risco de “[...] perder sua legitimidade democrática, que é indire-ta”, no sentido de que “as decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem (nas decisões judiciais) aquilo que foi aprovado pelo legis-lador” (Gomes, 2009, p. 6).

No momento em que o Poder Judiciário inaugura regras processuais inéditas, acaba invadindo atribuição típica do Poder Legislativo, vulneran-do, assim, o princípio da separação dos Poderes.

Por conseguinte, no âmbito judicial existe a possibilidade de se bus-car o conhecimento dos fatos por meio de métodos que estão além das normas de regência da matéria em debate. Dessa forma, tornar-se-ia possí-vel uma resposta estatal mais próximo da realidade. Incumbe ao julgador a tarefa de relativizar o excesso de rigor na norma processual e dar aplicabi-lidade à instrumentalidade das formas e ao princípio da fungibilidade das demandas previdenciárias.

Portanto, admite-se a que decisão judicial considere o estado de vul-nerabilidade do segurado para proporcionar-lhe uma interpretação mais favorável e, consequentemente, utilize o processo para a obtenção de um pronunciamento jurisdicional justo e que retrate a realidade.

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3 CONDIÇÕES DA AÇÃO, ELEMENTOS DA AÇÃO, FUNGIBILIDADE DO INTERESSE PROCESSUAL, DA CAUSA DE PEDIR E DO PEDIDO

O Estado dispõe de diversas atribuições, entre as quais se destaca a função jurisdicional, consistente em substituir as partes envolvidas em um determinado litígio para impor a pacificação social, a qual é feita “[...] me-diante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresenta-do em concreto para ser solucionado” (Cintra, Grinover; Dinamarco, 2010, p. 149), sendo que este desiderato é instrumentalizado através do processo.

A jurisdição é regida por diversos princípios, destacando-se para o escopo do tema estudado o princípio da inafastabilidade ou do controle jurisdicional. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 qualifica essa nor-ma como garantia fundamental ao estabelecer, no inciso XXXV do art. 5º, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ao passo que o art. 126 do Código de Processo Civil disciplina que o juiz não se eximirá de decidir a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei, de maneira que deverá aplicar as normas legais e, caso não existam, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.

Ao atuarem em um conflito de interesses, as partes esperam do Poder Judiciário a promulgação de uma decisão que materialize o ideal de justi-ça. Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p. 40-41) entendem que, para ser cumprida a missão social do processo relativa à eliminação dos conflitos e alcance da justiça, faz-se necessário superar determinados óbices que se situam em pontos sensíveis, entre os quais se destaca o acesso à justiça4, em que “[...] o juiz deve pautar-se pelo critério de justiça, seja (a) ao apreciar a prova, (b) ao enquadrar os fatos em normas e categorias jurídicas ou (c) ao interpretar os textos de direito positivo”.

Formuladas essas concepções iniciais, pode-se conceituar o direito de ação como direito constitucional de natureza pública consistente em pedir uma resposta justa ao Estado por meio do processo, sem prescindir da observância do devido processo legal.

Aprofundando o entendimento sobre o conteúdo do direito de ação, Marinoni e Arenhart (2006, p. 60) sustentam que “[...] o direito de ação, se necessita conferir ao cidadão o mesmo resultado que o direito material lhe daria caso suas normas fossem espontaneamente observadas, passou a ser pensado como um direito à adequada tutela jurisdicional”, ou seja, cujas

4 Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart (2006, p. 65) lecionam que “por direito de acesso à justiça entende-se o direito à pré-ordenação de procedimentos realmente capazes de prestar a tutela adequada, tempestiva e efetiva”.

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normas previamente definidas sobre o procedimento a ser adotado objetive alcançar uma resposta estatal adequada ao direito material pretendido.

Importante destacar que há diferença entre o direito de ação e o direi-to material pleiteado na demanda, pois o primeiro apresenta-se como uma garantia constitucional para a realização concreta do direito sustentado no segundo5.

Destarte, estando definido que cabe ao Estado a função referente ao serviço jurisdicional, o cidadão que necessite exercitar esta atividade esta-rá dando aplicabilidade ao seu direito constitucional de ação por meio de um conjunto de atos consubstanciados no processo, o qual será finalizado com a prestação de uma tutela jurisdicional que busque ser efetiva, justa e adequada.

O legislador ordinário estabeleceu que o direito de ação deveria estar submetido a determinadas condições, quais sejam, possibilidade jurídica do pedido, interesse processual e legitimidade ad causam. Caso não estejam reunidas todas essas condições da ação, o processo deveria ser extinto sem resolução do mérito, nos termos da letra do inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil, em razão da impossibilidade jurídica de análise do direito material6 discutido e da pretensão requerida.

Em uma cognição incipiente, define-se possibilidade jurídica do pe-dido como o meio pelo qual o juiz analisa a viabilidade jurídica da preten-são almejada pela parte diante do direito material aplicável à lide. Por sua vez, legitimidade para a causa refere-se à titularidade da ação, de sorte que somente aquela pessoa que se diz titular de um direito subjetivo material poderia demandar em juízo.

O interesse processual exige um estudo mais aprofundado, competin-do ao Estado a prestação da tutela jurisdicional por meio do Poder Judiciá-rio, este Poder Instituído somente poderia ser movimentado para expressar resultado útil e prático. Deste conceito extrai-se o binômio “necessidade-

5 Oportuno observar também a distinção entre direito objetivo e subjetivo; para tanto, se adota a doutrina de Tércio Sampaio Ferraz Junior (1996, 146), o qual assevera que o primeiro “é um fenômeno objetivo, que não pertence a ninguém socialmente, que é um dado cultural, composto de normas, instituições, mas que, por outro lado, é também um fenômeno subjetivo, no sentido de que faz, dos sujeitos, titulares de poderes, obrigações, faculdades”, de modo que existe entre ambos uma relação.

6 Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2010, p. 46) explicam a diferença entre o conceito de direito processual e direito material nos seguintes termos: “[...] chama-se direito processual o complexo de normas e princípios que regem tal método de trabalho, ou seja, o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado. Direito material é o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo, comercial, tributário, trabalhista, etc.). O que distingue fundamentalmente direito material e direito processual é que este cuida das relações dos sujeitos processuais, da posição de cada um deles no processo, da forma de se proceder aos atos deste – sem nada dizer quanto ao bem da vida que é objeto do interesse primário das pessoas (o que entra na órbita do direito substancial)”.

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-adequação”, pelo qual “necessidade” refere-se à imperativa intervenção do Estado para a obtenção do direito material pleiteado, de maneira que se veda a utilização da autotutela.

A “necessidade”, conforme leciona Alvim (1975 apud Theodoro Junior, 2007, p. 67) é verificada na situação “[...] que nos leva a procurar uma solução judicial, sob pena de, se não fizermos, vermo-nos na con-tingência de não podermos ter satisfeita uma pretensão (o direito de que nos afirmamos titulares)”. Ademais, exige-se “adequação”, através da qual o fato narrado pela parte em juízo deve estar relacionado ao provimento jurisdicional apropriado, ou seja, se o autor ajuizar ação indevida ou utilizar procedimento equivocado, a resposta estatal não lhe será útil.

Ainda no âmbito exclusivo do direito processual civil, resta expor que a ação é identificada por meio de três elementos utilizados para individua-lizá-la, quais sejam: partes, causa de pedir e pedido. Partes são aquelas pes-soas titulares da relação jurídica controvertida no processo. Causa de pedir são os fundamentos de fato e de direito que sustentam a pretensão deduzida em juízo. Pedido é o bem jurídico pleiteado pelo autor perante o réu.

Com efeito, ao ser proposta uma demanda previdenciária objetivando a concessão de prestação assegurada pela Previdência Social, o autor busca resposta do Poder Judiciário em decorrência de o requerimento adminis-trativo ter sido negado pelo órgão da Autarquia Previdenciária. O interesse processual dessa ação está representado na necessidade de intervenção do Poder Judiciário para que seja possível a obtenção de provimento jurisdi-cional adequado ao caso concreto exposto na petição inicial, de sorte que

[...] esta tutela jurisdicional a ser alcançada não reside apenas naquela su-gerida pelo autor, mas isto sim, naquela que evidentemente se mostra ade-quada e necessária ao caso concreto [...]. Assim, o interesse de agir se revela hodiernamente na necessidade de se obter a tutela jurisdicional adequada ao caso concreto. (Paula, 2009, p. 351-353)

Portanto, pode-se dizer que há interesse processual na demanda acima mencionada, pois o Estado estaria apto corrigir o ato administrativo emitido em desacordo com as normas de regência dos benefícios previden-ciários, de maneira que poderia prestar a tutela adequada após analisar o caso concreto, revelando-se, dessa forma, a possibilidade de fungibilidade do interesse processual. O interesse de agir/interesse processual representa mais do que a simples necessidade de buscar uma resposta útil do Estado, mas uma tutela que seja apropriada ao caso concreto posto ao seu crivo.

A respeito da fungibilidade da causa de pedir, De Paula (2009) sus-tenta que:

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[...] se ordinariamente o conteúdo da ação é ditado pela causa de pedir e pela pretensão formulada, da qual se extraem as condições da ação [...] a proposta de admissibilidade da fungilidade da causa de pedir e do pedido, além do contido nos arts. 461 e 461-A do CPC, e art. 84 do CDC, estão a dizer um novo conteúdo da ação: o direito à tutela jurisdicional adequada ao direito material [...] permitirá flexibilidade na investigação do direito material litigado e conferir ao juiz a possibilidade de melhor formular a tutela juris-dicional, que deverá ser adequada ao caso concreto, para efetivar o direito adequadamente [...]. (De Paula, 2009, p. 353)

Com base nesse entendimento, a causa de pedir e o pedido formulado na petição inicial são reconhecidos como um indício da pretensão autoral ao qual o juiz não está necessariamente vinculado, pois poderá conceder o bem da vida mais adequado aos fatos narrados7. Ainda, na hipótese de não haver adequação entre causa de pedir e pedido, mas havendo possibi-lidade de fungibilidade desses elementos da ação, a demanda não deixaria de objetivar uma tutela jurisdicional adequada, de maneira que poderá ser materializado o direito de acesso à justiça.

Adverte-se, contudo, que a proposta de fungibilidade do interesse processual e da causa de pedir e pedido não poderia representar qualquer espécie de livre interpretação das condições da ação e dos elementos da ação ao ponto de desconsiderar por completo as normas processuais que disciplinam a matéria com o escopo de se tutelar o direito material preten-dido. Conforme será demonstrado mais adiante, somente nos casos de be-nefícios da mesma natureza seria possível admitir a fungibilidade sugerida.

Assim sendo, a Constituição Federal brasileira de 1988 garantiu o direito de acesso ao Poder Judiciário, de maneira que esse Poder Instituído não poderá deixar de apreciar qualquer lesão ou ameaça a direito, bem como deverá proferir uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva, adequada e que represente o ideal de justiça.

Esse objetivo poderia ser alcançado com maior eficácia ao se admitir a fungibilidade do interesse processual, consubstanciado na necessidade de se alcançar uma tutela jurisdicional adequada ao caso concreto, bem como na fungibilidade da causa de pedir e do pedido, por meio do qual se procu-re uma resposta útil e apropriada para a solução da lide materializada por meio da prestação de uma tutela jurisdicional adequada ao direito material.

7 Por meio da aceitação da doutrina da fungibilidade do pedido e causa de pedir, “inegavelmente, os arts. 128 e 460 do CPC tendem à derrogação, eis que fungibilidade da causa de pedir e do pedido não se restringe ao processo coletivo, mas também às demandas individuais. Portanto, o princípio da adstrição da sentença ao pedido e a regra proibitiva do proferimento de sentença extra e ulta petita tendem a ser expurgados do sistema processual” (De Paula, 2009, p. 353).

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4 INTERESSE PROCESSUAL E A POSSIBILIDADE DE A AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA CONCEDER O BENEFÍCIO MAIS VANTAJOSO AO SEGURADO

Merece lembrar que o interesse processual pode revelar-se como a necessidade de obtenção de uma tutela jurisdicional adequada e necessá-ria ao caso concreto, de maneira que seria possibilitado ao Magistrado um campo de maior liberdade para decidir diante dos elementos apresentados na demanda. Surge, então, o questionamento se estaria presente o interesse processual ante a ausência de correspondência entre o requerimento efe-tuado na esfera administrativa e o pedido formulado no processo judicial8.

Na seara dos Juizados Especiais Federais têm sido proferidas decisões no sentido de que, ao receber um requerimento de benefício previdenciá-rio ou assistencial, o INSS tem a obrigação legal de informar o requerente acerca dos requisitos necessários para a concessão da prestação, da forma do procedimento a ser adotado, bem como de todos os direitos subjetivos que ele possui junto à previdência social destinados ao seu amparo (Brasil, 2010b)9.

8 Os Tribunais pátrios vêm pacificando o entendimento de que, nas ações previdenciárias, a ausência de requerimento administrativo perante o órgão da Administração Previdenciária vicia a demanda por carência de ação decorrente da falta de interesse processual, de maneira que o processo deve ser julgado extinto sem resolução do mérito. O acesso à justiça é direito fundamental, porém não representa garantia absoluta, pois, nos casos em que não resta evidenciada a lesão ou ameaça a direito, não caberia sua intervenção. Dessa forma, somente após o indeferimento administrativo ou a ausência de decisão em prazo razoável, estaria caracterizado o conflito de interesse resultante de uma pretensão resistida que possibilite ao segurado socorrer-se ao Poder Judiciário. Nesse sentido é o entendimento pacificado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – TEMPO DE SERVIÇO RURAL – SEGURADO ESPECIAL – REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR – REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO – AUSÊNCIA – FALTA DE INTERESSE DE AGIR – 1. Consoante pacífica jurisprudência, quando o pedido do segurado não é requerido na esfera administrativa, e a Autarquia comparece em juízo e não contesta o mérito da demanda, caracteriza a falta de interesse de agir da parte autora, implicando na extinção do processo, sem resolução do mérito, à luz do art. 267, VI, do CPC. 2. Cabe à parte autora o pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, cuja exigibilidade fica suspensa por ser beneficiária da AJG” (Brasil, 2010a).

9 Nesse sentido são as decisões proferidas nos Autos nºs 2009.70.54.002179-3 (Brasil, 2010b) e 2010.70.54.000873-0 (Brasil, 2010c), que tramitaram perante o Juizado Especial Federal de Umuarama. A Turma Recursal do Paraná reformou as decisões proferidas pelo Juízo monocrático, fundamentando-se nas razões do recurso interposto pela AGU/PGF/PFE-INSS. Assim, a Turma Recursal do Paraná concluiu que (2009.70.54.002179-3) “o princípio invocado não se aplica à espécie, pois se trata de benefícios diversos e com suas respectivas exigências. Ademais, não há se falar em pretensão resistida vez que o requerimento administrativo versava especificamente sobre a possibilidade de concessão de aposentadoria por idade rural, constatando-se nestes autos que de fato a autora não preenchia os necessários requisitos para a sua obtenção. Como sustentado na peça recursal, o benefício concedido difere inteiramente daquele pretendido na exordial. Extrai-se dos autos que desde a esfera administrativa a autora sempre buscou a sua aposentadoria por idade e não o benefício assistencial. Assim, certo é que incorre em julgamento extra petita a sentença que julga o pedido não formulado na petição inicial”. Nos Autos nº 2010.70.54.000873-0, consignou que “tenho que a condenação imposta à autarquia ré é extra petita, pois foge ao objeto da lide. Note-se que o INSS não teve oportunidade para se manifestar acerca do alegado direito do autor ao recebimento do benefício de auxílio-doença em momento algum antes da fase recursal. E não há que se falar, no caso, em fungibilidade entre o benefício assistencial e os benefícios previdenciários por incapacidade, vez que possuem naturezas distintas. Nesse sentido é o entendimento desta 1ª Turma Recursal (RCI 5010734-33.2011.404.7002, Relª Ana Beatriz Vieira da Luz Palumbo, J. 29.02.2012). De todo modo, observo que as provas colacionadas aos autos para a comprovação do vínculo de emprego não são suficientemente seguras para confirmar a presença dos requisitos da carência e da qualidade de segurado quando do início da incapacidade, necessários à concessão

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Do exposto, entende-se que a Autarquia Previdenciária está vincula-da à concessão do melhor benefício ao segurado, caso tenha direito a pres-tações distintas, bem como à concessão de qualquer benefício, mesmo que diverso daquele pleiteado no requerimento administrativo. Esse posiciona-mento fundamenta-se na interpretação do art. 88 da Lei nº 8.213/1991 e no Enunciado nº 5 do Conselho de Recursos da Previdência Social, redigidos respectivamente nos seguintes termos:

Art. 88. Compete ao Serviço Social esclarecer junto aos beneficiários seus di-reitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer conjuntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade.

Enunciado nº 5. A Previdência Social deve conceder o melhor benefício a que o segurado fizer jus, cabendo ao servidor orientá-lo nesse sentido.

Compete, portanto, à Autarquia Previdenciária orientar o segurado no momento do pleito administrativo, informando-o sobre os requisitos neces-sários e os procedimentos regulamentares para a concessão dos benefícios previdenciários, isto como decorrência lógica da aplicação do princípio da legalidade e moralidade que orientam a Administração Pública.

Ao servidor autárquico compete analisar qual prestação seria cabí-vel diante das informações prestadas pelo próprio segurado, ou seja, ao ser relatado um infortúnio que torne incapaz o desenvolvimento de atividade laboral, será processado um benefício por incapacidade. Portanto, neste momento, o processo administrativo deve ser instruído com elementos que preencham os requisitos necessários para a concessão do benefício corres-pondente ao fato concreto explicitado pelo segurado.

Por outro lado, não caberia ao INSS avaliar todas as possibilidades de prestações previdenciárias, primeiro pelo fato de que estaria atuando de ofício e sem qualquer manifestação de pretensão por parte do segurado, podendo, inclusive, vir a conceder um benefício contrario à sua vontade ou contra seus interesses. Por exemplo, o segurado desempregado, mas ainda em período de graça, solicita auxílio-doença em razão de infortúnio sofrido. O diligente servidor autárquico instaura o processo administrativo para con-cessão de benefício assistencial ao idoso por considerar que o auxílio-do-ença dispõe de natureza precária, podendo ser cessado no momento que fosse constatada a capacidade laboral, ao passo que o benefício assistencial

do benefício de auxílio-doença. Sendo assim, deve ser afastada a condenação da autarquia ao pagamento do benefício de auxílio-doença, em razão da inexistência de pedido da parte autora nesse sentido”.

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somente seria revisto a cada dois anos10. Porém, o benefício assistencial não gera direito a pensão por morte, de maneira que os dependentes deste segurado estariam desamparados desse benefício.

Em segundo lugar, não se poderia admitir que o ato administrativo proferido pela Administração Previdenciária ostentasse um duplo efeito11, ou seja, primeiramente deferisse expressamente um benefício de amparo social ao idoso, o qual possui natureza assistencial, e implicitamente indefe-risse qualquer outra espécie de benefício de natureza previdenciária. Nesta hipótese, a ação judicial que pleiteasse benefício previdenciário deveria ser julgada extinta sem resolução do mérito por falta de interesse processual em decorrência de ausência de prévio requerimento administrativo. Ademais, é importante salientar que a Autarquia Previdenciária não teria praticado ato ilegal que devesse ser corrigido pelo Poder Judiciário, pois emitiu ato admi-nistrativo relacionado aos fatos narrados pela parte interessada.

Por sua vez, seria possível admitir que o ato administrativo que con-cedesse uma aposentadoria por invalidez, necessariamente estivesse inde-ferindo o acréscimo de 25% concedido aos segurados que necessitassem da assistência permanente de outra pessoa, conforme estabelece o art. 45 da Lei de Benefícios.

Da mesma forma, no caso de indeferimento administrativo do be-nefício de auxílio-doença, implicitamente estaria sendo indeferida a apo-sentadoria por invalidez ou até mesmo benefício assistencial ao portador de deficiência. Nesses casos, verifica-se que há certa semelhança entre os requisitos para concessão dos benefícios; dessa forma, estaria presente o interesse processual no ajuizamento de demanda que objetivasse a con-cessão do acréscimo de 25% ou qualquer benefício por incapacidade, res-pectivamente, podendo, inclusive, ser adotada a técnica da fungibilidade do interesse processual para prestação da tutela jurisdicional adequada ao caso concreto.

Portanto, “a Administração Previdenciária somente exerce suas fun-ções com observância do princípio da legalidade e, consequentemente, to-

10 Lei nº 8.742/1993: “Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem”.

11 O ato administrativo dispõe de cinco elementos, quais sejam: sujeito competente, forma, motivo, objeto e finalidade. O motivo “representa as razões que justificam a edição do ato. É a situação de fato e de direito que gera a vontade do agente quando da prática do ato administrativo. Pode ser dividido em: pressuposto de fato, enquanto conjunto de circunstâncias fáticas que levam à prática do ato, e pressuposto de direito que é a norma do ordenamento jurídico e que vem a justificar a prática do ato. [...] Para a legalidade do motivo e, por consequência, validade do ato administrativo é preciso que ele obedeça a algumas exigências. Primeiro, exige-se a materialidade do ato, isto é, o motivo em função do qual foi praticado o ato deve ser verdadeiro e compatível com a realidade fática apresentada pelo administrador” (Marinela, 2007, p. 208-209). Destarte, o ato emitido pelo administrador deve estar vinculado aos fatos que lhe foram narrados, sob pena de invalidade.

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dos seus atos necessitam de idônea motivação, pressuposto que autoriza a prática do ato” (Mello, 2005, p. 367). Para que seja alcançada a legalidade do motivo, exige-se que o ato administrativo seja compatível com a reali-dade dos fatos expostos pelo administrado, de modo que não seria admissí-vel a concessão indiscriminada de benefício previdenciário em desarmonia com os eventos relatados pelo interessado.

5 FUNGIBILIDADE DAS AÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

O direito de ação objetiva uma tutela jurisdicional efetiva para que a prestação jurisdicional apresente-se adequada às necessidades do direito material e, portanto, seja justa, rápida e eficaz. Para se alcançar esse desi-derato, o Magistrado pode lançar mão de instrumentos que privilegiem a finalidade a ser alcançada por meio do processo. Nesse contexto, apresenta--se o princípio da fungibilidade como instituto intimamente interligado ao princípio da instrumentalidade das formas.

A fungibilidade do interesse processual retrata a necessidade de al-cançar uma tutela jurisdicional adequada ao caso concreto. Por sua vez, a fungibilidade da causa de pedir e do pedido procura encontrar uma resposta útil e apropriada para a solução do conflito por meio de ordem jurisdicional adequada ao direito material. Enfim, a aplicação do princípio da fungibili-dade das ações tem o condão de dar prevalência à busca pela verdade real dentro do processo.

O emprego do princípio da fungibilidade das demandas deve ser con-siderado com precaução nas ações previdenciárias, principalmente pelo fato de que não existe regulamentação específica sobre o tema, uma vez que sua aplicação provém da construção doutrinária e jurisprudencial.

Diferentemente, o Código de Processo Civil, em seu art. 92012, dis-ciplina a matéria relativa à fungibilidade das ações possessórias, visando proteger a posse de maneira efetiva e conforme as circunstâncias presentes no momento do julgamento. Jorge (2004, p. 06) abordou o tema da fungi-bilidade das ações possessórias em artigo específico, do qual se extraem alguns ensinamentos:

[...] a situação fática pode revelar-se dinâmica, pois que, sob hipótese, o simples receio (de ameaça) pode concretizar-se em turba ou em esbulho da posse, devendo operar-se a conversibilidade da providência jurisdicional com a expedição do competente mandado de manutenção ou de reintegra-ção da posse. [...] Pode ocorrer ainda a concessão, dada pelo juiz, de uma

12 Código de Processo Civil: “Art. 920. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela, cujos requisitos estejam provados”.

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tutela por outra decorrente da correta qualificação jurídica dos fatos narra-dos, não havendo a necessidade de conversão de uma demanda por outra, vez que se trata do mesmo procedimento e do mesmo bem a ser protegido [...] em que pese o demandante individualizar, na petição inicial, os fatos e os fundamentos do pedido, existe previsão – em decorrência das peculiarida-des da situação do direito material (posse) – de, no curso do processo, o juiz, examinando a causa de pedir originária e sua variação, alterar a extensão da pretensão relatada [...]. (Jorge, 2004, p. 06)

Assim, considerando o dinamismo que envolve a matéria relativa à posse, o Código de Processo Civil oferece solução processual efetiva para o caso de alteração das circunstâncias fáticas apresentadas originariamente na exordial. Contudo, adverte-se que o juiz, ao analisar o caso posto ao seu crivo, deve limitar-se a decidir conforme os fatos deduzidos pela parte in-teressada, incluindo-se os fatos supervenientes apresentados, de modo que não lhe é lícito alterar a causa de pedir.

Por seu turno, as ações previdenciárias não dispõem de regramen-to específico para aplicação do princípio da fungibilidade. Dessa forma, entende-se que somente seria cabível a conversão de demandas que com-partilhassem um mesmo núcleo ou que dispusessem da mesma natureza.

Esse posicionamento pode ser facilmente compreendido frente à aná-lise das hipóteses de prestação de benefícios por incapacidade oferecidos pelo Regime Geral da Previdência Social. Com efeito, no caso de redução ou perda da capacidade para o trabalho, o segurado dispõe de cobertura previdenciária específica por meio dos seguintes benefícios: (i) aposenta-doria por invalidez; (ii) auxílio-doença; (iii) auxílio-acidente; (iv) benefício assistencial à pessoal portadora de deficiência. Observa-se que todos esses benefícios possuem em comum a exigência de incapacidade laboral. Supe-rado esse requisito, devem-se analisar as peculiaridades de cada prestação.

Nesse sentido, Savaris (2008) afirma:

[...] como há um núcleo a ligar o requisito específico desses quatro benefí-cios da seguridade social – a redução ou inexistência de capacidade para o trabalho – tem-se admitido uma espécie de fungibilidade das ações previ-denciárias que buscam sua concessão. Isso tem dois efeitos importantes. O primeiro refere-se à correspondência entre o requerimento administrativo e a petição inicial, à luz da condicionante de prévio indeferimento adminis-trativo. O segundo toca a correspondência entre a pretensão deduzida na petição inicial e a sentença à luz do princípio da adstrição ou congruência da sentença. (Savaris, 2008, p. 66)

O primeiro efeito mencionado pelo autor – correspondência entre requerimento administrativo e a petição inicial – não poderia representar

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óbice à concessão judicial de qualquer benefício por incapacidade, desde que seja oferecido à autarquia ré oportunidade para defesa. Nesse sentido, comunga-se com o entendimento de Savaris (2008, p. 66) de que, “[...] se o INSS indeferiu o auxílio-doença porque não reconheceu a incapacidade para o trabalho, com maior razão indeferiria o pedido de aposentadoria por invalidez ou de benefício de prestação continuada da assistência social”.

Em relação ao segundo efeito tratado, correspondência entre a pre-tensão deduzida na petição inicial e a sentença, Savaris (2008, p. 66) justifi-ca o método com base “[...] no princípio juria novit curia para reconhecer a legitimidade da sentença que concede benefício por incapacidade distinto do que pleiteado pelo autor da demanda, fundada em prova técnica super-veniente e outros meios de prova”.

Segundo esse raciocínio, não seria cabível a conversão de uma ação previdenciária de aposentadoria por idade rural (a qual exige análise de idade mínima e comprovação de carência através de provas materiais e testemunhais), em ação assistencial para concessão de benefício de amparo social ao portador de deficiência (que exige comprovação de miserabilida-de e incapacidade laboral), pois se trata de demandas cujas naturezas ou núcleos não se confundem.

Portanto, por meio do conceito de fungibilidade das ações previden-ciárias, o Poder Judiciário pode prestar tutela jurisdicional adequada ao jurisdicionado, entregando-lhe o direito material correspondente aos fatos expostos e provados, bem como em atenção à necessidade apresentada no momento. Contudo, sua aplicação não prescinde de parâmetros delimita-dores, de modo que o emprego desse método deve limitar-se às demandas da mesma natureza em que se identifique um núcleo intrínseco que liga os requisitos dessas ações, uma vez que aplicar o princípio da fungibilidade em demandas com naturezas distintas resta por desvirtuar o conceito do instituto.

Ainda, a conversão de demandas previdenciárias que possuem natu-rezas distintas encontra limitação no Código de Processo Civil, ao prever, em seu art. 460, que: “É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.

Enfim, resta esclarecer que, ao converter um pedido de benefício em outro de distinta natureza, o Poder Judiciário passa a atuar em atribuição destinada exclusivamente ao Poder Executivo, ao qual compete apreciar, com exclusividade, a regularidade dos requerimentos de concessão de be-nefícios formulados pelos segurados da Previdência Social.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 194, que a Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Po-deres Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

O cidadão atingido por uma contingência social pode socorrer-se ao Estado para que seja fornecida a proteção social necessária, de modo que estará sendo desempenhada a função estatal de proteção social. Porém, caso o órgão estatal, após o devido processo administrativo, entenda que não seria cabível na hipótese qualquer prestação previdenciária, caberá ao segurado buscar a reforma do ato administrativo por meio de provimento expedido pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, disponibiliza-se ao cidadão o direito de ação que, em sua concepção constitucional atual, exige uma tutela jurisdicional efetiva que busque sempre uma sentença justa, bem como que sua execução possa ser promovida de forma adequada e no menor tempo possível para que seja eficaz, observando-se as normas constitucionais ínsitas ao devido processo legal.

O princípio processual da fungibilidade se apresenta como um me-canismo para que a prestação jurisdicional possa ser realizada de modo efetivo, pois se consubstancia na perspectiva de que a forma não pode li-mitar ou prejudicar o exercício do direito. Assim, busca-se flexibilizar algu-mas normas processuais para que o direito material objetivado na demanda possa ser entregue ao postulante; dessa forma, o processo passa a ser um instrumento para realização do direito pleiteado.

Ademais, admite-se que a decisão considere o estado de vulnerabili-dade do segurado para proporcionar-lhe uma interpretação mais favorável e, consequentemente, utilize o processo para a obtenção de um pronun-ciamento que retrate a realidade. Esse objetivo poderia ser alcançado com maior eficácia ao admitir a fungibilidade do interesse processual, consubs-tanciado na necessidade de se alcançar uma tutela jurisdicional adequa-da ao caso concreto, bem como na fungibilidade da causa de pedir e do pedido, por meio do qual se procure uma resposta útil e apropriada para a solução da lide materializada por meio da prestação do direito a uma tutela jurisdicional adequada ao direito material.

Por derradeiro, por meio do conceito de fungibilidade das ações pre-videnciárias, o Poder Judiciário pode prestar tutela jurisdicional adequada ao jurisdicionado, entregando-lhe o direito material correspondente aos fa-tos expostos e provados, bem como em atenção à necessidade apresentada

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no momento. Contudo, sua aplicação não prescinde de parâmetros delimi-tadores, de modo que o emprego desse método deve limitar-se às demandas da mesma natureza em que se identifique um núcleo intrínseco que liga os requisitos destas ações, uma vez que aplicar o princípio da fungibilidade em demandas com naturezas distintas resta por desvirtuar o conceito do instituto.

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Parte Geral – Doutrina

A Questão do Enquadramento, sob o Código 2�2�1 do Quadro Anexo ao Decreto nº 53�831, de 1964, do Tempo de Atividade do Trabalhador Rural, Segurado Empregado, para o Efeito de Reconhecimento de Tempo Especial

MÁRIO HUMBERTO CABUS MOREIRAAuditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, Conselheiro Representante do Governo no Conse-lho de Recursos da Previdência Social.

RESUMO: Este trabalho tem origem em julgamento colegiado, cuja relatoria foi da lavra do autor, proferido nos termos da Resolução nº 15, de 2011, pelo Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS, órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Previdência Social, em pedido de uniformização de jurisprudência administrativa. Neste julgamento, o Conselho Pleno do CRPS decidiu que o enquadramento do tempo de atividade do trabalhador rural, segurado empregado, sob o código 2.2.1 do Quadro anexo ao Decreto nº 53.831, de 1964, para o efeito de reconhecimento de tempo especial, seria possível quando o regime de vinculação fosse o da Previdência Social Urbana, e não o da Previdência Rural, para os períodos anteriores à unificação de ambos os regimes pela Lei nº 8.213, de 1991. Além disso, assentou que a possibilidade de enquadramento, segundo a categoria profissional de trabalhador na agropecuária, não se restringia à atividade simultânea na lavoura e pecuária, aplicando-se ao tempo de atividade rural exercido até 28 de abril de 1995, data de edição da Lei nº 9.032.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalhador rural; atividade agropecuária; lavoura e pecuária; código 2.2.1 do quadro anexo ao Decreto nº 53.831; tempo especial.

SUMÁRIO: Introdução; 1 A insuficiência do sentido literal da norma do § 2º do artigo 55 da Lei nº 8.213/1991; 2 A evolução histórico-legislativa da proteção social do homem do campo e o não reco-nhecimento de tempo de atividade sob condições especiais na vigência da antiga Previdência Social Rural (Prorural); 3 Da interpretação conforme a Constituição; Conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO

A questão acerca da possibilidade de enquadramento e conversão especial de períodos de atividade rural, principalmente quando prestados pelo assalariado rural sob a égide da legislação do Prorural, tornou-se obje-to de intensa controvérsia na Administração previdenciária a partir da edi-ção do Parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social nº 32/2009.

A aplicação da tese sustentada neste Parecer, pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, posto que desprovida de força vinculante para o

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CRPS, a teor do art.42 da Lei Complementar nº 73, de 1993, e do art. 69 do Regimento Interno deste órgão autônomo, foi por este ora acolhida, ora rejeitada, dando ensejo à interposição de vários pedidos de uniformização de jurisprudência.

Este artigo percorre a análise da referida questão controversa, que motivou a uniformizou da jurisprudência administrativa previdenciária pelo Conselho Pleno do CRPS, conforme a Resolução nº 15, de 20111.

1 A INSUFICIÊNCIA DO SENTIDO LITERAL DA NORMA DO § 2º DO ARTIGO 55 DA LEI Nº 8.213/1991

O enquadramento e conversão especial de períodos de atividade ru-ral poderiam estar fundamentados no sentido literal do § 2º do art. 55 da Lei nº 8.213/1991, cuja redação não parece ir contra o reconhecimento de tempo especial para o trabalhador rural, nestes termos:

§ 2º O tempo de serviço do segurado trabalhador rural, anterior à data de início de vigência desta lei, será computado independentemente do recolhi-mento das contribuições a ele correspondentes, exceto para efeito de carên-cia, conforme dispuser o Regulamento.

Ocorre que esse dispositivo não é inequívoco quanto ao cômputo do tempo de serviço do trabalhador rural também abranger o tempo de ativi-dade sob condições especiais. Não é possível obter uma resposta precisa a esse ponto diretamente do texto legal. Para Karl Larenz, “o sentido literal não é, em regra, inequívoco, deixando antes margem para numerosas va-riantes de interpretação”2.

E o próprio fato de ter sido recentemente editado o Parecer da Con-sultoria Jurídica do MPS nº 32/2009 sobre a questão da possibilidade de enquadramento e conversão especial de períodos de atividade rural, e os pedidos de uniformização relacionados à sua aplicação, que se seguiram, já demonstram que o reconhecimento de tempo especial fora antes admiti-do como válido, mas que está longe de ser inequívoco o sentido literal do citado dispositivo.

Por essa perspectiva, não se pode afirmar que houve ofensa a literal disposição de lei, nos casos em que foram reconhecidos tais períodos de atividade rural como tempo especial.

Assim, ante a insuficiência do critério literal no presente caso, é de grande valia, para a resolução da questão previdenciária controvertida, recorrer-se ao elemento histórico, sobretudo acerca da evolução da prote-

1 A parte dispositiva desta Resolução foi publicada no DOU de 29.11.2011, seção 1, p. 81.2 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, p. 485.

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ção social do homem do campo, porque a pesquisa histórico-legislativa e doutrinária, a esse respeito, permite delinear os fins visados pelo legislador histórico, o que se demonstrará afinal se tratar de critério decisivo de inter-pretação.

2 A EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA PROTEÇÃO SOCIAL DO HOMEM DO CAMPO E O NÃO RECONHECIMENTO DE TEMPO DE ATIVIDADE SOB CONDIÇÕES ESPECIAIS NA VIGÊNCIA DA ANTIGA PREVIDÊNCIA SOCIAL RURAL (PRORURAL)

Para José Martins Catharino, a Lei de 13 de setembro de 1830, editada na vigência da Constituição do Império, de 1824, regulava o trabalho rural, embora não de forma expressa3.

Por sua vez, Segadas Vianna destacava o emprego quase exclusivo de mão de obra do escravo nas atividades rurais, e, por isso, a inexistência de medidas de proteção para essa classe sem cidadania. E a referência à Lei de 13 de setembro de 1830 seria merecida, talvez como primeira a alcançar o trabalho rural, pela proibição de celebração do contrato por ela regulado com os africanos bárbaros, à exceção daqueles que naquele tempo existiam no Brasil. Este autor acrescentou que “as primeiras disposições de caráter objetivo” foram trazidas pelo Decreto nº 2.827, de 15.03.1879, o qual só compreendia a locação de serviços aplicada à agricultura, inclusive me-diante as parcerias agrícola e pecuária4.

A respeito desse Decreto nº 2.827, de 1879, Martins Catharino acen-tuou a sua importância nestes termos:

Era, em verdade, uma lei do trabalho rural, contendo disposições penais e até judiciárias; portanto, fundamental sob o ponto de vista histórico-legislativo. Mas, sancionada em pleno regime escravagista, não pode ser tida como lei de proteção ao trabalhador rural.5

No início da República, o Governo Provisório editou o Decreto nº 213, de 22.02.1890, que revogou a Lei de 1830 e o Decreto nº 2.827 já referidos. Deodoro da Fonseca, Generalíssimo e Chefe do Governo Pro-visório, ressaltava naquele decreto, entre outros considerandos, o de que as leis então revogadas já estavam “proscritas pelo desuso”, e que “a sua permanência no corpo da legislação” não poderia servir “senão para dar causa no estrangeiro ao descrédito injusto da nação brasileira, como ponto

3 CATHARINO, José Martins. O trabalhador rural brasileiro: proteção jurídica, p. 23.4 VIANNA, Segadas. O estatuto do trabalhador rural e sua aplicação: comentários à Lei nº 4.214, de 2 de

março de 1963, p. 35.5 CATHARINO, J. M. Ob. cit., p. 24.

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de destino, embaraçando por esse modo a formação de uma franca corrente imigratória”6.

Com efeito, ao tempo em que os escravos foram libertos, mantinha-se inalterada, como o disse Segadas Vianna, a visão acerca do trabalho rural e “até mesmo se reafirmava o entendimento de que seria pernicioso aos inte-resses do país estabelecer medidas que visassem a protegê-lo”7.

Já no começo do século XX, Segadas Vianna destaca o Decreto Fede-ral nº 979, de 6 de janeiro de 1903, como a primeira lei a tratar de sindicatos rurais, porém, a seu ver, “inexequível, e absolutamente deslocada do am-biente e da época”. Além disso, menciona a Lei nº 1.150, de 1904, e a Lei nº 1.607, de 1906, que teriam versado sobre o privilégio da dívida referente aos salários de operários agrícolas, a ser paga com preferência a quaisquer outras, pelo resultado da safra do ano agrícola8.

Em relação a essa mesma época, posterior à revogação da legislação do Império e início da República, Martins Catharino é categórico ao afirmar que a favor do trabalhador rural nada fora feito até o Código Civil de 1916; não obstante, também aludiu à primeira lei de sindicatos rurais, de 1903, a qual caracterizou como decorrente do romantismo legislativo, haja vista que não correspondia à realidade social de seu tempo, bem como se referiu ao Decreto nº 1.607, de 1906, como tendo inspirado a regra de proteção ao salário que viria a ser inscrita no art. 759 daquele Código9.

A propósito, conforme a lição de Martins Catharino, além da norma antes mencionada, o Código Civil de 1916 dispôs sobre a locação de ser-viços agrícolas nos arts. 1.222, 1.230 e 1.236, trazendo medidas que bene-ficiariam o trabalhador rural, a exemplo do atestado agrícola (do final do contrato) e do princípio da continuidade da locação dos serviços agrícolas, pois a alienação do prédio agrícola onde esta ocorria não determinava a res-cisão do contrato, podendo o locador (o campesino) optar entre continuar a prestar serviços para o adquirente da propriedade, ou para o locatário an-terior, além de ter sido assegurado ao trabalhador rural, não havendo prazo estipulado, o direito de rescindir o contrato, vedando-se as locações por vida, a teor dos arts. 1.220 e 1.22110.

6 BRASIL. Decreto nº 213, de 22 de fevereiro de 1890. Revoga todas as leis e disposições relativas aos contratos de locação de serviço agrícola. Coleção de Leis do Brasil. 31 dez. 1890. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/#>. Acesso em: 31 maio 2012.

7 VIANNA, S. Ob. cit., p. 35.8 VIANNA, S. Idem, p. 36-37.9 CATHARINO, J. M. Ob. cit., p. 25.10 CATHARINO, J. M. Idem, p. 26.

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Segundo Mozart Victor Russomano, antes da Reforma Constitucional de 1926, que atribuiu competência legislativa exclusiva da União acerca de Direito do Trabalho, os Estados tinham competência para legislar sobre tra-balho agrícola, o que, todavia, teria ocorrido de forma acanhada, havendo o ilustre autor destacado as iniciativas do Rio Grande do Sul11.

Com a Constituição de 1934, a legislação sobre normas fundamentais do direito rural passou a ser de competência privativa da União, embora os Estados pudessem editar legislação supletiva ou complementar, consoante o art. 5º, XIX, c, e § 3º, c/c o art. 7º, III. Destaca-se ainda o seu art. 121, que estabelecia a observância, pela legislação do trabalho, de determinados preceitos visando à proteção social do trabalhador, mas, cujo § 4º estatuía que o trabalho agrícola seria objeto de regulamentação especial, em que se atenderia, “quanto possível, ao disposto neste artigo”.

Nas palavras de Martins Catharino, “a orientação da Carta de 1934, quanto ao trabalho agrícola, era a mais adequada [...]. A legislação ordiná-ria sobre o assunto deveria ser especial, isto é, distinta da legislação comum do trabalho, e atender, quanto possível – fórmula cautelosa – ao disposto no mesmo artigo”12.

Já no mês de março de 1935, releva mencionar a aprovação do regu-lamento da Lei de Acidentes do Trabalho, editada no ano anterior (Decreto nº 24.637, de 10.07.1934), que alcançava os empregados que prestavam serviços na agricultura e pecuária (art. 3º)13.

Igualmente é da lavra de Martins Catharino a análise quanto a ter sido a Lei nº 185, de 14.01.1936, “o primeiro passo legislativo para a instituição do salário-mínimo, em favor de todo trabalhador”, cujo regulamento é de 1938 (Decreto-Lei nº 399, de 30.04.1938), e que o preceito do art. 137, alínea h, da Constituição de 1937, sobre o salário-mínimo, veio a se tornar efetivo com a sua instituição pelo Decreto nº 2.162, de 1º de maio de 1940, “em favor de todo trabalhador adulto”, conforme os valores determinados em sua tabela anexa14.

Com a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, pelo Decre-to-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, restaram assegurados ao empregado rural os seguintes direitos: salário-mínimo (art. 76), férias anuais remunera-das (art. 129, parágrafo único) e direito à aplicação das disposições gerais sobre contrato de trabalho e remuneração, bem como o aviso prévio, con-

11 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários ao estatuto do trabalhador rural, v. 1, p. 12-13.12 CATHARINO, J. M. Ob. cit., p. 28.13 CATHARINO, J. M. Idem, p. 27.14 CATHARINO, J. M. Idem, p. 28.

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soante os dispositivos dos Capítulos I, II e VI do Título IV da CLT (conforme o art. 505).

Mas, como ressaltado por Russomano, o art. 7º da CLT estabelecia, “como princípio, a exclusão do camponês do seu âmbito de proteção”15. Vejamos a redação dessa norma jurídica:

Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam:

[...]

b) aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo fun-ções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais;

[...]

A Assembleia Constituinte havia promulgado a Constituição Federal de 1946 e, consoante a lição de Russomano, referia-se expressamente, pela primeira vez, ao direito do trabalhador rural à estabilidade e ao recebimento de indenização, em caso de despedida injusta; contudo, esse preceito so-mente viria a ter regulamentação, por lei ordinária, com a edição do Estatuto do Trabalhador Rural de 196316. Confira-se o que a norma inscrita no inciso XII do art. 157 daquela Carta dispunha:

Art. 157. A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a melhoria da condição dos trabalhadores:

[...]

XII – estabilidade, na empresa ou na exploração rural, e indenização ao tra-balhador despedido, nos casos e nas condições que a lei estatuir;

[...]

Coube à Lei nº 605, de 05.01.1949, que dispôs sobre o repouso se-manal remunerado e o pagamento de salário nos dias feriados civis e reli-giosos, agregar mais um direito trabalhista em proveito do empregado rural, incluindo-o expressamente em seu âmbito de aplicação, conforme o seu art. 2º.

Nesse ambiente, é que o projeto de lei sobre proteção do trabalho rural, enviado pelo Presidente Getúlio Vargas ao Congresso (Projeto nº

15 RUSSOMANO, M. V. Ob. cit., p. 14.16 RUSSOMANO, M. V. Idem, p. 15.

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4.264/1954), teria sido recebido com bastante interesse, “pois correspon-dia, já naquela época, às reais necessidades do país”, e, “entre os diversos projetos e substitutivos que surgiram em torno da mensagem do Presidente Vargas, o projeto de Fernando Ferrari [...] serviria de base para o Estatuto do Trabalhador Rural e se transformaria na Lei nº 4.214, de 2 de março de 1963”, como escreveu Russomano17.

Visando a fins assistenciais para o meio rural, a Lei nº 2.613, de 23.09.1955, criou a entidade autárquica denominada Serviço Social Ru-ral – SSR, subordinada ao Ministério da Agricultura. Entre as contribuições previstas nesta lei, vale mencionar a devida, conforme o seu art. 6º, sobre a soma mensal paga aos empregados pelas pessoas naturais ou jurídicas que exerciam atividades industriais, tais como indústria de açúcar, indústria de laticínios, charqueadas, matadouros, frigoríficos rurais e curtumes rurais, cuja alíquota era de 3%; a devida sobre a remuneração mensal dos empre-gados das empresas de atividades rurais não enquadradas no referido artigo, no percentual de 1%; e a contribuição adicional devida por todos os empre-gadores aos institutos e caixas de aposentadorias e pensões, de 0,3% sobre o total de salários pagos. Essas contribuições para o SSR estavam, portanto, somente a cargo dos empregadores, e não dos empregados.

Veio a lume a Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960), operando a uniformização da legisla-ção previdenciária para os diferentes Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPI, IAPC, IAPETC, IAPFESP, IAPB e IAPM), mas não a unificação adminis-trativa desses IAPs, a qual somente aconteceria com o advento do Decreto--Lei nº 72, de 21.11.1966, quando eles foram unificados sob a denomina-ção de Instituto Nacional de Previdência Social – INPS (art. 1º), passando a constituir secretarias especializadas deste, com a extinção das respectivas personalidades jurídicas (art. 32).

O regime geral de previdência social, organizado na forma da Lei Orgânica de 1960, não era aplicável aos trabalhadores rurais, considerados, pelo art. 3º desta lei, como os que cultivavam a terra. Essa norma excludente estava assim redigida:

Art. 3º São excluídos do regime desta lei:

I – [...]

II – os trabalhadores rurais assim entendidos, os que cultivam a terra e os empregados domésticos, salvo, quanto a estes, o disposto no art. 166.

Parágrafo único. [...]

17 RUSSOMANO, M. V. Idem, p. 15-16.

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E o art. 166 da LOPS confirmava essa exclusão, pois estabelecia que, para a extensão do regime desta lei aos trabalhadores rurais, o Poder Execu-tivo, por intermédio do Ministério do Trabalho e Previdência Social, deveria promover os estudos e inquéritos necessários, a serem encaminhados ao Poder Legislativo, acompanhados de anteprojeto de lei.

Mas, ao definir os trabalhadores rurais como aqueles “que cultivam a terra”, o art. 3º da LOPS teve um alcance amplo, praticamente excluindo da Previdência Social todos os camponeses.

Russomano atentou nesse ponto, pois aquele conceito era distinto do previsto no art. 7º da Consolidação das Leis Trabalhistas, sendo que o Regu-lamento Geral da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 48.959-A, de 19.09.1960, acabou por determinar a exclusão somente dos trabalhado-res rurais que não fossem equiparados aos industriários ou comerciários na forma da lei trabalhista18. Confira-se como foi redigida a norma regulamentar:

Decreto nº 48.959-A, de 1960, art. 3º, II.

Art. 3º São excluídos do regime deste Regulamento:

[...]

II – os trabalhadores rurais, assim considerados, consoante o disposto no art. 7º, letra b, da Consolidação das Leis do Trabalho aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam emprega-dos em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos traba-lhos, ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais (art. 518).

Assim concluiu Russomano, nos comentários que fez ao art. 3º da LOPS:

Com essa distinção, que o legislador não fizera, o regulamentador levou à inclusão, no regime previdencial genérico, dos camponeses que, pelos mé-todos do seu trabalho ou pelos fins da atividade desenvolvida pelo empre-gador, figurassem, por analogia e mera semelhança, no quadro do comércio ou da indústria.19

A aplicação do regime da LOPS aos trabalhadores que já se encontra-vam protegidos pela CLT, apesar de exercerem funções claramente rurais, conforme o preceito do Regulamento Geral supra (Decreto nº 48.959-A, de 1960, art. 3º, II), foi admitida pelo Departamento Nacional da Previdência Social, de acordo com a seguinte Resolução de seu Conselho Diretor, na Sessão realizada em 15.06.1962:

18 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à lei orgânica da previdência social, v. 1, p. 54.19 RUSSOMANO, M. V. Idem, p. 55.

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Resolução nº CD/DNPS-1.586, de 15 de junho de 1962

Processo nº MTPS-111.257/62

Vinculação dos Trabalhadores Rurais à Previdência Social

Proponente: Conselheiro Dante Pellacani

Proposto: Conselho-Diretor

Relator: O Proponente

O Conselho-Diretor do Departamento Nacional da Previdência Social, por unanimidade,

Considerando que a legislação da previdência social foi criada com a finali-dade precípua de melhorar as condições de vida dos trabalhadores;

Considerando que não se justifica a exclusão dos trabalhadores rurais do âm-bito da previdência social quando a fixação do homem no campo constitui uma determinação da própria Carta Magna;

Considerando que essa exclusão feita pela legislação específica não atinge aos trabalhadores que exercem atividades agrícolas ou pastoris ligadas a em-presas que, pela natureza de suas operações, são consideradas industriais ou comerciais; e

Considerando que é dever do Estado proporcionar às massas trabalhadoras a mais ampla e efetiva assistência, a fim de preservar o indispensável equilíbrio social,

Resolve:

Declarar segurados obrigatórios os trabalhadores que prestam seus serviços a setor agrícola ou pecuário de empresas industriais ou comerciais já vincu-ladas à previdência social, desde que tal setor se destine, conforme o caso, à produção de matéria prima utilizada pelas primeiras daquelas empresas ou à produção de bens que constituem objeto de comércio por parte das segundas.

Dante Pellacani

Conselheiro/Relator Presidente20

A aplicação dos preceitos da CLT ao trabalhador que exercia ativida-de rural, em empresas cujas atividades eram classificadas como industriais ou comerciais, foi analisada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal nos autos do recurso extraordinário – RE 47609, na Sessão de 13.10.1961.

20 BRASIL. Resolução no CD/DNPS-1.586, de 15 de junho de 1962. Vinculação dos trabalhadores rurais à Previdência Social. Diário Oficial. Brasília, 6 dez. 1965. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/3097539/dou-secao-1-06-12-1965-pg-80/pdfView>. Acesso em: 31 maio 2012.

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Esse julgamento do Plenário do STF confirmou o entendimento de sua egrégia Segunda Turma, rejeitando os embargos opostos por Frigorífico Wilson do Brasil S.A. A leitura do respectivo acórdão permite conhecer a tese então prevalecente, que está mais bem retratada na ementa da decisão recorrida da Turma, assim redigida:

Recurso conhecido e desprovido. Aplicação do art. 7º, b, da Consolidação das Leis do Trabalho. Classificam-se como industriais, para efeito da pro-teção outorgada pela legislação especial, as funções de um peão que, em fazenda de empresa empenhada no abate do gado e industrialização de car-nes, cuida de reses doentes e machucadas que, uma vez recuperadas, se destinam ao Matadouro-Frigorífico da Sociedade. Não é a função isolada do empregado que se deve ter em vista, senão o encargo que faz dele um dos elementos com que conta a empregadora para a realização dos seus fins.21

Posteriormente, a referida tese restou consolidada na Súmula do STF nº 196, aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, com o seguinte teor: “Ainda que exerça atividade rural, o empregado de empresa industrial ou comercial é classificado de acordo com a categoria do empregador”22.

J. R. Feijó Coimbra comentou sobre os esforços tendentes a “ampliar a faixa de cobertura da lei previdenciária, promulgada para as atividades urbanas, de modo a proteger, com ela, alguns trabalhadores, nitidamente rurais”. Segundo este autor, “dita tendência teve sua origem na redação do art. 7º, alínea b, da CLT, que mandava aplicar seus princípios aos traba-lhadores que, embora rurais, exercessem funções ‘que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações’, se pudessem classificar de industriais ou comerciais”. E afirmou ainda que,

apoiado na alínea em tela, nasceu o entendimento de que esse emprega-do, embora rural, passaria a ser, igualmente, um segurado da previdência urbana. Isto, que sucedeu, especialmente, com os trabalhadores rurais das usinas de açúcar, mas que se verificou, igualmente, com os de outras em-presas mercantis atuantes no meio rural, e com os das indústrias rurais, vem explicado pela ausência de proteção social para o rurícola, e pelo intento de proporcioná-la, até onde fosse possível.23

Esse tratamento diferenciado, assim no âmbito trabalhista quanto no previdenciário, dirigido tão somente aos trabalhadores rurais empregados que prestavam serviço nos setores agrícola ou pecuário de empresas já vin-

21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 47.609. Relator: Ministro Villas Bôas. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 27 set. 2011.

22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 196. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTesto.asp?servico=jurisprudenciaSumula>. Acesso em: 27 set. 2011.

23 COIMBRA, J. R. Feijó. O trabalhador rural e a previdência social: lei e regulamento, comentários, p. 90-91.

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culadas ao sistema geral de previdência social urbana (quer seja no IAPI ou IAPC), é o que possibilita entender, a meu ver, que o Decreto nº 53.831, de 25.03.1964, ao dispor sobre a aposentadoria especial instituída pela LOPS (Lei nº 3.807, de 1960), tinha o propósito de justamente se referir a tais se-gurados em seu quadro anexo, quando relacionou a atividade dos trabalha-dores na agropecuária sob o código 2.2.1 (campo de aplicação: agricultura; serviços e atividades profissionais: trabalhadores na agropecuária).

Assim, no meu sentir, não andou bem a Consultoria Jurídica do MPS, no Parecer nº 32, editado recentemente em 2009, quando asseverou, em re-lação ao mencionado código 2.2.1 do quadro anexo ao Decreto nº 53.831, de 1964, que essa norma “claramente se referia ao enquadramento especial dos trabalhadores na agropecuária, situação que envolve a prática de agri-cultura e da pecuária nas suas relações mútuas” e que “não se enquadrava como especial a atividade exercida apenas na lavoura”.

Essa interpretação, em que pese possa encontrar apoio no léxico, pois o Dicionário Aurélio define a palavra agropecuária como “teoria e prática da agricultura e da pecuária nas suas relações mútuas”, poderia ter sido diversa se a douta consultoria jurídica consultasse outros dicionaristas, a exemplo dos citados a seguir, além de ponderar a evolução histórico-legis-lativa da proteção social conferida ao trabalhador rural.

Então, vejamos outro dicionário clássico da língua portuguesa, o de António de Morais Silva, cuja 10ª edição registra o seguinte significado para a palavra agropecuária: “Agropecuária, s.f. (de agro– + -pecuária). Ramo econômico que, num país, diz respeito ao desenvolvimento e progresso da agricultura e da pecuária, nos seus recíprocos interesses”24.

E, no Dicionário rural do Brasil, de João Costa, encontramos esta de-finição: “Agropecuária. Conjunto das atividades de caráter técnico e prático relacionados aos trabalhos de natureza agrícola e pastoril”25.

Ou seja, quando se fala em “ramo econômico” ou “conjunto de ati-vidades”, a acepção da palavra agropecuária não parece estar limitada à simultaneidade de ambas as atividades: agrícola e pastoril.

Em verdade, no final daquele mesmo ano de 1964, entendo que o legislador também empregou o termo agropecuária em sentido lato, con-soante o art. 1º do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30.11.1964), pois, neste diploma legal, as providências de política agrícola eram direcionadas

24 SILVA, Antonio de Morais. Grande dicionário da língua portuguesa. 10. ed. Lisboa: Confluência, v. 1, 1949-1959. p. 491.

25 COSTA, João. Dicionário rural do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 19.

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à orientação das atividades agropecuárias, não havendo razão para excluir de seu âmbito a atividade exercida apenas na lavoura.

Da mesma forma, na época atual, é difícil conceber que o produtor rural pessoa física, contribuinte individual, e o segurado especial, referidos respectivamente nos incisos V e VII do art. 11 da Lei nº 8.213/1991, ambos exerçam atividade, expressamente referida nessas normas como “agropecuá- ria”, em seu sentido estrito, porquanto, se assim empregarmos o vocábulo, estaremos excluindo dessas categorias de segurados os que se dedicam so-mente à lavoura ou à pecuária.

Retornando ao Decreto nº 53.831, de 1964, que dispôs sobre a apo-sentadoria especial instituída pela LOPS, poderia ser indagado por que o trabalhador rural, mesmo aquele cujas funções pudessem ser classificadas como industriais ou comerciais, estavam incluídos no mencionado quadro anexo (sob o código 2.2.1), se, no ano imediatamente anterior, já havia sido promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural – ETR (Lei nº 4.214, de 02.03.1963), haja vista que, como disse Feijó Coimbra: “Os trabalhadores rurais que, antes da vigência do ETR, foram tidos como segurados do sis-tema da LOPS, a partir de 2 de março de 1963 perderam, definitivamente, essa condição”26.

A resposta não tem a ver com a vigência formal do primeiro ETR, mas sim com a efetividade de sua aplicação. Para refletir esta, ou, a bem dizer, a falta desta, é suficiente consultar os comentários contemporâneos da doutri-na abalizada, a exemplo de Segadas Vianna27, Mozart Victor Russomano28 e Carlos Alberto Chiarelli29.

Em novembro de 1964, considerando a realidade acerca do “Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural”, recém-criado pelo ETR, constata-se que o Decreto nº 54.973 já aludia à necessidade de reformular o sistema previsto no Estatuto (Lei nº 4.214/1963), em razão de a arreca-dação revelar-se “notoriamente retardada e insuficiente”, e, no seu art. 3º, logo determinava a suspensão do plano de prestações do Regulamento da Previdência Social Rural (aprovado pelo Decreto nº 53.154, de 10.12.1963) antes mesmo de sua entrada em vigor.

Inicialmente, o “Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural” fora concebido sob o aspecto escritural, não como órgão de previ-dência social rural, porque esta função estava a cargo do IAPI pelo prazo

26 COIMBRA, J. R. Feijó. Ob. cit., p. 94.27 VIANNA, S. Ob. cit., p. 292.28 RUSSOMANO, M. V. Comentários à lei orgânica da previdência social, p. 58-59.29 CHIARELLI, Carlos Alberto Gomes. Teoria e prática do prorural, p. 42-43.

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de cinco anos (art. 78 do Regulamento da Previdência Social Rural), o qual era responsável por sua arrecadação e gestão, bem como pela prestação dos benefícios e serviços (art. 78 do Regulamento da Previdência Social Rural).

Somente com a edição do Decreto-Lei nº 276, em fevereiro de 1967, é que foi criada uma Comissão Diretora do Funrural, vinculada ao Minis-tério do Trabalho e Previdência Social, com funções administrativas, cujos programas eram executados por meio de convênios e mediante utilização da rede operacional do INPS. Além disso, o referido decreto-lei acabou por reduzir a destinação do Fundo ao custeio da prestação de assistência médico-social ao trabalhador rural e seus dependentes, conforme a nova redação que conferiu ao art. 158 do ETR, inovando também em matéria de arrecadação, pelo instituto da sub-rogação da contribuição do produtor, a ser recolhida pelo adquirente ou consignatário.

Convém ressaltar que a redação originária do art. 3º, II, do Regula-mento Geral de Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 60.501, em 14 de março daquele mesmo ano de 1967, ainda incluía na previdência urbana os que exerciam atividade rural, quando fosse possível a sua classi-ficação como industrial ou comercial, na forma do art. 7º, b, da CLT. Essa norma regulamentar da LOPS somente viria a ser alterada com a edição do Regulamento do Funrural, pelo Decreto nº 61.554, de 17.10.1967, a partir do qual o trabalhador rural excluído da previdência urbana (por remissão expressa inscrita na nova redação do referido art. 3º, II, do Regulamento Geral) seria aquele como tal definido no art. 21, III, do Regulamento do Funrural.

Isso denota a existência de controvérsia a respeito da filiação de al-guns trabalhadores rurais à previdência urbana, mesmo após o advento do ETR.

A par disso, como a atenção do Funrural restou efetivamente limitada à prestação de assistência médico-social, a maioria dos trabalhadores rurais continuava sem proteção previdenciária.

Então, era muito oportuna a criação do Plano Básico de previdência social, o que se deu com a edição do Decreto-Lei nº 564, de 01.05.1969, destinado a assegurar as prestações nele previstas aos empregados não abrangidos pelo sistema geral da Lei nº 3.807, de 1960 (LOPS). A implanta-ção desse Plano seria gradual, à medida que as diferentes atividades fossem atingindo suficiente grau de organização empresarial, a critério do Ministé-rio do Trabalho e Previdência Social, mediante inclusão das empresas de cada novo setor por decreto do Poder Executivo (conforme o art. 9º).

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O art. 2º do Decreto-Lei nº 564, de 1969, na redação conferida pelo Decreto-Lei nº 704, de 24.07.1969, assim estabeleceu os segurados aos quais se destinava o Plano Básico (grifou-se):

Art. 2º São segurados obrigatórios do Plano Básico, à medida que se verificar sua implantação, na forma do art. 9º, os empregados:

I – do setor agrário da empresa agroindustrial;

II – das empresas de outras atividades que, pelo seu nível de organização, possam ser incluídas.

§ 1º [...]

§ 2º [...]

Ainda segundo o Decreto-Lei nº 564, que instituiu o Plano Básico, a empresa por este abrangida ficou dispensada, com relação ao setor rural, de qualquer outra contribuição para a previdência social para o Funrural (con-forme o § 4º do art. 5º); o mencionado Plano seria executado pelo INPS (art. 6º); e o Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural) passou a denominar-se Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, com a mesma sigla (§ 2º do art. 8º), o que condizia com a redução de escopo an-teriormente estabelecida pelo Decreto-Lei nº 276, de 1967.

Nessa época, o Plano Básico representava o recomeço de uma previ-dência social rural, cujos segurados obrigatórios estariam filiados ao INPS, em plano previdenciário distinto do sistema geral de previdência social. Mas a meta que se lançava no art. 1º do Decreto-Lei nº 704, de 24.07.1969, era a futura inclusão no sistema geral das empresas abrangidas pelo Plano Básico, “tendo em vista o nível de organização da atividade e as condições econômicas da região”.

Além disso, segundo este decreto-lei, outros empregados seriam in-cluídos no Plano Básico, conforme o seu art. 3º, a saber: I – das empresas produtoras e fornecedoras de produto agrário in natura; II – dos empreiteiros ou organizações, que, não constituídos sob a forma de empresa, utilizem mão de obra para a produção e fornecimento de produto agrário in natura.

Ocorre que o setor de atividade inicialmente abrangido pelo Plano Básico era o relacionado à lavoura da cana-de-açúcar, como expressamente delimitado pelo art. 2º do Decreto nº 65.106, de 05.09.1969, que aprovou o Regulamento da Previdência Social Rural, nestes termos:

Art. 2º O Plano Básico de previdência social abrange de início as empresas produtoras e fornecedoras de cana-de-açúcar, bem como os empreiteiros ou organizações que, embora não constituídos sob a forma de empresas, utili-zem mão de obra para produção e fornecimento dessa matéria-prima.

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Não obstante essa limitada inclusão previdenciária, direcionada aos trabalhadores rurais empregados da lavoura canavieira, é relevante destacar que o Plano Básico impediu o retrocesso na proteção social já alcançada, ainda que de fato, por alguns empregados do setor agrário de empresas agroindustriais.

Isto é, determinou-se a continuidade de vinculação ao sistema geral de previdência social das empresas agroindustriais, cujo setor agrário esteve anteriormente vinculado ao IAP dos Industriários, e, em seguida, ao INPS, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei nº 704, de 1969, com o seguinte texto:

Art. 5º A empresa agroindustrial anteriormente vinculada, inclusive quanto a seu setor agrário, ao extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões, dos Indus-triários, e em seguida ao Instituto Nacional de Previdência Social, continuará vinculada ao sistema geral da previdência social, observado porém, a partir da vigência deste decreto-lei, o disposto no parágrafo único do art. 1º.

O Plano Básico de previdência social começou a viger em 01.10.1969, conforme o art. 4º do Decreto nº 65.106, que aprovou o Regulamento da Previdência Social Rural, porém foi extinto em pouco tempo, pelo art. 27 da Lei Complementar nº 11, de 25.05.1971.

Com esta Lei Complementar nº 11, de 1971, criou-se o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – Prorural. A gestão deste Programa ficou a cargo do Fundo de Assistência do Trabalhador Rural – Funrural, ao qual foi atribuída personalidade jurídica de natureza autárquica, pela mesma lei.

O advento do Prorural não modificou a situação dos trabalhadores rurais que já haviam sido excepcionados pelo art. 5º do Decreto-Lei nº 704, de 1969, pois esta norma foi reproduzida no art. 29 da Lei Complementar nº 11, de 1971, e, por conseguinte, foi mantida a continuidade de filiação dos referidos trabalhadores ao sistema geral de previdência social (regime previdenciário urbano).

Por força de seu Regulamento, aprovado pelo Decreto nº 69.919, de 11.01.1972, é que ficou mais bem delimitada a matéria acerca da filiação previdenciária dos trabalhadores rurais de empresas agroindustriais, sendo possível distinguir quais estariam vinculados ao Prorural, e quais permane-ceriam no Sistema Geral de Previdência Social.

Com efeito, de acordo com o art. 154 do Regulamento do Prorural, subordinam-se a este regime (a) os safristas e (b) os trabalhadores rurais de empresa agroindustrial empregados exclusiva e comprovadamente em ou-tras culturas que não a da matéria-prima utilizada pelo setor industrial.

Além disso, o art. 154 do Regulamento do Prorural veio estabelecer que o art. 5º do Decreto-Lei nº 704, de 24.07.1969, abrangia não apenas as

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empresas agroindustriais que já vinham contribuindo para o Sistema Geral de previdência social, em relação aos empregados do setor agrário espe-cífico, como também alcançava as que não o haviam feito, ainda que a atividade rural exercida fosse passível de classificação como industrial ou comercial, na forma do art. 7º, b, da CLT.

Mas, se a empresa agroindustrial viesse a ser constituída a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 704, de 1969 (isto é, em 01.08.1969), aquele mesmo artigo do Regulamento do Prorural somente determinava a inclusão do respectivo setor agrário, no sistema geral de previdência social, a partir de 12.01.1972, ou seja, de sua própria vigência.

Nesse período, desde a criação do Plano Básico até a instituição do Prorural, como bem observado por Chiarelli, “tivemos empresas agroindus-triais de características idênticas, com vinculações diversas (INPS ou Funru-ral), dependendo apenas de sua constituição ter ocorrido antes ou depois de 24 de julho de 1969”30.

Ainda segundo o mesmo autor, essas empresas podiam ser enquadra-das em “três situações básicas” (Obra citada, p. 185-186):

a) as empresas agroindustriais que, tradicionalmente, mesmo antes do adven-to do Estatuto do Trabalhador Rural, recolhiam sua contribuição previden-ciária para a Previdência urbana – primeiramente no IAPI, posteriormente no INPS – e que permanecem vinculadas ao Sistema Geral, inclusive favorecen-do aos seus empregados que, hoje, têm um patrimônio previdenciário, muito maior do que os benefícios acenados pelo Prorural, por que zelar;

b) as empresas agroindustriais, já constituídas em 24 de julho de 1969 (data de edição do Decreto-Lei nº 704) e que, por força do referido decreto, com-binado com a legislação atual, passaram a enquadrar-se na sistemática do INPS dessa data em diante, sendo, então, devedores das contribuições exigi-das pelo Sistema Geral;

c) as empresas agroindustriais constituídas depois de 24 de julho de 1969, as quais – depois de permanecerem quase dois anos vinculadas ao mecanismo do Funrural – se entrosam, a partir da edição da Lei Complementar nº 11, com o INPS, passando a pertencer ao Sistema Geral.31

Essa multiplicidade de regras jurídicas quanto à filiação do trabalhador rural assalariado ora integrava a Previdência Urbana – diga-se Sistema Geral de Previdência Social –, como os trabalhadores rurais do setor agrário específico das agroindústrias, ora a Previdência Rural (Prorural), a exemplo dos safristas e trabalhadores rurais do setor agrário não específico, isto é, de cultura não

30 CHIARELLI, C. A. G. Ob. cit., p. 185-186.31 CHIARELLI, C. A. G. Idem, ibidem.

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utilizada pelo setor industrial, chegaria ao fim com a edição da Lei Comple-mentar nº 16, de 30.10.1973.

Naquele mesmo ano de 1973, as normas reguladoras do trabalho ru-ral também haviam sido racionalizadas em poucos artigos do novo Estatuto do Trabalhador Rural (Lei nº 5.889, de 11.06.1973), com a aplicação das normas da CLT no que com tais regras não colidissem, revogando-se o anti-go e extenso Estatuto de 1963 (Lei nº 4.214).

Ainda a respeito da Lei Complementar nº 16/1973, verifica-se que, a partir de sua vigência, em 1º de janeiro de 1974, os empregados que pres-tassem exclusivamente serviços de natureza rural às empresas agroindus-triais e agrocomerciais seriam, invariavelmente, considerados beneficiários do Prorural, conforme o seu art. 4º. E o parágrafo único desse artigo somente manteve a condição de segurados do INPS, para esses empregados, quando houvesse desconto de sua contribuição para a Previdência Urbana, pelo menos desde a edição da Lei Complementar nº 11, de 25.05.1971, garan-tindo, inclusive, que não poderiam ser dispensados senão por justa causa. Vejamos como foi redigida a norma em questão:

Art. 4º Os empregados que prestam exclusivamente serviços de natureza ru-ral às empresas agroindustriais e agrocomerciais são considerados beneficiá-rios do Prorural, ressalvado o disposto no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. Aos empregados referidos neste artigo que, pelo menos, des-de a data da Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971, vêm sofrendo, em seus salários, o desconto da contribuição devida ao INPS, é garantida a condição de segurados desse Instituto, não podendo ser dispensados senão por justa causa, devidamente comprovada em inquérito administrativo a car-go do Ministério do Trabalho e Previdência Social.

Ademais, com vistas a conferir um regramento previdenciário unifor-me aos trabalhadores rurais, a Lei Complementar nº 16, de 1973, revogou os arts. 29 e 31 da Lei Complementar nº 11, de 1971, acabando com a possibilidade de o setor agrário das empresas agroindustriais continuar vin-culado ao Sistema Geral de Previdência Social, ressalvada tão somente a situação específica dos segurados mencionados no parágrafo único do art. 4º da Lei Complementar nº 16, acima comentada.

Portanto, a partir de 1º de janeiro de 1974, o trabalhador rural torna-va-se, em regra, beneficiário do Prorural, considerando-se como tal a pes-soa física que prestasse serviços de natureza rural a empregador, mediante remuneração de qualquer espécie, conforme a definição do art. 3º, § 1º, alínea a, da Lei Complementar nº 11/1971.

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E a vinculação de trabalhadores rurais ao Sistema Geral de Previdên-cia Social viria a constituir exceção, que visava apenas garantir a proteção social já alcançada, em condições mais vantajosas, por um grupo específico daqueles trabalhadores, no caso de preexistir filiação à Previdência Social Urbana, nos moldes preceituados pelo parágrafo único do art. 4º da Lei Complementar nº 16/1973, isto é, com descontos nos salários para o INSS, ao menos, desde a edição da Lei Complementar nº 11/1971.

A propósito, essa norma excepcional integrou, com redação de mes-mo teor substancial, a legislação referente à previdência social urbana, con-forme os textos das Consolidações das Leis da Previdência Social (CLPS), editadas em 1976 (Decreto nº 77.077, de 24.01.1976, CLPS, art. 3º, II, e parágrafo único) e em 1984 (Decreto nº 89.312, de 23.01.1984, CLPS, art. 6º, § 4º).

Diante desse panorama histórico-legislativo e doutrinário da proteção social do trabalhador rural, anterior à unificação dos regimes previdenciá-rios urbano e rural, sob a égide da Lei nº 8.213/1991, podemos compreen-der, a partir de um critério de interpretação histórico-teleológico, por que tão somente o segurado da Previdência Social Urbana faz jus ao reconheci-mento de tempo especial.

3 DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃOOutro argumento ponderável, contrário ao reconhecimento de tempo

especial para o trabalhador rural, fundamenta-se no fato de que os recursos para o custeio do Prorural não provinham da pessoa física que prestava ser-viços de natureza rural a empregador.

É o que, a meu sentir, teria influenciado a Consultoria Jurídica do MPS, no Parecer nº 32/2009, a considerar como “obstáculo intransponível”, para fins de enquadramento e conversão especial das atividades amparadas pelo Prorural, a norma inscrita no § 5º do art. 195 da Constituição Federal de 1988, a qual dispõe: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.

Esse preceito, sobre a contrapartida de despesa e respectiva receita de cobertura, trata-se de um princípio constitucional cuja importância foi realçada com a Emenda nº 20, de 1998, que veio alterar o art. 201 da Carta Magna para exigir um regime geral de caráter contributivo, organizado com a observância de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. Mas isso não quer dizer que sempre os acréscimos de despesa para a Pre-vidência Social tiveram a indicação, por parte do legislador, da correspon-dente fonte de custeio.

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O Poder Constituinte de 1988, apesar de afigurar, consoante a lição de André Ramos Tavares, um “poder constituinte historicamente situado”, cujo processo constituinte fora iniciado mediante emenda à Constituição então vigente32, nem por isso, a meu ver, deixou-se limitar por este princí-pio da precedência da fonte de custeio, que já era regra constitucional na Carta de 1967 (art. 158, § 1º) e na Emenda nº 1, de 1969 (art. 165, parágrafo único).

Com efeito, na Previdência Social Rural, os benefícios do trabalha-dor rural e seus dependentes consistiam, em regra, numa renda mensal de 50% do salário-mínimo (RBPS/1979, arts. 294, 297 e 298). Mas, com o advento da Constituição de 1988 (art. 201, § 5º, em sua redação originária), nenhum benefício, substituto do salário-de-contribuição ou do rendimento do trabalho do segurado, poderia ter como piso valor mensal inferior ao salário-mínimo. Outro exemplo da Carta promulgada em 1988, que revela a ausência de vinculação ao referido princípio de custeio, é o direito de ambos os cônjuges, trabalhadores rurais, à aposentadoria, não sendo esta apenas devida ao chefe ou arrimo da unidade familiar, como ocorria no antigo regime do Prorural.

Assim, o argumento do “obstáculo intransponível”, segundo o enten-dimento da douta Consultoria da Pasta, não pode ser simplesmente aceito para qualquer época.

Não menos importante, a meu ver, é atentar para o princípio consti-tucional da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às popu-lações urbanas e rurais (art. 194, II, da CF/1988).

Com ele, poder-se-ia sustentar uma interpretação conforme a cons-tituição para o já mencionado § 2º do art. 55 da Lei nº 8.213/1991, a fim de atribuir ao tempo de serviço do segurado trabalhador rural, anterior à vigência desta lei, uma contagem irrestrita, ou seja, inclusive como tempo especial.

Contudo, no final do mesmo dispositivo está inserida a ressalva que impossibilita a pretensão de computar o referido tempo de serviço para efei-to de carência. Isso já é uma indicação, na minha compreensão, de que o Congresso Nacional, ao aprovar o Plano de Benefícios, não foi indiferente, pelo menos como legislador ordinário, em relação ao princípio da prece-dência da fonte de custeio; além disso, que não conferiu eficácia retroativa e aplicação ilimitada ao princípio da uniformidade e equivalência dos be-nefícios às populações urbanas e rurais.

32 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 66.

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CONCLUSÕES

Ao tempo da instituição da aposentadoria especial, pela Lei Orgânica de Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960), o trabalhador rural estava excluído da Previdência Social e somente alguns preceitos da CLT lhe eram assegurados. Constituía exceção a cobertura pre-videnciária do trabalhador que executava atividade de natureza rural, desde que pudesse ser classificada como industrial ou comercial, na forma do art. 7º, alínea b, da CLT, quando passaria a ser segurado da Previdência Urbana.

É certo que a aprovação do primeiro Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, representou um avanço para a proteção social do homem do campo. Mas a Previdência Rural, essa não teve aplicação efetiva. Igualmen-te fracassou o Plano Básico criado nos idos de 1969. E, em passos lentos, chega-se finalmente ao Prorural, em 1971. Contudo, nenhum dos respec-tivos Planos de Benefícios da Previdência Rural assegurou a aposentadoria especial.

Ou seja, a partir da legislação da antiga Previdência Social Rural, não existe meio de caracterizar o tempo de atividade sob condições especiais. Quanto a esse aspecto, releva notar que o Regulamento da Previdência So-cial em vigor (aprovado pelo Decreto no 3.048/1999) distingue o tempo de serviço do segurado trabalhador rural, anterior ao início de vigência da Lei nº 8.213/1991 (art. 60, X), e o tempo de trabalho sob condições especiais (art. 60, XX). E, neste último, manda observar o disposto nos arts. 64 a 70 do mesmo Regulamento.

Essa remissão alcança, portanto, a norma do § 1º do art. 70, na reda-ção dada pelo Decreto no 4.827/2003, segundo a qual a legislação de re-gência da contagem do tempo de atividade sob condições especiais é a que estava em vigor na época da prestação do serviço, conforme esta redação: “A caracterização e a comprovação do tempo de atividade sob condições especiais obedecerá ao disposto na legislação em vigor na época da presta-ção do serviço”.

Nesse contexto, ainda que o trabalhador rural, segurado empregado, consiga comprovar o tempo de atividade sob condições especiais, o certo é que o seu direito a essa contagem não estaria de forma alguma fundamenta-do na legislação vigente na época da prestação do serviço, enquanto esteve vinculado ao Regime de Previdência Social Rural.

Assim, a partir de um exame sistemático da legislação previdenciária, parece-me adequada a interpretação de que o enquadramento do tempo de atividade do trabalhador rural, segurado empregado, sob o código 2.2.1 do quadro anexo ao Decreto nº 53.831, de 25.03.1964, para os efeitos de

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reconhecimento de tempo especial, é possível quando o regime de vincu-lação for o da Previdência Social Urbana, e não o da Previdência Rural, para os períodos anteriores à unificação de ambos os regimes pela Lei nº 8.213/1991 – sendo evidente que não há distinção a fazer para a situação de vinculação previdenciária a partir de então.

Por fim, essa possibilidade de enquadramento, segundo a categoria profissional (trabalhador na agropecuária), aplica-se ao tempo de atividade rural exercido até 28.04.1995, data de edição da Lei nº 9.032/1995, e não se restringe à atividade simultânea na lavoura e pecuária.

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